Cnticos
Teu nome liberdade
Ceclia Meireles
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Dize: O vento do meu esprito Soprou sobre a vida. E tudo que era efmero Se desfez. E ficaste s tu, que s eterno...
Cntico I No queiras ter Ptria. No dividas a Terra. No dividas o Cu. No arranques pedaos do mar. No queiras ter. Nasce bem alto, Que as coisas todas sero tuas. Que alcanars todos os horizontes. Que o teu olhar, estando em toda parte Te ponha em tudo, Como Deus. II No sejas o de hoje. No suspires por ontens... No queiras ser o de amanh. Faze-te sem limites no tempo. V a tua vida em todas as origens. Em todas as existncias. Em todas as mortes.
E sabe que sers assim para sempre. No queiras marcar a tua passagem. Ela prossegue: a passagem que se continua. a tua eternidade... a eternidade. s tu. III No digas onde acaba o dia. Onde comea a noite. No fales palavras vs. As palavras do mundo. No digas onde comea a Terra, Onde termina o cu. No digas at onde s tu. No digas desde onde Deus. No fales palavras vs. Desfaze-te da vaidade triste de falar. Pensa, completamente silencioso. At a glria de ficar silencioso. At a glria de ficar silencioso, Sem pensar. IV Adormece o teu corpo com a msica da vida. Encanta-te. Esquece-te. Tem por volpia a disperso. No queiras ser tu. Quere ser a alma infinita de tudo. Troca o teu curto sonho humano Pelo sonho imortal. O nico. Vence a misria de ter medo. Troca-te pelo Desconhecido. No vs, ento, que ele maior? No vs que ele no tem fim? No vs que ele s tu mesmo? Tu que andas esquecido de ti? V Esse teu corpo um fardo. uma grande montanha abafando-te. No te deixando sentir o vento livre Do Infinito. Quebra o teu corpo em cavernas Para dentro de ti rugir A fora livre do ar. Destri mais esta priso de pedra.
Faze-te recepo. mbito. Espao. Amplia-te. S o grande sopro Que circula...
VI Tu tens um medo: Acabar. No vs que acaba todo o dia. Que morres no amor. Na tristeza. Na dvida. No desejo. Que te renovas todo o dia. No amor. Na tristeza. Na dvida. No desejo. Que s sempre outro. Que s sempre o mesmo. Que morrers por idades imensas. At no teres medo de morrer. E ento sers eterno. VII No ames como os homens amam. No ames com amor. Ama sem amor. Ama sem querer. Ama sem sentir. Ama como se fosses outro. Como se fosses amar. Sem esperar. Por no esperar. To separado do que ama, em ti, Que no te inquiete Se o amor leva felicidade, Se leve morte, Se leva a algum destino. Se te leva. E se vai, ele mesmo... VIII No digas:o mundo belo.
Quando foi que viste o mundo? No digas:o amor triste. Que que tu conheces do amor? No digas:a vida rpida. Como foi que mediste a vida? No digas:eu sofro. Que que dentro de ti s tu? Que foi que te ensinaram Que era sofrer?
IX Os teus ouvidos esto enganados. E os teus olhos. E as tuas mos. E a tua boca anda mentindo Enganada pelos teus sentidos. Faze silncio no teu corpo. E escuta-te. H uma verdade silenciosa dentro de ti. A verdade sem palavras. Que procuras inutilmente, H tanto tempo, Pelo teu corpo, que enlouqueceu. X Este o caminho de todos que viro. Para te louvarem. Para no te verem. Para te cobrirem de maldio. Os teus braos so muito curtos. E largussimo este caminho. Com eles no poders impedir Que passem, os que tero de passar, Nem que fiques de p, Na mais alta montanha, Com os teus braos em cruz. XI V formaram-se sobre todas as guas Todas as nuvens. Os ventos viro de todos os nortes. Os dilvios cairo sobre os mundos. Tu no morrers. No h nuvem que te escuream. No h ventos que te desfaam. No h guas que te afoguem.
Tu s a prpria nuvem. O prprio vento. A prpria chuva sem fim... XII No fales as palavras dos homens. Palavras com vida humana. Que nascem, que crescem, que morrem. Faze tua palavra perfeita. Dize somente coisas eternas. Vive em todos os tempos Pela tua voz. S o que o ouvido nunca esquece. Repete-te para sempre. Em todos os coraes. Em todos os mundos. XIII Renova-te. Renasce em si mesmo. Multiplica os teus olhos, para verem mais. Multiplica os teus braos para semeares tudo. Destri os olhos que tiverem visto. Cria outros, para vises novas. Destri os braos que tiverem semeado, Para se esquecerem de colher. S sempre o mesmo. Sempre outro. Mas sempre alto. Sempre longe. E dentro de tudo. XIV Eles te viro oferecer ouro da Terra. E tu dirs que no. A beleza. E tu dirs que no. O amor. E tu dirs que no, para sempre. Eles te oferecero ouro dalm da Terra. E tu dirs sempre o mesmo. Porque tens o segredo de tudo. E sabes que o nico bem o teu. XV No queiras ser. No ambiciones.
No marques limites ao teu caminho. A Eternidade muito longa. E dentro dela tu te moves, eterno. S o que vem e o que vai. Sem forma. Sem termo. Como uma grande luz difuza. Filha de nenhum sol. XVI Tu ouvirs esta linguagem, Simples, Serena, Difcil. Ters um encanto triste. Como os que vo morrer, Sabendo o dia... Mas intimamente Querers esta morte, Sentindo-a maior que a vida. XVII Perguntaro pela tua alma. A alma que ternura, Bondade, Tristeza, Amor. Mas tu mostrars a curva do teu vo Livre, por entre os mundos... E eles compreendero que a alma pese. Que um segundo corpo, E mais amargo, Porque no se pode mostrar, Porque ningum pode ver... XVIII Quando os homens na terra sofrerem Sofrimento do corpo, Sofrimento da alma, Tu no sofrers. Quando os olhos chorarem E as mos se quebrarem de angstia E a voz acabar no rogo e na ameaa, Quando os homens viverem, Tu no vivers. Quando os homens morrerem na vida, Quando os homens nascerem na morte, Na vida e na morte nunca mais Nunca mais tu no morrers.
XIX No tem mais lar o que mora em tudo. No h mais ddivas Para o que no tem mos. No h mais mundos nem cominhos E os mundos. No h mais nada alm de ti, Porque te dispersaste... Circulas em todas as vidas Pairas sobre todas as coisas E todos te sentem Sentem-te como a si mesmos E no sabem falar de ti.
XX No digas que s dono. Sempre que disseres Roubas-te a ti mesmo. Tu, que s senhor de tudo... Deixa os escravos rugirem, Querendo. Inutiliza o gesto possuidor das mos. S a rvore que floresce Que frutifica E se dispersa no cho. Deixa os famintos despojarem-te. Nos teus ramos serenos H floraes eternas E todas as bocas se fartaro. XXI O teu comeo vem de muito longe. O teu fim termina no teu comeo. Contempla-te em redor. Compara. Tudo o mesmo. Tudo sem mudana. S as cores e as linhas mudaram. Que importa as cores, para o Senhor da Luz? Dentro das cores a luz a mesma. Que importa as linhas, para o Senhor do Ritmo? Dentro das linhas o ritmo igual. Os outros vem com os olhos ensombrados. Que o mundo perturbou, Com as novas formas. As novas tintas. Tu vers com os teus olhos.
Em Sabedoria. E vers muito alm. XXII No busques para l. O que , s tu. Est em ti. Em tudo. A gota esteve na nuvem. Na seiva. No sangue. Na terra. E no rio que se abriu no mar. E no mar que se coalhou em mundo. Tu tiveste um destino assim. Faze-te imagem do mar. D-te sede das praias D-te boca azul do cu Mas foge de novo terra. Mas no toques nas estrelas. Volve de novo a ti. Retoma-te. XXIII No faas de ti Um sonho a realizar. Vai. Sem caminho marcado. Tu s o de todos os caminhos. S apenas uma presena. Invisvel presena silenciosa. Todas as coisas esperam a luz, Sem dizerem que a esperam. Sem saberem que existe. Todas as coisas esperaro por ti, Sem te falarem. Sem lhes falarem. XXIV No digas: Este que me deu corpo meu Pai. Esta que me deu corpo minha Me. Muito mais teu Pai e tua Me so os que te fizeram Em esprito. E esses se foram sem nmero. Sem nome. De todos os tempos. Deixaram o rastro pelos caminhos de hoje. Todos os que j viveram. E andam fazendo-te dia a dia
Os de hoje, os de amanh. E os homens, e as coisas todas silenciosas; A tua extenso prolonga-se em todos os sentidos. O teu mundo no tem plos. E tu s o prprio mundo. XXV S o que renuncia Altamente: Sem tristeza da tua renncia! Sem orgulho da tua renncia! Abre a tua alma nas tuas mos E abre as tuas mos sobre o infinito. E no deixes ficar de ti Nem esse ltimo gesto!
XXVI O que tu viste amargo, Doloroso, Difcil, O que tu viste breve, O que tu viste intil Foi o que viram os teus olhos humanos, Esquecidos... Enganados... No momento da tua renncia Estende sobre a vida Os teus olhos E tu vers o que vias: Mas tu vers melhor...