INTRODUO
FILOSOFIA
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DE NIETZSCHE
2010
AMAURI FERREIRA
SUMRIO
Prlogo
Vontade de Potncia
Negao e afirmao
O homem reativo
O homem ativo
11
Ressentimento e M Conscincia
15
Sacerdote judaico, sofrimento e acusao
19
Sacerdote cristo, interiorizao e dvida
21
O Sentido da Cultura
25
Cultura e pr-histria
26
Estado e domesticao
28
Niilismo e Eterno Retorno
31
A morte de Deus
33
A ausncia de valores
35
A destruio ativa
37
O eterno retorno como seleo dos fortes
39
O amor ao eterno retorno da diferena
41
Nietzsche e o mundo contemporneo
44
Bibliografia
47
Notas
48
PRLOGO
Testemunhamos uma concorrncia insana entre os
indivduos que foram educados para seguir rigorosamente as
obrigaes que so consideradas boas no por eles,
certamente, mas pela sociedade em que vivem. Cada um deseja
passar por cima dos seus concorrentes, fazer trapaas, chegar aos
objetivos j dados de fora: tudo para se sentirem orgulhosos de ser
apenas peas de uma mquina destruidora deles mesmos. Como
esto impossibilitados de caminhar com as suas prprias pernas,
fogem de quem pode ensinar-lhes a conquistar a vida autnoma.
Sua covardia torna-se evidente quando sentem que o bem
moral a que se submetem, mesmo sendo contrrio natureza
deles, deve ser conservado por meio de uma luta diria contra os
seus instintos. Enquanto esto incapacitados de inventar para si
prprios o seu bem, desperdiam o tempo que seria
fundamental para se libertarem do ritmo doentio que imposto
pela organizao tirnica da vida humana. Mas existem
indivduos que desejam encontrar os seus mestres, que desejam
inventar o seu prprio bem, que desejam lutar pelo seu prprio
destino. Nesse processo de evoluo, eles deixam de pertencer
imagem habitual que se faz dos homens; tornam-se cada vez
menos familiares, passam a ser estranhos, maravilhosamente
estranhos, comea a brilhar neles alguma loucura que os faz
distinguirem-se dos indivduos normais e domesticados.
Quem se liga a eles, percebe, com o passar do tempo, que existe
a impossibilidade de tentar definir o que, na verdade, no pra
de escapar, de mudar, de ser inventado. O indivduo autnomo
escapa das garras do poder porque produtor de si prprio,
pois, ao se alimentar do fluxo do real, faz os seus disfarces se
multiplicarem cada vez mais. Sua multiplicidade de estilos, de
vozes, de gestos, esse ator encarnado, exprime a fora da vida
que, finalmente, no meio de tanto dio ao seu redor, tornou-se
madura, feliz, capaz de dar frutos, de ensinar aos outros a amar
cada momento vivido. Mais do que nunca, a nossa poca precisa
de indivduos assim, mesmo que os que servem aos interesses
das instituies continuem a se esforar para que eles no
existam.
Amauri Ferreira, Abril de 2010
4
Sabeis vs tambm o que para mim o mundo? Devo mostrlo em meu espelho? Este mundo: uma imensido de fora, sem
comeo, sem fim, uma firme, brnzea grandeza de fora, que no
se torna maior, no se torna menor, no se consome, s se
transforma... abenoando a si mesmo como aquilo que h de
voltar eternamente, como um devir que no conhece nenhum
tornar-se satisfeito, nenhum fastio, nenhum cansao : este meu
mundo dionisaco do criar eternamente a si mesmo, do destruir
eternamente a si mesmo, este mundo misterioso da dupla volpia,
este meu alm de bem e mal, sem fim, se no h um fim na
felicidade do crculo, sem vontade, se no h boa vontade no anel
que torna a si mesmo vs quereis um nome para este mundo?...
Este mundo a vontade de poder [potncia] e nada alm disso!
E tambm vs mesmos sois essa vontade de poder [potncia] e
nada alm disso! 1
1 VP, 1067.
VONTADE DE POTNCIA
A filosofia nietzschiana no dissocia o pensamento da
vida, no ignora o modo como sentimos o nosso prprio corpo,
o modo como agimos e reagimos nas relaes com os outros
corpos, o modo como nos alimentamos dos sentidos em um
mundo onde no h origem nem concluso, mas relaes entre
foras, misturas, passagens, metamorfoses. neste mundo que
podemos experimentar aquilo que nos diz Deleuze: a vida ativa
o pensamento e o pensamento, por seu lado, afirma a vida 2.
Ao contrrio da metafsica tradicional, Nietzsche afirma que o
nico mundo que existe somente este o mundo imanente
das sensaes, dos sentimentos, das mudanas ininterruptas,
onde o nosso corpo modificado por fluxos da vida que nos
trazem sempre o novo e onde, tambm, o nosso pensamento
uma potncia para conhecer e para amar toda mudana.
Portanto, na filosofia nietzschiana no existe concesso a um
2 Gilles Deleuze, Nietzsche, p. 18.
5
mundo que seria fechado em si mesmo, imutvel, contemplativo,
transcendente vida e que, por isso, seria verdadeiro. Como
somos produtos da nossa relao com o mundo (aspecto reativo,
consciente), h tambm em ns uma potncia de produo
desconhecida (aspecto ativo, inconsciente), que ignora um
modelo de perfeio para ser alcanado. De fato, tudo que
produzido no mundo no o resultado de uma adaptao a um
suposto modelo, mas efeito de relaes entre foras, de conflitos
entre potncias, pois em toda relao entre foras existe vontade:
o mundo como vontade de potncia. Mas no se trata de uma
vontade que quer a potncia que supostamente lhe faltaria (pois
ainda uma imagem da vontade no preenchida), mas, pelo
contrrio, a potncia que quer crescer e expandir-se. A vida,
afirma Nietzsche, aspira a um sentimento mximo de potncia:
ela , essencialmente, uma aspirao maior quantidade de
potncia: aspirar no outra coisa seno aspirar potncia: o que
existe de mais subjacente e de mais interior essa vontade 3.
O mundo eternamente volpia, ambio de domnio,
egosmo 4, ou seja, o crescimento da potncia expande os limites.
O mundo constitudo por foras que esto em relao com
outras foras, uma multiplicidade de foras em conflito contnuo,
onde nunca h igualdade ou equilbrio entre elas, j que
necessariamente existem foras que dominam e foras que so
dominadas. Por isso que no h paz na natureza. E como as
relaes entre as foras nunca se repetem do mesmo modo, o
filsofo genealogista sempre interpreta o sentido das foras, sem
querer encontrar um objetivo que as movesse. A existncia das
coisas no obedece uma finalidade, mas, pelo contrrio, algo
3 Trecho de um fragmento pstumo de Nietzsche extrado do livro Nietzsche
e o crculo vicioso, de Pierre Klossowski, p. 134.
4 AFZ, Dos trs males.
existente, diz Nietzsche, que de algum modo chegou a se
realizar, sempre reinterpretado para novos fins, requisitado de
maneira nova, transformado e redirecionado para uma nova
utilidade, por um poder [potncia] que lhe superior; de que
todo acontecimento do mundo orgnico um subjugar e
assenhorear-se, e todo subjugar e assenhorear-se uma nova
interpretao, um ajuste, no qual o sentido e a finalidade
anteriores so necessariamente obscurecidos ou obliterados.
Logo, o desenvolvimento de uma coisa, um uso, um rgo,
tudo menos o seu progressus em direo a uma meta... Se a
forma fluida, o sentido mais ainda... 5. Portanto, tudo que
existe , necessariamente, sintoma do desequilbrio das foras,
de assenhoramento, subjugao, resistncias, metamorfoses,
imposio de sentidos. Como o devir escapa s tentativas
humanas de equilibrar ou de pacificar a natureza (inclusive
o homem), a realidade gera angstias e aflies, mas tambm
fonte de diferenciao afirmativa e alegre por parte do homemartista trgico.
NEGAO E AFIRMAO
Como o mundo vontade de potncia, evidente que
tudo que existe tem vontade. O homem tem vontade, inclusive
uma clula do corpo humano tem vontade. Mas quando o
homem est impotente para efetuar o crescimento da sua
potncia, h uma tendncia para ele negar a realidade. Ao negar
5
GM, Segunda dissertao, 12.
6
a vida, a sua vontade passa a afirmar os valores que atendem a sua
necessidade de explicaes para uma realidade que lhe oprime.
Salvao da alma, mundo transcendente, razo,
progresso so alguns artigos de f que fazem o homem
impotente ter alguma esperana numa vida melhor, em um tempo
que vir. Se a realidade julgada como a causa do sofrimento dos
homens, ela , sob esse ponto de vista, considerada imperfeita e
os valores estabelecidos por aqueles que sofrem atendem
necessidade de corrigir e de controlar a realidade. Tais valores
constituem o que Nietzsche chama de ideal asctico, ou seja, so
sintomas de uma vontade de negar a vida, uma vontade de
abandonar a realidade em suma, uma vontade do nada.
Essa vontade de negao precisa de referncias
transcendentes, isto , referncias morais, constitudas por noes
universais, como, por exemplo, o bem e o mal para todos. Existe,
portanto, uma espcie de afirmao, mas, do ponto de vista da
negao da realidade, ela sempre secundria, porque a afirmao
dos valores morais refere-se aos subterfgios que do uma
finalidade ou um sentido vida a vida necessita, antes, ser
negada para que haja uma afirmao do ideal asctico que serve
para julg-la. Afinal, para quem sofre, diz Nietzsche, melhor um
sentido qualquer do que um nada de sentido. Dessa forma, o
bem, o belo, o justo, o verdadeiro, tornam-se referncias
transcendentes que devem ser desejadas por todos os homens. A
moral de Plato e a moral judaico-crist (o cristianismo como um
platonismo para as massas) so, no fundo, uma nica moral, que
a dos impotentes, que precisam julgar o mundo das aparncias,
das falsidades, das mudanas, como sendo inferior. preciso
acreditar num mundo onde nada mude e que, por isso, seja
verdadeiro, assim dizem os homens que negam a realidade.
Em razo disso, essencial que o filsofo avalie os valores
vigentes sempre da perspectiva da sade ou da doena, da
vontade de afirmar ou de negar a vida. necessrio que seja
feita a distino das coisas que permitem que a vida humana
torne-se mais intensa, das coisas que insistem em aprision-la.
Dessa forma, possvel compreendermos que os valores
engendrados no esto dissociados de uma maneira de viver.
Do mesmo modo, pertence a isso apreciar os lados da
existncia unicamente afirmados at agora; conceber de onde
provm essa avaliao e quo pouco compromissiva para uma
medida de valor dionisaca da existncia: eu extra e compreendi
o que aqui propriamente diz sim (o instinto do sofredor, por
outro lado, o instinto do rebanho, e aquele terceiro, o instinto
da maioria em contradio com as excees ) 6. possvel
perceber que a vontade de negar e a conseqente gerao de
valores que lhe interessa remete aos que sofrem da realidade,
aos que precisam ser iguais na fraqueza, aos que no conseguem
expandir a sua potncia.
Embora seja nascida do ressentimento, a vontade de
negao pode servir a algo muito mais nobre do que a sua
pretenso de corrigir a vida. Para Nietzsche, a vontade de
negao e a vontade de afirmao no so, essencialmente,
oposies; ou seja, no se trata, de modo algum, de classificar
uma vontade como m e a outra como boa. Em razo
disso, a vontade de negao pode ser transmutada numa
vontade de afirmao. Dessa forma, a negao serve apenas
como uma funo da afirmao, quando ela passa a preceder a
afirmao destinada a dominar. Esta afirmao no se trata mais
de um querer pela metade (como o das aes morais
6 VP, 1041.
7
desinteressadas 7, mas de um querer inteiro... Isso significa que
os produtos da vontade de negao so negados, os subterfgios
(como as mesquinhas satisfaes) so desprezados por uma
vontade maior a realidade, ento, passa a ser afirmada. Em suma,
o homem que escravo do ressentimento nega a vida e afirma os
valores morais, mas, este mesmo homem, pode, enfim, se livrar do
ressentimento e desprezar a sua vontade de negar a vida. Os lados
da existncia que os valores morais no cessam de culpar passam a
ser, enfim, considerados inocentes ao serem desejados e amados
por aquele que realizou a grande negao negar em si mesmo o
que o fazia negar a vida. A isso pertence conceber no s como
necessrios os lados da existncia at agora negados, mas tambm
como tendo valor bastante para serem desejados: e no s como
tendo valor bastante para serem desejados em relao aos lados
afirmados at ento (por exemplo, como seus complementos ou
condies prvias), mas sim por eles mesmos como sendo os mais
poderosos, os mais frteis, os mais verdadeiros lados da existncia,
nos quais a sua vontade se exprime o mais claramente 8.
O HOMEM REATIVO
No mundo como vontade de potncia, constitudo por
relaes desiguais entre as foras, podemos compreender que esse
desequilbrio remete s qualidades das foras que se exprimem nas
relaes. Nesse sentido, a fora ativa remete fora que domina e
7 GC, 21.
8 VP, 1041.
expande a sua potncia. A fora reativa, dominada pela mais
forte, remete fora que est limitada a se conservar. Para
Nietzsche, h uma hierarquia entre as qualidades das foras. A
fora ativa primria porque expande a sua potncia ao criar
novas formas e direes. inevitvel, portanto, que a fora
reativa seja secundria, j que ela apenas conserva o que foi
criado. Contra o darwinismo, inclusive, Nietzsche diz que a
criao sempre anterior adaptao: ...colocou-se em
primeiro plano a adaptao, ou seja, uma atividade de segunda
ordem, uma reatividade; chegou-se mesmo a definir a vida como
uma adaptao interna, cada vez mais apropriada, a
circunstncias externas. Mas com isto se desconhece a essncia
da vida, a sua vontade de poder [potncia]; com isto no se
percebe a primazia fundamental das foras espontneas,
agressivas, expansivas, criadoras de novas formas, interpretaes
e direes, foras cuja ao necessariamente precede a
adaptao 9.
Assim como tudo na natureza, o homem constitudo
por uma multiplicidade de foras e enquanto vive submetido
aos valores que negam a realidade, o homem passa a viver de
modo reativo, porque a adaptao s condies dadas torna-se
primordial para ele. Em vez da adaptao ser apenas um meio
para novas criaes, o homem reativo estabelece a adaptao
como fim, como se a vida, apenas no seu aspecto reativo, fosse o
suficiente. Esse devir reativo do homem o triunfo, atravs da
moral judaico-crist, das foras reativas sobre as foras ativas
o triunfo da reao sobre a ao. Mas como foi possvel esse
triunfo reativo no homem, j que, como diz Nietzsche, h uma
hierarquia entre as foras? A rebelio escrava na moral, afirma
9 GM, Segunda dissertao, 12.
8
Nietzsche, comea quando o prprio ressentimento se torna
criador e gera valores: o ressentimento dos seres aos quais
negada a verdadeira reao, a dos atos, e que apenas por uma
vingana imaginria obtm reparao 10. A verdadeira reao, que
remete s foras ativas, impedida pelas foras reativas. O
domnio da vida saudvel passa a ser impedido pelos que esto
enfermos que, inclusive, vem vantagens em serem enfermos.
Portanto, o triunfo dos valores de vingana contra a vida no se
estabelece sem uma contnua represso das foras ativas o
homem passa a imaginar como sendo primordial impedir que as
suas prprias foras ativas sejam dominantes. Impedido de ir alm
de si mesmo, o homem reativo tem contnua necessidade de julgar
as aes humanas a partir de referncias universais, como o bem
e o mal, o justo e o injusto. Dessa forma, os enfermos
necessitam, atravs da moral, impedir que as foras ativas
promovam a destruio da sua organizao gregria.
Mas mesmo submetido ao aspecto reativo da vida, o
homem impotente continua a ser movido por uma vontade que
anseia pelo crescimento da potncia. Porm, como sua vontade
de negar a realidade, esse crescimento da potncia apenas seria
possvel por meio dos valores morais. Com suas foras ativas
reprimidas, o homem reativo faz uma imagem da sua prpria
vontade (uma vontade psicolgica): o prazer ou o que seria a
potncia para ele algo que sempre lhe falta e, por isso,
experimenta a incmoda sensao de que sua vontade nunca
definitivamente saciada. Sua esperana em satisfazer os seus
desejos limita-se apenas s condies dadas que supostamente o
levariam a isso. Em busca do que lhe falta , a sua vontade teria a
plena satisfao no outro mundo ou, ento, neste mundo,
atravs da famigerada noo de que a vontade seria originria de
um eu ou de um substrato que buscaria alcanar o seu
objetivo para ter plena satisfao nesse sentido, o
planejamento atingiria o seu happy end... importante
notarmos que Nietzsche faz um ataque explcito ao livrearbtrio, ou seja, noo do senso comum de que o homem no
seria determinado exteriormente pelas aes que efetua e que,
portanto, teria total conscincia das aes boas ou ms,
justas ou injustas, sempre no mbito da moral. Ora, tudo
que existe no mundo envolve, necessariamente, relaes entre
foras e, em razo disso, tudo que existe provoca e sofre
modificaes. Mas o sujeito do livre-arbtrio, segundo o senso
comum, seria uma realidade anterior s aes efetuadas,
constituindo-se como um agente que estaria separado da
realidade. Mas como algo poderia existir e ter uma vontade sem
experimentar, sem afetar e ser afetado? o mesmo que dizer
que o ser est separado do devir. Tal absurdo leva Nietzsche
simplesmente a dizer que no existe o agente da ao, isto , o
sujeito uma fico: ...a moral do povo discrimina entre a fora
e as expresses da fora, como se por trs do forte houvesse um
substrato indiferente que fosse livre para expressar ou no a
fora. Mas no existe um tal substrato: no existe ser por trs
do fazer, do atuar, do devir; o agente uma fico
acrescentada ao a ao tudo 11.
O triunfo das foras reativas fez as noes de
obedincia, comando, escravo e senhor adquirirem
formas medonhas. inevitvel que a obedincia do homem
reativo esteja relacionada funo de carregar valores
estabelecidos, que so teis conservao da organizao
10 GM, Primeira dissertao, 10.
11 GM, Primeira dissertao, 13.
9
gregria. Este homem apenas conhece a obedincia no seu sentido
reativo, submetendo-se s leis institudas sejam divinas ou
humanas , limitando-se na livre escolha entre bem e mal,
til e intil, justo e injusto, verdadeiro e falso. Ele
carrega os valores porque encontra certas vantagens que so,
basicamente, duas: proteo do acaso e doses de prazer. Ser
diligente leva, a princpio, ao caminho das riquezas e das
distraes que servem como passatempo: A cega diligncia, essa
tpica virtude de um instrumento, apresentada como a via para
as riquezas e as honras e a mais saudvel droga para o tdio e as
paixes: mas silencia-se a respeito de seu perigo, de sua suprema
periculosidade 12. evidente que, enquanto o homem se
mantm distante da sua natureza, passe a exigir satisfaes que
apenas so obtidas conforme a sua obedincia aos poderes
estabelecidos.
Ser ativo, para o homem reativo, se confunde com a
busca por premiaes, reconhecimento, riquezas, ascenso
social. Mas suas aes precisam, antes, ser autorizadas pelo
poder e justamente por isso, so falsas atividades. Trabalha-se
demais, luta-se contra o relgio e, quando se tem tempo livre, no
se sabe muito bem o que fazer com ele e como o estado de no
fazer nada parece ser insuportvel, o homem reativo corre atrs
das ocupaes mais medocres para sentir-se ativo. Eles so
ativos, afirma Nietzsche, como funcionrios, comerciantes,
eruditos, isto , como representantes de uma espcie, mas no
como seres individuais e nicos; neste aspecto so indolentes. A
infelicidade dos homens ativos que sua atividade quase sempre
um pouco irracional. No se pode perguntar ao banqueiro
acumulador de dinheiro, por exemplo, pelo objetivo de sua
atividade incessante: ela irracional. Os homens ativos rolam tal
como pedra, conforme a estupidez da mecnica 13. Muitas de
suas aes esto relacionadas ao acmulo de dinheiro, ao
prestgio e ao bem-estar que se pretende alcanar. Mas todo
aquele que diz sim aos produtos da negao vive endividado
com quem lhe protege. O engodo de qualquer poder
exatamente a oferta de proteo e de prazer: isto o poder
promete, medida que os homens precisam se submeter s suas
leis. Para usufruir pequenas coisas, os homens passam a se
vender: Certamente, existem as veredas e as pontes e os
semideuses inumerveis que se oferecero para te levar para o
outro lado do rio, mas somente na medida em que te vendesses
inteiramente: tu te colocarias como penhor e te perderias 14.
Por experimentar uma represso da sua vontade (uma
represso desejada), resta ao homem reativo desejar cada vez
mais o poder. Ter o poder para ter maior prazer e, finalmente,
conquistar a felicidade!, assim imagina esse indivduo enfermo.
Comandar, para ele, se confunde com um pequeno poder.
Chega de ser escravo, agora chegou o grande momento de ser
senhor!, diz ele. Sua violncia contra si e contra o mundo
efeito do domnio das suas foras reativas, levando-o a ter uma
vontade insacivel de acumular dinheiro e glria: o escravo que
quer tornar-se senhor. O poder como algo que lhe falta... E
como fcil dar-lhe um sinal de que a vida pode ser muito mais
interessante, pois basta fornecer-lhe o chicote para que ele sintase bem melhor! Momentaneamente, o homem reativo imagina
que fez as pazes com a vida... Mas o seu aumento de potncia
segue refm da representao da potncia: a transformao de
escravo para senhor no passa de uma grande iluso. O
12 GC, 21.
13 HDM, 283.
14 SE, 1.
10
comando desse indivduo angustiado uma simulao de
comando disso que se trata. O homem, enquanto reativo,
jamais pode ser senhor, mesmo quando ele considerado pelo
povo como sendo senhor de alguma coisa, pois este senhor
extremamente dependente da submisso dos outros para explorlos, para mant-los sob o seu poder. Eis a moral dos escravos, que
efetivamente se complementam: os que procuram pequenas
vantagens sob as asas do poder e, tambm, os que alcanam o
poder na esperana de vantagens ainda maiores. A afirmao
Voc deve ser grato a mim porque eu pago o seu salrio!,
exprime, inclusive, a simulao de homem dadivoso.
importante que isto seja dito: impossvel que o homem reativo
seja dadivoso, pois o seu modo de vida , inevitavelmente,
parasitrio. Por trs de mscaras sociais, como sujeito de bem,
trabalhador, honesto, justo, cidado, existe um dio
derivado da sua impotncia de viver, dirigido contra todos aqueles
que ele imagina serem a causa das suas desgraas. No cessa de
vingar-se eis um sintoma de degenerao do homem. Nietzsche
dizia que o seu saber vinha das narinas: ele farejava a
decomposio. Isto quer dizer: quem no cria e quer apenas se
conservar, degenera.
O HOMEM ATIVO
A transmutao desse devir reativo do homem ocorre
quando as foras ativas passam a dominar as foras reativas. Desse
modo, a adaptao passa a ser apenas conseqncia do domnio
das foras ativas: Os fisilogos deveriam refletir, antes de
estabelecer o impulso de autoconservao como o impulso
cardinal de um ser orgnico. Toda criatura viva quer antes de
tudo dar vazo a sua fora a prpria vida vontade de poder
[potncia] : a autoconservao apenas uma das indiretas,
mais freqentes conseqncias disso 15. A partir da, retomada
uma ordem hierrquica das foras no homem, pois a evoluo
da vida, em geral, no est separada do comando dos impulsos
ou das foras ativas.
A obedincia do homem ativo no se confunde, de modo
algum, com a obedincia do homem reativo, pois este, como
vimos, depende dos valores estabelecidos e aquele, por ser capaz
de gerar novos valores, no se submete moral. A obedincia do
homem ativo, portanto, refere-se a uma capacidade de estar
aberto ao novo, de ser capaz de experimentar outras sensaes,
de dispor o corpo para outras maneiras de ser afetado. Suas
foras reativas, adestradas pelas ativas, cumprem sua funo
utilitria de conservao, de sobrevivncia, de maneira que esto
a servio de algo maior, que a criao. Como podemos
perceber, as foras reativas no so desprezveis, mas necessrias,
pois exprimem uma potncia da vida e, no homem ativo, so
apenas funes de foras dominadoras e agressivas, que o levam
sua prpria superao. Dessa forma, o homem ativo, que
sempre um experimentador e receptivo ao indito, aprende a
selecionar as coisas que o alimentam, que promovem o
crescimento de si mesmo. Ele tem o cuidado de si, sente a
necessidade do cultivo da distncia, de no deixar de afirmar os
encontros que, na maioria das vezes, no dependeram dele para
acontecer o ressentimento no o domina: Aquele fatalismo
15 ABM, 13.
11
russo de que falei mostrou-se em mim no fato de que durante
anos apeguei-me tenazmente a situaes, paragens, moradas,
companhias quase insuportveis, uma vez que me haviam sido
dispostas pelo acaso era melhor do que mud-las, do que sentilas como mutveis do que revoltar-se contra elas... 16. H
excelentes passagens no Ecce homo sobre o cuidado que
Nietzsche tinha com a escolha da alimentao, do clima, dos
livros, das distraes. Trata-se de um amor por si mesmo, do
conhecimento de um tempo que est ligado s coisas mais comuns
que so feitas no cotidiano e necessrio que essa mudana de
foco seja reaprendida por ns: ...essas pequenas coisas
alimentao, lugar, clima, distrao, toda a casustica do egosmo
so inconcebivelmente mais importantes do que tudo o que at
agora tomou-se como importante. Nisto exatamente preciso
comear a reaprender 17.
Somos produzidos pelas relaes que experimentamos a
todo instante relaes que no obedecem a ordem de um poder
divino ou de um sujeito que organizaria a realidade
arbitrariamente, como se os corpos exteriores estivessem
desprovidos de vontade e de realidade. O homem ativo aprende a
fazer a distino fundamental entre a obedincia aos valores
estabelecidos e a obedincia vida como fluxo, como continuum
desejante. Se a escravido do homem reativo refere-se sua
necessidade de conservar-se atravs dos valores estabelecidos, a
escravido do homem ativo, que est relacionada s suas
16 EH, Por que sou to sbio, 6: Estar doente em si uma forma de
ressentimento. Contra isso o doente tem apenas um grande remdio eu
o chamo de fatalismo russo, aquele fatalismo sem revolta, com o qual o
soldado russo para quem a campanha torna-se muito dura finalmente deitase na neve.
17 EH, Por que sou to inteligente, 10.
determinaes exteriores, inteiramente distinta da escravido
reativa porque, ao afirmar os fluxos da vida, extrai os alimentos
para as suas prprias criaes. Todo tu deves um
mandamento de natureza negativa e reativa, sendo, portanto, de
represso das foras ativas. Ora, o homem ativo aprende que, no
mundo atual, a religio, a poltica, a cincia, etc., esto banhados
de valores adaptativos e de subjugao dos homens fortes. Isso
insuportvel para ele. Por isso tem a necessidade de acumular
riquezas, isto , de obedecer a ordem da natureza, sendo,
sempre que pode, seletivo nas suas relaes. Por isso ele deseja
conectar-se s coisas e s idias que mais lhe interessam e isto
tudo o que a ordem moral tenta impedir. Daqui a algum tempo,
inevitvel que o veremos escrever e falar de modo diferente,
sua postura ser outra, sua voz estar mais forte, seu olhar
expressar maior confiana em si. Humano, demasiado
humano o monumento de uma crise, expe Nietzsche, a
respeito da obra que expressa a sua liberdade, Ele se proclama
um livro para espritos livres: quase cada frase, ali, expressa uma
vitria com ele me libertei do que no pertencia minha
natureza. Em nenhum outro sentido a expresso esprito livre
quer ser entendida: um esprito tornado livre, que de si mesmo
de novo tomou posse. O tom, o timbre da voz mudou
inteiramente... 18.
Esse esprito livre sabe encontrar as idias mais ousadas,
os lugares mais acolhedores. A arte do encontro a sua
especialidade. Ao contrrio do homem reativo, que facilmente
dominado pela inveja e pelo dio, o esprito livre pode admirar e
amar tudo aquilo que grande. Ele sabe escolher os fortes e por
isso ama-os. Zaratustra j dizia que o esprito um estmago,
18 EH, sobre Humano, demasiado humano, 1.
12
pois saber selecionar os alimentos um sintoma de sade. Sobre o
cansao de viver do homem reativo, que est relacionado
pssima alimentao do seu esprito que, inclusive, condio da
manuteno da organizao moral, diz Nietzsche, atravs da boca
de Zaratustra: De que aprenderam mal e no o que havia de
melhor e tudo cedo demais e demasiado depressa: de que
comeram mal, da lhes proveio aquele estmago estragado. Um
estmago estragado, com efeito, seu esprito: esse lhes aconselha
a morte! Porque na verdade, meus irmos, o esprito um
estmago! 19.
Portanto, o amor ao conhecimento no se ope ao amor
obedincia. Pois somente assim o esprito livre pode comandar e
distribuir riquezas. Torna-se, enfim, senhor e, como evidente,
no se trata de um assenhoramento garantido pela representao,
mas sim por uma capacidade de tomar posse da sua prpria
potncia e, por isso, torna-se capaz de estabelecer novos valores.
Vemos que a obedincia e o comando no se opem, pois so
aspectos essenciais de uma vida livre, na qual as foras reativas so
conduzidas pelas foras ativas.
O Eu quero do esprito livre permite que ele se conecte
novamente ao eterno. Virtude dadivosa: o esprito livre sente que
eterno no seu movimento de doar algo vida. Suas obras
passam a viver por elas mesmas, alimentando os espritos daqueles
que sabem receb-las, j que elas vo muito alm da sua carne e
do seu sangue. No h estoques, nenhum arquivo erudito: tudo
alegremente distribudo. Comunismo cosmolgico: a vida que
ama a si mesma se produz dadivosamente. Tornar-vos vs
mesmos oferendas e ddivas, essa a vossa sede; e, por isso, tendes
sede de acumular, na vossa alma, todas as riquezas. Insacivel,
19 AFZ, De velhas e novas tbuas, 16.
aspira vossa alma a tesouros e jias, porque insacivel a vossa
virtude em querer dar presentes. Obrigais todas as coisas a ir a
vs e a estar em vs, para que voltem a fluir do vosso manancial
como ddivas do vosso amor 20.
O homem reativo contemporneo sobrevive de modo
mesquinho, leva a sua existncia de modo fnebre, no cansa de
pensar na morte e esse o perigo para o esprito livre: o
homem reativo um reprodutor de infelicidade. E qual a sada
que ele precisou inventar para afastar toda perspectiva suicida?
Uma estranha noo de felicidade como refgio das
inquietaes dirias 21. Essa felicidade imaginada confunde-se
com a sua passividade de viver, com a conservao da vida, com
uma sensao de no ser incomodado pelos problemas da
existncia. A noo de felicidade reativa, segundo Nietzsche,
aparece essencialmente como narcose, entorpecimento,
sossego, paz, sabbat, distenso do nimo e relaxamento dos
membros, ou, numa palavra, passivamente 22. Os homens
ativos, ao contrrio, vivem felizes porque sabem que a felicidade
faz parte da ao, da coragem, da expanso da potncia, da
efetuao de natureza. Para Nietzsche, os homens ativos de
tempos antigos no tinham de construir artificialmente a sua
felicidade, de persuadir-se dela, pois, sendo homens plenos,
repletos de fora e portanto necessariamente ativos, no sabiam
separar a felicidade da ao para eles, ser ativo parte
necessria da felicidade 23. Para esses senhores, a felicidade
20 AFZ, Da virtude dadivosa, 1.
21 AFZ, O prlogo de Zaratustra, 5: Inventamos a felicidade dizem os
ltimos homens, piscando o olho.
22 GM, Primeira dissertao, 10.
23 GM, Primeira dissertao, 10.
13
sempre uma superao (24)24. Eles libertam a existncia humana
do tdio e da degenerao ao abrir novos horizontes existenciais,
ao derrubar regras que foram estabelecidas h muito tempo.
24 AC, 2: O que felicidade? O sentimento de que o poder [potncia]
cresce, de que uma resistncia superada.
14
E nenhuma chama nos devora to rapidamente quanto os afetos
do ressentimento. O aborrecimento, a suscetibilidade doentia, a
impotncia de vingana, o desejo, a sede de vingana, o revolver
venenos em todo sentido para os exaustos esta certamente a
forma mais nociva de reao: produz um rpido consumo de
energia nervosa, um aumento doentio de secrees prejudiciais, de
blis no estmago, por exemplo. O ressentimento o proibido em
si para o doente seu mal: infelizmente tambm sua mais natural
inclinao 25
25 EH, Por que sou to sbio, 6.
RESSENTIMENTO E M CONSCINCIA
O devir reativo do homem constitui-se por duas
plantas 26 essenciais, que Nietzsche distinguiu to bem: o
ressentimento e a m conscincia. Para compreendermos melhor
a distino entre elas, importante, antes, pensarmos nas
relaes de poder. La Botie j se questionava a respeito disso:
por que as multides vem vantagens em se submeter ao poder?
No seu Discurso da Servido Voluntria, ele diz: Por hora
gostaria apenas de entender como pode ser que tantos homens,
tantos burgos, tantas cidades, tantas naes suportam s vezes
um tirano s, que tem apenas o poderio que eles lhe do...
Como diremos que isso se chama? Que infortnio esse? Que
26 Gilles Deleuze, Nietzsche e a Filosofia, Concluso, p. 291: Honra a
Nietzsche por ter sabido isolar essas duas plantas, o ressentimento e a m
conscincia.
15
vcio, ou antes, que vcio infeliz ver um nmero infinito de
pessoas no obedecer mas servir, no serem governadas mas
tiranizadas, no tendo nem bens, nem parentes, mulheres ou
crianas, nem sua prpria vida que lhes pertena; aturando os
roubos, os deboches, as crueldades, no de um exrcito... mas de
um s; no de um Hrcules nem de um Sanso, mas de um s
homenzinho... No entanto, no preciso combater esse nico
tirano, no preciso anul-lo; ele se anula por si mesmo, contanto
que o pas no consinta a sua servido; no se deve tirar-lhe coisa
alguma, e sim nada lhe dar... Portanto so os prprios povos que
se deixam, ou melhor, se fazem dominar 27.
Embora tenha feito questes importantes a respeito da
servido humana, La Botie no realizou uma crtica radical que
nos levaria a compreender melhor esse estranho fenmeno de um
povo que deseja a sua prpria servido. Mas encontramos essa
crtica radical em Spinoza e Nietzsche. Em Nietzsche, esse
problema pode ser apresentado da seguinte forma: quem, em ns,
cmplice do poder? Quem, em ns, quer obedecer ao poder e
almeja, tambm, ter o poder? Vimos no captulo anterior que o
homem reativo, por estar separado da capacidade de viver
conforme a sua potncia, passa a desejar a reproduo dos valores
vigentes, mesmo que, para isso, tenha que se submeter ao poder.
Em razo disso, esse mesmo homem que se submete ao poder
tambm deseja ter o poder, j que, assim, imagina que poder
27 Etienne de La Botie, Discurso da servido voluntria, p. 12, 13 e 14. Em
outro trecho importante, na p. 20, La Botie diz: Desse modo os homens
nascidos sob o jugo, mais tarde educados e criados na servido, sem olhar
mais longe, contentam-se em viver como nasceram; e como no pensam ter
outro bem nem outro direito que o que encontraram, consideram natural a
condio de seu nascimento.
experimentar um contentamento maior. Mas, agora,
necessrio aprofundarmo-nos melhor nesse estranho fenmeno.
Conforme vivemos sofremos modificaes que resultam
dos conflitos entre as foras, isto , certas impresses que so
produzidas em ns passam a ser investidas pela nossa
conscincia. As imagens das quais temos conscincia nos
indicam apenas um fragmento da produo de realidade. Assim,
passamos a ter conscincia de um sentimento, de uma sensao,
de um pensamento, ou seja, temos conscincia das impresses
que so importantes para a nossa vida. A hiptese de Nietzsche
que a conscincia humana surgiu pela necessidade de
comunicao, caminhando, ento, lado a lado com a linguagem:
Conscincia , na realidade, apenas uma rede de ligao entre
as pessoas apenas como tal ela teve que se desenvolver: um ser
solitrio e predatrio no precisaria dela 28. Ora, se o que temos
conscincia apenas um fragmento do real, ento pensamos,
agimos, sentimos e queremos sempre de modo contnuo,
sempre de modo inconsciente. Como a conscincia humana est
diretamente relacionada necessidade de comunicao, os
signos de comunicao apenas expressam o pensamento, ou
melhor, um fragmento deste, que tornou-se consciente: Pois,
dizendo-o mais uma vez: o ser humano, como toda criatura
viva, pensa continuamente, mas no o sabe; o pensar que se
torna consciente apenas a parte menor, a mais superficial, a
pior, digamos: pois apenas esse pensar consciente ocorre em
palavras, ou seja, em signos de comunicao , com o que se
revela a origem da prpria conscincia. Acrescente-se que no s
a linguagem serve de ponte entre um ser humano e outro, mas
tambm o olhar, o toque, o gesto; o tomar-conscincia das
28 GC, 354.
16
impresses de nossos sentidos em ns, a capacidade de fix-las e
como que situ-las fora de ns, cresceu na medida em que
aumentou a necessidade de transmiti-las a outros por meio de
signos. O homem inventor de signos , ao mesmo tempo, o
homem cada vez mais consciente de si; apenas como animal social
o homem aprendeu a tomar conscincia de si ele o faz ainda, ele
o faz cada vez mais 29.
Podemos dizer que existe uma tendncia para que as nossas
foras reativas se fixem nas impresses recebidas. Assim, as coisas
que existem fora de ns tornam-se fixas; as coisas semelhantes
tornam-se iguais quando as reunimos num grupo que as
distingue das outras coisas (tal como um rebanho de ovelhas que
se assemelham). Pela sua natureza reativa, a conscincia pode nos
levar a acreditar que as imagens estariam fixadas para sempre,
separadas do seu continuum. Com efeito, passamos a reduzir a
realidade s imagens produzidas em ns mesmos: deste modo, o
mundo estaria desprovido de devires, constitudo por seres que
existiriam em si mesmos. Nesse sentido, o prprio homem seria
um ser, e no um devir, dotado de livre-arbtrio e de boas ou
ms intenes.
Enquanto vivem dominados pela ruminao das imagens
fixadas na conscincia, os homens desejam encontrar a causa
exterior para tudo que ocorre com eles. A imagem, em vez de
ficar no estado latente ou de digesto inconsciente , fixa-se
na conscincia, o que faz os homens acreditarem que todo
passado ou todo foi assim definitivamente imutvel. Pior
ainda: a partir das impresses que foram produzidas, eles passam a
imaginar que, no fundo, h injustias na vida, carregada de
imperfeies, porque certas coisas no poderiam ou, ento, no
deveriam ter ocorrido com eles. O seu passado torna-se um peso
cada vez mais difcil de suportar. A realidade mesma percebida
com um olhar desconfiado e amargurado. inevitvel que a
imagem re-sentida por sua conscincia impea, de fato, que eles
disponham o corpo para experimentar outras relaes, para que
sejam produzidas outras impresses, sensaes e sentimentos,
para que haja, de fato, outros devires. estabelecido um devir
doente do homem: No se sabe nada rechaar, de nada se
desvencilhar, de nada dar conta tudo fere... a lembrana uma
ferida supurante. Estar doente em si uma forma de
ressentimento 30.
No homem ativo o ressentimento no chega a envenenlo, pois o seu aparelho inibidor (o esquecimento) no est
danificado: a imagem desloca-se da superfcie (conscincia
superfcie) para a profundidade. Eis o que Nietzsche chama de
uma verdadeira reao, que a dos atos: as foras ativas
adestram as foras reativas para que estas estejam aptas a receber
as excitaes novas e no para ruminar as imagens de maneira
doentia. O esquecimento uma fora inibidora ativa, positiva
no mais rigoroso sentido, graas qual o que por ns
experimentado, vivenciado, por ns acolhido, no penetra mais
em nossa conscincia... 31. Atravs disso, a conscincia torna-se
regenerada, pois est aberta ao novo ao contrrio da
conscincia do homem reativo que no consegue livrar-se da
impresso recebida. Fechar temporariamente as portas e janelas
da conscincia, afirma Nietzsche, para que novamente haja
lugar para o novo... eis o esquecimento, ativo, como disse,
espcie de guardio da porta, de zelador da ordem psquica, da
paz, da etiqueta: com o que logo se v que no poderia haver
29 GC, 354.
30 EH, Por que sou to sbio, 6.
31 GM, Segunda dissertao, 1.
17
felicidade, jovialidade, esperana, orgulho, presente, sem o
esquecimento 32. Atolar-se na lama da ruminao das marcas
altamente nocivo. Sempre que pode, o homem ativo passa pelo
ressentimento rapidamente, em razo do domnio das suas foras
ativas que proporcionam o esquecimento. Mesmo o
ressentimento do homem nobre, diz Nietzsche, quando nele
aparece, se consome e se exaure numa reao imediata, por isso
no envenena: por outro lado, nem sequer aparece, em inmeros
casos em que inevitvel nos impotentes e fracos. No conseguir
levar a srio por muito tempo seus inimigos, suas desventuras,
seus malfeitos inclusive eis o indcio de naturezas fortes e plenas,
em que h um excesso de fora plstica, modeladora,
regeneradora, propiciadora do esquecimento 33.
A reao ao que nos acontece pode se expressar atravs de
duas formas: cozinhar o acaso na panela para transform-lo,
quando estiver bem cozido, no nosso alimento 34 (a reao ativa)
ou ento, o que mais comum no homem dominado pelo
ressentimento, sentir-se injustiado, como uma vtima do destino
e que, por isso, deseja encontrar o culpado pelo seu sofrimento (a
reao reativa). Portanto, podemos dizer que temos a inclinao
de negar a vida um niilismo emergente quando as impresses
passam a ser re-sentidas pela nossa conscincia. Isso est
relacionado ao primeiro aspecto do ressentimento 35. E a partir
da a reao pode se tornar reativa quando estabelecido o
triunfo das foras reativas, o que constitui o ressentimento no
seu segundo aspecto, que o aspecto formal. Dessa maneira,
para o ressentido, o mundo torna-se cinzento, num grande mar
de injustias, com um sofrimento interminvel, a vida mesma, tal
como ela , com sua incessante novidade e diferena,
incansavelmente submetida ao foi assim de um passado que
no cessa de atorment-lo. A mesma vida, as mesmas coisas, os
mesmos problemas, so motivos para que ele reclame, para que
continue a reclamar da existncia. Fixado numa imagem que faz
do passado, o homem ressentido no se abre mais s
experimentaes inocentes da vida por medo de aumentar o seu
sofrimento, por medo de que se repita o que, anteriormente,
deu errado em razo disso, ele encontra justificativas obscuras
para a sua resignao e sua necessidade de acreditar nos valores
estabelecidos, que reforam a sua passividade.
32 GM, Segunda dissertao, 1.
33 GM, Primeira dissertao, 10.
34 AFZ, Da virtude amesquinhadora, 3: Eu sou Zaratustra, o mpio. Cozinho
na minha panela todo e qualquer acaso; e somente quando est bem cozido,
dou-lhes as boas-vindas como meu alimento. E, na verdade, mais de um
acaso veio a mim com modos imperiosos; mas, com modos ainda mais
imperiosos, expressei-lhe a minha vontade e j l estava ele de joelhos,
implorando implorando que lhe desse pousada e benvola acolhida e
acrescentando, em tom bajulador: V, Zaratustra, somente um amigo vem
ter assim com um amigo!.
35 Assim como a m conscincia, segundo Deleuze, o ressentimento, ele
tambm, possui dois aspectos ou dois momentos. Um, topolgico,
questo de psicologia animal, constitui o ressentimento como matria
bruta: exprime a maneira pela qual as foras reativas se furtam ao das
foras ativas (deslocamento das foras reativas, invaso da conscincia pela
memria das marcas). A segunda tipologia exprime a maneira pela qual o
ressentimento toma forma: a memria das marcas torna-se um carter
tpico, porque encarna o esprito de vingana e conduz um
empreendimento de acusao perptua, conforme Nietzsche e a
Filosofia, Captulo IV, p. 187.
18
SACERDOTE JUDAICO, SOFRIMENTO E ACUSAO
Dominado pelo ressentimento, evidente que esse
enfermo precisa de um alvio para o seu cansao, de explicaes
para os seus infortnios. Portanto, essa ovelha doente vai precisar
de um pastor e o pastor vai precisar das ovelhas para formar o
seu rebanho. Para Nietzsche, o pastor formador de rebanhos ,
num primeiro momento, o sacerdote asctico judaico . Em
condies propcias para que o ideal asctico seja desejado, o
sacerdote cumpre aquilo que faltava para o seu triunfo: dar forma
ao ressentimento. Isso quer dizer o seguinte: a fundao do poder
sacerdotal judaico surge atravs da tristeza das massas que esto
atoladas na lama do ressentimento, utilizando-as como matriaprima para o estabelecimento do seu poder. A ele devemos
considerar o salvador, pastor e defensor predestinado do rebanho
doente, diz Nietzsche, a respeito do sacerdote; A dominao
sobre os que sofrem o seu reino, para ela o dirige o seu instinto,
nela encontra ele sua arte mais prpria, sua mestria, sua espcie de
felicidade 36. Atravs do ideal asctico estabelecido pelo
sacerdote, o sofrimento dos ressentidos passou a ser, segundo
Nietzsche, interpretado; a monstruosa lacuna parecia preenchida;
a porta se fechava para todo niilismo suicida 37.
Podemos perceber que no h poder que seja constitudo
sem a impotncia das pessoas. Para o poder ser desejado
necessrio, antes, que as pessoas estejam fracas, entristecidas, com
sede de vingana. O sacerdote, que tambm um ressentido (pois
ele se assemelha aos doentes), encontra, atravs do poder, uma
36 GM, Terceira dissertao, 15.
37 GM, Terceira dissertao, 28.
maneira de direcionar o desejo dos seus sofredores ao dar um
sentido vida deles: A falta de sentido do sofrer, no o sofrer,
era a maldio que at ento se estendia sobre a humanidade e
o ideal asctico lhe ofereceu um sentido! Foi at agora o nico
sentido; qualquer sentido melhor que nenhum... 38. Torna-se
evidente que os valores estabelecidos atravs do sacerdote
judaico interessam somente vida dos malogrados, atrofiados,
amargurados, envenenados. Ocorre a inverso do bom e
ruim de interpretao nobre, para o bom e mau de
reinterpretao plebia. Ao contrrio da distino que os
homens ativos estabeleceram entre bom (o criador, o forte) e
ruim (o que carrega, o sofredor, o fraco), o sacerdote judaico
estabeleceu a oposio entre bons (ns, as vtimas) e maus
(eles, os culpados). Portanto, atravs dessa inverso de valores,
toda ovelha que segue o seu pastor imagina que o indivduo que
difere do rebanho, isto , o seu oposto, mau na sua essncia,
e por isso a causa do sofrimento dos fracos. E quem o
oposto? O destruidor, o homem ativo, que diferente na sua
maneira de viver, sem lamentaes, sem ressentimento, mas que
afirma a vida ao destruir os valores que o rebanho deseja
conservar: Olhai-os, os crentes de todas as fs! A quem odeiam
mais que todos? quele que parte suas tbuas de valores, o
destruidor, o criminoso; mas esse o criador 39. Portanto,
por obedecer ao sacerdote que lhe protege do indivduo
mau, o homem ressentido se considera bom porque, antes
de tudo, aquele que se distingue do rebanho torna-se o seu
oposto, de natureza m e que objeto de seu dio.
Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si
mesma, distingue Nietzsche, j de incio a moral escrava diz
38 GM, Terceira dissertao, 28.
39 AFZ, O prlogo de Zaratustra, 9.
19
No a um fora, um outro, um no-eu e este No seu ato
criador. Esta inverso do olhar que estabelece valores este
necessrio dirigir-se para fora, em vez de voltar-se para si algo
prprio do ressentimento: a moral escrava sempre requer, para
nascer, um mundo oposto e exterior, para poder agir em absoluto
sua ao no fundo reao 40; ...imaginemos o inimigo tal
como o concebe o homem do ressentimento e precisamente
nisso est seu feito, sua criao: ele concebeu o inimigo mau, o
mau, e isto como conceito bsico, a partir do qual tambm
elabora, como imagem equivalente, um bom ele mesmo!... 41.
Fruto do ressentimento, a moral dos enfermos expande-se
cada vez mais atravs da acusao aos homens ativos. Tudo que
diferente de ns deve ser a causa das nossas desgraas!, assim diz
o pastor para as suas ovelhas. A acusao do homem do
ressentimento dirige-se sempre a uma ao que causou-lhe algum
prejuzo pessoal. Ele imagina que a realidade, em algum
momento, voltou-se contra ele justo ele, que se considera uma
pessoa to boa, que soube escolher o caminho do bem,
tornou-se, subitamente, uma vtima de algum que poderia ter
escolhido o mesmo caminho que ele o caminho da fraqueza
que respeita o direito de conservao do rebanho, isto , o direito
dos seus semelhantes. Eis os homens homogeneizados, que se
assemelham pela fraqueza, pelo domnio das foras reativas, como
produtos da organizao parasitria do poder sacerdotal.
40 GM, Primeira dissertao, 10.
41 GM, Primeira dissertao, 10 e 13: o rebanho diz sejamos outra coisa que
no os maus, sejamos bons! E bom todo aquele que no ultraja, que a
ningum fere, que no ataca, que no acerta contas, que remete a Deus a
vingana, que se mantm na sombra como ns, os pacientes, humildes,
justos.
Mas, diz Nietzsche, impedir uma fora de se expressar
um grande absurdo, de modo que inevitvel que os indivduos
maus continuem a ferir a frgil vida dos enfermos: Exigir
da fora que no se expresse como fora, que no seja um
querer-dominar, um querer-vencer, um querer-subjugar, uma
sede de inimigos, resistncias, triunfos, to absurdo quanto
exigir da fraqueza que se expresse como fora 42. Como o que
est em jogo so sempre sintomas de relaes entre foras, o
homem ressentido, que se considera vtima do acaso, no
pode, de fato, agir, j que vive dominado pelas foras reativas
mas fez exatamente disso uma virtude, como se sua fraqueza
fosse resultado de uma livre escolha . O homem do
ressentimento tomou a roupagem pomposa da virtude que
cala, renuncia, espera, como se a fraqueza mesma dos fracos
isto , seu ser, sua atividade, toda a sua inevitvel, irremovvel
realidade fosse um empreendimento voluntrio, algo desejado,
escolhido, um feito, um mrito 43.
O homem ativo no precisa transformar os outros em
monstros, como se eles fossem as causas dos seus infortnios,
porque ele mesmo avalia suas aes como boas e necessrias,
sem submeter-se a critrios morais de avaliao: O homem
ativo, violento, excessivo, est sempre bem mais prximo da
justia que o homem reativo; pois ele no necessita em absoluto
avaliar seu objeto de modo falso e parcial, como faz, como tem
que fazer o homem reativo 44. E como no se trata do forte ou
do fraco em si, mas sim de um devir ativo ou reativo, existe
sempre o perigo do homem forte deixar de ser forte, porque
atravs da acusao realizada continuamente pelos homens
42 GM, Primeira dissertao, 13.
43 GM, Primeira dissertao, 13.
44 GM, Segunda dissertao, 11.
20
fracos, existe o srio risco de quem sadio se tornar tambm um
doente. Ora, os fracos que vivem em rebanho so maioria e
encontram nos homens fortes a causa de alguma tristeza sofrida.
Nota-se o enorme risco de quem forte ser contaminado pelo
perigoso veneno do ressentimento, transformando-se tambm
num moribundo. Acusado principalmente por pessoas to
prximas, que querem apenas o seu bem, ele pode se
envergonhar das suas aes, da sua potncia, e se sentir culpado
pelas suas prprias foras ativas 45. Somente desse modo a
multiplicao do rebanho, com seus valores reativos, foi possvel, a
tal ponto que os sadios tornaram-se cada vez mais escassos no
meio de tanta gente enferma. No foi por acaso que Nietzsche
alertou que os doentes so o maior perigo para os sos 46. Sim,
os enfermos tentam, de modo violento, fazer o homem
envergonhar-se da sua natureza: So para mim desagradveis as
pessoas nas quais todo pendor natural se transforma em doena,
em algo deformante e ignominioso elas nos induziram a crer
que os pendores e impulsos do ser humano so maus; elas so a
causa de nossa grande injustia para com a nossa natureza, para
com toda natureza! H pessoas bastantes que podem se entregar a
seus impulsos com graa e despreocupao: mas no o fazem, por
medo dessa imaginria m essncia da natureza! 47. Os fracos
no suportam a felicidade dos fortes. O que os enfermos no
conseguem entender que os saudveis no tm vergonha de rir,
de serem egostas, de estarem felizes no meio de tantos sofredores.
Por no saberem o que o amor, o que os enfermos mais desejam
o amor de algum at de Deus. Querem ser cada vez mais
45 GC, 273: A quem voc chama de ruim? quele que quer sempre
envergonhar.
46 GM, Terceira dissertao, 14.
47 GC, 294.
mimados, nunca se do por satisfeitos e esse o maior perigo
para os sos: quando os agrados cessam, eles acusam quem quer
que seja de no am-los mais, injetando doses do terrvel veneno
da culpa.
SACERDOTE CRISTO, INTERIORIZAO E DVIDA
Apesar do domnio das foras reativas, as foras ativas no
homem enfermo no so eliminadas. Atravs da organizao
moral da vida humana, as foras ativas so constantemente
impedidas de vazarem para o exterior e, por isso, tomam uma
outra direo, voltando-se para dentro do homem: Todos os
instintos que no se descarregam para fora voltam-se para
dentro isto o que chamo de interiorizao do homem... A
hostilidade, a crueldade, o prazer na perseguio, no assalto, na
mudana, na destruio tudo isso se voltando contra os
possuidores de tais instintos: esta a origem da m conscincia
48
. Nietzsche diz que esse movimento crescente de interiorizao
das foras ativas somente tornou-se possvel a partir do
surgimento do Estado. Portanto, a m conscincia no existia
nos fundadores do Estado, mas surgiu como conseqncia do
que eles fundaram: Neles [os fundadores do Estado] no
nasceu a m conscincia, isto mais do que claro mas sem eles
ela no teria nascido, essa planta hedionda, ela no existiria se,
48 GM, Segunda dissertao, 16.
21
sob o peso dos seus golpes de martelo, da sua violncia de artistas,
um enorme quantum de liberdade no tivesse sido eliminado do
mundo, ou ao menos do campo da viso, e tornado como que
latente. Esse instinto de liberdade tornado latente fora j
compreendemos , esse instinto de liberdade reprimido, recuado,
encarcerado no ntimo, por fim capaz de desafogar-se somente em
si mesmo: isto, apenas isto, foi em seus comeos a m
conscincia 49.
As foras ativas, enquanto esto bloqueadas no seu
movimento para o exterior, multiplicam as dores internas no
homem reativo. Domesticado pelo Estado, o homem tornou-se,
gradualmente, um animal cruel consigo mesmo. Nietzsche nos d
uma imagem contundente desse homem que est ferido pela sua
domesticao: esse animal que querem amansar, que se fere nas
barras da prpria jaula 50. Percebemos que esse primeiro aspecto
da m conscincia, o da interiorizao das foras ativas,
inseparvel do ressentimento. Ruminando, cada vez mais, as
impresses recebidas, as foras reativas passam a ser dominantes.
Ora, o homem do ressentimento aquele que incapaz de
afirmar as suas foras ativas e por isso o seu sofrimento parece ser
interminvel: ele sofre pelas coisas que no deveriam ser do jeito
que aconteceram, e tambm sofre por estar impedido de agir, de
fazer vazar as suas foras ativas, de viver conforme quilo que o
levaria expanso da sua vontade de potncia. O sofrimento do
homem reativo , ento, duplo: ruminao das marcas e
interiorizao das foras ativas.
Mas a aliana entre o ressentimento e a m conscincia vai
alm disso. No ressentimento, no seu segundo aspecto, o
indivduo considerado culpado identificado e punido. A
esperana do sofredor que, aps a consumao da vingana, as
suas dores, finalmente, desaparecero, j que, segundo
Nietzsche, todo sofredor busca instintivamente uma causa para
seu sofrimento; mais precisamente, um agente; ainda mais
especificamente, um agente culpado suscetvel de sofrimento
em suma, algo vivo, no qual possa sob algum pretexto
descarregar os seus afetos... pois a descarga de afeto para o
sofredor a maior tentativa de alvio, de entorpecimento, seu
involuntariamente ansiado narctico para tormentos de
qualquer espcie 51. Apesar da punio imposta ao suposto
causador do seu tormento, o homem reativo continua,
inevitavelmente, sofrendo. Por mais que os culpados sejam
punidos, permanecer vivo, para ele, ainda continua a ser um
grande fardo. Com sua vontade de potncia entravada, com suas
foras ativas interiorizadas, ele sente que a dvida para com o
poder cresce ainda mais. Algo de errado continua a acontecer
com a vida dessa ovelha e ela precisa cada vez mais de ajuda.
Diante disso, o sacerdote asctico cristo vai interpretar a dor
interna, ou seja, a m conscincia, como uma dvida para com
Deus. Surge a assombrosa noo de pecado como fruto da
transgresso s leis divinas, que serve como explicao sacerdotal
para o sofrimento do indivduo ressentido. A culpa que, atravs
da interpretao do sacerdote judaico, era do homem ativo
(sofro, portanto algum deve ser culpado), passa a ter como
objeto, atravs da interpretao do sacerdote cristo, o prprio
homem reativo (sofro porque eu mesmo sou o culpado).
Antes que o dio do ressentimento se dirija at mesmo contra o
poder sacerdotal, o sacerdote cristo inverte a direo da
acusao: De fato, ele defende muito bem o seu rebanho
49 GM, Segunda dissertao, 17.
50 GM, Segunda dissertao, 16.
51 GM, Terceira dissertao, 15.
22
enfermo, esse estranho pastor ele o defende tambm de si
mesmo... ele combate, de modo sagaz, duro e secreto, a anarquia
e a autodissoluo que a todo momento ameaam o rebanho, no
qual aquele mais perigoso dos explosivos, o ressentimento,
continuamente acumulado. Descarregar este explosivo, de modo
que no faa saltar pelos ares o rebanho e o pastor, a sua peculiar
habilidade, e suprema utilidade; querendo-se resumir numa breve
frmula o valor da existncia sacerdotal, pode-se dizer
simplesmente: o sacerdote aquele que muda a direo do
ressentimento 52.
Ao inventar um novo sentido para a dor atravs da noo
de pecado, o sacerdote cristo estabelece para o enfermo uma
dvida impagvel para com Deus, o que caracteriza o segundo
aspecto da m conscincia. A estranha noo de que h vantagens
no sofrimento, pois somente os que sofrem que sero salvos,
tornou os enfermos cada vez mais submetidos ao poder
sacerdotal. Uma dvida para com Deus, diz Nietzsche sobre o
homem doente, este pensamento tornou-se para ele um
instrumento de suplcio. Ele apreende em Deus as ltimas
antteses que chega a encontrar para seus autnticos insuprimveis
instintos animais, ele reinterpreta esses instintos como culpa em
relao a Deus 53. Por meio de Paulo de Tarso (54) 54, o
cristianismo deu continuidade moral dos fracos estabelecida pelo
sacerdote judaico ao universalizar-se, ou seja, o cristianismo no
52 GM, Terceira dissertao, 15.
53 GM, Segunda dissertao, 22.
54 AC, 42: ...com Paulo, o sacerdote quis novamente chegar ao poder ele
tinha utilidade apenas para conceitos, doutrinas, smbolos com que so
tiranizadas as massas, so formados os rebanhos. Qual a nica coisa que
Maom tomaria depois ao cristianismo? A inveno de Paulo, seu meio para
a tirania sacerdotal, para a formao de rebanho: a f na imortalidade ou
seja, a doutrina do 'Juzo'.
se ope, de fato, ao judasmo. A interpretao da dor como
efeito de um pecado e como meio para alcanar a salvao da
alma, foi suficientemente contagiosa para a expanso da moral
judaico-crist: Paulo, o dio chandala a Roma, ao mundo,
feito carne, feito gnio, o judeu, o judeu eterno par excellence...
O que ele intuiu foi como se podia, com ajuda do pequeno
movimento sectrio cristo margem do judasmo, atear fogo
no mundo... ele compreendeu que necessitava da f na
imortalidade para tirar o valor do mundo, que o conceito de
inferno ainda se tornaria senhor de Roma que com o alm
se mata a vida... 55.
Para a manuteno do seu poder sobre os que sofrem, o
sacerdote cristo precisa ferir (atravs da noo de pecado) para
depois ser mdico 56. E qual a cura que ele oferece? A
expiao da dor, no atravs do dio, mas atravs da
compaixo... Somente sero salvos os humildes, sofredores, os
que praticam o bem... Ele serve-se disso para fundar o seu
reino: a frmula Jesus morreu pelos nossos pecados! foi
convincente o suficiente para transformar o dio judaico no
amor cristo: Perdoai-os Pai, pois eles no sabem o que
fazem!. Mas evidente que essa transformao apenas
imaginria, porque o cristianismo continua carregado de dio
contra a vida. E foi por meio desse amor que o cristianismo,
segundo Nietzsche, deu o seu golpe de gnio: ...o prprio
Deus se sacrificando pela culpa dos homens, o prprio Deus
pagando a si mesmo, Deus como o nico que pode redimir o
homem daquilo que para o prprio homem se tornou
55 AC, 58.
56 GM, Terceira dissertao, 15: Ele traz ungento e blsamo, sem dvida:
mas necessita primeiro ferir, para ser mdico; e quando acalma a dor que a
ferida produz, envenena no mesmo ato a ferida.
23
irredimvel o credor se sacrificando por seu devedor, por amor
( de se dar crdito?), por amor a seu devedor!... 57.
O sacerdote diz: Livrai-vos das tentaes da carne!.
Quando isso no acontece (o que inevitvel e isso as igrejas
sabem muito bem), o doente v a sua dvida aumentar, pois, afinal
de contas, a imagem do risco de viver a dor que ele sente nesta
vida se prolongar numa outra vida, eternamente no inferno, causalhe certamente um grande tormento. A opo que lhe resta
correr em direo ao sacerdote para confessar os seus pecados na
esperana de redimir-se... Eis a grande estratgia da manuteno
do poder sacerdotal (ou de qualquer outro poder): rolar a dvida,
tornando-a impagvel para manter o devedor sempre sob o seu
jugo e o uso da sexualidade, por exemplo, est a servio desse
nefasto sistema de reproduo da m conscincia (o adultrio, a
homossexualidade e outras proibies que precisaram ser
inventadas pela igreja para que o devedor sinta-se cada vez mais...
devedor!). Portanto, sem a inveno da dvida impagvel, no h
poder. Afinal, no existe manuteno do poder sem o
arrependimento dos seus servos. Assim, o penitente abaixa a
cabea diante do sacerdote para pedir-lhe clemncia... O que o
crucifixo, seno um smbolo do pecado que est espalhado por
todos os lados para que o devedor nunca se esquea da sua
dvida?... O que a dvida para com a famlia, para com o
empregador, para com as leis, para com a sociedade, para com o
Estado? So armadilhas do poder que mantm as foras ativas do
homem aprisionadas.
Podemos, agora, distinguir melhor os elementos que
constituem o insano investimento no poder: ressentimento
(marcas fixadas na conscincia, bloqueio das novas
experimentaes), vontade de negao (a realidade, como
mudana contnua, dura demais para ser afirmada), triunfo das
foras reativas (conservao dos modos de vida estabelecidos),
m conscincia (interiorizao das foras ativas), o sacerdote
asctico (o mdico das almas doentes e guia indispensvel para
os infelizes), ressentimento e m conscincia como aspectos
formais (a culpa do outro, a culpa minha) e o ideal asctico
(a salvao da alma, a esperana de alcanar uma vida feliz). No
foi por acaso que Nietzsche disse que o homem , considerado
relativamente, o animal mais malogrado, o mais doentio, que
mais perigosamente se desviou de seus instintos e com tudo
isso, verdade, tambm o mais interessante! 58.
57 GM, Segunda dissertao, 21.
58 AC, 14.
24
Como gostaramos de aplicar sociedade e a seus fins um
ensinamento que pudesse ser extrado da considerao de todas as
espcies do reino animal e vegetal para elas, somente importa o
exemplar individual superior, o mais incomum, o mais poderoso,
o mais complexo, o mais fecundo , que prazer no haveria a, se
os preconceitos enraizados pela educao quanto finalidade da
sociedade no oferecessem uma pertinaz resistncia! 59
O SENTIDO DA CULTURA
Como resultado da violenta represso dos seus impulsos
ativos, realizada durante sculos, o homem contemporneo vive
submetido ao aspecto reativo da existncia, exprimindo algo
que, segundo Nietzsche, difere radicalmente do sentido da
cultura. Em vez da cultura se referir fora, nobreza,
produo de um tipo humano forte, a sua noo reativa
relaciona-se fraqueza, passividade, aos afetos do
ressentimento. A cultura aparece, ento, associada civilizao e
humanizao, sempre no sentido de privilegiar os fracos, os
que no agem, os que querem se conservar, os que so
prisioneiros da m conscincia: tudo isso em detrimento do
animal de rapina que habita em cada homem civilizado,
59 SE, 6.
25
que, segundo a lgica moral, deve ser objeto de uma contnua
represso para que a humanidade alcance, algum dia, um estado
de paz. Supondo que fosse verdadeiro o que agora se cr
como verdade, provoca Nietzsche, ou seja, que o sentido de
toda cultura amestrar o animal de rapina homem, reduzi-lo a
um animal manso e civilizado, domstico, ento deveramos sem
dvida tomar aqueles instintos de reao e ressentimento, com
cujo auxlio foram finalmente liquidadas e vencidas as estirpes
nobres e os seus ideais, como os autnticos instrumentos da
cultura; com o que, no entanto, no se estaria dizendo que os seus
portadores representem eles mesmos a cultura. O contrrio que
seria no apenas provvel no! atualmente palpvel! Os
portadores dos instintos depressores e sedentos de desforra, os
descendentes de toda escravatura europia e no europia, de toda
populao pr-ariana especialmente eles representam o
retrocesso da humanidade! 60. um retrocesso porque a cultura,
em vez de ter como seu produto o indivduo soberano, aquele
que estabelece novos valores, isto , o senhor, o nobre, o ativo, ela
nos apresenta, a partir da sua concepo reativa, o homem
gregrio, dcil, obediente, malogrado, fcil de ser enganado, em
suma, o homem moderno: Pode-se ter completa razo, ao
guardar temor e se manter em guarda contra a besta loura que h
no fundo de toda raa nobre: mas quem no preferiria mil vez
temer, podendo ao mesmo tempo admirar, a no temer, mas no
mais poder se livrar da viso asquerosa dos malogrados, atrofiados,
amargurados, envenenados? 61. A partir disso, podemos
compreender que o sentido da cultura que propagado no
mundo contemporneo , na verdade, o efeito do olhar invertido
do homem do ressentimento, esse mesmo homem que diz que
60 GM, Primeira dissertao, 11.
61 GM, Primeira dissertao, 11.
viver sofrer, que o mal-estar inerente condio
humana, que os homens esto destinados a serem infelizes e
outras palavras de lamentao. inevitvel que a sua nsia
incontrolvel de arrebatar, de uma vez por todas, o mal que
habita o homem, custa de uma represso cada vez maior dos
seus instintos, est diretamente ligada s suas esperanas de
paz, felicidade, bem-estar social. No h dvida que, por
estar dominado pelas foras reativas, o homem do ressentimento
faa apenas uma imagem das foras ativas, como se elas
exprimissem uma m essncia da natureza humana.
CULTURA E PR-HISTRIA
Esse olhar do ressentimento que precisa julgar e reprimir
os instintos do homem, para, finalmente, torn-lo civilizado,
nem sempre constituiu a vida humana em sociedade. Na
Genealogia da moral, Nietzsche nos diz que durante o mais
longo perodo da existncia humana (a pr-histria), o trabalho
do homem em si prprio consistia na tarefa de torn-lo
confivel, forte, responsvel por suas prprias foras reativas e,
por isso, capaz de prometer o futuro. O que Nietzsche
denomina de moralidade do costume, isto , a obedincia aos
costumes, s tradies, s leis primitivas, no se confunde, de
modo algum, com a moral que domestica o homem. Enquanto
o homem civilizado produto da obedincia s leis que
favorecem as suas foras reativas e suas aes pessoais, o homem
pr-histrico obedece s leis que adestram as suas foras reativas,
26
que servem para excluir a individualidade da ao que ameaaria a
sade da comunidade. Adestrar o homem, diz Deleuze, no seu
comentrio sobre Nietzsche, significa form-lo de tal maneira
que ele possa agir as suas foras reativas. A atividade da cultura
exerce-se em princpio sobre as foras reativas, d-lhes hbitos e
impe-lhes modelos, para as tornar aptas a ser agidas 62.
Portanto, o homem responsvel, constante, que dispe do futuro,
resultado do adestramento das suas prprias foras reativas.
Somente a partir disso torna-se possvel, como fruto tardio da
cultura, a gerao do indivduo soberano, isto , o gnio que,
liberado da moralidade do costume, torna-se capaz de criar novos
valores, de estabelecer novas leis, de abrir novos horizontes
existenciais para que uma sociedade possa superar a si mesma:
Mas coloquemo-nos no fim do imenso processo, ali onde a
rvore finalmente sazona seus frutos, onde a sociedade e sua
moralidade do costume finalmente trazem luz aquilo para o qual
eram apenas o meio: encontramos, ento, como o fruto mais
maduro da sua rvore, o indivduo soberano, igual apenas em si
mesmo, novamente liberado da moral do costume... o homem da
vontade prpria, duradoura e independente 63.
Porm, esse adestramento das foras reativas no se
estabelece por meio de um pacto ou de um acordo formal, mas
sim pela produo de uma memria que distinta da memria das
marcas, que Nietzsche denomina de memria da vontade, que
um prosseguir-querendo-o-j-querido 64, de modo que a tarefa
primordial no deixa de ser esquecida. possvel constatarmos
que o homem pr-histrico, por tornar-se confivel e constante,
distingue-se totalmente do homem civilizado, como produto das
62 Gilles Deleuze, Nietzsche e a Filosofia, Captulo IV, p. 200.
63 GM, Segunda dissertao, 2.
64 GM, Segunda dissertao, 1.
sociedades histricas, pois este facilmente levado pelas suas
foras reativas, volvel, inconstante e, por isso mesmo,
incapaz de prometer o futuro.
Nas sociedades pr-histricas, a produo dessa memria
voltada para o futuro inseparvel dos rituais de crueldade:
Como fazer do bicho-homem uma memria? Como gravar
algo indelvel nessa inteligncia voltada para o instante, meio
obtusa, meio leviana, nessa encarnao do esquecimento?...
Esse antiqssimo problema, pode-se imaginar, no foi resolvido
exatamente com meios e respostas suaves; talvez nada exista de
mais terrvel e inquietante na pr-histria do homem do que sua
mnemotcnica 65. O castigo o meio para que o indivduo que
causou um dano sociedade possa pagar a sua dvida, ou seja,
um meio para equivaler a dor ao dano causado (dano que resulta
da sua palavra quebrada, da sua inconstncia, da sua negao do
futuro, da sua individualidade). E ao dizer isso, Nietzsche est
longe de associar a justia com o ressentimento e o castigo com
a produo do sentimento de culpa no indivduo castigado. A
m conscincia, a mais sinistra e mais interessante planta da
nossa vegetao terrestre, diz Nietzsche, no cresceu nesse
terreno de fato, por muitssimo tempo os que julgavam e
puniam no revelaram conscincia de estar lidando com um
culpado. Mas sim um causador de danos, com um
irresponsvel fragmento do destino. E este, sobre o qual,
tambm parte do destino, se abatia o castigo, no experimentava
outra aflio interior que no a trazida pelo surgimento sbito
de algo imprevisto, como um terrvel evento natural, a queda de
um bloco de granito contra o qual no h luta 66. Portanto, o
que os rituais de crueldade no produzem no indivduo
65 GM, Segunda dissertao, 3.
66 GM, Segunda dissertao, 14.
27
castigado o sentimento de culpa e de revolta. E por que isso no
ocorre, j que o nosso mundo civilizado apenas conhece a justia e
o castigo no seu sentido reativo, movido por sentimentos de
prejuzo pessoal e de vingana, prprios do ressentimento? Nos
rituais de crueldade no um Estado ou uma vtima que exerce
o poder de castigar, mas a prpria sociedade que castiga e que,
inclusive, extrai alegria da dor do indivduo castigado (alegria que
se expressa por meio das festas), e este, por meio disso, paga o seu
dano causado sociedade: Pergunta-se mais uma vez: em que
medida pode o sofrimento ser compensao para a dvida? Na
medida em que fazer sofrer era altamente gratificante, na medida
que o prejudicado trocava o dano, e o desprazer pelo dano, por
um extraordinrio contraprazer: causar o sofrer uma verdadeira
festa... 67.
O castigo como meio para adestrar as foras reativas, como
meio para a produo de uma memria no prprio corpo do
indivduo. Com grandes ressonncias com o pensamento
nietzschiano, Pierre Clastres, nos seus estudos etnolgicos, j
testemunhava: De uma tribo a outra, de uma a outra regio,
diferem as tcnicas, os meios, os objetivos explicitamente
afirmados da crueldade; mas a meta sempre a mesma: provocar o
sofrimento 68; Entretanto, depois da iniciao, j esquecido
todo o sofrimento, ainda subsiste algo, um saldo irrevogvel, os
sulcos deixados no corpo pela operao executada pela faca ou a
pedra, as cicatrizes das feridas recebidas. Um homem iniciado
um homem marcado. O objetivo da iniciao, em seu momento
de tortura marcar o corpo: no ritual inicitico, a sociedade
imprime a sua marca no corpo dos jovens. Ora, uma cicatriz, um
sulco, uma marca so sempre indelveis... A marca um obstculo
67 GM, Segunda dissertao, 6.
68 Pierre Clastres, A sociedade contra o Estado, p. 199.
ao esquecimento, o prprio corpo traz impressos em si os sulcos
da lembrana o corpo uma memria. Pois o problema no
perder a memria do segredo confiado pela tribo, a memria
desse saber de que doravante so depositrios os jovens
iniciados. Que sabem agora o jovem caador guayaki, o jovem
guerreiro mandan? A marca proclama com segurana o seu
pertencimento ao grupo: s um dos nossos e no te esquecers
disso 69.
ESTADO E DOMESTICAO DO HOMEM
Se a justia e o castigo das sociedades pr-histricas esto
desprovidos de ressentimento e de m conscincia, nas
sociedades histricas, ou seja, sociedades com Estado, eles
aparecem indissociveis desses sentimentos reativos. Acredita-se,
por exemplo, que o castigo teria a finalidade de produzir no
indivduo o sentimento de culpa. Presos a esse senso comum, os
genealogistas da moral modernos, diz Nietzsche, apenas
descobrem no castigo uma finalidade qualquer, por exemplo
a vingana, ou a intimidao, colocam despreocupadamente essa
69 Pierre Clastres, A sociedade contra o Estado, p. 201. Clastres diz: Posso
reconhecer e afirmar claramente a influncia de Nietzsche, sobretudo da
Genealogia da moral. Porque, se no tivesse refletido um pouco sobre a
Genealogia da moral, eu teria tido mais dificuldade de escrever algo como
Da tortura nas sociedades primitivas. Isso certo... A gente percebe
que algum como Nietzsche, que provavelmente desconhecia e era
indiferente (com razo) etnologia de sua poca, via com clareza
infinitamente maior que todos em sua poca a questo da memria, da
marca... (p. 265).
28
finalidade no comeo, como causa fiendi [causa da origem] do
castigo, e tudo 70. Por meio dessa crena, imagina-se que o
medo do castigo serve para garantir a ordem social, para que os
bons no se tornem maus, para que os seus instintos
continuem a ser reprimidos e, tambm, para que os maus, ao
serem castigados, tornem-se finalmente bons.
As instituies que exercem o poder do Estado tentam,
atravs de mtodos muito variados, disciplinar os homens, corrigilos, tornando-os domesticados, submetidos s leis morais. O que
se v, por toda parte, a proliferao de juzes da vida, de
vigilantes paranicos que tambm no deixam de ser vigiados e
castigados quando demonstram incompetncia nas tarefas que
servem para a manuteno da ordem. Terrvel unio das
instituies com os que as servem... J no h mais senhores,
apenas escravos que exercem o poder sobre outros escravos.
Desejo crescente por escravido, conservao e propagao dos
homens fracos atravs da violncia exercida pelos poderes a servio
do Estado. Tudo se passa, ento, entre as foras reativas. As foras
ativas so adestradas, os fracos so selecionados: eis uma triste
imagem da cultura. Utilizam-se processos de adestramento, diz
Deleuze, mas para fazer do homem o animal gregrio, a criatura
dcil e domesticada. Utilizam-se processos de seleo para
destruir os fortes, para selecionar os fracos, os sofredores ou os
escravos. A seleo e a hierarquia so postos do avesso. A seleo
torna-se o contrrio daquilo que era sob o ponto de vista da
atividade; no mais do que um meio de conservar, de organizar,
de propagar a vida reativa 71.
Como resultado desse processo contnuo de reproduo da
m conscincia, surge o homem privatizado, que vive angustiado,
70 GM, Segunda dissertao, 12.
71 Gilles Deleuze, Nietzsche e a Filosofia, Captulo IV, p. 208.
que se esfora para ser cada vez mais diligente. Como ele no
conhece outro sentido da vida que no seja o da obedincia
moral, se esfora para entregar-se com maior nimo s aes
consideradas boas, mesmo que ele continue a se sentir
esmagado por pratic-las. Certamente ele reclama da instituio,
chega a expor as imperfeies dela, mas tambm se esfora para
melhor-la, para torn-la perene, porque imagina que sem ela
no seria possvel sobreviver. Como as instituies favorecem a
sua conservao, o homem reativo faz as coisas que ele at
poderia se arrepender, caso no fossem aprovadas pelo poder, o
que gera um sentimento de alvio por executar o seu trabalho
com competncia, por ter a conscincia da sua importncia para
a conservao do bem-estar social. E os entorpecentes,
claro, no deixam de ser oferecidos a essa ovelha cansada, pois
uma ovelha que adoece sempre uma ameaa ao rebanho: O
que ser que deu errado para que isso pudesse acontecer?,
pergunta o rebanho.
A filosofia, inclusive, quando est submetida ao Estado,
perde sua fora subversiva. Os filsofos do Estado esto, de fato,
impedidos de pensar, porque esto entupidos de obrigaes e
tarefas que servem para a manuteno do poder estatal. Os
filsofos submetidos ao Estado, ou melhor, os historiadores da
filosofia, reforam os valores vigentes e, por isso, so inofensivos
sociedade reativa. Diz Nietzsche: Ocorre de fato que em
geral o Estado tem medo da filosofia, ento, neste caso, ele
buscar, cada vez mais, atrair para si o maior nmero de
filsofos que puder, o que lhe confere a iluso de ter a filosofia
ao seu lado e assim ele tem a seu lado estes homens que se
valem dela, mas no inspiram nenhum medo... Em primeiro
lugar, o Estado escolhe para si seus servidores filsofos e, para
dizer a verdade, os escolhe na medida em que tem necessidade
29
deles para as suas instituies... Em segundo lugar, ele obriga
aqueles que escolhe a permanecer num lugar determinado, entre
homens determinados, a a exercerem uma atividade determinada;
eles tm de instruir, todos os dias, em horrios fixos, todos os
jovens acadmicos que manifestem desejo de instruo 72.
Controlado, vigiado, avaliado, seja o filsofo, o erudito, ou um
especialista qualquer, o funcionrio do Estado passa a exercer o
papel de carrasco dos indivduos saudveis e conta com a
suprema autorizao do poder para afastar qualquer
responsabilidade por seus atos insanos. Portanto, a moral judaicocrist permanece, mas agora de uma maneira ainda mais violenta.
72 SE, 8.
30
Quais mostrar-se-o os mais fortes? Os mais moderados, aqueles
que no tm necessidade de princpios de crena extremos,
aqueles que no s reconhecem um boa parte de acaso, de
absurdo, mas antes a amam, aqueles que podem pensar o homem
com uma significativa moderao do seu valor, sem por isso se
apequenarem e se debilitarem: os mais ricos em sade, que esto
altura da maioria das infelicidades e por isso no se assustam tanto
diante das infelicidades homens que esto seguros de seu poder
[potncia] e que representam com orgulho consciente a fora
alcanada pelo homem.
Como um tal homem pensaria o eterno retorno?
73 VP, 55.
73
NIILISMO E ETERNO RETORNO
O niilismo inseparvel da vontade de negar a realidade,
que sempre, na verdade, uma vontade do nada. Mas a vontade
do nada nos aparece sob invlucros diversos. Sabemos que a
abertura da vida o seu ineditismo pode fazer do homem um
ousado arteso, mas tambm pode faz-lo um fugitivo da vida.
E antes mesmo que esse fugitivo se afogue no imenso mar do
nada, isto , no sem sentido da existncia, o ideal asctico serve
como invlucro muito atraente para a sua vontade do nada.
Mas no se diz nada, afirma Nietzsche, diz-se alm; ou
Deus; ou a verdadeira vida; ou nirvana, salvao, bemaventurana... Esta inocente retrica do mbito da idiossincrasia
moral-religiosa parece muito menos inocente quando se nota
qual a tendncia que a veste o manto das palavras sublimes: a
tendncia hostil vida 74.
74 AC, 7.
31
Nietzsche distingue trs estados psicolgicos do niilismo 75,
que esto diretamente relacionados aos valores divinos, aos valores
humanos e ausncia de valores: O niilismo como estado
psicolgico ter de se declarar primeiro quando procurarmos em
todo acontecimento um sentido que no h a: assim, quem
procura perde finalmente o nimo... Aquele sentido poderia ter
existido: a completeza de um supremo cnon moral em cada
acontecer, a ordenao moral do mundo; ou o incremento do
amor e da harmonia na interao dos entes; ou a aproximao de
um estado de felicidade universal 76. O ideal asctico desse
primeiro estado psicolgico do niilismo refere-se aos valores
divinos, valores da moral judaico-crist, valores estabelecidos pelo
poder sacerdotal. Ora, para aquele que nega a vida, a existncia
somente continua a apresentar algum sentido enquanto o seu
olhar se dirige para longe, para o alto, para o alm, para a
felicidade universal que ser alcanada no outro mundo.
Portanto, a ordenao moral-divina do mundo oferece um sentido
para a vida dos enfermos: Mas apesar de tudo o homem estava
salvo, ele possua um sentido, a partir de ento no era mais uma
folha ao vento, um brinquedo do absurdo, do sem-sentido, ele
podia querer algo no importando no momento para que
direo, com que fim, com que meio ele queria: a vontade mesma
estava salva. No se pode em absoluto esconder o que expressa
realmente todo esse querer que do ideal asctico recebe sua
orientao: esse dio ao que humano, mais ainda ao que
animal, mais ainda ao que matria, esse horror aos sentidos,
razo mesma, o medo da felicidade e da beleza, o anseio de
75 Gilles Deleuze, em Nietzsche e a Filosofia, no captulo V, denomina esses
estados psicolgicos como niilismo negativo, niilismo reativo e niilismo
passivo.
76 VP, 12.
afastar-se do que seja aparncia, mudana, morte, devir, desejo,
anseio tudo isto significa, ousemos compreend-lo, uma
vontade de nada, uma averso vida, uma revolta contra os mais
fundamentais pressupostos da vida, mas e continua sendo uma
vontade!... 77.
Por meio do ideal asctico, o corpo, as sensaes, as
paixes, a mudana, o desejo, passam a ser demonstraes da
imperfeio do mundo, da sua natureza catica, e que, por isso,
precisam ser desprezados para que uma outra realidade seja
afirmada.
Assim,
todo
acontecimento
submete-se,
imaginariamente, a uma ordenao moral, que estabelece
finalidades a partir de uma suposta vontade divina, a qual seria
explicada por meio de uma arbitrria organizao dos signos,
servindo para interpretar os acontecimentos e justificar a
formao de rebanhos. A inveno da ordem divina do mundo
atende, como evidente, aos interesses dos que governam a vida
dos que sofrem. Desse modo, o nascimento, a morte, as
doenas, os terremotos, etc., passam a ser efeitos da vontade de
Deus, de um criador que castiga e recompensa os homens. A
realidade, que apareceria com total ausncia de sentido, torna-se
finalmente compreensvel a partir da lgica sacerdotal. As
origens do universo, da Terra, dos animais e, finalmente, dos
humanos, surgem como resultados do poder absoluto de Deus.
Sem dvida, so explicaes plausveis e durveis porque
ainda oferecem esperanas. Mas quem que aplaude? Quem
que precisa acreditar nessas fices? Os moribundos...
Ao contrrio dos deuses antigos, como, por exemplo, os
deuses gregos, o Deus judaico-cristo, como Deus todopoderoso, onisciente e vingativo, diminuiu a vida humana. Essa
77 GM, Terceira dissertao, 28.
32
distino importante, pois, segundo Nietzsche, existem
maneiras mais nobres de se utilizar a inveno de deuses, que no
seja para essa violao e autocrucifixio do homem, na qual os
ltimos milnios europeus demonstraram sua mestria isto se
pode felizmente concluir, a todo olhar lanado aos deuses gregos,
esses reflexos de homens nobres e senhores de si, nos quais o
animal no homem se sentia divinizado e no se dilacerava, no se
enraivecia consigo mesmo! Por muito e muito tempo, esses
gregos se utilizaram dos seus deuses precisamente para manter
afastada a m conscincia, para poder continuar gozando a
liberdade da alma: uso contrrio, portanto, ao que o cristianismo
fez do seu Deus 78. Podemos dizer que isto, de fato, loucura:
os oprimidos iniciam a sua jornada rumo ao absurdo, partindo da
realidade das sensaes corpreas que experimentam a todo
instante, julgando-as como apenas efeitos de um mundo falso,
para acreditarem na existncia de um mundo verdadeiro,
porm, impossvel de ser demonstrado e experimentado: As
razes que fizeram este mundo ser designado como aparente
justificam, isto sim, a sua realidade uma outra espcie de
realidade absolutamente indemonstrvel 79.
A MORTE DE DEUS
Mas os valores divinos tambm caducam e, ento, so
substitudos por outros valores. O segundo estado psicolgico do
78 GM, Segunda dissertao, 23.
79 CI, A razo na filosofia, 6.
niilismo ocorre por meio de uma reao aos valores divinos: O
niilismo como estado psicolgico declara-se, em segundo lugar,
quando se postulou uma totalidade, uma sistematizao, uma
organizao em todo acontecimento e sob todo acontecimento:
de modo que a alma sequiosa de admirao e de venerao
sacie-se na representao de conjunto de uma suprema forma de
governo e de domnio 80. A reao dos homens do
ressentimento ao Deus cristo no eliminou a organizao moral
do mundo, pelo contrrio, permitiu a sua continuao de
maneira dissociada da teologia. A vontade do reino universal,
como ideal que alimentaria as esperanas dos enfermos por
salvao, adquire novo invlucro, tornando-se humana,
demasiado humana, por ser conduzida pela razo. A
organizao moral-humana do mundo, promovida pela contnua
vontade de igualdade do homem reativo, desemboca na
Revoluo Francesa, nos direitos universais do homem, na
democracia, no patriotismo, no progresso, na ascenso social, na
luta pela paz. So valores modernos que, reunidos, expressam
uma nica crena: a felicidade universal como possibilidade de
ser alcanada neste mundo atravs da razo. Mesmo
desprezando os valores divinos, a moral judaico-crist, segundo
Nietzsche, conquistou com a Revoluo Francesa mais uma
vitria sobre o ideal clssico: a ltima nobreza poltica que havia
na Europa, a da Frana dos sculos XVII e XVIII, pereceu sob
os instintos populares do ressentimento nunca se ouviu na
terra jbilo maior, nem entusiasmo mais estridente! 81. Eis o
grito de alegria dos escravos, que se vem com suas esperanas
renovadas de alcanar a felicidade. O mesmo homem do
ressentimento que inventou Deus percebe que no precisa mais
80 VP, 12.
81 GM, Primeira dissertao, 16.
33
dele para se realizar. Diante dos homens que se orgulham do
seu atesmo, diz Nietzsche, atravs da boca do homem louco
(que, ao entrar no mercado, diz procurar por Deus...): Que
fizemos ns, ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move ela
agora? Para onde nos movemos ns?... No ouvimos o barulho
dos coveiros a enterrar Deus? No sentimos o cheiro da
putrefao divina? tambm os deuses apodrecem! Deus est
morto! Deus continua morto! E ns o matamos! E como nos
consolar, a ns, assassinos entre os assassinos? O mais forte e mais
sagrado do que o mundo at ento possura sangrou inteiro sob
os nossos punhais quem nos limpar este sangue?... Nunca
houve um ato maior e quem vier depois de ns pertencer, por
causa desse ato, a uma histria mais elevada que toda a histria at
ento! 82.
Mas o sentido desse ato grandioso, a morte de Deus, ainda
no foi compreendido pelos homens modernos. O mesmo
homem louco, ao perceber que o seu discurso no mercado foi
incompreendido, diz para as pessoas que ele mesmo veio cedo
demais, j que a morte de Deus ainda no chegou aos ouvidos
delas. Portanto, as sombras de Deus ainda permanecem, mesmo
num mundo que se orgulha por no precisar mais das explicaes
divinas. E por que esse grande acontecimento ainda no foi
compreendido? Porque o mesmo homem reativo que continua a
reproduzir os valores que expressam a sua vontade de negar a
realidade, ou seja, o lugar do juzo que era ocupado por Deus foi
conservado (o ideal asctico permanece), mas agora est ocupado
pelo homem reativo. fundamental compreendermos que esse
processo apenas um prolongamento do niilismo, pois a vontade
do nada aparece agora sob o invlucro da razo. O niilismo,
portanto, est longe de ser vencido. A crena na suposta
neutralidade da razo humana torna a moral dos fracos,
segundo Nietzsche, ainda mais imperativa (a soberania do
instinto de rebanho): Depois que se desaprendeu de acreditar
nesta [a autoridade divina], procura-se, segundo o velho hbito,
uma outra autoridade que saiba falar incondicionalmente , que
possa ordenar fins e tarefas. A autoridade da conscincia aparece
agora em primeira linha (quanto mais emancipada da teologia,
tanto mais imperativa se torna a moral) como uma compensao
pelo dano sofrido por uma autoridade pessoal. Ou a autoridade
da razo. Ou o instinto social (o rebanho) 83. Como o velho
hbito persiste, a crena na razo como tentativa de controlar a
natureza, de impedir que as foras caticas possam perturbar a
vida dos ressentidos, torna-se mais um artigo de f. O homem
reativo, submetido sua conscincia, faz clculos, medidas,
previses, que so tentativas para impedir que o resultado do
lance de dados lhe seja desfavorvel. A psicologia, a sociologia, a
antropologia, a biologia, a fsica, entre outras cincias, passam a
ter funes de controle e de poder sobre a vida (o biopoder). A
cincia passa a servir as necessidades de conservao do homem
reativo, a servir os interesses de represso das foras ativas dos
indivduos. Conduzida pelos investigadores das entranhas do
impercrustvel, a cincia continua longe de libertar-se de
noes imaginrias como causa e efeito, incio e concluso
noes que denunciam a necessidade do homem reativo de
ignorar a realidade das coisas como fluxo contnuo e por isso
esse tipo de cincia se limita apenas a descrever as coisas, sem
poder, de fato, explic-las: Operamos somente com coisas que
no existem, com linhas, superfcies, corpos, tomos, tempos
82 GC, 125.
83 VP, 20.
34
divisveis, espaos divisveis como pode ser possvel a explicao,
se primeiro tornamos tudo imagem, nossa imagem! Causa e
efeito: essa dualidade no existiu provavelmente jamais na
verdade, temos diante de ns um continuum, do qual isolamos
algumas partes; assim como percebemos um movimento apenas
como pontos isolados, isto , no o vemos propriamente, mas o
inferimos... Um intelecto que visse causa e efeito como
continuum, e no, nossa maneira, como arbitrrio esfacelamento
e diviso, que enxergasse o fluxo do acontecer rejeitaria a noo
de causa e efeito e negaria qualquer condicionalidade 84. Surgem
o sujeito do conhecimento, isolado das relaes com o mundo, e
o objeto inerte, desprovido de vida, de desejo, de qualidade,
tambm isolado pelo olhar do cientista e submetido autoridade
da razo humana. E, desse modo, continua a ser ignorado o que,
de fato, existe na relao entre o cientista e o seu objeto: aquilo
que amaldioado, que faz as pernas dos enfermos tremerem por
ser impossvel de prever: o devir... A velha vontade de verdade,
que continua a animar a cincia reativa, precisa expulsar do
acontecimento o devir por isso essa cincia est destinada apenas
a descrever a natureza. Ora, tudo isso sintoma de que o mesmo
elemento prfido que criou Deus (o homem do ressentimento),
continua a ser dominante nos nossos dias, mas agora sob o traje
da autoridade cientfica, pois, afinal, tudo que cientfico
transforma-se em verdades inquestionveis. A cincia moderna e
o ideal asctico, portanto, caminham juntos, lado a lado.
Tambm do ponto de vista fisiolgico a cincia pisa no mesmo
cho que o ideal asctico, denuncia Nietzsche, um certo
empobrecimento da vida o pressuposto, em um caso como no
outro as emoes tornadas frias, o ritmo tornado lento, a
dialtica no lugar do instinto, seriedade impressa nos rostos e
gestos... Esta cincia moderna abram os olhos! no
momento a melhor aliada do ideal asctico, precisamente por ser
a mais involuntria, inconsciente, secreta, subterrnea! 85.
84 GC, 112.
85 GM, Terceira dissertao, 25.
A AUSNCIA DE VALORES
O ltimo homem o que tem vida mais longa, j dizia
Nietzsche. Este mesmo homem, o inventor da felicidade, passa a
sentir um cansao cada vez maior. Os velhos valores humanos
pesam cada vez mais para ele. O seus deveres, as suas finalidades,
as razes do seu trabalho perdem, gradualmente, o sentido que
tinham. A crise dos valores vigentes j no pode mais ser
escondida, disfarada, adiada. Afinal, desejar para qu? Viver
para qu? assim comea a se questionar o homem moderno. Se
os valores divinos caducam, os valores humanos tambm tero
um fim. Um espectro ronda a civilizao o espectro da
depresso. Decomposio dos modos de vida reativos. Eis o
terceiro estado psicolgico do niilismo: O niilismo como
estado psicolgico tem ainda uma terceira e ltima forma... No
fundo, o que aconteceu? O sentimento de desvalorao foi
alcanado quando se compreendeu que o carter total da
existncia no pode ser interpretado nem com o conceito de
fim, nem com o de unidade, nem com o de verdade. Com
isso no se chega a nada e no se obtm coisa alguma: falta a
unidade que tudo abarca na multiplicidade do acontecer: o
35
carter da existncia no verdadeiro, falso... no se tem, pura
e simplesmente, nenhuma razo mais para iludir-se com um
mundo verdadeiro... Em resumo: extirpamos de ns as categorias
fim, unidade, ser, com as quais incutimos um valor no
mundo e ento o mundo aparece como sem valor... 86.
A realidade torna-se cada vez mais insuportvel para o
niilista. A vida mesma passa a se confundir com o sentimento de
um grande em vo assustador. Nesse sentido, Schopenhauer
um filsofo interessante para compreendermos melhor esse
pessimismo total que constitui o niilismo passivo. Ele, ao imaginar
que a destruio da vontade a nica sada que resta para o
sofrimento humano, ainda preservou um fim ou uma
concluso para a vontade, mesmo que esse fim seja o nada.
Daqui para frente, resta diante de ns apenas o nada, conclui
Schopenhauer; Mas desviemos o nosso olhar da nossa prpria
indigncia e do horizonte fechado que nos encerra; consideremos
aqueles que se elevaram acima do mundo e em quem a vontade,
chegada mais alta conscincia de si mesma, se reconheceu em
tudo que existe, para se negar, em seguida, a si mesma livremente:
agora j s esperam uma coisa, ver a ltima marca dessa vontade
aniquilar-se com o prprio corpo que ela anima; ento, em vez da
impulso e da evoluo sem fim, em vez da passagem eterna do
desejo ao receio, da alegria dor, em vez da esperana nunca
farta, nunca extinta... ns percebemos essa paz mais preciosa que
todos os bens da razo, esse oceano de quietude, esse repouso
profundo da alma... J s existe o conhecimento, a vontade
dissipou-se. Sentimos uma profunda e dolorosa melancolia
quando comparamos este estado ao nosso, visto que esta
comparao evidencia o que existe de miservel e desesperado na
86 VP, 12.
nossa condio. No entanto, esta contemplao a nica coisa
que nos pode consolar de uma maneira durvel, uma vez que
reconhecemos que o fenmeno da Vontade, o universo,
apenas dor irremedivel em misria infinita, e que, por outro
lado, vemos o mundo dissipar-se com a vontade, s o nada
subsistir diante de ns 87. evidente que nessas tristes palavras
ainda existe um querer, mas um querer destruir aquilo que
quer, que a soluo encontrada por Schopenhauer para
alcanar um nada de vontade. possvel percebermos que no
h nenhum esforo de Schopenhauer para salvar a vontade.
Mas a soluo apresentada por ele mostra-nos o que move,
essencialmente, a vontade do nada: a sua autodestruio.
Sabemos que a vontade do nada tem os seus disfarces (valores
divinos e valores humanos). Pois bem, Schopenhauer ousou
despir a vontade do nada. E se ele nos mostrou o caminho da
destruio, importante compreendermos que ainda se trata de
uma autodestruio passiva, em que a destruio aparece como
finalidade e no como meio para que a vontade de potncia
possa crescer e expandir-se 88.
Schopenhauer manteve-se fiel ao seu niilismo, desejou
seguir adiante no seu caminho para o nada. No escondeu a
amargura que sentia pela vida, filosofou com a honestidade de
87 Arthur Schopenhauer, O mundo como vontade e representao, p. 430.
88 Para Nietzsche, essa autodestruio passiva est diretamente relacionada
ao ltimo homem, conforme AFZ, O prlogo de Zaratustra, 5: Ai de
ns!, diz Zaratustra, Aproxima-se o tempo em que o homem no mais
arremessar a flecha do seu anseio para alm do homem e que a corda do
seu arco ter desaprendido a vibrar!... Ai de ns! Aproxima-se o tempo do
mais desprezvel dos homens, que nem sequer saber mais desprezar-se a
si mesmo.
36
um pessimista. Era um budista, em suma 89. No conseguiu se
livrar de uma imagem da vontade, algo semelhante ao mito de
Ssifo: um trabalho interminvel e doloroso, pois a cada objetivo
alcanado, surge novamente um longo percurso de sofrimento e
de falta. Mas essa imagem da vontade no a vontade de potncia
afirmativa que nos diz Nietzsche. O problema tico, ento, deve
ser colocado da seguinte forma: como a destruio realizada,
isto , se uma destruio passiva ou ativa. A destruio passiva
efetuada pela dissoluo dos valores humanos que faz a
humanidade desembocar num mundo sem valores, onde a
existncia no passa de um imenso vazio, onde tudo uma grande
iluso, restando ao homem afundar-se no mar do nada: Sintomas
dessa autodestruio dos malsucedidos: a autovivisseco, a
intoxicao, a embriaguez, o romantismo e, antes de tudo, a
coao instintiva para aes com as quais se transformam em
mortais os poderosos inimigos ( assim como se punisse o seu
prprio carrasco), a vontade de destruio como vontade de um
instinto ainda mais profundo, do instinto de autodestruio, da
vontade de nada 90. Como os niilistas, segundo Nietzsche,
destroem para serem destrudos, no existe, portanto, maior
perigo do que este para o futuro do homem. Incapaz de ir alm
de si mesmo, resta ao homem autodestruir-se passivamente. Sua
89 Segundo Nietzsche, embora tambm seja uma religio niilista, o budismo
mil vezes mais realista do que o cristianismo, conforme AC, 20: Com
minha condenao do cristianismo no quero ser injusto com uma religio a
ela aparentada, que pelo nmero de seguidores at o supera: o budismo. As
duas so prximas por serem religies do niilismo religies de dcadence
, as duas se diferenciam de modo bastante notvel. Livrar-se dos afetos
nocivos de dio e de vingana e respeitar as outras doutrinas religiosas, por
exemplo, fazem do budismo uma espcie de higiene, conforme EC, Por
que sou to sbio, 6.
90 VP, 55.
vontade do nada torna-se explcita com a destruio cada vez
maior que ele causa no mundo em que vive. Com efeito, sua
autodestruio continua a ser passiva porque, incapaz de poder
desprezar a si mesmo, passa a ter um desejo crescente de que sua
destruio venha do exterior, de um mundo destrudo por ele.
Se o mundo est destrudo, que perea o homem!, grita o
niilista...
A DESTRUIO ATIVA
A vida no tem sentido: tal afirmao verdadeira
demais, dura demais para que essa humanidade possa suportar.
Mas esse sem sentido da existncia justamente a abertura
que o homem ativo encontra para efetuar a sua fora de
derrubar valores e, enfim, poder criar outros valores. Isso quer
dizer o seguinte: se o sentido no est dado, ele pode, portanto,
ser criado. Ora, para Nietzsche no existe criao sem a
efetuao de uma destruio ativa. O niilismo extremo, no seu
estado psicolgico passivo, apenas pode ser ultrapassado por
meio de uma outra posio extrema, isto , por meio de uma
transmutao da vontade de negar para a vontade que afirma a
vida. A destruio ativa caracteriza-se por uma negao ativa que
precede a afirmao da vida, ou seja, negado tudo aquilo que,
antes, conservava a negao da vida. O niilismo ativo ,
portanto, a supresso do niilismo por ele mesmo, por meio do
qual o super-homem passa, ento, a exprimir a superao da
forma homem, atravs da retomada do devir, da afirmao do
37
corpo, da terra, do estabelecimento de novos valores, da redeno
de todo o passado. O niilismo ativo surge como transmutao da
vontade do nada que tornou-se impossvel de ser disfarada.
Deus, moral, dedicao, diz Nietzsche, eram remdios para
nveis terrivelmente profundos de misria: o niilismo ativo aparece
em circunstncias muito mais favoravelmente conformadas 91.
Trata-se de uma autodestruio ativa porque o que o niilista ativo
destri em si mesmo o domnio da sua vontade do nada e das
foras reativas. O combate travado, desse modo, contra as suas
prprias foras de conservao. A dureza imposta s foras reativas
efetuada quando o niilista ativo compreende que no existe
nenhuma necessidade de ser piedoso consigo mesmo. Amante do
conhecimento, ele no separa o conhecimento da vida, da
necessidade de passar por metamorfoses. Por isso Nietzsche diz
que cada aquisio do conhecimento conseqncia da
coragem, da dureza contra si, da limpeza em relao a si mesmo...
Uma filosofia experimental assim, tal como a vivo, toma de
antemo como ensaio mesmo as possibilidades do niilismo
fundamental: sem que com isso fosse dito que ela estacionasse em
uma negao, em um no, em uma vontade de no. Ela quer,
antes, atravessar at o inverso at um dizer sim dionisaco ao
mundo tal como ele , sem subtraes, excees e selees ela
quer o eterno circuito as mesmas coisas, a mesma lgica e nolgica dos ns. O estado supremo que um filsofo pode alcanar:
permanecer dionisaco em relao existncia : minha frmula
para tanto amor fati... 92.
No discurso Das trs metamorfoses 93, Nietzsche nos diz
sobre o esprito que se metamorfoseia em camelo e que, ao
91 VP, 55.
92 VP, 1041.
93 AFZ, Das trs metamorfoses.
caminhar pelo deserto, suporta as cargas mais pesadas. O camelo
carrega os valores morais, divinos e humanos, que constituem os
dois primeiros estados psicolgicos do niilismo. Mas o camelo
prossegue no caminho para o seu prprio deserto: podemos
dizer que esse momento constitui o niilismo passivo, com uma
constatao de que intil continuar carregando valores. A
realidade aparece como um imenso e terrvel deserto o mais
ermo dos desertos. Nele, o camelo metamorfoseia-se em leo.
H, ento, a inverso da negao que constitui o niilismo nos
seus trs estados anteriores para a negao ativa que opera a
segunda metamorfose do esprito, pois mesmo no deserto ainda
existe uma vontade: derradeiro momento da longa histria de
um erro. Trata-se da transmutao do ltimo homem para o
homem que quer morrer. E o que este homem quer que morra
nele? A sua negao da vida. o momento do No destruidor
do leo. O que torna real essa transmutao a fora que o
No do leo possui para negar o no nascido do
ressentimento. Ora, o homem reativo parte do no ao devir
para, desse modo, poder dizer sim aos valores estabelecidos,
sim homogeneizao, sim ao ser, tal como o I-A do
burro, em Assim falou Zaratustra. Por isso so necessrias duas
negaes para existir uma revoluo movida pelo homem
reativo: a primeira, consiste na negao da vida; a segunda,
consiste na negao dos valores estabelecidos, tal como a
negao dos valores divinos que so substitudos pelos valores
humanos. Mas os valores que substituem os antigos continuam a
ter o mesmo elemento gerador de valores, que a vontade de
negar que constitui a vida dos enfermos e moribundos.
inevitvel que a revoluo realizada atravs do homem reativo
seja, sempre, malograda, porque simplesmente no se trata de
uma transvalorao de todos os valores , que apenas torna-se
38
possvel por meio do Sim realidade. Nesse sentido, o artista
trgico , de fato, revolucionrio, pois ele no cr em finalidades
ou no ideal asctico. Para ele, a finalidade da msica, da pintura,
do cinema, do teatro algo absolutamente estranho. Atravs da
produo da sua obra, o artista trgico experimenta uma
intensificao da vontade de potncia, ligando-se (e no
desligando-se) ao eterno. Ele faz da aparncia do mundo a fonte
para as suas criaes: Pois a aparncia significa, nesse caso,
novamente a realidade, mas numa seleo, correo, reforo... O
artista trgico no um pessimista ele diz justamente Sim a tudo
questionvel e mesmo terrvel, ele dionisaco... 94.
O ETERNO RETORNO COMO SELEO DOS FORTES
Atravs do No de um animal rapinante, surge a criana
e o seu sagrado dizer Sim. Ela simboliza o elemento afirmativo
que cria novos valores: Criar novos valores isso tambm o leo
ainda no pode fazer; mas criar para si a liberdade de novas
criaes isso a pujana do leo pode fazer... Sim, meus irmos,
para o jogo da criao preciso dizer um sagrado sim: o esprito,
agora, quer a sua vontade, aquele que est perdido para o mundo
conquista o seu mundo 95. Isso significa que a superao do
homem ocorre a partir do prprio homem niilista e no de outra
coisa exterior a ele. Para o niilista passivo, o sem sentido da
existncia ainda um estado de sofrimento, de resignao, de
94 CI, A razo na filosofia, 6.
95 AFZ, Das trs metamorfoses.
brandura. No h mais culpados, ele apenas diz sofro... Mas
quando ele experimenta, por meio do sem sentido, a emoo
necessria que o leva a criar novos valores (o seu Eu quero!),
opera a transmutao do niilismo. Por isso que, mais que tudo,
importante pensarmos sobre a abertura que o sem sentido
da existncia nos oferece: Pensemos esse pensamento em sua
forma mais terrvel: a existncia, tal como , sem fim nem
objetivo, mas inevitavelmente retornando, sem um finale no
nada: o eterno retorno. Essa a forma mais extrema do
niilismo: o nada (o sem sentido) eterno! 96. O eterno retorno
aparece, ento, como o pensamento seletivo, que somente
retorna para quem compreende que o eterno retorno do sem
sentido a abertura para a criao de sentido, expulsando desse
indivduo qualquer tentativa de atribuir alguma finalidade vida.
Este pensamento torna-o parte ativa da produo do real.
Atingidos por um pensamento que , segundo Nietzsche,
a mais elevada forma de afirmao que se pode em absoluto
alcanar 97, podemos dizer para ns mesmos: Que presente
maravilhoso que a vida nos deu: ela no tem sentido! Pois se ela
tivesse um, no haveria nada para se criar no mundo. Estar vivo,
a sim, seria um terrvel fardo. Pois bem: tratamos de ser
honestos com ela! Mos obra!. O sentido da morte de Deus
, finalmente, compreendido por ns: a vida tal como ,
retornando sem finalidade alguma, mas como criao contnua
de maneiras de viver que a intensificam. A vida experimentada
por ns como vontade de potncia que retorna, eternamente,
alm de si mesma, isto , diferente de si mesma... E tambm
podemos dizer que sim, a vida tem um sentido eterno!,
quando compreendemos que o nico sentido que eterno o
96 VP, 55.
97 EC, sobre Assim falou Zaratustra, 1.
39
do sem sentido (se h um mesmo que retorna, sempre o do
sem sentido).
A perene ampulheta do existir ser sempre virada
novamente e voc com ela, partcula de poeira!, diz Nietzsche;
Se esse pensamento tomasse conta de voc, tal como voc , ele
o transformaria e o esmagaria talvez; a questo em tudo e em cada
coisa, Voc quer isso mais uma vez e por incontveis vezes?,
pesaria sobre os seus atos como o maior dos pesos! esse
pensamento, sem dvida, pode ser terrvel para os moribundos, a
ponto de esmag-los, mas recebido como um presente e
motivo de orgulho para o esprito destruidor e criador: Ou o
quanto voc teria de estar bem consigo mesmo e com a vida, para
no desejar nada alm dessa ltima, eterna confirmao e
chancela? 98. Este momento de niilismo, que retorna
eternamente, enquanto vivido como o maior dos pesos, faz os
fracos, inevitavelmente, sucumbirem diante dele. por isso que
possvel afirmar que o eterno retorno seleciona os verdadeiros
senhores, que so os que podem dominar. evidente que no se
trata de um domnio pela representao, mas sim pela ordem
hierrquica das foras, que uma ordem absolutamente distinta
da ordem moral. No mais o mesmo homem ressentido,
culpado e malogrado que retorna, mas sim os saudveis. Por isso o
eterno retorno purifica. A mais insalubre espcie de homem na
Europa, afirma Nietzsche, sentir a crena no eterno retorno
como uma maldio e, uma vez que seja atingida por ela, no
recuar mais diante de nenhuma ao... O valor de uma tal crise
o fato de que ela purifica, fora a concentrao de elementos
aparentados e faz com que se arrunem mutuamente; o fato de
que atribua tarefas comuns a homens que tm modos de pensar
opostos trazendo luz, tambm entre eles, os mais dbeis, os
mais inseguros, dando assim o primeiro impulso a uma
reordenao das foras do ponto de vista da sade:
reconhecendo comandantes como comandantes, subordinados
como subordinados. Naturalmente, fora de todas as ordenaes
sociais existentes 99.
Em Nietzsche, a casta superior, a aristocracia, os
nobres, os senhores, so os corajosos, os guerreiros, os
ativos, os sadios, os que amam a vida, os que desprezam o ideal
asctico. E a vida tambm ama os guerreiros, por isso ela os
elege como os verdadeiros comandantes. Sobre a natureza
seletiva do eterno retorno, Klossowski diz: De certa forma, no
se trata de um Senhor que exerceria sua condio como se fosse
uma funo assim tambm como no se trata de criar 'novos'
escravos para este senhor. O Senhor e o escravo so estados que
resultam, respectivamente, de uma prova. E essa prova continua
sendo a adeso ao signo do Crculo Vicioso, ou a sua rejeio.
Portanto, o signo do Crculo Vicioso do Eterno Retorno
continua sendo o limite e a mola dos projetos ditos de
adestramento e seleo 100. No h dvida de que o eterno
retorno envolve uma dimenso poltica que radicalmente
diferente da que sustenta a soberania reativa. Atravs do eterno
retorno, a soberania reativa, por ser baseada na negao da vida,
ser inevitavelmente destruda. Pois quando a verdade sair em
luta contra a mentira de milnios, prev Nietzsche, teremos
comoes, um espasmo de terremotos, um deslocamento de
montes e vales como jamais foi sonhado. A noo de poltica
estar ento completamente dissolvida em uma guerra dos
espritos, todas as formaes de poder da velha sociedade tero
98 GC, 341.
99 VP, 55.
100 Pierre Klossowski, Nietzsche e o crculo vicioso, p. 148.
40
Como o mundo vontade de potncia, sem origem e
finalidade, o sentido e o valor criados por uma vida singular
permitem que ela se conecte ao absoluto, ao eterno retorno da
vontade de potncia. importante pensarmos sobre isso: o eterno
retorno do sem sentido da existncia coage a vida singular a
criar sentido e valor. Ou ela cria ou, ento, perece inevitavelmente
no h outro caminho. Se o artista vivesse num mundo acabado,
sua existncia seria intil, pois no teria o que criar. A vida
singular que se supera demonstra que a multiplicidade de foras
que coexistem nela se expressa de muitas maneiras, rompendo
com as noes de ser, identidade ou eu: Cada trao de
carter fundamental, que jaz no fundamento de cada acontecer,
que se exprime em cada acontecer, se ele fosse sentido por um
indivduo como seu trao de carter fundamental, teria de levar
esse indivduo a abenoar, triunfante, cada momento da existncia
universal. Isso dependeria justamente de sentir-se esse trao de
carter fundamental como bom, valioso, com prazer 102. O Eu
quero da vida singular combate, de modo permanente, o Tu
deves. Contra qualquer censura moral, a vida singular continua
adiante naquilo que deseja para elevar o que j quer ao mximo
que pode. Esse seu bem, por expressar a sua singularidade de
sentir, de conhecer, de avaliar, de viver, sempre algo que no
se confunde com o bem comum da moral. Portanto, sua
virtude tica e no moral: Este o meu bem, o que amo,
assim que gosto dele, somente assim eu quero o bem 103.
Como somos um grau de potncia, ao afirmarmos a nossa
prpria diferena, experimentamos o que, essencialmente, j
somos: potncia singular de diferenciar-se de ns mesmos.
Portanto, no h comparao possvel a ser feita entre graus de
potncia. Para sermos frteis, no precisamos de qualquer tipo
de reconhecimento e, em razo disso, podemos passar quase
despercebidos num mundo dominado por subjetivao e por
significao. Passamos a dar o crdito para ns mesmos porque
nos alegramos com a nossa singularidade.
impossvel conhecermos o que somos, pois no h um
eu escondido, mas, pelo contrrio, tornamo-nos o que somos
em devir. Aprendemos que todas as outras tarefas so
secundrias diante da tarefa, que podem ser apenas auxiliares da
tarefa, como meios fomentadores da tarefa. E qual a tarefa?
Tornar-se o que se ... fruto de uma outra maneira de desejar
que nos faz experimentar a eternidade. Meu ensinamento diz:
viver de tal modo que tenhas de desejar viver outra vez, a
tarefa pois assim ser em todo caso! Quem encontra no
esforo o mais alto sentimento, que se esforce; quem encontra
no repouso o mais alto sentimento, que repouse; quem encontra
em subordinar-se, seguir, obedecer, o mais alto sentimento, que
obedea. Mas que tome conscincia do que que lhe d o mais
101 EC, Por que sou um destino, 1.
102 VP, 55.
103 AFZ, Das alegrias e das paixes.
explodido pelos ares todas se baseiam inteiramente na mentira:
haver guerras como ainda no houve sobre a Terra. Somente a
partir de mim haver grande poltica na Terra 101.
O AMOR AO ETERNO RETORNO DA DIFERENA
41
alto sentimento, e no receie nenhum meio! Isso vale a
eternidade! 104.
Mas como podemos pensar o mundo e ns mesmos em
devir? A dificuldade que podemos encontrar para pensarmos sobre
isso surge, muitas vezes, por meio do hbito moral que impe a
todo acontecimento uma explicao exterior a ele. Desse modo,
algo existente sempre remeteria a alguma outra coisa que lhe
faltaria ou que lhe seria superior. O antigo hbito, afirma
Nietzsche, de em todo acontecimento pensar em fins e de, para
o mundo, pensar em um Deus condutor e criador to poderoso
que, ao pensador, custa esforo no pensar para si prprio a falta
de finalidade do mundo, por sua vez, como uma inteno 105.
Mas podemos tambm criar o hbito inverso: pensar o devir tal
como ele , sem origem e finalidade, como eterno escoamento e
diferenciao, que faz qualquer coisa existente no ter nenhuma
semelhana com modelos de perfeio transcendentes. Contra as
cpias do platonismo, Nietzsche quer nos dizer que na natureza
somente existem os simulacros, ou seja, a natureza uma potncia
do falso 106.
Anaximandro dizia que havia a dualidade de dois mundos
totalmente antagnicos, o do ser eterno e o do devir, o da
unidade eterna e o da multiplicidade. Portanto, para ele, o devir
seria conseqncia do ser, e o mundo como devir seria uma
realidade de injustias 107. evidente que Nietzsche se ope
104 FP, 41 (Coleo Os Pensadores, p. 442).
105 VP, 1062.
106 Gilles Deleuze, Plato e o simulacro: A cpia uma imagem dotada de
semelhana, o simulacro, uma imagem sem semelhana.
107 FITG, IV: Primeiro [Anaximandro], pergunta a si mesmo: Se h, em
geral uma unidade eterna, como que a multiplicidade possvel? E recebe
a resposta do carter contraditrio desta multiplicidade que a si se devora e
se nega. A existncia desta multiplicidade torna-se para ele um fenmeno
concepo de que o devir seria o resultado do ser ou, ento,
de que o devir, em algum momento, ter uma concluso no
ser. Se o mundo tivesse um fim, diz Nietzsche, ele haveria
de j ter sido alcanado. Se houvesse para ele um estado final
no intencional, ento este haveria de j ter sido, do mesmo
modo, alcanado. Se ele fosse capaz, em geral, de um persistir,
de um tornar-se petrificado, de um ser, tivesse ele, em todo o
seu devir, somente por um momento, essa capacidade do ser,
ento ele teria chegado, mais uma vez, h muito tempo, ao fim
do devir, tambm ao fim do pensar, ao fim do esprito. O fato
do esprito como um devir prova que o mundo no tem
nenhum fim, nenhum estado final e incapaz de ser 108. O que
poderia ser a concluso do devir? O Nada? possvel imaginlo?... Ora, se o devir tendesse a uma concluso, necessariamente
deveria ter uma origem. Mas, ento, essa hiptese nos obriga a
pensar no que originou a origem! Ento, a origem imaginada
anteriormente no seria mais a origem?... possvel
percebermos que a imaginao tenta explicar o que no existe:
incio e concluso no devir. E o que existe? O que est no meio,
o que no lhe falta nada, aquilo que h de voltar eternamente,
moral; no se justifica, mas expia-se incessantemente pelo declnio. Mas
ento ocorre-lhe a questo: Porque que tudo o que entrou no devir
no pereceu j h muito, uma vez que j se passou uma eternidade de
tempo? De onde provm a torrente sempre renovada do devir? Ele s
sabe livrar-se desta questo mediante novas hipteses msticas: o devir
eterno s pode ter a sua origem no ser eterno, as condies que levam o
ser a cair num devir em injustia so sempre as mesmas, a constelao das
coisas feita de maneira a no se poder prever termo algum para esta
agresso do ser individual do seio do indefinido. Anaximandro ficou por
aqui: quer dizer, ficou nas sombras profundas que cobriam como
fantasmas gigantescos o cume de uma tal contemplao do mundo.
108 VP, 1062.
42
como um devir que no conhece nenhum tornar-se satisfeito,
nenhum fastio, nenhum cansao 109, ou seja, a vontade de
potncia.
Contemplar o devir: esta postura afirmativa Nietzsche
encontrou em Herclito. Segundo Nietzsche, ele levantou a
cortina desse espetculo sublime 110. Mas a contemplao do ser
atingida quando ele considerado efeito do devir e no o
contrrio. No o ser do Mesmo, mas da diferena. O amor ao
ser da diferena o amor ao eterno retorno da diferena.
109 VP, 1067.
110 FITG, V. Herclito, diz Nietzsche, j no distingue um mundo fsico e
um mundo metafsico, um domnio de qualidades definidas e um domnio
da indeterminao indefinvel. Aps este primeiro passo, tambm j no
pde coibir-se de uma maior audcia da negao: negou o ser em geral...
Herclito exclamou mais alto do que Anaximandro: S vejo o devir. No
vos deixeis enganar! vossa vista curta e no essncia das coisas que
deve o fato de julgardes encontrar terra firme no mar do devir e da
evanescncia. Usais os nomes das coisas como se tivessem uma durao fixa;
mas at o prprio rio, no qual entrais pela segunda vez, j no o mesmo
que era da primeira vez.
Supremo astro do ser!
Tbua de eternas esculturas!
Tu vens a mim?
O que ningum enxergou,
tua muda beleza
como? ela no foge de meus olhares?
Emblema da necessidade!
Tbua de eternas esculturas!
mas tu bem o sabes!
o que todos odeiam,
o que somente eu amo,
que s eterna!
que s necessria!
Meu amor inflama-se eternamente
apenas com a necessidade.
Emblema da necessidade!
Supremo astro do ser!
que nenhum desejo alcana,
que nenhum No macula,
eterno Sim do ser,
eternamente sou teu Sim:
pois te amo, Eternidade! 111
111 DD, Fama e eternidade, 4.
43
Minha filosofia traz o pensamento vitorioso, com o qual,
finalmente, sucumbe todo outro modo de pensar. o grande
pensamento cultivador: as raas que no o suportam so
condenadas; as que o sentem como um grande benefcio so
selecionadas para o domnio 112
NIETZSCHE E O MUNDO CONTEMPORNEO
Como resultado da organizao parasitria das
instituies, os sentidos do homem gregrio tornaram-se
embotados, j que ele nem mais sabe o que experimentar e,
por isso mesmo, no quer impedir que o seu cotidiano utilitrio
continue a ser dominante. O modus operandi do capitalismo ,
sem dvida, o grande sintoma da inverso do sentido da cultura,
da autodestruio passiva do homem. E se o capital permanece
vorazmente, ele no , certamente, resultado de uma
conspirao burguesa; muito pelo contrrio, algo produzido
pela sociedade, por meio do desejo dos indivduos. Ento,
estaria o homem condenado a reproduzi-lo cada vez mais?
112 VP, 1053.
44
a infelicidade com a sua profisso, com o seu padro
de vida que, por conseqncia, faz o homem ps-moderno
procurar por entorpecentes que servem para mant-lo submetido
ordem moral. Em Ecce homo 113, Nietzsche nos diz que, na
poca em que foi professor na Basilia, era incomodado por um
sentimento de falta de si, que inevitavelmente surgia em razo
de um trabalho erudito extremamente desgastante (a filologia),
levando-o a desejar entorpecer-se atravs da arte de Wagner: Foi
ento que atinei tambm pela primeira vez a relao entre uma
atividade escolhida contra o prprio instinto, uma assim chamada
profisso, que o que menos professamos e aquela necessidade
de entorpecimento da sensao de vazio e de fome atravs de uma
arte narctica por exemplo, atravs da arte de Wagner. A idia
de estar, na verdade, desperdiando um tempo valioso, tornou-se
ainda mais madura para ele. O risco de viver de outra maneira, at
sob condies desfavorveis, parecia-lhe muito mais digno do que
permanecer como funcionrio do Estado: Naquela poca, meu
instinto decidiu-se inflexvel pelo fim daquele ceder, seguir,
confundir-se com outros. Qualquer espcie de vida, as condies
mais desfavorveis, doena, pobreza tudo me pareceu prefervel
quela indigna falta de si, na qual havia cado por ignorncia, por
juventude, e na qual havia depois permanecido por letargia, pelo
chamado sentimento do dever.
A ao criativa, que provm da nossa potncia de ir alm de
ns mesmos, no obedece horrios, prazos e normas para poder
surgir. O pensamento no precisa ter autorizao para vir tona,
no se confunde com as exigncias que uma profisso qualquer
obriga. Por outro lado, para a reproduo do capital, exige-se
competncia, qualificaes cada vez mais absurdas, compromissos
inadiveis, tarefas executadas no menor tempo possvel. O
salrio , inclusive, o meio para que o indivduo enfermo possa
ter acesso aos narcticos. Uma contranatureza 114, isto , realizar
tarefas que so contrrias natureza de algum, gera no
indivduo uma outra contranatureza, que so as fugas artificiais
que continuam a preserv-lo como simples pea reprodutora da
mquina capitalista. Uma atividade contra o prprio instinto
diminui a sua potncia de existir, acompanhada de sentimentos
de tristeza e da sensao de abatimento fisiolgico. O indivduo
dedicado a uma tarefa irracional chega ao nvel do insuportvel,
embora ainda deseje agarrar-se vida que ele percebe escaparlhe cada vez mais. Percebemos que a vida singular no mundo
contemporneo est podada e ela v vantagens em ser assim,
pois experimenta efmeras doses de aumento da sua potncia
nas relaes que tambm so, no fundo, contrrias sua
natureza. Como no so experincias autnticas, pois so
organizadas pelo poder, a vida singular permanece dissociada do
que pode. E quando, em raros momentos, at chega a ter um
certo grau de regenerao devido s suas prprias foras (o que
perigoso para os moralistas), ela novamente podada...
Durante o nosso percurso existencial, a maior de todas as
tarefas, tornar-se o que se , invertida pela moral atravs do
tornar-se o que os outros querem isto significa tornar-se
uma ovelha obediente, que abandona a si mesma para honrar os
seus compromissos que colaboram para a preservao do
rebanho. Olhando em torno com maior cuidado, descobri que
existe o mesmo infortnio para um grande nmero de jovens
115
so jovens que, em razo da educao para a obedincia a
qual foram submetidos desde os seus primeiros anos de vida,
113 EC, sobre Humano, demasiado humano, 3 e 4.
114 EC, sobre Humano, demasiado humano, 3.
115 EC, sobre Humano, demasiado humano, 3.
45
esto distantes de compreender que no existe caminho a seguir, a
no ser o caminho construdo por eles mesmos.
necessrio compreendermos o valor que Nietzsche
atribuiu sua doena. A doena libertou-me lentamente, diz
ele, poupou-me qualquer ruptura, qualquer passo violento e
chocante... A doena deu-me igualmente o direito a uma
completa inverso de meus hbitos; ela permitiu, ela me ordenou
esquecer; ela me presenteou com a obrigao quietude, ao cio,
ao esperar e ser paciente... Mas isto significa pensar! 116. Por meio
da doena, o seu processo de ruptura e de cura espiritual
tornou-se gradual. Podemos afirmar que, somente a partir da, foi
possvel nascer o grande Nietzsche, a dinamite que causou uma
exploso cujos efeitos vo ainda durar por muito tempo 117. E isso
116 EC, sobre Humano, demasiado humano, 4. Valor da doena O
homem que jaz doente na cama talvez perceba que em geral est doente de
seu ofcio, de seus negcios ou de sua sociedade, e que por causa dessas
coisas perdeu a capacidade de reflexo sobre si mesmo: ele obtm esta
sabedoria a partir do cio a que sua doena o obriga (em HDH, 289).
117 No mundo contemporneo, observamos o pensamento nietzschiano ser
cada vez mais adaptado a interesses antagnicos da sua obra. O resultado
disso um Nietzsche insosso, sem vigor, que no nem sombra do grande
Nietzsche, sem sua agressividade destruidora de todos os valores vigentes
os mesmos valores que, hoje, tentam amans-lo... Nietzsche na mdia chega
a ser, muitas vezes, uma coisa medonha... O homem reativo, por no
suportar a agressividade do autntico pensamento nietzschiano, tenta
transform-lo num objeto consumvel, artificializado e, por isso, til ao
mercado. evidente que no nos opomos divulgao do pensamento
nietzschiano, mas o critrio que invocamos o seguinte: quem fala sobre
Nietzsche? Qual o uso que fazem das suas idias? Muitos dos seus
comentadores contentam-se em esmiuar detalhes menos importantes no
contexto do pensamento nietzschiano, deixando de lado as idias que mais
lhes incomodam. Ler e falar sobre Nietzsche uma coisa; usar os escritos de
Nietzsche como experincia que maquina a potncia subversiva do
inconsciente, a outra coisa muito diferente.
demonstra para ns a importncia de operar a ruptura de modo
prudente. Nesse processo de crescimento espiritual, o que antes
era considerado extremamente indispensvel por ns perde o seu
encanto. A nossa vontade de potncia se expande para alm
daquilo que anteriormente tinha alguma funo, tal como
ocorre, por exemplo, no interior de um organismo: Mesmo no
interior de cada organismo no diferente: a cada crescimento
essencial do todo muda tambm o sentido dos rgos
individuais em certas circunstncias a sua runa parcial, a sua
diminuio em nmero (pela destruio dos componentes
intermedirios, por exemplo) pode ser um signo de crescente
fora e perfeio... A magnitude de um avano, inclusive, se
mede pela massa daquilo que teve de lhe ser sacrificado 118.
Insistir em manter alguma coisa que j est seca e que, por isso,
no pode oferecer mais nada, um evidente sintoma de
definhamento do conjunto de um indivduo (uma sociedade
assim corrompe-se...). Portanto, saber desprezar um ato de
amor... Manter-se em devir ativo o lema nietzschiano.
118 GM, Segunda dissertao, 12.
46
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SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e
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Contraponto, 2001.
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NOTAS
Capa:
Wanduir Durant
Abreviaturas das obras de Nietzsche citadas no livro:
A Filosofia na Idade Trgica dos Gregos (FITG)
A Gaia Cincia (GC)
A Vontade de Poder (VP)
Alm do Bem e do Mal (ABM)
Assim Falou Zaratustra (AFZ)
Crepsculo dos dolos (CI)
Ditirambos de Dionsio (DD)
Ecce Homo (EH)
Fragmentos Pstumos (FP)
Genealogia da Moral (GM)
Humano, Demasiado Humano (HDH)
O Anticristo (AC)
Terceira Considerao Intempestiva: Schopenhauer Educador
(SE)
O esboo deste livro foi escrito em 2006, sendo distribudo
gratuitamente pela internet. Portanto, esta publicao uma
nova verso com alteraes que foram realizadas em 2010.
Agradecimentos:
Valter A. Rodrigues, Luiz Fuganti e amigos da Escola Nmade
e do Coletivo Usina
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