Freud e os textos sociais
PARTE 1: TOTEM E TABU
Os cinco textos sociais de Freud
Particularmente endereçados à elucidação das questões relacionadas à cultura esses cinco
textos destoam do resto da obra freudiana, fogem de uma aplicação mais direta, não
apresentam questões diretamente relacionadas à clínica.
Totem e Tabu (1913)
Psicologia de Massas e Análise do Eu (1921)
O Futuro de uma Ilusão (1927)
O Mal-estar na Civilização (1930)
Moisés e o Monoteísmo (1939)
Totem e Tabu (1913)
Escrito inicialmente para responder a “Símbolos e Transformações da Libido” de Jung, onde
mostra que não é a mitologia que explica a sexualidade, mas o contrário.
Trata-se de um a ampliação do território psicanalítico que se dedica agora a explicar as origens e
o fundamento de toda a manifestação cultural possível.
Organização do texto
Parte I – O Horror ao Incesto
Parte II – Tabu e ambivalência emocional
Parte III – Animismo, magia e onipotência do pensamento
Parte IV - O retorno do totemismo na infância
Discussão da relação entre fenômenos culturais e a organização psíquica individual. Freud
propõe paralelos para posteriormente argumentar que há uma nítida relação de
interdependência, ou seja, o psiquismo individual em sua estrutura repete algo que se deu no
plano da cultura.
Parte I – O Horror ao incesto
Os aborígenes australianos estabeleceram com o mais escrupuloso cuidado e a mais rigorosa
severidade o propósito de evitar relações sexuais incestuosas.
Toda a organização social parece servir a esse propósito ou ter sido relacionada à sua realização.
O texto faz a apresentação do sistema totêmico, que geralmente é representado por um animal
e que tem uma relação peculiar com o clã.
Em quase todos os lugares onde existem totens existe também uma lei contra as relações
sexuais entre pessoas do mesmo totem, e consequentemente, contra seu casamento. A violação
da proibição é castigada de maneira enérgica pelo clã inteiro.
A exogamia vinculada ao totem tem um efeito maior que o de impedir o incesto de um homem
com sua mãe e irmãs. Ela torna impossível as relações sexuais de um homem com todas as
mulheres de seu próprio clã, considerando-as parentes.
Dois exemplos:
1 – Na Melanésia, a relação do menino com a mãe e as irmãs é evitada afastando-se o menino
de casa. Depois que ele sai de casa não mais fala ou encontra com elas em público. Costumes
semelhantes são encontrados na Nova Caledônia, Nova Bretanha, New Mecklenburg, Fiji e
Sumatra.
2 – A evitação mais difundida e rigorosa é a que impede as relações de um homem com a sogra.
Comentário
É importante considerar nessa primeira parte do texto a menção à proibição e o seu papel
estrutural na cultura.
Freud decide por uma universalidade desta proibição (a interdição contra o desejo incestuoso).
Parte II – Tabu e ambivalência emocional
O tabu traz em si o sentido de algo intocável e é expresso principalmente por proibições e
restrições.
A fonte do tabu é atribuída a um poder mágico específico que é inerente a pessoas e a espíritos
e pode ser transmitido por eles através de objetos inanimados.
Por trás de todas as proibições parece haver algo como uma teoria de que elas são necessárias
porque certas coisas e pessoas estão carregadas de um poder perigoso que pode ser
transformado e transmitido pelo contato com elas, quase como uma infecção.
Qualquer pessoa que tenha transgredido uma dessas proibições adquire a característica de ser
proibido.
Segundo Wundt, as verdadeiras raízes do tabu estariam num medo primitivo dos poderes
demoníacos. A característica original do tabu (que um poder demoníaco jaz oculto num objeto
que se for tocado se vinga lançando uma maldição sobre o transgressor) é o medo objetivado.
Esse medo ainda não se dividiu nas duas formas em que se transformará mais tarde: veneração
e horror.
Ainda segundo Wundt, a distinção entre sagrado e profano não existia nos primórdios do tabu,
portanto o tabu se aplica tanto ao sagrado quanto ao profano através do terror do contato com
ele.
Comentário
O tabu é a construção de um campo simbólico em torno da proibição. Demarca os efeitos e as
condições através das quais alguém também se torna objeto do tabu. A relação entre o tabu e a
superstição (pensamento mágico) é especialmente destacada.
Paralelo com a neurose obsessiva
As proibições vividas pelos obsessivos também, como no tabu, são imotivadas e são enigmáticas
em sua origem. Como no caso do tabu, a principal proibição, o núcleo da neurose, é contra o ato
de tocar.
As proibições obsessivas são extremamente sujeitas ao deslocamento. As proibições obsessivas
envolvem renúncias e restrições tão extensas na vida de quem está sujeito a elas quanto as
proibições do tabu, mas algumas podem ser suspensas se certas ações forem realizadas. Assim,
essas ações ganham obrigatoriedade tornando-se compulsões, cuja natureza é a mesma da
expiação, da penitência, das medidas defensivas e da purificação.
Um conflito continuado entre a proibição e o instinto para fazer alguma coisa é chamado de
fixação psíquica. A principal característica dessa constelação psicológica é descrita como a
atitude ambivalente do sujeito para com um objeto único ou para com um ato ligado a esse
objeto.
A transmissibilidade do tabu é um reflexo da tendência da pulsão inconsciente na neurose de
mudar constantemente, por meio das vias associativas, para novos objetos.
Se a violação do tabu pode ser corrigida pela expiação, que envolvem a renúncia de algum bem
ou de alguma liberdade, isso prova que a obediência à ordem do tabu significava ela própria a
renúncia de algo desejável.
Conclui-se que o tabu é uma proibição primitiva imposta à força do exterior e dirigida contra os
anseios mais poderosos a que os seres humanos estão sujeitos. O desejos de violá-los persiste
no inconsciente; aqueles que obedecem o tabu têm uma atitude ambivalente em relação ao que
o tabu proíbe.
Comentário
Além de definir que o tabu e a neurose obsessiva (mais especificamente o seu objeto de horror)
tem a mesma estrutura de funcionamento, Freud volta a sua atenção para o fenômeno
emocional que circunda o proibido, a ambivalência, isto é, que o objeto possa ser temido e
amado ao mesmo tempo.
Parte III – Animismo, magia e onipotência
do pensamento
A criação de um sistema do universo deve ter se dirigido originalmente à necessidade prática de
controlar o mundo a sua volta.
A feitiçaria é essencialmente a arte de influenciar os espíritos tratando-os do mesmo modo que
se tratariam homens, em circunstâncias semelhantes: apaziguando-os, fazendo-lhes correções,
tornando-os propícios, intimidando-os, roubando-lhes o poder, subjugando-os à própria
vontade, etc.
Por outro lado a magia é algo diferente: fundamentalmente ela desconsidera os espíritos e faz
uso de procedimentos especiais e não dos métodos psicológicos do dia a dia.
A magia tem de servir aos mais diversos propósitos: ela deve submeter os fenômenos naturais à
vontade do homem, proteger o indivíduo de seus inimigos e de perigos, bem como dar-lhe
poderes para prejudicar um inimigo.
O princípio que rege a magia, a técnica da modalidade animista do pensamento, é o princípio da
onipotência do pensamento.
É nas neuroses obsessivas que a onipotência do pensamento é mais visível. Os atos obsessivos
primários dos neuróticos têm um caráter inteiramente mágico.
A técnica do animismo, a magia, revela um intenção de impor às coisas reais as leis que
governam a vida mental; nisto os espíritos não precisam ter nenhum papel, embora possam ser
considerados como objetos de tratamento mágico.
Os espíritos e demônios são apenas projeções dos impulsos emocionais do próprio homem. Ele
transforma os seus investimentos emocionais em pessoas, povoa o mundo com elas e mais uma
vez enfrenta seus processos mentais internos fora dele mesmo.
Portanto, a primeira realização teórica do homem, a criação dos espíritos, parece ter surgido das
observâncias do tabu.
Comentário
Mais uma vez o paralelo entre a proibição social e o funcionamento obsessivo é destacado, mas
Freud se esforça por estender a qualificação atribuindo uma ideia de força (de comprometimento
mental) ao fenômeno do tabu, ele é construído a partir do pensamento mágico, que por sua vez
está definido pela onipotência do pensamento.
Parte IV - O retorno do totemismo na
infância
O totem é uma classe de objetos materiais que se encara com um respeito supersticioso,
acreditando existir entre ele e todos os membros da classe uma relação íntima e especial.
Há pelo menos três espécies de totens: 1. o totem do clã, comum a todo um clã e passando por
herança de geração a geração; 2. o totem do sexo, comum a todos os homens ou a todas as
mulheres de uma tribo, excluindo-se, em cada caso, o sexo oposto; 3. o totem individual, que
pertence a um único indivíduo e que não passa para seus descendentes.
O clã espera receber de seu totem cuidados e proteção. O aparecimento do totem em uma casa
ou nas cercanias é frequentemente encarado como um presságio de morte. Em circunstâncias
especialmente importantes o membro do clã procura ressaltar seu parentesco com o totem
tentando tornar-se semelhante a ele externamente, vestindo a pele do animal, talhando sua
figura no próprio corpo.
O aspecto social do totemismo se expressa principalmente por uma ordem mantida à força e
por amplas limitações.
Os membros de um clã totêmico são irmãos e irmãs e devem ajudar-se e proteger-se uns aos
outros.
A correspondente restrição do tabu proíbe aos membros do mesmo clã de se casarem e de
terem relações sexuais.
Características essenciais do totemismo:
Originalmente todos os totens eram animais e eram considerados como ancestrais dos
diferentes clãs;
Os totens eram herdados unicamente através de linhagem feminina;
Havia a proibição de matar o totem;
Os membros de um clã totêmico eram proibidos de ter relações sexuais entre si.
A relação das crianças com os animais
Uma criança fica repentinamente com medo de uma determinada espécie de animal e evita
encostar ou ver qualquer bicho daquela espécie.
Isto se deve a um deslocamento de afeto.
A análise pode reconstituir os caminhos associativos ao longo dos quais se dá o deslocamento,
tanto os caminhos fortuitos, quanto os que têm um conteúdo significativo. A análise também
nos permite descobrir os motivos do deslocamento.
Pode-se dizer que nessas fobias infantis reaparecem algumas das características do totemismo,
invertidas em seu negativo.
Se o animal totêmico é o pai, então os dois regulamentos principais do totemismo, as duas
proibições tabu que constituem o seu âmago, isto é, não matar o totem e não ter relações
sexuais com uma mulher do mesmo totem, coincidem em seu conteúdo com os dois crimes de
Édipo, que matou o pai e casou-se com a mãe, assim como coincidem com os dois desejos
primários das crianças, cujo recalcamento insuficiente ou o revivamento formam o núcleo
formal de toda psiconeurose.
O sacrifício sacramental e a ingestão comunal do animal totêmico, cujo consumo é proibido em
qualquer outra ocasião, é uma característica importante da religião totêmica.
Um festival é um excesso permitido, ou melhor, obrigatório, uma quebra solene de uma
proibição. O sentimento festivo provém da liberdade de poder fazer o que é proibido.
Na realidade o animal totêmico é um substituto do pai; e isto se encaixa com o fato
contraditório de que embora seja proibido matar o animal, sua matança é uma ocasião festiva;
ele é assassinado e, ao mesmo tempo, pranteado.
Devemos admitir que o totemismo e a exogamia estavam intimamente associados e que tiveram
uma origem simultânea. A antiga refeição totêmica repete-se sob a forma original do sacrifício.
Totem e tabu: mito de origem
Uma horda primitiva dominada por um pai tirano e violento, apropriando-se das mulheres e
expulsando os filhos, defendendo assim o seu direito de propriedade.
Os irmãos expulsos revoltam-se e matam o pai, em forte cumplicidade e onde nenhum
elemento isolado se diferencia, realizam um festim em que o morto é comido.
Esta comunhão totêmica consubstancia o modelo de identificação primitiva em que a
incorporação da força e poder paterno, funda a culpabilidade dos filhos, materializando a
identificação de cada um ao antepassado invejado e temido.
Por esta idealização, simboliza-se a solidariedade e igualdade entre todos e a sua identificação
mútua, fundando-se a sociedade nova assente em dois tabus: renunciar a matar e comer o
animal totêmico (substituto do pai morto idealizado) e renunciar a ter relações sexuais com as
mulheres ou as filhas do pai (precursores do interdito do incesto e do principio da exogamia).
O amor fraternal podia tomar o lugar dos ciúmes primitivos que existiam entre os irmãos (Freud,
1913).
A figura patriarcal autoritária, através da sua força legisladora e orientadora, organiza toda a
vida grupal. Da mesma forma que existe um homem primitivo em cada individuo existe uma
horda primitiva em cada da grupo (Freud, 1921).
A ambivalência de sentimentos sentidos pelas crianças em relação à figura paterna, semelhante
à dos subordinados em relação à figura de autoridade; a idealização do pai morto, divinizado ou
transformado em objeto de culto, protótipo de sociedade ideal, onde todos os homens, filhos de
um pai simbólico seriam irmãos e iguais; a eficácia de uma morte aplicada em conjunto como
forma reforço da coesão grupal; a teia comum de intenções que atenua os sentimentos
individuais de culpabilidade, em que a identificação de cada um ao personagem assim
comemorado permite encarnar a unidade de ação grupal (Freud, 1921)
Em primeiro lugar, é interessante notar que o nascimento do grupo é correlativo de um crime
cometido em comum. Na origem, no big bang da civilização (ENRIQUEZ, 1983), houve, portanto,
um crime cometido em conjunto: esse é o ato fundador, original.
Em segundo lugar, na verdade, por aceitar a divisão do social, é necessário que o pai se perceba
como pai, isto é, que a civilização tenha aparecido e que as relações de parentesco sejam
estabelecidas e reconhecidas. Isso é a consequência da reunião. Nos tempos primordiais não se
conhecem senão relações de força.
Em terceiro lugar, a invenção da primeira relação de solidariedade acontece quando,
reconhecendo o outro como outro, podem viver como irmãos.
Em quarto lugar, eles expressam a solidariedade e reconhecem o liame libidinal que os une no
ódio comum contra o pai.
E eis o “pulo do gato” de Freud: se é o ódio que transforma os seres submetidos em irmãos, é
seu assassinato que constitui o chefe da horda em pai. Em outros termos, o pai não existe senão
como ser mítico. O pai é sempre um pai de morte.