O PODER NO
PENSAMENTO SOCIAL
Dissonancias
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LENT‘© 2008, Os autores
© 2008, Editora UFMG
Este livro ou parte dele no pode ser reproduzido por qualquer meio sem
autorizacio escrita do Editor.
© poder no pensamento social: dissondincias / Renarde Freire Nobre
Conganizador). ~ Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
178 p. — (Humanitas)
‘Trabalhos apresentados na “IV Jomada de Ciéncias Sociais’,
ocorrida entre 27 ¢ 29 de novembro de 2006 na Faculdade de Filosofia,
Ciéncias Humanas da UFMG.
742
Inclui referéncias.
ISBN: 978-85-7041-694-0
1. Ciéncias sociais - Coletinea. 2. Ciéncia politica - Coletinea.
3. Poder (Ciéncias sociais). 1. Nobre, Renarde Freire. Il. Série.
DD: 300
CDU: 316
Elaborada pela Central de Controle de Qualidade da Catalogacao da
Biblioteca Universitaria da UFMG
Este livro recebeu apoio do Programa de Pés-Graduagio em Sociologia, por
meio do convénio CAPES-PROF/UFMG.
DIRETORA DA COLECAO Heloisa Maria Murgel Starling
ASSISTENCIA EDITORIAL Euclidia Macedo e Leticia Ferres
EDITORAGAO DE TEXTO Maria do Carmo Leite Ribeiro
REVISAO E NORMALIZAGAO Michel Gannam,
REVISAO DE PROVAS Lira Cordova € Renata Passos
PROJETO GRAFICO Gloria Campos - Manga
FORMATACAO E CAPA Luiz Flivio Pedrosa
PRODUGAO GRAFICA Warren M. Santos
EDITORA UFMG.
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rreire Nobre, Natdlia Salgado Bueno, Camila de Caux,
Guilberme de Lima, Vinicius Soares Lopes
: IMPOSICAO OU CONSENSO ILUSORIO?
“um retorno a Max Weber
ito M. Perissinotio
UESTAO DA ETICA NA POLITICA
© QUE HAVIA DE ERRADO COM A UDN?)
E O LIBERALISMO.
Gomes Filipe
SONTRADICAO ENTRE O ESTADO E A SOCIEDADE CIVIL
€0 dilema da modemidade politica
wy Pogrebinschi
SUMARIO
uw
29
o
69
83.
109
127SOUZA, Jessé. A invisibilidade da desigualdade brasileira. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2006.
SOUZA, Jessé. A construgao social da subcidadania: para uma sociologia
politica da modernidade periférica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003,
RENATO M. PERISSINOTTO
PODER: INPOSICAO OU
CONSENSO ILUSORIO?
POR UM RETORNO A MAX WEBER
© poder esta inserido
numa estrutura de dominaglo!
APRESENTACAO
E trivial dizer que “poder” constitui-se num dos mais contro-
versos conceitos das ciéncias sociais. Trivial, mas verdadeiro. De
fato, qualquer um que decida se embrenhar na literatura sobre o
tema encontrard trés dificuldades recorrentes: primeira, a multipli-
cidade de definigdes, em geral, apresentadas como excludentes
sem que 0 sejam de fato; segundo, os problemas de operaciona-
lizacao das definicdes, sendo algumas delas muito precisas, mas
muito superficiais, e outras mais sofisticadas, porém de dificil
aplicagao empirica; por fim, a justaposic&o de definicdes, ja que
alguns utilizam palavras diferentes para designar os mesmos
fendmenos ou lancam mao dos mesmos termos para designar
relacdes sociais distintas.
A discussio sobre 0 conceito de poder pode ser dividida em
dois grandes campos conceituais. Um deles entende as relagoes
de poder como relagdes hierirquicas, baseadas no predominio
€ no conflito (ainda que a natureza do predominio e do conflito
seja compreendida de maneira bastante diversa); 0 outro se re-
fere ao poder como um conjunto de interagdes voltadas para aconsecucao de interesses coletivos. Neste texto discutirei apenas
© primeiro campo conceitual € isso por duas razdes: primeira
mente, as definicdes ai formuladas me parecem francamente
hegeménicas na literatura sobre 0 poder; segundo, os autores
vinculados ao segundo campo conceitual produziram, a meu
ver, definigdes muito peculiares, pouco utilizadas em pesquisas
empiricas e que, em meu entendimento, geraram mais problemas
do que solucées.?
O primeiro campo conceitual €, contudo, ele proprio perpas-
sado por outra divisao. De um lado, encontramos aqueles que
definem poder como uma interagao entre atores conscientes dos
seus interesses e do carater antag6nico de suas preferéncias.
Neste tipo de interacao, os atores buscam realizar seus objetivos
de maneira estratégica, lancando mao de algum tipo de “coacao”
contra os demais atores envolvidos. Dessa forma, exerce o poder
quem consegue impor ao outro 0 curso desejado de acao.
Poderiamos dizer, na falta de expresso melhor, que esses autores
adotam uma “concep¢ao subjetivista” de poder. De outro lado, ha
os que entendem o poder como uma relagao social instituciona-
lizada, que distribui desigualmente recursos sociais (econémicos,
politicos, simbdlicos), mas cujo funcionamento ocorre, em geral,
@ revelia da consciéncia dos atores, Nesses casos, 0 dominado
nao se percebe como tal gracas ao funcionamento de processos
de socializacao que operam fora do controle dos agentes e que
moldam suas preferéncias. Surge, assim, uma interagao baseada
num “consenso ilusério”, que conduz sutilmente o dominado para
a aceitagio de sua posic¢ao. Também, na falta de uma expressao
melhor, poderiamos dizer que esses autores adotam uma “con-
cep¢ao objetivista” de poder.
Este ensaio tem dois objetivos. Primeiramente, pretendo expor
com mais detalhes as divisdes atinentes ao primeiro campo con-
ceitual com o intuito de identificar as exigéncias metodologicas
que as diferentes definigdes de poder (subjetivista e objetivista)
imp6em ao estudioso. Trata-se de saber que tipo de evidéncias
cada uma dessas definicdes exige apresentar a fim de que suas
proposicées sejam comprovadas. Em segundo lugar, busco refutar
a idéia de que essas concepgdes sejam excludentes. Ao contririo,
creio que a boa anilise sociolégica deve operar sempre com as
duas perspectivas. Para tanto, sugiro ser recomendavel um retorno
as consideragoes classicas de Max Weber.
Q texto esta dividido da seguinte maneira: na primeira parte,
exponho 0s tragos fundamentais da concep¢ao subjetivista do
e as exigéncias metodol6gicas que Ihe correspondem; na
segunda, faco o mesmo com relacdo & concepgio objetivista; por
fim, na conclusdo, aponto as vantagens de se pensar o problema
Podemos dizer sem receio de errar que os autores que desen-
jIveram uma concep¢io subjetivista do poder sao tributarios
famosa definicao de Max Weber, encontrada no pardgrafo 16
a primeira parte de Economia e sociedade. Weber nos legou
a definicio admiravelmente sintética, que contém em si todas
implicacdes metodolégicas que viriam a ser desenvolvidas
teriormente. Por essa raza, convém cité-la e destrincd-la
que possamos acompanhar passo a passo os seus aspectos
ndamentais. Segundo Weber: “Poder significa a probabilidade
impora pr6pria vontade dentro de uma rela¢do social, mesmo
contra toda resisténcia e qualquer que seja o fundamento
probabilidade.”>
sig4o, vontade, relacao social, resisténcia e fundamento.
rtante discutir cada um e a relag4o entre eles para que
iquemos claramente as exigéncias metodol6gicas que uma
icao dessa natureza impoe ao analista.
LACAO ENTRE “PROBABILIDADE”
t40 no pode ser dada sem que levemos em consideragio
termo da definicao, qual seja, “fundamento”. Todo poder,
que possa ser exercido, exige certo fundamento ou, para
@S expresses de Robert Dahl, uma “base” ou um “recurso”.
S recursos geram diferentes espécies de poder. Desse© poder politico utiliza a forca, ¢ assim por diante. Ou seja, 0
“fundamento” nao apenas viabiliza 0 exercicio do poder como
permite diferenciar “espécies de poder’.
No entanto, um recurso por si s6 nunca € poder, mas apenas
uma “base provavel” para o seu exercicio. E por essa razio que
Weber define poder, em principio, como uma probabilidade.
Quem controla um dado recurso tem a probabilidade de exercer
poder sobre outras pessoas caso queira. Ao fazer essa distincao,
‘Weber evita aquilo que Dahl chamou de a “falécia dos recursos”?
que consiste em confundir o quantum de recurso que um agente
controla com 0 quantum de poder que ele exerce. A definicao
de Weber aponta para o fato de que os recursos representam
uma condic’o necesséria, mas no suficiente para o exercicio do
poder. Os recursos s6 esto a servico do poder quando mobili-
zados pelo seu detentor numa relagao social que visa fazer com
que sua vontade prevaleca. Nesse sentido, a definicao weberiana
jamais autoriza o analista a produzir conclus6es sobre 0 poder
de um dado agente a partir de uma mera quantificagao de seus
recursos, por mais significativos que sejam.°
RELAGAO SOCIAL E IMPOSIGAO DA VONTADE
Para que os “fundamentos” controlados por um determinado
agente deixem de ser apenas uma base provvel para o poder,
€ preciso que este mesmo agente esteja disposto a mobilizar tais
recursos no interior de uma relagao social. Dessa forma, como
nos lembra Dahl,’ a frase “‘A’ exerce poder” nao faz sentido,
pois o poder s6 pode ser exercido sobre alguém. A definicao
weberiana de poder €, portanto, uma defini¢ao relacional,® ou,
como nos diz um famoso filésofo contemporineo (cuja origina-
lidade é, em alguns casos, francamente exagerada), 0 poder no
uma coisa que se possua, mas sim uma relag3o social. Somente
quando utilizados em uma relacao social € que os recursos sao
© “fundamento” do poder.
Mas utilizados em que sentido? Os recursos sao recursos de
poder quando utilizados numa relacao social para garantir que a
vontade de seu portador prevaleca sobre a vontade de outro ator
com 0 qual ele se relaciona. Sendo assim, o poder é sempre uma
forma de afetar o comportamento do outro da maneira desejada
Mas, se reduzissemos 0 poder a uma maneira de obter do outro
‘© comportamento desejado, ele nao poderia ser diferenciado
32
de outras formas de interacao social, como, por exemplo, a
suasio, a manipulagao, a influéncia ou o prestigio. Poder
implica, portanto, uma forma especifica de obter do outro 0
comportamento desejado.
£ nesse ponto que a palavra “imposicao” joga o seu papel,
pois ela indica que 0 exercicio do poder implica mobilizacao de
"recursos estratégicos e escassos, em uma dada relacao social, de
modo a produzir ameacas de “privagdes severas”” que convengam
‘outro “a fazer algo que de outro modo nao faria’.” Como nos
“um termo mais leve) de perdermos algo que valorizamos. Por essa
Ao, € preciso dar toda importancia ao verbo “impor” utilizado
Weber em sua definigao, pois quem exerce o poder tem a
acionais negativas’." Evidentemente, o fato de que o poder
a uma dimensio essencialmente coativa nao quer dizer que
@ se baseie apenas no uso da violéncia. A violéncia fisica €
uma dentre varias outras formas de sancao, mas nem de
\ciais na definicdo weberiana de poder: o da intencionalidade
0 do poder como um calculo estratégico.
A referéncia 4 “vontade” jé é, em si mesma, uma referéncia
cionalidade, o que impede essa definic&o de cometer o
@ Robert Dahl chamou de a “falcia dos prémios”."° Assim, 0
a diz que “A” exerce poder pelo simples fato de ter sido
iciado por uma dada decisio que ele, em momento nenhum,
a intengao de produzir. Seria como considerar culpado o
duo que recebeu a heranca de um homem que morreu
issinado. O fato de ele ter recebido a heranga nao é garantia
iciente de que ele seja o assassin. Nesse sentido, como dizia
ll,” poder é a capacidade de produzir efeitos pretendidos.”
que um determinado efeito seja prova do poder de um
ente, € preciso estabelecer uma relacao causal entre o efeito
»duzido e a intengao do agente de produzi-lo."*
33esse ponto, poderiamos formular duas perguntas: primeira, que
vantagens um dado agente teria ao impor a sua vontade? Segunda,
por que outro agente aceitaria tal imposic’o? Numa relacao de
poder, tanto 0 agente que pretende exercé-lo quanto o que a ele
se submete realizam cilculos em que visam maximizar as suas
vantagens. Quem procura exercer 0 poder avalia a relagdo custo-
beneficio entre as vantagens a serem obtidas com 0 comportamento
daquele que se submete ¢ os custos necessérios, em termos
de dispéndio de recursos, para obter a submissao. Da parte de
quem se submete, 0 cdlculo diz respeito ao que ele ganharia
ou perderia com a obediéncia ou com a insubmissao. Como se
percebe, também aqui a dimensio dos recursos é importante,
pois a possibilidade de impor a vontade ou de resistir a essa
imposigao esta diretamente ligada a quantidade e qualidade dos
recursos de poder que os agentes controlam. E evidente, por-
tanto, que quem procura exercer 0 poder precisa saber os bens
que sao valorizados por aquele a quem ele pretende coagir. De
nada adiantaria ameaci-lo com a privacao de bens que ele nao
valoriza. Desse ponto de vista, 0 poder nunca é “unilateral”, mas
€ sempre, em tiltima instincia, uma decisio produzida a partir
do calculo elaborado pelos dois pélos da relacio.”
RESISTENCIA E CONFLITO
Segundo Giddens,” nao devemos derivar logicamente da defi-
nico weberiana uma concepeao do poder como uma relagao
necessariamente baseada no conflito. Em geral, afirma-se que o
uso da conjuncao concessiva “mesmo que” (contra toda resistén-
cia) sugere que 0 poder pode ocorrer na auséncia de resistencia,
ainda que, no caso de surgir alguma, o poder, para ser efetivo,
deve mostrar-se capaz de superé-la. A meu ver, a concep¢ao
de poder tal como definida por Weber aponta, sim, para uma
relagio de conflito. No entanto, para esclarecer esse ponto, duas
observagdes sao importantes.
Primeiramente, é preciso diferenciar “conflito” de “resisténcia”’.
A definigao de Weber aponta para a idéia de conflito ao dizer
que o poder é uma relagao de “imposi¢io de vontade”. No entanto,
nem toda relacao de conflito implica, necessariamente, 0 exercicio
aberto da resisténcia por parte daquele que se submete. Numa
situacdo ideal, uma relacdo de poder entre “A” ¢ “B” se desenvol-
veria da seguinte maneira: “A” € portador da preferéncia x; “B”,
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da preferéncia y; “A” ordena que “B” faga x e nao y; “B” resiste,
&A” 0 ameaca com privagdes severas, “B” obedece. No entanto,
as relacdes de poder quase sempre se desenvolvem de maneira
bem mais sutil. E 0 caso da “regra das reagdes antecipadas”.”
Nessas situacGes, “B” adota 0 comportamento desejado por “A”
sem esbocar resisténcia e sem que “A” tenha que enunciar uma
ordem, pois “B”, pela experiéncia pretérita, sabe das con-
seqiiéncias negativas que sofreria caso desobedecesse.* Nesse
caso, nao presenciamos nenhuma resisténcia, mas a relagao ainda
de conflito, isto é, de antagonismo entre as preferéncias dos
- envolvidos na relagao: “B” faria y, € ndo x, se nao estive numa
interacdo com “A”. Portanto, pensar 0 poder como uma relacao
conflito nao nos obriga a pens4-lo também como uma relagao
resistencia aberta solucionada pelo uso da forga, como sugere
Resumindo, podemos dizer que na tradigao weberiana o
oder € uma relacao social de conflito (e eventual resisténcia)
e dois atores conscientes do carter antag6nico de suas pre-
incias, na qual “A” consegue fazer com que a sua vontade
aleca sobre a vontade de “B”, valendo-se, para tanto, do uso
fe recursos escassos que Ihe permitam ameacar ou efetivamente
npor a “B” privagdes severas, desde que os custos dessa ame-
¢a ou imposicdo nao se aproximem ou superem os beneficios
btidos por “A”, aplicando-se a “B” o mesmo calculo em relacao
"Isso posto, quais sao as exigéncias metodol6gicas que devemos
umprir e quais evidéncias devemos reunir para comprovar que
ma relacao social é uma relacio de poder?
_ Como bem notou Nelson Polsby,” o poder, assim definido, €
empre uma decisio. Decidir é a capacidade de definir 0 curso
eventos de acordo com os interesses de quem decide e em
imento dos interesses de quem se submete. Por essa razao,
n Lukes tem razo ao afirmar que esse tipo de defini¢ao, ao
nder poder como uma relacao baseada num conflito obser-
1 entre preferéncias antagénicas, j4 fornece em si mesma a
ncia empitica de sua afirmacdo. Para ser mais especifico, uma
¢4o social entre duas vontades antagnicas, em que uma delas
e sobre a outra gracas a ameacas de privagGes severas, tras
go a contraprova necessdria para evidenciar que tal relagao
uma relacao de poder. O analista ja sabe de antemao que “A”prefere we “B” prefere y, mas observa também que “B»
nao y. Sendo tal conflito entre preferéncias observavel, 9
sabe que 0 fato de “B” adotar © comportamento desejado pon att
€ a prova do poder deste sobre “B”. A “imposicao da vontadal
numa relacio entre preferéncias manifestamente antag6nicas «
constitui, portanto, na evidéncia empiica que nos permite diges
que uma dada relagao € uma relagio de poder. Nesse sentid,
Parece-me fora de diivida que quem melhor operacionalizoy
este tipo de definigao foi Robert Dahl. Para este autor, o primeitg
Passo para analisar relagdes de poder numa dada comunidade @
identificar “objetivos politicos” em torno dos quais alguns atores
tenham preferéncias discordantes e, em seguida, detectar quaig
preferéncias prevalecem ao fim do processo decisério. Uma veg
definido 0 assunto (scope), identificados os agentes envolvidos na
interagao (domain) e constatadas suas preferéncias (que devem,
ser forgosamente antag6nicas), esto dadas as condicdes para que
se possa comparar o poder dos agentes.”’ E importante observar
que mesmo uma concepga0 ampliada do processo decisério,
que inclua os momentos de constituigao da agenda publica e
de implementacao das decisées, pode ser analisada nos termos
propostos por Dahl.”
faz
analista
Quanto a este ultimo ponto, alias, vale lembrar que o famoso
debate que envolveu Robert Dahl, C. Wright Mills € os te6ricos
da nao-decisio € marcado, no fundo, muito mais por uma
disputa metodolégica do que epistemoldgica. Guardadas algumas
diferengas de formulagio e as inclinages “objetivistas” presentes
nos textos iniciais de Bachrach e Baratz, todos sao tributarios da,
definigaio weberiana de poder. Wright Mills refere-se ao poder
explicitamente como a capacidade de tomar decis6es mesmo
contra a resisténcia dos outros, e Bachrach e Baratz optam pelo
mesmo caminho.” Sendo assim, Dahl € seus discipulos tém razao
em dizer que 0 método de Mills (a sua “sociologia das posigoes
institucionais”) nao combina com a definicao adotada e que 4
nao-decisao, na medida em que descreve também um conflito
observavel entre preferéncias antag6nicas, pode ser analisada
adotando-se 0 mesmo procedimento utilizado em seu Wh?
Governs?®
AO OBJETIVISTA: O PODER _
BD xo DO CONSENSO ILUSORIO
famos aceitar sem contestacao a afirmagao de
ge manifesta em relagdes marcadas pelo conilito
nscientes do antagonismo de suas preferéncias?
peaio como definitiva implica, como lembra
‘© pressuposto de que todo consenso € genuino,
‘acordo entre iguais e do qual est4o ausentes
jlo, Para os autores que defendem a con-
duvidar dos consensos deve ser 0 ponto de
ras relacoes de poder.
ida, entretanto, s6 € possivel porque esses
pressupostos da visio subjetivista do poder.
vimos, detém-se exclusivamente em relacdes
feréncias antagonicas, mas em nenhum mo-
ar proceso social de formacdo dessas
mntrario, as preferéncias dos agentes envolvidos
alisada sao sempre aceitas como dadas. Desse
criticos, essa perspectiva substitui o principal
6, substitui a andlise do processo social de
das preferén-
como hipotese de trabalho a idéia de que um
ser o resultado de relacdes de poder, isto
que levam os dominados a desejar coisas que
PO seria produzir uma adesio dos dominados aos
antes de modo que a relacio de dominacao nao
a como tal, mas sim como um acordo tacito em
€s tides como verdadeiros por todos.
qualquer autor filiado a esse ponto de partida,
aS evidlentes diferencas tedricas e metodoldgicas entre
© plausivel a existéncia de um tipo de dominio,
Et, Psiquico, que opera de forma muito mais sutil
ivel do que as rudes ameacas de privagdes severas.
37Tratar-se-ia, assim, de uma “forma suprema de exercicio do po-
der’, que consiste em “levar alguém a ter desejos que se quer
que ele tenha, isto é, a assegurar sua obediéncia controlando
seus pensamentos e dlesejos’.®* Forma suprema e muito mais
eficaz de poder, jé que tem “o espirito como superficie de ins-
cri¢ao”, e opera “nao pelo direito, mas pela técnica, no pela lei
mas pela normalizagao, nao pelo castigo, mas pelo controle”, ou
seja, por meio de uma série de mecanismos sutis que o tornam
imperceptivel aos agentes a ele submetidos.* Enfim, um tipo de
“poder invisivel, o qual s6 pode ser exercido com a cumplicidade
daqueles que nao querem saber que lhe estao sujeitos”.*
As dificuldades metodol6gicas a serem resolvidas por essa
Perspectiva so evidentes. Como vimos, na visio subjetivista de
poder, o conflito observavel entre os atores e o predominio de uma
vontade sobre a outra fornecem a evidéncia necessaria e suficiente
Para que uma relagao seja identificada como uma relagao de po-
der. Nesses casos, conseguimos observar um determinado agente
contrariado, forgado por meio de ameacas a fazer aquilo que de
outro modo nao faria. Esse agente, caso questionado acerca de
sua situacdo, certamente nao hesitaria em reconhecer-se como
dominado. Mas como encontrar 0 poder numa relaco em que o
Proprio dominado nao se reconhece como ta? Como € possivel
interpretar o consenso em torno de determinados valores como
Poder? Que tipos de evidéncias sao agora necessarias e quais
procedimentos devemos adotar para coleté-las?
No campo da ciéncia politica, os primeiros que tentaram res-
Ponder a essas questées foram Bachrach e Baratz. Os problemas
enfrentados por esses autores indicam as dificuldades da emprei-
tada. Nos seus primeiros textos, Bachrach e Baratz esbocgam a
critica da abordagem subjetivista do poder em duas dimensées.
Primeiramente, afirmam que o poder nao pode ser reduzido
a capacidade de tomar decisdes. Ao contrario, defendem que a
face mais importante do poder se encontra no proceso seletivo
Por meio do qual determinados temas sao retirados da agenda
Politica. Esse processo ocorreria “quando os valores dominantes,
as regras aceitas do jogo, as relacdes de poder existentes entre os
gfupos e os instrumentos de forca, separadamente ou combinados,
efetivamente impedem certas queixas de se apresentarem como
questdes plenamente desenvolvidas e que clamam por decisio”.
Nesses casos, “pode-se dizer que ha uma situag&o de processo de
38
nao-decisio” produzido consciente ou inconscientemente pelos
atores envolvidos.” O resultado final é a reducao da vida politica
‘4 um conjunto de “temas seguros”, cuja discussio nao ameaga
politico. Portanto, a tarefa primordial do analista politico nao é
_ identificar quem decide no processo decis6rio, mas sim detectar
‘0 “viés” que predomina num dado sistema politico e que exclui
~ do processo decisério um conjunto de “questdes latentes”.* Essa
perspectiva permitiria identificar os interesses sistematicamente
tpeneficiaclos pelo vies do sistema e nos impediria de cair na ilusao
sluralista acerca da fragmentacao do processo decisério.
Em segundo lugar, esses autores defendem que o processo de
edo de niio-decistio opera com base na regra das reagdes
tecipadas. Nesses casos, os agentes que participam diretamente
processo decis6rio ndo apresentam propostas que ameacem
jinteresses de agentes que estao fora dele, limitando-se a for-
politicas inofensivas aos interesses desse grupo.” Assim, a
sidade e a abertura que os pluralistas veem nos processos
tomada de decisio podem ser altamente enganosas se os
res estiverem orientando as suas condutas em funcao dos
esses de grupos externos ao processo."”
resposta dos pluralistas foi contundente e sintetiza-se em
titicas fundamentais as proposicées de Bachrach e Baratz. A
ira delas diz respeito ao problema da identificagao da nao-
io a ser analisada pelo cientista politico. Segundo Polsby
finger, é plausivel dizer que certas decisdes que ndo sio
podem ser mais significativas para o sistema politico
le aquelas efetivamente decididas ou, para usar outra cons-
0, € aceitivel dizer que certos nao-eventos podem ser mais
antes para caracterizar a natureza de um sistema politico
© que certos eventos de tomada de decisao. No entanto, apesar
Plausivel, essa posicao sofre de duas dificuldades metodolé-
sicas insuperaveis. Primeiramente, nao temos como saber qual
ento deve ser encarado como significativo para a vida
itica da comunidade. Certamente, diz Polsby, nao todos eles,
S para cada evento que ocorre deve haver uma infinidade de
lativas que poderiam ter ocorrido.' Assim, enquanto um
ento € facilmente identificavel, um nao-evento é formado, na
Por uma infinidade de alternativas dentre as quais é
‘el escolher uma para analisar.A segunda critica, intimamente vinculada a primeira, refere-se
a impossibilidade de submeter tal “objeto” a verificacao empitica.
Um nao-evento €, por definicao, algo que nao ocorreu e, portanto,
cabe indagar, como faz Offe, “como é possivel estabelecer socio-
logicamente a evidéncia do nao-existente, ou seja, do excluido”
As dificuldades em reunir evidéncias empiricas satisfatorias so
ainda maiores na medida em que “o objeto de tal poder nao tem
consciéncia dessa relag4o € 0 sujeito pode também nao saber
que esta exercendo o poder’.
Por fim, é muito dificil diferenciar uma nao-decisio que tenha
sido 0 resultado de uma antecipacao das reagdes dos poderosos
por parte dos decisores de uma simples abstengio consciente
baseada na falta de interesse pelo tema ou de uma apatia resul-
tante da falta de consciéncia de um grupo acerca dos seus “reais
interesses”.*
Bachrach e Baratz reconhecem que essas criticas trazem
dificuldades 4 sua proposta tedrica. Chegam mesmo a reco-
nhecer que a teoria da n&o-decisio € menos operacional que a
estratégia pluralista de andlise. A saida para resguardar a tese
da nao-decisao foi apresentada em Power and Poverty (1970).
Nesse livro, os autores aceitam parte significativa das conside-
rages criticas de Polsby, mas, ao fazerem isso, se aproximam
definitivamente dos pressupostos epistemol6gicos de seus criti-
cos. Bachrach e Baratz afirmam que, de fato, um “naio-evento”
nao pode ser observado empiricamente e chegam até mesmo
a duvidar da possibilidade de estudos empiricos que tenham a
regra das reagdes antecipadas como objeto. No entanto, para
salvar sua teoria, afirmam que nem todas as naio-decisées sio
nao-eventos, Para eles, a ndo-decisio passivel de estudo empi-
rico consiste num processo politico conflituoso e observavel
que resulta na exclusdo de um tema que ameaga os interesses
dos decisores."” O “conflito observavel” passa a ser visto como
metodologicamente fundamental para o estudo cientifico das
relacdes de poder, o que implica 0 abandono das sugestdes ini-
ciais de que o poder poderia ser exercido ou sofrido de maneira
inconsciente, numa relag3o marcada pelo consenso e nao pelo
conflito. Quanto a esse ponto, sao categoricos: € impossivel que,
na auséncia de conflitos observaveis, o cientista politico possa
julgar uma relacio como sendo de poder. Talvez um filésofo,
mas nao o cientista politico.
_ A posigao assumida por Bachrach e Baratz em Power and
representa, como se vé, uma capitulagao frente as criticas
ralistas. A nova definigao de nao-decisio adotada nessa obra
plica o abandono da regra das reacdes antecipadas como um
a do processo decisério stricto sensu.
-O recuo de Bachrach e Baratz revela as enormes dificuldades a
m enfrentadas por aqueles que pretendem incluir a construcao
‘consenso como uma dimens’o importante do conceito de
_f provavel que uma das causas do insucesso de ambos foi
aceitado discutir no mesmo terreno dos adversarios. Para
mais especifico: Bachrach e Baratz propuseram inicialmente
‘definicao mais ampla de poder que levava em consideracao
anismos sociais de producao do consenso e a distribuigao
ial dos recursos sociais. No entanto, limitaram-se a aplicar
4 em que o instrumental metodoldgico dos pluralistas se
ava mais adequado. Viram-se, assim, obrigados a ter 0 mes-
or ea coletar as mesmas evidéncias exigidas por aqueles
jsadores. Nesse sentido, uma das formas de salvaguardar a
de que pode haver poder em relacdes de consenso é
que as evidéncias a serem apresentadas em seu favor so
a natureza € 0 seu campo de aplicagao bem mais amplo
e a producao de politicas publicas.
essa, a meu ver, a saida utilizada por Steven Lukes. Se-
"onde nao ha conflito observavel entre A ¢ B, devemos fornecer
| outros dacos para assegurar a contraprova pertinente. Isto €,
~ deveos fornecer elementos diferentes, indiretos para afirmar que
$€ “A” nio tivesse agido (ou deixado de agir) de certo modo...
que evidéncias indiretas seriam essas capazes de compro-
carater ilegitimo de uma relacao aparentemente consensual?