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DossieAntra2024 WEB

Este relatório apresenta os dados de 2023 sobre a situação de violência e assassinatos contra pessoas trans no Brasil. A pesquisa encontrou 155 casos no total, sendo 145 assassinatos e 10 suicídios. A vítima mais jovem tinha 13 anos, evidenciando a persistência de patrulhamento contra crianças e adolescentes trans. Apesar de um novo governo mais progressista, a violência contra pessoas trans aumentou mais de 10% em relação a 2022, com o Brasil continuando a liderar o ranking mundial de assassinatos de trans por 15 anos consecutivos.
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Este relatório apresenta os dados de 2023 sobre a situação de violência e assassinatos contra pessoas trans no Brasil. A pesquisa encontrou 155 casos no total, sendo 145 assassinatos e 10 suicídios. A vítima mais jovem tinha 13 anos, evidenciando a persistência de patrulhamento contra crianças e adolescentes trans. Apesar de um novo governo mais progressista, a violência contra pessoas trans aumentou mais de 10% em relação a 2022, com o Brasil continuando a liderar o ranking mundial de assassinatos de trans por 15 anos consecutivos.
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DOSSIÊ

ASSASSINATOS E VIOLÊNCIAS
CONTRA TRAVESTIS E TRANSEXUAIS
BRASILEIRAS EM 2023

BRUNA G. BENEVIDES

BRASIL - 2024
DOSSIÊ
ASSASSINATOS E VIOLÊNCIAS
CONTRA TRAVESTIS E TRANSEXUAIS
BRASILEIRAS EM 2023

BRUNA G. BENEVIDES

Distribuição Gratuita – Venda Proibida


“Não existe lugar seguro no mundo para as pessoas
que não são cisgêneras e vivem sua identidade de gênero
aberta e publicamente. Quais são os privilégios que
te impedem de enxergar essa realidade e
tentar negar as violências?”
Bruna Benevides
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE TRAVESTIS
E TRANSEXUAIS DO BRASIL (ANTRA)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

B465d Benevides, Bruna G.

Dossiê: assassinatos e violências contra travestis e transexuais


brasileiras em 2023 / Bruna G. Benevides. ANTRA (Associação Nacional
de Travestis e Transexuais) – Brasília, DF: Distrito Drag; ANTRA, 2024.
125p.

ISBN: 978-85-906774-9-9
1. Direitos e liberdades fundamentais. 2. LGBTQIAP+. 3. Estatística. 4.
Metodologia de pesquisa. 5. Transfobia. 6. Travestis. 7. Transexualidade.
8. Mortes violentas 9. Necro-Trans-Política. I. Observatório de Mortes e
Violências LGBTI+ no Brasil.
CDU 342.722(81)
CDD 342.81023

Bibliotecário Marcos Felipe Gonçalves Maia


CRB-2 / 1.445
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS – A reprodução total ou parcial, de qualquer
forma ou por qualquer meio deste documento, é autorizada desde que citada
a fonte. A violação dos direitos do/a/e autor/a/e (Lei nº 9.610/98) é crime
estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal da República Federativa do Brasil.
Coordenação, Pesquisa e Análise
Bruna Benevides – Secretária de Articulação Política da ANTRA

Investigação, sistematização e catalogação dos dados


Alexandre Bogas Fraga Gastaldi - Especialista em Gênero e Diversidade na Escola (UFSC)
Ciro Henrique Santos da Silva - Graduando em Direito (UPE)
Inaê Iabel Barbosa - Doutorande em Ciências Sociais (UNICAMP)
Lucas Ribeiro Bonatto - Graduando em Geografia (UFSC)
Pietra Fraga do Prado - Graduada em Psicologia (UFSCar)

Fontes Complementares de Informações/Colaboradores


Acontece Arte e Política LGBTI+
Associação Nordestina LGBTI+ - ANLGBT/CE
Associação Cearense de Diversidade e inclusão - ACEDI
Observatório de Políticas Públicas LGBTI+ do Maranhão
Grupo Orgulho, Liberdade e Dignidade – GOLD/ES
Observatório de Mortes e Violências contra LGBTI+ no Brasil
Associação de Travestis e Mulheres Transexuais do Ceará - ATRAC/CE
Associação e Movimento Sergipano de Transexuais e Travestis (AMOSERTRANS)

Conselho de Ética – ANTRA


Alexandre Peixe – Ativista TransMasculino
Cleonice Araújo – Bacharel em Direito, ativista da ONG Construindo Igualdade
Pitty Serrano Barbosa – Ativista do Grupo Igualdade Guaíba
Rachel Shineyder - Ativista

Revisão textual
Viviana de Paula Corrêa

Diagramação e design
Raykka Rica – Designer

Apoio à publicação e a distribuição


Distrito Drag (DF)

Apoio à diagramação
Fundo Positivo

Apoio Institucional
Global Funding for Women
Transgender Europe (TGEU)
Frente Nacional TransPolítica
Clínica Jurídica LGBTQIA+ do SDD/UFF
Conselho Regional de Psicologia do DF (CRP-DF)
Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBTI + da UFMG
Instituto Internacional sobre Raça, Igualdade e Direitos Humanos
Rede Nacional de Operadores de Segurança LGBTQIA+ (RENOSP-LGBTQIA+)
Núcleo de Estudos, Pesquisa, Extensão e Assistência à Pessoa Trans Professor Roberto Farina (UNIFESP)
Resumo
Nesta 7ª edição, a primeira lançada em um governo que atua sob uma perspectiva progres-
sista, traremos uma analise ampliada sobre a mudança do governo na vida das pessoas trans,
e evidências do quanto a transfobia segue afetando o direito à vida e à liberdade da juventude
trans. No Brasil que voltou, a violência contra pessoas trans permaneceu endêmica, com cen-
tenas de vidas perdidas, muitas sem tratamento adequado pelo Estado.

Em 2023, houve um aumento de mais de 10% nos casos de assassinatos de pessoas trans
em relação a 2022. Destacando o fato de o país figurar novamente como o que mais consome
pornografia trans nas plataformas de conteúdo adulto no mesmo momento em que o Brasil
seguiu como o país que mais assassinou pessoas trans pelo 15º ano consecutivo. Se manteve a
política estatal de subnotificação da violência lgbtifóbica.

Entre as mortes em 2023, foram 155 casos, sendo 145 casos de assassinatos e 10 pessoas
trans suicidadas. A mais jovem trans assassinada tinha 13 anos, e vimos a persistência de uma
patrulha contra crianças e adolescentes trans. Observou-se ainda que a manutenção da vio-
lência parte de um projeto político em que a extrema direita assumiu o protagonismo preocu-
pante da pauta das pessoas trans. E pudemos ainda observar os impactos da polícia de gênero
para mulheres cisgêneras, em casos em que foram tratadas como geralmente a sociedade trata
pessoas trans.

Em sua versão mais atualizada, a pesquisa anual Dossiê: Assassinatos e violências contra
travestis e transexuais brasileiras, apresenta os dados de 2023 sobre a situação de violência
e assassinatos contra pessoas trans brasileiras. Ficou evidente que o desafio de reconstruir o
Brasil deve assumir – com urgência – um compromisso público com a vida das pessoas.
Sumário
INTRODUÇÃO
1. A volta do Brasil e a sua dificuldade em enfrentar a Transfobia.................................10
1.1 Principais casos de transfobia no brasil em 2023..................................................... 18
1.2 Apesar de tudo, nem tudo está perdido..................................................................... 23
2. A pesquisa......................................................................................................................... 27
2.1 Objetivos............................................................................................................................ 30
2.2 O uso de dados da imprensa em pesquisas não são uma novidade.................... 31
2.3 Metodologia..................................................................................................................... 35
A) A busca por informações em mecanismos de pesquisa na internet.............. 36
B) Não há um padrão da publicação das notícias..................................................... 38
C) Principais desafios enfrentados para a realização da pesquisa....................... 41

PARTE I – ASSASSINATOS
Parte I – Assassinatos..........................................................................................................43
3. Assassinatos em 2023....................................................................................................45
3.1 Evolução dos casos mês a mês..................................................................................... 46
3.2 Assassinatos por estado............................................................................................... 47
3.2.1 Os dez estados que mais assassinaram pessoas trans entre 2017 e 2023....49
3.3. Assassinatos por região............................................................................................... 49
3.4 Assassinatos no exterior............................................................................................... 50
3.5 Perfil das vítimas............................................................................................................ 50
A) Idade ............................................................................................................................... 51

7
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

B) Classe e Contexto social........................................................................................... 55


C) Raça e Etnia.................................................................................................................. 58
D) Gênero e Identidade de Gênero............................................................................... 60
4. Elementos comuns .......................................................................................................... 62
5. Identidade de gênero das vítimas na mídia..................................................................64
6. Tipos de assassinatos......................................................................................................65
6.1 Ferramentas empregadas e métodos utilizados...................................................... 65
6.2 Crimes de ódio motivados pelo gênero e identidade de gênero das pessoas
trans ..........................................................................................................................................67
6.3 Local dos assassinatos.................................................................................................. 68
A) Territórios de favelas ................................................................................................. 68
7. Perfil dos suspeitos..........................................................................................................69
7.1 Laura Vermont e a luta contra a impunidade..............................................................70
8. Tentativas de homicídio (homicídio tentado) ............................................................... 73
9. Dados internacionais 2023.............................................................................................75
9.1 Alianças transnacionais Antitrans ...............................................................................76
9.2 Brasil, 15 anos no topo do genocídio trans .............................................................. 78
9.3 Brasil x Estados Unidos..................................................................................................79

PARTE II – VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS,


OUTRAS VIOLÊNCIAS E SUICÍDIO
10. Violações de direitos humanos.....................................................................................80
10.1 A guerra dos banheiros persiste................................................................................. 81
10.2 Lacunas da lei “Não é Não”......................................................................................... 85
11. Patrulha de gênero e o pânico antitrans como ameaça às mulheres cisgêneras ........ 88
11.1 A hierarquia estética...................................................................................................... 88
11.2 Quem tem o direito de ser mulher?........................................................................... 92
11.3 Os impactos da patrulha cisgênera........................................................................... 95

8
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

11.4 Tentativas de conclusões (im)possíveis...................................................................102


12. Suicídio e a saúde mental da população trans......................................................... 103
12.1 Terapias de conversão.................................................................................................105

PARTE III – RECOMENDAÇÕES E ARTIGOS


13. Recomendações............................................................................................................ 107
I) Recomendações gerais....................................................................................................107
II) Para a segurança pública e justiça...............................................................................110
III) Recomendações ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ)....................................... 111
14. Artigos............................................................................................................................. 112
14.1 2023: Brasil invicto como campeão no consumo de pornografia (e de assassi-
natos) trans no mundo..........................................................................................................112
14.2 O governo federal precisa sair do armário em relação aos direitos das pessoas
trans..........................................................................................................................................116

9
1. Introdução

1. A volta do Brasil e a sua dificuldade em


enfrentar a transfobia
Nos expulsam dos banheiros, das escolas, de casa, do trabalho e, mesmo assim, não conseguem
nos expulsar do mundo. Estamos encarnadas. Mesmo se nos matassem a todas. Uma a uma. É
possível exterminar as travestis. Jamais as travestilidades. (Caia Coelho)

Ao lançar esta pesquisa, o Dossiê sobre Assassinatos e Violências contra Travestis e tran-
sexuais brasileiras em 2023, durante as celebrações dos 20 anos de visibilidade trans no país1,
chamamos atenção para o fato de que esta é a primeira edição produzida durante um governo
que não é de direita/extrema-direita, e que se coloca publicamente em defesa da diversidade,
embora ainda em um contexto polarizado, onde o campo antigênero passa a intensificar seus
ataques e as pessoas trans tem sido alvo prioritário das milícias antigênero2, onde seus impactos
continuaram sendo vistos ao longo do ano de dois mil e vinte três e seguirão instrumentalizados
até que tenhamos um enfrentamento comprometido e efetivo das narrativas antitrans e o rompi-
mento com as práticas disseminadas pela ultra-direita e outros grupos antitrans.

1 29 de janeiro de 2004 foi instituído o Dia Nacional da Visibilidade Trans e em 2024 completará 20 anos de Visibilidade.
https://www.politize.com.br/visibilidade-trans/
2 Milícias antigênero são constituídas pela atuação conjunta de grupos que historicamente têm trajetória anti-
LGBTQIA+ e grupos antitrans que, embora possam se localizar politicamente em campos distintos (e em alguns
casos antagônicos), passaram a constituir um mesmo "ecossistema antigênero", que tem se retroalimentado a
partir de teorias e narrativas cissexistas. A partir da confluência de suas ideologias, narrativas e ações, destacando
fundamentalistas religiosos, partidos de extrema-direita, do campo político neoliberal e conservador, agentes políticos
e líderes religiosos com trajetória antirans, coletivos e mulheres cisgêneras autodeclaradas feministas radicais,
grupos antiqueer e lésbicas, gays e bissexuais cisgêneros que compartilham ideais neofascistas, e que atuam com
objetivo principal de dificultar ou impedir avanços nos direitos e erradicar travestis e pessoas trans da vida pública.

10
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

Com o objetivo de derrotar o autoritarismo, o anticientificismo, o neoliberalismo e o neo-


conservadorismo de um governo democraticida3, ao lado de outros movimentos populares,
muitas pessoas e instituições trans4 se empenharam para eleger um projeto político que precisa
assumir a defesa pública dos direitos dessa parcela da população, considerando que, ao longo
de sua trajetória, foram alcançados avanços importantes para a população LGBTQIA+ no Brasil.

Nesse sentido, chamamos atenção para o fato de que o movimento de travestis e transe-
xuais brasileiro, um dos mais organizados e reconhecidos nacional e internacionalmente por
sua capacidade de mobilização e conquistas de direitos, sempre se posicionou de forma firme
e assertiva sobre a atuação do estado em relação aos direitos trans. E isso, no atual contexto,
implica dizer que embora este mesmo movimento acredite na possibilidade de mudança a partir
do diálogo franco e transparente com um governo que assume atuar através de uma perspec-
tiva popular e progressista, que tem assegurado a participação social deste grupo em diversos
espaços institucionais, seja para o controle social efetivo em conselhos e outros mecanismos, ou
como parte de grupos de trabalho técnicos para orientar a construção de ações antitransfobia e
políticas públicas no sentido de garantir direitos e corrigir injustiças, não serão toleradas omis-
sões, recuos ou retrocessos.

Isso posto, rechaçamos toda e qualquer ação que tente silenciar críticas, minimizar ou
atuar para desmobilizar as cobranças, impedir o apontamento dos erros e/ou deslizes da atual
gestão, ou que tente colocar o movimento nacional de travestis e transexuais como antagônico
ao governo do presidente Lula. Acreditamos não haver qualquer contradição em trabalhar con-
juntamente e depositar esperança em um projeto de país que se elegeu – com nosso apoio - pro-
metendo dias melhores, que ainda não conseguiu, seja pela falta de acenos simbólicos ou de
ações concretas, posicionar a luta antitransfobia e a vida das pessoas trans na centralidade dos
compromissos assumidos até aqui. Consideramos que ainda existem muitas barreiras a serem
enfrentadas e melindres a serem derrubados em relação ao reconhecimento da legitimidade da
luta trans, para além de questões eleitoreiras.

Nesse contexto, consideramos a existência de muitos desafios para que a luta das pessoas
trans e seus direitos efetivamente passem a fazer parte da “ordem do dia”, sem que isso nos
impeça de apontar caminhos para que a violência destinada às pessoas trans seja erradicada,
junto ao processo de reconciliação que está em curso em nossa sociedade. Nesse viés, inclui-se
a urgência do resgate sobre a cidadania e o reconhecimento das contribuições que travestis e
transexuais têm trazido e podem agregar para a reconstrução do país após os últimos seis anos
de radicalização que enfrentamos.

3 Que atua para eliminar ou contra a democracia.


4 https://antrabrasil.org/2022/08/28/carta-da-antra-sobre-as-eleicoes-2022/ e https://antrabrasil.org/2022/10/15/
nota-antra-para-o-segundo-turno-2022/

11
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

É fundamental destacar que, de acordo com um levantamento realizado pelo Jornal Folha
de São Paulo5, houve uma denúncia alarmante de que pelo menos um projeto de lei é apresen-
tado diariamente, onde mais de 300 projetos antitrans foram apresentados em dois mil e vinte
três. Tais projetos visam institucionalizar a LGBTfobia sob diversas perspectivas, porém o foco
principal deles tem sido a institucionalização da transfobia e de um processo em que a agenda
antigênero avança numa perspectiva antitrans, visando impor restrições e/ou a completa crimi-
nalização das existências de identidades diversas. Podemos facilmente afirmar que houve um
acirramento e radicalização dessas ações neste mesmo ano.

Nesse sentido, passaremos a discorrer sobre como o ano de 2023 foi desafiador para toda
sociedade, e que no caso de pessoas trans, agravou-se ainda mais o cenário, diante da politi-
zação da transfobia e a reorganização do ecossistema antigênero por agentes antitrans, aliados
à ausência de posicionamentos contundentes por parte de partidos, agentes políticos, gestores,
artistas, influencers e outras figuras públicas em relação à situação das pessoas trans e tra-
vestis brasileiras.

Temos plena consciência de que iniciamos o ano de 2023 com um ato de mobilização anti-
democrátia que elegeu a violência para literalmente atacar os poderes instituídos no país. E
além de atentarem contra o estado brasileiro, agindo como terroristas fantasiados de “patriotas”,
diversos grupos – muitos ligados e financiados por denominações evangélicas fundamentalistas
– incentivados por ideais neofascistas requentaram as mesmas narrativas que foram dissemi-
nadas durante e no pós-golpe da presidenta Dilma Roussef. Entre elas, o velho apego ao mito da
“ideologia de gênero” e a disseminação massiva de fakenews nos moldes do “kit gay” e “mama-
deira de pi#oca”, em torno do mito dos banheiros “unissex”6 , que foi usada na campanha de
2022 para tentar confundir a população, e obviamente, alicerçado na proteção de uma família
tradicional inspirada no modelo nazista7.

E têm sido exatamente essas mesmas pessoas, incentivadas por agentes intelectuais dos
atos golpistas e a escalada que os antecederam como continuidade do golpe, que têm usado
a transfobia como um projeto político e atuado para posicionar publicamente pessoas trans
como uma ameaça (ANTRA, 2023)8, seja ao Estado (e à sociedade), à família, e mais recente-
mente às mulheres e crianças (cisgêneras), como uma pauta fortemente instrumentalizada pela
extrema direita para atacar governos progressistas e tornar pessoas trans indignas de direitos.

5 29 de janeiro de 2004 foi instituído o Dia Nacional da Visibilidade Trans e em 2024 completará 20 anos de Visibilidade.
https://www.politize.com.br/visibilidade-trans/
6 TSE determinou a exclusão de trechos de uma live do (então) presidente Jair Bolsonaro, publicada no YouTube, com
notícia falsa sobre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o PT. Na live, Bolsonaro disse que Lula e o partido são
favor da liberação das drogas, do aborto e da implantação de banheiros unissex nas escolas.
https://www.conjur.com.br/2022-out-21/tse-manda-bolsonaro-excluir-video-lula-banheiros-unissex/
7 Uso do lema nazista “Deus, Pátria e família” para fragilizar a democracia. https://www.jusbrasil.com.br/artigos/o-
uso-do-lema-nazista-deus-patria-familia-para-fragilizar-a-democracia-no-brasil/1743487672
8 Dossiê ANTRA 2023, pág 89. https://antrabrasil.files.wordpress.com/2023/01/dossieantra2023.pdf

12
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

Em decorrência disso, o que temos visto é um acirramento de violências diversas, desde aquelas
simbólicas, psicológicas, mas também violências patrimoniais, violações de direitos humanos e
violências físicas, como expulsões e/ou impedimentos de acesso a espaços públicos, espanca-
mentos, tentativas de homicídio e assassinatos com requintes de crueldade.

O discurso em todas essas instâncias orbita em torno dos mesmos temas e passou a incluir
a necessidade de – supostamente – salvaguardar a integridade das mulheres cis e proteger a
infância cis das pessoas trans. No entanto, essa alegação sequer encontra elementos materiais
capazes de justificar sua defesa9. Ademais, é, minimamente, curioso observar como a extrema
direita e o pensamento ultraconservador, de repente, passou a se preocupar com a segurança
das mulheres.

A ideia de que mulheres cisgêneras ou crianças enfrentam algum tipo de risco ou ameaça
em virtude do modesto avanço nos direitos das pessoas trans é, na realidade, uma construção
fantasiosa. Principalmente porque não são as pessoas trans as responsáveis pela violência
contra meninas e mulheres e/ou que estruturalmente têm colocado meninas e mulheres cis em
risco, não há razão aceitável para alguém afirmar isso.

Dentro ou fora do ambiente doméstico é sabido que o inimigo real das mulheres e crianças é
o patriarcado, o machismo e a misoginia, e a cultura do estupro também é parte dessa estrutura.
Afirmar que pessoas trans seriam parte do problema que representam essas ferramentas do
sistema de controle e opressão às mulheres, ou que oferecem algum tipo de risco às crianças ou
mulheres cis, flerta com as ilusões criadas pelo terror fascista na eterna busca por adversários
fictícios. Nesse contexto, é imperativo empreender esforços para conter tais fantasmagorias.

Um levantamento10 publicado pela Escola de Comunicação, Mídia e Informação da Fundação


Getúlio Vargas (FGV ECMI), demonstrou que a direita domina o debate trans no Brasil – sob o viés
da transfobia – nas redes sociais:

O debate no Facebook sobre direitos, reivindicações políticas e vivências de pessoas trans tem
sido permeado pela tematização de assuntos como: “ideologia de gênero”, religião, visibilidade
trans, apoio e acolhimento, banheiros neutros quanto a gênero e linguagem não-binária. Ao dis-
cutir esses tópicos, participantes de grupos públicos com perfil predominantemente de extrema
direita na rede social costumam utilizar palavras lidas como negativas, com prevalência de pos-
tagens antitrans. É o que mostra levantamento da Democracy Reporting International11 e do Pro-
grama de Diversidade e Inclusão da FGV Direito Rio12.

9 https://brunabenevidex.medium.com/a-autodeclara%C3%A7%C3%A3o-de-g%C3%AAnero-de-mulheres-trans-
exp%C3%B5e-mulheres-cis-a-predadores-sexuais-11b27e1ff85e
10 https://midiademocracia.fgv.br/node/102
11 https://www.democracy-reporting.org/en/office/global/publications/strengthening-brazilian-democracy-the-media-
and-democracy-project
12 Idem item 10.

13
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

As pautas antigênero e a transfobia têm sido convertidas em agendas prioritárias da


extrema direita. E isso pode ser facilmente identificado por qualquer pessoa que acompanhe
a geopolítica, a política nacional e suas figuras. Mesmo usuários comuns das redes sociais, em
algum momento, irão se deparar com a violência transexcludente massivamente compartilhada
e amplificada por esses agentes e alavancadas por perfis não identificados, falsos e o uso de
bots.

Os argumentos utilizados pelas redes antitrans frequentemente carecem de fundamento


pautado na realidade e são facilmente refutados por especialistas, pesquisadores e pela
ciência13. Temos observado –com horror, mas não com surpresa –como um frenesi de ações anti-
trans tomou conta do mundo no mesmo período de ascensão da extrema direita a nível global,
com o fortalecimento de figuras como Rishi Sunak14, Trump, Putin, Bolsonaro e outros.

Além da extrema direita, este ecossistema que organiza a (i)lógica antitrans (ANTRA, 2023)
tem mobilizado e feito pactuações com grupos, como fundamentalistas religiosos e outros
grupos essencialistas de gênero, e tem se debruçado em levantes contrários aos direitos trans,
com impactos deletérios na vida material e real das pessoas trans, nos quais o debate público
sobre pessoas trans tem sido pautado a partir de uma perspectiva violenta, transfóbica, cis-
sexista e transexcludente por parte desses grupos.

Existem muitas motivações por trás dessas medidas cruéis e discriminatórias, mas existe
um padrão consistente na forma como estão sendo promovidas. Em cada caso, os defensores da
agenda antitrans — não apenas ativistas políticos, figuras públicas, fundamentalistas religiosos
apegados à "ideologia de gênero" e políticos de extrema direita, mas também pesquisadores
acadêmicos, médicos, cientistas e jornalistas — estão atuando de forma a distorcer a realidade
e as ciências, com a inclusão de pseudoteorias como, por exemplo, a de uma suposta "disforia
de início rápido ou por contágio social15” ou que “mulheres lésbicas cis estariam sendo pressio-
nadas a fazer sexo com mulheres trans16”, para fazer avançar a sua ideologia política.

Outrossim, para fazer avançar a sua agenda política, grupos anti-trans exploram vários
tipos de produção de "fake news", pânico e desinformação. E isso envolve: i) simplificar excessi-
vamente o conhecimento científico para se adequar aos valores políticos, ii) fabricar e interpretar
mal a ciência ou pesquisas, ao mesmo tempo que desvia críticas válidas como tendo motivação
política; iii) uso de falsas equivalências para deturpar os cuidados de saúde que afirmam o gênero

13 https://www.instagram.com/reel/CyEuk-qsfZ_/
14 https://www.em.com.br/app/noticia/diversidade/2023/10/05/noticia-diversidade,1572144/primeiro-ministro-do-
reino-unido-e-aplaudido-por-discurso-anti-trans.shtml
15 Pseudoteorias de ‘disforia de gênero de início rápido’ e ‘contágio social’ são (novamente) refutadas por especialistas.
https://brunabenevidex.medium.com/pseudoteorias-de-disforia-de-g%C3%AAnero-de-in%C3%ADcio-r%C3%A1pido-e-
cont%C3%A1gio-social-s%C3%A3o-novamente-7f820a24fa7f
16 https://brunabenevidex.medium.com/l%C3%A9sbicas-cis-estariam-sendo-pressionadas-a-fazer-sexo-com-mulheres-
trans-ee4a0edcd9b8

14
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

como não científicos. Por exemplo, muitos defensores anti-trans distorcem a terminologia
médica técnica17, invocando comparações incorretas ou dados distorcidos para incutir medo de
medicamentos “não testados”18, apesar de décadas de investigação que apoiam a segurança19, a
eficácia20 e melhoria contínua dos tratamentos21.

Todas essas ações têm em comum a distorção e a fabricação de dados e pesquisas sus-
peitas para parecerem legítimas. Por exemplo, tentam justificar muitas dessas políticas com a
falsa crença de que uma “nova doença” intitulada de epidemia trans (sic)22 estaria a “fazer com
que os jovens se tornem trans”(sic). Ou a existência de uma suposta vantagem de atletas trans
em relação às atletas cis, mesmo sem comprovação científica23. Um outro exemplo disso é que,
no Reino Unido, tenta-se afirmar que espaços "unissex" colocam mulheres em risco24.

Existem ainda projetos de lei e leis antitrans que pretendem criminalizar os cuidados de
afirmação de gênero: ações de cuidado, transição social, intervenções sociais, psicológicas,
comportamentais e médicas que ajudam trazer conforto para que as pessoas possam vivenciar
e expressar sua identidade de gênero, caso tenham esse desejo.

Muitos dos projetos de lei antitrans apresentados tentam proibir o acesso a espaços segre-
gados por gênero e definir o "sexo" como um binário estrito e imutável, consagrando ideias pseu-
docientíficas. Ou visam proibir o uso de linguagem neutra. Outras ações seguem o mesmo pen-
samento, como a “CPI da crianças trans”25, na Assembleia Legislativa de São Paulo (ALESP), e
tentam criminalizar os cuidados de saúde, incluem argumentos anticientíficos e se mobilizam
para perseguir famílias acolhedoras. Há ainda muitos projetos para proibir a participação de pes-
soas trans nos esportes ou limitar o acesso ao genital26 – chamado de "sexo biológico" –, e muitos
buscam impedir que pessoas trans utilizem o banheiro27 de acordo com sua identidade de gênero.

Importante dizer que quase a totalidade desses projetos tem sido considerados inconsti-
tucionais, e mesmo assim, seguem sendo apresentados, aprovados e defendidos no sentido de

17 https://medicine.yale.edu/lgbtqi/research/gender-affirming-care/florida-medicaid/
18 7 Mitos sobre cuidados em saúde para jovens trans. https://revistahibrida.com.br/saude/7-mitos-sobre-cuidados-
em-saude-para-jovens-trans/
19 https://jamanetwork.com/journals/jamanetworkopen/fullarticle/2809058
20 https://www.columbiapsychiatry.org/news/gender-affirming-care-saves-lives
21 https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S2451902222001732?via%3Dihub
22 https://revistacult.uol.com.br/home/dossie-apresentacao/
23 https://revistahibrida.com.br/esportes/mulher-trans-esporte-estudo/
24 https://medium.com/@lmccarthy395/do-trans-inclusive-changing-rooms-put-women-in-danger-967a4d475d34
25 https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2023/05/26/alesp-abre-cpi-para-investigar-utilizacao-de-
hormonios-em-criancas-e-adolescentes-trans-pelo-hospital-das-clinicas.ghtml
26 https://ge.globo.com/rr/noticia/2023/08/10/lei-que-proibe-atletas-trans-de-competirem-em-categoria-
oposta-ao-sexo-biologico-entra-em-vigor-associacao-ve-transfobia.ghtml
27 https://www.conjur.com.br/2019-out-29/lei-veta-uso-banheiro-pessoas-trans-inconstitucional/

15
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

testar os limites da liberdade de opressão e serem usados como palanque eleitoral. Todas essas
táticas vêm diretamente do mesmo manual usado anteriormente para defender o racismo cientí-
fico, o sexismo, a LGBTIfobia e o capacitismo. No passado, e ainda hoje, cada movimento de ódio
explorou ilusões de objetividade científica para dar legitimidade à sua causa e/ou para manter
o status quo do grupo dominante. Nesse caso, o verdadeiro objetivo é bem nítido: usar a desinfor-
mação científica para justificar a erradicação das pessoas trans e não binárias da vida pública.

Os defensores antitrans usam essa linha de ataque, reembalando ideias antigas em pes-
quisas falsas , com conclusões precipitadas, ou de forma que não seja possível checar a fonte,
ou ainda vinda de fontes ligadas a grupos antitrans. Eles então descartam e condenam28 qual-
quer resistência, retratando a crítica científica ou avanço nos direitos trans como um “ativismo
ideológico que foi longe demais”.

As narrativas antitrans dependem sobretudo do mito do essencialismo sexual ou de


gênero. O essencialismo, neste caso, é a crença de que qualquer indivíduo pode ser adequada-
mente definido por alguns traços físicos e imutáveis: o que seria "sua essência". Os defensores
antitrans insistem que essas leis refletem apenas um suposto consenso científico – mesmo
sabendo que tal consenso não existe29, no entanto. Tais defensores, portanto, não buscam pre-
cisão científica e estão a mascarar a sua ideologia política como ciência para consagrar as suas
crenças excludentes na lei.

Na vida cotidiana, o essencialismo sexual e de gênero prejudica a todas as pessoas. Qual-


quer pessoa fora das normas de "sexo" e de gênero pode ser sujeita à investigação intrusiva e à
patrulha de gênero. Atletas meninas são desclassificadas30 ou assediadas31 por terem cabelos
curtos, ou podem ser investigadas32 simplesmente por vencerem a competição. O essencialismo
sexual e de gênero é cientificamente infundado, e moldar políticas públicas com base em afir-
mações pseudocientíficas de que “o sexo é binário” é irracional, impraticável e equivocado. No
decorrer deste dossiê, traremos um olhar aprofundado sobre o impacto e as violências impri-
midas pela patrulha de gênero antitrans na vida cotidiana de mulheres cisgêneras. E preten-
demos compreender as formas como as alegações enganosas podem ser codificadas nas polí-
ticas públicas é fundamental para proteger as pessoas trans e não binárias, e enfrentar essa
narrativa de forma efetiva.

Além disso, as ações antitrans têm promovido o assassinato social de pessoas trans, que
permanece sendo um grande desafio, e a realidade de uma parcela significativa da população
trans e não-binária, sobretudo negra, periférica e atinge todos os ciclos de vida. Mesmo diante

28 https://unherd.com/2023/05/why-is-my-gender-research-being-cancelled/
29 https://www.science.org/doi/10.1126/science.abo1102
30 https://www.nytimes.com/2017/06/06/sports/girl-soccer-player.html
31 https://www.newsweek.com/man-accuses-9-year-old-girl-transgender-1806369
32 https://www.theguardian.com/us-news/2022/aug/18/utah-school-investigates-student-transgender

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Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

de uma “visibilidade comercial” mais aparente e estruturada a partir da tokenização e limitada ao


trans-money33, vemos a completa invisibilização de uma maioria de pessoas trans, que segue em
situação de extrema vulnerabilidade, sem conseguir acessar os direitos alcançados ou mesmo
direitos básicos.

Quando um indivíduo ocasiona danos físicos a outro, resultando em morte, chamamos o ato
de homicídio culposo; quando o agressor sabe de antemão que o ferimento será fatal, cha-
mamos de assassinato. Mas quando a sociedade coloca centenas de proletários em tal posição
de modo que eles inevitavelmente se deparem com uma morte muito precoce e não natural,
uma morte que é tão violenta quanto aquela ocasionada por uma espada ou bala; quando priva
milhares do essencial para a vida, coloca-os em condições em que não podem viver — obriga-os,
através do forte poder da lei, a permanecer em tais condições até que a morte vença, feito con-
sequência inevitável — ou seja, quando ela sabe que esses milhares de vítimas vão perecer e,
ainda assim, permite que permaneçam nessas condições, então sua intenção é a de assassinar,
assim como quando um indivíduo sozinho comete assassinato; mas torna-se um homicídio dis-
farçado, malicioso, um homicídio contra o qual ninguém se pode defender, que não parece o que
é, porque ninguém vê o assassino, porque a morte da vítima parece natural, pois o crime é mais
por omissão do que por cometimento. Mas não deixa de ser assassinato”. — Friedrich Engels, “A
Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra"34.

O contexto apresentado é muitíssimo preocupante, pois tem-se percebido que, proporcional-


mente, junto ao avanço da agenda antitrans a nível global, figuras antitrans no Brasil têm se
destacado como os que mais têm atacado as vidas e os direitos das pessoas trans na esfera
pública, partindo muitas vezes do ambiente virtual, no qual o gerenciamento das redes
sociais tem sido completamente omisso e permitido o compartilhamento desse tipo de con-
teúdo explicitamente transfóbico. O discurso de ódio de hoje é o assassinato de amanhã. E
esse fenômeno acaba por se materializar em violências reais no dia a dia das pessoas trans,
e que tem mantido o Brasil, como o país que mais assassina pessoas trans do mundo pelo 15º
ano consecutivo em 202335. A própria segurança pública tem falhado, miseravelmente, em
não ter dados ou ações específicas para o enfrentamento da transfobia.

Dentre tantas contradições em nosso país, podemos dizer que, enquanto o Brasil, nos últimos
anos, conseguiu avançar na garantia de alguns direitos LGBTQIA+, que vieram, não através de
políticas públicas, mas por condenações ao Estado brasileiro pelo Supremo Tribunal Federal
(STF). Por outro lado, além de não serem acessíveis a toda a diversidade trans, consideran-
do-se o acúmulo de marcadores sociais de exclusão, como o racismo, temos observado uma
piora na situação socioeconômica de uma parcela da população trans e travesti.

33 Neologismo que pretende atualizar o uso do termo “pink-money” – usada para falar de gays, em uma perspectiva
de pessoas trans.
34 https://www.gepec.ufscar.br/publicacoes/livros-e-colecoes/marx-e-engels/a-situacao-da-classe-trabalhadora-
em-inglaterra.pdf
35 Brasil: 15 anos no topo do genocídio trans. https://catarinas.info/brasil-15-anos-do-topo-do-genocidio-trans/

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Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

Houve também um apagão de políticas públicas para LGBTQIA+ nos estados36. De acordo
com matéria publicada pela agência Brasil, “o combate à discriminação contra a população
LGBTI+ esbarra na falta de comprometimento dos governos locais”. A matéria informa que, “
das 27 unidades da Federação, 19 não têm um plano ou programa específico para a população
LGBTI+”. Segundo o levantamento, “ 16 governos estaduais registraram nota mínima 1 em um
dos seguintes quesitos: órgão gestor de política LGBTI+, conselho estadual com representantes
da categoria e plano/programa específico ”. E “em alguns estados, aponta a pesquisa, não existe
estrutura para o atendimento da população”.

1.1. Principais casos de transfobia no Brasil em 2023


É muitíssimo curioso observar que dois dos principais casos de transfobia com impactos
diretos na vida na população trans e travesti do Brasil, e que chamaram atenção na esfera
pública, ocorridos no país em 202337, venham respectivamente da extrema direita e do atual
governo. O de maior destaque foi o caso de um deputado federal, com diversas denúncias38 e
condenações39 por transfobia, que atacou diretamente mulheres trans e travestis em sessão no
plenário da câmara federal no dia internacional das mulheres, utilizando do expediente público
para zombar da população trans. E o outro “destaque transfóbico” foi a publicação do Decreto
nº 11.797 de 27 de novembro de 2023 sobre o Novo RG40 , em que o governo decidiu voltar atrás
e manter os campos “sexo” – que nunca constou no documento de identidade –, e “nome de
registro” e “nome social” no mesmo documento.

Anteriormente, havia sido anunciado pelo Governo, através do Ministério da Gestão e ino-
vação (MGI) que seria criado um Grupo de trabalho técnico para discutir a questão41 e em seguida,
foi informado que “não haverá distinção entre o nome social e de registro, ou o campo sexo”42. De
acordo com o publicado no portal G143, “o modelo transfóbico que havia sido imposto no governo
Bolsonaro com a inclusão de sexo e distinção do nome social recebeu críticas do Ministério Público
Federal (MPF). A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do órgão havia alegado que o novo
modelo de RG, ao trazer critérios sobre sexo e nome social, pode ser inconstitucional. Para o órgão,

36 Pesquisa revela apagão de políticas públicas LGBTI+ em estados. https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-


humanos/noticia/2023-03/pesquisa-revela-apagao-de-politicas-publicas-lgbti-em-estados
37 23 casos de transfobia que marcaram o país em 2023. https://www.instagram.com/p/C1cUhdGMZ0C/?img_index=1
38 https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2023/09/21/nikolas-ferreira-do-pl-se-torna-reu-na-justica-de-mg-
por-transfobia.ghtml
39 https://www.cnnbrasil.com.br/politica/nikolas-ferreira-e-condenado-por-transfobia-contra-deputada-duda-salabert/
40 https://ohoje.com/noticia/geral-brasil/n/1551709/t/governo-decide-manter-estrutura-transfobica-no-novo-rg/
41 https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/04/10/governo-cria-grupo-para-debater-mudancas-nos-campos-nome-
social-e-sexo-da-nova-carteira-de-identidade.ghtml
42 https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/05/19/nova-carteira-de-identidade-nao-tera-campo-sexo-nem-distincao-
entre-nome-e-nome-social-diz-governo.ghtml
43 Idem item 42.

18
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

“a utilização do nome de registro antes do nome social configura flagrante violação do direito à
autoidentificação da pessoa trans e abre perigoso precedente para a exposição vexatória de um
nome que não representa a pessoa que se deseja identificar".

A mudança no RG havia sido realizada inicialmente pelo governo bolsonaro e enfrentava


críticas desde sua publicação. Ainda em 2022, a Associação Nacional de Travestis e Transexuais
(ANTRA) e a Associação brasileira de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e inter-
sexo (ABGLT), moveram uma Ação Civil Pública44 pedindo a suspensão do RG transfóbico.

Para além desses episódios, o Brasil ainda testemunhou uma série alarmante de casos de
transfobia – além dos assassinatos que serão detalhados nesta pesquisa, que evidenciaram a
persistência de violências e discriminações contra a comunidade trans. – Um deputado, em par-
ticular, divulgou um vídeo em que expôs uma adolescente trans de 16 anos45, rotulando-a de
"potencial estuprador" (SIC) simplesmente por ela utilizar o banheiro feminino, revelando uma
atitude explícita de desrespeito e transfobia – O parlamentar está sendo invetigado por isso.

Seguindo a onda de ataques e violência política de gênero, parlamentares trans enfrentam


um cenário hostil durante o exercício de seus mandatos, sofrendo ameaças constantes, inclusive
às suas vidas e às de suas famílias, e ataques que desqualificam suas identidades de gênero, sem
que houvesse respostas à altura para conter tais agressões. Essa realidade indicou a urgência
de medidas efetivas para proteger a integridade e dignidade dessas figuras públicas.

Surpreendentemente, a relatora da ONU para violência contra meninas e mulheres (cis)


adotou publicamente uma postura contrária aos direitos trans46 –alinhando-se a grupos antitrans
- e vem sendo criticada na esfera internacional. Esse posicionamento gerou debates intensos
sobre o papel das instituições internacionais47 na defesa dos direitos humanos e na promoção
da igualdade de gênero. O próprio Conselho Nacional pelos direitos da população LGBTQIA+
publicou nota48 sobre o caso. De acordo com a coluna do jornalista Jamil Chade publicada no
portal UOL, “com suas ideias sobre gênero e sexo acolhidas pelo governo de Jair Bolsonaro, sua
intenção era a de visitar o Brasil ainda em 2022”49, mas a relatora teve a visita adiada.

A educação também foi palco de reiterados ataques, com estudantes trans sendo vítimas

44 https://www.em.com.br/app/noticia/diversidade/2022/10/28/noticia-diversidade,1413499/acao-civil-pede-suspensao-
da-emissao-da-carteira-de-identidade-nacional.shtml
45 https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2023/11/20/nikolas-ferreira.htm
46 https://www.awid.org/news-and-analysis/nao-ha-lugar-para-agendas-anti-trans-na-onu
47 https://www.terra.com.br/nos/opiniao/antra/a-perigosa-agenda-antitrans-e-sua-instrumentalizacao-por-organismos-
de-direitos-humanos,83577675d96fddb184b994a0082e9fda81g3efgf.html
48 https://www.gov.br/participamaisbrasil/nota-sobre-o-posicionamento-da-relatora-da-on
49 https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2023/10/04/governo-adia-visita-de-relatora-da-onu-sobre-mulher-
acertada-por-bolsonaro.htm

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Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

de violência em escolas50 e universidades51 por todo o país. Esse cenário preocupante destacou a
necessidade de medidas educativas e políticas para garantir um ambiente seguro para todos os
estudantes, independentemente de sua identidade de gênero e com a adoção de medidas que
garantam o livre exercício do direito à autodeterminação de gênero já garantida no país desde
2018 após o julgamento da ADI 4275 pelo STF.

Além disso, a violência nos transportes emergiu como um fator significativo que afasta
a comunidade trans do convívio social, conforme apontado em uma matéria do Correio Brazi-
liense52. Essa realidade ressalta a importância de abordar as questões de segurança e inclusão
nos espaços públicos para garantir a plena participação e mobilidade da comunidade trans.

A plataforma X (antigo Twitter) também esteve no centro das discussões. A ANTRA enviou
representação ao Ministério Público Federal (MPF) com informações sobre a alteração da Polí-
tica de Discurso Violento da referida plataforma e denunciou a retirada do "enquadramento
intencional com o gênero errado ou o uso do nome de nascimento de indivíduos transgênero”
(deadnaming e misgendering) como discurso de ódio na plataforma. Na prática, a rede social
passou a permitir agressões a pessoas transgênero53. A mudança suscitou críticas sobre a res-
ponsabilidade das redes sociais na promoção de um ambiente virtual seguro para pessoas trans
e a necessidade da implementação de medidas eficazes para enfrentar o discurso de ódio trans-
fóbico. Após representação enviada pela ANTRA, o Ministério Público Federal (MPF) moveu uma
ação sobre o caso, e a justiça determinou a plataforma X que “restabeleça medidas de combate
à transfobia”54.

Após anos de omissão, frente a necessidade de inclusão de dados e informações sobre


a população LGBTQIA+ no censo, a situação agravou-se com o anúncio do Instituto Brasileiro
de Geografia e (IBGE), que decidiu incluir parâmetros considerados transfóbicos e intersexofó-
bicos em uma pesquisa experimental anunciada pelo órgão55. Embora tenha sido recebida como
um avanço, entidades apontam56 que o modelo escolhido fere a ética e o compromisso com um
levantamento de dados efetivo sobre a população trans. Tal decisão ressalta a importância de
garantir que instituições governamentais incluam e promovam a diversidade de identidades de

50 https://g1.globo.com/sp/mogi-das-cruzes-suzano/noticia/2022/02/10/aluna-trans-agredida-em-mogi-das-cruzes-
diz-que-nao-quer-voltar-para-a-escola-nunca-mais.ghtml
51 https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/11/alunas-de-medicina-da-usp-denunciam-professor-por-transfobia-
em-ribeirao-preto.shtml
52 https://www.correiobraziliense.com.br/cidades-df/2023/07/5110999-violencia-nos-transportes-afasta-comunidade-
trans-do-convivio-social.html
53 https://www.mpf.mp.br/ac/sala-de-imprensa/noticias-ac/mpf-quer-explicacoes-da-plataforma-twitter-sobre-mudanca-
em-politica-que-visava-proteger-pessoas-trans-de-discurso-de-odio
54 https://www.mpf.mp.br/ac/sala-de-imprensa/noticias-ac/a-pedido-do-mpf-justica-determina-que-plataforma-x-
2013-antigo-twitter-2013-restabeleca-medidas-de-combate-a-transfobia
55 https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2023/10/27/censo-nao-tem-dados-sobre-identidade-de-genero.ghtml
56 https://www.votelgbt.org/destaques/ibge-olha-pra-gente

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Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

gênero em seus levantamentos estatísticos, considerando os esforços da sociedade civil que


tem se empenhado na busca pela inclusão dessas informações há alguns anos.

Destacamos também os ataques à Resolução Nº 02/202357 do Conselho Nacional pelos


direitos da população LGBTQIA+ (CNLGBTQIA+) sobre acesso e permanência de pessoas trans
nas instituições de ensino, que enfrentou ações que pretendem sua derrubada e gerou uma
sabatina ao Ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, Silvio Almeida, sobre a mesma. Esse epi-
sódio destaca os desafios contínuos enfrentados pela comunidade trans na busca pelo acesso e
permanência em todos os níveis da educação, ressaltando a necessidade de esforços coletivos
para combater a transfobia e assegurar o direito à livre expressão de identidade de gênero.

Ademais, neste momento discute-se a necessidade de regulamentação das redes sociais


e o enfrentamento da disseminação de ódio e discriminação nas plataformas. Considerando o
impacto desse tipo de conteúdo para além do ambiente virtual, chamamos atenção para o fato
de que o Ministério das Mulheres sofreu um ataque coordenado por grupos de ódio antitrans
em um post do instagram que menciona a visita de ativistas da ANTRA58 e após esse episódio os
ataques passaram a acontecer cistematicamente (ANTRA, 2021)59.

Analisando de forma mais aprofundada a página do Ministério das mulheres, a referida


publicação é, de longe, aquela que mais teve interações diretas e que obteve o maior engaja-
mento em toda página do ministério no instagram. Como é sabido, nada mobiliza mais as redes
do que o ódio. Infelizmente não temos informações sobre ações que possam ter sido tomadas
em relação a esse fato, considerando que transfobia60 e injúria transfóbica61 são crimes no Brasil.
Os ataques continuam acontecendo, em menor escala, mas ainda estão lá.

Nesse caso específico, chamou atenção o fato de que não foram (nem tem sido) as redes
de ódio da base bolsonarista ou outros grupos e perfis que geralmente disseminam transfobia
na rede social ligados à extrema direita e a fundamentalistas religiosos. Dessa vez, os ataques
vieram majoritariamente de perfis ligados a (cis)ativistas, grupos e coletivos que defendem a
infância e maternidade cisgêneras, pessoas organizadas em vertentes feministas reconhecida-

57 https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/09/22/resolucao-do-governo-federal-propoe-diretrizes-para-adocao-
de-nome-social-em-escolas.ghtml
58 Post do Ministérios das Mulheres sofre ataques transfóbicos. TW: Recomendamos cautela ao acessar o link devido
a violência disseminada nos comentários, que podem gerar sentimentos negativos e ansiedade devido a transfobia
contida nos mesmos. https://www.instagram.com/p/Cn48I8yO7G0/?img_index=1
59 Dossiê ANTRA 2021, pág. 26. https://antrabrasil.files.wordpress.com/2021/01/dossie-trans-2021-29jan2021.pdf
60 STF enquadra homofobia e transfobia como crimes de racismo ao reconhecer omissão legislativa. https://portal.
stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=414010
61 STF estende entendimento de crime de injúria racial à transfobia. A corte formou maioria ao analisar os embargos
de declaração opostos pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos
(ABGLT) à aplicação do acórdão que equiparou a homotransfobia aos crimes de racismo e injúria racial. https://www.
conjur.com.br/2023-ago-21/stf-estende-entendimento-crime-injuria-racial-transfobia/

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Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

mente transfóbicas62, que se autodeclaram como sendo de esquerda, e como parte do campo
“progressista”, e outros perfis de mulheres cisgêneras, em sua maioria brancas de classe média,
com acesso à educação e à formação acadêmica ligadas ao feminismo radical (cissexista) que
elegeram pessoas trans, mais especificamente travestis e mulheres trans como inimigas de
meninas e mulheres cisgêneras, e que tem monitorado os perfis e posts do ministério e da pró-
pria ministra, promovendo assédio constante aos mesmos, pelo fato de o ministério está aberto
a garantir a defesa da cidadania de todas as mulheres considerando a diversidade racial, sexual,
corporal e de gênero. E esse fato merece atenção, visto que muitas dessas pessoas agem como
“infiltradas” no “campo progressista” mantendo diálogo com a extrema direita, trocando infor-
mações, reforçando argumentos e prestando assessoria, além de estarem recebendo financia-
mento, participando de audiências públicas e outras ações que ainda não conseguiram articular
seus ideais trans-excludentes de forma mais efetiva junto a partidos de esquerda, movimentos
sociais populares e outros grupos organizados no campo ligado ao pensamento progressista
trans-inclusivo.

E, por fim, enquanto grupos fundamentalistas se organizavam para atacar o Supremo Tri-
bunal Federal (STF), como parte do que já vinha sendo feito e incentivado pelo ex-presidente
inelegível, esses mesmos agentes mobilizaram uma ação coordenada para tentar enfraquecer
o direito ao casamento homoafetivo, o que gerou grande comoção a nível nacional e revelou vio-
lências gravíssimas contra as Deputadas Duda Salabert e Erika Hilton, que tem sido vítimas de
violência política, de gênero e transfobia dentro da Câmara Federal.

Diante do episódio sobre o casamento homoafetivo e em meio às acusações de que “pes-


soas LGBTQIA+ estariam agindo de alguma forma para destruir a família”, entre 2013 e 2021,
nenhum casamento entre pessoas do mesmo sexo/gênero teve cônjuges com menos de 15
anos63, enquanto, no mesmo período, casais cisheteroafetivos (homens e mulheres cisgêneros
e heterossexuais) registraram 1.988 casamentos de meninas e 158 de meninos menores de 15
anos. Os dados são do Observatório Nacional dos Direitos Humanos (ObservaDH), do Ministério
dos Direitos Humanos e da Cidadania64. Registre-se: A ANTRA rechaça veementemente a exis-
tência de “casamentos infantis”, uma triste realidade que precisa ser enfrentada no país65, na
região e no mundo.

Consideramos ainda que, as discussões, fóruns de debates e ações sobre a necessidade


urgente de enfrentamento aos discursos de ódio e de regulação das redes sociais tem falhado

62 Mulheres cisgêneras autodeclaradas feministas radicais transexcludentes são uma minoria dentro dos feminismos
e ao longo dos últimos anos tem sido mapeadas alianças com a extrema direita e outros grupos conservadores, que
irão divergir entre si em questões como o aborto, por exemplo. https://www.vox.com/identities/2019/9/5/20840101/
terfs-radical-feminists-gender-critical
63 No Brasil, é permitido casar a partir dos 16 anos, desde que autorizado pelos pais ou responsáveis.
64 https://www.metropoles.com/brasil/em-9-anos-casamentos-homoafetivos-nunca-envolveram-menores-de-15-anos
65 https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2023/04/5090333-casamento-infantil-22-milhoes-de-adolescentes-
brasileiras-sao-casadas.html

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Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

miseravelmente em ignorar o uso das redes sociais como um “playground da transfobia”66 e ao


não dar a devida atenção aos impactos da transfobia disseminada na internet na vida e na saúde
mental de pessoas trans fora do ambiente virtual.

1.2 Apesar de tudo, nem tudo está perdido.


Para mudar essa realidade é necessário colocar o enfrentamento da transfobia na centra-
lidade da atuação governamental junto a outras agendas importantes que já vem sendo conso-
lidadas. E na intenção de alcançar esse objetivo, logo no início do ano, uma comitiva da ANTRA
esteve em Brasília, para o lançamento do Dossiê de assassinatos e violências contra travestis
e transexuais brasileiras em 202267, cujo lançamento foi realizado pela primeira vez diante de
Ministros de Estado e dentro da estrutura de governo, no auditório do Ministério dos Direitos
Humanos e Cidadania, com a presença do Ministro Silvio Almeida e da Ministra da Igualdade
Racial, Anielle Franco, além de outras autoridades, representantes da sociedade civil, mídia,
imprensa e estudiosos do tema.

Na ocasião, durante a visita em Brasília, também foram feitas reuniões com a Ministra das
Mulheres, Cida Gonçalves e o Ministro Paulo Pimenta, da Secretaria de Comunicação Social,
além de outras secretarias do governo recém eleito, no sentido de apresentar a situação geral
da população trans e encaminhar propostas na busca por dignidade, cidadania e direitos. Nesse
viés, ao longo do ano foram feitas outras reuniões e diálogos importantes que têm proporcio-
nado a possibilidade de construção de políticas que atendam as necessidades da população,
mesmo em meio aos recuos e ataques que têm sido direcionados ao Governo Federal.

No cenário das conquistas que irão impactar a realidade das pessoas trans, destacam-se
iniciativas significativas impulsionadas pelo posicionamento, articulação e cobranças dos movi-
mentos trans no Brasil e que foram organizadas em uma ReTranspectiva pela ANTRA. A seguir
traremos alguns pontos de destaque em relação à atuação direta do Governo Federal, alguns
ainda em andamento ou em fase de implementação:

1. Recriação do Conselho Nacional pelos direitos da população LGBTQIA+, com a


participação de diversas entidades representativas de pessoas trans e travestis com
vasto reconhecimento público;
2. O Ministério da Saúde assumiu um papel proativo ao lançar um Grupo de Trabalho
(GT) com o objetivo de revisar e atualizar a política de saúde TransEspecífica (Processo

66 Dossiê ANTRA 2023, pág 84. https://antrabrasil.files.wordpress.com/2023/01/dossieantra2023.pdf


67 Lançamento do Dossiê ANTRA 2023. https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2023/janeiro/131-pessoas-
trans-perderam-a-vida-em-2022-no-brasil-aponta-dossie#:~:text=O%20%E2%80%9CDossi%C3%AA%3A%20
Assassinatos%20e%20viol%C3%AAncias,das%20Na%C3%A7%C3%B5es%20Unidas%20(UNFPA)

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Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

transexualizador)68 no Sistema Único de Saúde (SUS);


3. A ANTRA passou a compor o Conselho de Desenvolvimento Econômico Social
Sustentável (CDESS)69, proporcionando uma representatividade essencial para a
comunidade trans em instâncias decisórias – sendo a única instituição trans membra
(sic) e representada por sua presidenta Keila Simpson;
4. A possibilidade de retificação de documentos nos consulados brasileiros para pessoas
trans brasileiras que vivem no exterior70 representa um avanço significativo na garantia
de direitos individuais, proporcionando autonomia e reconhecimento legal. Corrigindo
uma falha que havia sido mantida quando este direito foi garantido às pessoas trans;
5. A adesão da ANTRA à iniciativa "Brasil sem Misoginia", lançada pelo Ministério das
Mulheres em Brasília, destaca a importância da união entre diferentes movimentos
sociais na luta contra as violências de gênero e o enfrentamento da misoginia;
6. A participação ativa de pessoas trans em conferências municipais, estaduais e nacionais
(saúde, juventude e outras), nas quais diversas propostas relevantes para os direitos
trans foram aprovadas, a despeito da transfobia enfrentada; e
7. O Governo anunciou a criação da estratégia nacional de enfrentamento da violência
contra pessoas LGBTQIA+71; e
8. Criação do Grupo de Trabalho que irá documentar as violências históricas contra a
população LGBTQIA72+.

Assim, embora tenha havido diversos avanços para mulheres, sobretudo em relação às
vítimas de violência de gênero, não há a certeza de que esses direitos estão assegurados às
travestis e mulheres trans, como ocorrido com a Lei Maria da Penha, situação na qual o Supe-
rior Tribunal de Justiça (STJ) precisou ser acionado para garantir proteção às mulheres trans73,
atestar que mulheres trans não podem consideradas como mulheres de segunda categoria e
que o estado não deve criar hierarquias entre pessoas cis e trans, assegurando tratamento iso-
nômico a todas as pessoas sem qualquer tipo de discriminação.

Ações como o programa de distribuição de absorventes pelo Sistema Único de saúde (SUS)74

68 https://www.mpf.mp.br/ac/sala-de-imprensa/noticias-ac/mpf-participa-do-lancamento-da-revisao-do-atual-processo-
transexualizador-oferecido-pelo-sus#:~:text=Em%20agosto%20de%202008%2C%20ap%C3%B3s,de%20
profissionais%20de%20diversas%20%C3%A1reas
69 https://www.gov.br/sri/pt-br/cdess
70 https://tvbrasil.ebc.com.br/reporter-brasil/2023/11/pessoas-trans-brasileiras-no-exterior-poderao-retificar-documentos
71 https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2023/dezembro/mdhc-institui-estrategia-nacional-de-enfrentamento-
a-violencia-contra-pessoas-lgbtqia
72 https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2023-06/gt-ira-documentar-violencias-historicas-contra-
lgbtqia
73 https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/05042022-Lei-Maria-da-Penha-e-aplicavel-
a-violencia-contra-mulher-trans--decide-Sexta-Turma.aspx
74 https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2023-03/governo-lanca-programa-de-distribuicao-gratuita-
de-absorvente-pelo-sus

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Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

para enfrentar a pobreza menstrual não considerou, além de mulheres e meninas cisgêneras,
outras pessoas que tem útero e menstruam, como homens trans, pessoas transmasculinas e não
binárias, deixando um vácuo para a dignidade menstrual dessas pessoas diante da necessidade
de uma política que considere as necessidades de todas as pessoas que menstruam.

No mesmo sentido, foram anunciadas políticas de bolsas de estudo para mulheres negras,
quilombolas, indígenas e ciganas75, mas permanece a dúvida se mulheres trans e travestis
seriam beneficiadas. Embora saibamos que o Ministério da Igualdade Racial considera a diversi-
dade de gênero em suas ações, a ausência da menção expressa de que mulheres trans negras
poderiam concorrer, acabam afastando ou desestimulando pessoas trans negras de acessarem
a esses e outros direitos. O mesmo ocorreu quando foi discutida a atualização e ampliação da
Lei de cotas raciais76 ou a nova política de concursos públicos unificada77, contextos em que não
foram incluídas a garantia de cotas e reservas de vagas pessoas trans, e que são uma demanda
urgente para a garantia do acesso à educação e aos concursos para nossa população.

Diante desse vasto e complexo cenário, acreditamos que ações que viabilizem a partici-
pação e incluam efetivamente as pessoas trans, com menção expressa dessa parcela da popu-
lação, é dever do Estado brasileiro, do Governo Federal, dos estados e municípios, além do con-
junto da sociedade, trilhar o caminho oposto ao que foi traçado pelo bolsonarismo e romper com
práticas violentas da extrema direita, especialmente em relação à transfobia, e assumir a defesa
pública dos direitos trans.

É preciso assumir que, para conseguir parar a violência e avançar em cidadania, é impera-
tivo romper com o constrangimento de se falar sobre a existência de pessoas trans, de jovens
trans, de crianças trans, de idosos trans. E enquanto isso não ocorrer, a luta trans seguirá rele-
gada à busca por direitos fundamentais básicos, como o direito ao nome, a sair na rua sem medo,
de se qualificar para o mercado de trabalho, de usar o banheiro ou transitar pela cidade. Não
existe uma política educacional que garanta a permanência e o sucesso de estudantes trans
dentro de todas as unidades de ensino em todos os ciclos. É urgente a existência de uma segu-
rança pública antitransfobia, que gere não apenas dados, mas pense medidas preventivas para
enfrentar essa violência, mas também de reparação, de responsabilização, tendo em vista que
muitos casos ficam impunes.

Ademais, é imprescindível a promoção de discursos e ações que incluam e visibilizem a


diversidade de gênero, assim como a garantia de que as políticas públicas sejam acessíveis à
população trans desfazendo qualquer hierarquia entre pessoas cis e trans, além da necessi-

75 https://conaq.org.br/noticias/ministra-da-igualdade-racial-lanca-programa-de-bolsas-de-estudos-para-mulheres-
negras-quilombolas-indigenas-e-ciganas/
76 https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2023/11/14/sancionada-ampliacao-da-lei-de-cotas#:~:text=A%20
Lei%20de%20Cotas%20
77 https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2023-09/governo-publica-decreto-que-institui-o-concurso-publico-
unificado

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Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

dade de haver a necessidade de destinação de recursos específicos para a luta antitransfobia,


incluindo estratégias de formação periódica e continuada para agentes do estado em todos
os níveis e pastas sobre diversidade de gênero, mobilização de recursos técnico-profissionais,
materiais e financeiros, para um enfrentamento eficaz da violência contra a população trans.

Pessoas trans clamam para que o Brasil assuma um compromisso de enfrentar os altos
índices de genocídio dessa população, sobretudo contra a população trans negra que são 79,8%
das pessoas assassinadas (ANTRA, 202378), muitas das quais são jovens entre 13 e 29 anos,
conforme tem sido insistentemente apontado ao longo dos anos em que esta pesquisa passou
a ser realizada.

Mudamos o contexto, mas para as pessoas trans os desafios permanecem os mesmos. A


situação da grande maioria da população trans continua inalterada. Constantemente, às pessoas
trans tem sido negado o direito à vida, à liberdade, à felicidade, além de direitos civis, sociais,
econômicos e políticos. E isso precisa parar, imediatamente!

A presente análise sobre o contexto do ano de 2023 contribui para o entendimento do


cenário em que os assassinatos, violações de direitos humanos e violências contra pessoas trans
ocorreram. Tal panorama contribui para um olhar qualificado sobre as possíveis causas, con-
textos e situações diversas em que ocorrem os assassinatos.

Dessa forma, falaremos sobre os objetivos da pesquisa e sua metodologia, até que efeti-
vamente sejam apresentados os dados coletados e que constam nesta 7ª edição do Dossiê dos
Assassinatos e violências contra travestis e transexuais Brasileiras, com dados atualizados e
referentes ao ano de 2023.

78 Dossiê ANTRA, 2023, pág 43. https://antrabrasil.files.wordpress.com/2023/01/dossieantra2023.pdf

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2. A pesquisa
“Não acompanho essas mortes apenas pela denúncia, que já seria um feito, nem mesmo conto
apenas pela vida das travestis, mas pelas nossas vidas. Transformar os brutais assassinatos de
travestis como uma possibilidade de gritar por vida é parte de uma militância que não congela a
travesti morta em número, mas faz com que sua vida imploda o fascismo que a matou79”.

Realizada desde 2017 pela ANTRA, essa pesquisa jamais seria uma escolha. Publicar esse
dossiê anualmente é se deparar com uma das faces mais violentas da transfobia. E ao contrário
do que se pensa, não existe qualquer conforto ou prazer em trabalhar com assassinatos de pes-
soas trans e informações tão desanimadoras. No entanto, existe uma urgência de que essa dis-
cussão seja levantada e visibilizada. Especialmente, para que os diversos genocídios da popu-
lação trans não se confundam com outros tipos de mortes ou assassinatos, dos quais apenas as
pessoas trans têm sido alvo de uma violência específica, que tem sido direcionada por campa-
nhas de ódio às suas identidades de gênero, as quais têm sido o principal fator de risco para os
assassinatos (inclusive sociais), considerando sobretudo aquelas pessoas que tem expressão
de gênero não normativa em relação a sua imagem e estética, como veremos a seguir, quando
analisarmos os elementos comuns nos assassinatos e os ataques às mulheres cis não normativas
lidas como se fossem pessoas trans.

Não é uma tarefa simples realizar esse trabalho a cada ano e tentar trazer elementos novos
ou primar pelo seu contínuo aprimoramento, seja pelos altos investimentos pessoais, pela falta
de apoio ou pelos desafios encontrados em seu desenvolvimento, que serão listados quando
falarmos de sua metodologia em detalhes. Fato é que desejamos que um dia não precisemos
mais fazer esse trabalho hercúleo, que o estado reconheça existência dessas violências assu-
mindo o compromisso de gerar dados governamentais em todas as esferas, construir políticas
de prevenção, identificação de suspeitos, enfrentamento e responsabilização, além de ações
de memória e de reparação para as famílias das vítimas. E não apenas de modo reativo, por ter

79 MARTINS, Beatriz Adura. Assassinatos retirados de jornais: Para que contar as mortes de travestis? In: ANTRA.
Mapa dos assassinatos de Travestis e Transexuais no Brasil em 2017. Brasil, 2018. p. 32-44. https://antrabrasil.files.
wordpress.com/2018/02/relatc3b3rio-mapa-dos-assassinatos-2017-antra.pdf

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Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

que lidar com a violência explícita e os requintes de crueldade constantes nas matérias dos jor-
nais ou nos alertas dos mecanismos de busca que são recebidos diariamente, mas também pelo
impacto que esses acontecimentos causam à vida de todas as pessoas que trabalham nela.

Obviamente que seria muito mais fácil e seguro escrever sobre conquistas, ganhos e a pos-
sibilidade da existência de uma realidade diferente. Viver e ser trans em uma sociedade como a
que estamos inseridas (como analisado no capítulo anterior) nos permite dizer que o enfrenta-
mento da violência é – ou pelo menos deveria ser – a pauta mais urgente da comunidade trans e,
transversalmente à busca por direitos, é a que mais afasta pessoas trans e travestis do acesso
à cidadania. E enquanto não houver esforços direcionados por parte do Estado, as violências
seguirão presentes no dia a dia de todas as pessoas trans, de todas as classes sociais, raças
e etnias, faixas etárias, gêneros e outras formas de ser e existir. Resguardando-se as devidas
proporções em que determinados elementos colocarão alguns corpos em maior ou menor risco
que outros.

Qualquer pessoa que conheça minimamente a realidade da população Trans consegue, sem
muito esforço ou necessidade de qualificação técnica, reconhecer que os dados aqui apresen-
tados dialogam de forma direta com a realidade de vivências que travestis, mulheres transe-
xuais, homens trans, pessoas transmasculinas e não binárias que expressam e vivem aberta e
publicamente sua insubordinação à cisgeneridade está inserida. E mesmo se essa pesquisa não
fosse realizada, não mudaria a situação dessas pessoas ou apagaria a transfobia, as expulsões
do banheiro ou de casa, os desrespeitos ao nome social, os xingamentos, o assédio, a negação
da identidade de gênero e os assassinatos, sejam eles sociais ou de fato.

Negacionistas que são, alguns grupos e pessoas financiadas pela extrema direita – a mesma
que defendeu o uso de cloroquina – e também cisAtivistas80 autodeclaradas feministas radicais
ou não, têm tentado insistentemente deslegitimar a produção de dados feita pelos movimentos
sociais, não apenas os que são publicados pela ANTRA. E com isso, tais atores pretendem inva-
lidar essa produção de forma irresponsável e arbitrária. Temos visto muitas pessoas serem
cooptadas por esse tipo de armadilha no “campo progressista”.

E para que não restem dúvidas, insta frisar que esta pesquisa conta com: i) uso de meto-
dologia consolidada nacional e internacionalmente, inclusive academicamente; ii) conselho de
ética; iii) validação por pares; iv) grupos de pesquisa acadêmica que atuam conosco; v) reconhe-
cimento público da legitimidade de nossa produção; vi) aderência material na realidade apre-
sentada; vii) dados coletados a partir de fontes públicas e/ou complementares; viii) instituições
sociais e de classe que reconhecem o impacto dessa produção; ix) pesquisas realizadas a partir
dos dados apresentados; x) critérios rígidos e revisões periódicas; xi) base legal e de pesquisa

80 Termo utilizado para se referir as pessoas cisgêneras que atuam na defesa exclusiva dos direitos a partir do
cissexismo e da cisgeneridade, e atuam contra os direitos e à existência de pessoas trans. https://blogueirasfeministas.
com/2015/06/30/a-construcao-da-identidade-de-genero-e-da-orientacao-sexual/ e https://medium.com/@
leonardodesousa/como-o-cisativismo-e-o-ativismo-ggg-promovem-invisibiliza%C3%A7%C3%A3o-de-siglas-lgbts-
9a10f0e8c9dc

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Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

que referencia este trabalho; xii) instituição com notória atuação em defesa dos direitos trans e
conduta ilibada; e xiii) anos de experiência de campo.

Esses parâmetros, por certo, não são usados como escudo para afirmar que não erramos.
Pelo contrário, eles reforçam a necessidade de estarmos cada vez mais atentas aquilo que temos
entregado em termos de resultado a cada ano, além de ajudarem a identificar e reconhecer
erros e aprender com eles. E tem sido a capacidade de reconhecer possíveis erros e equívocos,
ouvir críticas, corrigir e/ou modificar estratégias que nos faz perseguir, nos últimos sete anos,
a produção de informações cada vez mais qualificadas. Críticas são bem vindas, todavia com o
negacionismo não há diálogo.

Entendemos que a produção de dados envolve tentativas, erros, acertos, revisões perió-
dicas, atualizações de padrões e de metodologias. Também inclui aprimoramento técnico do
trabalho desenvolvido. E isso não significa apoiar pseudociência ou criar dados falsos, mas de
reposicionar conhecimentos subordinados, geralmente desqualificados e rotulados como "pro-
selitistas" e "não neutros", sobretudo quando se trata de saberes produzidos fora da academia.
Para Foucault, uma bobagem, já que todo saber é político81. E esse era um Foucault comprome-
tido com saberes que não deveriam abrir mão disso por um status científico que implicaria em
sua domesticação.

Isso posto, é crucial fazermos os seguintes questionamentos: quando pessoas afirmam


falar em nome da ciência, qual é o propósito por trás disso? Qual é a origem delas? Quais são
os interesses que estão em jogo? O que elas pretendem? A quais instituições estão vinculadas?
Suas declarações são genuinamente desinteressadas ou fazem parte da disputa ideológica em
andamento?

E as respostas a esses simples questionamentos irão contribuir para que seja elaborada
uma posição crítica em relação a quem encampa esse tipo de campanha difamatória que des-
considera todas as contribuições que movimentos sociais e populares têm trazido na defesa dos
direitos humanos com a produção de dados que inclusive têm sido usados para fazer contraste
àqueles levantados pelo Estado, que em muitas situações podem não representar a realidade
de quem vive no cotidiano das realidade que se pretende visibilizar. Consideramos não ser sufi-
ciente que alguém legisle em causa própria, declarando-se neutro, técnico ou defensor da boa
ciência, para que aceitemos suas afirmações.

81 Microfísica do poder, pág 28; tradução de Roberto Machado. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.

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Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

2.1 Objetivos
Os dados e as informações apresentadas nessa pesquisa, além de denunciarem a violência,
explicitam a necessidade de políticas públicas focadas na redução de homicídios e da violência
contra pessoas trans, traçando um perfil sobre quem são estas pessoas que estão sendo assas-
sinadas a partir dos marcadores de idade, classe e contexto social, raça e gênero, além de outros
fatores que colocam essa população como o principal grupo vitimado pelas mortes violentas
intencionais no Brasil.

Um dos principais objetivos dessa pesquisa é o levantamento de informações sobre os assas-


sinatos e as violências contra pessoas trans brasileiras para confrontar a omissão do Estado frente
à necessidade do tipo de informação, para que sejam pensadas políticas públicas e traçadas estra-
tégias de enfrentamento e erradicação da transfobia. Considerando que essas informações (sobre
assassinatos) são inexistentes e os dados que existem seguem limitados aos atendimentos de
saúde no caso do SINAN, ou de dados constantes nos relatórios do Disque 100. Outrossim, perma-
nece latente o objetivo contido em nosso dossiê, na edição de 2020, conforme segue:

O objetivo do presente dossiê é garantir que as Gisbertas, Dandaras e tantas outras possam
ter o direito à vida assegurado e que o país deixe de ser o que mais assassina pessoas trans
do mundo. Para tal, lutamos para que as informações que vêm sendo construídas sejam atu-
alizadas e utilizadas para pensarmos em formas de erradicar a transfobia, a travestifobia, o
transfeminicídio e outras violências diretas e indiretas contra a população trans não apenas no
Brasil, mas possam, com as janelas que se abrem a partir das trocas de informações, alcançar
uma oposição eficaz em todo o ciclo da violência transfóbica, que é estrutural e estruturante de
nossa sociedade (Dossiê ANTRA – 2020).

Além disso, o presente documento se consolida como uma ferramenta importante ao traçar
as análises dos casos de forma direta e objetiva, a fim de contribuir para o processo de reconhe-
cimento público da situação de violência e das violência dos direitos humanos contra pessoas
trans no país, e também proporcionar novas pesquisas a partir do que for levantado por esse
dossiê, além de buscar respostas institucionais sobre ações que devem ser tomadas, efetivação
de denúncias junto aos órgãos de controle do Estado, formalização do envio de informações
qualificadas para Cortes e Tribunais Internacionais, fóruns de discussões e conferências dos
mais diversos campos, com ênfase em uma segurança pública que pense o racismo transfóbico
na formação de seus agentes e, principalmente, para que o Estado e os governos deixem de ser
as principais instituições com grande parcela de responsabilidade sobre a atual situação das
pessoas trans no país.

As respostas à situação geral em que se encontram as pessoas trans ainda são ausentes
ou insatisfatórias por parte da Administração Pública, dos estados e do Governo Federal. Assim
como a própria sociedade tem se furtado de promover um debate honesto e que garanta a defesa
da vida e dos direitos das pessoas trans.

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Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

Os Estados têm a obrigação de atuar com a devida diligência para prevenir, investigar, punir e
reparar a privação de vida e outros atos de violência. Os mecanismos das Nações Unidas exor-
taram os Estados a cumprir esta obrigação, adotando medidas legislativas e outras para proibir,
investigar e processar todos os atos de violência e incitação à violência motivados por precon-
ceito e dirigidos contra LGBT e Intersexo, bem como para fornecer reparação às vítimas e pro-
teção contra represálias. Esses mecanismos instaram as autoridades dos Estados a condenar
publicamente esses atos e a registrar estatísticas sobre esses crimes e os resultados das inves-
tigações, processos judiciais e medidas de reparação. [...] Os Estados também têm a obrigação
de abordar a discriminação contra crianças e jovens que se identificam ou são percebidos como
LGBT ou pessoas Intersexo. Esses atos incluem assédio, intimidação em escolas, falta de acesso
a informações e serviços de saúde e tratamento médico coercitivo82.

Embora pessoas trans também possam ser vítimas de homofobia, lesbofobia e/ou bifobia,
é a transfobia que tem sido a maior responsável pela violência e violações de direitos humanos
que pessoas trans têm sofrido. Isso ocorre, em muita medida, pela forma como o cissexismo é
colocado como ponto central, atuando através da transfobia para negar a existência, a humani-
dade e, portanto, qualquer possibilidade de acesso à cidadania e direito para travestis, transe-
xuais e demais pessoas trans.

É preciso, urgentemente, a mobilização de toda sociedade para que a criminalização seja


colocada em prática, para que o reconhecimento da identidade de gênero como agravante e qua-
lificador dessas violências passe a constar na forma com que os casos são registrados, investi-
gados e analisados, e que eles sejam reconhecidos como feminicídios, violência de gênero e/ou
doméstica de acordo com cada caso, com o objetivo de que o enfrentamento eficaz da transfobia
considere que a violência contra corpos trans e travestis traz diversos elementos que nos revelam
um cenário, no qual a identidade de gênero e a expressão não normativa dessas pessoas, assim
como os requintes de crueldade, a forma e a intensidade com que os crimes são cometidos,
foram motivadas pelo ódio transfóbico considerado na escolha da vítima pelos suspeitos.

2.2 O uso de dados da imprensa em pesquisas


não são uma novidade
Antes de entrar efetivamente na metodologia desta pesquisa, faremos um breve resgate
da produção de dados e informações sobre violências e assassinatos contra travestis, mulheres
transexuais, homens trans, pessoas transmasculinas e não binárias no Brasil, a fim de reco-
nhecer o trabalho daquelas pessoas que contribuíram nessa caminhada.

82 Informe de la Oficina del Alto Comisionado de las Naciones Unidas para los Derechos Humanos. Disponível em:
https://www.un.org/en/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/HRC/29/23&referer=/english/&Lang=S

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Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

O estreitamento dos laços entre pesquisa e jornais, a imprensa, e as redes sociais mais
recentemente têm, cada vez mais, sido usadas por quem faz pesquisas, sejam por pessoas
ligadas ao estudo do campo político ou de outras vertentes da análise historiográfica, entre
outros ramos da ciência.

Qualquer pesquisador que tome um jornal como fonte de sua pesquisa (obviamente con-
siderando o objeto de estudo do mesmo) deve, acreditamos firmemente, definir em que tipo e
dimensão o mesmo se encaixa e/ou será tratado. Pesquisadores que utilizam a imprensa como
fonte não devem perder de vista que o mesmo nunca deve ser tomado com efeito de verdade
absoluta, mas sim como representação de grupos sociais e da realidade que os cercam, e tem
sido utilizadas como dados importantes para qualificar informações valiosas sobre o objeto que
se pretende analisar.

A escolha da mídia/imprensa como fonte de pesquisa no Brasil não é recente e muito menos
uma novidade, assim como não é usada exclusivamente para mapear assassinatos de pessoas
LGBTQIA+. Afirmar isso seria um ato completamente equivocado em relação a toda produção
acadêmica que utiliza o mesmo tipo de fonte advinda de jornais e mídias digitais. Diversos outros
grupos e organizações não governamentais - (ONGs) utilizam essa mesma metodologia, assim
como defensores de direitos humanos, historiadores e pesquisadores em geral, sobretudo
quando as informações são escassas ou ausentes no campo governamental.

Além disso, cabe relembrar que, em se tratando da produção de dados sobre a comunidade
LGBTQIA+ em um contexto de completa ausência de informações governamentais ao redor do
mundo, foi o Grupo Gay da Bahia (GGB) que iniciou no Brasil o monitoramento e sistematização
de mortes de pessoas LGBTQIA+ por meio da da utilização de casos publicados por jornais/
imprensa em 198283, e somente anos depois passou a incluir informações postadas na internet,
seja em grupos específicos e/ou nas redes sociais.

No ano de 2009, a nível internacional, a ONG Transgender Europe (TGEU)84, por meio do
projeto Trans Murder Monitoring (TMM)85, foi pioneira em realizar o levantamento de informa-
ções com recorte específico de pessoas trans e gênero diversas. No Brasil, o Grupo TransRe-
volução86, do Rio de Janeiro, foi o primeiro coletivo trans brasileiro a realizar a coleta de dados
sobre o assassinato de travestis e transexuais em 2011. Em 2016, inicia o monitoramento da Rede
de pessoas trans e em 2017 a ANTRA passou a fazer esse tipo de levantamento. No ano de

83 https://pt.wikipedia.org/wiki/Grupo_Gay_da_Bahia
84 Anualmente a ONG TGEU tem sido responsável por lançar o ranking de países que tem levantamento de dados
sobre o assassinato de pessoas trans. https://tgeu.org/
85 O projeto Trans Murder Monitoring (TMM) começou em Abril de 2009 como uma cooperação entre a Transgender
Europe (TGEU) e a revista acadêmica online Liminalis – A Journal for Sex/Gender Emancipation and Resistance . Com o
envolvimento da equipe editorial da Liminalis, o TMM tornou-se um projeto piloto do projeto de pesquisa “Transrespeito
versus Transfobia Mundial” da Transgender Europe em setembro de 2009. https://transrespect.org/en/research/tmm/
86 https://mundot-girl.blogspot.com/2014/01/conheca-o-grupo-transrevolucao.html?m=1

32
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

2018 foi lançado o primeiro Dossiê do Lesbocídio87, com dados desagregados sobre mulheres
lésbicas e bissexuais. E no mesmo ano, na Cidade de Lima no Peru, foi fundado o Observatório
de violência contra pessoas trans e gênero não binário da América Latina e Caribe - Observa-
tório LAC88, composto inicialmente pela Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Costa Rica, Cuba e
Uruguai, que passou a monitorar dados sobre violências e assassinatos contra pessoas trans na
América Latina e Caribe, do qual a ANTRA é uma das instituições fundadoras.

Imagem: Observatório LAC

(Reprodução Facebook/Observatório LAC)

Destacamos que uma das principais inovações apresentadas pela ANTRA, já na sua pri-
meira edição do Dossiê de assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasi-
leiras foi o uso pioneiro da cartografia digital com a implementação do "Mapa dos assassi-
natos"89. Uma metodologia aplicada pela ANTRA, que passou a construir um mapa interativo
no google maps contendo informações e a marcação da geolocalização90 sobre cada caso
que compõe a base desta pesquisa, a fim de monitorar e visualizar os dados cartográficos
dos assassinatos de pessoas trans com mais eficiência, e que posteriormente passou a ser
adotada por outras pesquisas similares.

87 https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/dados-e-fontes/pesquisa/dossie-sobre-lesbocidio-no-brasil-2014-2017-
peres-milena-cristina-carneiro-et-al/
88 Post sobre a fundação do Observatório LAC. Acessado em 28 de dezembro de 2023. https://www.facebook.com/
observatoriolac/posts/pfbid022JdhM2JLnqYawnjTkf9Nn3dfc8sgJSQVeXHhPmuwSTKEzNKKa3zobUdtY7FH99Qzl
89 Mapa dos Assassinatos contra travestis e transexuais brasileiras em 2017. https://www.google.com/maps/d/
edit?mid=1yMKNg31SYjDAS0N-ZwH1jJ0apFQ&usp=sharing
90 A geolocalização refere-se à capacidade de determinar a localização física de um objeto ou pessoa na Terra
usando coordenadas geográficas, como latitude e longitude. E neste caso, utilizamos a marcação a partir do local
onde ocorreu o assassinato para marcar um ponto no mapa.

33
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

Imagem: Mapa da cartografia digital desenvolvido pela ANTRA

(Mapa dos Assassinatos Trans/ANTRA 2017)

E há ainda as informações produzidas por observatórios regionais/estaduais que atuam


localmente e tem contribuído com o trabalho que vem sendo desenvolvido pela ANTRA no sen-
tido de que seja construída uma base de dados compartilhada, como o Observatório de Políticas
Públicas LGBTI+ do Maranhão e o Observatório de Mortes e Violências contra LGBTI+ no Brasil,
dentre outros.

Considerando que, embora possam ser usadas metodologias semelhantes pelas institui-
ções citadas nesta breve contextualização – o uso de dados publicados em jornais e mídias,
assim como na internet e em redes sociais, é importante destacar que tanto o alcance quanto
às bases de dados usadas não são as mesmas, portanto não se pode buscar resultados iguais,
ou tratar como contraditórios por partirem de olhares distintos. Não acreditamos na existência
de dados mais ou menos importantes, ou em dado “melhor”. Existem dados – e há um trabalho
árduo sendo realizado – que não devem ser antagonizados sob o risco de fragilizar os objetivos
que todos partilham: a erradicação das violências e o enfrentamento efetivo dos assassinatos
sistemáticos de travestis e demais pessoas trans.

34
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

2.3 Metodologia
Anualmente são feitas revisões dos resultados e da metodologia aplicada a cada edição, no
sentido de qualificar cada vez mais a produção desses dados e que tem sido o principal diferen-
cial da pesquisa realizada pela ANTRA, com apoio de parceiros, e que podem incluir a necessi-
dade de ser feita uma análise aprofundada desde a pesquisa e o levantamento das fontes, assim
como na forma de realizar as análises dos elementos que constituem um dado com qualifica-
dores suficientes para que seja considerado dentro dos parâmetros que constituem o recorte de
assassinatos, homicídios e mortes contra pessoas trans.

Por exemplo, o uso da estatística descritiva neste dossiê nos ajuda a descrever os dados
extraídos das fontes de informações, além de envolver a coleta, organização, resumo e apre-
sentação de dados. Embora não nos limitemos a ela, a estatística descritiva é uma forma de
analisar e descrever características importantes de conjuntos de dados, fornecendo uma visão
geral dos padrões e tendências neles presentes. Ademais, os principais objetivos da estatística
descritiva são: i) resumir os dados quantitativos, ii) descrever suas características de forma con-
cisa e informativa; e iii) representar graficamente os dados para facilitar a sua compreensão e
interpretação (Agresti; Finlay, 2012)91

Nesse sentido, após revisão e testes, o presente monitoramento passa a sistematizar as


informações de forma quantitativa e também qualitativa, visto que não existem dados demográ-
ficos a respeito da população trans92 brasileira que possibilitem um cruzamento entre a intenção
de levantarmos a proporção população trans versus o número de assassinatos com o intuito de
traçar a proporção de casos/habitantes, o que se torna um grande desafio. Após a coleta dos
dados, a pesquisa de informações é dividida dois tipos de fontes principais, sendo ela as A)
fontes primárias e B) secundárias (ou complementares) que serão melhor explicadas a seguir.

São consideradas como fontes primárias (A) aquelas onde os dados são obtidos a partir de
informações: 1) governamentais (Disque 100, SINAN, etc.); 2) órgãos de segurança pública; 3)
processos judiciais/órgão da justiça93 e; 4) casos publicados em diversos veículos jornalísticos
e mídias, hegemônicas, alternativas ou locais – que devido à ausência ou dificuldade de acesso
ou subnotificação por parte do Estado, acabam se tornando as principais fontes dessa pesquisa.

91 Agresti e Finlay (2012). Métodos Estatísticos para as Ciências Sociais. https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.


php/5996665/mod_resource/content/0/Agresti%20e%20Finlay%20%282012%29%20M%C3%A9todos%20
Estat%C3%ADsticos%20para%20as%20Ci%C3%AAncias%20Sociais_Cap7.pdf
92 Pessoas trans é a forma ampliada que será usada ao longo desse texto para falar sobre o coletivo das identidades
trans que serão mencionadas no decorrer do mesmo e se refere a Travestis, Mulheres transexuais, Homens trans,
pessoas Transmasculinas e Não Binárias.
93 Alguns inquéritos estão digitalizados e as informações são altamente difíceis de acessar ou são ausentes e
um número considerável ainda existe exclusivamente de modo físico. O processo de arquivamento digital ainda é
demasiadamente embrionário e precário na estrutura da administração pública.

35
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

Figura: Fontes primárias de informações

Fontes Primárias

Governamentais Segurança Pública Processos Judiciais Mídia e jornais

E há as fontes secundárias (B), que são dados complementares e trazem informações em


que nenhuma mídia/imprensa cobre ou publica o assassinato, e nos são trazidas por diversos
meios: 1) ativistas e representantes de instituições de direitos humanos, que chegam pelos mais
variados meios e canais de comunicação (e-mail, Instagram, Facebook, WhatsApp, etc.), onde
muitas compõem a rede de instituições afiliadas da ANTRA e outras ONGs e instituições par-
ceiras; 2) publicações nas redes sociais como instagram, X/Twitter, Facebook e outras; 3) envio
de informações via relato testemunhal94; e 4) outras fontes não classificadas.

Figura: Fontes secundárias de informações

Fontes Secundárias

Ativistas e Relato Fontes não


Redes Sociais
defensores DH testemunhal classificadas

A) Busca por informações em mecanismos de pesquisa na


internet
A fim de viabilizar esse trabalho e tornar a busca por notícias com os objetos dessa pesquisa
mais dinamizada, incluímos diversos alertas nos principais mecanismos de busca para que, de
forma automatizada, as palavras-chave previamente informadas sejam capazes de direcionar os
casos de assassinatos e violência contra pessoas trans. Casos envolvendo palavras como “tra-
vesti” e “transexual”, ou ainda “mulher trans”, têm mais retornos em buscas e a partir dos alertas
de notícias que trazem esses marcadores.

94 A prova testemunhal é obtida por meio da inquirição de testemunhas a respeito de fatos relevantes que, no caso
dessa pesquisa, incluem as informações trazidas por ativistas e/ou instituições de direitos humanos. De uma forma
geral, o depoimento da testemunha é sobre aquilo que presenciou, podendo, também, narrar fato que ouviu, mas
não presenciou. E trata-se de instrumento importantíssimo, que foi regulado pelo novo Código de Processo Civil
(Lei 13.105/2015) em seus artigos 442 a 463.

36
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

Quadro: Parâmetros de alertas em mecanismos de busca por assassinatos

FONTES TIPO
Travesti + assassinada
Travesti + assassinado
Travestis + assassinada
Travestis + assassinado
Travesti + morta
Travestis Travesti + morto
Travestis + Morto
Travestis + morta
Homossexual + morto
Homossexual + assassinado
Mulher Trans + assassinada
Mulher Trans + morta
Mulher Transexual + assassinada
Mulher Transexual + morta
Mulher trans ou transexual Transexual + assassinada
Transexual + assassinado
Transexual + morta
Transexual + morto
Homem Trans + assassinado
Homem Trans + morto
Homem Transexual + Assassinato
Homem Transexual + morto
Transexual + assassinada
Transexual + assassinado
Homem Trans e pessoas transmasculinas Homossexual + morta
Homossexual + assassinada
Lésbica + assassinada
Mulher + assassinada
Lésbica + morta
Mulher + morta
Não Binário + morto
Não Binário + morta
Não Binárie + morto/a
Não Binário + assassinado
Não Binário + assassinada
Homossexual + morto
Pessoas não binárias Homossexual + morta
Homossexual + assassinado
Homossexual + assassinada
Lésbica + assassinada
Mulher + assassinada
Lésbica + morta
Mulher + morta

37
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

Homens trans, pessoas transmasculinas e não binárias ainda enfrentam grande invisi-
bilização ou ausência de informações públicas sobre assassinatos nos veículos de mídia e a
maioria dos casos que temos contabilizados vem de fontes complementares. Sendo as fontes
complementares também as principais responsáveis pelos casos de suicídios, violações de
direitos humanos e outros tipos de violência. O que não quer dizer que estes casos não existam,
mas nos ajuda a perceber que ao longo dos últimos seis anos, a violência mortal-intencional
é muito mais direcionada às pessoas transfemininas95, que são maioria, em torno de 95% de
todos os registros. Tais dados corroboram informações publicadas pela Transgender Europe,
que organiza o ranking global.

B) Não há um padrão da publicação das notícias


Infelizmente, os dados não seguem um padrão e há muitos casos em que não existe respeito
à identidade de gênero ou mesmo ao nome social das vítimas, quando da veiculação dos casos
na mídia. Isso faz aumentar ainda mais a dificuldade na busca desses dados, além de invisibilizar
a motivação do caso e aumentar a subnotificação.

Qualquer pesquisa em um mecanismo de busca na internet, denuncia o quanto a violência


direcionada a pessoas trans segue presente no cotidiano dessas pessoas. Assustadoramente,
observamos que em 2023 permaneceu o mesmo cenário em que, 8 entre cada 10 notícias com as
palavras “travesti” ou “mulher trans” na aba notícia nos principais mecanismos de busca, encon-
tramos resultados de notícias relacionadas a violência e/ou violações de direitos humanos.

Nas buscas e análises dos dados a partir de alertas, nos deparamos com toda e qualquer
matéria contendo essas palavras, e, em alguns casos, uma não está relacionada a outra. Somente
em 2023 recebemos mais de 1000 alertas e que necessitaram de análise individualizada, feita
manualmente. O que é um trabalho extremamente difícil, visto que a identidade da vítima fica
sob a responsabilidade de quem escreveu a matéria, muitas vezes a partir de informações pre-
liminares da própria polícia – sem formação adequada sobre diversidade de gênero ou cuidado
com a memória das vítimas.

E são as pessoas que atuam como investigadores-pesquisadores96 para a elaboração do pre-


sente dossiê que assume o papel de ter que “atribuir uma identidade presumida” sobre aquela
pessoa, lançando mão de um processo semelhante à heteroidentificação para fins da presente
pesquisa, incluindo busca de perfis em redes sociais, outros links de noticiais e em alguns casos

95 Termo utilizado para referenciar as pessoas trans que foram designadas homens ao nascer (sic), mas que
reivindicam e constroem uma forma própria de se constituir no espaço público, demonstrando sua indignação com o
gênero atribuído e alterando sua expressão de gênero a fim de marcar sua identidade feminina, muitas vezes expressa
em seu próprio corpo. Exemplos: Travestis, mulheres trans, Muxes, Hijras, etc.
96 Investigadores-pesquisadores, são as pessoas que ao longo do ano recebem, analisam, classificam, sistematizam
e qualificam as fontes de informações que serão validadas e utilizadas como base de dados desta pesquisa.

38
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

buscando algum contato com alguém do convívio e familiares da pessoas, na tentativa de mini-
mizar o risco de que seja atribuída uma identidade que não condiz com a sua realidade quando
ainda estava em vida.

Um exemplo da importância de pessoas qualificadas para essa função é o caso da poli-


cial militar Juliane Duarte, negra, lésbica e periférica. Ela tinha 27 anos quando foi encontrada
morta em 2018 no Bairro Campo Grande, na Zona Sul de São Paulo97. E algumas publicações
afirmavam se tratar de um “homem trans”98. Porém, após buscas nas redes sociais e contatos
com pessoas próximas, ficou nítido para esta pesquisa que o caso se tratava de uma mulher
lésbica cisgênera que não expressava uma feminilidade hegemônica, corroborado pelo depoi-
mento de uma amiga de Juliane à Ponte Jornalismo99 que afirma que ela “nunca fez questão de
ser ‘ele’, era ‘ela’. A Ju era lésbica, não queria ser tratada como homem, apesar de vestir roupas mais
masculinas”.

Assim, foram definidos os parâmetros para classificar as casos, de acordo com as informa-
ções constantes nas matérias/imprensa ou redes sociais. Sendo eles:

Quadro: Parâmetros para classificação do dado

PARÂMETRO DESCRIÇÃO
a) Data da publicação Data em que foi feita a publicação na imprensa ou rede social.
b) Data do ocorrido Dia em que o fato aconteceu.
Se ocorrido em período diurno (matutino ou vespertino) ou
c) Período do ocorrido
noturno.
Analise do tipo de morte, classificando de assassinato, suicídio
d) Classificação da morte
e outras mortes não classificáveis ou suspeitas.
Verificação do uso do nome da vítima, considerando o uso do
e) Nome nome social e/ou se houve a veiculação do nome de registro
anterior da vítima.
Idade da vítima, podendo ser exata ou estimada, a depender de
f) Idade
como foi veiculada na matéria/post.

(continua)

97 https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2018/08/06/policia-encontra-corpo-de-pm-desaparecida-em-sp.ghtml
98 1) https://www.diariodocentrodomundo.com.br/essencial/pm-trans-que-foi-assassinada-passou-os-ultimos-dias-
cuidando-da-mae-com-cancer/
2) https://revistaladoa.com.br/2018/08/noticias/policial-militar-desaparecida-e-encontrada-morta-em-sao-paulo/
3) https://escrevalolaescreva.blogspot.com/2018/08/a-morte-da-pm-e-proibicao-de-uma-peca.html
4) https://sul21.com.br/colunassamir-oliveira/2018/08/dudu-dos-santos-o-policial-trans-assassinado-e-a-hipocrisia-
dos-abutres/
99 https://ponte.org/alegria-contagiante-era-marca-da-pm-juliane-sequestrada-e-encontrada-morta/

39
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

(continuação)

PARÂMETRO DESCRIÇÃO
Identifica a identidade de gênero por segmento: travesti,
mulher trans/transexual, homens trans, pessoa transmascu-
g) identidade de gênero
lina, ou não binária, e se a identidade de gênero foi respeitada
pela fonte.
Marcador de raça e etnia, de acordo com o estabelecido pelo
h) Raça/Etnia IBGE, sendo Negros (pretos e pardos), Brancos, Amarelos e
Indígenas.
i) Tipo do assassinato Neste campo considera-se o meio pelo qual a morte ocorreu.
Verifica-se o tipo de ferramenta empregada para causar a
j) Ferramenta empregada
morte.
Tenta identificar o tipo de local onde ocorreu o fato, como rua
k) Local do ocorrido ou avenida, casa da vítima, hotel/motel, bar ou boate, estabele-
cimento comercial, unidade de saúde, entre outros.
l) Tipo de espaço Se ocorrido em espaço público ou privado.
m) Cidade Município onde ocorreu o fato.
n) Estado Unidade da Federação do ocorrido.
Se ocorrido na região Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sul ou
o) Região
Sudeste.
Identificação se o suspeito é homem, mulher ou outra, seja cis
p) Identidade do Suspeito
ou trans.
q) Relação do suspeito
Verifica se havia algum tipo de relação com o suspeito.
com a vítima
Traz informações se o caso está sendo investigado, se o(s) sus-
r) Situação do caso peito(s) foi/foram identificado(s), se houve prisão e se o caso foi
solucionado.
Este campo traz informações que ajudam a complementar
o perfil da vítima como a situação social, de moradia, se era
s) Informações adicionais defensora de direitos humanos ou profissional do sexo, se era
uma pessoa com deficiência, e qualquer outro tipo de dado que
complemente o perfil da vítima.
Qual tipo de fonte foi considerada, se primária ou secundária e
t) Tipo da fonte
suas subcategorias.

De posse dessas informações, são realizadas diversas análises complementares e o cruza-


mento de dados até que a fonte seja elegível para a base de dados, onde poderão ser inseridas
informações adicionais que porventura venham a agregar a pesquisa e que, em muitos casos,

40
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

possam complementar as informações a partir do olhar de investigadores-pesquisadores. Após


a sistematização dessas informações, é construído o perfil da vítima que ajuda na análise dos
casos e poderá ser melhor verificado a seguir, em um capítulo específico.

Todas as análises passam por revisões individualmente e uma busca complementar sobre a
atualização dos casos com a finalidade de buscarmos informações sobre o estado da responsa-
bilização e/ou prisão dos suspeitos, se a vítima foi identificada (quando a informação não consta
na fonte inicial), situação de óbitos posteriores a desaparecimentos e às tentativas de assassi-
natos, etc.

Durante todas as etapas dessa pesquisa que ocorre entre 1 de janeiro e 31 e dezembro de
cada ano, são feitas revisões, discussões e reuniões com parceiros, ativistas e instituições de
vários campos de atuação, tendo sido realizadas formações, fóruns e oficinas intersetoriais com
a finalidade de qualificar e aperfeiçoar este trabalho, conferir legitimidade, e validação entre
pares.

As informações aqui apresentadas são resultados das análises a partir dos dados encon-
trados durante nossas investigações e não representa a totalidade de casos de assassinatos,
violência e/ou violações de direitos humanos contra pessoas trans e não binárias no Brasil, mas
são apenas uma parte desse problema social. Elas são constituídas como hipóteses que consi-
deram o contexto geral, político, econômico, geográfico, social, nacional e internacional.

C) Principais desafios enfrentados para a realização da


pesquisa
Destacamos que, embora os dados produzidos pelos Dossiês da ANTRA sejam amplamente
utilizados nacional e internacionalmente por diversas pessoas, ONGs, figuras políticas, influen-
cers, pelo setor privado e no campo político, por instituições de ensino, órgãos do estado e agên-
cias internacionais, não dispomos de nenhum financiamento específico para a realização deste
levantamento. Principalmente quando há a necessidade de uma busca ativa de forma local nos
estados e municípios, em todo o Brasil, seja em juizados, delegacias, hospitais, Instituto médico
legal(IML), contato com familiares, etc., a fim de realizar um cruzamento de dados mais efetivo.
Isso significa que não contamos com recursos (financeiros ou materiais) destinados a este fim, o
que, além de precarizar o trabalho realizado por nós, acaba por limitar nosso acesso às informa-
ções, que, muitas vezes, são negadas, sigilosas ou inexistentes na esfera governamental.

A seguir listamos os principais elementos que se colocam como desafios na produção desta
pesquisa:

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Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

1. Falta de apoio financeiro e/ou investimentos para a realização da pesquisa, incluindo a


formação de uma equipe qualificada para a coleta e tratamento dos dados;
2. Falta de equipamentos específicos para a realização da pesquisa como Notebooks,
tablets, celulares, drivers, etc. O que acaba comprometendo o uso de computadores
e celulares pessoais, que tem sua capacidade reduzida diante da grande quantidade
de informações sobre violência e que possuem pouco espaço para o próprio arquivo da
base de dados dessa pesquisa;
3. Ausência de dados governamentais e dificuldade de acesso a informações das
secretarias de segurança e/ou de órgãos de justiça através da Lei de Acesso à
Informação (LAI) e as burocracias que inviabilizam esse processo;
4. Dificuldade de concorrer em editais, visto que a temática da violência transfóbica
muitas vezes é negligenciada e enfrenta tentativas de apagamento;
5. A busca ativa das notícias, apesar do uso de tecnologias, como os alertas em mecanismos
de buscas, ainda é feita em grande parte de forma manual e requer monitoramento
constante na rede social e outros meios de publicações de notícias, ocupando muito
tempo no ambiente virtual e gerando agravos na saúde mental e física de investigadores,
pesquisadores, coordenadores e demais pessoas que constroem essa pesquisa;
6. Falta de apoio psicológico para investigadores, pesquisadores, coordenadores e demais
pessoas que constroem essa pesquisa que tem contato direto com essas informações e
lidam com dados de violência explícita diariamente e relatam sentimentos recorrentes
de angústia, insônia, estresse, ansiedade, dificuldade de relacionamentos em ambientes
sociais públicos, irritabilidade, sensação de perseguição e medo constante de ser
vítima de violência;
7. Dificuldade de incluir e/ou manter pessoas, principalmente trans e travestis,
vinculadas a esse tipo de trabalho voluntário, seja devido ao tema e, sobretudo, pelas
formas explícitas de violência, exposição a notícias que mostram corpos dilacerados e
informações constantes de várias formas de violações de direitos humanos e violências
a que estarão submetidas;
8. Transfobia estrutural e institucional que muitas vezes invisibilizam e desqualificam essa
pesquisa ignorando se tratar da principal fonte de dados sobre violência transfóbica –
especialmente em relação aos homicídios de pessoas trans;
9. Disseminação de ideais negacionistas em relação às informações que retratam
fielmente o cotidiano de pessoas trans e a veiculação de fakenews em torno dos dados
produzidos ou em relação ao rigor técnico aplicado durante a busca, sistematização,
análises, revisão e demais procedimento adotados nesta pesquisa; e
10. Dificuldade de verificação aprofundada sobre as informações e dados vindos de fontes
complementares pela limitação das informações fornecidas.

42
Parte I – Assassinatos
Além de ser massivamente disseminado e aceito em nossa sociedade, o ódio e a crueldade
contra pessoas trans e travestis seguem firmes em seu projeto de aniquilar nossas existên-
cias. A violência transfóbica, além de está enraizada em nossa cultura, é, de certa forma, pas-
sada de pai para filho, ensinada nas escolas, nas câmaras legislativas, nos púlpitos e cultos
religiosos, na gestão pública, e alcança toda sociedade que segue passiva e corresponsável
por essa barbárie.

Em relação aos dados absolutos dos últimos 7 anos, produzidos entre os anos de 2017 e
2023, período em que a ANTRA passa a fazer essa pesquisa, conseguimos mapear um total de
1057 (um mil e cinquenta e sete) assassinatos de pessoas trans, travestis e pessoas não biná-
rias brasileiras. Sendo 145 assassinatos em 2023 e 131 casos em 2022; 140 casos em 2021; 175
casos em 2020; 124 casos em 2019; 163 casos em 2018 e; 179 casos em 2017 (o ano com o maior
número de assassinatos de pessoas trans na série histórica). O que representa uma média de
151 assassinatos por ano e 13 casos por mês.

No comparativo entre os anos de 2022 e 2023, foi percebido aumento de 10,7% no número
de assassinatos contra pessoas trans, passando de 131 em 2022 para 145 em 2023. No mesmo
momento em que o país observou queda de 5,7%100 nos assassinatos gerais da população.

100 https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2023-12/projecao-indica-queda-de-6-no-numero-de-assassinatos-
em-2023

43
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

Gráfico: Assassinatos de pessoas trans e no Brasil entre 2017 e 2023 - ANTRA


200
179
180 163 175
160 145
140
140 131
124
120
100
80
60
40
20
0
2017 2018 2019 2020 2021 2022 2023

Como vem sendo insistentemente denunciado desde a primeira edição deste dossiê, a
ausência de dados governamentais é um problema sério que precisa de atenção. Dados sobre
essas violências seguem inexistentes ou insuficientes quando comparadas com o que é repor-
tado pelos canais de notícias. E é urgente saber onde está sendo “perdida” essa informação.

A subnotificação é significativa, levando em consideração que, se uma determinada notícia


foi veiculada pela imprensa, espera-se que esses casos estejam devidamente registrados em
fontes de dados em órgãos competentes, como delegacias e/ou Institutos Médicos Legais
(IML) em todo o Brasil, bem como em secretarias de segurança pública ou órgãos policiais. No
entanto, observamos exatamente o oposto dessa expectativa, conforme corroborado pelas crí-
ticas do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que aponta a ausência de dados sobre pessoas
LGBTQIA+ ou a presença de dados substancialmente discrepantes em relação ao que tem sido
divulgado por meio das notícias.

É urgente que sejam feitos esforços para saber o porque as secretarias de segurança
pública dos estados não tem consolidado essas informações adequadamente. Denunciamos
que as reiteradas negativas de acesso as informações via Lei de acesso a informação (LAI) ou
falta da publicação consolidada desses dados pelos referidos órgãos têm suscitado diversas
dúvidas sobre a possibilidade de isso acontecer: i) pela lgbtifobia institucional; ii) de forma
intencional no sentido de enfraquecer as denuncias feitas pelos movimentos sociais; e iii) para
que não haja compromisso em enfrentar essa violência, que sequer é reconhecida pelo estado
como existente. E ao não reconhecer a transfobia ou as violências que tem a identidade trans
como qualificadores de tais violências e fatores de risco, a mensagem que fica é que vidas trans
não importam, e o impacto disso frente a comunidade trans, sobretudo a mais jovem vai impactar
de forma violenta e negativa essas pessoas.

44
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

3. Assassinatos em 2023
Em 2023, inicialmente haviam sido mapeadas 150 casos de pessoas trans assassinadas. E
após verificação aprofundada, foram descartados 5 casos por não se enquadrarem dentro dos
parâmetros estabelecidos para esta pesquisa. Passando portanto a ser considerados, para fins
deste dossiê, 145 mortes por assassinatos101, um aumento de 10,7% em relação ao ano anterior.
Desses, 5 foram cometidas contra pessoas trans defensoras de direitos humanos.

Além disso, 136 assassinatos foram contra travestis e mulheres trans/transexuais e 9 contra
homens trans e pessoas transmasculinas, que serão mais bem detalhados no capítulo cinco, que
traz informações sobre o perfil das vítimas. Dentre as fontes que constituem esta pesquisa, não
foram identificadas informações sobre o assassinato de pessoas publicamente reconhecidas
como sendo não binárias.

Ao observar o primeiro ano em que a ONG Transgender Europe passou a organizar o ranking
global102 em 2008, haviam sido reportados 58 assassinatos. O ano de 2023, portanto, revelou
um aumento de 150% em relação a 2008, o ano que apresentou o número mais baixo de casos
relatados, saindo de 58 assassinatos em 2008 para 145 em 2023. De lá para cá, a cada ano, os
números se mantêm acima quando observamos o dado inicial de análise.

Gráfico: Dados dos Assassinatos de pessoas trans e no Brasil entre 2008 e 2023103 - TGEU
200 181
175
180
163
160
144 140 145
140 134 131
123 124 126
118
120 108
99 100
100
80 68
58
60
40
20
0
08

09

10

11

12

23
13

17

18

19

20

21

22

ia
14

15

16

éd
20

20

20
20
20

20

20
20

20

20

20

20
20
20

20
20

101 Destacamos que dos 145 casos considerados nesta pesquisa, cinco homicídios foram categorizados como “morte
suspeita” por não ter sido possível identificar o tipo do assassinato e oito foram consideradas “mortes presumidas”,
por se tratarem de casos de desaparecimento superiores a seis meses e que ainda não foram solucionados, onde
todas as vítimas eram travestis/mulheres trans e o perigo de morte que enfrentam ao considerar sua identidade de
gênero como tendo sido determinante para todas as outras mortes na mesma situação.
102 Considerando os países que fazem esse tipo de levantamento. Destacando que os dados produzidos por
instituições da sociedade civil.
103 Dados entre 2008 e 2016 foram publicados pelo Grupo Gay da Bahia (GGB).

45
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

Ressaltamos que a média dos anos considerados nesta pesquisa (2008 a 2023) foi de 126
assassinatos/ano. Ao observarmos o ano de 2023, com 145 casos encontrados, vemos que ele
continua 15% acima de média de assassinatos em números absolutos. Desde o início dessa
pesquisa em 2017, o número de assassinatos anuais seguiu acima da média de todos os casos.

O quadro abaixo demonstra os principais elementos considerados em nossas análises para


pensarmos o enfrentamento efetivo da violência transfóbica e complexificar o contexto da vio-
lência contra pessoas trans no Brasil. Exatamente para chamar atenção de que a análise deve se
basear nas informações que atravessam os números e não exclusivamente neles.

Quadro: Cenário geral dos Assassinatos de pessoas trans no Brasil em 2023

Falta de dados e/ou


subnotificações
governamentais
Seguiu na Ausência de
liderança como ações de
o país que mais enfrentamento
assassina da violência
pessoas trans contra pessoas
do mundo LGBTQIA+

145
Assassinatos
em 2023
Se mantém Aumento de
acima de ações antitrans
média dos e propostas
assassinatos que visam
entre 2008 institucionalizar
e 2023 a transfobia

3.1 Evolução dos casos mês a mês


O ano de 2023 estabeleceu uma média de 12 assassinatos por mês, com aumento de 1 caso/
mês em relação a 2022. Os meses de janeiro com 17 casos, fevereiro com 13, Março 15 casos,
outubro com 14 casos, novembro com 16 e dezembro com 13 assassinatos, mantiveram o número
de assassinatos superiores à média do ano. Sendo 73 assassinatos no primeiro semestre e 72
no segundo.

46
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

Gráfico: Assassinatos em 2023 – Mês a Mês

20
18 18
17
16 16
14 14
13 13
12
11
10 10 10
9
8 8
7 7
6
4
2
0
Dez Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez
2022 2023 2023 2023 2023 2023 2023 2023 2023 2023 2023 2023 2023

Para facilitar a melhor visualização da curva dos casos no ano, trouxemos os dados do mês
de dezembro do ano anterior (2022), no qual dezembro de 2023 apresentou aumento de 62,5%,
saindo de 8 casos em 2022 para 13 em 2023.

3.2 Assassinatos por Estado


Em 2023, São Paulo, com 19 casos, foi o estado com mais assassinatos, com aumento de
73% em relação a 2022, quando ocorreram 11 e ocupava o 2º lugar. Já o Rio de Janeiro dobrou o
número de assassinatos, de 8 em 2022 para 16 em 2023, saindo da 5ª posição e assumindo a 2ª.
O estado do Ceará aumentou de 11 para 12 casos e se manteve em 3º, enquanto o Paraná saiu de
8º para 4º com 12 casos, dobrando o numero de assassinatos em relação a 2022. Mesmo tendo
aumentado 2 casos, Minas Gerais caiu da 4ª para a 5ª posição.

Em seguida observamos a Bahia aumentar de 7 para 10 casos, Pernambuco cair de 13 para


9 ocorrências e o Amazonas e a Paraíba tiveram 7 casos cada. Alagoas e Mato Grosso do Sul
tiveram 5 casos, Espírito Santo, Pará e Maranhão com 4 cada, Goiás e Rio Grande do Sul com
3, e Piauí e Rondônia com 2. E com 1 caso tivemos Amapá, o Distrito Federal, Mato Grosso e o
Rio Grande do Norte. Tivemos ainda 1 caso em que não houve informações sobre o estado ou
cidade. Nos estados do Acre, Roraima, Santa Catarina, Sergipe e Tocantins, não foram encon-
trados casos de assassinatos no ano de 2023.

Chama atenção que 65% (90 casos) aconteceram fora das capitais dos estados, em
cidades do interior. A seguir, a tabela atualizada com o ranking dos estados atualizado.

47
Tabela: Ranking por estado

Ranking Estado 2023 Estado 2022 Estado 2021 Estado 2020 Estado 2019 Estado 2018 Estado 2017
1º SP 19 PE 13 SP 25 SP 29 SP 21 RJ 16 MG 20
2º RJ 16 SP 11 BA 13 CE 22 CE 11 BA 15 BA 17
3º CE 12 CE 11 RJ 12 BA 19 BA 8 SP 14 CE 16
4º PR 12 MG 9 CE 11 MG 17 PE 8 CE 13 SP 16
5º MG 11 RJ 8 PE 11 RJ 10 RJ 7 PA 10 RJ 14
6º BA 10 AM 8 MG 9 AL 8 PR 7 MG 9 PE 13
7º PE 9 BA 7 GO 7 PE 7 RS 7 MT 8 PB 10
8º AM 7 PR 6 PR 7 RN 7 GO 6 PR 8 PR 9
9º PB 7 PA 6 PA 6 PB 5 AM 5 RS 8 AL 7
10º AL 5 ES 6 AM 4 PR 5 MA 5 PE 7 ES 7
11º MS 5 GO 5 MA 4 RS 5 MG 5 AM 6 PA 7
12º ES 4 MT 5 RS 4 GO 4 MT 5 ES 6 MT 6

48
13º PA 4 MS 5 ES 3 MT 4 PB 5 GO 6 AM 5
14º GO 3 SE 5 MS 3 PA 4 ES 4 RN 6 GO 5
15º MA 4 AL 4 MT 3 SC 4 PA 4 PB 5 RO 5
16º RS 3 PB 4 AL 2 AM 3 RN 4 SE 5 SC 5
17º PI 2 MA 4 AP 2 ES 3 AL 2 SC 4 TO 3
18º RO 2 RN 3 DF 2 MA 3 RO 2 AL 3 DF 2
19º AP 1 RS 2 PB 2 RO 3 TO 2 MA 3 MA 2
20º DF 1 SC 2 PI 2 DF 2 MS 1 DF 2 MS 2
21º MT 1 DF 2 SC 2 MS 2 PI 1 MS 2 SE 2
22º RN 1 RO 1 AC 1 PI 2 RR 1 PI 2 AC 1
23º AC 0 PI 1 RN 1 SE 2 SE 1 RO 1 AP 1
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

24º RR 0 RR 1 RO 1 AC 1 AC 0 RR 1 PI 1
25º SC 0 AC 0 SE 1 RR 1 AP 0 TO 1 RN 1
26º SE 0 TO 0 RR 0 TO 1 SC 0 AC 0 RR 1
27º TO 0 AP 0 TO 0 AP 0 DF 0 AP 0 RS 1
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

3.2.1 Os dez estados que mais assassinaram pessoas trans entre 2017 e 2023
No ranking por estado, levando em consideração dados absolutos, São Paulo com 135 casos,
aparece na 1ª posição; em 2º, temos o Ceará com 96 casos; Bahia em 3º com 89 assassinatos;
Rio de Janeiro com 83 está na 4ª posição e Minas Gerais com 80 em 5º; Pernambuco em 6º com
68 casos; Paraná com 54 em 7º; Pará em 8º com 41 assassinatos; Em 9º Amazonas e Paraíba
com 38, e Goiás com 36 em 10º.

Tabela: Estados que mais assassinaram pessoas trans (2017-2023)

150
135

96
89 83
100 80

68
54
50 41 38 36

0
SP CE BA RJ MG PE PR PA AM - PB GO

Número total de Assassinatos entre 2017 e 2023

3.3. Assassinatos por Região


A maior concentração dos assassinatos foi observada na Região Sudeste com 52 assas-
sinatos (37% dos casos); Em seguida, vemos a Região Nordeste com 50 casos (36%) casos;
o Sul com 14 (10%) assassinatos; o Norte, com 13 (9%) casos; e a região Centro-Oeste com 10
(7%) assassinatos. Em 2023, foi observado aumento no número de casos nas regiões Sul e no
Sudeste em relação ao ano anterior.

49
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

Gráfico: Assassinatos por região em porcentagem (%)


50
45 43
39 37 40,5
40 36 35 37
36
34 34
35 32 30
30 28 27
25
20
12 12,5 13
15 11 11 10,5 11 11 11 12 11 9,5 10
7 9 8 10 8 7
10 7 7
5
0
Norte Nordeste Centro-Oeste Sul Sudeste

2017 2018 2019 2020 2021 2022 2023

3.4 Assassinatos no Exterior


A migração, no caso das pessoas trans, e principalmente das travestis e mulheres trans, muitas
vezes se assemelha a pessoas que fogem da guerra em busca de paz, segurança e possibili-
dades de sobrevivência. Muitas são migrantes no próprio país.

Em 2023, localizamos 5 travestis/mulheres transexuais brasileiras que foram assassinadas


fora do país, sendo 2 na Itália, 2 na Espanha e 1 no Paraguai. Ao longo dos últimos sete anos
pudemos observar que entre 2017 e 2023, 17 (dezessete) travestis/mulheres trans foram assas-
sinadas fora do Brasil, sendo 7 casos na Itália; 2 casos em Portugal; 4 casos na Espanha e 2 na
França e Espanha e; 1 caso na Bélgica e no Paraguai.

3.5 Perfil das vítimas


Há muitos movimentos, publicações e engajamento sobre a morte de pessoas trans, mas há
pouquíssimas pessoas e ações realmente engajadas para evitá-las.

O perfil das vítimas é constituído a partir dos elementos listados na metodologia, incluindo
os marcadores mais presentes nas matérias consideradas nessa pesquisa, e que têm sido identi-
ficadas como fatores de risco, e responsáveis pelo processo de precarização e vulnerabilização
das pessoas trans. Sendo eles: A) Idade; B) Classe e contexto social; C) Raça; D) Gênero e; E)
Elementos comuns, que serão melhor apresentados a seguir.

50
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

A) Idade
Em tempos onde se discute a proteção à infância,
Temos nos perguntado quais são as crianças tem sido protegidas
e aquelas que tem sido perseguidas?

Ao longo do ano, diversos casos de violência e violações de direitos humanos contra crianças
e/ou adolescentes trans persistiram, sem alterações significativas no cenário. Destacamos a
ausência de qualquer estimativa para a implementação de políticas públicas que assegurem a
proteção e os direitos daqueles que não se identificam com o gênero designado no nascimento
e são menores de 18 anos. Essas violações frequentemente ocorrem no ambiente familiar, com
órgãos de proteção à infância muitas vezes influenciados por uma ideologia religiosa salvacio-
nista. Essa influência contribui para a disseminação de racismo religioso e de gênero contra
pessoas trans, alimentando perseguições contra pais acolhedores.

O total de vítimas menores de idade nos últimos sete anos somam 36 casos, sendo 35 pes-
soas transfemininas e 1 pessoa transmasculina.

Figura: Vítimas menores de idade entre 2017 e 2023

Vale resgatar que no ano de 2021 tivemos a mais jovem vítima de transfeminicídio do país
com 13 anos de idade104 e esse dado voltou a aparecer em 2023, sendo as duas vítimas mais
jovens que se tem conhecimento, inclusive no ranking global (TGEU, 2021105).

104 Dados do Dossiê ANTRA, 2022. Disponível em: www.antrabrasil.org/assassinatos


105 Update TDoR, 2021. Disponível em: https://transrespect.org/en/tmm-update-tdor-2021/

51
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

Gráfico: Idade das vítimas mais jovens entre 2017 e 2023

17
16 15
15 15
13 13

2017 2018 2019 2020 2021 2022 2023

Os dados sobre idade referentes ao ano de 2023 apontam que, 3 vítimas (2,7%) tinham
entre 13 e 17 anos - Sendo uma vitima de 13 anos e duas de 16 anos; 55 vítimas (49,6%) tinham
entre 18 e 29 anos e; 30 vítimas (27%) tinham entre 30 e 39 anos; 14 vítimas (12,6%) tinham
entre 40 e 49 anos; 6 vítimas (5,4%) tinham entre 50 e 59 anos; e 1 vítima (0,9%) com 60 anos.

Chama atenção o fato de que, assim como ocorreu em 2021, a vítima mais jovem tinha 13
anos, exatamente em um contexto de acirramento do levante de ações e narrativas contra o
direito às infâncias trans, e a agenda conversadora que tem mobilizado pânico sobre o mito106
da realização de “cirurgias de mudança de sexo em crianças”, que não são defendidas e nem
permitidas no Brasil. De acordo com os protocolos vigentes, cirurgias são permitidas apenas a
partir dos 18 anos – no caso de jovens trans, enquanto jovens cisgêneros tem total liberdade para
modificar seus corpos para afirmar sua cisgeneridade sem qualquer tipo de problema.

E a fim de contribuir para derrubar esse mito, a ANTRA convidou diversos especialistas,
médicos e pesquisadores sobre infâncias trans e publicou uma Nota Técnica sobre os cuidados
em saúde para crianças trans107. O referido documento enumera uma série de informações sobre
regulações médicas e dados recentes sobre práticas que asseguram a saúde física e mental de
crianças e adolescentes trans.

Dentre as pessoas trans assassinadas em 2023, 90 tinham entre 13 e 39 anos, o que repre-
senta 81% das vítimas. A idade média das vítimas foi de 30,4 anos. Em um contexto geral, a idade
média das vítimas se manteve no mesmo índice dos últimos anos que tem variado entre 29 e 30
anos.

Dentre os 145 casos consideradas nas análises de 2023, 34 fontes não traziam qualquer
informação a respeito da idade da vítimas, tendo sido considerados apenas os 111 casos em que
foi possível identificar a idade.

106 https://revistahibrida.com.br/saude/7-mitos-sobre-cuidados-em-saude-para-jovens-trans/
107 https://lupa.uol.com.br/jornalismo/2023/06/26/nota-tecnica-assinada-por-medicos-desmente-teorias-anticientificas-
e-transfobicas-sobre-criancas-trans

52
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

Gráfico: Perfil das vítimas por idade (%)


70
60
50
40
30
20
10
0
até 17 anos 18 a 29 30 a 39 40 a 49 50 a 59 60 a 69

2023 3 50 27 13 5,4 1
2022 5,3 52,1 32 7,4 2,1 1,1
2021 5 53 28 10 3 1
2020 6,5 49,5 28,5 7,3 8,2 0
2019 5,2 54,5 22 13 4 1,3
2018 4,7 55,8 29 10,5 0 0
2017 6,3 61 22 8 2,7 0

Outro aspecto importante, é o número de vítimas entre a idade mínima de cada ano e 35
anos, considerada a expectativa de vida média da população trans. Atualizando com os dados
de 2023, a média de idade das vítimas de assassinatos entre os últimos sete anos ficou esta-
belecida em 79%, como sendo a média de pessoas trans assassinadas entre a idade mínima
catalogada (13 anos) até os 35 anos, entre 2017 e 2023. Ou seja, 79% das pessoas trans vítimas
de assassinatos no Brasil tinham menos que a estimativa de vida média da população trans.

Destaca-se que a média de idade das vítimas de assassinatos varia a cada ano e é feita
como comparativo para refletir sobre o quanto a juventude trans segue sendo a mais atingida
pelos genocídios contra nossa população.

Em 2017, 86% das vítimas tinham entre 16 e 35 anos. Já em 2018, tivemos 85% entre 17 e 35
anos; Em 2019 apresentou 74% das vítimas entre 15 e 35 anos; 2020 teve 73% dos casos entre
15 e 35 anos; 2021 com 81% entre 13 e 35 anos. Já em 2022, tivemos 81% das vítimas entre 15 e
35 anos e em 2023, vitimas entre 13 e 35 anos somaram 72% do total.

53
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

Gráfico: Vítimas até 35 anos (%)

100
86 85
90 81 81
79
80 74 73 72
70
60
50
40
30
20
10
0
2017 2018 2019 2020 2021 2022 2023 Média

Embora para nós um dado como este tenha um impacto muito mais violento — em todos os
sentidos — é importante dizer que ele não fala de todas as identidades que compõe a transge-
neridade.

A questão central — essa sim importante e notória — é que a expectativa de vida média da
população Trans é consideravelmente menor do que a da população em geral. Se chama estima-
tiva por um motivo. O dado dos 35 anos é uma estimativa média. Nunca dissemos, por exemplo,
que a estimativa da expectativa havia sido levantada por nós somente a partir dos casos de
assassinatos ou que era a mesma para toda população trans. Nos últimos anos temos inclusive
repensado sobre esses dados, sabendo que não somos responsáveis sobre como as pessoas os
utilizam ou interpretam.

A média de idade entre as vítimas dos assassinatos ficou estabelecida em 30 anos em 2023.
E ela varia anualmente como temos demonstrado a cada dossiê. Sabemos da complexidade do
cálculo da expectativa de vida, mas dizer que é um dado falso — como se ele não representasse
a realidade de milhares de pessoas trans — é apelativo e não passa de negacionismo. A realidade
das pessoas trans nos demonstram elementos suficientes para traçarmos uma estimativa como
essa.

Primeiramente, é importante ressaltar que a expectativa de vida geral da população não


é uma garantia absoluta de longevidade. É uma média que pode variar significativamente de
acordo com diversos fatores, como saúde, alimentação saudável, acesso à educação, regionali-
dade, condição social, condições de vida e segurança. E nesse sentido, a expectativa de vida não
deve ser vista como uma sentença de morte, mas como um indicador geral das condições de ser
e existir no meio social compartilhadas por um determinado grupo populacional, que no caso de
pessoas trans não é homogêneo.

54
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

Embora seja verdade que os dados precisos sobre essa população sejam escassos, as pro-
jeções disponíveis indicam que a expectativa de vida média de pessoas trans é notavelmente
menor do que a média da população em geral. Isso se deve a uma série de fatores que afetam
desproporcionalmente essa comunidade. Sobretudo quando pensamos para os processos de
vulnerabilidade e precarização dessas vidas, em geral negras, com pouco ou nenhum acesso à
formação e/ou a informações sobre cidadania e direitos, assim como às tecnologias de gênero,
e a situação sócio econômica marcada pelo cruzamento de marcadores como raça, gênero, loca-
lidade e território, escolaridade e outros que traçarão o perfil de quem está tendo sua vida cei-
fada ainda em vida, que trará impactos significativos nessa finitude tão breve.

E quando falamos sobre a estimativa de uma baixa expectativa, o ponto mais importante
que nos salta a vista é o direito a vida da população trans e travesti. Será mesmo que esse direito
é assegurado às pessoas trans?

B) Classe e contexto social


Ao analisar os dados sobre violência, incluindo a física e pública destinada as pessoas trans,
o perfil das vítimas é quase sempre muito parecido, e tem se mantido ao longo dos anos a partir
do que temos alcançado com essa pesquisa.

E chama atenção que, não muito diferente dos anos anteriores, o fato de que em 2023 a
maioria daquelas onde foi possível identificar a atividade, pelo menos 57% dos assassinatos
foram direcionados contra travestis e mulheres trans que atuam como profissionais do sexo108,
as mais expostas à violência direta e que vivenciam o estigma que os processos de marginali-
zação impõem a essas profissionais.

É importante chamar atenção para o fato de que não acreditamos que não é a prostituição que
necessariamente coloca pessoas trans em situação de vulnerabilidade, mas a transfobia e as
condições que lhe retiraram as oportunidades que antecedem a sua busca pela prostituição
como única opção. Inclusive, urge discutirmos o fato de que nem toda profissional do sexo está
em vulnerabilidade social e que muitas encontraram ali uma saída frente aos processos de
empobrecimento impostos a corpos trans pela ausência de oportunidades. (ANTRA, 2023)

E ao invés de criminalizar a prostituição ou responsabilizar as trabalhadoras por essas vio-


lências que são cometidas em geral por homens cisgêneros em decorrência do gênero (femi-
nino) expresso das vítimas, é crucial promover diálogos e pensar em alternativas para garantir
a segurança e os direitos das pessoas que atuam como profissionais do sexo. Buscamos não
apenas proporcionar condições seguras para o exercício dessa atividade, mas também criar
oportunidades para aquelas que desejam buscar outras formas de emprego ou para a geração

108 Profissionais do Sexo: título concedido pelo Ministério do Trabalho e Emprego pela Portaria MTE n. 397, de 9 de
outubro de 2002. CBO - (CLASSIFICAÇÃO BRASILEIRA DE OCUPAÇÃO) Nº 5198 – 05.

55
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

de renda. Sabe-se, obviamente, que o empreendedorismo pode ser uma saída arriscada para
pessoas em vulnerabilidade. Defendemos a empregabilidade real, com direitos assegurados,
plano de carreira e possibilidade de ascensão e sucesso no desempenho de funções laborais.
Não se trata apenas de inclusão, mas de garantir a permanência no mercado formal de trabalho,
possibilitando investimentos em qualificação para o sucesso profissional.

Além disso, é essencial atuar para que jovens travestis e mulheres trans, assim como para
outras identidades que atuam no trabalho sexual, tenham a possibilidade de acessar empregos
longe da exploração sexual de menores. Para alcançar esses objetivos, sugerimos compromissos
e esforços da sociedade, incluindo o Estado. Isso vai além do enfrentamento da transfobia no
sistema de justiça e na segurança pública.

Propomos, por exemplo, a implementação de projetos para resgatar a escolarização per-


dida, oferecer cursos de formação e profissionalização, bem como criar oportunidades por meio
de ações afirmativas nas universidades e concurso públicos. Essas ações devem incluir a des-
tinação de vagas específicas para pessoas trans em concursos públicos, oportunidades de tra-
balho, cursos profissionalizantes e universitários, priorizando as identidades mais vulnerabili-
zadas como é o caso de travestis e mulheres trans, que tem menor escolaridade, menor renda e
menos acesso a direitos conquistados do que o restante da população trans.

Embora a transfobia alcance as pessoas trans de diversas formas, mesmo dentro de um


grupo tão vulnerável quanto a população trans, são as travestis e mulheres trans a parcela da
comunidade trans que necessita maior atenção para a proposição de ações de proteção e acesso
a direitos básicos. Tem sido elas as que se encontram em sua imensa maioria em situação de
maior precarização de suas vidas.

Sophia Rivera nos chama a refletir sobre o trabalho sexual em texto publicado no dia de
combate a violência contra trabalhadoras sexuais109 que iremos transcrever abaixo:

“Falar sobre o combate à violência contra trabalhadoras sexuais pede, sobretudo, uma atenção
redobrada quanto a uma parcela da mulheridade/feminilildade que se contra nessa categoria: as
travestis. Sem dúvidas, o contexto de estigmas e ilegalidade total e/ou parcial dessas profissio-
nais faz com que as violências e violações de direitos humanos para com as trabalhadoras sexuais
estejam presentes e ativas constantemente. Sendo assim, todas as mulheridades presentes na
função estarão submetidas aos impactos negativos da sociabilidade que abomina o trabalho dessas
profissionais.

No entanto, no discurso da liberdade sexual, emancipação e autonomia, em se tratando do


cenário de trabalho sexual no Brasil, precisa de um olhar sensível e crítico quanto à realidade das
travestilidades e mulheridades trans. Nós, travestis, em sua maioria, ainda somos compulsoria-
mente empurradas para a prostituição. Tal compulsoriedade, em hipótese alguma, deve ser natura-

109 https://www.instagram.com/p/C0-C4udLwY4/?igsh=NjFhOGMzYTE3ZQ%3D%3D&img_index=9

56
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

lizada. Sobrepor um discurso liberal de liberdade sem olhar as múltiplas experiências de vida e os
impactos de suas particularidades para determinadas comunidades e populações é um equívoco,
uma desonestidade e, acima de tudo, um pagamento epistêmico que tende a fazer manutenção
de um cenário necropolítico que não nos leva em consideração de um debate social, econômico e
político.

É preciso, portanto, (des)moralizar o debate sobre sexo, visto que em suas dimensões ele está
atuante em nossa sociabilidade, ou seja, problematicamente ou não, ele se faz presente entre nós.
Portanto, a pauta sobre os aspectos de segurança e proteção, quanto às trabalhadoras sexuais, se
faz pertinente, compreendido de que uma coisa não anula outra. Neste modo, indiferente de des-
credibilizar um debate tão urgente, aqui se faz o convite para que possamos expandi-lo.

Em se tratando das travestis, já que a maioria de nós utiliza a prostituição como fonte primária
ou secundária de renda, ainda que seja um lugar que, por vias, possa possibilitar uma ascensão
econômica, essa não é uma realidade generalizada, visto que até no cenário do trabalho sexual, as
mazelas, compulsões e opressões sociais se fazem presentes.

E ainda, preciso ter atenção àquilo que está por trás dessa realidade. Meninas expulsas de
casa, entre 13 e 15 anos de idade, expulsas de suas escolas e da vida social, econômica e política
desde cedo, configuram não somente um abandono e violação de direitos, mas também uma pro-
blemática drástica, sendo a exploração sexual de criança e adolescente.

Nota-se, portanto, que a resolução dos problemas não se encontra num debate moralista de
proibição e criminalização, enquanto o caminho para superá-los, mas na compreensão expansiva
da realidade dessas pessoas, comunidades, e como categoria profissional para traçarmos possíveis
estratégias combatidas, de seguridade e proteção para tais finalidades.

Em cima de qualquer coisa, garantir a cidadania e dignidade de sujeitas que em seus trajetos
de vida, em sua maioria, tem arrancada de suas mãos a autonomia sobre suas próprias vidas, sem
possibilidade de escolhas. Se não há protagonismo de nós mesmos, não há liberdade. Logo, um
aprisionamento.

Que fique marcado, então, que esta data também diz respeito a uma problemática transversal,
e que localizar as travestis nessa posição de profissional do sexo traduz desde a violação dos
direitos da infância à cidade, educação, moradia, saúde, segurança e trabalho digno até algo muito
maior e caro para todas as pessoas, mas em particular para os povos subalternizados, às margens
da sociedade: a liberdade, a dignidade, o respeito e, principalmente, a vida.”

57
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

C) Raça e etnia

Dados do Censo 2022 demonstram que o Brasil se declara mais pardo do que branco pela pri-
meira vez na história. É uma vitória termos um Brasil que se reconhece como negro - e nunca é
demais lembrar que pardos e pretos compõem a população negra do Brasil. Que o passado onde
imperava a vergonha e o disfarce da negritude seja cada vez mais distante em nossa história!
(Ministra Anielle Franco)

Este é um dos marcadores que mais são ignorados para matérias de jornais ou caso publi-
cados nas redes sociais, chegando a mais de 90% de fontes que não informam a raça ou etnia
da vítimas. Dentre os casos analisados em nossa pesquisa, nos quais foi possível identificar a
identidade racial da vítima, este foi feito por um processo de heteroidentificação post mortem
através das fotos das vítimas nas publicações ou em buscas pelas internet após a morte para
fins dessa pesquisa110.

Tem chamado atenção à falta de dados e informações sobre raça e etnia na maior parte das
noticias. Assim como acontece com os dados de orientação sexual e identidade de gênero,
o campo cor e raça é preenchido manualmente pelos policiais na hora do registro de ocor-
rência, nunca houve uma verdadeira preocupação dos agentes em qualificar essa informação.
Diante desse cenário, podemos tranquilamente traçar um paralelo com o que já foi apontado
nessa pesquisa sobre o sistema de geração de subnotificações, que tem como objetivo prin-
cipal manipular os dados e as informações a partir da ausência ou omissão desses marca-
dores. (ANTRA, 2023)

É como se a raça ou a etnia das vitimas não importasse. Ignora-se sabendo que há no Brasil
um processo continuo de assassinato da juventude negra. E diante dos casos, podemos observar
que a maioria das vítimas trans eram jovens negras empobrecidas, moradoras da periferia, onde
os racismos (estrutural, policial, institucional, etc) como um dos desafios que enfrenta no dia a
dia, e que cruzados com uma identidade de gênero não cisgênera, acaba amplificando os riscos.

Ignorando, por exemplo, que a maioria das pessoas trans negras (pretas e pardas) é a que
enfrenta os maiores índices de desemprego, dificuldade de inserção do mercado de trabalho e
tem a menor renda, tem maior dificuldade de acesso a serviços básicos, sofre o maior impacto
na precarização de suas vidas e tem a situação socioeconômica mais precarizada. Afirmando
que em nossa perspectiva não é possível olhar de forma isolada como essas (e outras) opressões
alcançam corpos trans.

É como se no contexto de pessoas trans, a raça estivesse posicionada como um “agravante”


ao corpo e identidades desviantes, enquanto a identidade trans se torna uma marca imperdoável
para a cisgeneridade.

110 Embora nos ajude com os dados, nos preocupa a designação post mortem devido a sua forma imprecisa. Sobretudo,
porque dentre as fontes de dados há uma completa escassez de informações sobre a raça das vítimas, ficando essa
informação muitas vezes ausente.

58
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

Em 2023, observou-se que pelo menos 72% das vítimas eram pessoas trans negras (pretas
e pardas de acordo com o Estatuto da Igualdade Racial), explicitando-se ainda mais os fatores
da desigualdade racial nos dados de assassinatos contra pessoas trans. É possível afirmar que
tanto a raça quanto a identidade de gênero são fatores de risco de morte para a população
trans negra. Sobretudo considerando que são as pessoas trans negras as que menos acessam
às tecnologias de gênero, seja por meio da transição social, física, hormonal ou cirúrgica, e por
consequência acabam sendo muito mais facilmente sendo lidas a partir do olhar da cisgeneri-
dade e da patrulha de gênero como alguém que não pertenceria ao gênero que expressa, num
momento em que temos alertado desde o inicio desta pesquisa do quanto imagem e estética, e a
forma com que são percebidas no ambiente social, podem direcionar pessoas trans à violência.

Analisando os índices de assassinatos entre 2017 e 2023, a média de pessoas trans negras
assassinadas é de 78,7%, enquanto para pessoas brancas esse índice cai para 21,1%. Chamamos
atenção para o fato de que assim como ocorreu nos dois anos anteriores, em 2023 tivemos uma
travesti indígena assassinada. Demonstrando que pessoas trans de todas a raças e etnias têm
sido vitimadas pelas violência e pelo assassinato onde suas identidades de gênero foram deter-
minantes.

Gráfico: Perfil das vítimas por raça e etnia entre 2017 e 2023 (%)

90
82 82 81
80 78 78,7
80 76
72
70
60
50
40
30 27
22 24
20 18 18 18 2,1
20
10
1 1 1 0,2
0
2017 2018 2019 2020 2021 2022 2023 Média

Negros (pretos e pardos) Brancos Indígenas

Embora reconheçamos que a questão racial aconteça de diversas formas e contextos


em cada região/estado, assim como precisamos aprofundar uma discussão sobre colorismo
e racismo estrutural, não resta dúvidas de que é a população trans negra a que tem maiores
chances de ser assassinada.

59
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

Diante deste cenário, em que pessoas trans são as principais vítimas das violências e do
assassinato, temos participado do Fórum permanente de pessoas Afrodescendentes da ONU,
em suas duas primeiras sessões, em Genebra (DEZ/2022) e em Nova Iorque (JUN/2023). E além
de recomendações, participação ativa no fórum, enviamos uma carta a essa importante ins-
tância sobre a “Situação das pessoas trans e travestis negras no Brasil”, denunciando o cenário
de violência, violações de direitos humanos e falta de respostas efetivas por parte do Estado.

D) Gênero e identidade de gênero


Aumentou em 4,6% o número de travestis e mulheres trans assassinadas em 2023. Das
145 vítimas de assassinatos localizadas e consideradas nessa pesquisa, 136 eram travestis/
mulheres trans, deixando nítido que a motivação, assim como a própria escolha da vítima tem
relação direta com a identidade de gênero (feminina) expressa pelas vítimas.

Obviamente que esse parâmetro que tem sido usado como categoria analítica nos ajuda a
observar na prática como opera a relação entre o gênero feminino, expresso pela maioria
das vítimas e o assassinato de pessoas trans, esse pode variar em uma busca mais apro-
fundada caso a caso quando observada a forma com que a pessoa é percebida em socie-
dade. O que não quer dizer que pessoas transmasculinas e não binárias estejam seguras
ou que não sejam vítimas de assassinatos, os dados dessa pesquisa ilustram que nenhuma
pessoa trans está segura já que as mortes ocorrem em decorrência de suas identidades de
gênero, mas que as violências, principalmente o assassinato e mortes intencionais, alcançam
corpos trans de diferentes maneiras. Como veremos a seguir, assim como nos assassinatos,
travestis e mulheres trans também têm sido as principais vítimas das violações de direitos
humanos. (ANTRA, 2023)

O número de vítimas do gênero feminino em 2017 foi de 169 assassinatos de travestis e


mulheres trans, 158 casos em 2018, 121 assassinatos em 2019, 175 casos em 2020; 2021 com 135
assassinatos, 2022 com 130 e 2023 com 136 (aumento de 4,6%).

Gráfico: Assassinatos Travestis e mulheres trans (2017-2023)


200
180
169
160 158
175
140
135 136
120 121 130
100
80
60
40
20
0
2017 2018 2019 2020 2021 2022 2023

60
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

No ano de 2023, 9 Homens trans e pessoas transmasculinas foram assassinadas, o segundo


maior marcador desta pesquisa. Um alarmante aumento quando comparado com os anos ante-
riores. Entre os anos de 2017 e 2023, foram identificados um total de 32 casos de assassinatos
de homens trans e pessoas transmasculinas mapeados pela ANTRA, que representam 3% da
amostra total entre 2017 e 2023. Enquanto Travestis e Mulheres trans somam 1.025 casos, 97%
do total, nos últimos sete anos contabilizados nessa pesquisa.

A partir desses dados, podemos concluir que uma pessoa transfeminina (travesti ou mulher
trans) tem até 32 vezes mais chances de ser assassinada, sobretudo no espaço público que uma
pessoa transmasculina ou não binária, considerando assim, que a sua identidade de gênero e os
estigmas em torno das travestilidades representam fatores de alto risco.

A partir desse cenário, enquanto vemos a maior incidência de casos de assassinato contra
travestis e mulheres trans nos últimos sete anos, observamos abaixo a proporção de assassi-
natos de homens trans e pessoas transmasculinas no mesmo período.

Gráfico: Assassinatos Homens trans/Pessoas Transmasculinas (2017-2023)


12

10 10
9
8

6
5
4 4
3
2
1
0
0
2017 2018 2019 2020 2021 2022 2023

Ao examinar a identidade de gênero das pessoas trans que foram vítimas de homicídio nos
últimos anos, observamos uma notável escassez de dados sobre assassinatos de pessoas não
binárias. Até o momento, apenas um caso foi identificado, registrado em 2017, no qual a identi-
dade não binária foi explicitamente mencionada na fonte de informação. Esse caso é marcado
sobretudo pela extrema brutalidade e violência que ocorreu durante o processo. Em 2023, com-
pletamos seis anos desde a perda de Matheusa Passareli.111.

Existem também indivíduos que não expressam publicamente sua identidade de gênero ou
são invisibilizados na esfera pública, bem como aqueles que são obrigados a permanecerem
no armário por diversas razões. Essa diversidade de situações dificulta a identificação desses
casos, resultando em subnotificação devido à falta de reconhecimento de suas identidades de
gênero. (ANTRA, 2023)

111 Matheusa Passareli. Disponível em: https://ponte.org/matheusa-passareli-e-revolucao-e-amor-diz-amiga-de-


estudante-executada-no-rio/

61
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

Acreditamos que uma parcela significativa da população trans, incluindo homens trans,
pessoas transmasculinas e não-binárias, ao enfrentar a violência ou perder a vida, muitas vezes
são erroneamente identificadas, desconsiderando-se sua verdadeira identidade de gênero. Isso
pode ocorrer devido à falta de retificação de documentos ou à focalização na genitalização das
pessoas trans, especialmente aquelas em fases iniciais de transição ou que ainda apresentam
características ou leituras sociais associadas ao gênero atribuído no nascimento.

4.Elementos comuns
“As vezes temos a impressão de que o único tema sobre o qual temos permissão para falar é o
das violências, pois é isso que parecemos merecer: violências. Quando tentamos abordar outros
assuntos, somos constantemente interrogadas e questionados, pois, afinal, não nos é permitido
discutir sobre o amor, já que não somos considerados merecedores desse sentimento. Parece
que não temos espaço para compartilhar, questionar ou revelar experiências em outros con-
textos. Qual a liberdade que os lugares, ou a falta deles, nos proporcionam? E qual liberdade as
violências nos concedem?” (Aurora, mulher trans)112

Entre os elementos mais comuns nos casos levantados por esta pesquisa permanecem
exatamente o mesmo perfil das vítimas, que se entrecruzam e são:

• A maior parte das vítimas é jovem, entre 13 e 29 anos;


• 79% das vítimas tinham menos de 35 anos de idade;
• A maioria é negra, empobrecida e reivindica ou expressa publicamente o gênero
feminino;
• Observamos uma pequena mudança no perfil racial com o aumento no numero de
assassinatos de pessoas trans brancas;
• Homens trans e pessoas transmasculinas são minoria em crimes de assassinatos/
homicídio violentos;
• Travestis e mulheres trans têm até 32 vezes mais chances de serem assassinadas que
homens trans, pessoas transmasculinas e pessoas não binárias;
• Entre as vítimas, a prostituição é a fonte de renda mais frequente;
• Estéticas e aparências não normativas são fatores de alto risco;
• Uma pessoa trans que, não fez modificações corporais e não expressa sua
inconformidade de gênero explicitamente não confronta a sociedade cis, não estará
exposta as mesmas violências que as demais;
• Os crimes ocorrem majoritariamente em locais públicos, principalmente, em via pública,

112 Nome adotado por esta pesquisa a fim de proteger a identidade da autora a fim de evitar ataques diretos, e
preservar sua integridade física e mental.

62
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

em ruas desertas e à noite;


• Os casos acontecem em sua maioria com uso excessivo de violência e requintes de
crueldade;
• A maior parte dos suspeitos, em geral, não costumam ter relação direta, social ou
afetiva com a vítima;
• As práticas policiais e judiciais ainda se caracterizam pela falta de rigor na investigação,
identificação e prisão dos suspeitos;
• É constante a ausência, precariedade e a fragilidade dos dados, muitas vezes
intencionalmente, usados para ocultar ou manipular a ideia de uma diminuição dos
casos em determinada região;
• A importância e a gravidade desses crimes tendem a ser minimizados e justificados
pela identidade de gênero, atribuindo-lhes responsabilidade por suas próprias mortes;
• Há casos dados sendo registrados como "morte por causas naturais", o que prejudica a
implementação de um inquérito adequado para buscar as verdadeiras causas da morte,
destacando, em particular, a falta de inquérito sobre as ações e envolvimento de forças
policiais;
• Muitos casos de homicídio tentado (tentativas de assassinato) são registrados como
“lesão corporal”, minimizando a violência e ignorando a própria classificação da
tentativa de assassinato;
• Não há respeito à identidade de gênero das vítimas transfemininas que se encontravam
em vulnerabilidade na condução dos casos e elas são registradas como indivíduos do
“sexo masculino”, o que aumenta a subnotificação e dificulta a identificação dos casos
para fins de pesquisa;
• Os casos criminais são afetados pelos estigmas e preconceitos negativos que pesam
sobre as travestis e as mulheres trans;
• O Cenário de políticas institucionais antitrans favorecem o assassinato e a impunidade;
• A Associação de grupos fundamentalistas religiosos e de gênero incentivam o ódio por
meio de narrativas que impõem medo e estigma sobre pessoas trans;
• O descrédito de suas vozes coloca pessoas trans em posições desfavoráveis ​​como
testemunhas e vítimas e, por sua vez, promove seus agressores;
• É comum a palavra dos assassinos ser utilizada para obstruir ou enfraquecer o
indiciamento ou julgamento por se apresentarem como “senhores de bem”;
• Travestis e mulheres trans são frequentemente recebidas muito mais como suspeitas
do que como queixosas ou testemunhas. Isso as desencoraja de recorrer à Justiça ou às
forças policiais, particularmente, no caso de pessoas envolvidas em prostituição. Nos
casos em que os autores fazem parte da força policial, isso também coloca em risco a
vida daqueles que tentam solucionar o crime113;
• A impunidade favorece o assassinato.

113 Ver em: < https://catarinas.info/a-resistencia-trans-no-pais-que-mais-mata-travestis-e-transexuais/>

63
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

5. Identidade de gênero das vítimas na mídia


A imprensa, mais especificamente jornais, blogs e outros canais de notícias, representam a
principal fonte de dados desta pesquisa, com 80% dos casos. Um número expressivo que revela
a importância da mídia para esta pesquisa e sobretudo a respeito dos casos reportados, tendo
as redações e respectivos jornalistas como principais responsáveis pela notícia.

Dos 145 casos que compõem a base de dados de 2023, encontramos 29 (20%) que vieram
de fontes complementares, sejam de relatos testemunhais e/ou de grupos específicos como
já mencionado na metodologia. Frise-se que os dados, vindos de fontes complementares, são
importantíssimos, visto que estariam “perdidos” junto a tantas outras mortes ignoradas e dos
casos subnotificados ao longo dos anos.

Neste ano, considerando uma notável mudança na forma de reportar os assassinatos e


mortes contra pessoas trans, identificamos 4 (quatro) casos nos quais não foi respeitada ou
reportada corretamente a identidade de gênero das vítimas, tratando travestis e mulheres trans
como “homens” ou “homossexuais” nas notícias, restando para a equipe de pesquisa buscar
mais informações a fim de identificar e confirmar a forma com que as vítimas se reconheciam.
“Homem morto” foi usado duas vezes, “homossexual” uma e em uma das matérias tratava-se de
um homem trans onde esta informação não estava disponível em nenhum veiculo, tendo sido
atestada através de uma instituição de homens trans que conhecia a vitima e trouxe a infor-
mação adequada.

Tivemos ainda 45 (quarenta e cinco) fontes que expuseram o nome de registro das vitimas,
o que dá em torno de 31% do total, das quais muitas delas sequer mencionaram o nome social
das vítimas. Além disso, 12% dos casos não trouxeram qualquer informação sobre a identifi-
cação das vítimas, correspondendo a 18 casos dos 145 considerados nessa pesquisa. Ambos os
índices foram similares ao que havia sido publicado em 2022.

Gráfico: Respeito à identidade de gênero e exposição do nome de registro (%)


93 91
89
71
68
63 47
42 45

17
14 10
5 4

2017 2018 2019 2020 2021 2022 2023

ID de gênero Exposição do nome de registro

64
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

6.Tipos de assassinatos
Neste capítulo, examinaremos dados relativos à execução dos crimes, incluindo as ferra-
mentas empregadas, os métodos presumidamente utilizados pelos suspeitos para manusear
essas ferramentas e os procedimentos adotados durante o ato homicida. A relevância das infor-
mações sobre os locais não deve ser subestimada, uma vez que elas contextualizam onde os
crimes ocorreram e suas circunstâncias.

6.1 Ferramentas empregadas e métodos utilizados


Dentre os assassinatos notificados em 2023, em 23 notícias (16%) não houve informações
sobre o tipo de ferramenta/meio utilizado para cometer o assassinato. Dos 122 casos restantes,
56 (46%) foram cometidos por armas de fogo; 29 (24%) por arma branca; 12 (10%) por espan-
camento, apedrejamento, asfixia e/ou estrangulamento e; 25 (20%) de outros meios, como pau-
ladas, degolamento e corpos carbonizados. Houve, ainda, 24 casos de execução114 com número
elevado de tiros ou a queima roupa e/ou através de um número elevado de perfurações por
esfaqueamento ou objeto cortante.

A partir das análises dos casos, em 2023, pelo menos 54% dos casos os assassinatos foram
apresentados com requintes de crueldade, como o uso excessivo de violência, múltiplos golpes,
degolamento, e a associação com mais de um método e outras formas brutais de violência como
o corpo arrastado pela rua e a localização dos golpes em regiões como cabeça, seios e geni-
tais. Isso denota um elemento facilmente identificado em feminicídios e outros crimes de ódio, e
denuncia a transfobia presente neste tipo de crime.

114 No contexto do crime de assassinato, a configuração de uma execução refere-se à forma como o homicídio é
perpetrado. Elementos como a escolha consciente dos meios utilizados, a forma da execução do crime e a busca por
assegurar a impunidade ou vantagem são considerados na análise. Além disso, a incidência do elemento temporal,
ou seja, a prática do crime imediatamente após uma provocação injusta ou o fator surpresa, podem ser relevantes na
caracterização de uma execução no crime de assassinato. A maneira específica como o homicídio é cometido, visando
a consumação do ato, a ocultação de provas ou a obtenção de benefícios, são fatores determinantes na identificação
de uma execução nesse contexto.

65
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

Gráfico: Ferramentas empregadas e métodos utilizados(%)

Tiros Facadas Espancamento/ Outra


Estrangulamento
2017 52% 18% 17% 13%
2018 53% 21% 19% 7%
2019 43% 28% 15% 14%
2020 47% 21% 24% 8%
2021 47% 24% 24% 5%
2022 41% 24% 16% 10%
2023 46% 24% 10% 20%

Observamos ainda que em 14 casos houve a associação com outros métodos cruzados
durante o homicídio, como tiros, facadas, espancamento, pauladas, tortura, etc. No quadro abaixo
podem ser observados os meios e tipos de métodos empregados nos assassinatos em 2023.

Quadro: Meios e tipos de métodos utilizados nos assassinatos em 2023

Tipo de Ferramentas/Métodos

Afogamento Espancamento + Asfixia


Apedrejamento Espancamento + Esfaqueamento
Arma de fogo Espancamento + Queimaduras
Arma de fogo + facadas Facadas + espancamento
Arma de fogo + Ateamento de fogo Facadas + tiros
Asfixia Golpes de pedra + de madeira
Atropelamento Intencional Pauladas
Enforcamento/Estrangulamento Pauladas + Facadas
Esfaqueamento Pauladas + Enforcamento
Esfaqueamento + Esquartejamento Pauladas e pedradas
Esfaqueamento + Pauladas Pedradas
Espancamento + Arma de fogo Queimaduras (Ateamento de fogo)

66
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

6.2 Crimes de ódio motivados pela identidade de gênero


das pessoas trans
Crimes de ódio com motivações LGBTIfóbicas, enraizados no patriarcado e no machismo,
e incluem a misoginia, o racismo, a lgbtifobia, o capacitismo, entre outros, nos quais o ódio cis-
sexista impacta diretamente toda a comunidade trans e mais diretamente travestis e mulheres
trans. Defendemos que elas devem ser integradas e protegidas por políticas destinadas a todas
as mulheres, especialmente aquelas voltadas para vítimas de violência de gênero, sem hierar-
quia ou discriminação entre identidades cisgêneras e trans.

Existe uma lacuna na discussão a respeito dos crimes de ódio no país. E a crítica recai sobre
a falta de conscientização e compreensão abrangente desses crimes. É necessário discutir não
apenas as manifestações explícitas, como o racismo e a lgbtifobia, mas também suas nuances,
como o etnocentrismo, a xenofobia e a intolerância religiosa115, assim como os impactos direitos
da vida das pessoas fora do ambiente virtual. A compreensão precisa evoluir para incluir todas
as formas de discriminação, visto que são interligadas e refletem a urgência de uma abordagem
ampliada, que defina sobretudo os limites da liberdade de expressão e das manifestações de
ódio nas redes sociais, sem se limitar a elas.

Além disso, ressaltamos a necessidade de enfrentar juridicamente o discurso de ódio no país.


Os desafios jurídicos destacados durante debates recentes alertam para a importância de polí-
ticas eficazes e instrumentos legais para combater e punir os responsáveis por esses crimes116.

A diferenciação dos crimes de ódio em relação aos crimes comuns reside na motivação,
sendo perpetrados devido à intolerância do agente em relação à vítima, por ela pertencer a
um grupo social considerado intolerável, sempre sobre um grupo hegemônico em relação a
um grupo minorizado, nunca o contrário. Isso é evidente na transfobia, que engloba violências
físicas, morais e discriminações contra travestis, mulheres transexuais e homens trans, assim
como na homofobia e bifobia, que visam lésbicas, gays e bissexuais. Os crimes de ódio são ainda
mais graves para a nossa população, visto que refletem uma intolerância fundamentada na iden-
tidade da vítima, tornando, por exemplo, um homicídio motivado por intolerância mais grave do
que um resultado de circunstâncias momentâneas. Essa perspectiva tem sido destacada desde
2017 por essa pesquisa.

Os homicídios motivados pelo ódio se caracterizam prioritariamente pela repetição de


métodos, intensidade e quantidade de golpes, envolvendo meios cruéis e a ausência de defesa
da vítima. A escolha dos artefatos utilizados e o local do assassinato variam, sendo cometidos
em espaços públicos, de difícil acesso ou locais privados, evidenciando diferenças nos métodos
utilizados pelos agressores.

115 https://www.defensoria.ce.def.br/noticia/entenda-o-que-sao-crimes-de-odio-e-como-denunciar-praticas-na-defensoria-
publica/
116 https://direitoshumanos.dpu.def.br/debate-destaca-desafios-juridicos-para-o-combate-ao-discurso-de-odio/

67
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

A crescente incidência de crimes de ódio no Brasil demanda uma ampliação urgente das
discussões sobre o tema117. A sociedade brasileira enfrenta um cenário alarmante, evidenciado
pelo aumento significativo de denúncias de crimes envolvendo discurso de ódio pela internet,
ultrapassando a marca de 74 mil em 2022118.

A publicação de estratégias e recomendações pelo Governo Federal para combater o dis-


curso de ódio e extremismo reforça a necessidade de ações concretas e efetivas para enfrentar
essa realidade alarmante119. Portanto, a urgência na ampliação dessas discussões se justifica
pela necessidade de conscientização, compreensão ampla e ações concretas para proteger os
direitos humanos das pessoas trans e promover um ambiente livre de transfobia.

6.3 Local dos assassinatos


Em 2023, 15 fontes não informaram dados sobre o local onde os crimes ocorreram. Dentre
os 130 dados que trouxeram informações sobre o local do ocorrido, foi constatado que, 77 (60%)
dos assassinatos aconteceram em espaços públicos e 53 (40%) deles em locais privados. A
maior parte dos assassinatos ocorreu no período noturno, com 62% dos casos.

O espaço público continua sendo o mais perigoso e com o maior número de casos de assas-
sinatos contra pessoas trans, principalmente em ruas e avenidas. Havendo ainda diversos corpos
que foram encontrados em terrenos baldios e obras abandonadas, dentro de rios e lagos, praças
e na zona rural de cidades do interior. Já nos espaços privados, a residência da vítima aparece
com o local onde mais houve casos, além de motéis, unidades de saúde, e ainda residências de
terceiros.

A) Territórios de favelas
A persistência das dificuldades e limitações na monitorização dos casos de violência contra
pessoas trans em territórios de favelas revela uma lacuna crítica na proteção desses indiví-
duos. Essas áreas, muitas vezes negligenciadas pelo Estado, tornam-se palco de situações alar-
mantes, exacerbadas pelo abandono governamental.

A presença do narcotráfico e milícias compostas por policiais, incluindo aqueles da reserva


e da ativa, amplifica o desafio, tornando essas figuras frequentemente os principais perpetra-

117 https://www.conectas.org/noticias/caminhos-para-enfrentar-o-discurso-de-odio-no-brasil/
118 https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2023-02/denuncias-de-crimes-na-internet-com-discurso-
de-odio-crescem-em-2022
119 https://www.gov.br/secom/pt-br/assuntos/noticias/2023/07/governo-publica-estrategias-e-recomendacoes-para-
o-combate-ao-discurso-de-odio-e-ao-extremismo

68
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

dores de violência transfóbica. A complexidade desse cenário exige uma abordagem abrangente
para enfrentar as raízes estruturais dessa violência.

A ausência de monitoramento eficaz reflete a omissão estatal pelos residentes de favelas e


comunidades, e esse cenário se agrava no casos da população trans. A negligência alimenta um
ciclo de violência, marginalização e discriminação. É urgente a necessidade de uma mudança
estrutural, incluindo investimentos em segurança, educação e programas sociais nessas comu-
nidades, assim como a destinação de recursos para o fortalecimento institucional das orga-
nizações da sociedade civil que atuam no território. Além disso, é essencial uma abordagem
educacional para combater a transfobia e métodos alternativos para denuncias e protocolos
específicos a fim de assegurar a segurança das vitimas. O envolvimento da comunidade é fun-
damental. Fortalecer liderança locais, criar redes de apoio e promover a conscientização são
passos cruciais para romper com a cultura de violência.

A superação desses desafios requer não apenas políticas atentas à diversidade no sentido
amplo, mas uma transformação cultural profunda e que observe as dinâmicas de cada território.

7. Perfil dos suspeitos


Apesar de existirem poucos dados sobre a identidade dos suspeitos, identificamos 37
notícias entre as 145 fontes, nas quais os suspeitos foram reconhecidos, sendo que em 29
dessas notícias foi informado que os suspeitos foram identificados e/ou detidos. Um caso sin-
gular foi registrado em que uma travesti foi presa como suposta mandante; nos demais, os
suspeitos são homens cisgêneros. Nas demais situações, não houve identificação ou prisão de
nenhum suspeito.

Entre os casos identificados, 11 suspeitos tinham algum vínculo afetivo com a vítima, como
namorado, ex-namorado ou marido. Outros 12 casos ocorreram em contextos de programas
sexuais contratados pelos suspeitos. Registramos um incidente em que uma vítima foi morta
ao proteger uma amiga cis de um ataque femicida, um caso em que o suspeito era cunhado da
vítima e dois casos em que o suspeito era vizinho da vítima. Observamos uma frequência de
menores de idade entre os suspeitos. E no geral, os números e as informações sobre os sus-
peitos tem sido insuficientes para criar qualquer perfil mais aprofundado que forneça informa-
ções mais detalhadas sobre os suspeitos ou a solução dos casos.

Em diversos casos identificamos uma narrativa em que os suspeitos tentaram transferir


a responsabilidade ou justificar o assassinato alegando legítima defesa. Consideramos inacei-
tável buscar justificativas racionais para o assassino ou culpar a vítima, sob qualquer circuns-
tância. A narrativa que utiliza a suposta "defesa da honra" (masculinidade) como justificativa

69
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

para o assassinato, mesmo em casos em que a vítima foi carbonizada, degolada ou esquartejada,
e o suspeito alega legítima defesa, é inaceitável. A desesperada luta pela manutenção do poder
patriarcal tem causado sérios problemas à humanidade, resultando em um aumento contínuo
de vítimas.

Em declarações mais frequentes se repetem, quase que ensaiadas e repetidas pelos perpe-
tradores, muitos suspeitos conseguem relatar os crimes com riqueza de detalhes e sem demons-
trar qualquer arrependimento. Eles afirmam ter agido em legítima defesa, alegando tentativas
de roubo ou extorsão, desentendimentos devido à falta de pagamento ou a reação da vítima
diante da tentativa de não pagamento do programa pelo suspeito. Essas desculpas têm sido uti-
lizadas – e aceitas por policiais e pelo sistema de justiça – como justificativa para o assassinato
daquelas vidas que eram utilizadas em programas sexuais.

7.1 Laura Vermont e a luta contra a impunidade120


O assassinato brutal da travesti Laura Vermont, de 18 anos, gerou revolta devido ao resul-
tado do julgamento. Ocorrido em 2015, após 8 anos, o crime teve julgamento realizado em maio
de 2023, no qual a Justiça de São Paulo condenou três dos 5 acusados por lesão corporal leve,
enquanto outros dois foram absolvidos. O caso revela como a polícia e o sistema de justiça trata
as violências e assassinatos contra a população trans.

A decisão causou críticas devido às violências do caso, no qual a vítima foi perseguida e
agredida com socos, chutes e pauladas por 5 homens a poucos metros da casa onde a família
da vítima vivia. Um deles teria usado, ainda, um pedaço de madeira para agredir Laura. Ela ainda
tentou pedir ajuda em uma padaria, mas sofreu a negativa de socorro sendo expulsa do local e
voltou a ser agredida pelo grupo.

Após as agressões, Laura teria ainda conseguido pedir ajuda, mas foi baleada. Ela havia
encontrado dois policiais lotados no 39º Batalhão da PM, na zona leste da cidade. Na primeira
versão dada à Polícia Civil, os policiais afirmaram que Laura roubou a viatura e bateu o carro em
um muro. Eles não falaram sobre o tiro no braço da vítima, identificado pela perícia.

Os PMs chegaram a ser presos em 2015 por fraudar provas do caso, mas foram soltos dias
depois. Eles não são mais investigados pelo crime, embora tenham sido expulsos da corporação
em dezembro de 2016121. A gestão estadual foi penalizada pela atuação dos dois policiais mili-

120 https://www.esquerdadiario.com.br/spip.php?page=gacetilla-articulo&id_article=1618
121 https://www.imprensaoficial.com.br/DO/BuscaDO2001Documento_11_4.aspx?link=%2f2016%2fexecutivo%2520
secao%2520ii%2fdezembro%2f07%2fpag_0024_3R8MO10F1LMA0e7B67JQKKIAQ98.pdf&pagina=24&da-
ta=07/12/2016&caderno=Executivo%20II&paginaordenacao=100024

70
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

tares envolvidos na morte de Laura. A Justiça condenou o governo de São Paulo a pagar R$ 50
mil de indenização à família por danos morais122.

Diferentemente de muitas outras jovens trans e travestis, Laura tinha o acolhimento da


família. Após as agressões, foram os pais de Laura, que a resgataram na rua e a levaram para
o hospital, mas ela não resistiu e morreu. Segundo o laudo do exame necroscópico, a causa da
morte foi traumatismo cranioencefálico e insuficiência respiratória por ação de objeto contun-
dente.

No julgamento, o Conselho de Sentença confirmou a comprovação do envolvimento dos


três condenados por lesão corporal leve, mas alegou que as agressões não tinham a intenção
de matar. Dessa forma, foi afastada a acusação de tentativa de homicídio, mesmo estando explí-
citos os requintes de crueldade e ela sido vítima de um grupo de 5 homens que torturaram, lhe
deram socos, chutes e pauladas.

É comum nesses casos, o lançamento de “lesão corporal” no registro, afastando-se a tenta-


tiva de homicídio e seus qualificadores, o que acaba por dificultar o devido cuidado a vítima,
assim como a possibilidade de responsabilização dos suspeitos e o acesso a justiça repara-
dora. Em muitos casos, movimentos sociais têm que fazer diversas mobilizações e denúncias
para que o caso seja devidamente lavrado como homicídio tentado. (ANTRA, 2023123)

Segundo o Tribunal de Justiça, o Conselho de Sentença do júri afirmou “a materialidade e


autoria do crime em relação aos três réus que agrediram a vítima, mas deixou de reconhecer que
eles tivessem dado início à execução de um crime de homicídio, afastando, assim, a intenção de
matar, o que gerou a desclassificação da acusação de tentativa de homicídio”. A sentença foi criti-
cada pelo governo, que considerou a pena de um ano insuficiente124.

De acordo com informações, o Ministério Público de São Paulo entrou com um pedido de
anulação do júri125, ao apontar diversos problemas durante o julgamento. "Errou o magistrado na
apreciação das lesões sofridas e praticadas pelos acusados ao considerá-las leves, sendo que a
vítima foi praticamente massacrada em seu corpo franzino de travesti pelos acusados", afirmou
João Carlos Calsavara, promotor do caso. Além disso, alegou que os jurados não prestaram
atenção nas imagens mostradas pela acusação, que demonstravam "o suplício da infeliz vítima,
que busca correr dos brutamontes que a dizimaram mediante pauladas e golpes com as mãos e os
pés". Também afirmou que os jurados ignoraram declarações dos acusados que confirmariam
se tratar de um crime de ódio.

122 https://www.cartacapital.com.br/diversidade/justica-condena-sao-paulo-a-indenizar-familia-da-travesti-laura-
vermont/
123 Dossiê ANTRA 2023.
124 https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2023/05/5095278-governo-critica-sentenca-judicial-dos-assassinos-
da-travesti-laura-vermont.html
125 https://www.estadao.com.br/sao-paulo/acusados-morte-travesti-laura-vermont-mp-anulacao-julgamento-nprm/

71
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

De acordo com matérias em jornais, o juiz que presidiu o julgamento, Roberto Zanichelli
Cintra, afirmou que a conduta dos réus "se amolda ao crime de lesão corporal leve" e que há falta
de qualquer prova ou "elemento de convicção minimamente seguro a indicar a exata natureza
das lesões experimentadas pela vítima após as agressões perpetradas pelos acusados". Ele
reconheceu que os três condenados confessaram as agressões, mas que negaram a intenção
de matar. O magistrado também destacou que as imagens anexadas aos autos mostram que a
vítima estava consciente após as agressões e conseguia caminhar, o que indicaria se tratar de
um caso de lesão corporal, "ostentando uma lesão contusa na face (próximo da boca e nariz), o
que permite concluir pela menor gravidade dos ferimentos, até então sofridos"126.

Este é um dos casos emblemáticos dentre os poucos que efetivamente chegam a virar
denuncia na justiça. Em geral, como tem-se observado ao longo dos últimos anos desde que
essa pesquisa passou a ser realizada, um número muito pequeno de casos tem o devido trata-
mento legal. Seja pela polícia ou pelo sistema de justiça, as instituições e a sociedade seguem
permitindo que esse tipo de absurdo siga ocorrendo sem respostas à altura, sem medidas efe-
tivas de responsabilização e de reparação ante a um ato tão abominável, cruel e violento.

A ANTRA junto com o Instituto Raça e Igualdade de Direitos Humanos tem estudado casos
como esse a fim de que sejam levados às cortes e instâncias internacionais para o enfrenta-
mento de decisões como essa que favorecem os suspeitos e maculam a memória das vítimas.

Ainda há muito trabalho pela frente, e seguiremos resistindo em defesa da memória de


Laura Vermont, e por todas as Lauras que anualmente têm sido assassinadas no Brasil. Que
suas mortes não sejam apenas uma nota em jornal, mas que sirvam de lembretes diários na luta
contra a transfobia, e que atuem como navalhas para cortar a hipocrisia, a transfobia e a impuni-
dade que favorece o patriarcado.

126 https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/justica-de-sp-condena-por-lesao-corporal-leve-acusados-de-matar-travesti-
laura-vermont/

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Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

8. Tentativas de homicídio (homicídio


tentado)127
É imperativo que se desenvolva um método mais eficaz para monitorar esses casos, visando
não apenas à potencial assistência às vítimas, mas também à compreensão aprofundada das
circunstâncias subjacentes à violência que resultou na tentativa de homicídio. Tal abordagem
permitirá a identificação de padrões recorrentes, bem como o conhecimento da dinâmica empre-
gada pelos suspeitos. Ademais, propõe-se a qualificação desses eventos mediante a aplicação
de marcadores associados a crimes de ódio, buscando, ainda, a identificação de elementos que
revelem a presença de transfobia.

Em 2023, foram registradas em nossas buscas pelo menos 69 tentativas de homicídio


durante a realização dessa pesquisa utilizando a mesma metodologia dos assassinatos. Sendo
66 travestis e mulheres trans, e 3 homens trans/pessoas transmasculinas. No mesmo sentido,
observamos que o perfil das vitimas, em sua grande maioria, não difere daqueles que já foi iden-
tificado entre as vítimas de assassinatos já que as tentativas de assassinatos são na verdade
assassinatos não consumados ou que as vítimas sobreviveram. Em 2022 foram 84 casos, 2021
sobreviveram 79 vítimas; no ano de 2020 haviam sido 77 tentativas; 50 em 2019; 72 em 2018 e;
58 em 2017.

Gráfico – Tentativas de Homicídio – 2023


90
84
80
79
72 77
70 69
60
58
50
50
40
30
20
10
0
2017 2018 2019 2020 2021 2022 2023

127 Consideramos para fins desta pesquisa como tentativas de assassinato (homicídio tentado), os casos onde a
vítima tenha sido submetida a situações de violência em que o assassinato não tenha sido consumado e onde as
dinâmicas presentes nos casos de homicídios não consumados chamam atenção pela similaridade com os elementos
contidos nos casos consumados.

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Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

Ao observar as nuances dos casos, não muito diferente dos anos anteriores, a forma expli-
cita do desejo de matar aparece em elementos muito peculiares durante o cenário da violência
que podem ser observados e que podem aparecer conjuntamente, tais como: a) Uso de mais
de uma ferramenta durante ato (facadas, tiros, espancamento); b) A quantidade e golpes, tiros
ou pancadas; c) A incapacidade de defesa da vítima; d) Uso da força extrema aplicada; e) Fato
cometido por mais de um elemento; f) Sinais explícitos de crueldade e/ou tortura (a pessoa pode
ter sido amarrada, ateada fogo, tido os cabelos raspados, etc.); g) O local dos golpes no corpo
(cabeça, seios e genitais); h) O fato de a expressão de gênero ser não normativa e; i) Identidade
de gênero pública da vítima.

Esses componentes têm sido fatores determinantes para a escolha da vítima, a situação de
violência a que foi submetida e que muitas vezes vai denunciar a existência de diversos desses
elementos contidos simultaneamente no mesmo crime.

Figura: Elementos presentes nas tentativas de assassinatos

Identidade de
Expressão de gênero gênero da vítima Diversas ferramentas
não normativa empregadas

Local dos Quantidade


golpes de golpes
Tentativas de
assassinato
Sinais de Impossibilidade
crueldade/tortura de defesa

Mais de uma Uso extremo


pessoa de força

Destacamos que, embora tenham sobrevivido, essas pessoas enfrentam processos dolo-
rosos para seguir em frente. A experiência de sobreviver a uma tentativa de assassinato pode
deixar cicatrizes profundas nas vítimas, afetando não apenas sua saúde física, mas também sua
saúde mental e emocional. Além disso, estudos destacam que familiares de vítimas de homicí-
dios, muitas vezes chamados de sobreviventes, enfrentam desafios significativos ao lidar com
essa questão complexa128.

128 https://www.scielo.br/j/csc/a/RKt3cYpScHCCV6yDhTXHRBS

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Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

Entre os impactos observados estão o luto, a dificuldade em lidar com a perda e a necessi-
dade de encontrar maneiras de reconstruir suas vidas após o trauma129. A conscientização sobre
as assimetrias presentes na violência urbana, como a disparidade racial nas vítimas de homi-
cídio, também é fundamental para abordar as causas subjacentes dessa questão e implementar
políticas preventivas130.

Para lidar com o impacto das tentativas de assassinato, é essencial oferecer apoio psicoló-
gico e emocional às vítimas e seus familiares. Estratégias incluem buscar a ajuda de profissio-
nais de saúde mental, participar de grupos de apoio, e recorrer à fé como uma fonte de conforto
durante o processo de recuperação131. Além disso, compreender e enfrentar os traumas cau-
sados por tentativas de assassinato pode envolver o desenvolvimento de estratégias individuais
de resiliência e a promoção de ambientes de apoio social132. E como assegurar essas estratégias
quando falamos de travestis e mulheres trans?

Em relação ao gênero das vítimas, destaca-se que, em sua maioria, as vítimas eram tra-
vestis ou mulheres trans que atuam/atuavam como profissional do sexo, e esse fato chama
atenção para a violência de gênero que corrobora com os dados de assassinato, assim como as
tentativas de homicídio de pessoas trans no país, das quais a maior parte das vítimas são pes-
soas transfemininas.

9. Dados internacionais – 2023


Há uma preocupação a respeito da ascensão de uma agenda antitrans ao redor do mundo e
que ganha força com representantes políticos. Os ataques às pessoas trans estão se fortalecendo
no mundo inteiro. Os Estados Unidos e o Reino Unido despontam como grandes representantes do
retrocesso milimetricamente planejado nos direitos das pessoas dissidentes de gênero.

9.1 Alianças transnacionais antitrans


O Reino Unido se tornou um dos piores lugares da Europa para ser trans.
Confirmando o que muitas pessoas trans que vivem lá já sabem há bastante tempo, o Reino
Unido foi classificado como um dos lugares mais transfóbicos da Europa e da Ásia Central com

129 https://www.scielo.br/j/physis/a/43VGqQY4jdsHHYMZ8FCCznx/?lang=pt
130 https://mundoeducacao.uol.com.br/geografia/violencia-urbana-no-brasil.htm
131 http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672015000200006 e https://www.arca.
fiocruz.br/bitstream/handle/icict/37109/?sequence=2
132 https://porvir.org/violencias-na-fase-escolar-causam-impacto-para-a-vida-toda-diz-especialista-em-trauma/

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Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

fortes influências da extrema direita e de grupos antitrans, recebendo o apoio e investimentos


desses grupos radicais. Nesse ínterim, Cabe destacar a atuação da escritora JK Rowlling, que
tem financiado e protagonizado uma campanha violenta contra os direitos trans.

No Reino Unido, sob o governo do primeiro-ministro conservador Rishi Sunak, eventos cho-
cantes têm reverberado pelo mundo e casos de violências antitrans colocaram UK em alerta em
relação à segurança das pessoas trans. Houve ainda o assassinato de uma adolescente trans de
16 anos motivados pelo ódio e que gerou grande comoção nacional.

A edição de 2023 do Mapa dos Direitos Trans133 , publicado pelo grupo de defesa dos
direitos trans Transgender Europe (TGEU), analisa políticas que impactam as pessoas trans em
49 países da Europa e da Ásia Central. De uma pontuação máxima possível de 30, o Reino Unido
obteve menos da metade, com 14 pontos. O país que obteve a maior pontuação foi a Islândia,
com 26 dos 30 pontos. Outros países com pontuações baixas incluem a Romênia (um ponto), a
Turquia (dois pontos) e a Rússia (cinco pontos). As classificações utilizam indicadores positivos
como o reconhecimento legal de gênero, asilo, discurso de ódio/crime, não discriminação, saúde
e família, atribuindo pontos para cada indicador que um país cumpre.

Embora o Reino Unido tenha algumas políticas para pessoas trans, a análise do TGEU
revelou diversas áreas das políticas do Reino Unido em relação às pessoas trans que retroce-
deram gravemente.

Um relatório de 2021 conduzido pelo grupo de defesa TransActual UK descobriu que uma em
cada sete pessoas trans no Reino Unido foi rejeitada por um clínico geral por ser trans. O acesso
a cuidados de afirmação de gênero também é incrivelmente limitado. Em agosto, a BBC informou
que as pessoas trans esperaram até sete anos por uma avaliação inicial do Serviço Nacional de
Saúde. Em comentários ao Pink News , Freya Watkins, oficial de pesquisa do TGEU, disse: “Em
última análise, a legislação não significa nada sem implementação”. Ela acrescentou que os dados
mostram que o Reino Unido “retrocedeu, de líderes progressistas do nosso índice em 2013 para
lugares onde o ódio antitrans é generalizado na mídia e nas agendas governamentais”.

Recentemente o Reino Unido protagonizou um caso gravíssimo de transfeminicídio de uma


adolescente de 16 anos134, no qual dois adolescentes foram considerados culpados por esse
crime hediondo, que deixou a sociedade perplexa diante da violência perpetrada. O caso revela
não apenas a dimensão trágica da violência contra pessoas trans, mas também lança luz sobre
questões mais amplas, como o incentivo a esse tipo de violência a partir da disseminação de
ódio e o planejamento meticuloso de como antecedeu o ato cruel. O envolvimento de um casal
de adolescentes nesse crime suscita debates sobre as influências sociais, a falta de empatia e a
necessidade urgente de educação para prevenir tais tragédias.

É essencial que a sociedade confronte a transfobia evidente nesse episódio, bem como ana-

133 https://tgeu.org/trans-rights-map-2023/
134 https://www.bbc.com/news/uk-england-manchester-67783963

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Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

lise a responsabilidade coletiva na promoção de ambientes mais inclusivos e seguros para todas
as pessoas. A identificação desses eventos trágicos deve servir como um chamado à ação para
combater a intolerância e promover a aceitação da diversidade.

Lamentavelmente, a história de Brianna Ghey destaca a persistência de desafios significa-


tivos enfrentados por pessoas trans e a urgência de uma transformação cultural para criar um
mundo mais compassivo e seguro para todos, independentemente de sua identidade de gênero.

Na Austrália, um ato antitrans convocado por feministas cissexistas resultou na presença


de neonazistas nas ruas de Melbourne135. Esse episódio, conforme descrito pelo jornal austra-
liano The Saturday Paper, evidencia como grupos as vezes antagônicos encontram um propósito
em comum ao visar pessoas trans, um dos grupos sociais mais vulneráveis dos tempos atuais.

Além disso, durante a Conservative Political Action Conference - CPAC, a maior reunião de
políticos de extrema direita do mundo, Michael Knowles, afirmou categoricamente que “para o
bem da sociedade, a transexualidade deve ser erradicada da vida pública totalmente, em todos
os níveis136”. Esse chamado explícito para o genocídio da população trans aconteceu durante a
CPAC, maior reunião de políticos de extrema direita do mundo — Bolsonaro estava lá, inclusive.
Somente em 2023, mais de 500 projetos de lei antitrans137 foram propostos ou adotados em
quase todos os estados dos EUA. Muitos deles tem sido replicados no Brasil.

Não importa se deputados transfóbicos e as “feministas” transexcludentes (TERFs, na sigla


em inglês) alegam querer proteger as mulheres de um perigo imaginário. Não importa se Trump,
Sunak e Bolsonaro dizem defender o “cidadão de bem” ou os “valores cristãos”. Não importa se
Putin discursa sobre “proteger a sociedade russa dos valores ocidentais”. Nada disso importa. O
que importa e o que deve, de fato, nos preocupar, é que todos eles se encontram na mesma esquina
do ódio antitrans. São pequenas variações nas justificativas, mas grandes convergências quando o
foco é a agenda antitrans. E tudo parte do mesmo pacote com táticas equivalentes para promover
a "weponization138" do gênero, da identidade de género; do antissemitismo, do antiracismo, do anti-
feminismo entre outras pautas instrumentalizadas negativamente pela ultradireita.

Essa mobilização está sendo organizada em outros países da Europa, América do sul e central. A
desmistificação desses argumentos é crucial para promover uma compreensão precisa da realidade
das pessoas trans, destacando a necessidade de basear as discussões em evidências e respeito.

135 https://www.thesaturdaypaper.com.au/news/2023/03/25/terf-wars-and-neo-nazis#hrd
136 https://www.them.us/story/michael-knowles-transgenderism-cpac
137 https://translegislation.com/
138 Weaponization, traduzido livremente como "armamentização", refere-se ao processo de transformar algo em uma
arma ou utilizá-lo com propósitos de causar guerras/disputas ideológicas no contexto das politicas antigênero. Esse
termo pode abranger diversas áreas, e consiste na manipulação de informações, desinformação e ciberataques para
atingir objetivos, moldar opiniões públicas ou manipular opiniões públicas. É importante ressaltar que a weaponization
levanta questões éticas, legais e humanitárias devido suas consequências, e a comunidade internacional busca
estabelecer normas para limitar o uso de certas tecnologias ou práticas para fins prejudiciais.

77
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

9.2 Brasil, 15 anos no topo do genocídio trans139


O projeto de pesquisa Trans Murder Monitoring (TMM) monitora, coleta e analisa sistema-
ticamente os relatórios de homicídios de pessoas trans e com diversidade de gênero em todo
o mundo desde 2008140. Desde o início do levantamento, pelo 15º ano consecutivo, o Brasil tem
sido o país que mais reporta assassinatos de pessoas trans no mundo, enquanto 73% dos assas-
sinatos ocorreram na a América Latina e Caribe.

Por ocasião do dia internacional da memória trans, no dia 20 de novembro de 2023, a equipe
do Transrespect versus Transphobia World Wilde (TvT) publicou os resultados do Observatório de
pessoas trans assassinadas no mundo141. Ao todo, foram 320 assassinatos registrados durante o
período, e pelo menos 100 aconteceram no Brasil, ou seja, 31% do total.

Os dados são coletados anualmente entre 1 de outubro do ano anterior e 30 de setembro do


corrente ano, e não entre 1º de janeiro e 31 de dezembro como acontece com a pesquisa da ANTRA.

Mapa: Monitoramento TGEU – 2023142

Reprodução TGEU/TMM

A análise publicada em 2023, mostra ainda que 94% dos assassinados em todo o mundo
eram mulheres trans ou pessoas transfemininas. Reforçando as pesquisas brasileiras, nas quais
esse ano a ANTRA tem demonstrado que a violência de gênero aparece como um dos principais

139 Publicado originalmente em: https://catarinas.info/brasil-15-anos-do-topo-do-genocidio-trans/


140 As atualizações dos resultados estão publicadas no site da TvT. Disponível em: https://transrespect.org/en
141 Dados TGEU/2023 – TMM. Disponível em: https://transrespect.org/en/trans-murder-monitoring-2023/
142 Mapa com números absolutos TGEU. Disponível em: https://transrespect.org/en/map/trans-murder-monitoring/
?submap=tmm_2023

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Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

fatores no assassinato de pessoas trans. O perfil das vítimas permanece o mesmo, sendo que
80% eram pessoas trans negras/racializadas, a maioria entre 19 e 25 anos, vivendo publica-
mente com identidades de gênero femininas — travestis e mulheres trans.

De todos os casos com dados de idade disponíveis, três quartos (77%) tinham entre 19 e 40
anos. A pesquisa também revelou que 46% dos assassinatos relatados foram por armas de fogo,
48% das vítimas atuavam como profissionais do sexo e as ruas continuam sendo o espaço de
maior incidência dos assassinatos.

9.3 Brasil x Estados Unidos


Nos EUA, de acordo com a Human Rights Campaign (HRC), instituição responsável por sis-
tematizar os assassinatos de pessoas trans naquele país desde 2013, pelo menos 31 pessoas
trans foram assassinadas em 2023143; em 2022 haviam sido 35 assassinatos, em 2021 foram 50;
em 2020 44 casos; em 2019, 27 e; 26 em 2018. Em 2017 haviam sido 29. Enquanto isso, no Brasil
houve em 2017, 179 assassinatos; seguidos de 163, 124 e 175 em 2018 2019 e 2020, respectiva-
mente e; 140 assassinatos em 2021, 131 em 2022 e 145 em 2023.

Dentre as vítimas de lá, 84% eram pessoas racializadas (negras, latinas e outras), a maioria
eram mulheres trans e 77% foram vitimadas por arma de fogo. No site da instituição, há a infor-
mação que “alguns desses casos envolvem um explícito preconceito antitrans. E em outros, a iden-
tidade trans ou de não conformidade de gênero da vítima pode tê-la colocado em risco de outras
formas, tais como forçá-la ao desemprego, à pobreza, à situação de rua (homelessness) e/ou ao
trabalho sexual por sobrevivência.”

Somados os últimos sete anos, os Estados Unidos tiveram 242 assassinatos, enquanto
no Brasil tivemos 1057 casos, o que representa quase cinco vezes os números dos EUA. No
gráfico abaixo traçamos um paralelo entre os números a partir de 2017, ano em que a ANTRA
passou a fazer o monitoramento no país.

Gráfico: Comparativo Brasil x EUA (2017 – 2023)


200
181 175
180 163
160 145
140 131
140
124
120
100
80
60 44 50
29 26 27 35 31
40
20
0
2017 2018 2019 2020 2021 2022 2023

Brasil EUA

143 Dados HRC 2023. https://www.hrc.org/resources/fatal-violence-against-the-transgender-and-nonbinary-community-in-2023

79
Parte II – Violações de
direitos humanos, outras
violências e suicídio

10. Violações de direitos humanos


Considerando que em 2023 mecanismos de monitoramento como o disque 100 e o disque
180 passaram a sistematizar dados sobre violações de direitos humanos contra pessoas LGB-
TQIA+, chegando a mais de 6 mil denuncias144, destacamos que neste momento não faz sentido
manter este item no dossiê, considerando a comparação entre os números que conseguimos
alcançar que foram superados pelos dados produzidos pelo estado. Não restando duvidas de
que, embora muitos desses casos precisem de maior atenção, neste quesito avançamos de
forma positiva. Desejando que sejam tomadas ações, nos comprometendo em seguir fazendo o
controle social e contribuindo para o aperfeiçoamento desses dados.

Se você se deparar com uma situação de violência ou violação dos seus direitos, como
a retirada forçada ou negativa de acesso a qualquer espaço, não deixe de registrar a ocor-
rência e pedir ajuda, mas também informar por meio do disque 100 ao Ministério dos direitos
humanos e cidadania para que possam atuar no caso. E em caso de violência contra mulheres,
incluindo travestis e mulheres trans, ligue 180. Esses dois canais governamentais são ferra-
mentas importantes no combate à transfobia.

144 https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/202401/melhorias-no-disque-100-resultam-em-aumento-de-mais-de-45-
no-numero-de-denuncias-de-violacoes-de-direitos-humanos-em-2023-se-comparado-com-2022

80
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

Seguiremos apontando caminhos para enfrentar as violações de direitos humanos. Os


dados do governo denunciam a urgência de medidas comprometidas e urgentes para erradicar
essa violência. Dentre os casos que conseguimos identificar, cerca de 90% das violações de
direitos humanos ocorreram contra pessoas transfemininas. Raça e classe têm um papel cen-
tral no tipo de violação e precisam ser melhor observados pelos órgãos competentes.

É altamente recomendado ponderar sobre a excessiva exposição das violências contra


corpos de pessoas negras, trans e outros, que persistem desprovidas de comprometimento e
ações por parte daqueles que as divulgam.

10.1 A guerra dos banheiros persiste


A histeria moral gerada em torno da questão dos banheiros é cruel. Pessoas trans, especial-
mente travestis e mulheres trans, são estigmatizadas por buscarem o direito à uma neces-
sidade fundamental de todo ser humano. E ainda há aqueles que afirmam que a transfobia
não existe.

No início de 2024, enquanto finalizávamos essa pesquisa, nos deparamos com mais um
caso de violência dentro do banheiro145, que nos alertou para a persistência da “guerra dos
banheiros146”, que seguirá em disputa o resto do ano mobilizando ódio e transfobias diversas
contra pessoas trans.

Durante o ano de 2023, acompanhamos muitos casos relacionados a banheiros envolvendo


pessoas trans e travestis, desde casos de expulsões, impedimento de acesso e assédio transfó-

145 https://www.terra.com.br/amp/nos/garcom-trans-e-agredido-com-soco-por-casal-em-bar-de-mg,dac9f061715f
2841860708633c74752baf4iyb6i.html
146 Termo usado para chamar atenção ao fato de que os banheiros se tornaram a principal trincheira de impedimento
ao acesso de pessoas trans, funcionando como um laboratório para a implementação de outras proibições mais a
frente. Limitando a vida, o direito a cidade e obviamente a própria cidadania.

81
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

bico em banheiros, seja em escolas e universidades, e também situações transfóbicas em outros


espaços sociais. Uma problemática que parece estar longe de ter fim, enquanto pessoas trans
seguem sendo agredidas e violentadas. É urgente que o Supremo Tribunal Federal finalize o
julgamento do Recurso extraordinário - RE 845.779/SC147, que trata de um caso que ocorreu em
2008148 e que está parado pendente de julgamento desde que ocorreu o pedido de vistas pelo
Ministro Fux no ano de 2015, que somente foi liberado para julgamento em junho de 2023 (8
anos depois), e ainda não há previsão para a finalização do mesmo. São 15 anos de impunidade
e violência, o mesmo período de tempo em que o país vigora no topo dos assassinatos de pes-
soas trans.

Essa guerra vem sendo insistentemente pautada em teorias da conspiração desumani-


zadoras das pessoas trans, presumindo-as como se fossem “homens cisgêneros vestidos de
mulher” (sic) e tratando-as como tal, mediante presunção de má-fé violadora do princípio geral
de Direito pelo qual a boa-fé se presume e a má-fé deve ser provada, princípio esse logica-
mente decorrente (imanente) ao direito fundamental à não-discriminação. Afinal, não se pode
presumir que as travestis e mulheres trans farão “algo errado” ou cometerão quaisquer abusos
em banheiros femininos, a partir de estereótipos discriminatórios, ao passo que o uso de este-
reótipos macula de inconstitucionalidade e inconvencionalidade as leis que deles partem (STF,
ADPF 291 e ADI 4275/RE 670.422/RS; Corte IDH, caso Atalla Riffo e filhas v. Chile, 2012).

Diversas pesquisas atestam que abusos sexuais contra crianças e mulheres cisgêneras
ocorrem geralmente em casa, por pessoas próximas, sendo de todo arbitrário (uma pura teoria
da conspiração) acreditar que o uso de banheiro por mulheres trans e travestis149 aumentaria
quaisquer riscos às mulheres cisgêneras, o que não encontra aderência na realidade de nosso
país que vive há cinco anos sob o regime de autodeclaração de gênero sem que tenha sido obser-
vado qualquer aumento de casos de estupros cometidos contra mulheres cisgêneras dentro de
banheiros públicos. Não deixando dúvidas de que a autodeclaração de gênero garantida às pes-
soas trans não guarda qualquer relação de causa ou efeito com estupros e violências sexuais
no Brasil, sobretudo porque estruturalmente a cultura do estupro parte do machismo e da miso-
ginia de homens cisgêneros.

E esse aspecto trata-se de medo causado por dano hipotético, que notoriamente não cons-
titui critério juridicamente válido, por não ser apto a gerar nexo causal, especialmente para dis-
criminações jurídicas. Como escreve o advogado doutor em Direito, Paulo Iotti, a nosso convite:

147 https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=4657292&numeroPro
cesso=845779&classeProcesso=RE&numeroTema=778
148 https://exame.com/brasil/stf-vai-decidir-se-transexual-pode-usar-banheiro-feminino/
149 Importante mencionar que a ANTRA, como instituição que atua em defesa dos direitos trans, defende que
mulheres trans e travestis compõem o grupo das identidades transfemininas que expressam o gênero feminino, não
devendo haver tratamento diferenciado entre essas duas identidades. Garantindo-se assim isonomia de acesso aos
espaços femininos as pessoas autodeclaradas mulheres trans ou travestis.

82
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

“Em uma perspectiva não meramente biológica, portanto, mulher trans mulher é” (STJ, REsp
1.977.124/SP, 6ª T, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, DJe 22.04.2022). Atestando a inconstituciona-
lidade do critério de “sexo biológico” (sic) para uso do banheiro feminino. E reconhecendo como
violação do direito fundamental ao respeito à identidade de gênero das mulheres transexuais e das
travestis como decorrência do princípio da dignidade humana, no que tange à autonomia moral que
confere às pessoas para o livre desenvolvimento de sua personalidade e desenvolvimento do seu
modo de ser e viver como bem entenderem em tudo que não prejudica terceiros(as), prejuízo este
inexistente no caso.

Há portanto, uma teratológica presunção de má-fé transfóbica por parte das pessoas que cri-
ticam referido direito das mulheres transexuais e das travestis, por tratá-las, mesmo quando não
se diz, como “homens cisgênero heterossexuais fantasiados de mulheres para assediar mulheres
cisgênero” (sic), como consequência lógica das críticas ineptas geralmente feitas. Assim, segundo
o belíssimo Parecer da PGR no RE 845.779/SC, “Não é possível que uma pessoa seja tratada social-
mente como se pertencesse a sexo diverso do qual se identifica e se apresenta publicamente, pois
a identidade sexual encontra proteção nos direitos da personalidade e na dignidade da pessoa
humana, previstos na Constituição Federal”, donde, nesses termos, “deve prevalecer o sexo psico-
lógico sobre a sexualidade meramente anatômica”.150 Por isso, a demanda dos Movimentos Trans
trata primordialmente ao uso do banheiro feminino pelas mulheres transexuais e pelas travestis a
partir do seu direito fundamental à identidade de gênero feminina.

Nesse sentido, desrespeitar a identidade de gênero das pessoas trans implica também em vio-
lação do princípio da dignidade humana. Usa-se aqui raciocínio análogo ao utilizado pelo Ministro
Marco Aurélio no julgamento da ADPF 132/ADI 4277, sobre as uniões homoafetivas. Ali Sua Exce-
lência corretamente disse que não reconhecer a família homoafetiva implica em instrumentalizar
homossexuais a um ideal heterossexista de sociedade, ou seja, que implicaria reconhecer que as
pessoas seriam merecedora do reconhecimento de suas uniões interpessoais como famílias apenas
se adotassem um modo de vida heteroafetivo. Aqui, defende-se que não impor o respeito à iden-
tidade de gênero das pessoas trans implica em coisificá-las, em instrumentalizá-las a um ideal
cissexista de sociedade, no qual só teria dignidade e respeito a pessoa cisgênera ou esta teria
maior dignidade. No presente caso, no sentido de só permitir à pessoa usar o banheiro de acordo
com sua identidade de gênero se tratarmos de uma identidade cisgênera e não transgênera. Daí a
instrumentalização cissexista da pessoa humana ao não permitir o uso do banheiro feminino por
mulheres trans.

É absolutamente necessária a ativação da função contramajoritária imanente à jurisdição


constitucional para a defesa dos direitos fundamentais neste caso. Afinal, como pontuado pelo
advogado signatário em sua sustentação oral no julgamento do RE 845.779/SC, em novembro
de 2015, basta ver o arbitrário pânico moral criado por pessoas fundamentalistas e reacionárias
em geral contra o termo “gênero” nos planos de educação: inventaram a expressão “ideologia de

150 TJRS, Apelação Cível n.º 70019900513, 8ª Câmara Cível, Relator Des. Claudir Fidelis Faccenda, j. 13.12.2007.

83
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

gênero” (SIC), que não existe em nenhum lugar dos estudos sobre gênero e sexualidade, para se
opor ao termo em qualquer lugar, no contexto dos planos de educação que visavam apenas proibir
todas as formas de discriminação, especialmente (algumas das mais comuns) por gênero (contra
mulheres relativamente a homens – cis ou trans, nos dois casos), por identidade de gênero (contra
pessoas trans relativamente a pessoas cisgênero) e por orientação sexual (contra pessoas LGB+
relativamente a pessoas heterossexuais).

O preconceito transfóbico de mulheres cis que não querem “porque não” que mulheres
trans usem o banheiro feminino, ou simplesmente por se sentirem “incomodadas” com a pre-
sença das pessoas trans em banheiros de acordo com a sua identidade de gênero não configura
critério de discriminação constitucionalmente válida, porque viola a proibição constitucional a
preconceitos de quaisquer espécies (art. 3°, IV). Afinal, por um tal “critério” do puro temor arbi-
trário, caracterizador de dano hipotético que não configura critério de discriminação jurídica
(cf. infra), então, pelo mesmo raciocínio, poderiam querer também proibir mulheres lésbicas e
bissexuais de usar o banheiro feminino, bem como homens gays e bissexuais de usar o banheiro
masculino se pudessem. E muitas pessoas querem tais proibições, especialmente (embora não
exclusivamente) às (descabidamente) denominadas lésbicas que não performam uma feminili-
dade hegemônica – como veremos ao analisar os impactos da patrulha de gênero antitrans para
mulheres cis.

Muitos dos discursos transfóbicos falam sobre o uso do banheiro, problematizando coisas
absurdas. A verdade que ninguém fala é que a maioria da nossa comunidade tem sido levada
a prejudicar a própria saúde do que usar banheiros públicos coletivos devido ao alto risco de
violências. E é de uma violência gigantesca saber que necessidades vitais ficam em segundo
plano porque, infelizmente, temos medo de sofrer violência dentro de espaços que deveriam ser
verdadeiramente públicos, acessíveis e respeitosos.

As mulheres transexuais e as travestis têm o direito fundamental a usarem o banheiro femi-


nino, de acordo com sua identidade de gênero feminina e sua expressão de gênero feminina. E
isso independente de cirurgia de afirmação de gênero e quaisquer outras exigências não rela-
cionadas à sua identidade e expressão de gênero femininas.

Pensando nesta questão, a ANTRA elaborou uma nota técnica151 que trata do assunto e traz
uma revisão de argumentos e caminhos para enfrentar a questão. Intitulada “Nota Técnica sobre
direitos humanos e o direto dos banheiros: Vencendo a narrativa do apartheid de gênero que
impede as pessoas transgêneras do acesso à cidadania no uso dos banheiros e demais espaços
segregados por gênero”, a nota centraliza o debate como parte da luta por direitos humanos e tem
como objetivo “orientar as discussões, políticas públicas e tomadas de decisões sobre o acesso a
banheiros e espaços segregados por gênero considerando o direito a autodeterminação de gênero
de travestis, mulheres transexuais, homens trans, pessoas transmasculinas e não binárias”.

151 https://antrabrasil.org/2023/08/28/antra-nota-tecnica-banheiro-pessoas-trans/#:~:text=A%20Associa%C3%A7%
C3%A3o%20Nacional%20de%20Travestis,de%20acordo%20com%20suas%20identidades

84
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

“O pânico moral criado em torno da utilização dos banheiros públicos de acordo com a iden-
tidade de gênero é um padrão de ação consolidado na organização de um verdadeiro apartheid
de gênero que vulnerabiliza e invalida identidades trans” diz um trecho da Nota. O documento se
debruça sobre legislações, acordos internacionais e conceitos sociais, afim de estabelecer uma
normativa que possa guiar estabelecimentos para a disposição de sanitários de maneira mais
inclusiva e respeitosa para pessoas das comunidades e mulheres cis aliadas.

De acordo com a Nota, uma ação de monitoramento realizada pela Associação Brasileira
de Gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais e intersexo (ABGLT), em 2022, mapeou ao
menos 44 projetos de Lei contrários o uso de banheiro por pessoas trans, dos quais ao menos
10 foram aprovados como lei e estiveram vigentes até 2022. O documento destaca que tais pro-
jetos de lei “pretendem em muitas de suas justificativas criminalizar pessoas trans, impondo até
mesmo a prisão caso se utilizem o banheiro diferente do que é designado ao sexo estabelecido
no nascimento, considerando o “sexo biológico” como critério de acesso.”

A Nota técnica “DIREITOS HUMANOS E O DIREITO DOS BANHEIROS: Vencendo a narrativa


do apartheid de gênero que impede as pessoas transgêneras do acesso a cidadania no uso dos
banheiros e demais espaços segregados por gênero” foi ratificada e contou com o apoio de pelo
menos 139 instituições de todo o país.

10.2 Lacunas da lei: “não é não”


A Lei 14.786/2023 instituiu o protocolo "Não é Não" como uma medida essencial para pro-
teger as mulheres contra o assédio em locais como shows, bares e boates. Conforme indicado
no texto, o protocolo "Não é Não" será aplicado em casas noturnas, boates e eventos musicais
realizados em espaços fechados, especialmente aqueles que envolvem a venda de bebidas alco-
ólicas. Seu objetivo é promover a segurança e prevenir situações de constrangimento e violência
contra as mulheres. Sua abrangência inclui uma variedade significativa de situações onde a
proteção das mulheres é crucial.

De acordo com as disposições do "Não é Não", são assegurados à mulher (na lei está assim
mesmo, no singular) alguns direitos fundamentais. Isso inclui a proteção imediata por parte da
equipe do estabelecimento, permitindo que ela denuncie qualquer constrangimento ou violência
sofridos. Além disso, ainda de acordo com a lei, a mulher (novamente como sujeito “universal”)
tem o direito de ser informada sobre seus direitos específicos nesse contexto, ser prontamente
afastada e protegida do agressor, e ter a liberdade de denunciar se foi vítima de constrangi-
mento ou violência. Essas disposições visam não apenas criar um ambiente seguro, mas também
garantir que as vítimas recebam o apoio necessário e que os infratores sejam responsabilizados
de acordo com as leis vigentes.

85
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

Resgatamos o caso em que uma mulher cisgênera foi agredida após ser confundida com
uma mulher trans dentro de um estabelecimento, que acabou facilitando a fuga do agressor152
conforme noticiado em diversos canais. E caso realmente fosse uma mulher trans, o caso teria
recebido a mesma atenção?

Conforme definido pela lei, o constrangimento é caracterizado como "qualquer insistência,


física ou verbal, suportada pela mulher após expressar sua discordância com a interação". Por
outro lado, a violência é descrita como o "uso da força que resulte em lesão, morte, dano, entre
outros, conforme a legislação penal em vigor".

E embora seja um grande avanço para a luta das mulheres, alguns pontos deixam dúvidas
sobre a garantia de que a proteção prevista na lei será garantida às travestis e mulheres transe-
xuais. Sobretudo quando a lei em seu artigo "III- criar um código próprio, divulgado nos sanitários
femininos, para que as mulheres possam alertar os funcionários sobre a necessidade de ajuda, a
fim de que eles tomem as providências necessárias", sabendo que para travestis e pessoas trans,
banheiros são espaços de risco como discutido anteriormente.

Não sendo o banheiro um lugar seguro para pessoas trans, a ativista Caia Coelho153 nos pro-
voca: “como se pode atestar a eficácia desse dispositivo da lei para proteger pessoas trans? Como
ou a quem uma travesti pedirá ajuda com o código se ela não se sente segura para usar o banheiro?
Como pedirá ajuda após ter sido expulsa pelo próprio estabelecimento ou por outros clientes?”

E há ainda um outro ponto controverso, para não dizer absurdo. A referida lei cria uma
espécie de “excludente de ilicitude” ao excluir a abrangência da lei às igrejas e templos reli-
giosos154, como nos alertou a professora Dra. Debora Diniz155 em seu perfil em rede social: “A
regra é assim. Não é não, ou seja, toda mulher tem o direito de não ser importunada, de estar livre
de violência e assédio, de ir e vir livremente. Desde que o espaço não seja controlado pelas reli-
giões. Sim, li e reli a lei sancionada pelo presidente Lula. Há uma exceção de aplicação da lei aos
espaços controlados pelas igrejas. Como se fossem territórios sob outra ordem de proteção ou
abandono das mulheres. Ali o “não” das mulheres deve se submeter à vontade outras pessoas? Se
o nome disso é concessão política, pouco me interessa. É violação à laicidade, é jogar as mulheres
ao fundamentalismo religioso, é conceder uma autoridade às religiões como se fossem anteriores
aos direitos fundamentais. Não é não em qualquer lugar, sob qualquer domínio, inclusive o da fé.”

152 https://revistaforum.com.br/lgbt/2023/12/26/homem-que-agrediu-mulher-pensando-ser-trans-tem-historico-de-
misoginia-violncia-saiba-quem-151135.html
153 https://x.com/travestiviva/status/1742667861850521856?s=20
154 https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/12/lei-do-nao-e-nao-exclui-igrejas-de-protocolo-de-protecao-a-
mulheres.shtml
155 https://www.instagram.com/p/C1kDhP2IjB-/?img_index=1

86
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

Esse "salvo conduto" já havia sido usado em outras leis156, e levanta uma discussão sobre os
limites da “não interferência do estado” às instituições religiosas, templos religiosos, locais de
culto, casas paroquiais e afins, Sabendo que diversos crimes, inclusive sexuais, são cometidos
dentro de templos religiosos.

Por trás da iniciativa do "Não é Não", no entanto, há jabutis retrógrados que devem ser com-
batidos. A lei sancionada —que se aplica "a ambiente de casas noturnas e de boates, em
espetáculos musicais realizados em locais fechados e em shows, com venda de bebida alco-
ólica"— exclui expressamente de sua aplicação "cultos" e outros eventos religiosos, sem
justificar o porquê. Como fez bem em vetar a proibição de recursos a iniciativas LGBTQIA+
na Lei de Diretrizes Orçamentárias, Lula deveria ter vetado este dispositivo. Chega a ser
hipócrita que defensores da religião cujo líder esbraveja contra a violência contra mulheres
defendam que igrejas sejam espaços onde o assédio reste permitido. Legalmente, não se
pode estabelecer espaços privados onde ilegalidades sejam permitidas. Se Jesus estivesse
vivo, bateria com seu cajado nos falsos profetas do Congresso. (Trecho do Artigo: Não é Não,
inclusive na igreja, de Thiago Amparo para a Folha de São Paulo)157

O próximo desafio crucial reside na efetiva tradução dessas diretrizes em ações concretas,
transcendendo o âmbito normativo discursivo e se concretizando em práticas tangíveis que
influenciem positivamente e tragam segurança para a experiência de todas as mulheres, cis e
trans, em eventos e shows.

Além disso, é fundamental envolver ativamente os órgãos responsáveis pela fiscalização e


aplicação da lei, garantindo que as normas sejam efetivamente aplicadas e que eventuais infra-
tores sejam responsabilizados, atuando para dirimir dúvidas sobre a legitimidade da proteção de
travestis e mulheres trans a partir do previsto na lei.

Aqui falamos sobre a referida lei especificamente, mas permanece o questionamento e


dúvidas sobre como irão se comportar membros de órgãos de fiscalização, da segurança publica
e a própria sociedade em relação aos direitos que têm sido alcançados pelas mulheres no ano
de 2023, e se eles realmente irão reconhecer que mulheres trans são mulheres, sem qualquer
ressalva ou distinção entre elas, a partir da garantia do direito à autodeclaração de gênero pelo
Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 4275.

O Estado que reconhece o direito de mulheres trans de se declararem como tal, incluindo
a retificação registral, de forma que, caso seja o desejo da mesma, passe a constar “sexo femi-
nino” no registro civil, não pode seguir permitindo tratamentos diferenciados ou hierarquias
entre mulheres, criando um “estado de exceção” para umas enquanto garante direitos a outras.

156 http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/CONTLEI.NSF/b24a2da5a077847c032564f4005d4bf2/0e48c858ff67abf883257e
89006b504b?OpenDocument
157 https://www1.folha.uol.com.br/colunas/thiago-amparo/2024/01/nao-e-nao-inclusive-na-igreja.shtml

87
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

11. Patrulha de gênero e o pânico antitrans


como ameaça às mulheres cisgêneras
“O policiamento de pessoas trans é um problema grave que precisa ser enfrentado. (...)
muitos antitrans se organizam para realizar buscas e monitoramentos específicos feitos
nas redes sociais que procuram identificar perfis de pessoas supostamente trans através
de características físicas para determinar o “sexo” de uma pessoa, e, assim, a expor a perse-
guição e a violência. A esse fenômeno mais recente, foi dado o nome de TransInvestigação
pela advogada Trans Feh Oliveira. Isso sim é um risco real, especialmente as mulheres cis
que não atendem as expectativas de gênero. Lady Gaga, Michelle Obama e Brigitte Macron,
por exemplo, também já enfrentaram especulações sobre serem trans e para algumas pes-
soas, talvez esse seja o maior crime de alguém, afinal”158.

Neste capítulo, analisaremos as violências que têm sido geradas contra mulheres cis-
gêneras que foram violentadas pela patrulha de gênero por terem sido lidas como se elas se
fossem trans, a partir dos casos de maior recorrência no debate público e nas publicações de
portais de notícias e redes sociais, conforme objeto principal desta pesquisa. Reconhecendo
que são necessários esforços e pesquisas muito mais elaboradas e aprofundadas, considerando
sobretudo as produções já realizadas sobre o impacto da imposição de uma estética padrão
sobre os corpos das mulheres, em um contexto de país campeão em cirurgias plásticas e onde
a pressão estética sobre corpos de mulheres faz parte do controle patriarcal, misógino. Além
disso, pretendemos questionar quem tem direito a “ser uma mulher de verdade”(sic) e os desdo-
bramentos disso, a partir do olhar (e da patrulha) da estética.

11.1 A hierarquia estética


Nos últimos anos tem ficado cada vez mais nítido que, como tem sido afirmado por meio
dessa pesquisa, ter uma expressão de gênero não normativa e sem leitura social próxima a um
padrão estabelecido pela cisgeneridade159 é um dos principais fatores de risco para a violência
transfóbica e também compõe o conjunto de elementos comuns às vitimas de assassinatos, prin-
cipalmente para travestis e mulheres trans160, desde que iniciamos a produção dos dossiês, em

158 Dossiê ANTRA 2023, pág. 91.


159 Neste contexto, entendemos a cisgeneridade como um sistema de poder e controle, que vai incidir de forma
política, cultura, social e econômica na construção identitária das pessoas após designação de gênero em decorrência
do genital (“sexo”), estabelecendo um padrão moral, corporal, sexual, comportamental e identitário, extremamente
rígidos. Mobilizando, a partir da ideologia cissexista de gênero, uma patrulha que irá vigiar e punir todas as pessoas
que se afastam deste ideal. Destacamos a importância de ser observado como a raça/etnia opera nesse contexto, e
outras questões como classe e localização geográfica.
160 A média anual dos casos de assassinatos revela que, quanto a identidade que 95% das vítimas são pessoas
transfemininas, sendo travestis e mulheres trans.

88
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

2017. E esse imaginário estético tem se constituído e sendo defendido por um suposto essencia-
lismo (já mencionado anteriormente), a partir de um ideal criado sob o mito da mulher universal161
que ignora a interseccionalidade e outros marcadores da diferença.

“A mulher”, assim mesmo, como algo único e homogêneo, não existe. Somos frutos de uma
sociedade moldada pelas noções de tempo, espaço social, contextos culturais, históricos,
políticos, religiosos, e até de das noções de classe, raça e gênero. Nesse sentido, as diversas
violências contra as mulheres têm mais de uma raiz. Entender a violência contra as mulheres
tratando apenas a misoginia, por exemplo, nos traria respostas inconclusivas. Na mesma
medida, é incompleta a luta das mulheres sem considerar a defesa dos direitos das mulheres
trans162.

Nos últimos anos, diante da disputa sobre quem pode ser homem ou mulher, temos acom-
panhado perfis de pessoas não normativas e do quanto a patrulha cisgênera cria um ambiente
inseguro para corpos, identidades e expressões que rompem com a norma estética sob olhar
cisgênero163 (SILVA, 2023). E isso é, de certa forma, um dos efeitos diretos das políticas antitrans
(e da transfobia, convenhamos) que – partindo de uma ideologia religiosa, moral e comporta-
mental — patrulham corpos com vagina ou com pênis que fogem ao esperado para o gênero que
foi designado.

(...) Tais categorias não apenas têm a capacidade de se inscrever no inconsciente coletivo
e individual, como também estabelecem os critérios de aceitabilidade e negação, – fazendo
com que o olhar cisgênero funcione como um grande filtro que media as reações da socie-
dade. Reações que podem oscilar entre o medo, a repulsa, o desejo reprimido ou, ainda, o
ódio e a vontade visceral de eliminação. Dito de outro modo, o olhar cis é o moderador que
gesta e manifesta um modo de relação com a transexualidade que não é dicotômico, mas
sim uma relação de exterioridade constitutiva à medida que a cisgeneridade continua a con-
trolar, manter, organizar e induzir os regimes de representação majoritários.164

E para tal, tem-se cada vez percebido novas formas ou formas contemporâneas atualizadas
de imposição e manutenção de um padrão estético de ser homem e ser mulher, ou de ser cisgê-
nero. E a partir desse entendimento podemos pensar em uma gradação do ser cisgênero desde
um padrão do “Cis-alfa”e as diversas nuances que ela vai admitir até o cis mais medíocre nessa
escala. Atribuindo certo status e poder a determinados corpos ao serem reconhecidos como
“supercisgêneros” ou “cisíssimos”165 (aqueles que são a imagem personificada da Barbie e do

161 https://azmina.com.br/colunas/o-mito-da-mulher-universal/
162 Idem item 160.
163 Zonas de te(n)são entre desejo e nojo: cisgeneridade como paradigma de subjetivação sexual. Mariah Rafaela
Cordeiro Gonzaga da Silva. 1 ed. Salvador, Bahia. Devires, 2023.
164 Idem item 162.
165 Neologismo para se referir ao mais alto padrão de cisgeneridade estética, em referencia ao termo “branquíssimo”,
usado por Lia Vainer Schucman para a compreensão das dinâmicas de poder relacionadas à estética. Entre o “encardido”,
o “branco” e o “branquíssimo”: raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana. São Paulo, 2012.
https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47134/tde-21052012-154521/publico/schucman_corrigida.pdf

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Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

Ken), que não se limita apenas à estética, mas a todo o conjunto de acessos e privilégios exis-
tentes, de classe, gênero, raça, localização geográfica, etc., e na esteira das dinâmicas sociais e
de gênero, estariam divididos em subcategorias aqueles que deixam escapar o seu “não enqua-
dramento” neste padrão – seja por opção ou falta dela, até chegar nos considerados “não cis-
gêneros”, e nas pessoas trans. E isso vai fazer com que, mesmo no caso de pessoas cis fora do
padrão normativo, a sua cisgeneridade “seja retirada” (ou contestada e negada) por terceiros, ao
menor passo em que ela não lhe confere acesso e legitimidade às dinâmicas que atribuem poder
relacionadas à estética (cis).

A mulher considerada ideal para ser protegida é aquela que se encaixa nos padrões
machistas que instituiu a pressão estética para validar a conformidade com o gênero atribuído.
E o capitalismo, o neoliberalismo, as redes sociais, marcas comerciais, filmes, novelas e moda,
aliados a cisnormatividade, impõem custos elevados para que as mulheres sigam a aparência
ideal, semelhante à Barbie ou qualquer modelo e influencer no Instagram. Sendo pressionadas a
dedicar uma parte valiosa do seu tempo, de sua saúde física e mental, e dinheiro para atender a
esse padrão. De modo que seguir a norma não se torna apenas obrigatório, mas também é con-
siderado desejável para as mulheres e aquelas “que não se esforçam” para atingir esse padrão
ou simplesmente resolveram abrir mão deles, não são reconhecidas como mulheres. E esse pro-
cesso é ainda mais acentuado para mulheres negras, com deficiência e mulheres trans.

A estética padrão cisgênera, funciona neste contexto, de certa forma, como uma grife ou
troféu para essas pessoas. E é aí que vem a armadilha. A cisgeneridade, cria e luta para manter
o status quo do padrão e passa a patrulhar toda e qualquer forma de existir para lhe conferir
tratamento e acessos de acordo com a forma com que a pessoa passa a ser lida ou deixa de ser
rentável para o capital.

E essa engenharia funciona como uma escala de gradação que vai organizar homens e
mulheres, não apenas um em relação ao outro, mas também dentro do próprio grupo generifi-
cado a que fazem parte. E esse fenômeno pode ser percebido a partir de marcadores e estereó-
tipos de gênero, dinâmicas de estética para afirmação de gênero e construção de imagem, e até
mesmo em modificações corporais para que não restem dúvidas de qual gênero fazem parte, e
consequentemente qual o lugar que ocupam dentro dos sentidos admitidos pelo gênero. Mol-
dando também parte do desejo e do ideal de parceiro a ser elegível para se relacionarem.

Por outro lado, pessoas trans, travestis e não binárias que buscam passibilidade cisgênera166
buscam também acesso, poder e status. Exatamente por acreditarem que ao aderir à estética
cis como padrão isso lhe conferiria alguma vantagem, e em microescala até tem, porém não
de forma sistemática que mude a sua realidade. Especialmente porque essas pessoas passam
a viver camufladas e em risco eminente de “serem descobertas” como não cisgêneras, o que
abriria uma séria de discussões, mas sem dúvida as colocaria inicialmente em situação de vul-
nerabilidade à violência.

166 Termo usado para se referir aquelas pessoas trans, travestis e não binárias que são lidas socialmente como
cisgêneras, dentro de uma imagem estética.

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Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

“Se, por um lado, as transexualidades são investidas numa dimensão espectral dos simula-
cros através do olhar cis, por outro lado elas são depositadas num nicho de matabilidade no
qual as lógicas depositárias da violência cumprem o roteiro base aqui em foco.167 “

O desejo por uma leitura social cisgenerificada funcionaria, nesses casos, tipo “merito-
cracia”. Pois a pessoa acredita que este é o lugar que todo mundo deveria ocupar para mostrar
que venceu – chegou ao topo do padrão da cisgeneridade e até se assemelha ao cisíssimo. E
quem não adere a essa busca e "tem cara de traveco", merece passar por transfobia, ser expul-
so/a de banheiro, apanhar e ser morto/a. E se morreu por desafiar a norma, foi porque mereceu
(sic).

“Gênero, portanto, caracteriza algo que não está propriamente no corpo, mas no modo como
ele é percebido a partir das significações culturais construídas nas relações sociais entre
homens e mulheres, sendo também por meio dessas significações que essas relações se
configuram hierarquicamente, como relações de poder (Reis, 2007). À luz dessas conside-
rações, é o jogo do discurso que constrói a visibilidade dos corpos dentro dessa oposição
binária e desigual entre feminino e masculino (Nicholson, 2000, Butler, 2003)168.”

Podemos rapidamente traçar um paralelo entre o gênero e as identidades de gênero, cis ou


trans, com as sexualidades. Sendo heterossexuais padrão os tops, topíssimos e a norma, e gays,
bissexuais, pansexuais, não desejados, excluídos, matáveis. Gays cisgêneros padrão podem ser
vistos como pessoas que fazem essa busca pela leitura normativa imposta pela performance da
heterossexualidade, mas seguem relegados ao lugar de “não homem” quando se defrontarem
com os cisissimos topíssimos, embora não consigam se desvencilhar das estruturas de domi-
nação nas quais são construídos dentro do patriarcado e do machismo estrutural. Gays não nor-
mativos, afeminados, ao “deixarem de serem homens”, seriam portanto os corpos descartáveis
e matáveis. Homens trans, principalmente gays, sequer são considerados homens e tampouco
gays dentro desta hierarquia. E no caso de mulheres cis lésbicas, elas “deixam de ser mulhe-
res”169 por não se relacionarem com homens, e se forem não normativas, é a violência o que as
espera. Pessoas não binárias, se quer existem para cisgeneridade.

Assim, após Monique Wittig e a partir de muitas comentadoras, a lésbica deixou de ser
mulher, o gay deixou de ser homem e aconteceu o que Sam Bourcier chamou de “multipli-
cação de gêneros”. O gênero deixou de ser binário – somente homens e mulheres –e se tornou
múltiplo! Ao invés de existir apenas homens e mulheres, passamos a enxergar vários gêneros
como lésbicas, gays, bichas, sapatões, viados, trans* e muitos outros. O modelo deixou de
ser dois sexos – dois gêneros e se tornou N sexos – N gêneros, como bem aponta Sam Bour-
cier. Isso faz sentido na medida em que, como sabemos, quando um menino faz qualquer
coisa que o distancie da masculinidade, como brincar de bonecas, ele escuta “vire homem” e

167 Idem item 162.


168 Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: raça, hierarquia e poder na construção da branquitude
paulistana. Lia Vainer Schucman. São Paulo, 2012.
169 https://fenajud.org.br/?artigo=a-lesbica-nao-e-uma-mulher

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Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

não “vire heterossexual” o que reforça o argumento de Wittig de que a transgressão da hete-
rossexualidade não é uma questão de sexualidade, mas uma questão de gênero170.

A doutrinação ideológica do cissexismo, das normas de afirmação de gênero171 binárias, dos


padrões rígidos de uma heterossexualidade, incluindo a estética a heteronormatividade, tem
sido usados como ferramentas de controle de corpos, comportamentos, sexualidades, alavan-
cada sobretudo por uma agenda masculinista cultuada na politica e demais instituições sociais
que compõe nossa cultura. E isso coloca não apenas pessoas trans, mas mulheres e meninas cis
em risco.

O debate sobre quem é mulher vem desde o século 19, com Sojourner Truth. E como aponta
Thais Folego no artigo “A cruzada Antitrans ameaça a todas nós172”, publicado no portal AzMina,
“os maiores embates dentro do movimento feminista nasceram a partir de demandas de pessoas
excluídas da categoria “mulher” – supostamente universal – em voga a cada época. Se na década
de 1980 essa tensão foi protagonizada pelas mulheres negras, que enfrentam, além do sexismo, o
racismo; nos últimos anos ela é protagonizada principalmente pelo transfeminismo, que considera
“mulher” uma categoria construída socialmente, incluindo, assim, mulheres trans e travestis”.

11.2 Quem tem o direito de ser mulher?


Consideramos que o acirramento dessa patrulha de gênero nos últimos anos tem funcio-
nado fortemente como backlash173 em relação ao avanço da conquista de visibilidade, direitos e
de espaços pelas pessoas trans, operando através da violência para barrar esses avanços. E se
faz necessário discutir como isso tem sido massificado por grupos já reconhecidamente anti-
trans e que ganhou fôlego ao agregar feminismos essencialistas, e do quanto as políticas anti-
gênero têm instrumentalizado e alimentado diversas violências contra pessoas trans, travestis,
mulheres desfem, negras e identidades não binárias não normativas.

DesFem é um termo usado por mulheres, cis ou trans, para se referir às pessoas que reivin-
dicam ou expressam uma identidade e expressão de gênero fora dos padrões de feminilidade
hegemônica (e normativa), que rompem – em maior ou menor grau - com os símbolos, signos e

170 Idem item 167.


171 As intervenções para afirmação de gênero abrangem uma variedade de procedimentos, tanto cirúrgicos quanto
não cirúrgicos, que visam alinhar a expressão de gênero de uma pessoa com sua identidade de gênero. Tanto pessoas
cis quanto trans podem recorrer a essas intervenções.
172 https://azmina.com.br/colunas/a-cruzada-antitrans-ameaca-todas-nos
173 Backlash refere-se a uma reação negativa em resposta a uma ação ou mudança anterior. Pode ser observado em
diversos contextos, incluindo social, político e tecnológico. No contexto social, por exemplo, o termo pode ser utilizado
para descrever uma resposta adversa a avanços em direção à igualdade de gênero, racial ou outros movimentos
progressistas. Em termos mais gerais, o backlash representa uma resistência ou oposição a transformações sociais
ou inovações.

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Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

estereótipos de gênero, e consequentemente com o sistema “sexo x gênero174”, sem que isso
seja usado para atestar uma outra identidade de gênero. Essas mulheres, cis ou trans, lésbicas,
bissexuais ou heterossexuais, jovens ou mais velhas, continuam sendo mulheres, mesmo que
tenham uma leitura social tida como “pouco feminina” e em alguns casos são vistas de forma
equivocada como sendo “masculinizadas”, e tem sido expostas de diversas violências como ata-
ques online, abordagens vexatórias, violências e discriminação contra essas mulheres. Não por
serem mulheres, mas por não se expressarem como se espera de qualquer mulher.

Pesquisando casos de violência direcionada a pessoas que foram “confundidas” encon-


tramos casos de pais e filho175, mãe e filha176 e irmãos gêmeos177 que enfrentaram o furor da
patrulha que não suporta a liberdade e, mesmo que tendo errado o alvo, partiram pra cima agre-
dindo essas pessoas. Mulheres cis lésbicas e bissexuais, assim como mulheres cis em trata-
mento de câncer também podem sofrer os efeitos dessa patrulha. E até mesmo adolescentes e
crianças que não expressam comportamentos ou estética esperados para o gênero designado
têm sofrido perseguição178 e violências diversas, inclusive sendo expulsas de casa ou levadas a
serem suicidadas179, as vezes pela rede social, por (ex)amigos ou familiares, nas escolas e em
outros ambientes sociais pela polícia de gênero, mesmo se não forem LGBTQIA+.

Mulheres negras que não se rendem/renderam a um padrão europeu e embranquecido na


construção de sua estética, por exemplo, passaram a compor parte das "imagens controladas"
(Collins, 2009:76-7)180 em relação aos estereótipos de gênero. Embora tenham tido que negociar
em algum momento a partir da assimilação dessa estética, no sentido de ter acesso a espaços
e traçar estratégias, a configuração de uma feminilidade racializada apresenta na contempo-
raneidade elementos de radicalismo, uma vez que, por meio dela, a concepção tradicional de
feminilidade, com suas noções de pureza, piedade, submissão e domesticidade associadas à
branquitude, está sendo subvertida. A apropriação desses valores dominantes exige uma aná-
lise cuidadosa das complexidades que permeiam essa (des)construção.

174 https://medium.com/@avaadore/sistemas-sexo-g%C3%AAnero-de-gayle-rubin-a-paul-b-preciado-6edeccdbd48a
175 https://g1.globo.com/brasil/noticia/2011/07/pai-abraca-filho-e-e-agredido-por-homofobicos-em-sp.html
176 https://observatoriog.com.br/noticias/mae-e-filha-sao-vitimas-de-homofobia-ao-serem-confundidas-com-um-casal-
lesbico
177 https://g1.globo.com/bahia/noticia/2012/06/irmaos-sao-agredidos-ao-andarem-abracados-em-camacari-um-morreu.
html
178 Criança de 8 anos é humilhada e sofre ataques online por dançar. https://www.instagram.com/reel/C1pwfu
sv81K/?igsh=MzY1NDJmNzMyNQ%3D%3D
179 https://revistaforum.com.br/lgbt/2021/8/4/filho-da-cantora-walkyria-santos-comete-suicidio-apos-sofrer-homofobia-
101382.html
180 De acordo com Collins, romper com essas "imagens controladas" designadas para apresentar racismo, sexismo,
pobreza e outras formas de injustiça social como naturais, normais e inevitáveis tem sido um dos maiores objetivos do
Pensamento Feminista Negro. Collins, Patricia Hill Collins. The Black Feminist Thought: knowledge, consciousness,
and the politics of empowerment Routledge, New York and London, 2009 [2000].

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Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

“Imagens de controle” é um conceito criado por Patricia Hill Collins e consiste em uma ferra-
menta utilizada pelo grupo dominante contra o grupo dominado, com o intuito de consolidar
sua dominação, exercida por meio da violência, para que permaneçam no poder. São imagens
centradas em estereótipos e marcadores sociais da diferença que articulados e manipulados
conferem aparência de neutralidade e naturalidade às injustiças e práticas sociais discrimi-
natórias que essas imagens de controle sustentam. Todavia, é importante ressaltar que esse
sistema de dominação e desumanização por meio da raça/etnia implantado no Brasil, perma-
nece latente até os dias de hoje na forma em que se dá a representação social das pessoas
negras, que têm sua imagem externamente definida e controlada181.

De fato, uma redefinição do que podemos chamar de feminilidade tóxica182 tem surgido por
meio das narrativas de "empoderamento" compartilhadas por mulheres negras, cis e trans, na
construção de um outro imaginário estético que rompa sobretudo com padrões de gênero hege-
mônicos, em geral pensados e cultuados a partir de um ideal de brancura, e que vai culminar no
exercício da violência contra essas mulheres. Patrícia Hill Collins, acredita que “o movimento
trans, particularmente as mulheres trans negras, tem contribuído para uma analise intersec-
cional sobre as relações de poder”183 e defende que “o feminismo negro tem os mesmos inte-
resses que o movimento trans: lutar para viver em um corpo livre”184.

A “dominação” é um recurso daqueles que não querem romper com a homogeneidade cul-
tural e social –leia-se privilégios sociais –(WIEVIORKA, 1997); frequentemente exprime trans-
formação e eventual desestruturação do grupo dominado. A dominação sempre envolve a
objetificação do dominado, pois todas as formas de opressão implicam na desvalorização da
subjetividade do oprimido (COLLINS, 2016)185.

Geralmente são as travestis e mulheres trans186 que não têm uma leitura social normativa
ou normatizada pela cisgeneridade, as mais expostas e visadas por seguranças que monitoram
corpos trans. Além disso, a maior parte das denúncias têm sido feitas por mulheres cis — que
têm sido usadas como polícia de gênero ou de mulheridade — que se sentem “ofendidas” com
a presença de mulheres trans e travestis, por exemplo, em banheiros. E esse incômodo tem
se convertido em violência, abordagens vexatórias e casos recorrentes sendo publicados nas
redes sociais, que vão alcançar não apenas travestis e mulheres trans, mas também mulheres
cis como veremos a seguir.

181 “Imagens de controle” e a dominação: uma possível relação teórica. Munyque Lorany Ribeiro dos Santos e Lucas
Gabriel Feliciano Costa.
182 https://brunabenevidex.medium.com/existe-feminilidade-t%C3%B3xica-491ee5bc6bbc
183 https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2023/06/feminismo-negro-e-ativismo-trans-tem-mesmo-interesse-diz-
patricia-hill-collins.shtml
184 Idem item 182.
185 Idem item 180.
186 Travestis e mulheres trans negras são as que tem menos acesso às tecnologias de gênero, alterações estéticas
e modificações corporais, seja pelo racismo na produção de padrões embranquecidos, ou pela situação de
empobrecimento e vulnerabilidade social em que se encontra a maioria delas.

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Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

“Não nos ajuda nessa discussão, uma feminilidade que acredita em uma destinação exclu-
sivamente biológica para ser ou se tornar mulher e/ou ter filhos e na maternidade compul-
sória, bem como aquela que perpetua e reproduz abusos e violência de gênero contra outras
mulheres, que se alia ao poder masculino para a manutenção deste status, e acaba por
oprimir suas iguais, ou excluir aquelas que julgam não pertencentes ao ideal de um deter-
minado sagrado feminino. Que nega e não reconhece a interseccionalidade, e a diversi-
dade de gênero, como uma importante ferramenta para romper com a lógica dominante, que
exclui pessoas trans e/ou acredita em uma “ideologia de gênero’’.”187

11.3 Os impactos da patrulha cisgênera


Aqui, passaremos a apresentar alguns casos, mapeados entre 2007 e 2023, que materia-
lizam o que foi descrito neste capítulo. Consideramos que, em sua totalidade, os casos chamam
atenção pela atuação da patrulha da cisgeneridade (ou da polícia de gênero) agindo no seu mais
pleno funcionamento para atacar a transgeneridade – embora tenham errado o alvo.

Pessoas trans têm sido convertidas no “bicho papão” do século XXI pelas políticas antitrans,
sendo postas como uma ameaça à humanidade (sabemos que é à cisgeneridade) e antagônicas
a luta das mulheres(sic), o que nos revela certo desespero da cisgeneridade para manter firme
seu pacto cissexista frente ao declínio e falência que enfrenta. Ou como afirmou o Papa Fran-
cisco: “pessoas trans são como bombas atômicas188” e “aniquila o conceito de humanidade”(sic).
Sabendo-se que ao falar em humanidade, esse pensamento coloca a cisgeneridade como norma
natural e a transgeneridade como ameaça.

Os impactos desse tipo de declaração são inimagináveis, e corroboram com o horror que
tem sido causado contra pessoas trans e fortalece ainda mais a manutenção de um sistema de
vigilância antitrans que também traz impactos deletérios para mulheres cisgêneras.

Destacamos quanto o ra-CIS-mo cruzado com a transfobia e a misoginia se torna um agra-


vante nesses casos, visto que a maioria das mulheres cisgêneras vítimas de ataques decorrentes
do ódio transfóbico era negra, e desfem. Observamos também como opera a lesbofobia estru-
tural no momento em que lésbicas ou bissexuais não são consideradas como mulheres, e irá
tratar mulheres cisgêneras heterossexuais não-normativas como lésbicas “masculinizadas”,
portanto “não mulheres”.

Os casos a seguir, ocorridos pelo fato de as pessoas terem sido lidas como sendo travestis
ou mulheres trans, homens trans ou pessoas transmasculinas, foram sistematizados a partir
de pesquisas nas redes sociais, portais de mídias e outros meios de veiculação de noticias. Tra-

187 Idem item 181.


188 https://revistahibrida.com.br/mundo/vaticano-afirma-que-pessoas-trans-aniquilam-o-conceito-da-natureza/

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Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

remos o título da matéria e um resumo do caso, e em cada um deles estará devidamente referen-
ciada a fonte. Vejamos a seguir:

2007 - Confundida com travesti, mulher é agredida189


Agredida por dois homens, com uma barra de ferro, na madrugada de quinta-feira, Janaína
Carla de Azevedo, de 21 anos, sofreu traumatismo craniano e de face (...) De acordo com uma teste-
munha do crime, a vítima foi atacada por dois rapazes por pensarem se tratar de um travesti.

2012 – Mulher lésbica é impedida de usar banheiro por parecer garoto190


Uma lésbica foi impedida de usar o banheiro feminino de um centro comercial da 102/103 Sul
por parecer um garoto. De acordo com o relato, postado no YouTube junto com o vídeo que registrou
a reiteração do ato discriminatório, o segurança do estabelecimento chamou reforço e tocou nos
seios da vítima.

2016 - Negra, lésbica e moradora da periferia, Luana era alvo frequente de abordagens poli-
ciais191
Luana era frequentemente tratada de forma desrespeitosa e violenta, na base do “cabeça no
muro, abra as pernas, mão na cabeça”. Também era comum que fosse confundida com um
homem, pois Luana usava cabelo curto e roupas tidas como não femininas. No dia em que foi
espancada, aconteceu o mesmo. “Ela quis dar uma de macho, tivemos que acalmá-la”, disse um dos
policiais que a espancou.

2018 -Empresária é chamada de travesti e agredida na saída de festa: 'Me chamou de escória
da humanidade’192
“Só que, pelo fato de eu ter a voz grossa, ele já falou 'o que que é, sua travesti? sua escória
da humanidade, puta. Ele veio pra cima e me empurrou”. Segundo relato, a discussão entre os
dois iniciou após assédio a uma amiga de Sandy. Ao se manifestar contra a atitude do rapaz, a
empresária foi chamada de travesti e "escória da humanidade".(...)"É inadmissível. Só me aju-
daram depois, porque baixou o sangue e eu comecei a chorar. Ele me chamou de escória da huma-
nidade, de puta. Eu sou mulher, eu sou mãe de dois filhos adolescentes. Eu mereço respeito. Ele
não tinha direito de tocar em mim. Foi quando os homens realmente ficaram indignados e saíram
empurrando ele", relata.

189 https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/confundida-com-travesti-mulher-e-agredida-al2x4c0n325
yi1kdayzzaq24u/
190 https://gay1.com.br/2012/02/na-asa-sul-lesbica-e-impedida-de-usar-banheiro-por-parece-garoto.html
191 https://assets-institucional-ipg.sfo2.cdn.digitaloceanspaces.com/2017/04/Luana-Barbosa_Por-Tatiana-Merlino.pdf
192 https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2018/10/14/empresaria-e-agredida-e-confundida-com-travesti-
me-chamou-de-escoria-da-humanidade-veja-video.ghtml

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Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

2018 –Mulher em tratamento contra o câncer é confundida com “homossexual” e agredida193


Ela foi empurrada, ameaçada e xingada. “Acho que por eu estar careca, ele achou que eu era
lésbica ou transexual. Eu fiquei em choque na hora, muito surpresa”, relata. Por causa da quimio-
terapia, realizada na primeira parte do tratamento contra o câncer, os cabelos de Deborah caíram.
(...) “Hoje, a minha esposa, Deborah, foi agredida no Centro do Rio de Janeiro. Em tratamento de
um câncer de mama, ela voltava da radioterapia quando, por conta da queda de cabelo da quimio-
terapia, foi confundida por um imbecil com um transexual”, diz trecho do texto do marido postado
nas rede sociais.

2018 – Mulher cis é confundida com trans e mantida em cela masculina194


Sua dupla punição, além da pena imposta pela justiça, é ser enviada para uma cela mascu-
lina já que é assim que tratam pessoas trans.
A advogada Fior Pichardo de Veloz, que vive na República Dominicana, relata ter sido identifi-
cada erroneamente como trans (pessoa que se identifica com o gênero oposto àquele designado a
ela no nascimento) e ter ficado 10 horas na detenção com outros 40 presos, que a assediaram.
(...) Somente depois que sua família soube que ela estava em uma cela masculina e ter insis-
tido que havia ocorrido um erro, Fior foi examinada mais uma vez para determinar seu sexo. Após a
confirmação de que que se tratava de uma pessoa do sexo feminino, ela foi encaminhada para uma
instituição feminina e libertada dois dias depois.

2019- Lésbica, auxiliar de limpeza consegue na Justiça direito de usar banheiro feminino no
trabalho195
Thais de Paula Cyriaco foi comunicada pela empresa que a contratou para trabalhar na loja, a
Elofort Serviços, que, a partir daquele momento, estava proibida de usar e limpar os banheiros
femininos da unidade. O motivo era a sua orientação sexual e sua aparência: Thais é lésbica e não
se veste com roupas ditas femininas.
Quem fez a reclamação foi uma promotora de vendas da Aurora Alimentos, que passou a traba-
lhar dentro do Makro em setembro de 2018. Ao se deparar com Thais dentro do banheiro feminino,
a mulher alegou que se sentia constrangida com a presença de Cyriaco.
Thais teve que recorrer a justiça para poder voltar a usar o banheiro feminino.

193 A matéria trata como “homossexual” como ocorre em outros casos de pessoas trans, mas fica nítido pelo relato
do marido que tratava-se de ela ter sido vista como trans. https://www.pragmatismopolitico.com.br/2018/11/mulher-
cancer-quimioterapia-deborah.html
194 https://catracalivre.com.br/cidadania/mulher-cis-e-identificada-com-trans-e-mantida-em-cela-masculina/
195 https://ponte.org/sentia-medo-todos-os-dias-alega-funcionaria-lesbica-impedida-de-usar-banheiro-feminino/

97
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

2021 – Mulher lésbica tem joelho quebrado após tentar entrar em banheiro feminino196
(...) uma mulher lésbica de 24 anos foi agredida por um homem ao tentar entrar no banheiro
feminino de um bar localizado em Tauá, no Ceará. Milene Pereira de Sousa estava acompanhada da
namorada e teve ferimentos por todo corpo, além de uma fratura no joelho. Segundo informações
do G1, Milena foi impedida de entrar no banheiro por um homem, que a espancou.
"Eu estava na seresta com minha companheira e tentei ir ao banheiro. Quando cheguei para
entrar, ele já estava perto da porta e me empurrou. Pegou minha camisa e disse que lá eu não
entrava. Decidi sair do lugar, mas ele me perseguiu", contou Milena ao portal.
A agressão continuou na rua do estabelecimento e foi filmada por pessoas ao redor. Os golpes
a deixou com hematomas e dores por todo corpo. Milena contou que chegou a ter o corpo jogado
em cima de um carro.

2021 – Mulher lésbica é chamada de “moço” e tem provador invadido197


Segundo Amanda, a funcionária então abriu o provador para chamar sua atenção. “Ela colocou
o braço dentro do provador e abriu a cortina, enquanto eu estava sem roupa, e me disse; ‘o seu [pro-
vador] é do outro lado’. Perguntei por quê, e ela olhou para o meu rosto, meu corpo, viu que eu não
era homem e pediu desculpas. Ela disse que um segurança me viu pela câmera e avisou que tinha
um ‘homem’ entrando no provador feminino”, relata a engenheira civil.
Amanda conta que já havia sido confundida com um homem antes, mas que esta situação foi
diferente por causa da invasão de privacidade que ocorreu.

2021 – Pareço Homem para você?198


Sou confundida com homem desde muito nova também. Me lembro até hoje que quando eu
tinha por volta de 7 anos uma moça me confundiu com um menino, e só acreditou em mim depois
de eu MUITO insistir. Esse episódio foi só o primeiro de muitos.
Estou cansada de entrar no banheiro feminino e ser barrada por seguranças, ou de receber
olhares incrédulos e assustados. Estou cansada de sofrer preconceito até mesmo de pessoas da
comunidade LGBTQIAP+.
Me lembro até hoje de uma agressão que sofri de um homem gay simplesmente porque ele
achava que eu era um homem querendo usar o banheiro feminino. Acho que de todos os episódios
de agressões e violências, esse foi o que mais me doeu. Até então, eu não acreditava que um pessoa
do mesmo movimento que o meu poderia ser tão agressiva comigo, ao ponto de a minha boca san-
grar. E sabe o que é mais irônico? Ele fez questão de dizer que era gay antes de me bater.

196 https://queer.ig.com.br/2021-11-26/lesbica-joelho-quebrado-tentar-usar-banheiro-feminino-ceara.html
197 https://pheeno.com.br/2021/08/mulher-lesbica-e-chamada-de-moco-e-tem-provador-invadido-por-funcionaria-
da-renner/?fbclid=IwAR3C37i8x7SOSDOfOnFqT1DgbWSNSamA75MRjvw6V5L1Pm8sM-TkCyHPqBc
198 A autora retrata alguns episódios de violência a quem é submetida desde criança. https://www.cantobaoba.com.
br/post/pare%C3%A7o-homem-para-voc%C3%AA

98
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

2022 - Atriz de "Travessia" faz desabafo após ser confundida com trans199
"Agora, com a novela, perguntam se sou [uma mulher] trans. São vários comentários surgindo.
Mas uma pessoa trans tem um estereótipo? Uma pessoa cis como eu (cisgênero; quem se identifica
com o gênero atribuído ao nascer) tem um estereótipo?", refletiu a artista.
Em seguida, Isabella afirmou que as pessoas não acreditam que ela seja a mãe verdadeira de
Maria, de 11 anos. "Uma mulher trans também poderia ter um filho, normal", ressaltou.
"Tem gente que fala: "Nunca a vi grávida". Será que querem que eu poste [a foto da barriga]?",
disse entre risos. "As pessoas vão especular, isso não é uma questão para mim, pelo contrário, é
elogio. Acho que é uma oportunidade de ressignificar, de falar de mulheres e de padrões de beleza."

2022 - Lésbica é agredida em banheiro do metrô de SP após ser confundida com homem200
De acordo com depoimentos das vítimas, o grupo estava na estação do metrô quando Júlia e
um amigo foram ao banheiro. O rapaz, Renato, se dirigiu ao banheiro masculino, enquanto Júlia se
direcionou ao feminino. Duas funcionárias do local chamaram a atenção de Júlia, afirmando que o
banheiro para ela seria o masculino. Em coem uma tentativa de afirmar que sabia que seu banheiro
seria ali, o feminino. No entanto as funcionárias, confundindo Júlia com um homem, resolveram
comunicar os seguranças do local.
Segundo Júlia, os seguranças invadiram o banheiro quando ela estava usando a cabine. A vítima
afirmou que já estava no vaso sanitário, com as calças abaixadas e urinando, quando os seguranças
começaram a dar socos na porta exigindo a saída de Júlia do local. A porta foi arrombada e os segu-
ranças teriam puxado a jovem para fora da cabine do banheiro.
Ao perceber a confusão, o amigo de Júlia, Renato, que estava no banheiro masculino ao lado,
foi ajudar. Ao chegar no banheiro feminino, Renato encontrou os seguranças puxando e gritando
com Júlia, mesmo depois de ter percebido que ela era uma mulher. Renato também teria avisado
aos seguranças que a amiga era do sexo feminino, mas também foi hostilizado, ameaçado e agre-
dido pelos seguranças.

2022 - Mirella Santos revela ter sido confundida com mulher trans em Dubai201
Mirella contou que ela e Ceará foram parados na alfândega e que muitos homens vieram ava-
liar os documentos e ficavam rindo. Depois foram levados a outro lugar e duas policiais mulheres a
conduziram a uma sala reservada. A modelo e bailarina revelou que quase foi deportada por ter sido
confundida com uma mulher transexual.
(...) “Quando eu chego, ela entra e diz: ‘Pode deixar tuas coisas em cima da mesa. Quero que
tu suba nessa máquina. Afasta um pouquinho tuas pernas e passa pela máquina, e não se move’.
Aí fiquei parada, a máquina foi, voltou, e fiquei parada. Ela saiu da sala e ficou olhando pelo vidro.

199 https://www.terra.com.br/diversao/gente/atriz-de-travessia-faz-desabafo-apos-ser-confundida-com-trans,c1881
b4e9031850df8467e307063ad25u51zhgwn.html#:~:text=A%20atriz%20Isabelle%20Nassar%20desabafou,do%20
p%C3%BAblico%20sobre%20sua%20sexualidade
200 https://revistaladoa.com.br/2022/04/noticias/lesbica-e-agredida-em-banheiro-do-metro-de-sp-apos-ser-confundida-
com-homem/
201 https://www.metropoles.com/celebridades/mirella-santos-revela-ter-sido-confundida-com-mulher-trans-em-dubai

99
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

Falei ‘gente o que está acontecendo? Será que ela está achando que eu estou com drogas? Dinheiro
escondido?'”
(...) De volta a alfândega, ela foi liberada sem saber o que tinha acontecido, então resolveu
perguntar para a guia. “Eu olhei para a indiana (que era a guia do casal) e falei assim ‘o que está
acontecendo?’ E ela falava assim: ‘Você já trocou o seu passaporte?’ e eu falei ‘não, nunca’. Aí ela
começava a falar e eu não entendia, então pedi para escrever. E ela assim: ‘Você fez mudança de
sexo? Transgênero?’.”
“Ou seja, eles estavam achando que eu tinha feito mudança de sexo, por isso que me passaram
na máquina. Me deu um ataque de riso, e a indiana ainda estava acreditando neles”, contou Mirella.

2023 - Atriz da série 3% da Netflix sofre violência transfóbica no metrô de SP202


Ela estava voltando da casa do namorado e se sentou em uma das cadeiras do metrô de perna
cruzada quando foi abordada por um homem. “Por eu estar de saia curta, um senhor que sentou
na minha frente pediu para eu tampar as minhas partes íntimas. E ele falou isso bem alto para me
constranger, para todo mundo ouvir”.
“Ele disse: ninguém é obrigado a olhar para o seu pint*. Ou seja, ele não viu nada, né? Ele queria
me constranger por achar que eu era uma mulher trans. Não é a primeira vez que sou confundida
com uma mulher trans.”
A atriz conta que já foi “confundida com mulher trans” outras vezes, mas essa era foi a primeira
em que foi violentada. “Qualquer mulher pode passar por isso. Enquanto as mulheres trans não
estiverem a salvo, nós não estamos a salvo.”

2023 – Na Câmara, Feliciano questiona se Margareth Menezes “pode ser chamada de


mulher”203
Pastor se diz contrário à causa trans, e à ideologia de gênero, a quem ele já chamou de "maldita"
nas redes sociais. O deputado federal Marco Feliciano (PL-SP) questionou o gênero da ministra da
Cultura, Margareth Menezes, durante reunião da Comissão de Cultura da Câmara.
“Eu quero saber o que ela é. Eu sei que é uma mulher. Eu não sei se pode ser chamada de
mulher ou não”, afirmou o parlamentar.

2023 – Confundida com trans, mulher cis tem genitália tocada por segurança ao tentar uti-
lizar banheiro feminino da Viradouro204
Mulher cis, Luciana afirma que foi impedida por seguranças de utilizar o banheiro feminino
da quadra após ser confundida com uma mulher trans. Impedida de forma constrangedora, sob a
justificativa de que haviam crianças utilizando o banheiro, ela ainda relata ter sofrido assédio por

202 https://vozdadiversidade.com.br/atriz-da-serie-3-da-netflix-sofre-violencia-transfobica/
203 https://www.cnnbrasil.com.br/politica/na-camara-feliciano-questiona-se-margareth-menezes-pode-ser-chamada-
de-mulher/
204 https://pheeno.com.br/2023/02/confundida-com-trans-mulher-cis-tem-genitalia-tocada-por-seguranca-ao-tentar-
utilizar-banheiro-feminino-da-viradouro-2/

100
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

parte da segurança. “Quando eu cheguei perto do ouvido dela para explicar que eu sou mulher (sic),
ela simplesmente apalpou os meus seios e botou a mão na minha parte íntima“, disse Luciana em
transmissão ao vivo no Instagram. “Foi muito rápido. Eu me assustei e afastei a mão dela“, desabafa
ela. “Isso nunca me aconteceu. Tenho sim ‘traços de trans’ (sic), não ligo, só que ninguém tem o
direito de colocar a mão, apalpar, de fazer nada“.

2023 – Lutadora da MMA sofre comentários de ódio na rede social ao ser confundida com
mulher trans205
Não é verdade que a lutadora brasileira de MMA Gabi Garcia seja transexual, como afirma
uma publicação de teor transfóbico que circula nas redes sociais. Gabi é uma mulher cisgênero
—pessoa que se identifica com o sexo biológico com o qual nasceu— e uma das atletas mais bem-
-sucedidas do jiu-jitsu brasileiro.
"Mulher luta com homem trans que nunca ganhou uma luta com homens, agora luta com
mulheres", afirma a legenda falsa.

2023 - Atleta mulher foi confundida com trans206


Diversas Páginas de notícias, incluindo a Maromba no Brasil, começaram a difundir um fato
errôneo, trazendo um Assunto Polêmico, no qual confundiram uma Atleta Mulher, dizendo que bio-
logicamente ela seria homem. Essa Atleta competiu na Categoria Feminina a que pertence, mas
muitos começaram a criticar pois ela tinha um volume Muscular muito superior ao das demais com-
petidoras. E diversas Páginas de notícias estrangeiras postaram críticas, e ela teve que Fazer uma
postagem em suas redes sociais, como desabafo e mostrando fotos antigas para provar que de fato
é Mulher.
De fato é um Absurdo rotularem as pessoas pela aparência, e infelizmente algumas páginas no
Brasil vieram a noticiar de forma errada esse caso, mas o jornalismo sério entrou em contato com
a Atleta (Ash Di Carlo), seu Coach, e a organização do evento, onde confirmaram sua identidade
Feminina. E as páginas retiraram as postagens erradas.

2023 – Mulher agredida ao ser confundida com trans diz que restaurante ajudou homem a
fugir207
De acordo com a mulher agredida, um homem desconhecido a abordou na saída do banheiro
feminino e perguntou se ela era um homem ou uma mulher. Ao questionar o motivo da pergunta, o
homem teria dado um soco no rosto dela acreditando se tratar de uma mulher trans.

205 https://noticias.uol.com.br/confere/ultimas-noticias/2023/03/23/lutadora-gabi-garcia-citada-em-postagem-
transfobica-e-cisgenero.htm
206 https://www.youtube.com/watch?v=PlGrTr73Bgw
207 https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2023/12/25/mulher-agredida-ao-ser-confundida-com-trans-diz-
que-restaurante-ajudou-homem-a-fugir-estabelecimento-alega-que-agressor-poderia-estar-armado.ghtml

101
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

11.4 Tentativas de conclusões (im)possíveis


Como podemos observar, desfiar as normas, os padrões, o lócus social e os papéis de gênero
são o combustível da misoginia e da transfobia. A patrulha de (cis)gênero tem se mostrado falha
expondo o risco que é para a vida real e material de todas as mulheres, cis e trans, normativas ou
não normativas, e deveria ser vista como uma gravíssima violação do direito à liberdade, à feli-
cidade, à individualidade e aos direitos humanos. Portanto acreditamos que deveria ser consi-
derado tortura impor que qualquer pessoa seja obrigada a vivenciar uma designação de gênero
que ela não se identifica como se fosse algo natural, ou exigir que se vistam e/ou expressem
de determinada forma, mesmo que isso lhe traga toda sorte sofrimento ou as coloquem como
subumanas, abjetas e matáveis.

As violências cissexistas contra mulheres cis atestam que a raiz da violência contra mulheres
é o gênero. Aliás, a ruptura com o que está imposto pela cisgeneridade compulsória. Neste pro-
cesso, imagem estética é muito importante, pois é a partir do imagético sobre pessoas trans, de
suas estéticas “insuficientemente femininas” e da indignação do olhar cisgênero que as colo-
caram em iminente risco. Por elas estarem distantes demais do padrão cisíssimo.

O condicionamento através da estética é identificado como uma ferramenta persuasiva,


reproduzindo ideais conservadores, visto que a estética de pessoas padrão adoece, incomoda
e intimida pessoas não normativas. E o que essa estética transmite é o direcionamento sobre
quem merece ser violentada e até mesmo morta. A sensação, enquanto corpo trans, é de inse-
gurança em todo espaço.

Em todos os casos apresentados, sendo mulheres cisgêneras, nenhuma delas foi agredida
por ter uma vagina. Mas porque imaginaram que elas poderiam ter um pênis. E é esse o motivo
considerado suficiente para que ela perca seu local dentro da cisgeneridade e por que não da
mulheridade, e seja violentada. Violências perpetradas por homens cis, embora as denunciantes
identificadas em algumas matérias tenham sido mulheres.

Por esse motivo não faz sentido a imposição de qualquer distinção entre mulheres cis e
trans para o acesso à cidadania e à garantia de direitos. E por isso é importante falar dos desa-
fios de lutar contra o machismo e promover a emancipação de outras mulheres — todas. Mas
também incentivar a desconstrução do padrão de feminilidade que adoece, aprisiona, tira o pro-
tagonismo de outras mulheres e a possibilidade de avanço de mulheres para ocupar espaços de
poder, que hierarquiza, diz quem é mulher e qual de nós pode ter acesso a direitos.

O pensamento anti-hegemônico é ressaltado como crucial, mas sua eficácia é condicionada


pela resistência da cisgeneridade. As políticas antigênero têm sido prejudiciais não apenas
às pessoas trans, mas ao conjunto de mulheres e demais corpos não normativos. Combater a
misoginia, o racismo e o machismo sem enfrentar a transfobia é uma luta fadada a ser perdida.
Nenhuma menina ou mulher estará livre até que meninas e mulheres trans estejam livres.

102
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

Mas por qual motivo discutir tudo isso no contexto de assassinatos de pessoas trans? Exa-
tamente porque precisamos que toda a sociedade compreenda que a diversidade compõe a
humanidade e colabora para tornar o convívio social seguro e acessível a todas as pessoas que
escapam à norma. E se abrir para novos debates como o rompimento com uma estética nor-
mativa/normatizadora, por exemplo, traz mais segurança (e liberdade) para quem não deseja
seguir este padrão. Conhecer novas perspectivas sobre os direitos humanos de grupos vulnera-
bilizados que enfrentam processos de extrema invisibilização é necessário para efetivar a cida-
dania de todas as pessoas.

A reflexão deste capítulo portanto, destaca que a estética parece ser a última a ser repen-
sada nos processos de revolução, desconstrução e mudança de paradigmas. E a proposta é
clara: que a revolução comece na estética, reconhecendo seu papel fundamental na (re)cons-
trução de uma sociedade mais segura para todas as crianças, mulheres, e porque não homens
que fogem da masculinidade tóxica?

Desmantelar o sistema que aprisiona corpos, cis e trans, e limita suas experiências enquanto
seres humanos é um compromisso que todas as pessoas deveriam assumir. Enquanto houver
essencialismo e rigidez nas identidades, papeis e expressões de gênero, haverá patriarcado,
machismo, racismo, transfobia e outras violências, e como consequência disso, mulheres,
crianças e outras identidades vistas como “divergentes” seguirão em constante risco.

12. Suicídio e a saúde mental da população trans


Em 2023, foram catalogados 10 casos de suicídio, sendo 1 deles uma pessoa não binária
(AMAB208), 4 casos entre homens trans/transmasculinos e 5 travestis/mulheres trans. Anali-
sando os dados desta pesquisa em relação às identidades de gênero, têm sido as travestis e
mulheres trans o grupo que mais comete suicídio, enquanto homens trans e pessoas trans-
masculinas são os que mais têm ideações suicidas. O gráfico abaixo demostra os casos moni-
torados desde 2017:

208 AMAB: Assigned Male at Birth usado para pessoas que foram designadas homens ao nascer e AFAB: Assigned
Female at Birth para aquelas pessoas que foram designadas mulheres ao nascer. Embora não haja consenso em
seu uso, é uma espécie de atualização dos termos MTF (Male do Female) ou FTM (Female to Male), que de forma
equivocada sugeria que a pessoa trans teria transacionado de um gênero a outro, normalmente ligando o binário
masculino e feminino como únicos pontos de partida e/ou chegada.

103
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

Gráfico – Suicídio de pessoas trans


25
23 20
20

15 15
12
10 10
7 8
5

0
2017 2018 2019 2020 2021 2022 2023

Segue sendo muito difícil de monitorar os suicídios, porque em sua grande maioria não são
publicados. E alguns quando publicados, a família não respeita a identidade de gênero e tem o
problema da notificação. Constatamos ainda que fichas de notificação das unidades de saúde
não são preenchidas ou quando são preenchidas, são feitas de forma incorreta. Todavia, reco-
nhece-se que o processo de exclusão social, a marginalização, discriminação e estigmatização
que se concretiza no nosso dia a dia, podem levar ao suicídio.

Em matéria publicada pela Gênero e Número209, pudemos observar a denuncia do quanto


mulheres trans e travestis jovens concentram as violências autoprovocadas. “Crianças, adoles-
centes e jovens respondem por mais da metade dos 2.761 registros de lesões autoprovocadas entre
mulheres trans e travestis no Brasil entre 2018 e 2021. A faixa etária de 18 a 24 anos concentra um
de cada três casos do tipo, segundo dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação
(Sinan), do Ministério da Saúde. No caso de crianças, o campo de “identidade de gênero” só é preen-
chido a partir dos 10 anos de idade”, diz a matéria. E uma das preocupações levantadas denuncia
que “os dados do Sinan também apontam para um problema no acompanhamento posterior ao
atendimento de mulheres trans e travestis que chegam ao sistema de saúde após um episódio de
autolesão. Apenas uma em cada quatro recebeu algum tipo de encaminhamento para a rede de
assistência social, justiça ou outros serviços de saúde”.

Na matéria, Lívia Lourenço Dias, psicanalista e diretora do Núcleo Psicossocial da Casa Um,
ONG que oferece assistência à população LGBTQIA+ destaca que “as pessoas não sofrem porque
elas são trans, mas porque elas são vítimas de preconceito, violência e são excluídas desde cedo”.

E se faz necessário compreender os condicionantes sociais, históricos, culturais e políticos


que intersectam os corpos trans, que por vezes, geram múltiplos agravos em suas experiências,
ocasionando processos variados de adoecimento.

As violências físicas e psicológicas, a exclusão familiar ou permanência em ambientes fami-


liares tóxicos e/ou transfóbicos, o abuso físico ou sexual, o alto índice de rejeição no mercado

209 https://www.generonumero.media/reportagens/autolesao-mulheres-trans-e-travestis/

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Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

formal de trabalho, a extrema violência em suas mais diversas nuances e formas, o racismo, o
cissexismo, a ausência de esperança, o estresse de minorias, o transtorno de ansiedade gene-
ralizada, a depressão, a humilhação, a baixa autoestima, são alguns dos principais fatores que
podem agravar a saúde mental de pessoas trans e levar ao suicídio, exatamente por serem con-
textos específicos em que apenas pessoas trans podem se deparar.

12.1 Terapias de conversão


Há ainda um fator importante a ser observado quando discutimos suicídio, que é o fato de
pessoas trans e LGB cis que têm sido suicidadas pelo fundamentalismo religioso. A patrulha de
gênero, a perseguição de sexualidades dissidentes pela ideologia cissexista e heteroterrorista
promovem adoecimento e levam à morte. Terapias de reorientação sexual e/ou de gênero, além
de se assemelharem ao charlatanismo, são gatilhos de morte e podem facilmente ser identifi-
cadas como métodos de tortura, devendo assim ser proibidas no Brasil.

De acordo com relatório da ONU sobre “terapias de conversão”210, essas práticas visam e
afirmam ter como objetivo transformar pessoas gays, lésbicas ou bissexuais em heterossexuais
e pessoas trans e travestis, ou gênero-diversas, em cisgêneras. O termo “terapias de conversão”,
portanto, seria utilizado como guarda-chuva para descrever intervenções de natureza abran-
gente, que se baseiam na ideia de que a orientação sexual ou a identidade de gênero de uma
pessoa pode e deve ser alterada.

Em 2012, a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) observou que as “terapias de con-


versão” não possuíam justificativa médica e representavam uma grave ameaça à saúde e
aos direitos humanos das pessoas afetadas e, em 2016, a Associação Mundial de Psiquiatria
constatou que “não há evidência científica sólida de que a orientação sexual inata possa ser
modificada”. Em 2020, o Grupo de Peritos Forenses Independentes declarou que oferecer
“terapia de conversão” é uma forma de ilusão, de promover propaganda enganosa e, até
mesmo, de fraude.211

A fim de enfrentar essa prática, a deputada federal Erika Hilton apresentou um PL (projeto
de lei)212 para que terapias de reorientação/conversão sexual ou de gênero (chamadas popular-
mente de “curas gay” ou “cura trans”) sejam equiparadas ao crime de tortura.

No PL, a deputada afirma que os tratamentos de conversão sexual “são verdadeiras prá-
ticas de tortura e agressão à toda a população LGBTQIA+, cuja orientação sexual ou designação
de gênero são características inerentes a cada sujeito, sendo impossível sua alteração”. Erika
argumenta que o Brasil tem normas nacionais e faz parte de convenções internacionais “para o
enfrentamento e a prevenção à tortura”. Lê-se no projeto: “A conduta criminosa de tratamento de

210 https://www.ohchr.org/sites/default/files/Documents/Issues/SexualOrientation/ConversionTherapyReport_PT.pdf
211 Idem item 209.
212 https://congressoemfoco.uol.com.br/area/congresso-nacional/erika-hilton-apresenta-projeto-para-cura-gay-ser-
considerada-tortura/

105
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

‘cura gay’ deve ser igualada a tortura, portando deve ser coibida, assim como amplamente inves-
tigadas as vítimas já submetidas a tamanha violência para que vidas sejam preservadas. Por defi-
nição, as terapias de conversão sexual podem caracterizar-se como tortura, principalmente em cir-
cunstâncias com dor, sofrimento físico e mental infligido sobre os indivíduos submetidos à prática”.

Ainda sobre o tema, a deputada Duda Salabert (PDT-MG) apresentou à Câmara dos Depu-
tados projeto de lei (PL 3627/23) que busca eliminar a prática danosa e não científica de terapias
de conversão de orientação sexual, identidade de gênero e expressão de gênero, práticas que
também são chamadas comumente de “cura gay”, “cura trans”, “reorientação sexual”, “terapia
reparativa” ou outros nomes. Para isso, a proposta cria mecanismos para punir a prática, sua
prescrição e divulgação, além de punir o impedimento de acesso a profissionais e serviços que
promovam o cuidado em saúde relacionado ao gênero e à sexualidade.

Atualmente, mais de 25 países possuem algum tipo de legislação banindo as terapias de


conversão, sendo perceptível, a partir de 2020, um aumento da tendência de novas leis crimina-
lizando essas práticas: Alemanha (2020), Canadá (2022), França (2022), Nova Zelândia (2022),
Grécia (2022), Espanha (2023), Chipre (2023) e Islândia (2023). Tais legislações, em especial, as
do Canadá e da Nova Zelândia, inspiram o texto apresentado.

A justificativa da proposta destaca que há estabelecido um consenso científico de que a


orientação sexual, identidade de gênero e expressão de gênero das pessoas lésbicas, gays, bis-
sexuais, travestis, transexuais, intersexo, assexuais, pansexuais e não-binárias (LGBTIAPN+)
não podem ser consideradas anormais ou patológicas, mas, sim, variações naturais. O mito da
“cura gay” causa danos profundos a pessoa e coletividade, podendo inclusive levar ao suicídio.

Uma pesquisa do Instituto Matizes em parceria com a All Out213 mostra que essas práticas
tem sido amplamente utilizadas no Brasil, inclusive em contextos de saúde física e mental, como
em consultas com psicólogos e psiquiatras. E também são praticadas em contextos escolares,
familiares e religiosos. De acordo com a publicação, grande parte dos entrevistados também
relatou ideações e/ou tentativas de suicídio. “Em vários relatos é comum aparecer a frustração
causada pela dificuldade e a incapacidade em tentar enquadrar o desejo e e o afeto para algo
diferente daquilo que a pessoa sente, de como a pessoa de fato é”, disse o diretor executivo do
Instituto Matizes, Lucas Bulgarelli, em entrevista à Carta Capital.

Existem evidências robustas de que as terapias de conversão “não funcionam, não são
baseadas em ciência e que causam danos graves às pessoas que são submetidas”. O livro “Ten-
tativas de Aniquilamento de Subjetividades LGBTIs”214, organizado pelo Conselho Federal de
Psicologia, retrata os intensos sofrimentos ético-políticos e os processos de resistência decor-
rentes de diversas formas de violências, preconceitos, injustiças e exclusão.

213 https://campaigns.allout.org/pt/relatorio-ecosieg
214 https://site.cfp.org.br/publicacao/tentativas-de-aniquilamento-de-subjetividades-lgbtis/

106
Parte III –
Recomendações e artigos
13. Recomendações
Considerando a realidade explicitada nesta pesquisa, sobretudo na análise do contexto
geral e de conjuntura no capítulo 1, é super importante tecer recomendações que, embora per-
maneçam as mesmas de nossa edição anterior, devem ser incorporadas a fim de promover o
enfrentamento efetivo da transfobia e de suas múltiplas formas, na busca por ambiente social
onde as pessoas trans possam existir, serem protegidas e se sentirem seguras.

I) Recomendações gerais
• Revogar o modelo transfóbico do “novo RG” e implementar um modelo que garanta o
respeito e a proteção das pessoas trans;
• Instituir políticas afirmativas de reservas de vagas e/ou cotas para pessoas trans nas
universidades federais, desde a graduação, e no concurso público unificado;
• Instituir uma mesa de mediação junto à presidência a fim de lidar com a situação de
violência contra pessoas trans no Brasil;
• Revisar os valores das tabelas dos hormônios usados por homens trans e pessoas
transmasculinas que passaram por aumento desproporcional;
• Realização de mutirões nos órgãos do sistema de assistência social, para emissão
emergencial e gratuita de documentação, regularização e inclusão no cadastro da rede
de assistência e programas sociais para pessoas LGBTQIA+, idosas, em situação de
rua, população periférica de baixa renda, imigrantes e/ou que morem fora das capitais,
em assentamentos de movimentos pelo direito a terra e profissionais do sexo com a
finalidade de que possam ser atendidas pelas medidas sócio econômicas;

107
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

• Incluir a garantia de tratamento exclusivo pelo uso no nome social no portal GOV.BR;
• Inclusão da proteção específica às profissionais do sexo nos planos de proteção social;
• Destinar recursos para a realização de pesquisa sobre mulheres Lésbicas, Bissexuais,
Travestis e transexuais (LBT) no âmbito do Ministério das Mulheres;
• Instituir programa de enfrentamento à transfobia, racismo e injúria transfóbica no
ambiente virtual, redes sociais e afins, com ações de prevenção, canais de denuncia,
, identificação e responsabilização de suspeitos, assim como meios de reparação
coletiva e para as vitimas de violências, assédios e bullying cibernético;
• Garantir o direito à autodeclaração de gênero das pessoas trans e gênero-diversas em
todas as áreas de atuação do Estado;
• Garantir acesso às políticas sociais para a população trans, com atenção às profissionais
do sexo, moradores de favela e da periferia, pessoas em situação de rua, egressas do
sistema prisional e àquelas privadas de liberdade ou do sistema socioeducativo;
• Implementação de espaços públicos de abrigamento para pessoas trans idosas, assim
como crianças e adolescentes expulsas de casa;
• Criar e implementar medidas legais e políticas antidiscriminação, ações positivas no
campo da educação e do emprego para evitar que qualquer pessoa tenha que depender
da venda do sexo como meio de sobrevivência devido à pobreza ou discriminação.
• Implementar ações governamentais, promovendo as articulações entre os órgãos
estaduais e municipais entre esses e Organizações da Sociedade Civil (OSCs) de
assistência social, educação ou defesa de direitos que tratem da temática diretamente
necessárias à implementação da política de proteção à Comunidade LGBTQIA+ ;
• Transversalizar político-administrativamente os programas, projetos, serviços e
benefícios de atenção a pessoas LGBTQIA+ com deficiência ou mobilidade reduzida,
em situação de rua, em privação de liberdade, profissionais do sexo, trabalhadores do
campo, indígenas e em território de favela;
• Incluir no currículo escolar, temas ligados à educação sexual inclusiva e à tolerância à
diversidade;
• Criar programa específico de enfrentamento da transfobia no ambiente educacional;
• Apoiar e incentivar as ações da comunidade LGBTQIA+ no enfrentamento das
vulnerabilidades, da fome e desemprego, com atenção especial aos territórios
controlados pelo narcotráfico, periferias e comunidades de favelas;
• Garantir o atendimento e acolhimento nos abrigos públicos de acordo com a
autodeclaração de gênero, respeitando a orientação sexual das pessoas e famílias
LGBTQIA+;
• Atuar para proteger jovens LGBTQIA+, especialmente jovens trans, incluindo crianças
e adolescentes, investindo recursos para pesquisas e programas para o mapeamento
das necessidades específicas desse grupo, seus familiares e responsáveis;
• Viabilizar a criação de um “Plano nacional de combate a LGBTIfobia e promoção da
cidadania LGBTQIA+”;

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Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

• Garantir a representação e participação efetiva de pessoas trans em todas as ações


do governo sobre direitos humanos e enfrentamento do racismo, da violência contra a
mulher e proteção contra grupos minorizados;
• Atuar para implementar todas as recomendações previstas na RPU no tocante as
pessoas LGBTQIA+;
• Ratificar e atuar para a efetiva implementação da CONVENÇÃO INTERAMERICANA
CONTRA TODA FORMA DE DISCRIMINAÇÃO E INTOLERÂNCIA, com atenção a garantia
da autodeterminação e livre expressão de gênero das pessoas trans;
• Estabelecer diálogo com os movimentos sociais de pessoas trans politicamente
mobilizados em questões referentes aos nossos direitos;
• Atualizar e modernizar o disque 100, incluindo a necessidade de informações específicas
sobre identidade de gênero;
• Promover ações específicas para a erradicação do bullying transfóbico e interromper a
exclusão de pessoas trans nas escolas e universidades;
• Destinar vagas específicas para pessoas trans em programas de geração de emprego
e/ou de renda e incentivos fiscais para empresas que têm vínculo com o Estado para
contratarem pessoas trans, priorizando travestis e mulheres trans;
• Implementar política de ações afirmativas para pessoas trans por meio de reserva de
vagas para o acesso em universidades, em concursos públicos e demais seleções para
atividades remuneradas;
• Revogar em caráter de urgência o decreto 10977/2022 sobre novo RG;
• Instituir o programa transcidadania a nível federal, a exemplo do que fez a prefeitura de
São Paulo no governo do prefeito Fernando Haddad;
• Incluir informações sobre à comunidade LGBTQIA+ no Censo previsto para 2030;
• Destinar Recursos (materiais, pessoais e financeiros) para ações de enfrentamento à
transfobia, priorizando a educação em todos os níveis, saúde, segurança pública e na
assistência social;
• Atuar para a retificação, em caráter de urgência, o CID-11, publicada em 2018 pela
Organização Mundial da Saúde, de modo a reconhecer que a transgeneridade não é
uma doença;
• Revisar e atualizar os procedimentos previstos no Processo transexualizador a partir
do que está previsto na resolução 2265/2020 do CFM, sem se limitar a ela e mantendo
diálogo com os movimentos trans;
• Ampliar a rede de oferta dos procedimentos previstos no processo transexualizador
com a habilitação e implementação de ambulatórios e hospitais, com atenção especial
aos estados onde eles não existam ou estejam inoperantes;
• Cumprimento imediato da decisão do STF no julgamento da ADPF 787 em 28/06/2021
sobre o acesso à saúde de pessoas trans no SUS.

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Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

II) Para a segurança pública e justiça


• Realizar mutirões de desencarceramento de pessoas trans presas por crimes de menor
potencial ofensivo, considerando a mudança de regime;
• Impedir prisões pelo exercício das atividades relacionadas ao trabalho sexual,
afastando-se de medidas punitivas, retirada forçada das ruas e criminalização da
atividade;
• Incentivar campanhas e ações para o enfrentamento da exploração de profissionais do
sexo;
• Garantir o atendimento e acolhimento de travestis e mulheres transexuais nos
mecanismos e canais de atenção à mulher vítima de violência;
• Atuar para coibir todo e qualquer tipo de segregação ou inferiorização de travestis e
mulheres trans em relação a mulheres cisgêneras no âmbito da segurança pública;
• Estabelecer protocolo específico de atendimento e abordagem a pessoas trans;
• Realizar campanhas e ações específicas contra a violência doméstica, seja física ou
psicológica, motivada por LGBTIfobia;
• Realizar campanhas públicas que incluam a diversidade LGBTQIA+ com o objetivo
de conscientizar sobre seus direitos, os impactos da transfobia e sobre os efeitos da
criminalização da LGBTIfobia;
• Garantir o uso do nome social e pronomes adequados no tratamento das pessoas trans
e seus acompanhantes nas unidades e em abordagens por agentes de segurança
pública;
• Revisar e garantir a possibilidade de mudança de regime e revisão de pena das pessoas
LGBTQIA+ vivendo com HIV em privação de liberdade para regime domiciliar;
• Garantir o cumprimento da decisão do STF para o correto enquadramento e
reconhecimento da homotransfobia/LGBTIfobia como forma de racismo nos termos da
decisão do STF que criminalizou a discriminação por orientação sexual e/ou identidade
de gênero;
• Criar protocolos policiais para enfrentamento da violência lgbtifóbica no Brasil, assim
como para o correto atendimento e abordagem de pessoas LGBTQIA+ por agentes de
segurança pública;
• Providenciar formação, periódica e continuada, para qualificação e educação de
agentes públicos em todas as áreas, com especial atenção para segurança pública,
órgãos de proteção a vítimas de violência e espaços destinados a mulheres vítimas
de violência doméstica e em espaços estatais sobre a importância do acolhimento das
pessoas trans respeitando suas especificidades;
• Instituir normativas que determinem a coleta de dados sobre violências, tentativas de
homicídio, assassinatos e violações de direitos humanos contra a população de travestis
e demais pessoas trans;

110
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

• Combater a impunidade e a subnotificação de abuso e violência contra pessoas


LGBTQIA+;
• Apoiar e incentivar o trabalho de monitoramento da violência com a celebração de
parcerias com as instituições da sociedade civil que atuem na área;
• Atuar para a inclusão e garantia da proteção específica às travestis e mulheres trans
dentro das políticas de proteção a violência de gênero e mulheres e;
• Gerar dados sobre a nossa comunidade no âmbito do sistema de justiça e de direitos
humanos.

III) Recomendação ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ)


• Consideramos imperativo que Conselho Nacional de Justiça aprove normativas impondo
a apuração e publicação periódica de dados sobre violência contra pessoas LGBTQIA+,
com seus respectivos qualificadores, e o correto preenchimento dos campos orientação
sexual, identidade de gênero e nome social – no caso de pessoas trans;
• Restabelecer o conteúdo original da Resolução 368/2020215, revogando as alterações
incluída pela Resolução nº 366, afastando toda e qualquer hierarquia entre travestis,
mulheres trans e pessoas intersexo, que devem ter restabelecido o direito de escolha
sobre a unidade onde cumprirão pena;
• Adequar os Provimentos CNJ nº 73/2018216 e CNJ nº149/2023217, de modo que os mesmos
estejam de acordo com o previsto na Lei 14.382/22218, que assegura a qualquer pessoas
brasileira a retificação registral, a partir dos 18 anos de idade, diretamente no cartório
e sem qualquer tipo de necessidade de comprovação ou exigência de documentos que
são exigidos às pessoas trans e as afastam desse direito quando no referido provimento
se estabelecem regrar desproporcionais a este grupo, o que é vedado pela Constituição
Federal;
• Acompanhar casos de violência de grande repercussão, sobretudo no que diz respeito
ao tratamento da justiça sobre a correta aplicação da criminalização da LGBTIfobia, de
forma com que o julgamento sobre a perspectiva de gênero seja aplicado em relação a
pessoas trans; e
• Divulgar dados obtidos através do formulário Rogéria, incluindo as ações tomadas e
promovendo debates, cursos e formações sobre o tema para todo o sistema de justiça.

215 https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3519
216 https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/2623
217 https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/5243
218 https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/campanhas-e-produtos/direito-facil/edicao-semanal/alteracao-
de-nome#:~:text=O%20artigo%2056%20da%20Lei,a%20altera%C3%A7%C3%A3o%20de%20seu%20nome

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Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

14. Artigos
14.1 2023: Brasil invicto como campeão no consumo de
pornografia (e de assassinatos) trans no mundo219
Bruna Benevides

Anualmente, os maiores sites pornôs do mundo publicam um relatório com as categorias


mais acessadas pelos seus usuários, detalhando palavras-chave, celebridades, fetiches e ten-
dências mais buscadas em cada país do top 20. O Brasil, que nunca fica de fora dessa lista,
demonstrou mais uma vez em 2023 o paradoxo de viver entre o desejo e o ódio em relação às
travestis e transexuais.

Como esperado, esses dados não são exatamente uma surpresa. Assim como não é sur-
presa o fato de que o Brasil seguiu pelo 15º ano consecutivo como o país que mais assassinou
travestis e transexuais no mundo todo em 2023, de acordo com o publicado pela TGEU.

O primeiro ano em que o RedTube colocou o Brasil como o país que mais consome porno-
grafia com pessoas trans foi em 2016. Desde então, estivemos sempre presentes na lista e per-
manecemos na liderança de outros sites internacionais como o maior público para esses vídeos.

Buscas por termos como shemale, transgender, brazilian shemale e ladyboy aparecem na
liderança dessas plataformas em todos os países. Já no Brasil, alguns vídeos chegam a mais de
1 milhão de visualizações no RedTube, 20 milhões no PornHub e outros quase 50 milhões no XVi-
deos, com buscas pelos termos travesti, travesti brasileira e suas variações.

A pornografia trans aumentou 75% nas pesquisas gerais, e ocupou a sexta categoria em
pesquisas internacionais este ano, uma posição acima de 2022. É isso que demonstra o rela-
tório 2023 do PornHub. Importante destacar que as categorias pornográficas mais populares
incluem vários termos raciais e étnicos, assim como de identidades, um reflexo preocupante
da fetichização e racismo sexual que pessoas negras e pardas, transgêneras, lésbicas e outras
vivenciam regularmente.

A divisão das categorias de acordo com o que os homens e as mulheres estão mais inte-
ressados ​​viu uma certa sobreposição entre os gêneros. As buscas por Transgender subiu +2%
este ano entre homens. Quando chegou a hora das categorias vistas mais comparativamente por
mulheres do que por homens, Scissoring era +196% mais popular, Transgênero aumentou 175%
mais e Pussy Licking ficou 105% mais popular.

219 Publicado originalmente em: https://catarinas.info/colunas/brasil-invicto-como-campeao-no-consumo-de-


pornografia-trans-no-mundo-e-de-assassinatos/

112
Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

Aliás, destaco que não são apenas homens cis que tem o desejo e dificuldade de assumir que
sentem atração por mulheres trans. Mulheres cis, especialmente lésbicas e bissexuais também
têm receio/medo de se relacionarem ou sentirem atração por mulheres trans e travestis. E como
escreveu Raíssa Eris Grimm: “isso não é sobre genitais, mas sobre estigmas que são lançados
sobre corpos trans”. E aqui não falo de mulheres que não sentem atração por pessoas trans, mas
por aquelas que sentem, mas que são reprimidas por diversos estereótipos violentos e claro,
pelos impactos da transfobia como o medo de perder a respeitabilidade em espaços lésbicos,
entre familiares, amigos, etc.

E entre as mulheres cis que visitam o site, elas viram pornografia trans 175% mais
vezes do que os homens cis. O que demonstra que pessoas trans não precisam “pressionar”
lésbicas para fazerem sexo - ou qualquer outra pessoa, a fazer sexo. Pessoas cis só precisam
admitir que eles acham que somos gostosas e têm desejos por nossos corpos.

Entre as gerações, as buscas por transgender não aparece entre as 8 categorias mais pro-
curadas pela Geração Z (18 a 24 anos). Já na geração Y (25 a 34 anos) aparece em 7º, na Geração
X (35 a 54 anos) em 3º, em 2º entre boomers (+55 anos).

Relatório do Pornhub sobre tendências de buscas no Brasil em 2023 (Foto: Reprodução)

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Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

Baby Boomers como são chamados – o grupo que inclui os principais agentes antitrans e
conservadores— pesquisou pornografia trans 58% mais vezes este ano do que no ano passado.

As pesquisas mais populares no Brasil incluíram “surpresa transgênero” (transgender sur-


prise) que teve aumento de 490% - Nenhum outro país teve um aumento tão alto. As principais
categorias no Brasil incluíram Anal em 1º, Brasileiro em 2º, e Transgênero em 3º .

Relatório do Pornhub sobre tendências de buscas no Brasil em 2023 (Foto: Reprodução)

A ligação entre os assassinatos de pessoas trans e o consumo de pornografia no Brasil revela


uma ligação bem complexa: o quanto os discursos de ódio, as políticas conservadoras de controle
das liberdades, sexualidades e identidades de gênero diversas e a agenda conservadora antitrans
têm impactado a violência contra pessoas trans e feito aumentar a busca por nossos corpos no
ambiente virtual sob a proteção de uma suposta anonimidade que o ambiente virtual confere.

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Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

Historicamente, os corpos trans têm sido muitas vezes tratados apenas como abjetos, feti-
ches e/ou fantasias, sem levar em conta nossos próprios desejos ou sentimentos. E isso cria
uma situação altamente problemática, onde essas pessoas são desejadas e ao mesmo tempo
causam repulsa para determinadas pessoas. As travestis e mulheres transexuais são as mais
procuradas em sites pornográficos, mas também compõem a maioria esmagadora (94%) das
vítimas assassinadas, segundo dados da ANTRA.

Existe um ódio enraizado contra travestis e mulheres transexuais, transmitido de geração


em geração. E apenas quando superarmos esse processo é que seremos verdadeiramente livres
para viver nossos desejos e relacionamentos sem medo ou sem risco para as pessoas trans. E
de quebra isso ajudaria a acabar com a ideia de que se envolver afetiva ou sexualmente com
pessoas trans seria algo ruim ou errado.

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Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

14.2 Governo Federal precisa sair do armário em relação


aos direitos das pessoas trans
Fabian Algarte220 e Bruna Benevides

A luta LGBTQIA+ tem sido constantemente atacada e visto suas pautas serem politizadas
de forma enviesada pela extrema direita ao redor do mundo para mobilizar e direcionar o ódio
ao pensamento progressista e a governos que defendem os direitos humanos desta parcela da
população através de manipulações da opinião pública devido a LGBTIfobia social que tem sido
passada de geração em geração, ensinada de pai para filho e de filho para neto, nos púlpitos
e nos palanques da política institucional, e encontrado campo fértil para as tentativas de cri-
minalização dessas existências e radicalização da discriminação contra corpos, identidades e
sexualidade dissidentes.

Especialmente nos últimos anos, no mesmo instante em que pessoas trans tem conseguido
avançar em algumas conquistas ao redor do mundo, observamos a reorganização de um ecos-
sistema conservador da extrema direita — que cresce com governos autoritários e neofascistas
— e tem alavancado um levante antigênero em reação a maior inserção de temas que envolvem
pautas tidas como “identitárias”, mas que, na verdade tratam do enfrentamento de injustiças e
garantias de direitos humanos, alguns deles bem básicos como direito ao nome e a um trata-
mento respeitoso e digno, onde as políticas antitrans passam a funcionar como catalisadores da
radicalização de grupos de ódio e a disseminação sistemática de fake news, narrativas conspira-
cionistas das mais absurdas, e sem qualquer respaldo na ciência.

O empenho para aprender sobre os direitos da população trans, pensando na urgência de


um letramento sobre diversidade de gênero, de modo a enfrentar de forma qualificada, firme e
técnica as falácias antitrans (como o mito da ideologia de gênero e outros espantalhos que têm
sido convertidos nos bichos-papões do século XXI) precisa ser visto como parte não apenas da
luta antifascista, mas também antirracista, antimisoginia e como forma de oposição a toda pro-
dução de ações e narrativas oriundas da extrema direita, dos fundamentalismos religiosos ou
essencialismos de gênero. Há um entrelaçamento primordial das lutas e tratar como se apenas
a dignidade de algumas pessoas seja alvo de luta é agir como, parafraseando George Orwell, se
todos os humanos fossem iguais, mas uns mais iguais que outros. É disseminar desigualdades
quando a obrigação do poder público é exatamente o oposto – extingui-las.

Não adianta tentar se blindar de críticas de setores que outrora depuseram um governo

220 Coordenador nacional do Instituto Brasileiro de Transmasculinidades – IBRAT. Cursou psicologia, física e ciências
contábeis. Atua na área de perícia contábil trabalhista e treinamentos corporativos sobre diversidade. Autista. Trans
homem. Transativista e ativista dos direitos da população PcD. É membro da Comissão de Diversidade e Inclusão do
CRC do Paraná, membro do Projeto TransFormar do GENERAS da FEAUSP. Representa o IBRAT no Conselho dos
Direitos das Pessoas LGBTQIA+ do MDHC.

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Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

do PT , com o golpe de 2016, e que estão corroendo agora o governo das conciliações, eles têm
cobrado um preço alto, e que tem custado vidas. Uma agenda política pró direitos das pessoas
trans não pode ser vista como uma ameaça de perda de votos, pois se trata de garantir digni-
dade, direitos e a própria vida dessa população. Isso é inegociável e indiscutível. Resgato o dado
de que há 15 anos o Brasil segue no topo dos assassinatos de pessoas trans e nem podemos
atribuir esse índice apenas ao governo temer e Bolsonaro.

Quinze anos liderando o ranking de país mais criminoso contra a vida de pessoas trans e tra-
vestis — um recorde brutal ignorado completamente pelo poder público que se manteve omisso
a respeito ano após ano, sem trazer o tema à tona, sem assumir nenhuma responsabilidade no
combate a isso — A omissão do poder público se escora nos corpos da população trans e travesti.

O Governo Lula precisa sair do armário e assegurar, através de ações, compromissos, polí-
ticas e acenos simbólicos diante da sociedade, que vidas trans importam e para que a transfobia
deixe de ser uma pauta da extrema direita contra o próprio governo. Enquanto o presidente e
as demais áreas do governo (e partes da esquerda) seguirem se esquivando de assumir uma
posição pública e organizada em defesa dos direitos trans, a direita continuará usando a agenda
antitrans para enfraquecer a atuação do governo, seja com fake news ou violência.

A produção de mentiras e falácias tais como “Banheiros unissex”, “hormônios e cirurgias


em crianças”, “trans estuprando mulheres cis”, já trazidos tantas vezes, e se somam ao kit gay
e a mamadeira de pir#ka e tantas outras mentiras que nunca tiveram uma atenção efetiva para
serem derrubadas e enfrentadas oficialmente, serve para disseminar desinformação e incitar
violência enquanto distancia a atenção e gasta esforços para si. Uma cortina de fumaça útil
para dar palco a sensacionalismos, tentar determinar como se deve falar de diversidade e tentar
acuar um governo que não toma as rédeas dos temas. A falta de posição tem custado caro ao
governo e mais ainda à população LGBTQIA+, especialmente às pessoas trans. Ela é letal.

Desde propor leis e normas que restrinjam direitos até incitar o extermínio de pessoas, a vio-
lência contra a população trans e travesti no Brasil tem aumentado diariamente. Não ter acesso à
dignidade no sistema educacional, na saúde, não ter direito a usar banheiro, não praticar esportes,
não ter seu nome respeitado, não poder andar na rua sem ser ofendido, ameaçado, agredido de
diversas configurações... a violência contra população trans se manifesta no quotidiano de modo
cada vez evidente, sem medo de quaisquer represálias ou responsabilizações legais.

É inadmissível que uma resolução aprovada pelo Conselho Nacional LGBQTIA+ seja vista
como um problema e leve um ministro de Estado ao vexame que foi uma verdadeira sabatina na
câmara porque o governo não quis afirmar seu compromisso com uma educação antitransfobia
na escolas. Não dá mais para seguir aceitando acenos e flertes com o fascismo e recuar para
a manutenção de um modelo de RG transfóbico que expõe pessoas trans a constrangimentos,
humilhações e a diversas violências institucionais, simbólicas, psicológicas e até mesmo físicas
porque o governo não quer lidar com a questão. Ele não pode se dar ao luxo de não lidar com
questões que impactam a vida e a dignidade das pessoas. Precisamos construir uma sociedade

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Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

segura para crianças e jovens trans poderem se desenvolver com segurança e qualidade de vida.
Mas isso não é possível sem compromisso real do poder público. Essa inércia causa impactos
ainda mais deletérios à vida e aos direitos das pessoas trans. Aumentando nossa insegurança e
violência contra nós.

Enquanto nos orgulhamos de ver a cantora Anitta ganhar Grammys e o mundo se render
ao seu talento rebolando a bunda, recentemente vimos a Ministra da Saúde “repudiar veemen-
temente” uma mulher trans que dançou igual à diva pop em um evento de promoção à saúde.
Ou observar sem se incomodar quando a mesma foi perguntada por um deputado se homens
podem gestar, a ministra da saúde perdeu a oportunidade de dar uma resposta bem simples e
educativa: Homens trans podem gestar e terão acesso aos cuidados em saúde necessários.

E o que vimos foi o constrangimento de uma resposta muito mal elaborada pela ministra,
que além de se expor a uma cena absurda, chamou atenção para a necessidade de diálogos
com instituições, pesquisadoras e ativistas trans — em todas as áreas. Aliada à omissão, a falta
de conhecimento dentro do poder público leva a efeitos devastadores na garantia de direitos e
dignidade da população trans.

Precisamos vencer o medo que o campo progressista, a esquerda e nossos “representantes”


têm de abordar nossos direitos e existências. Precisamos romper com o pacto da cisgeneridade
e com a transfobia. Só assim nossas vidas deixarão de ser um tabu e poderemos avançar.

Temos que derrubar o mito das “pautas identitárias” que a esquerda tem usado para esva-
ziar ou silenciar o debate sobre diversidade sexual e/ou de gênero e que tem se virado contra
o governo. Precisamos encarar com coragem como tem sido feito em outros temas para que
pessoas trans passem a ser vistas como dignas de direitos e de terem vidas vivíveis, e para que o
próprio governo se liberte da chantagem que tem sido posta por forças antidemocráticas.

O avanço da desinformação e da violência precisam ser enfrentados e erradicados. Não se


trata de uma escolha, pois ao poder público não cabe escolha. É assumir a responsabilidade
constitucional do Estado de garantir segurança e dignidade à toda população que reside nesse
país. Posicionar-se e iniciar o trabalho real de combate aos preconceitos, à desinformação e à
violência em todas as suas formas. É cumprir sua obrigação de existir. O Estado existe para toda
população. Omitir-se e silenciar-se sobre determinados grupos de pessoas não é possível em um
real Estado de direito.

O país que mais elege pessoas trans não pode continuar sendo o que mais as assassina, e o
governo tem um papel fundamental nesse sentido. E para isso precisa sair do armário e agir para
mudar a realidade material em que estamos inseridas. Não esperamos nada diferente daquele
em que depositamos nossa confiança e seguiremos aqui reafirmando nosso compromisso, mas
também assumindo postura crítica sempre que necessário.

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Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023

E nesse sentido, se faz necessário buscar meios de garantir a prevenção e o devido enfren-
tamento das múltiplas violências cissexistas, responsabilização para responsáveis, sejam men-
tores ou agentes diretos, e mais ainda pensar em medidas de reparação para vítimas, familiares
e para a coletividade por tudo a que essas pessoas tem sido submetidas.

Pessoas trans ajudaram a eleger este governo e merecem uma maior atenção. E, embora
entendamos as movimentações que precisam ser feitas para governar, o Estado precisa assumir
uma posição em defesa dessas pessoas e assegurar sua cidadania sem demora, sem omissão ou
constrangimentos, e sem desculpas.

119
REALIZAÇÃO

APOIO

APOIO INTERNACIONAL

TERMO DE FOMENTO Nº 948510/2023

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