Corner #6
Corner #6
#6
Editor
Fernando Martinho
[email protected]
Colaboradores
Clayton Fagundes
Fábio Felice
Gabriel Macieira
Giovanni Ghilardi
Guga Dias da Costa
Igor Bertolino
Itay Goder
Iugh Mattar
Jessica Miranda
Lucas Sposito
Miguel Lourenço Pereira
Tauan Ambrosio
Thiago “Ramon“ Grizilli
Projeto gráfico
Éric Chinaglia
@eric.chinaglia
Revisão
Kiara Domit
Capa
Fotografia: Fernando Martinho
Agradecimentos
especiais
Evaristo de Macedo Filho, André Rizek,
Miquel Pellicer, Ariel Palacios e Edgardo Imas.
Os textos são de responsabilidade dos autores. A Revista Corner Ltda não se responsabiliza pelas idéias, opiniões e análises expressas nos artigos. São
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Editorial
O
lhar para o passado e compreender o presen- temunha: Evaristo de Macedo! A Espanha não precisava
te. Deveria ser assim. O Brasil esqueceu suas desses reforços para o binômio Barça-Madrid ser o retrato
origens. O complexo de vira-latas só deixou de de um país com feridas não cicatrizadas. Cada gol de
existir no futebol graças a técnicos estrangeiros, mais Kubala ou tabela entre Czibor e Kocsis no Barcelona, um
precisamente húngaros, que trouxeram conceitos táticos título de Puskás com camisa de Real Madrid, sem falar de
fundamentais para o triunfo em 1958. Nesta Copa do Di Stéfano e seu reinado europeu à frente do Real Madrid,
Mundo, na Suécia, Evaristo de Macedo não disputou por tinham um ponto em comum: Evaristo.
ter ido jogar no Barcelona. Jogar no exterior significava
A Espanha vive sua esquizofrenia bipolar incurável na
renunciar a seleção do país de origem. Lá dividiu o vestiá-
política e uma bipolaridade esquizofrênica no futebol:
rio e jogadas com László Kubala, um foragido da Hungria.
clubes com nomes monárquicos e valores operários! O
De novo, Hungria. Depois de Kubala, outros jogadores Real Madrid não buscou no franquismo sua plataforma
nascidos na mesma época, entre 1927 e 1929, se des- para alçar vôos internacionais, mas sim os aviadores do
tacaram nas Olimpíadas de 1952, em Helsinki, onde regime fraquista que aterrissaram no que se conhece
conquistaram a medalha de ouro, uma das tantas que o como Atlético de Madrid, um clube da classe trabalhado-
futebol húngaro conquistou nesta competição a partir ra. O Regime de Franco que pega carona no madridismo
daí, até 1972, exceto em uma edição: 1956. Mas tem uma vencedor como plataforma de propaganda.
explicação simples, a Hungria não disputou os jogos de
Entender o presente espanhol parece fácil perto do que se
Melbourne. O time de 1952 era basicamente o mesmo da
converteu a antiga mina de ouro húngara. Como qualquer
Copa de 1954, na qual o vice-campeonato ficou conhecido
lugar que tem sua riqueza esgotada, vira um território
como o Milagre de Berna, estavam Czibor, Kocsis e Puskás.
desértico e cheio de cidades fantasma. Onde foi parar
Evaristo se encontraria com esses craques no Barcelona
o futebol húngaro? Até o Uruguai soube se reinventar
e no Real Madrid mais adiante.
e voltou a estar entre os quatro primeiros na Copa do
Esses jogadores nasceram numa época em que o futebol Mundo da África do Sul, já a Hungria desaparece não só
jogado no eixo Praga–Viena–Budapeste determinava a no contexto mundial, mas também europeu.
vanguarda do futebol mundial, aquela mesma que chegou
Com o fim da União Soviética que garantia o financiamen-
ao Brasil através de Izidor Kürschner no final dos anos
to de países com o regime socialista, várias das bandeiras
1930, de Béla Guttmann e Gyula Mándi nos anos 1950.
que integravam a Cortina de Ferro foram divididas. A
Esses técnicos entenderam que no futebol havia mais
Tchecoslováquia deu lugar a dois países, a Iugoslávia
do que emoção, instinto e físico. Se formaram na Escola
se transformou em sete novas nações. Só a Alemanha
do Danúbio, nome dado por conta do Rio que liga Viena,
Oriental foi anexada à parte ocidental e formou um país
Brastislava e Budapeste.
maior. Outros países permaneceram intactos em terri-
As idéias que fluíam nas águas do Danúbio tinham uma tório e população: Polônia, Romênia, Bulgária e Hungria.
razão de existir. Era uma questão de auto-conhecimen-
Esses países alternavam entre safras boas e ruins de
to e sobrevivência. Uma relação entre Davi e Golias, na
jogadores. Os países da antiga Iugoslávia, por exemplo,
qual o poderoso futebol insular britânico só poderia ser
mantiveram a tradição de produzir jogadores de técnica
derrotado como foi em Wembley, em 1953, pelos azarões
apurada num universo muito mais reduzido. Menos a
húngaros, graças a pensadores que compartilhavam do
Hungria. O labdarúgás, ou futebol húngaro, definhou
judaísmo: Hugo Meisl, Márton Bukovi, Erbstein Ernő, Béla
mesmo com seus limites territoriais e demográficos pra-
Guttmann, Árpád Weisz e Gyula Mándi. Todos influen-
ticamente idênticos. A única tese palpável, que explica
ciados por Jimmy Hogan, um inglês que não encontrou
— em grande parte — o ocaso húngaro, é o anti-semi-
lugar pras suas idéias na sua terra natal.
tismo histórico e latente no leste europeu, o que explica,
Eles foram os responsáveis por formar talentos esco- em muito, a associação entre certos clubes como Ajax,
lhidos por capacidades técnicas antes das atléticas que, Tottenham e Atlanta (!) com a comunidade judaica. Bem-
posteriormente, na década de 1950 e 1960, duelaram na vindo à Corner #6.
Espanha. Uns de um lado e outros do outro. Como tes-
A professzor
8 Jimmy Hogan, o inglês que ensinou futebol aos Magiares Mágicos,
por Miguel Lourenço Pereira
O revolucionário desconhecido
10 A história “low-profile” de um dos inventores do 4-2-4,
por Clayton Fagundes
A diáspora
12 Judeus, Hungria e o Futebol Total,
por Itay Goder & Fernando Martinho
Judenklub
18 Os clubes dos judeus,
por Fernando Martinho
Hungaria FC
24 Os Globetrotters húngaros,
por Miguel Lourenço Pereira
Entrevista: Evaristo
38 O peso da história e o respeito conquistado,
por Fernando Martinho
Destino grego
52 A tardia ida de Férenc Puskás para a Grécia,
por Jessica Miranda
N
o final do mítico triunfo da Hungria no está-
dio do Wembley, no que foi a primeira derrota
oficial dos ingleses contra rivais continentais
nas Ilhas Britânicas, o presidente da federação húngara,
Sándor Barcs, declarou aos atônitos jornalistas ingleses
que não entendia como eles não se aproveitavam do co-
nhecimento de Jimmy Hogan. Afinal, declarou: "foi ele
quem nos ensinou tudo”. Muitos desses jornalistas nem
sabiam quem era Hogan. Praticamente desconhecido no
seu próprio país, James Hogan era um mito no futebol
continental, sobretudo nos países que tinham nascido
do antigo império austro-húngaro.
mtk.hu
10
M
árton Bukovi, juntamente com Béla Guttmann solo inglês, um contundente 6 a 3].
e Gusztáv Sebes, compõe o triunvirato revo-
Seus ensinamentos e inovações foram tão revolucionários
lucionário do futebol húngaro. Mas, diferente
que chegaram aos trópicos. Trazidos por Béla Guttmann
dos outros dois, ele não carrega os louros da revolução
para o São Paulo, campeão paulista de 1957, levados por
futebolística materializada no esquema 4-2-4.
Vicente Feola para a Seleção Brasileira campeã mundial
Nascido em Budapeste no dia 10 de dezembro de 1903, na Suécia no ano seguinte.
Márton Bukovi viveu os primeiros anos de vida sob a
É verdade que Gusztáv Sebes foi o técnico que catalisou
cortina do império austro-húngaro moribundo, que se
o esquema 4-2-4 e elevou o patamar do futebol húngaro
desintegraria após a Primeira Guerra Mundial. Começou
ao nível de excelência. Conquistou a Medalha de Ouro
a jogar futebol no pequeno Ékszerészek de Budapeste, em
Olímpica em 1952, na cidade de Helsinque, e o vice-cam-
1920. Na temporada 1925/26, passou pela Itália no S.S.
peonato mundial em 1954, na Suíça. Mas a revolução
Alba-Audace Roma [uma das três equipes que formaram
nasceu com Márton Bukovi no MTK. E mesmo não tendo
a atual Roma].
o reconhecimento merecido, o técnico ajudou a forjar a
Os números de Márton na pequena equipe romana, de equipe histórica húngara. O MTK , juntamente com o
23 gols em 16 partidas, são impressionantes. Ainda mais Honvéd, era a base da seleção. No time de Bukovi, jo-
se tratando de um defensor! Já na temporada seguinte, gadores do calibre de Péter Palotás, Nándor Hidegkuti,
retornou à Hungria para atuar no maior clube do país, o Mihály Lantos e József Zakariás. Com um esquema re-
Ferencvárosi TC. Após a passagem no Ferencváros, atuou volucionário, Márton Bukovi os guiou para três títulos
pelo FC Sète até 1935, quando encerrou a carreira para da liga húngara e uma Copa húngara.
se tornar treinador, aos 32 anos. Pela seleção húngara,
Após as conquistas no MTK, Márton Bukovi transitou por
atuou em 11 partidas.
Újpest FC, substituiu Gusztáv Sebes na seleção húngara
Se como jogador Márton Bukovi foi um atleta mediano, em 1956, após sua demissão [inclusive ele dirigiu a equipe
como treinador essa ordem se subverteria considera- que venceu a URSS por 1 a 0 no Estádio Lênin, na primeira
velmente. Começou a carreira no Građanski Zagreb da vez que a URSS perdeu em casa], dirigiu novamente o
Iugoslávia, em 1935. Na equipe, conquistou dois títulos Dinamo Zagreb e o MTK, passou pelo pequeno Diósgyőr
iugoslavos e uma liga croata. Posteriormente ao fim da VTK, até aportar em terras gregas, mais precisamente
Segunda Guerra Mundial, o Građanski fez uma fusão no Olympiacos.
com outros dois clubes da cidade de Zagreb. Dessa fusão
No clube grego, tornou-se uma lenda para os fãs e es-
surgiu o Dinamo Zagreb, no qual ele acumulou a função
creveu sua história no futebol do país. Com 12 vitórias
de gerente de futebol.
consecutivas logo em sua chegada, Márton Bukovi trans-
Bukovi acabou retornando para sua cidade natal, formou a mentalidade do Olympiacos, produziu muitos
Budapeste, em 1947, mas nesse retorno seu destino foi jovens jogadores e conquistou o bicampeonato nacional
outro: assumir comando do MTK. Já em 1949, quando a 1966 e 1967.
Hungria tornou-se um estado comunista, o MTK teve
Infelizmente por maus resultados, e principalmente ques-
sua direção assumida pela polícia secreta, a ÁVH. Com
tões políticas, o trabalho teve que ser abortado. Márton
isso o clube sofreu várias mudanças de nomes: Textiles
Bukovi, pressionado pelo regime militar grego, foi obri-
SE, Bástya SK, Vörös Lobogó SE e finalmente a volta ao
gado a pedir demissão. No dia 12 de dezembro de 1967,
nome MTK. Mas os anos 1950 não foram só de turbulência
juntamente com seu assistente técnico Mihály Lantos,
para a equipe de Bukovi.
deixou a Grécia.
Na verdade, a revolução futebolística começaria exata-
Após sua passagem pela Grécia, Márton Bukovi se apo-
mente ali, naquela primeira metade da década de 1950.
sentou. Afastado do futebol, viveu à sombra do jogo.
Agora acumulando também a função de técnico, Márton
Esquecido, se exilou na cidade de Sète, no sul da França,
Bukovi revolucionou com o esquema tático que viria a
onde faleceu, no dia 2 de fevereiro de 1985, aos 81 anos.
estremecer as bases do futebol: o 4-2-4 [responsável
Mesmo com a falta de reconhecimento, Bukovi é o homem
por destronar o “WM” inglês no famoso Match of the
que concebeu o esquema mais revolucionário do futebol
Century, jogo disputado em Wembley em 25 de novembro
de todos os tempos.
de 1953, marcado pela maior derrota dos Three Lions em
11
Ilustrações:
Igor Bertolino
12
Os judeus na diáspora eram os azarões da História, pra Na introdução do livro, Hogan relata como nos seus pri-
terem êxito nessa condição tinham que ser excelentes. No meiros dias em Budapeste ele foi a um parque local e viu
livro Davi e Golias, de Malcolm Gladwell, o autor conta a dois garotos jogando. O técnico os convidou para o clube
história de Davi de uma perspectiva diferente. De acordo e eles se tornaram os dois melhores jogadores que ele já
com Gladwell, a inferioridade de Davi era exatamente a viu: György Orth e József “Csibi” Braun. Sobre Braun, ele
sua maior vantagem. A passagem bíblica sobre o pastor descreve com afeição que nunca encontrou um garoto com
israelita versus o grande guerreiro palestino é sobre fé tanta paixão em aprender e progredir no jogo.
e desafiar as probabilidades, mas para Gladwell não é As descrições de Csibi são de perfeição técnica em cada
bem assim. aspecto. Ele era um ponta-direita rapidíssimo, famoso
“Golias usava uma armadura e tinha uma grande lança, tanto por controle de bola quanto no mano-a-mano.
ele era um homem forte e Davi não teria chance em uma Csibi marcou 78 gols em 161 jogos, mas na maioria das
luta cara a cara, espada contra espada”, escreve Gladwell. vezes ele servia seus companheiros.
“Davi, no entanto, se recusou a usar uma armadura para a O futebol chegou à Europa no século XIX e, por muitos
luta, pois era muito pesada, além disso, ele também largou anos, era totalmente influenciado pelo estilo de jogar
sua espada, e viu Golias como um homem de pensamento dos inventores ingleses, baseado em velocidade e força.
defasado de quem estava apanhando. Davi se recusou a Chutar pra frente e correr pela “lama” até o arco rival.
lutar dentro das regras. Ele usou sua velocidade, leveza e Este estilo dava aos britânicos uma grande vantagem
criatividade para nocautear Golias e cortar a sua cabeça”, em relação aos europeus continentais, considerados por
explica o autor. Davi foi coroado Rei de Israel e o resto é anos e anos inferiores aos insulares. Os “underdogs” aqui
História. Mas o ponto de Gladwell é que Davi representava tinham que encontrar soluções para lidar com a força e
um pensamento mais flexível, progressista e nítido, e a velocidade dos britânicos. Não havia necessidade de
portanto derrotou um guerreiro maior. quebra de paradigma, a habilidade dos judeus em criar
A história de David inspirou os “underdogs” ao longo um novo futebol, desenhado para competir contra os
dos tempos e, sem margem a dúvidas, os judeus eram Golias das Ilhas Britânicas.
justamente esses “underdogs”, e é aí que entra a influ- Os judeus foram importantíssimos no desenvolvimento
ência judaica no mundo do futebol. da Escola do Danúbio, um jogo baseado nas trocas curtas,
movimentos coletivos e, especialmente, no raciocínio
•••
e pensar o jogo, tudo isso constituía uma inteligente
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alternativa à força e velocidade dos ingleses. Técnicos batido: aos 34 anos, foi o técnico mais jovem a ser cam-
como Béla Guttmann, Hugo Meisel, Izidor Kürschner e peão da Serie A Ele ainda conquistaria mais dois Scudetti
Erbstein Ernő mudaram a cara do futebol europeu con- consecutivos como técnico do Bologna, nas temporadas
tinental e mundial. 1935/36 e 1936/37.
Guttmann era um grande técnico, o arquétipo de um Em 1938, após a promulgação das Leis Raciais na Itália,
treinador estrela, que conduziu o Benfica à glória euro- Weisz foi forçado a deixar o país e ir para a Holanda, onde
péia; Meisl, o técnico do lendário Wunderteam austríaco, assumiu o comando do Dordrecht. Dois anos depois,
é considerado um dos mais inteligentes treinadores de após a ocupação do país pela Alemanha Nazista, Árpád
sempre. Sua mentalidade aguda e linha de pensamen- Weisz foi levado para Westerbork, onde sua família foi
to extraordinária ajudaram a desenvolver o futebol na dividida, e posteriormente levado a Auschwitz, onde
Hungria, Alemanha, Inglaterra e Itália; Kürschner levou morreu, em 1942
a mensagem tática ao Brasil e — indiretamente — ele e
•••
Guttmann mostraram como os brasileiros deviam usar
seus talentos naturais para conquistar títulos mundiais. Em Turim, Ernest Erbstein treinou um time lendário:
Não se deve subestimar o valor desses técnicos que il Grande Torino, que dominou o futebol italiano até o
emergiram da cultura de pesquisa judaica. Meisl foi uma trágico fim, na Tragédia de Superga, em 1949, que levou
das maiores influências no futebol no início do século à morte de toda aquela squadra. Erbstein era o técnico
XX. Nascido em uma família abastada judia, viria a ser antes da Segunda Guerra Mundial, mas foi deportado
banqueiro como seu pai. Meisl desenvolveu uma paixão da Itália. Ele desenvolveu o esquema 4-2-4, que prati-
pelo Beautiful Game e se notabilizou no campo de jogo. camente uma década após sua trágica morte, foi usado
Construiu uma boa relação com técnicos veteranos, como pelo Brasil na sua primeira conquista de Copa do Mundo.
Vittorio Pozzo e Herbert Chapman, com quem se cor- Suas idéias — incluindo que o futebol era algo pra ser
respondia sobre táticas e métodos de treinamentos que analisado e pensado — chegaram ao Brasil atráves de
mudaram o jogo. Izidor Kürschner, Béla Guttmann e Gyula Mándi — judeus
que introduziram elementos táticos ao jogo brasileiro.
Meisel influenciou o estilo do futuro, que seria dedicado
a um jogo curto, marca registrada do time húngaro de Csibi foi o jogador do ano na Hungria em um ano muito
1954, dos holandeses nos anos 70 e, mais adiante ainda, traumático. Na sua primeira temporada como jogador,
dos espanhóis com o Tiki-Taka. ele marcou 23 gols em 20 jogos. Em 6 de abril de 1919,
Budapeste vivia o Terror Vermelho — 120 dias de comando
••• bolchevique em que oponentes do regime desapareceram
Na Itália, um jogador húngaro mediano proveniente do de suas casas e foram mortos sem dó nem piedade. Seu
Maccabi Brno — um clube judaico da cidade tcheca — pai, que havia caído na Primeira Guerra Mundial, tricotou
disputou duas temporadas. Uma delas pelo Alessandria um cachecol vermelho para que ele pudesse se juntar ao
e a seguinte pela Internazionale. O lateral Árpád Weisz exército revolucionário.
foi companheiro de Csibi Braun e Béla Guttmann nas A Hungria estava cercada de tropas anti-comunistas
Olimpíadas de 1924, em Paris. Mas foi fora de campo, ain- estrangeiras que isolavam o país, mas a Seleção Austríaca
da na Itália, que ele marcou um antes e um depois do cal- visitou Budapeste quebrando o cerco. O historiador hún-
cio. Weisz assumiu o comando técnico da Internazionale garo — e judeu — Andrew Handler cita que dois jogadores
em 1926, e um ano mais tarde, ele lançaria um jogador semitas — Antal Vágó e Gyula Feldmann — se recusaram
de 17 anos que se tornaria uma lenda: Giuseppe Meazza. a defender a Hungria Vermelha, no entanto, foi quando
Meazza é considerado o melhor jogador italiano de todos Csibi fez sua estréia na seleção.
os tempos. Weisz o forçava a driblar somente com a perna Em uma atmosfera política muito carregada, 40 mil es-
esquerda, pois segundo o técnico húngaro, um grande pectadores foram ao estádio, um recorde para um jogo
jogador devia usar os dois pés. De acordo com as defini- de futebol no período. Csibi Braun converteu o gol da
ções do futebol dele, tratava-se de um Davi com a bola vitória: 2 a 1 para a Hungria. Os jornais contavam que,
nos pés: rápido nos movimentos, acostumado a jogadas no dia seguinte, houve uma grande mobilização patri-
acrobáticas, fintas e chute preciso. Jogou e venceu as Copas ótica junto ao exército vermelho. De qualquer forma, o
do Mundo de 1934 — como centro-avante — e 1938 — técnico Fehéry Ákos era o típico “professor do mal” nas
como meia, por conta das qualidades goleadoras de Silvio histórias de criança.
Piola. Ou seja, polivalente, que se adaptou às condições. O
curioso de tudo isso foi que, antes de ingressar na Inter, O inglês Jonathan Wilson, que estudou o assunto e es-
o Milan o recusou por ser muito magro. Fatalmente, os creveu um livro sobre a evolução da tática no futebol e
Rossoneri buscavam um Golias. sobre o futebol do Leste Europeu [A Pirâmide Invertida e
Behind the Iron Curtain], diz que uma das razões para o
Árpád Weisz se consagrou campeão italiano na temporada colapso do futebol húngaro e austríaco foi a propagação
1929/30, e conseguiu um recorde que dificilmente será do anti-semitismo no leste europeu entre 1930 e 1940.
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“Guttmann, Kürschner, Meisl e Erbstein eram judeus e Pep levou suas idéias para Bayern, onde não teve êxito em
todos fizeram alguma coisa crucial para o desenvolvi- âmbito europeu. Parou nas semifinais nas três oportu-
mento do futebol mundial”, diz Wilson. ”Eles foram os nidades que teve. Mas, mesmo assim, marcou um estilo
primeiros a promover a intelectualização do jogo no final que foi adquirido com dinheiro árabe do Manchester City.
dos anos 1920”, completa. Foram os primeiros a sentar em Após uma fraca primeira temporada no clube inglês, o
cafés, no ápice das culturas dos cafés da Europa Central técnico catalão bateu o recorde de vitórias consecutivas
[Mitteleuropa] e, pela primeira vez na história do jogo na Premier League na temporada 2017/18.
britânico, começaram a atribuir importância intelectual,
Por trás de cada tabela entre Iniesta e Messi, existe um
profundidade filosófica e profundidade cultural. A inte-
elemento de sobrevivência das idéias que defendiam
lectualização do jogo, de acordo com Jonathan Wilson,
a inteligência como sobreposição à força. E isso é algo
era algo puramente judaico. “Eles foram os primeiros a
muito típico do judaísmo.
perceber que havia algo a ser interpretado no futebol“,
escreve o autor inglês. •••
Guttmann era, como já citado, a primeira estrela entre os
A pessoa por trás do MTK Budapest era Brüll Alfréd, um
técnicos. Um treinador que enxergava a si mesmo como
dos judeus mais ricos da capital húngara que — gene-
centro das atenções. A conquista da Copa dos Campeões
rosamente — financiava o clube. Brüll era gay e tinha
justificou sua auto-imagem. O garoto de Budapeste, que
alguns romances com jogadores. Existe uma história de
ganhou títulos por toda Europa e América do Sul, é res-
um caso de Brüll com um não-judeu jogador do time, que
ponsável por alguns dos conceitos que transcendem o
fugiu para a América do Sul e não o salvou, deixando que
tempo no futebol, entre eles a Lei dos Três Anos que diz,
ele fosse levado pra Auschwitz, onde morreria em 1944,
segundo Guttmann, que se um time é comandado por um
assim como Árpád Weisz.
mesmo técnico por três anos, é hora de mudar.
A investida judaica no MTK era a materialização do desejo
Juntamente com os também judeus: Jaap van Praag, que
da assimilação. Um sonho que enxergava a excelência no
fundou o Grande Ajax; Kurt Landauer, que manteve o
esporte como pavimentação da comunidade judaica na
Bayern à força; e Guttmann, Kürschner, Meisl e Erbstein,
sociedade húngara. O resultado foi dramático. O sucesso
que contam a história de excelência e a influência no
de judeus nos esportes foi ressonante e não havia acon-
futebol que se conheceu nos anos que seguiram.
tecido em nenhum outro lugar. O nadador Alfréd Hajós
A abordagem judaica ao futebol era baseada na idéia de conquistou a primeira medalha de ouro para o país nas
que o cérebro era mais importante do que pulmões, pernas Olimpíadas de 1896, e foi seguido por dezenas de atletas
ou músculos. Os treinadores judeus foram responsáveis judeus nascidos até os anos anteriores à Segunda Guerra
por grandes times ofensivos na História: Wunderteam, Mundial. Eles levaram pra casa nada menos que 48 me-
Il Grande Torino, o Time de Ouro da Hungria de 1954, dalhas de ouro.
Brasil de 1958 e Benfica de 1961. Outro time judaico,
caracterizado na essência como underdog, de acordo •••
com Gladwell, era a Holanda de 1974, que soube usar
Como ferramenta social, o desejo da assimilação pelo
seus atributos naturais com excelência. O próprio Rinus
esporte colapsaria. Béla Szenes, autor do — otimista —
Michels admitiu que executar o Carrossel Holandês só
livro infantil, morreu em 1927. Sua filha, Hannah Szenes,
foi possível por contar com jogadores com QI acima da
seria executada pelo governo traiçoeiro de seu país.
média. Por coincidência, o maior expoente do time era
Johan Cruijff, que se casou uma judia e começou sua Nos anos após se aposentar do futebol, Csibi Braun mo-
carreira no Ajax, clube que possui uma peculiar relação rou em uma casa na praça Almasi, onde vários de seus
com a comunidade judaica de Amsterdam. Essa filosofia parentes viveram. Junto deles, vivia um de seus tios,
foi levada ao Barcelona pelo próprio Rinus Michels nos Ernst Weinberger, que emigrou para Israel e jogou pela
anos 1970, e depois evoluída por ele mesmo, Cruijff, no primeira seleção do país. Ele treinava com Braun, quando
final da década de 1980, quando assumiu o clube catalão. se tornou técnico de categorias infantis, nos anos 1930.
Surgia nessa época um jogador das camadas jovens dos Csibi Braun jogou 27 vezes pela Seleção Húngara, muito
Blaugranas: Josep Guardiola i Sala. Ele se tornou o cérebro em se tratando dos anos 1920, e marcou 11 gols. Ele se
do time que conquistou a Copa dos Campeões em 1992, aposentou aos 25 anos.
e depois seria vice em 1994. Jogou tempo suficiente com
Cruijff no comando para absorver os conhecimentos do De acordo com uma pesquisa conduzida pelo jornalista
tutor. Mais uma vez, no Barcelona, todos as idéias ofen- israelense Ronen Dorfan, ele descobriu que Braun não
sivistas desenvolvidas acabaram com um único herdeiro. morreu em um ataque soviético. Depois de dois anos de
trabalho forçado, uma espécie de escravidão junto ao
Quando Guardiola assumiu o Barcelona como técnico em exército húngaro, seu corpo colapsou por fome e exaustão.
2008, no lugar de Frank Rijkaard, o futebol mundial teve
a melhor versão dessas idéias em um time: dois títulos
de Champions League em quatro anos e duas semifinais.
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A
lguns clubes na Europa são relacionados com Há, no entanto, uma controvérsia. Franklin Foer, em
judaísmo. Um deles é o MTK Budapeste, que foi seu livro Como o futebol explica o mundo, de 2005, traz
fundado por judeus. Entre os clubes menores alguns relatos que mostram uma certa incoerência no
da Europa, em termos continentais, um outro emblema caso do Ajax. Por uma via, judeus, sobretudo de Israel,
muito associado com a comunidade judaica é o Slavia se interessam muito no Ajax e acreditam, inclusive, que
Praga. No entanto, o clube recebeu essa alcunha pelos o maior ícone do clube, Johan Cruijff, fosse judeu. Sua
torcedores rivais do Sparta sem muita relação com a esposa era de família judia e, por ter parentes em Israel,
comunidade semita e, na realidade, o clube tcheco fun- Cruijff a acompanhava. Mas embora o time da década de
dado por judeus era o DFC Prag, extinto com a ocupação 1960 tenha se inspirado nos conceitos húngaros desen-
nazista na Tchecoslováquia. volvidos por judeus, a Holanda esteve em dois lados da
história. A partir dos anos 1960, os holandeses apoiaram
Os mais emblemáticos são Ajax, multicampeão europeu,
o sionismo nas Nações Unidas, e ninguém mais do que a
e o Tottenham, um dos grandes clubes londrinos. Cada
Holanda alimenta o heroísmo das pessoas que protegeram
uma dessas agremiações acabou tendo uma aderência por
Anne Frank em Amsterdã durante o holocausto. Como
parte da comunidade judaica de Amsterdã e de Londres e
diz Foer, “mais do que redescobrir essa resistência, os
suas torcidas acabaram virando alvo de anti-semitismo,
holandeses a inventaram… Alguns historiadores apontam
ao mesmo tempo em que manifestam orgulhosamente a
que os holandeses mais atuaram na colaboração com os
relação com o judaísmo.
nazistas do que na oposição a eles”. Esse contexto leva a
Em visita ao espaço Ajax Experience, no centro de uma tese muito consistente: que esse processo de iden-
Amsterdã, existe um espaço reservado para a questão. O tificação entre judeus e o Ajax é um projeto de abranda-
posicionamento oficial do clube é de abertura religiosa, mento da culpa e, no livro, Foer cita David Winner, que
política e étnica, e essa era a mensagem no display, que escreveu que o Ajax está engajado em um ato inconsciente
indagava: Ajax, um clube judeu? A resposta a essa inda- de solidariedade aos judeus assassinados. Existe uma
gação, no entanto, se dá — extra-oficialmente — pelos verdade sociológica interessante aí. A Holanda perdeu
gritos “Joden! Joden!”, mostrados no documentário in- significativamente mais judeus do que qualquer outro
dependente Superjews, da israelense — e holandesa — país em termos percentuais, como aponta Foer.
Nirit Peled. Um orgulho judaico por parte dos ajacieden,
O termo Judenklub era usado pelos nazistas de forma
e manifestações anti-semitas por parte dos torcedores
depreciativa contra clubes com alguma associação com
rivais do Feyenoord. No entanto, o verdadeiro clube judeu
judeus. O principal deles era o Bayern, presidido por Kurt
de Amsterdã é o WV-HEDW [Wilhelmina Vooruit Hortus
Landauer, que era judeu e resistiu à determinação anti-
Eendracht Doet Winning], um clube amador fundado por
-semita no esporte dos nazistas, com a exclusão de atletas
judeus em 1908, que freqüenta a sexta e a sétima divisão
do clube. Foi nesse período que o Munique 1860 recebia
do futebol holandês. A relação entre Ajax e a comunida-
apoio do Reich, como conta Guilherme Jungstedt no site
de judaica se deve à localização do seu antigo estádio,
da Corner. Outros clubes na Alemanha nazista também
próximo de um bairro judeu. Além disso, a Amsterdã era
recebiam a alcunha, como o FK Austria Wien — onde
historicamente conhecida como uma Mokum, termo em
jogou Matthias Sindelar, o craque judeu do Wunderteam,
íidiche para ”lugar“, semanticamente entendido como
que se recusou a defender a Alemanha após a anexação
refúgio seguro.
19
do território austríaco — e os dois principais clubes de surgiu o que derivou na Yid Army, um grupo de hooligans
Frankfurt: Eintracht e FSV. Não era coincidência que do Tottenham, que incorporou o termo e fez da bandeira
Frankfurt, principal centro financeiro da Europa con- do estado de Israel seu estandarte.
tinental, fosse essa zona de resistência, afinal, a cidade
Como contraposição, até a Roma já foi alvo de insultos
era a sede do Deutsche Bank e, em 1933, três de seus
anti-semitas, muito mais pela associação da Lazio, sua
principais diretores foram destituídos dos seus cargos
rival histórica, com o fascismo. Mas até aqui, pratica-
por imposição do Terceiro Reich.
mente somente clubes do mainstream do futebol euro-
Na Inglaterra, o caso mais emblemático é o do Tottenham, peu viraram pontos de inflexão de questões religiosas e
em que bandeiras de Israel são vistas no seu estádio — não étnicas que envolvem o judaísmo e o anti-semitismo.
tanto como na torcida do Ajax — e que ganhou torcida com Muito longe da Europa, um pequeno clube estabeleceu
nome judaico: Yid Army. O relato de Franklin Foer, no livro uma associação quase sem querer com a comunidade
Como o futebol explica o mundo, mostra com exatidão judaica. Trata-se do Club Atlético Atlanta, do bairro de
o contexto histórico que acabou transformando-se em Villa Crespo, na capital argentina.
folclore, algo que não é claro nem para os próprios tor-
A pessoa mais indicada para falar sobre o clube era o soci-
cedores do Tottenham. Pelo que o autor conta, a relação
ólogo Edgardo Imas. A intenção do contato era a gravação
se dá pela presença massiva de judeus hassídicos, não
de documentário da Corner sobre o tema, pois Imas é
assimilados, ou seja, que se vestem de preto e são facil-
historiador do Atlanta, e falou com precisão historicista
mente reconhecidos como judeus, no bairro de Stamford
sobre a associação entre o clube e os judeus: “O clube é
Hill, próximo ao estádio White Hart Lane, do Tottenham.
fundado em 1904, no bairro de San Telmo, a maioria dos
Esse estereótipo facilitava para que rivais depositassem
jovens que fundaram o clube eram de Montserrat, muito
seu ódio, sobretudo os torcedores do Chelsea.
próximo ao Microcentro de Buenos Aires. Em 1922, se
Franklin Foer relata que a torcida ignorava os insultos mudou pra Villa Crespo, um bairro que recebeu mui-
e se defendia com os seus, mas nenhuma estratégia pa- tas correntes migratórias de judeus oriundos da Europa
recia ser eficaz, até que a melhor resposta veio em um Oriental, de etnia asquenaze e se radicaram ali, além de
jogo contra o Manchester City, no início dos anos 1980, armênios, gregos e italianos, claro. É o bairro com a maior
quando os torcedores citizens insultaram os Lillywhites concentração de judeus asquenazes, já os sefarditas se
aludindo à circuncisão. Foi quando a torcida do Tottenham concentraram mais no bairro de Flores. A partir do mo-
revidou, mostrando seus pênis e calou os rivais. Assim mento em que o Atlanta aluga um terreno no número 550
20
da rua Humboldt, muito perto da Avenida Corrientes, o primeiro clube argentino que jogou em Israel. O pri-
em janeiro de 1922, começa um processo de integração meiro Sul-Americano foi o Rampla Juniors, do Uruguai.
com a comunidade judaica do bairro. O estádio — muito Foi a única vez em que o clube saiu da América do Sul.
precário — é inaugurado em junho daquele ano. Nessa Fizeram um jogo com a seleção e com o Maccabi Tel-
época, ao revisar as atas da diretoria, começam a aparecer Aviv. E, neste mesmo ano, o Maccabi Tel-Aviv fez uma
sobrenomes de origem judaica entre os sócios, de gente excursão pela América do Sul e jogou com o Atlanta no
que morava no bairro e que freqüentava o clube. Já na seu estádio, em Villa Crespo. Também houve um ato pela
década de 1950, começam a surgir sobrenomes judeus independência do Estado de Israel, em que alugaram o
ocupando algum cargo na comissão diretiva do Atlanta. estádio. Mas também houve atos cristãos ou evangélicos,
O processo de identificação aumenta quando, em 1959, por exemplo. Se vamos falar de AFA, houve um clube afi-
assume a presidência León Kolbowski. O Atlanta não é um liado propriamente judeu, que é o OHA Macabi, fundado
clube judeu, é um clube que tem uma quantidade maior de em 1930, mas sempre esteve nas divisões mais baixas do
sócios judeus em Buenos Aires em comparação aos outros futebol argentino.”
clubes da cidade. Esse presidente esteve no cargo por dez
Um vínculo geográfico e cultural entre o Atlanta e seu
anos, até perder as eleições, em 1969. Kolbowski era nas-
bairro, mas identificado pelos
cido na Polônia, comerciante
rivais como um judeu, como
do bairro, afiliado ao partido
Edgardo Imas, relata um
comunista e judeu. Coincidiu
com um crescimento do clu- “Em 2000, episódio de anti-semitismo:
“Em 2000, houve um jogo
be, quando também ele cria
uma cooperativa no Atlanta, houve um jogo entre Atlanta e Defensores
de Belgrano no campo deles.
baseada nos seus ideais comu-
nistas, que ajudava os sócios, entre Atlanta Lá, a torcida atirou barras de
sabão em alusão ao genocí-
cria um jardim de infância,
desenvolve muitas disciplinas
e Defensores dio durante a Segunda Guerra
de Belgrano, a
Mundial, onde se fazia sabão
esportivas, desempenha as
dos cadáveres de judeus. Isso
melhores campanhas na pri-
meira divisão, conquista seu torcida atirou teve muita repercussão midi-
ática e, em certo momento, a
primeiro título oficial, a Copa
Suécia, que começou em 1958 barras de sabão AFA determinou que os árbi-
tros parassem o jogo em caso
e terminou em 1960. León
Kolbowski tinha muito aces- em alusão ao de cânticos ou manifestações
anti-semitas ou racistas.”
so à AFA, além disso, o clube
vendia vários jogadores pro
genocídio durante Existe um mito que diz que,
Boca, River ou outros grandes.
Na década de 1960, foi quando
a Segunda Guerra se o Atlanta tivesse uma rela-
ção direta com a comunidade
começa a se perceber gritos Mundial, onde judaica, o clube não atraves-
anti-semitas de outras tor- saria a crise financeira que
cidas, que sempre se mistu- se fazia sabão atravessou. Afinal, os judeus
rou com o folclore do futebol.
Desde essa época chamam o dos cadáveres de carregam fama de acúmu-
lo de capital, e muitos atu-
Atlanta de Russos ou Judeus…
Mas não é, em absoluto, um
judeus.” am no mercado financeiro e
de investimentos. Imas fala
clube judeu por estatuto. Por
outro lado, os sócios de ori-
— Edgardo Imas sobre a diferença de relação
com outras instituições e clu-
gem judaica devem formar a bes oficialmente judeus: “Não
metade do quadro societário tem nada a ver com a relação
ou mais. Outro clube que já esteve no mesmo bairro, de instituições como a AMIA, por exemplo. Os judeus aqui
o Chacarita, também tem muitos torcedores judeus, têm seus clubes como o Macabi ou a Sociedad Hebraica.
Argentinos Juniors ou All Boys, dentre os não-Grandes, Mas sim, houve algum aportes de torcedores, porém não
claro, me refiro. Mas foi isso, durante o período de León com o viés institucional, ou com alguma relação junto a
Kolbowski, toda a comunidade judaica de Villa Crespo embaixada de Israel. O que aconteceu de algum aporte
ganhou uma integração muito mais forte com o clube.” também se deu com outros torcedores não-judeus, de
alguma ajuda de acordo com a capacidade econômica
Neto de Judeus, Imas conta como o clube também acabou
de cada um. Villa Crespo é um bairro de classe média, e
se relacionando com a questão judaica diretamente, em
como resultado de processos sócio-econômicos que a
um movimento de dentro pra fora: “Em 1963, o Atlanta
Argentina sofreu a partir dos anos 1990, foi um bairro que
fez uma excursão a Israel, onde jogou dois amistosos. Foi
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sofreu bastante esse impacto. Muitos setores da comu- Nessa imersão sobre a relação do Atlanta com a comunida-
nidade judaica passaram a morar em bairros fechados e de judaica, Ariel Palacios, correspondente da Globonews,
privados, nas aforas de Buenos Aires. Isso coincide com combinou um papo no Hiboux Café, que fica na Avenida
um momento de bancarrota do clube. A sede social do Puyerredón, bem perto da nova estação de metrô Las
clube esteve fechada por 15 anos, decidiram vendê-la pra Heras, em La Recoleta. O assunto era outro, na verdade,
poder liquidar o processo de falência. Houve uma situa- era pra gravar uma série chamada Corner Revista, na
ção bastante crítica. Por sorte, o clube recuperou a sede, qual o entrevistado vai repassar uma edição da Corner
pois quem comprou não fez nada e a câmara municipal expressando seus comentários sobre as matérias, no caso
decidiu reapropriar-se por utilidade pública e cedeu em de Ariel Palacios, a Corner #2 era a pauta. Aproveitando o
comodata ao Atlanta desde 2007. Outros clubes, como encontro, claro, o assunto que se transformou em repor-
Ferro Carril Oeste, também sofreram isso.” tagem aqui e seria explorado no documentário, acabou
sendo falado. Ariel, residente em Buenos Aires desde 1995,
Com relação aos insultos anti-semitas, eles continuaram
trouxe a sua perspectiva sobre a presença e influência
de alguma forma. Mas a defesa da torcida do Atlanta é
cultural dos judeus na Argentina.
igualmente preconceituosa: “No futebol argentino, por
muito tempo, não há torcida visitante. Por isso se escuta “A Argentina tem a maior comunidade da América Latina,
menos. Mas sim, existe. Antes, havia cânticos que aludiam uma das maiores do mundo, é difícil calcular a quanti-
à circuncisão, inclusive quando houve o atentado à embai- dade, a própria comunidade admite que é difícil dizer
xada, em 1992, sobretudo em clássicos contra o Chacarita, qual o tamanho dela. Existem as pessoas que freqüentam
ou contra seu segundo rival, o sinagogas, as que freqüentam
All Boys, foi quando apareceu escolas, mas tradicionalmen-
uma bandeira com a suásti-
ca. Mas claro, muitas vezes a
“Aos domingos, te, desde os anos 1920 e 1930, a
comunidade judaica argentina
torcida do Atlanta fica cho-
cada com esses cânticos, mas
no Café San é laica, não é mais a figura or-
todoxa, em vestimenta, esses
quando jogadores de outros Bernardo, um são poucos. A imensa maioria,
times, com a pele mais escura, uns 90%, são laicos. É difícil
jogam contra o clube, dedi- bar tradicional medir porque são várias gera-
de Villa Crespo,
cam termos preconceituosos, ções, em que alguns mantém
como “favelado“, “negro de tradições gastronômicas, cos-
merda” etc. Todo o ambiente
do futebol é muito racista, ho-
até pouco tempo tumes, o humor, infelizmente
o íidiche sumiu. As estimati-
mofóbico e tudo mais.”
atrás, se escutava vas mais pessimistas falam
em 250 mil pessoas e as mais
Mas o vínculo cresce, e termi-
na sendo um espaço de iden- gente falando em otimistas falam em 600 mil,
até porque houve muitos ma-
tificação entre a comunidade
judaica portenha: “No prin-
íidiche.” trimônios entre judeus e não-
— Edgardo Imas
-judeus. Então como definir se
cípio da década de 1960, você
esse aqui é e aquele ali não é?
ia à arquibancada e escutava
O humor argentino tem muito
muita gente falando em íidi-
do humor judaico. Há grandes
che, um idioma praticamente
figuras nas ciências e nas artes, um pouco também na
morto, mas que os judeus da Europa Oriental adotaram,
política. É uma cultura muito forte na sociedade argentina.
com uma gramática muito parecida à do alemão, mas
E, por outro lado, a Argentina é o país que mais recebeu
usavam o alfabeto hebraico. Isso se percebia, e era um
criminosos de guerra nazistas. Nos anos 1930, aqui havia o
lugar de pertencimento, era um vínculo a mais, uma
maior partido nazista fora da Alemanha. Fizeram comícios
maneira de integrar-se com o país. Meus avós falavam
no Luna Park, lotaram lá em duas oportunidades: uma
íidiche. Eu fui à escola judaica no primário, e nos primei-
delas para celebrar o Anschluß, a anexação da Áustria. O
ros anos ensinavam íidiche e não hebraico. Depois que
exército argentino é ultra anti-semita, e ainda existem
começaram a ensinar hebraico nos colégios judaicos. Aos
pequenos grupos neo-nazistas. E também existe a ques-
domingos, no Café San Bernardo, um lugar tradicional
tão entre Chacarita e Atlanta. Um time com a presença
de Villa Crespo, durante muito tempo, até pouco tempo
de torcedores judeus, e o outro que é a contraposição.”
atrás, se escutava gente falando em íidiche. Mas o clube
foi fundado por um espanhol, e até se instalar definiti- Por um lado, existe esse contingente de população ju-
vamente em Villa Crespo, rodou por vários bairros, por daica na Argentina e, por outro, vários tesouros nazistas
isso ganhou o apelido de Bohemio. Mas está neste bairro também, já foram encontrados em Buenos Aires, como
há praticamente um século, por isso a relação com a em uma casa em Beccar, um bairro de San Isidro, no gran
comunidade judaica que vive em Villa Crespo”, finalizou conurbano bonaerense, em junho de 2017. Isso explica
Edgardo Imas. certas perseguições contra os judeus na Argentina, como
22
Estádio León Kolbowski do Club Atlético Atlanta em Villa Crespo, Buenos Aires, em 2018.
(Foto: Fernando Martinho)
conta Palacios: “Houve em três momentos os atenta- em território reclamado — e considerado — argentino,
dos, que obviamente tiveram uma cooperação argentina mas de domínio e ocupação britânica.
nos dois casos, tanto da embaixada de Israel, em 1992,
Em 2016, o Flamengo foi eliminado nas oitavas-de-final
quanto na Amia, em 1994. Mas, na época da ditadura,
da Copa Sul-Americana por um clube de nome particular:
se a gente pega a porcentagem das pessoas torturadas e
Club Deportivo Palestino, fundado por membros da co-
desaparecidas, a proporção entre judeus é muito maior
lônia palestina, em 1920. Após eliminar o clube carioca,
em comparação com o resto da sociedade. Segundo de-
Los Árabes caíram diante do San Lorenzo, time de coração
poimentos, a tortura era muito pior com os judeus do
do Papa Francisco. No início de 2018, Jorge Bergoglio
que com outros civis. Um outro caso, que nunca foi muito
— nome de nascimento do Papa — visitou o Chile e foi
detalhado, foi um pogrom em Buenos Aires, em 1918,
duramente criticado na Argentina por não aproveitar a
precisamente em Balvanera, popularmente conhecido
ida ao território vizinho para aterrissar em seu país natal,
como Once, e também no bairro de Villa Crespo. Foi um
afinal, usaria invariavelmente o espaço aéreo argentino.
assunto muito pouco explorado. A embaixada americana
enviou um relatório a Washington contando o que havia Deixando de lado toda a complexidade realista, em um
acontecido aqui em Buenos Aires, que era uma metró- exercício puro de imaginação, uma fantasia das mais
pole, era a terceira cidade no mundo, já nos anos 1930, inocentes: seria espetacular um encontro intitulado “O
em produção cinematográfica e de jornais em íidiche, Jogo da Paz Mundial”, entre Palestino e Atlanta, a ser
depois de Nova Iorque e Varsóvia.” realizado nas Ilhas Malvinas, com presença — e pontapé
incial — do Papa Francisco, principal intermediador do
Rivais históricos, Argentina e Chile compartilham e são
evento. Também estariam presentes o Chefe de Estado
divididos pela Cordilheira dos Andes. As enormes altitu-
de Israel e o líder palestino da época, junto com a Rainha
des separam um ódio cultural criado a partir de questões
Elizabeth e, claro, o presidente em exercício da Argentina.
territoriais, acentuado em 1982, quando o Chile cedeu
Seria interessante também se o árbitro fosse um inglês.
seu espaço aéreo para a Inglaterra, durante a Guerra das
Malvinas, que acabou com triunfo — e massacre — inglês
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E
m 1945, a ocupação soviética na Hungria forçou
o país magiar a ser incluído dentro da esfera de
influência exigida por Josef Stalin nos acordos de
paz do pós-guerra. Para muitos húngaros, essa decisão
marcou um ponto de inflexão nas suas vidas. Muitos não
estavam dispostos a viver em um país controlado por um
regime comunista fantoche dos interesses de Moscou,
onde os direitos individuais eram usurpados a favor de
uma diretriz coletivista. Para a maioria, o exílio era a única
solução. Nos anos seguintes foram vários os que optaram
por abandonar o país, em alguns casos deixando para trás
as famílias e correndo grave perigo cada vez que cruzavam
a fronteira com a vizinha Áustria. Entre esses refugiados
estavam alguns dos melhores futebolistas profissionais do
país, com a sua grande estrela individual, László Kubala,
na liderança. Dessa fuga desesperada nasceria o Hungaria
FC, o primeiro super-clube de caráter internacional do
futebol mundial.
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Utilizando o apoio em massa das federações do bloco os seus jogadores até a sanção terminar. O Hungaria FC
comunista, cada vez mais influente nos corredores do realizou vários jogos em Roma, Paris, Amsterdã e Viena
poder, os dirigentes húngaros conseguiram junto ao contra combinados europeus não-oficiais face à sanção
presidente da FIFA, Stanley Rous, uma suspensão de dois da FIFA, demonstrando o seu poderio absoluto.
anos a todo atleta que abandonasse o seu país de forma
Entre os primeiros países a aceitar jogar contra os exilados
não autorizada. Oficialmente, os jogadores húngaros não
húngaros, estava a Espanha de Franco, que aproveitava
podiam atuar por qualquer equipe. Estavam exilados e
qualquer ocasião para manifestar a sua oposição aos
agora também desempregados. Apesar do seu protesto
regimes de índole comunista. E foi dessa forma que, em
— e de vários dos clubes que já os tinham contratado — a
Junho de 1950, depois de meses viajando pela Europa, a
sanção se manteve, o que obrigou os jogadores a se reunir
comitiva chegou à Espanha.
por conta própria.
Kubala era a grande estrela, sem dúvidas, provavelmente
Começaram a organizar treinos e pequenos jogos de exi-
era o mais completo jogador da sua geração, mas não
bição nos campos da Cinecittà, os estúdios de cinema da
se encontrava só. Com ele vinham também internacio-
capital italiana onde um jovem que se encontrava de via-
nais, como Turbeki, Otto, Licker, Tóth, Mészáros, Nagy,
gem a Roma, Pier Paolo Pasolini, como mais tarde contou
Marik, Magay, Kiss ou Monsider, tanto da Hungria como
em várias entrevistas dadas à imprensa italiana, ficou
também da Tchecoslováquia ou até da Romênia, todos
encantado com o seu talento, sobretudo o de um jovem,
eles refugiados políticos. Em 4 de Junho, o conjunto de
Kubala, a estrela cintilante da constelação. A qualidade
“Globetrotters” apresentou-se no estádio Chamartín
coletiva era tal que rapidamente ficou claro que o grupo
para medir-se contra o Real Madrid, no primeiro de seis
não podia se limitar a pequenos jogos amigáveis em Roma.
jogos que disputaria em solo espanhol. A conta da viagem
Ferdinand Daučík, antigo internacional tchecoslovaco e
longa e exigente chegou e os locais venceram por 4 a 2,
sogro de Kubala, também exilado do regime comunista em
mas quatro dias depois, contra a seleção espanhola, o
Praga, decidiu então formalizar uma espécie de clube de
Hungaria venceu de forma clara, por 2 a 1. A Espanha
exilados e começou a mexer os seus contatos para organi-
venceria um segundo encontro por 6 a 2 e, entre esses
zar encontros capazes de arrecadar fundos para sustentar
dois encontros, o Hungaria venceu e perdeu igualmente
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nas décadas seguintes. O futebol que Kruschner defendia Itália, no comando do AC Milan. Em 1956, quando uma
era, taticamente, muito mais evoluído que qualquer ou- delegação do Honvéd — presa na Europa ocidental de-
tro praticado no país, tinha um enfoque particular nas pois da tentativa de golpe contra o regime comunista ter
exigências físicas do treino — pela primeira vez se reali- fracassado em Budapeste — decidiu fazer dinheiro por
zaram exercícios sem bola de caráter tático no Brasil — e meio de uma excursão pelo Brasil, os seus contatos com
na preparação física, mas também na forma de abordar o clube o levaram a ser incluído na comitiva. Ao chegar a
o jogo, com passes curtos, linhas juntas e coordenadas São Paulo, fez amizade com o dirigente paulista, Manuel
desde a defesa até a frente de ataque. de Almeida, e aceitou a proposta de liderar o clube tricolor
para suceder Vicente Feola, que se preparava para assumir
O técnico herdou uma equipe treinada até então por Flávio
o comando da Seleção Brasileira e que permaneceria na
Costa, que ficou com seu auxiliar e bebeu diretamente da
sua equipe técnica. Guttmann enfocou essencialmente
fonte para aplicar depois a sua versão ao longo da sua
o treino na dimensão tática, realizando exercícios sem
carreira de tantos êxitos. Com Leônidas da Silva, Fausto
bola, combinações nunca vistas e a exploração do jogo
e Domingos da Guia como emblemas de uma equipe ex-
dos laterais em forma de diagonal para acumular ho-
tremamente competitiva, Kruschner foi o primeiro téc-
mens no meio-campo. Sobretudo, defendia um futebol
nico a defender o uso do WM — sistema há muito usado
de toque, mais de posse de bola e menos frenético, que
na Europa — em detrimento do mais anárquico 2-3-5,
apoiado no talento individual fizesse a equipe funcionar
mas depois de ficar em segundo lugar no Carioca no seu
de um modo coletivo.
ano de estréia e de perder o jogo inaugural no estádio da
Gávea contra o Vasco da Gama, acabou vítima da — desde A sua grande inovação seria, no entanto, a defesa de quatro
então — habitual pouca paciência dos dirigentes brasi- em linha, algo que os Mágicos Magiares treinados pelo
leiros, assinando imediatamente depois com o Botafogo. seu amigo Gusztáv Sebes vinham ensaiando ao longo do
Dois anos mais tarde, vítima de um vírus, faleceu no Rio tempo. Guttmann aperfeiçoou o modelo, dando aos late-
de Janeiro. Costa herdaria a sua equipe, perfeitamente rais um papel mais ofensivo, reforçando o meio-campo
montada, para conquistar três Cariocas consecutivos com um jogador retirado do ataque que, no entanto, não
para os rubro-negros depois da sua partida. A semente fazia da equipe mais defensiva, muito pelo contrário. O
tinha sido lançada e isso que ele nem sequer tinha sido uso de uma defesa em linha era uma novidade para todos
o primeiro húngaro a treinar no Brasil. Já nos anos 1920, e demorou a ser efetiva, mas ficou profundamente enrai-
Eugênio Medgyessy tinha chegado ao Rio de Janeiro para zada no futebol brasileiro e seria uma das grandes armas
treinar o Botafogo e Fluminense antes de partir para o dos homens treinados por Feola, que bebeu de primeira
futebol argentino, com uma breve passagem pelo São mão as lições de Guttmann no Mundial da Suécia, no ano
Paulo. Pouco depois outro ilustre magiar, Nicolas Ladanyi, seguinte. Com Zizinho, Mauro Ramos e Dino Sani nas
internacional da seleção austro-húngara e expatriado filas, o São Paulo tinha uma equipe muito competitiva e
para os Estados Unidos nos anos 1920, chegou em 1930 na os ensinamentos de Guttmann fizeram o seu efeito, o que
cidade carioca para treinar o Botafogo, levando para casa levou a equipe a vencer o Paulista de 1957, com apenas
quatro títulos cariocas consecutivos entre 1930 e 1934. uma derrota em 14 encontros. No final do ano seguinte, já
com o Brasil campeão do Mundo, Guttmann abandonou
Um dos aspectos pioneiros do trabalho de Ladanyi, que
de surpresa o São Paulo para viajar a Portugal, onde seria
não tinha tido experiência na Europa, ao contrário de
campeão com Porto e Benfica, aplicando pela primeira
Kruschner, foi a utilização da psicanálise nos seus joga-
vez na Europa as lições do 4-2-4 que tinha explorado
dores, com sessões de terapia individuais destinadas a
no Brasil.
potencializar o melhor rendimento dos atletas no terreno
de jogo. A sua herança seria continuada por outros húngaros,
como o técnico do América do Rio, Gyula Mándi, mas,
Se Medgyessy tinha sido o pioneiro e Kruschner o pri-
sobretudo, por uma nova fornada de técnicos brasileiros
meiro grande impulsionador, ninguém duvida que a
que souberam perfeitamente assimilar esses conceitos
máxima figura influenciadora do futebol brasileiro de
depois de duas décadas de ensinamentos. A matriz de
origem húngara se chamava Béla Guttmann. O mago de
jogo tipicamente brasileira, coroada com três títulos
Budapeste, que seria celebrado mais tarde no futebol
mundiais em 12 anos, se nutriu diretamente de todos esses
europeu, sobretudo com os dois títulos de campeão con-
pioneiros magiares, que foram adicionando pequenos
tinental conquistados com o Benfica de Eusébio, tinha
ingredientes num cocktail explosivo. Capazes de unir o
tido uma célebre carreira como jogador nos anos 1920
talento inato de gênios como Didi, Pelé ou Garrincha a
e também tinha passado pelas mãos de Jimmy Hogan.
conceitos táticos até então desconhecidos na América do
No final daquela década, seguiu com o mítico Hakoah Sul, como o treino sem bola, os exercícios de repetição ou
Vienna, um clube composto exclusivamente por atletas a defesa de quatro, os brasileiros tomaram o testemunho
judeus, numa tour pelos Estados Unidos e lá ficou até que dos seus rivais do sul e conquistaram o Mundo, o triunfo
a Grande Depressão pós-crise de 1929 o forçou a voltar à que começou a desenhar-se às margens do Danúbio.
Europa, onde começou uma ilustre carreira de treinador,
interrompida pela Guerra e retomada pouco depois na
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O time que entrou em capo em Wembley para o Jogo do Século: Puskás, Grosics,
Lóránt, Hidegkút, Buzánszky, Lantos, Zakaria, Czibor Bozsik, Buda II, Kocsis.
(Foto: József Kovács/Fortepan)
32
Q
Os mais jovens talvez não saibam, mas a Hungria já
teve um grande time de futebol. Durante um perí-
odo de aproximadamente vinte anos, os húngaros
davam aula de como praticar o esporte. E não era apenas
um sucesso doméstico: Ferenc Puskás fazia história pelo
Real Madrid e Sándor Kocsis era campeão e ganhava a
Chuteira de Ouro pelo Barcelona. Batiam de frente com
qualquer seleção da época e seus maiores sucessos foram
convertidos em medalhas — principalmente quando
tratava-se de Olimpíadas.
33
O Time de Ouro em 1953: Gyula Lóránt, Jenő Buzánszky, Nándor Hidegkúti, Sándor Kocsis, József Zakariás,
Zoltán Czibor, József Bozsik, László Budai II; Agachados: Mihály Lantos, Ferenc Puskás, Gyula Grosics.
(Foto: Tibor Nagy Erky/Fortepan)
A revolta logo se espalhou pelo país, tendo seu ápice Comunista e substituiu por outra, que representava a
quando finalmente conseguiram derrubar o governo. Em Hungria Livre.
resposta, os soviéticos invadiram o território húngaro
Uma das medalhas daquele ano teve em seu caminho uma
tentando conter a ameaça, resultando em um sangrento
batalha chamada “Sangue na Água”, que aconteceu no
embate. Eram mais de trinta mil tropas soviéticas contra
polo aquático masculino. Hungria e União Soviética se
grupos de civis e soldados húngaros que se organizavam
enfrentaram em uma violentíssima semifinal. Após ser
entre si. A luta resultou em mais de três mil mortes.
atingido por um soco de um jogador soviético, Ervin Zádor
O conflito torna compreensível a renúncia aos Jogos, jogou os minutos finais da partida com o rosto sangrando,
mesmo que fossem considerados como uma das melhores dando origem ao nome pelo qual o episódio é conhecido.
equipes de futebol da época — haviam conquistado o ouro
A euforia da torcida australiana — que não escondeu seu
nos Jogos anteriores, em 1952, e o vice-campeonato da
apoio à Hungria durante toda a competição — foi tão
Copa do Mundo de 1954. Mas o que intriga nessa história
grande que a polícia teve que invadir as arquibancadas
é que o restante da delegação compareceu às Olimpíadas
para conter os ânimos. O jogo terminou com o placar de
de Melbourne. E ainda conseguiu bons resultados.
4 a 0 para os húngaros.
Os atletas de outros esportes tiveram até mais dificul-
A Hungria terminou a competição com um quarto lugar
dades do que a equipe de futebol. Durante a preparação
no quadro geral de medalhas. A União Soviética, líder
que acontecia nos arredores de Budapeste, muitos eram
geral no ranking, ironicamente levou o ouro no futebol
obrigados a treinar enquanto ouviam os tiros contra os
masculino. Existe até mesmo a teoria de que a seleção
soviéticos.
húngara de futebol não teria sido enviada pelo governo
Conseguir bons resultados não era apenas uma questão justamente para facilitar o caminho dos soviéticos. E essa
esportiva, mas também de honra e respeito aos que luta- decisão política custou mais caro do que parece. Foi ali
vam em seu país. Assim que chegaram à Vila Olímpica, a que Puskás e Kocsis se aposentaram da equipe. A recu-
delegação imediatamente retirou a bandeira da Hungria sa pelas Olimpíadas de 1956 marcou o fim do chamado
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Golden Team, impossibilitando assim um adeus à altura Infelizmente, jamais se saberá. Mas quem não tem futebol,
do que foi aquela seleção. caça com polo aquático.
A última partida do Time de Ouro foi um amistoso em Fato foi que em 20 de dezembro, o Honvéd permaneceu
Moscou contra a União Soviética, em setembro de 1956, no exterior, e jogou a partida de volta contra o Athletic
dois meses antes dos Jogos Olímpicos. Os soviéticos vi- de Bilbao em Bruxelas. Empate por 3 a 3 e eliminação da
nham de um recorde de invencibilidade em casa mas, Copa dos Campeões.
mesmo diante de cem mil pessoas, sucumbiram ao poder
No dia 29 de dezembro, o contrato de excursão para o
dos Aranycsapat [Time de Ouro, em húngaro], que ven-
Brasil foi assinado através de telegramas, em Amsterdã,
ceram por 1 a 0. O amistoso foi promovido sob a intenção
por Emil Osterreicher, secretário-geral do clube húngaro,
de melhorar as relações entre os dois povos, mas acabou
e o presidente do Flamengo, José Alves de Morais.
por despertar o orgulho húngaro.
Mas em 30 de dezembro, a situação política na Hungria
Em meio ao caos, a equipe do Honvéd, base da Seleção,
contava com todo o aparato soviético, respaldado pelo
conseguiu autorização para deixar o país. Em novembro
Pacto de Varsóvia, e como novo premiê, assumiu János
de 1956, embarcaram para Bilbao, onde disputariam a
Kádár. Uma reformulação geral nas estruturas do país não
primeira participação na Copa dos Campeões contra o
deixaria o esporte imune. Determinou-se que o Hónved
Athletic Bilbao, campeão espanhol. Perderam por 3 a 2
estava proibido de jogar partidas no exterior.
no dia 22 daquele mês. Praticamente na mesma data , a
Hungria deveria ter entrado em campo contra a Índia, em O imbróglio tomou proporções inimagináveis, mesmo
Melbourne, WO a favor dos indianos. Dois dias depois da com o veto da FIFA, obedecendo à proibição da Federação
derrota do Honvéd no jogo de ida da competição européia, Húngara de Futebol, a CBD intercedeu, e mesmo com
a União Soviética estreou nos Jogos Olímpicos, e no dia 8 receio de ser eliminada das competições, a entidade
de dezembro, jogou a final contra a Iugoslávia. máxima do futebol também temia uma instabilidade
política na América do Sul, já que outros países tam-
O que aconteceria caso se enfrentassem nas Olimpíadas?
bém estavam interessados nos amistosos do Honvéd. Foi
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quando a Federação Húngara O Honvéd visitou a Roma no antigo Stadio bição de Evaristo de Macedo,
dei Centomila que viraria Stadio Olimpico
decidiu banir todos os inte- autor de dois gols, e de Puskás,
em 1960. O estádio se chamava assim pois
grantes da delegação e proibiu foi ampliado nos anos 1950 para alber- que também deixou duas bolas
o uso do nome Honvéd. Emil gar cem mil pessoas visando os Jogos nas redes.
Osterreicher rebateu com o Olímpicos de 1960. A Roma venceu o Honvéd
por 3 a 2 com gols do sueco Nordahl e do Quatro dias depois, o Honvéd
imediato não-reconhecimen-
uruguaio Ghiggia (2) para os Romanistas enfrentaria o Botafogo de Didi,
to da federação por parte do e os húngaros descontaram com Puskás Nilton Santos e Garrincha. Os
clube. (de pênalti) e Czibor. Detalhe da faixa preta
húngaros venceram por 4
no braço dos atletas em homenagem às
Em 14 de janeiro de 1957, o vítimas da Revolução Húngara. a 2, com três gols de Kocsis
Honvéd desembarcava no e o outro de Puskás. Mané e
Aeroporto do Galeão e se di- Paulinho Valentim fizeram
rigiu ao Hotel Glória. Do time de 1954, estavam: o go- para os alvinegros.
leiro Gyula Grosics, o meio-campista József Bozsik, e os
No sábado à noite, dia 26 de janeiro, os húngaros teriam
atacantes László Budai, Sándor Kocsis, Ferenc Puskás e
uma revanche perfeita contra o Flamengo, desta vez em
Zoltán Czibor.
São Paulo, no Pacaembu. O Honvéd devolveu o placar de 6
No dia 19 daquele mês, com a presença de Juscelino a 4. Se fosse combinado não seria tão redondo o resultado.
Kubitschek na tribuna de honra do Maracanã, entravam Puskás fez quatro gols!
em campo Honvéd e Flamengo. Se por um lado os hún-
O tira-teima em terras brasileiras terminou com nova
garos sofriam com o contraste climático, após deixar o
vitória do Honvéd sobre o Flamengo, desta vez por 3 a
inverno europeu e desembarcar no verão carioca, por
2. O equilíbrio era notável. Depois ainda houve um ou-
outro, o Rubronegro não contava com Joel e Zagallo. Dida
tro jogo, em 7 de fevereiro, contra um combinado de
e Jordan só entraram no segundo tempo. O jogo terminou
Flamengo e Botafogo, o ataque do time ficou com Paulinho
com vitória por 6 a 4 do Flamengo e uma excelente exi-
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Lantos, Bozsik, Czibor, Palotás, Lóránt, Zakariás, Grosics, Kocsis, Hidegkúti, Puskás e Buzánszky.
(Foto: Jozsef Kovács/Fortepan)
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U
m dos nomes que ficaram gravados para a Isso. E a gente fazia um rodízio. Um time ficava lá, o
posteridade no pedestal da estátua de Kubala, outro em Teresópolis. Era o primeiro time, o segundo
no Camp Nou. Poderia ser uma mera coinci- time e a garotada.
dência, um jogador que estava naquele time daquele
clube naquela cidade naquela época. Poderia. Mas não. Teve um amistoso com o Petropolitano, era o time
que meu pai jogava, que meu avô foi treinador e onde
Aquele time do Barça tinha algo especial. Embora não
eu joguei quando novo.
tenha conquistado sequer uma Champions, quando
o Real Madrid já havia levantado cinco entre 1956 e Sim, jogamos. Pô, saiu uma briga danada nesse dia! O
1960, foi em 1961 que os Blaugranas chegaram perto time nosso jogava bem pra cacete. Os caras lá come-
de conquistá-la pela primeira vez. Mas do outro lado, çaram a dar porrada, e o árabe não tem medo não. Ele
naquela final, estava um Benfica que, um ano mais acredita em Alá e é foda. Pra contê-los é difícil. Eu,
tarde e já com Eusébio, derrotaria o Real Madrid — na Europa, já tive cada problema com eles. Negócio
cinco vezes campeão — e os lisboetas alçariam a taça de briga, porra…
pela segunda vez.
Muitas gerações só ouviram falar de Evaristo. Não há
Quis o destino que o Barça só conquistaria uma vídeos nem no Youtube, se encontra mais material
Champions três décadas depois, em 1992. Foram duas dos anos 1970 em diante. Mas quem foi o Evaristo
finais perdidas: a de 1961 contra o Benfica, e a outra, jogador segundo ele próprio?
em 1986, contra o Steaua Bucareste em Sevilha. Mas
Olha, eu acho que fui um bom jogador. Se você olhar a
no âmbito europeu, o Barcelona pôde, com Evaristo,
minha trajetória, eu fui jogador de Seleção Brasileira, de
conquistar a Taça das Cidades com Feiras em 1960,
grande equipes na Europa e aqui no Flamengo. Então, eu
contra o Tottenham. Uma espécie de Europa League
acho que estou naquele hall dos bons jogadores do fu-
da época.
tebol brasileiro. Não digo que tenha sido o melhor, não
Evaristo é dos poucos que pode falar de alguns joga- estou dizendo isso, mas estou entre os bons jogadores.
dores com mais clareza. Dividiu espaço com as maio-
res estrelas de uma geração inigualável de húngaros. Bons? Romário disse que teria ganhado várias Bolas
Czibor, Kocsis e Puskás, integrantes do time vice-cam- de Ouro se tivesse permanecido na Europa, você não
peão mundial em 1954. Sem contar o próprio Kubala, diria algo do tipo?
que teria jogado neste time se não fosse refugiado e Os tempos passam e mudam. Na minha época de jo-
com isso renunciado à seleção de seu país natal. gador não tinha isso. Essas premiações começaram
Antes do início da entrevista, em sua sala de estar, que com a France Football, mas era muito modesta, não
ele chama de museu — com razão —, diz que ninguém era o que é hoje. A divulgação do futebol, a partir da
vai ali. Só quando ele mesmo vai dar alguma entrevista. televisão mudou. A minha geração não teve a TV. Era
Sua estante com troféus, placas e medalhas, algumas o rádio e jornal. É diferente. Amanhã, eu assisto um
fotos. Numa delas, o time do Barcelona de 1958, logo jogo da Copa dos Campeões aqui no Brasil. Na nossa
após a sua chegada. época, na Europa, tinha uma Copa lá, me esqueço o
nome agora, que o Barcelona ganhou duas vezes [Taça
“Kubala, Martínez, eu e Suárez. Ainda não tinham das Cidades com Feiras]. Nós ganhamos, mas foi lá
chegado aqui, os húngaros. Depois que chegaram o no início. Eu vi alguns gols meus, mas era filmado.
Kocsis e o Czibor. Aí, eles entraram nesse time. Esse Aqui no Brasil, por exemplo, a gente jogava e tinha
aqui era o Ramallets [goleiro]. Esse morreu — aponta um programa de gols que passava no cinema, que se
pro próprio Ramallets]. Esse morreu, esse morreu, chamava Canal 100, era o [Carlos] Niemeyer que fazia.
esse morreu, esse morreu, esse morreu, esse morreu, Só os gols. Não tinha o jogo.
esse morreu, esse morreu. Sobramos três aqui”, com
o porta-retrato na mão.
Você se lembra de uma ida a Petrópolis com a seleção “A minha geração não
do Catar?
Me lembro. A gente ficou hospedado num hotel que
teve a TV.
era fora da cidade. Era o rádio e jornal.
Sim, ficava na BR-040. É diferente.”
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dos grandes ídolos apanhado de coisas que são interessantes. Isso todo
mundo faz, entende? Ninguém nasce sabendo. Quando
da história do você vai ser treinador, por mais experiente que você
seja como jogador, o jogador faz aquilo que ele acha que
Barcelona. Era um é o melhor, mas o treinador tem que buscar o melhor
pra todos e não só pra um.
jogador fortíssimo,
A grande estrela daquele Barcelona era o Kubala, em-
muito bom, chutava bora tivesse você, o Kocsis e o Czibor. Na foto, você
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Bom, e os outros caras: Koscis e Czibor? foi um peixinho assim [faz o gesto com o braço], está
Eles vieram depois. É muito interessante porque, aqui no museu do Barça! Um ano mais tarde, eliminamos
no Brasil, o Flamengo fez alguns jogos contra o Honvéd. o Real Madrid, que ia ser hexacampeão. Eles eram
Jogos que ficaram famosos, porque eles eram um time pentacampeões da Copa Europa.
que ia pra frente. E o Flamengo também. Foram jogos de
seis gols, 6 a 4, era uma coisa assim. Eu joguei contra E você vai pro Real Madrid em 1962…
eles aqui. Contra o Kocsis, Czibor e Puskás. Depois nós O Barcelona queria que eu me nacionalizasse pra jogar a
nos encontramos lá no Barcelona. O time do Honvéd Copa pela Espanha no Chile e abrir espaço pra um outro
acabou aqui no Brasil. A metade dos jogadores voltou jogador estrangeiro, entende? Eu disse a eles que se
pra Hungria e a outra metade foi para [o resto da] eles arranjassem uma ascendência espanhola minha, eu
Europa. Aí a Fifa aplicou uma suspensão a eles e logo aceitava. Mas perder a minha nacionalidade brasileira,
depois os habilitou a jogarem na Europa. Eles tiveram não. Não era pra ter dupla nacionalidade. Eu era filho
que esperar um tempo pra jogar. de português e não de espanhol. E nesse meio tempo, o
Madrid me procurou, meu contrato tinha terminado. E
E você se relacionava bem com eles? disse pra eu ir como estrangeiro, que ninguém ia mexer
Sim, era muito bom, ótimo. Eles eram muito bons na minha nacionalidade. E eu fui pro Madrid. Só que lá,
companheiros… eu não tive a mesma sorte, por conta de lesões. Olha
aqui esse joelho [mostra uma cicatriz enorme frontal
Aprenderam bem espanhol? sobre a rótula]. Comecei com problemas de lesões,
fomos fazer um amistoso na Itália e tive uma lesão
Mais ou menos. Falavam bem mais ou menos. Mas mui-
violenta, sabe? E a medicina
to boas pessoas. Tranqüilos,
esportiva naquela época era
não eram pessoas, assim, re-
outra. Pra você ter uma idéia,
servadas. Não, não.
no meu primeiro ano lá, eu
fiquei me recuperando. Eu
E o Luis Suárez?
voltava e doía. Foi proble-
Era um galego. Veio da “Na história de Barcelona mático. E o que aconteceu,
Galícia pro Barcelona. No
e Madrid, um dos gols com a lesão, eu deixei de ser
começo, ficou um pouqui-
nho fora do time. Mas depois mais importantes foi o um ponta-de-lança e passei
a jogar mais atrás, que não
que ele conseguiu entrar no que eu fiz, de cabeça, foi precisava dar aqueles piques.
time, com o Helenio Herrera
que apoiou muito ele, aí ele
um peixinho”
Você virou armador, então?
deslanchou. Realmente jo-
É, um meia-armador. No
gou muito. E acabou indo pra
Barcelona, eu sou o maior
Inter de Milão.
goleador brasileiro [178
gols]. No Madrid, eu já não
Treinada pelo Helenio!
fiz tantos gols e jogava muito
Você sabe por que o Suárez foi pra lá? Eu tinha que ter
mais atrás. Mudei a posição.
ido. O Helenio queria me levar. Mas o Barcelona não
quis me ceder porque eles não podiam me vender. Na E lá você dividiu o vestiário com outro húngaro: o
Espanha, naquela época, o jogador estrangeiro ficava Puskás. Fala um pouco dele.
sempre livre ao término do contrato. E os espanhóis
Ele foi um dos maiores chutadores que eu vi na minha
não, eles ficavam presos ao clube. Como eu não pude
vida. Canhoto. Ele direcionava e colocava a bola onde
ir, não me liberaram, porque não iam ganhar nada,
ele queria. Impressionante. Se você fizesse uma bar-
aí eles compraram o Suárez. E fizeram uma compra
reira e um jogador ficasse de perna aberta, ele jogava
maravilhosa, porque ele jogou muito bem lá!
a bola ali por dentro das pernas do cara. Ele tinha uma
precisão enorme. Já não era mais um jogador muito
Foi campeão europeu, inclusive.
rápido, mas que tinha um senso de colocação muito
Era um grande jogador!
raro. A bola procurava ele na área, era impressionante.
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Famosa foto do gol de peixinho de Evaristo sobre o Real Madrid na semifinal da Copa dos Campeões da
Europa de 1960/61 que eliminou os Merengues da sexta final consecutiva.
(Foto: Carlos Pérez de Rosas)
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contra o Madrid, irmãos, parentes… Fica uma dívida a se pagar que não
acaba nunca.
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Sim!
[Pausa pra ligar o ar-condicionado. A janela com a
vista pro mar em Ipanema estava aberta. Era quase
verão no Rio de Janeiro. Nisso o papo rola, e sabe-se
lá como, ele diz que, embora fosse destro, chutava
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melhor com a esquerda] Ali foi culpa do Flamengo. Tanto que deram o título pro
Sport, com razão. Eu me lembro que o Márcio Braga
Teve treinador que me perguntou se eu era canhoto,
fez a confusão. Ele fez merda. Tirou a possibilidade do
eu dizia que era destro e sempre joguei mais pelo lado
Flamengo ter mais um título. Na hora, o Márcio Braga
esquerdo. Me habituei, e é uma questão de infância,
disse que não tinha que jogar contra o outro módulo.
vai desenvolvendo.
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N
a Grécia, país símbolo da expansão filosófica e
esportiva da antigüidade, o campeonato nacional
de futebol é um dos mais desproporcionais da
Europa, quiçá do mundo. Desde a criação da Superliga, na
temporada de 2006/07 até 2016/17, o título praticamente
não saiu das mãos do Olympiakos: foram dez conquistas
contra apenas uma de seu arqui-rival, o Panathinaikos.
Remonta de 1993/94, com o AEK, o último título que não
fosse dos dois gigantes locais.
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comando e, assim, Rákosi foi substituído no cargo de como a qualidade do futebol húngaro como um todo,
primeiro ministro por Imre Nagy. De acordo com a sua puro reflexo da estagnação econômica e social do país.
biografia, escrita por János M. Rainer em 2009, o liberal Béla Guttmann, o técnico à época da deserção — em sua
flexibilizou a economia, investindo na indústria leve e segunda passagem pelo clube —, partiu em excursão com
expandindo a agricultura. A idéia era melhorar, ao menos a sua equipe para a América do Sul, permanecendo no
um pouco, as condições da população, o que na prática país para dirigir o São Paulo, ainda que por pouco tempo.
não ocorreu. Dessa forma, a perda da Copa do Mundo na
Já Puskás, Kocsis, Czibor e companhia continuaram a
Suíça foi um pretexto para que os húngaros protestassem
viajar pelo mundo e fazer o que mais sabiam: mágica.
contra o regime.
As ameaças de punição tanto da Federação quanto da
Dois anos depois da sua saída, Rákosi voltou ao poder. No FIFA não foram capazes de fazer com que retornassem
âmbito esportivo, a situação já não era a mesma para a à Hungria.
seleção nacional. A comissão técnica de Sebes foi desman-
telada em 1955 e um de seus assistentes, Gyula Mándi,
inclusive, partiu para o Brasil para treinar o América-RJ,
sem grande sucesso. Mais controlador do que outrora,
Rákosi teve de lidar com a crescente insatisfação popular. Grécia, finalmente
Contextualizadas as situações política, social e esportiva
húngaras, o amistoso entre Ethnikos e Honvéd não soa
Fuga forçada
mais tão absurdo, cujo resultado foi previsível: 7 a 0 para
os visitantes. Restou absurda, todavia, aquela alegação
de Karellas de ter apalavrado contratos com os melhores
O Pacto de Varsóvia representou a resposta soviética à jogadores do Honvéd. No fim, o mecenas chegou mesmo
formação da OTAN. Assinado em 1955, o pacto deixou a contratar alguns húngaros, como Garamvölgyi e Szabó,
claras as diretrizes a serem tomadas em caso de conflito o que levou à desgraça de seu clube. Por motivos nunca
bélico, com uma ajuda entre os países do bloco socialis- elucidados, a federação grega sancionou o Ethnikos por
ta, como a Hungria. E foi nela que, em outubro de 1956, estas contratações, sob alegação de que eram jogadores
eclodiu um levante conhecido como Revolução Húngara. profissionais — sem sentido, visto a conquista húngara
nas Olímpiadas de cinco anos antes. O clube de Karellas
Porém, antes disso, em março, Sebes foi deposto de
foi impedido de jogar as quatro últimas partidas do cam-
seu cargo de treinador, depois de uma derrota em um
peonato de 1957, os contratos com os húngaros foram
amistoso. Outro jogo amigável também serviu como
extintos pela FIFA, o título ficou com o Olympiacos e o
instrumento político, seis meses depois. A Hungria foi
Ethnikos voltou a ser o que era, um coadjuvante.
a Moscou enfrentar a URSS e a vitória húngara, inédita,
não caiu nada bem para os soviéticos. A situação entre Puskás voltou à Grécia. Não como um jogador, aquele
os dois países atingiu o ápice no mês seguinte, quando que precisou se reinventar ao ser banido, junto com seus
a população exigiu a volta de Nagy, visando um nível de colegas de seleção, e que então — já em idade avançada
independência do comando soviético. A cúpula do partido para os padrões físicos da época — foi protagonista da
comunista, então, chamou a ajuda do exército soviético, soberania merengue, com as três conquistas da Copa dos
que de pronto atendeu, pois a vitória popular significaria Campeões da Europa e inúmeros títulos nacionais, como
o enfraquecimento do regime como um todo. se ainda precisasse provar algo a mais para ser considera-
do um dos cinco melhores jogadores da história mundial.
Os jogadores do Honvéd já não estavam na Hungria quan-
do o protesto foi finalmente reprimido pela Operação Ferenc voltou como técnico e, durante quatro anos, no
Vendaval, em 10 de novembro, já que o time liderado por início da década de 1970, dirigiu o Panathinaikos, con-
Puskás disputava contra o Bilbao as oitavas-de-final da quistando dois campeonatos locais e chegando à final da
recém criada Copa dos Campeões da Europa, valendo- Copa dos Campeões de 1970/71, quando perdeu a final
-se do confronto iminente para saírem do país semanas para o Ajax de Johan Cruijff. Pode ter demorado e não
antes. Na Espanha, o Honvéd saiu derrotado por 3 a 2, e, ter sido da forma prevista, mas Puskás chegou, sim, ao
pela situação caótica em Budapeste, a partida de volta seu destino grego.
foi transferida para Bruxelas, onde, após um empate, o
Honvéd foi eliminado.
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T
odo clube brasileiro que guarda uma Taça Teresa O troféu era disputado em jogo único até 1964. A idéia
Herrera em sua sala de troféus lhe reserva um inicial era arrecadar fundos para a população menos
lugar especial. Um título internacional, é verdade, favorecida e daí vem a origem do nome da taça. Teresa
mas qual o tamanho real e verdadeira importância desse Herrera nasceu em 1712, quando Corunha era um povoado
troféu? Antes disso, porém, a primeira pergunta é: quem com cerca de 12 mil habitantes. A região estava em plena
foi Teresa Herrera? guerra de sucessão entre os Bourbons e Habsburgos.
O troféu é disputado na cidade galega de La Coruña desde Teresa perdeu seu pai com apenas quatro anos de idade.
1946, quando a Europa começava a respirar novamente Precisou buscar ajuda fora de casa para seus nove irmãos,
após o fim da Segunda Guerra Mundial. Por ser jogada quase todos vitimados por doenças. Herdou, porém, a
desde então, a taça ganhou uma tradição peculiar. Além casa onde viviam seus pais e ali fez um lar para ajudar
disso, o troféu em si levava quilos e mais quilos de pra- mulheres doentes. Sua dedicação e fé lhe renderam a
ta e outros tantos em ouro, o que lhe atribui um valor reputação de “velha bruxa” e “a mulher dos demônios”,
inestimável, sobretudo num país como o Brasil, em que pois Teresa Herrera percorria de joelhos o trajeto de sua
derreteram a Taça Jules Rimet. casa até a igreja de San Nicolás, onde rezava diariamente.
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A
s imagens foram fortes, tanto nas ruas de
Barcelona, naquele 1º de outubro de 2017, quan-
to dentro do estádio Camp Nou. Mais de mil de
pessoas ficaram feridas pela Polícia Nacional enquanto
tentavam exercer o direito do voto num controverso
referendum sobre a independência da Catalunha. No
âmbito esportivo, a maior bandeira representativa da
região no futebol de elite tinha uma grande chance de
mostrar ser, como se intitula, ‘Més que un club’. Não
foi o que aconteceu.
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61 Dias da Costa
Ilustração: Guga
A mitologia é poderosa. Muitos meses depois da capital nhecimento mundial e o clube transformou-se nos anos
catalã ter caído nas mãos das divisões franquistas, Madri 1930 em um dos grandes símbolos esportivos da esquerda
ainda resistia ao assédio dos tanques e aviões dos falan- política. Ao contrário do Barcelona ou do Athletic Bilbao,
gistas com o apoio alemão e italiano. O último bastião clubes de cunho nacionalista associados a uma direita
do republicanismo foi sem dúvida a capital espanhola, e conservadora, fosse catalã ou basca, os adeptos do Madrid
ainda que quarenta anos tenham limpado essa herança, eram vistos como esquerdistas, internacionalistas, ope-
vinculando Madri definitivamente ao centralismo do rários ou de origem popular. Eram o verdadeiro clube
regime, os últimos tiros da guerra foram disparados no do povo espanhol da nova República, podia dizer-se. De
céu da cidade. certo modo, pode-se mesmo afirmar que o Madrid foi o
clube do regime, mas não do regime franquista, e sim do
Naturalmente que o triunfo de Franco ajudou a limpar
regime republicano. Vários dos seus dirigentes, treina-
essa memória e a história foi reescrita. Os grandes órgãos
dores e presidentes provinham do universo republicano
institucionais da cidade foram entregues a franquistas —
e socialista e foi nesse período, entre 1932 e 1936 — como
como passou, aliás, em todo o país, Barcelona incluída — e
começa a Guerra Civil —, que o Real Madrid conheceu o
isso incluía também os clubes de futebol. Em Madri, bri-
sua primeira era de ouro, no que diz respeito a títulos ,
lhavam dois emblemas rivais. O Atlético caiu nas mãos do
uma etapa descrita em detalhes por Sid Lowe, no seu livro
exército, que o refundou com o nome de Atlético Aviación
Fear and Loathing in La Liga.
de Madrid e o transformou, de fato, no clube favorito
do regime franquista, dando-lhe benefícios e ajudas O conjunto venceu duas das cinco ligas disputadas durante
extra-esportivas que o ajudaram a ser uma das grandes a República — a de 1932 e de 1933 — e ainda duas das novas
forças competitivas dos anos que substituíram a Copa del
1940. O Madrid Club de Fútbol, Rey com a mudança de regi-
por outro lado, foi progressi- me. Nesses anos, atuavam pela
vamente ostracizado. equipe madrilenha não só os
melhores jogadores da capital,
Por quê? Precisamente por-
como ainda dois dos maiores
que, nos dias da guerra, o
mitos do futebol catalão, o
Madrid tinha se posicionado
guardião Ricardo Zamora e o
do lado da causa republicana
magistral Pep Samitier, que
sem nenhum tipo de pudor.
declararam publicamente em
Era preciso pagar o preço da
várias ocasiões a sua simpatia
insolência. Oito anos antes,
pelo regime republicano e que,
o clube que, desde a sua for-
por isso, tiveram que se exilar
mação tinha uma orientação
na França durante a guerra,
popular, de esquerda e de ca-
atuando pelo Nice.
ráter republicano, apesar de
ter aceito o título Real ofereci- No campo de Chamartín, onde
do pelo monarca Alfonso XIII jogava em casa a equipe me-
— como era natural —, tinha rengue, conviviam distintos
tomado a radical decisão de elementos de condição política
unir-se ao processo revolucionário da República. variada, mas a predominância republicana e socialista foi
se fazendo evidente a tal ponto que, em 1935, a vitória
Como conta Phil Ball no seu livro sobre o clube, White
nas eleições para a presidência do conhecido socialista
Storm, tudo começou no dia 14 de Abril de 1934. Por acla-
Rafael Sánchez-Guerra levou um sócio conservador e
mação dos sócios do clube, o Madrid deixou de ser Real
monárquico, que tinha sido também jogador, treinador
Madrid para ser apenas Madrid Club de Fútbol — o nome
e dirigente, a decidir abandonar o clube. Chamava-se
oficial da sua primeira fundação —. retirando também
Santiago Bernabéu e voltaria, anos mais tarde, para re-
do seu emblema a coroa, adicionando uma faixa diagonal
cuperar o clube das cinzas em que a guerra civil o tinha
roxa. A cor permaneceu presente ainda que, progressiva-
deixado.
mente azulada, tivesse um simbolismo muito próprio, já
que a nova bandeira republicana tinha substituído uma das Em 1936, depois de cinco anos complexos de regime re-
faixas vermelhas da bandeira da monarquia por uma roxa. publicano, repleto de golpes e contra-golpes, começou
a Guerra Civil espanhola. Poucos meses depois, os sócios
Essa homenagem do Madrid às suas origens emocionais
do clube decidiram unir-se ao projeto de coletivização
iria se perpetuando no tempo de uma forma muito espe-
popular e votaram por abandonar a direção em favor de
cial, a do segundo uniforme de cor roxa, que habitual-
um Comitê Popular, ao estilo comunista, que iria gerir
mente utiliza desde os anos 1950. Um vínculo emocional
o clube nos anos seguintes a partir de um grupo de diri-
com esse republicanismo nunca esquecido.
gentes ligados diretamente ao regime republicano.
A decisão de abraçar a República valeu ao Madrid o reco-
Esse movimento seria responsável pela tentativa do clu-
62
be de transferir-se para a liga catalã — rejeitado pelo alistados no exército falangista por encontrar-se no
Barcelona —, quando se viu impossibilitado de disputar a momento do início da guerra em zonas ocupadas pelos
liga nacional por culpa do conflito armado e também pela franquistas — e, sobretudo, perdeu todo o seu capital
cessão das instalações do clube para manobras militares material. O estádio Chamartín ficou destroçado pelos
do exército republicano na defesa da capital. bombardeamentos e o clube, coletivizado, tinha perdido
toda a capacidade de se sustentar. Estava à beira de desa-
Todo esse processo de caráter popular beirando o anar-
parecer e, para muitos oficiais do regime franquista — que
quismo foi coordenado por Pablo Hernández Coronado,
já tinham apostado todas as fichas no Atlético de Aviación
personagem fundamental da época em que associou o
de Madrid, como explica o historiador do clube, Bernardo
clube com a causa dos republicanos, realizando vários
Salazar, na sua variada obra sobre os “colchoneros” —,
jogos para arrecadar dinheiro para sustentar o Exército
esse seria o seu destino.
Popular Republicano na frente. Ao mesmo tempo, as
terríveis matanças dentro da própria Madri dos oficiais Não foi assim. Nos anos posteriores à Guerra Civil, o
considerados conservadores ou monarquistas por parte Madrid sobreviveu, mas com muito custo. Em 1941,
dos milicianos comunistas e anarquistas encontrou forte Santiago Bernabéu decide finalmente aceitar o cargo de
oposição num Madrid que se afirmou como um clube Presidente que recusara dois anos antes e toma em mãos
profundamente solidário e democrático. Mesmo nos reconstruir o clube do zero. Sem qualquer apoio do regi-
momentos de maior oposição, vários dirigentes simpa- me, numa primeira etapa Bernabéu sofre uma década de
tizantes do regime republicano acolheram em suas casas penúria esportiva em que o Madrid não conquista qualquer
os perseguidos do regime — onde se incluía Santiago título, enquanto todo o dinheiro recolhido é destinado a
Bernabéu —, ajudando na sua sanear as contas e recuperar e
posterior fuga da cidade para reconstruir o estádio que mais
territórios ocupados pelos tarde levaria o seu nome.
falangistas.
São os anos de glória do
Foi precisamente esse gesto, Atlético de Aviación e, ironi-
como conta Sid Lowe na sua camente, do Barcelona, com
obra, que salvou mais tarde o vários membros do regime
clube do desaparecimento, já falangista na sua direção es-
que os regressados Bernabéu e portiva. Nesse processo de
Adolfo Meléndez, os dois pri- aceitação do Real Madrid — o
meiros presidentes do pós- clube tinha sido forçado pelo
-guerra, souberam utilizar regime a recuperar o título de
a sua influência conquistada Real —, foi necessária muita
com os franquistas durante diplomacia política por parte
os anos da guerra para res- de Bernabéu e de Raimundo
gatar o clube destroçado pelo Saporta, o seu fiel número 2,
cerco de três anos à capital. nos corredores do poder, mas
Nem todos tiveram a mesma só em meados dos anos 1950,
sorte. Dois dos membros da com a chegada de Di Stéfano,
última presidência do clube antes da sua coletivização é que o Real Madrid volta a poder competir esportiva-
— os vice-presidentes Valero Rivera e Gonzalo Aguirre mente com os melhores. Tinham passado quase 15 anos
— foram fuzilados por milícias franquistas, em 1937, e desde o final da guerra, 15 anos de penúria e de profundo
Sánchez Guerra foi primeiro condenado à morte e mais afastamento do clube do regime franquista. O tempo
tarde conseguiu escapar da prisão e exilar-se na França. necessário para Bernabéu cicatrizar feridas antigas e
eliminar o passado republicano e socialista do clube,
Ao contrário da lenda, que conta a história de como
algo que permaneceu nas décadas seguintes, mas que
Josep Sunyol, presidente do Barcelona, foi morto pelos
nunca foi esquecido. Na sua essência, o Real continua a
franquistas para reforçar o caráter anti-Franco do clube
ser esse mesmo Madrid Club de Fútbol, um clube de alma
catalão, a sua morte não foi casualidade. Sunyol acabou
republicana, travestido, no entanto, de monarquista.
por ser abatido, não por ser perseguido pelos franquistas,
mas sim porque se enganou num controle militar e fez
a saudação republicana a uma patrulha falangista por
engano. Já a direção do Madrid sofreu uma perseguição
clara e política e as suas mortes foram preparadas e pla-
nejadas com antecipação. Não foram as únicas.
63
64
U
m processo jurídico movido pelo Real Madrid CF
contra uma pequena loja de roupas pedia uma
indenização de €1.500. O motivo é uma camisa de
um clube fictício: El Madrid Republicano. O escudo desse
time é similar — pra não dizer idêntico — ao utilizado
pelos Merengues entre 1931 e 1940. O mesmo círculo com
uma faixa diagonal lilás e as três letras, “MCF”, sobre-
postas em alusão ao Madrid Club de Fútbol, porém sem
a coroa, símbolo monárquico concedido pela Casa Real
espanhola ao clube em 1920.
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Outro caso envolvendo o Real Madrid e a capacidade de pedido formal à Casa Real, através do deputado Gabino
se adaptar comercialmente, de acordo com a conve- Bugallal y Araujo. O pedido outorgava ao rei Alfonso XIII
niência, foi uma publicidade do clube e de um de seus a presidência honorária do clube.
patrocinadores, em um mercado distante da Espanha.
O pedido foi aceito e, quatro meses depois, em fevereiro
O Real Madrid seguiu os passos do Manchester United
de 1909, o clube pôde se proclamar oficialmente Real,
no início dos anos 2000 e foi atrás de novas receitas que
além de usar a coroa em seu escudo. O mesmo ato foi
pudessem financiar os galacticos Zidane, Figo, Ronaldo,
repetido sucessivamente pelos clubes que também pre-
Beckham, Roberto Carlos, Raúl e cia.
tendiam ter a denominação. Em 1910, foi a Real Sociedad
Em 2014, o clube mantinha a política comercial no mer- que conseguiu o título.
cado asiático, oriente médio, além de outros acordos
Aitor Lagunas, editor da revista Panenka, falou com a
globais ou regionais, e anunciou um patrocínio do banco
Corner sobre alguns clubes que adotaram o nome. “Aqui
de Abu-Dhabi, o Nbad. Para que a marca pudesse ativar o
na Espanha, naquele momento de Afonso XIII, que era
patrocínio em seu território, nos Emirados Árabes Unidos,
o avô de Juan Carlos I, era um rei que não tinha muitas
um pequena grande mudança no escudo foi necessária.
coisas pra fazer e gostava muito de futebol. Apoiou o
A pequena cruz presente na parte superior da coroa do esporte de alguma maneira e devolveram esse interesse
escudo, que simboliza a relação entre a monarquia es- e preocupação com essa homenagem ao rei. O caso da
panhola e a igreja católica, foi removida, afinal, trata-se Real Sociedad é de uma cidade com a qual a Família Real
de um país fundamentalista muçulmano. O mesmo foi tinha muitos vínculos, San Sebastián era uma cidade a
visto no Catar, em uma publicidade da Adidas, noticiado que iam veranear”, emendou Lagunas.
no Globoesporte.com, por Thiago Dias.
Por que tantos clubes por ser o único torneio nacional até a tentativa de criação
da Liga Española de Foot-Ball, que não deu certo, mas
levam o nome Real na abriu caminho para a formação da Primera División na
temporada 1928/29.
Espanha? No entanto, a simbologia do título de realeza não refle-
te — necessariamente — o matiz ideológico ou o perfil
O Real Madrid é, sem dúvidas, o mais conhecido deles, socioeconômico dos torcedores ou sócios dos clubes. “No
mas são muitos. Real Sociedad, Real Zaragoza, Real Betis, caso do Espanyol, é onde pode haver uma origem ideo-
Real Valladolid, Real Oviedo. Alguns são chamados sem lógica. É um dos casos em que melhor se manteve essa
o "título de nobreza", outros levam a realeza no nome, linha, sempre, durante toda a história. Antes da Guerra
mas quase nunca são chamados assim, tal como o [Real Civil já tinham uma rivalidade com os seguidores mais
Club Deportivo] Espanyol e o [Real Club] Deportivo de catalanistas do Barça e os mais espanholistas do clube, que
La Coruña. E foi justamente pelo clube da Galícia que transcende totalmente o futebolístico. Após a Guerra Civil,
tudo começou. essa rivalidade se manteve. Depois da era Franco, com
Em outubro de 1908, La Junta Directiva decidiu esfor- a transição democrática, a partir de 1975, isso diminuiu
çar-se para conseguir o título de nobreza. Foi feito um bem, mas com o ressurgimento do debate identitário e da
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independência da Catalunha, voltou de alguma maneira. Nas Ilhas Baleares, onde o idioma falado é uma variação
Não pode ser feita uma separação limpa entre seguidores do catalão, o principal clube foi fundado com o nome
de um ou outro clube segundo a ideologia. Creio que há do monarca entusiasta do futebol no país: “No caso do
seguidores do Barça, catalães, que querem que a Catalunha Mallorca, é curioso, pois o clube se chamou Afonso XIII”,
continue sendo parte da Espanha, e também há seguidores frisou Lagunas em tom bem humorado.
do Espanyol que são independentistas. De fato, houve
A relação é histórica e precisa ser contextualizada, como
uma assembléia do Espanyol por volta de 2012, em que
observou Aitor: “Obviamente, no início do século XX
um dos sócios mostrou uma bandeira separatista com
estar bem com a Família Real era algo que certa parte
as cores do clube e se formou um escândalo brutal, pois
da burguesia podia interpretar como algo positivo. Em
a maioria dos outros sócios eram totalmente contrários
termos gerais, no século XXI, na sociedade espanhola,
a esse processo”.
o peso, a importância e a simpatia que a Casa Real gera
O Espanyol tem seu nome oficial em catalão, há uma é pra baixo. Mas também é verdade que nenhum clube
certa dicotomia e talvez essa seja a idéia, de transmi- pleiteou renunciar à Coroa. Mas nenhum outro pediu
tir ao mesmo tempo catalanismo e espanholismo. Mas para usar a Coroa no escudo, entre os que não tinham.”
certamente o nome do clube gerou alguma discussão:
Era a vez de Lagunas falar de seu time de coração, da sua
“Em princípios dos anos 90, se especulou a possibili-
cidade natal: “Eu, como torcedor de um clube que leva
dade de que o Espanyol mudasse de nome, e me lembro
o nome Real — Zaragoza —, não me aporta nada. Sou
que um dos nomes que foram levantados foi Olympic de
republicano, creio que a melhor maneira de governar
Catalunya. Tratando de alguma maneira de se desligarem
um país é essa. E não me causa nada que meu time leve
absolutamente de qualquer idéia política ou associação
uma coroa no seu emblema ou tenha uma denominação
com essas idéias que o Espanyol teve no seu passado”,
monárquica. Também entendo que seja histórico. É muito
concluiu Aitor sobre a relação entre os nomes dos clubes
polêmico cogitar a troca do nome. E de alguma maneira
e as ideologias políticas na Catalunha.
forma parte da idiossincrasia do próprio clube.”
Já no País Basco, região onde o separatismo já chegou
No entanto, o Zaragoza foi o último, entre os clubes consi-
a extremismos, Aitor Lagunas falou que não há uma
derados de elite da Espanha, a requisitar o título de nobre-
relação direta e clara nas denominações dos principais
za. Além disso, o clube foi fundado justamente no período
clubes bascos: “Uma grande parte dos torcedores da Real
republicano. “No caso do Zaragoza, é uma coisa estranha.
Sociedad são nacionalistas bascos e falam em euskara o
Pois nasceu na República, quando nasceu já não havia um
nome do clube, Erreala.”
rei. Durante os anos da República, de 1931 a 1936, nesses
Aitor expandiu a questão para as demais regiões da cinco anos, todos os times que anteriormente já tinham a
Espanha: “Nem em Astúrias, que é uma comunidade denominação Real, como os que falei, tiveram que trocar
muito vinculada com a Monarquia, pois afinal o herdeiro de nome. O novo regime republicano entendia que não
da Coroa é o príncipe de Astúrias, tal como no Reino Unido podia haver nenhum tipo de apologia à Monarquia. O Real
é o príncipe de Gales. Os principais clubes asturianos — Madrid passou a se chamar “Madrid”. A Real Sociedad
Real Oviedo e Real Sporting de Gijón — não têm uma passa a ser Donostia, que é a denominação em basco da
relação ideológica. Oviedo é uma cidade mais burguesa, cidade de San Sebastián. Já o Zaragoza é fundado em 1932,
e talvez mais conservadora. Já Gijón é uma cidade in- em plena República, e outorgam o título Real em 1951,
dustrial com uma população muito mais operária. Há quando não existia um rei na Espanha. Estava Franco no
um outro clube, o Real Avilés. Mas não vejo essa relação poder, um ditador, até 1975, quando morre e proclamam
com a Monarquia.” Juan Carlos I como Rei. É muito estranho, pois entre os
grandes clubes, nenhum nasceu no período republica-
Na terra do ditador espanhol Francisco Franco, Lagunas
no, só o Zaragoza, e recebe a denominação Real quando
não enxerga nenhuma associação dos principais clubes
não havia um rei. Apesar de tudo isso, uma grande parte
galegos: “Na Galícia, tanto o Celta quanto o Deportivo
dos torcedores, quando os meios televisivos falam do
de La Coruña são ‘Reais’ e os dois têm uma massa de
Zaragoza, sempre deixa um sabor ruim, pois parece que
seguidores muito galleguistas, portanto não são lugares
omitem uma parte importante do nome, e que o correto
de ideais mais monárquicos.”
seria Real Zaragoza, como se houvesse um certo orgulho
Na Andaluzia, Lagunas plasmou o principal caso entre os em se chamar assim. Mas repito, isso não tem nada a ver
clubes considerados de elite, em que há uma incoerência com a ideologia do torcedor, talvez o cara seja republicano
da simbologia: “Em Sevilha, vamos encontrar dois clubes, ideologicamente, mas gosta que o clube se chame Real
um com uma denominação real e o outro sem. No entanto, Zaragoza”, sintetizou Lagunas.
o Sevilla Fútbol Club é um clube tradicionalmente dos se-
Com o passar do tempo, algumas características atribuídas
nhorios, da burguesia local, mais aristocrático, enquanto
a uma torcida ou um clube se perdem: “É um elemento
o Real Betis Balompié é o clube dos trabalhadores. Isso
histórico com seu reflexo nos escudos e nas denomi-
mostra que são heranças do passado de clubes com mais
nações dos clubes. Mas no caso de Madri, é impossível
de um século de vida.”
traçar uma diferença sociológica entre os torcedores do
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Real Madrid e do Atlético de Madrid. Já é possível ver de outra maneira. Oficialmente, o Athletic disputaria
claramente isso com relação ao outro time da capital, segunda divisão e sem estádio, pois o Metropolitano foi
que é o Rayo Vallecano. Tanto o Real quanto o Atleti são destruído durante as batalhas do cerco à Madri. Por isso,
muito transversais. Historicamente, tudo bem, a torcida os dirigentes viram com bons olhos a associação com
colchonera tinha uma base mais trabalhadora e mais o regime vencedor. Em 4 de outubro de 1939, a união
humilde, mas isso não existe mais. E, segundo se sabe, foi oficializada. O Athletic Club de Madrid passaria a se
Felipe VI tem fama de ser torcedor do Atlético de Madrid, chamar Club Atlético Aviación.
um time que não leva a coroa no escudo. O primeiro jogo
O Atlético passou a ser controlado por militares, que
que ele escolheu levar a sua filha, que pode vir a ser rainha,
trouxeram uma organização que o clube não dispunha.
a Leonor, se ainda existir a Monarquia em 2035, foi uma
Além disso, créditos financeiros com condições especiais,
semifinal de Champions League entre Atlético de Madrid
que permitiram a reconstrução do Metropolitano. A fu-
e Bayern, em 2016”, finaliza Lagunas.
são permitiu que reunissem os melhores jogadores dos
Como se não bastasse, a Federação Espanhola de Futebol, dois plantéis, e todos os jovens com idade para prestar o
se chama oficialmente: Real Federación Español de Fútbol, serviço militar que tivessem algum potencial acabavam
e claro, a figura de Afonso XIII foi fundamental para a indo para a anova agremiação.
fusão entre a Federación Española de Clubs de Football
Phil é nascido no Canadá em 1957 e radicado na Espanha
e a Real Unión Española de Clubs de Foot-ball, já que
desde o final da Guerra do Golfo. Ele conta no livro que o
a FIFA não permitia que países filiados tivessem duas
General Moscardó, homem de confiança de Franco, ins-
federações. Coube ao rei interceder, para que a filiação
taurou um play-off de permanência na Primera División
fosse aceita, finalmente, em 1913.
entre o Atlético Aviación e o Osasuna. Em jogo disputado
em Valência, os Colchoneros venceram por 3 a 1 e garan-
tiram vaga na divisão de elite do futebol espanhol.
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direito de
As entrevistas mais complexas costumavam a vir dos
treinadores e de seus pensamentos modernos sobre o
jogo, como eram os casos dos holandeses: Cruijff, van
Gaal e, naquele momento, Rijkaard.
esquerda
Mas em fevereiro de 2007, os jornalistas ainda não esta-
vam prontos para Oleguer. Na época, o jogador escreveu
um polêmico artigo para a revista Berria com o nome
“Buena Fe”, analisando a condenação e o julgamento do
membro da ETA [grupo separatista basco], Iñaki de Juana
Chaos, fazendo assim um paralelo com a condenação e
absolvição de alguns líderes de direita no país.
Oleguer Presas: No
dizendo que “O Estado de Direito possui muitos espaços
obscuros” e ainda pontuou que a situação exalava um
“cheiro de hipocrisia”.
Por Giovanni Ghilardi A escrita, no entanto, não era novidade para Oleguer.
Tanto é que o ex-lateral possui mais artigos e textos
publicados que grandes atuações com a bola nos pés. Um
ano antes dessa polêmica, por exemplo, ele e o poeta Roc
Casagrán escreveram juntos o livro Camì d’Itaca [Caminho
de Ítaca], em que Presas deixa claro seu posicionamento
E
nacionalista catalão e, ao mesmo tempo, antifascista.
stádio La Rosaleda, Málaga. Escanteio para o
Barcelona cobrar. Lançam na área e, depois de Tempos depois, Oleguer ainda recebeu a convocação para
uma rápida confusão, a bola acaba sobrando a Seleção Espanhola do então treinador Luis Aragonés,
para Oleguer. O lateral chuta um pouco desajeitado, no mas deixou claro seu “modo de ver o mundo” dizendo
meio do gol. O arqueiro tinha saído mal e não conseguiu que “não tinha o sentimento” para vestir a camisa de
se recuperar a tempo. Gol. O primeiro dele com as cores La Furia Roja.
blaugranas, do time que sempre torceu, mas ao mesmo
Dessa maneira, o caminho natural foi vestir o manto que
tempo, único e o último de uma carreira que, dentro de
realmente amava, o da Catalunha, por algumas poucas
campo não durou muito.
partidas. Bastava para o lateral, que colecionou títulos no
Xavi, Puyol, Ronaldinho e Iniesta pulam sobre o camisa 23 Barça e teve uma passagem discreta no Ajax, se aposentar
na comemoração. Era um time histórico, cheio de estrelas, do futebol em 2011, aos 31 anos.
com o autor do tento sendo, talvez, o mais discreto entre
No ano seguinte, mais uma grande decisão. Oleguer foi
os titulares. Mas isso só dentro de campo.
concorrer ao parlamento catalão, mas não teve sucesso.
Se esse gol contra os Boquerones foi um filho único, as Derrota nas urnas pra quem se acostumou a ganhar nos
idéias na cabeça do ex-jogador sempre encontraram gramados com grandes companheiros como Ronaldinho,
muitas companhias. Estudioso e leitor assíduo de di- Deco e Eto'o.
versos temas, Oleguer não se contentou com os títulos
O lateral nunca se destacou tecnicamente nos tempos de
futebolísticos, buscou também um diploma de economia
atleta, mas sim pela perseverança que, no entanto, con-
e uma afiliação ao partido político independentista e de
tinua viva. Volta e meia, Oleguer continua tecendo suas
ideologia socialista Candidatura d’Unitat Popular [CUP].
críticas e observando se surgiria a oportunidade de um
A simpatia com os princípios da independência catalã grande movimento político e ideológico que permitisse
e o maior apreço pela esquerda política, lado oposto ao novamente uma comemoração, como aquela no estádio
que atuava no futebol, não foram grandes surpresas pra em Málaga.
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J
Nessa atmosfera de aparente indiferença pelo já inédito feito
ulho de 2010. Três amigos, transitando por motivos
da Espanha [a chegada numa final de Copa do Mundo], não
diversos pela Europa, decidiram se encontrar em
foi tarefa fácil encontrar uma indicação precisa de um lugar
Barcelona para assistir à final da Copa do Mundo.
decente para se assistir à final. No domingo pela manhã,
O objetivo, claro, era acompanhar a previsível decisão da-
entre homens de chinelo comprando jornal na banca e mu-
quele Mundial na África do Sul: Espanha x Brasil. Como a
lheres levando cachorros para fazer xixi na rua, as respostas
racionalidade entra em coma [e sai de campo] de quatro
blasé prevaleciam nas bocas catalãs: "Hmmm, não sei se
em quatro anos, esse jogo nunca existiu. Só um dos lados
haverá algo na Plaça de Catalunya…", "Certamente não terá
cumpriu as expectativas e, assim, espanhóis duelaram com
nada nas Ramblas…" , "Perdón, pero que partido?". A luz
holandeses pela primeira taça de ambos. Coube àqueles
veio quando uma senhorinha, que fumava tranqüilamente
jovens vintões a experiência de acompanhar, das ruas da
seu cigarro num banco da calçada, indicou: "Tentem a
Catalunha, quem seria o novo campeão mundial.
Plaça de Espanya".
A final aconteceria num domingo e, dois dias antes, uma
Linha 1 Vermelha do Metrô, Estação Espanya. Um mar de
gigantesca manifestação tomou as ruas da cidade catalã.
gente, comparável ao da manifestação de dois dias antes,
A maior da história, até aquela data. Quase meio milhão
aguardava o início da partida defronte a um telão enorme.
de pessoas clamavam pela independência da Catalunha,
Era tanta gente, provavelmente acima das expectativas,
carregando bandeiras e entoando cânticos favoráveis à
que foi necessário instalar um segundo monitor que trans-
desanexação da Espanha.
mitisse a partida.
Entre os manifestantes, um grupo vestido com uma di-
De Jong furou Xabi Alonso, Arjen Robben perdeu dois gols
ferente camisa canarinho: “Catalunya Al Mundial Brasil
incríveis e Andrés Iniesta homenageou o amigo Dani Jarque
2014”, era o desejo deles para que a Seleção Catalã se fi-
na comemoração do gol que valeu o inédito título mundial
liasse à FIFA e assim tivesse chances de disputar a Copa no
para a Espanha. A Plaça de España, lotada, viu uma ebulição
Brasil, dali a quatro anos. A iniciativa não triunfou, mas
humana, com buzinaço [era a Copa da Vuvuzela] e fogos
ficou clara, mais uma vez, a importância representativa
de artifício que se espalharam por toda a cidade. As ruas
de uma seleção de futebol.
de Barcelona ferveram por horas a fio, fazendo o domingo
Outro destaque futebolístico da manifestação foi a presença entrar na segunda, com jeito de sábado.
de bandeiras da Holanda. A Espanha, território de que a
A Catalunha, que há algumas dezenas de horas bradava
massa manifestante queria deixar de participar, enfren-
pela sua independência e debochava do feito futebolístico
taria holandeses dali a 48 horas. Não bastava apenas dizer
espanhol, festejou o título com a devida emoção que um
que torceriam contra, era preciso levantar, literalmente, a
feito desses merece. Tentar entender é bobagem. Ainda bem
bandeira do oponente.
que a racionalidade passa longe de uma Copa do Mundo.
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Entrevista e fotografias:
Fernando Martinho
M
iquel é um jornalista e antropólogo cata- cação digital, mas surgiu a possibilidade de fazer em papel
lão. Escreveu dois livros sobre comunicação: pela da Editora UOC, da Univesitat Oberta, de Barcelona.
Optimismo para Periodistas e La Comunicación Assim nasceu Optimismo para Periodistas.
en la era Trump. A abordagem é mais mercadológica do
que acadêmica, afinal, Pellicer trabalhou na redação do El E esse título, é pra realmente transmitir otimismo?
Mundo Deportivo e no departamento de comunicação do Soa um pouco motivacional.
FC Barcelona, gerindo as páginas internacionais do clube. Exato, mas nós sempre dizemos que não é um livro de
A Conversa foi em 2015, quando ele ainda trabalhava no auto-ajuda. Mas sim, é motivacional, porque todo mun-
clube culé, e o papo foi lá mesmo, no Camp Nou. Discutir do fala da crise do jornalismo, que a profissão está muito
o jornalismo esportivo, separatismo catalão, o impacto de ruim. Porém, há oportunidades em tempos de crises pra,
Neymar e seus livros foram a tônica da conversa. justamente, refundar o jornalismo e as nossas funções
como jornalistas. Se olharmos pro que fazíamos no início
Comente sobre teu livro “Optimismo para dos anos 2000, ninguém faz mais, ou sequer aquilo que
Periodistas” com Marta Franco, como surgiu a idéia? aprendeu na faculdade. Portanto, temos que ser flexíveis
e ver as oportunidades que as crises oferecem.
Muito fácil. Conhecia a Marta através do Twitter, adorei o
trabalho que ela fazia no blog dela. Eu estava começando
E o jornalismo esportivo? Você acha que ele também
com o meu blog e decidimos escrever alguns artigos juntos
precisa ser refundado?
para explicar coisas que nos interessavam no jornalismo.
Sobre as novas rotinas jornalísticas, como tinha que ser a O jornalismo esportivo faz parte da minha vida e é im-
redação de um jornal num período de ferramentas digitais portante pra mim. Quando jovem trabalhei em jornalismo
ou como deveria ser aquilo que se denominava “jornalismo político, cidadão, cultural e fiz algumas coisas no Mundo
cidadão”. Escrevemos três artigos e percebemos que foi Deportivo e acabei ficando 10 anos. Pra minha formação
uma boa experiência. Temos estilos diferentes, mas como profissional isso é muito importante. Muitas vezes se re-
encaixamos bem, nos perguntamos: por que não escrever lega o jornalismo esportivo a um nível inferior. Eu não
um livro? Buscamos falar sobre a crise do jornalismo, so- vejo assim, acredito que é um âmbito mais da vida. Você
bre ferramentas que podiam ser usadas, foi bastante fácil pode gostar mais de futebol ou menos. Mas o jornalismo
escrever, pois tínhamos idéias e estudos já realizados. É esportivo transcende o futebol. É sobre contar histórias de
verdade que inicialmente pensamos em fazer uma publi- pessoas que muitas vezes sacrificam a sua vida para bater
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Mas o mercado de língua espanhola compreende aquilo o Real Madrid ganha uma Champions League, tem um
que se faz em Buenos Aires, Cidade do México, ou seja, o impacto global.
mercado de consumo não é só a Espanha. Esse é um grande
erro que os meios de comunicação espanhóis cometem. O Barça sempre teve um histórico de jogadores
Acredito que, se potencializasse a comunicação para todo brasileiros, desde Evaristo, passando por Romário,
o mercado de fala hispânica, haveria mais êxito. Alguns Ronaldo, Rivaldo e Ronaldinho. Mas, justamente
veículos como ElDiario.es, que surgiram digitalmente, no período de explosão das redes sociais e de alcan-
teriam que se comunicar com todo esse universo, é um ce global da marca Barcelona, o time não contava
mercado muito amplo. Já os veículos consolidados, como com uma grande estrela brasileira. Até que chegou
El País, El Mundo e outros, pecam por ser muito locais. Neymar, em 2013. É claro que uma contratação dessa
Um exemplo que sempre dou, que não entendo, que à 1h também tem um cunho de marketing. Qual foi o im-
da manhã, os meios esportivos mostram a capa do dia pacto no âmbito digital da transferência de Neymar?
seguinte e dão boa noite. Justamente a essa hora, você vai
Quando contrataram o Neymar, o Barça abriu uma conta
dormir aqui, mas tem todo um mercado que está sendo
no Twitter e uma versão do site em português adaptado
desaproveitado, gente que está jantando, na América Latina.
para o léxico brasileiro, porque o Brasil é um mercado es-
É uma falta de estratégia.
tratégico e a presença do Neymar possibilitava a inserção
do Barcelona nesse mercado de forma mais contundente.
O Barcelona e o Real Madrid tomaram esse caminho.
Sempre se acreditou que o público brasileiro era importante.
Perceberam que a Espanha era um mercado muito
Ele se tornou um embaixador do clube em nível global.
pequeno. No entanto, conseguiram conquistar vários
Acredito que a estratégia foi muito boa. Ele vende muito,
mercados em períodos de êxito esportivo acompa-
e isso passa diretamente pelas redes sociais.
nhado de uma comunicação muito ativa em diferen-
tes partes do mundo. Como funciona quando o time
não ganha títulos? É possível continuar crescendo? O Barça é talvez a maior instituição catalã. É uma
instituição global, e seu fundador não era catalão e
Existe uma música de Héroes del Silencio que dizia que
sequer espanhol, era suíço. Ele traduz seu nome pra
”não há nada para sempre”. No sentido que existem ciclos,
se “tornar” catalão: Joan Gamper.
seja no futebol, na comunicação. O Barça consolidou um
modelo de produzir excelência esportiva e institucional. O fundador do Real Madrid, sim, era catalão! Paradoxos
Vender relatos dos seus valores, mas claro que, quando da vida… [risos].
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E, por outra parte, o separatismo se conjuga com essa que a coisa termina mal. Bom, vamos abrir os olhos, pois a
internacionalidade. Uma capacidade impressionante política e o esporte são um matrimônio de muito tempo. É
de olhar pra fora e pra dentro. Houve a consulta de 9 praticamente impossível desligar uma coisa da outra. São
de novembro, que pretendia ser um referendum. Qual sentimentos humanos, ideologias… Todos os derbies ou
é a tua posição, como antropólogo e catalão? clássicos têm esse aspecto político.
Eu acredito que a declaração universal dos direitos huma-
nos, que diz que todo povo tem direito de auto-determi- Como você enxerga a concorrência interna de um
nação e direito a decidir seu futuro. Nesse ponto, o mais jornal entre sua edição impressa e online? Por
importante não é o que eu penso. Senão que se possa votar. exemplo, o Mundo Deportivo tem uma velocidade
Aplicar o Dret a decidir. Como democrata, catalão e pessoa de informação enorme no site, isso não atrapalha as
do mundo, isso é o mais importante. Depois cada um pode vendas do papel?
opinar o que quiser. Eu quero decidir sobre meus impostos, Isso é geral. Mas não me parece que tenham um estratégia
sobre a educação e sobre a minha forma de pensar, sem muito clara do que querem ser digitalmente ou no papel.
que haja uma imposição a 700 quilômetros daqui. Acho Olham muito pro dia a dia com um modelo que funcionou
que te respondi… durante muitos anos pra vender jornal, mas não acho que
vai durar muito mais tempo. É como conduzir um carro sem
E como seria um mundo sem um Barça-Madrid? É freio. Me dá essa sensação. Eu percebi, em Londres, o que
um jogo que vai muito além do futebol espanhol, ou estava fazendo o The Guardian. Parecia que não estavam
até da questão política. Se transformou num jogo de fazendo um jornal como conhecemos. Estavam fazendo
apelo global. conteúdo. Pra mim isso é uma questão muito importante.
Sinceramente, não é algo que me preocupa. Mas com cer- Não importa qual seja a plataforma se você tem uma idéia
teza se encontraria um encaixe! Da mesma forma que o clara do que está fazendo, se são conteúdos para vários
Monaco jogue a liga francesa, que o Swansea ou o Cardiff segmentos. Se você me perguntar se quero fazer um novo
joguem a liga inglesa, mesmo com a independência, acho livro, eu vou dizer que sim, e faria um livro sobre os efei-
que poderiam jogar a mesma liga. De qualquer forma, é tos do celular no jornalismo, e a coisa vai por aí, olhamos
importante destacar a beleza das manifestações políticas pro telefone de setenta a cem vezes por dia, segundo uns
no futebol. Tem gente que acha que não se devem misturar, estudos que li. Sem uma estratégia mobile, não existe mais
jornalismo.
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Um ano antes, na Argentina, surgia o Olé, um jornal que Algumas pessoas talvez achem que leis de incentivo se-
ditou tendência com capas irreverentes e títulos criativos. jam um caminho de financiamento. Pode ser, mas uma
Lá, também existia uma revista, a tradicional El Gráfico. empresa escolhe pra qual evento, publicação, ou qualquer
Em janeiro de 2018, saiu a notícia de que a redação da projeto incentivado ela vai destinar seus impostos. Se
revista fecharia. O curioso desta data é que, um ano mais você tem uma empresa e pode escolher patrocinar um
tarde, a publicação completaria cem anos. Exatamente: show da Anitta ou uma publicação, qual você escolheria?
um século. Ainda mais depois de lançar Vai, Malandra!, um show da
Anitta atrairia muito mais gente, e a marca dessa empresa
A notícia gerou comoção na imprensa mundial. Diversos
ganharia muito mais exposição. Não é difícil entender
jornalistas e leitores se pronunciaram e manifestaram
essa lógica.
seus pêsames. Mas sentimentos não pagam equipes de
reportagem, sequer estagiários. Condolências não são Entretanto, uma capa de jornal, ou até de uma revista,
suficientes para pagar a impressão de milhares de exem- transmite e carrega um peso difícil de ser equiparado
plares que eternizam relatos e crônicas nas prateleiras. nos meios digitais. Quando o jornal Extra imprimiu em
sua capa uma piada sobre o goleiro Muralha, passando
Voltando ao Brasil, muita gente lamenta a revista Trivela
a chamar o arqueiro do Flamengo, na época, somente
não existir mais. A própria Placar, chegou a deixar o grupo
de Alex, o assunto ganhou uma proporção inimaginável.
Abril durante um pequeno período, entre 2015 e 2016,
Isso só aconteceu por se tratar de um jornal impresso.
quando voltou para sua empresa mãe. Em 2018, a Placar
anunciou que sua primeira revista do ano sairia somente Livros não deixaram de existir mesmo com dispositivos
em formato digital. Houve uma reformulação de formatos, como o Kindle. Revistas passaram a ser coisa de nicho,
de propostas, mas as revistas tradicionais que formaram mais caras, e não emplacaram em suas versões para ta-
culturalmente tanta gente parecem enfrentar uma fase blets e os conteúdos perderam audiência, drasticamen-
avançada de idade em que, apesar de tanto conhecimento te, para sites. Jornais idem. Passou a não fazer nenhum
acumulado e compartilhado, o mercado — leia-se leitores sentido pagar por um conteúdo que você consegue ler
— não se mostra mais aberto. livremente, mesmo que com limitações mensais por
número de matérias. No final das contas, um leitor pode
Não é pra menos. Os conteúdos chegam por feeds.
estar interessado tranqüilamente em ler até uma dezena
Facebook, Twitter, Instagram etc são lugares freqüen-
de artigos e se satisfaz com isso ou, senão, esse limite
tados com a facilidade — não mais de um clique, mas —
ainda pode causar uma adequação no modo de consumir,
de um toque com o dedão. Laptop virou um trambolho,
fazendo que a audiência só clique nas notícias que real-
praticamente uma máquina de escrever. Dispositivos
mente julgar relevante, quebrando a lógica que favorece
como o Kindle oferecem uma alternativa pra leitura de
à publicidade.
livros e os tablets pareciam que incorporariam as revistas.
Jornais do mundo inteiro começaram a oferecer assi-
Na contra-mão, surgiram revistas como a Piauí, cujo con-
naturas do conteúdo digital. Os sites permitem maior
teúdo dispensa qualquer elogio. Na Espanha, a Jot Down
velocidade de atualização, mobilidade, por serem lidos
segue um caminho similar, de excelência na qualidade dos
em qualquer dispositivo móvel que cabe no bolso e, por
textos. À medida em que revistas como a Panenka conse-
fim, um jornal consegue oferecer mais conteúdo num
guem se estabelecer e buscar seu lugar ao sol na Espanha,
site do que num papel, onde o espaço é limitado por si e
a Corner, no Brasil, busca um lugarzinho na sombra, pois
ainda precisa ser dividido com anúncios.
no Brasil o sol tropical é muito, muito, quente.
Plataformas de streaming de música ou vídeo consegui-
Quando as pessoas choram a morte de uma revista como
ram encontrar essa carência no mercado e ofereceram
a El Gráfico, fica a pergunta: faz sentido ela existir? Um
um serviço em que fica muito clara a vantagem de se
experimento social em Londres colocou um homem com
pagar pra ter aquele aplicativo. O jornalismo, como um
um cartaz dizendo: “fodam-se os pobres”. Ele distribuía
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todo, ainda não. Emissoras esportivas estão conseguindo com um contingente mínimo necessário pra alimentar
encontrar um meio de campo, com suas respectivas plata- os sites e mídias sociais dos jornais. Se por um lado o
formas: Watch ESPN, Sportv Play, FOX Play e EI Plus. Por jornalista ou repórter pode ter perdido espaço, outros
serem detentoras exclusivas de direitos de transmissão, tipos de funções ou produção de conteúdo surgiram, um
conseguem vender seus produtos em paralelo ao que é estudante de jornalismo ou recém formado se depara
transmitido na TV. com vagas mais ecléticas que requerem profissionais
mais versáteis, capazes de lidar com múltiplas tarefas,
Um jornal, no sentido amplo da palavra, que deriva de
diferentes linguagens e diversas ferramentas, e não so-
diário, perdeu seu sentido principal, que era de trazer a
mente redatar de um texto
notícia em primeira mão. Até os anos 1990, existia uma
cena comum nas bancas de jornais próximas a pontos de Após o anúncio do fim de El Gráfico, Ariel Palacios, cor-
ônibus ou em locais de grande movimentação, que ficavam respondente da Globonews em Buenos Aires, falou sobre
cheias de pessoas olhando as manchetes de cada jornal. o legado da revista na bancada do programa Redação
Sportv: “Foi uma escola pra toda a América Latina e, de
No entanto, reportagens, histórias, análises e opiniões
certa forma, também para Espanha, Portugal e Itália. Foi
ainda podem ser consumidas diariamente, mesmo com
uma revista de influência internacional já nos anos 1920.
a concorrência de dispositivo eletrônicos, e não mais
Outra tristeza disso é que, até 2002, era uma publicação
notícias. A pausa pra ver o que tal jornalista ou especia-
semanal. A partir daí, da crise argentina entre 2001 e
lista entendeu sobre tal jogo, ou acontecimentos, parece
2002, vira mensal. O que se pensaria era que entrou em
não ter perdido seu valor. E talvez seja aí onde mora o
decadência, que cairia a qualidade. Mas não. Morreu com
segredo. Criar maiores espaços de análises, histórias,
alta qualidade. O problema eram as vendas, que caíram de
entrevistas, foto-reportagens, e nos seus sites, con-
forma drástica. Não estou nem me referindo aos momen-
teúdos em vídeo como vem acontecendo cada vez mais
tos áureos dos anos 1960 e 1970, quando se imprimiam
com lives no Facebook ou Twitter, e — até stories — no
800 mil exemplares por semana num país de 25 milhões
Instagram. As novas tecnologias trazem novos formatos
de habitantes. Mario Vargas Llosa, escritor que ganhou
de comunicação.
Nobel de literatura, comentava sobre a influência que El
Talvez encarecer o papel seja um caminho e segmentar Gráfico, escrita por jornalistas com estilos literários muito
os cadernos ou suplementos, outro. Poder adquirir “so- bons, teve na sua vida. Ele esperava que o carteiro entre-
mente” o caderno de esportes da Folha de S.Paulo, por gasse a revista em Lima, no Peru, onde ele morava. Essa
exemplo, pois nada fora dali interessa pra esse “novo” influência foi facilitada, obviamente, pelo idioma espa-
leitor, e assim se tornaria uma receita nova. Afinal, esse nhol. Coisa que a Placar não teve, pois o resto da América
leitor ou leitora certamente já não comprava o jornal é hispânica, e esse era um fator a favor de El Gráfico. É
completo. Esta hipótese só funcionaria se os cadernos uma morte que chega pelo encolhimento drástico das
fossem mais extensos e trouxessem conteúdos exclusivos. vendas devido à concorrência das redes sociais, de sites,
e de jornais tradicionais argentinos, que desenvolveram
No entanto, como qualquer ato empreendedor, requer
seus respectivos cadernos esportivos. Isso acabou sendo
coragem, investimento e risco, portanto, prejuízo em
fatal pra revista, que foi definida por vários jornalistas
potencial. É fácil de compreender desde o ponto de vista
como mãe do jornalismo esportivo latino-americano.”
empresarial que não se arrisque, sobretudo em momentos
de instabilidade. A média de idade dos assinantes de jor- No Brasil, sem dúvida, a Placar dividiu a paternidade
nais é cada vez mais alta. Essa base de leitores vai enve- do jornalismo esportivo com o Jornal dos Sports. Eram
lhecendo e, mesmo com as assinaturas digitais crescendo, fontes inesgotáveis de conhecimento e de escrita. Além
esse número pode atingir uma marca que represente a disso, os pôsteres colecionáveis dos times campeões,
inviabilidade do negócio. Nesta altura, investir pode ser que marcaram época, já não enfeitam mais os quartos
impossível, por não se dispôr de faturamento suficiente de amantes do futebol. Há uma mudança de hábitos de
e não haver nenhuma margem pra risco. consumo, nitidamente.
Detentores de negócios globais e consolidados, como a Em termos de historiografia, embora os arquivos dos
Kodak, passaram por esse processo. A empresa do ramo sites possam ser acessados livremente, bastando dar um
fotográfico tinha suas receitas na produção de filmes e “Google”, muito já se perdeu. É certo que muita coisa se
papel para fotos. Alguém, certamente, percebeu que o ne- recuperou também. Mas um estudo de discurso orientado
gócio poderia enfrentar dificuldades com a popularização pelos editoriais de jornais e revistas pode ficar sem ma-
de câmeras digitais. Ninguém deixaria, nem nunca vai terial tátil para observação e análise. Há um certo risco
deixar, de tirar fotos, pelo contrário, a prática só aumen- nisso. Mesmo com prints, a materialidade dos discursos
tou, mas câmeras profissionais ou amadoras passaram fica à deriva de interesses de época. Num mundo sem
a ser totalmente digitais, e as analógicas viraram item jornal ou revistas impressas, o que por um lado o meio-
de coleção ou um hobby, pelo prazer de revelar uma foto -ambiente até agradeceria, caso um editorial, ou coluna,
analogicamente. A maioria dos cadernos — de esportes, coloque em xeque a posição de um jornal num momento
pelo menos — encolheram, mas as redações seguem futuro, esse arquivo pode simplesmente ser deletado,
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como acontecem com tuítes ou postagens. Além disso, como passaram a chamar essas produções feitas para
falhas técnicas ou de segurança em um servidor podem Youtube, ou Vimeo: webséries — mostra que a arte de-
colocar em risco muita informação, tal como um incêndio riva da imitação. O princípio básico de evolução genético
em uma hemeroteca. é ilustrado assim: copiar, transformar e combinar. O
diretor da série de quatro episódios, o americano Kirby
Talvez não venha a existir novamente um Nelson
Ferguson, descreve o processo de aprendizado por meio
Rodrigues e todos os outros cronistas que surfaram nessa
da cópia e a criatividade nada relacionada à mágica mas,
onda. Nelson era um homem de seu tempo, machista,
sim, a organizar ferramentas e pensamentos a outros
que dispunha do papel como mídia e não saberia lidar
materiais pré-existentes.
com torcedores revoltados quando ele proferia frases
que ficaram pra posteridade, como “falo de todos os Basicamente, Kirby diz que ninguém é capaz de introduzir
times, até do Vasco”, ou que ”o torcedor alvinegro é o nada novo até ser fluente naquela linguagem. Esse pro-
único que, quando compra o ingresso, compra o direito cesso acontece freqüentemente em trabalhos derivados,
inalienável de sofrer”. muito comuns na música. Ele cita Bob Dylan, que no seu
primeiro álbum gravou 11 covers. No cinema não seria
A antologia da crônica esportiva fica comprometida,
diferente.
mesmo com diversos textos sensacionais publicados
em blogs. Mas o simbolismo de uma revista, jornal ou Kirby Ferguson mostra como Led Zeppelin e Quentin
livro com aquela frase, texto ou reportagem carrega um Tarantino fizeram suas trajetórias com materiais deri-
peso. É como aquele disco ou CD clássico de uma banda vados — muitas vezes nem tanto assim — de produções
pré-mp3. Correlacionando com a música, o jornalismo anteriores. Tarantino praticamente remixou diferentes
atravessou uma crise similar. filmes para chegar a produções como Kill Bill. E o maior
exemplo é de George Lucas, que copiou, transformou
Com o fim das revistas e surgimento de blogs e mais
e combinou vários filmes anteriores até chegar a Star
blogs, a relação entre leitor e jornalismo ficou muito
Wars. O ponto em questão é que criatividade requer in-
parecida com a de ouvintes e música. Bandas conside-
fluência. Kirby cita Isaac
radas “One Hit Wonder”
Newton: “Se eu vi além,
sempre existiram, mas
foi porque eu estava aos
passaram a existir mais
casos de bandas conheci-
“Se Zico não ganhou ombros de gigantes”. Mas
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P
arece uma matéria acadêmica onde comunicólo- No entanto, Rizek começou no Jornalismo mais como
gos estudam comunicadores. “Análise e teorias um Gattuso, aquele que corre, combate, transpira, sua a
da comunicação esportiva” seria o nome da ma- camisa. Se destacou por uma reportagem sobre a Máfia
téria, certamente teria um professor que jamais pisou em do Apito, que ele conta na entrevista e explica porquê é
um estúdio ou numa redação, mas que estuda o jornalismo tão difícil fazer esse tipo de Jjornalismo.
desde que se trata de uma disciplina universitária. Faz
Era um dia qualquer, entrevista agendada para a parte
parte. Metalinguagem numa TV esportiva, no entanto,
da tarde, 14h, até que começa a circular pelo Whatsapp a
é ainda mais insólito.
notícia de que uma verdadeira cratera se abriu na rodovia
O Redação Sportv surgiu com a idéia de repassar o noti- BR-040, na altura de Petrópolis.
ciário dos principais veículos impressos e pouco a pouco
Como tudo que circula no Whatsapp, podia ser um ver-
foi ganhando espaço nas manhãs de quem pode acordar
dadeiro boato. Mas não, as obras de um túnel que, em
um pouco mais tarde, tomar café da manhã na frente da
princípio, ficaria pronto para a Copa do Mundo de 2014,
TV, ou tem a sorte de poder assistir durante o trabalho.
resultaram num acidente “geológico”. O túnel não ficou
Luís Roberto e Marcelo Barreto já conduziram o progra- pronto sequer para as Olimpíadas de 2016. Isso afetaria
ma, até a chegada de André Rizek, que deu a sua cara ao diretamente na entrevista, pois era preciso sair justa-
“matinário”, tanto que parece ter sido criado por e para mente de Petrópolis até a Barra da Tijuca, onde ficava a
ele. Seu tom de voz é calmo, que emite opinião, mas faz sede da Sportv no Rio de Janeiro.
um papel de Xavi Hernández, de receber e tocar, sem mo-
A rodovia foi interditada e isso acarretou num atraso
nopolizar jamais a bola, ou melhor, a palavra. Conseguiu
de praticamente quarenta minutos. Tempo que faltou à
um espaço de opiniões e análises de figuras como Tim
entrevista. Rizek tinha um compromisso às 15h30, o papo
Vickery, Xico Sá, Marcos Uchôa, Carlos Eduardo Mansur,
começou por volta de 14h45. Enquanto o equipamento
Márvio dos Anjos e Ariel Palacios.
era montado, Rizek comenta que completava sete anos
de programa. Foi a deixa.
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Como você foi parar na TV? Estamos falando de que ano exatamente?
Eu tava na Playboy, quando a editora Abril diz que eu ia pra 2005, foi o ano que eu entrei na Sportv.
Veja. E na Abril, quando você recebe um convite da Veja,
Ok, pois mais adiante você chegou a participar de um
é mais ou menos como o Jornal Nacional na Globo. Não
projeto da Abril que foi o Jornal Placar, em 2008, né?
dá pra recusar, dizer que não quer. Eu achava importante
ir pra Veja. Saí da Playboy, da vida boa, da fanfarra, e fui. Sim! Eu acumulei Abril e Sportv, pois era um colaborador
Mas em pouco tempo, vi que havia incompatibilidades ali. no canal. Não me imaginava saindo da Abril mesmo. Nunca
Não na Abril, que eu adoro, na Veja. E comecei a buscar ia imaginar que o mercado de revista, do qual você faz
alternativas. Sou muito amigo do PVC, ele estava na ESPN parte, iria evaporar. Achava que revista era a coisa mais
e falei com ele que queria voltar pro esporte. Eu fui da legal pra se fazer na face da terra. Eu era de imprensa
Placar pra Playboy, depois que fechou. Eu fiz dois Bate- escrita. Achei que eu ia ficar a vida inteira na Abril, ainda
Bolas da ESPN. Aí alguém na Veja viu e ficou desesperado: mais que a matéria tinha me dado uma condição legal lá,
“se você tiver que entrevistar o presidente e ele souber podia escrever pra várias revistas e tinha todos os finais
que você fala de esporte…”. Eu disse: “gente, vai abrir de semana, os feriados… Eu não pensava em ir pra TV. Só
portas”, mas a Veja tinha um problema, que esporte é que em 2009, fazia essas participações no Arena Sportv
um “sub-assunto” pra uma revista de informação geral. e comentava jogos, aí recebi uma proposta pra ser chefe
Ficaram com vergonha daquilo queimar meu filme, de de redação em São Paulo, da Sportv. E entrei assim, pra
repente aparecer comentando jogo e tal. Mas quando eu chefiar o canal em São Paulo.
fiz a matéria [da Máfia do Apito] e pedi demissão da Veja,
Era um momento estranho, a Internet já estava a pleno
mas acabei não saindo da Abril, eles me seguraram e voltei
vapor, portais como Globoesporte.com emplacando,
pra Placar. O primeiro lugar que veio falar comigo foi a
então já havia a necessidade de velocidade de infor-
ESPN, não pra ser funcionário, mas pra fazer participa-
mação, talvez o jornal da Placar tenha vindo pra suprir
ções, e eu meio que me apalavrei com o Trajano e com o
essa incapacidade da revista de dar conta. Enfim, como
PVC, mais com o PVC, com quem eu já tinha trabalhado
você vê o papel do Jornalismo impresso tendo vivido
no Lance e ficou nisso. Eu teria um cachê pequeno, não
esse processo?
teria um contrato. Mas o tempo foi passando, a ESPN não
me ligou dizendo “vem nesta segunda ou nesta terça”. Antes de ir pra Placar, eu era o editor especial de esportes
E o Redação começou a me ligar, pra ir falar da matéria. do IG naquela época. Eu comecei no Jornal da Tarde, fui pro
O programa, que era apresentado pelo Luis Roberto na Lance e de lá pro IG. Meu cargo era um híbrido de editor e
época, depois de vários contatos, eu conversei com a repórter. A Placar imprimia 180 mil exemplares por mês.
minha chefia na Abril e eles acharam legal ir lá divulgar Era um baita número, eram outros tempos. Eles achavam
a matéria e fui como um profissional da Editora Abril no que conseguiriam fazer isso por semana. Aí lançaram a
Redação. Fiz um programa depois daquele Corinthians e Placar semanal, mas era um projeto muito ruim, pois a
Palmeiras que o Tévez acabou com o Gamarra, em 2005. revista fechava às quartas, chegava nas bancas às sextas,
Eu fui, terminou o programa, a galera do Sportv me cha- nunca ficou claro se faríamos matérias sobre o final de
mou pra conversar assim que acabou o programa e falei semana seguinte, anterior ou sobre o meio de semana. A
que estava mais ou menos apalavrado com a ESPN, mas gente fez boas matérias na Placar semanal. Tinha bons
que não tinha nenhum vínculo ainda. Aí acabei ficando jornalistas, Arnaldo Ribeiro, PVC, Sergio Xavier Filho,
na Sportv pra participar e tal. Eu nunca imaginei ser fun- André Fontenelle… O time era bom, mas o produto era
cionário da Sportv, muito menos que ia sair da Abril, eu meio esquizofrênico, e obviamente não chegou nem perto
tinha até ganhado uma bolsa pra morar fora, estudar… dos 180 mil por semana. Chegava a 70 ou 80 mil por se-
Eles uma vez por ano davam essa bolsa pra alguém. E
eu nem tinha usado essa bolsa ainda, por isso eu nem
pensava em sair de lá. A idéia era fazer participações em
programas mesmo. Tinha o Arena Sportv em São Paulo,
e ia fazer alguns jogos. Até nem achava que era a minha “O teste foi num
praia comentar jogo. Falaram pra fazer um teste, ver como
eu me sentia. Falei: “tá bom, teste não tem problema”. Santos e Cruzeiro no
Palestra Itália, com
Aí, o teste foi num Santos e Cruzeiro no Palestra Itália,
com narração do Jota Júnior. Eu fui, assim, tremendo!
Cheguei na cabine e tremia. Pô, o Jota, qualquer pessoa
da minha idade que cresceu vendo futebol ouvia ele. Eu
narração do Jota
tenho uma dívida de gratidão, porque ele viu ali um mo-
leque que nunca tinha feito aquilo, que estava ausente do
Júnior. Eu fui, assim,
futebol, um peixe estranho no mar, e ele pegou na minha tremendo! Cheguei na
mão, me guiou a transmissão inteira, foi super legal. E fui
ficando, eu fazia o Arena Sportv com o Cléber Machado. cabine e tremia.”
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“Eu não me preocupo revitalizar a marca Placar, pra mim, o jornal é a melhor
delas. Não sei explicar porque acabou não indo pra frente,
com a ‘morte’ dos mas acho que era uma idéia muito boa, de distribuir um
jornal diário gratuitamente.
meios impressos, E como você enxerga o jornalismo impresso?
não é a morte do Eu vejo como o mercado de vinil. Uma coisa pra poucos,
jornalismo. É só
cara, pra quem realmente quer ter um produto específico.
Quase que uma peça de colecionador. Eu não me preocupo
Se intensificou, na verdade.
mana, que eu achava um número bom, mas muito abaixo Mas qual é o segredo pra se fazer um programa de ni-
da expectativa. Primeiro, em 2002, fecharam a Placar. cho, que se comunica com jornalistas e com o público
Num ano de Copa. E um dos motivos foi que seria muito em geral?
caro cobrir aquela Copa, pois seria no Japão e na Coréia Fizemos um programa hoje que foi o meu preferido de
e o Brasil faria vergonha… Depois reabriu, a Placar teve 2017, sobre o centenário da revolução russa. Trouxemos
idas e vindas várias. Eu parei de acompanhar um pouco um historiador, que é o Luiz Antônio Simas, com o Tim
essas idas e vindas porque acabei indo pra Playboy, e foi Vickery, e foi mágico o programa. A gente discutiu um
quando o PVC deixou a Abril e foi pra ESPN também. E bloco inteiro sobre o esporte como símbolo do regime
a gente olhava pro PVC e pensava: “como que um cara comunista e o que esse regime representou no século
gago, feio e cheio de tiques vai fazer sucesso na TV?” e XX. Mas é um programa de esporte… Eu vou voltar pra
justamente fez sucesso, pois ele é exatamente tudo que quando eu fui convidado a fazer o Redação, embora o
ele é fora do ar. Quando eu voltei pra Placar, a estrutura programa mostrasse as capas dos jornais, ele não tinha
já era bem menor, e veio a idéia do Sergio Xavier, que era um olhar muito crítico sobre a imprensa. E o então diretor
o diretor, de fazer um jornal gratuito em parceria com o do Sportv, Raul Costa Júnior, me chamou em dezembro
Jornal Destak, e pela minha experiência de Lance, eu era de 2009 pra conversar com ele sobre um novo projeto pro
da primeira turma que colocou o jornal na rua, eu traba- Redação Sportv. Era pra ser uma espécie de Ombudsman,
lhei lá com o Lédio Carmona, Maurício Noriega, Marcelo uma mesa de discussão da imprensa, da própria Sportv e
Barreto, PVC… Eu virei o editor, e em duas semanas eu eu achava que essa idéia seria um fracasso. Primeiro que
tinha que montar uma equipe e fazer acontecer. Eu entre- eu não sou apresentador. Nunca apresentei nem editei um
guei o projeto, mas não ia tocá-lo, eu dali fui pra Sportv. programa na vida. Seria tudo novo. Eu já me imaginava
Era um momento bem esquizofrênico da comunicação. tendo muita dificuldade, ainda mais pra substituir os caras
A Placar trazia antigamente os tabelões, aquilo já não que eu acho que são os melhores âncoras da imprensa
cabia mais… esportiva, que são Luis Roberto e Marcelo Barreto. Gostava
muito do Barreto no Redação. Tinha todos esses poréns.
Pô, a gente tinha reunião lá na sede da editora Abril, com Minha primeira reação foi: “Raul, quem vai querer assistir
leitores clássicos, na época de Orkut, tinha uma comuni- discussão de imprensa na televisão?” Vão achar a gente
dade no Orkut e os leitores não gostavam das mudanças presunçoso e pretensioso. Ele achava que o programa não
que a gente fazia. “Como pode o tabelão ir embora?”. tocava nesses pontos que deveria tocar. Eu achava que ia
Chegamos a fazer uma comitiva de leitores do Orkut, e ser um fracasso. Bom, a minha parte de apresentador foi
eu mediei isso. Pra eles irem na redação e explicarmos muito difícil no começo, pois era feito com tele-prompter,
porque o tabelão estava saindo… Mas assim, aquilo era o Barreto lia aquilo ali. E eu, como nunca tinha apresen-
um nicho muito específico. Não faz sentido com a Internet tado e não tive tempo de treinamento, fiz dois pilotos em
você publicar um tabelão… Publica no fim do ano… Eu dezembro e em janeiro já comecei a fazer o programa. Me
cheguei a fazer reuniões com o finado Roberto Civita, senti mal nos pilotos, eu não conseguia ler o TP. Logo no
nas quais ele perguntou o que precisaria pra Placar se programa de estréia, eu não conseguia seguir aquilo ali
levantar, se tinha como uma revista de esportes sobre- olhando pra câmera. Aí, eu achei uma tragédia, e disse
viver no Brasil, etc. Eu acho que o Jornal Placar foi uma que não ia mais usar o TP. O que acabou virando uma
boa idéia, das várias idéias que surgiram nesse tempo pra marca, do programa não ter mais o tele-prompter, mas
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foi por acaso, por não conseguir ler com naturalidade. E preconceito, uma grande bobagem.
fui arrumando o meu jeito, com uma dicção que não é tão
As pesquisas sobre Classe C são sempre feitas por pes-
boa, com uma comunicação que melhorou muito, mas que
soas de Classe A, no mínimo B, determinando o que a
não era tão boa. Mas deu uma resposta de audiência muito
Classe C quer.
boa desde o começo. Esse meu temor, de que ninguém ia
querer ver, acabou tendo uma resposta muito boa. Mas Isso. Cheguei a assistir palestras de como se comunicar
a imprensa, na época, não respondeu muito bem. Muita com a Classe C: “seja claro, seja objetivo, conte uma
gente, como o próprio Lance, achou que a gente criou esse história que pode ser compreendida por todos”, essas
programa pra criticar a imprensa que criticava a Globo são as regras do bom jornalismo, da boa comunicação
e pra bater em veículos que não são do grupo Globo. No pra qualquer classe. E se tem uma lição que o jornalismo
começo, houve muita resistência. Mas por que eu acho ensina, é exatamente que o bom jornalismo é aquele
que deu certo? Eu volto a um programa que fizemos em que consegue falar sobre qualquer assunto pra qualquer
2012, durante a Eurocopa, ia pessoa. Você consegue apurar
ter Rússia e Polônia e querí- e transformar seu assunto de
amos contar a história dessa forma tão simples e didática
rivalidade, pois nos impres- “Teve um evento que qualquer pessoa de qual-
em São Paulo
sionou como os poloneses quer classe e formação vai te
odiavam mais os russos do compreender. Esse exemplo
que os alemães. Como pode?
Se na história oficial a União
com o pessoal da Eurocopa me fez ver. Poxa,
como eu estava errado em su-
Soviética salva a Polônia dos
nazistas. Lá em Varsóvia eu
da Globosat, bestimar o público e lá atrás
achar que o Redação não daria
conheci mais da História, da pro mercado certo. Hoje, eu não tenho medo
tirania que foi o Stalinismo de fazer programas como esse,
na Polônia, do regime sovié- publicitário, e sobre a Revolução Russa. Um
me escalaram
tico lá. A gente queria contar outro programa histórico foi
essa história. Teve confusão, sobre a Maria Ester Bueno,
quebra-pau lá em Varsóvia, e
a gente conseguiu fazer o pro-
pra ir. O objetivo foi a vida dela, trazendo ela
ao programa. Muita gente aqui
grama inteiro dentro do Gueto
de Varsóvia, a prefeitura auto-
era interagir achou o programa demais,
mas que ia dar traço. Eu disse
rizou, e apresentamos o pro- com o pessoal que não ia dar. Ia dar na média
grama de lá. Praticamente não normal de terças, e foi isso!
tocamos no assunto bola. Foi da publicidade, Acho que esse é o segredo, não
e quem veio
um programa sobre História. subestimar o público.
Terminou o programa, o Raul
A Sportv está na grade de to-
estava eufórico, o prefeito de
Varsóvia super honrado e eu
interagir comigo das as operadoras, no paco-
te básico de assinatura. Isso
desesperado, achando que ia
dar traço. O Raul disse que foi
foram os garçons. aumenta a capilaridade do
histórico, mas eu disse que ia E tenho o maior canal, e logo aumenta ainda
mais esse desafio. Dá pra per-
dar traço, pois é um programa
de esportes, feito de Gueto de orgulho disso.” ceber o cuidado com a fala, de
falar pausadamente.
Varsóvia, que não fala de es-
portes. E foi disparada a maior Quem mais fala comigo é gar-
audiência do Redação naquela Eurocopa. Ali, eu entendi çom. Teve um evento em São Paulo com o pessoal da
que o maior problema de um editor — de um programa, Globosat, pro mercado publicitário, e me escalaram pra
de revista, de jornal ou de rádio — é subestimar o público. ir. O objetivo era interagir com o pessoal da publicidade,
Quando se fala: “ah, isso aqui é inteligente demais pra e quem veio interagir comigo foram os garçons. E tenho
audiência, ou não vão querer ouvir”. Quando você se co- o maior orgulho disso. Porteiros, essa galera que vê o
loca nessa posição pedante, de subestimar quem está do Redação e adora essa pegada, que me dizem quando me
outro lado, de achar que não estão à altura de um eventual encontram que curtem que o Redação trata de História
tema, é aí que você cai do cavalo. Faz muito tempo que e do esporte além do esporte.
não vejo pesquisas, mas o Redação era o programa com
A partir de 2010 que você começou a fazer o Redação?
maior penetração na Classe C. E é justamente o programa
que, talvez, aborde os temas que supostamente menos É! Eu tenho um casa no Sul da Bahia, e eu achava que esse
têm a ver com a Classe C. Aprendi que isso é um grande programa ia ser um fracasso tão grande que eu cheguei
a pensar em largar tudo. Eu fui lá pra Bahia, e no dia da
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viagem, eu sentei na varanda e comecei a chorar, achando fiquei seis meses apurando. Qual veículo que pode dei-
que não ia dar certo. Eu não queria morar no Rio, não xar um profissional meio ano numa história que talvez
queria ser apresentador, e achava que o projeto ia ser nem seja publicada? Eu sinto falta de reportagens, não
um fracasso. Eu realmente achava que não ia dar certo. no esporte, mas na imprensa como um todo, pois com
a crise dos grandes veículos de comunicação ficou mais
Como você enxerga o jornalismo esportivo brasileiro?
difícil investir em reportagem.
Eu acho bom! As pessoas falam que é jornalismo 7 a 1, que
O Redação Sportv também prestigia muito as narra-
é ruim. Mas eu já trabalhei com política na Veja, com com-
ções de gols, mostrando rádios de todos o Brasil, da
portamento na Playboy, já fiz matérias pra vários cadernos
Argentina, do Peru, de qualquer lugar. É um exercício
de jornais, e acho que o jornalismo esportivo brasileiro
de nostalgia. O programa tem um olhar sobre o jorna-
é muito bom na comparação com outros países. Acho
lismo impresso e também sobre o Rádio. Como você vê
que ele é sério. Por exemplo, a
o radialismo, e como é isso
gente tem comentaristas que
no Redação?
não estão lá pra dar opinião,
eles apuram, como o Lédio
”As pessoas acham Primeiro, eu tenho uma rela-
Carmona, Raphael Rezende,
que chegou a fazer um curso
que pra dar uma ção de infância com o Rádio.
Eu comecei a gostar de futebol
de treinador, é admirável, não opinião é só indo pro estádio com meu pai,
é muito a minha área, a táti- com seis ou sete anos, ouvin-
ca. Então, as pessoas acham sentar e dizer o do Rádio. Ouvia a Rádio Jovem
com jornalismo
de lá, e dar a opinião sobre o comecei em 1994, no Jornal
que o técnico lá do time faz da Tarde, e peguei o come-
errado e o que deveria fazer.
Não é isso. Isso qualquer pes-
esportivo acham ço da Internet quando fui
pro Lance. A minha primeira
soa pode fazer, não precisa ser
jornalista. Qualquer um pode
que essa profissão reação foi “putz, coitado do
Rádio. Morreu”. Eu sempre
decorar a escalação dos times. é só assistir associei o Rádio a hard news,
Jornalismo é o que faz o PVC, às notícias instantâneas, a dar
Lédio Carmona, Mauro Beting, aos jogos dos o furo. Jornal tinha que espe-
campeonatos
que pra darem uma opinião, rar o dia seguinte. Isso muito
eles ligam pro técnico, lê jor- antes de existir smartphone.
nal, pesquisa, busca alguma
fonte dentro do clube. Antes
europeus, saber Mas, pelo contrário, a internet
revitalizou o rádio. Ainda que
de emitir uma opinião que pa-
rece simples, se falou com um
as escalações dos as empresas de rádio estejam
com uma dificuldade muito
monte de gente. Fora a baga- times de lá” grande, fechando, demitindo,
gem que esses caras têm. Eu mas a Internet revitalizou o
acho que tem gente de muita rádio. Não tenho dúvida disso.
qualidade, tem gente que apura, que investiga. Só sinto Mas matou o meio impresso e não o rádio. Eu ouço rádio do
falta de mais reportagens. As pessoas que entram nes- mundo inteiro, assim como leio jornais do mundo, inteiro
sa área, justamente por acharem que o caminho é ser graças à internet. Eu tenho um rádio de 1948 restaurado
comentarista e dar opinião, e acharem que o trabalho em casa, e ouço ele. Não fui eu que criei esse quadro. O
é esse, e não é, essa é a parte fácil do trabalho. Sinto Redação AM estava deixado de lado, eu não sei exata-
falta de mais gente querendo vir pro esporte pra fazer mente quem criou, mas já existia. Não sei se vai voltar a
reportagem, pra contar grandes histórias, esse eu acho ter a força que já teve. Mas o que a gente faz é refletir a
que é um problema, não do jornalismo esportivo, por- imprensa. Qual é o grande portal que vamos mostrar sem
que reportagem custa dinheiro. É caro, tem que mandar ser o Globoesporte.com e o UOL? Só tem dois grandes.
a pessoa pro lugar, investir tempo. A máfia do apito eu Temos que expandir os horizontes. Até acho que a Trivela
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faz um trabalho espetacular na internet, por exemplo. É ferramenta que se tornou e que teria tantos seguidores.
um portal que leio todos os dias, mas ainda não tem a Esse caso do Mauro Beting é um grande exemplo de como
relevância de uma Folha ou Estadão pra eu colocar. E o damos voz a quem não merece quando respondemos a
rádio traz esse olhar local que o Redação busca, embora essas pessoas. Passei por isso num programa em que
a internet permita ao rádio uma audiência global, ele discutimos o que a torcida da Lazio fez com os adesivos
ainda fala pras pessoas daquele lugar. Quando eu quero da Anne Frank, ligando ela à Roma, e estava falando de
mostrar como um gaúcho narrou o gol do Grêmio, só rádio algo que achei que era básico: nazismo, facismo, crime
consegue isso. Além da edição do quadro ficar legal, você contra a humanidade. No Twitter do Redação, pessoas que
pega o exagero do rádio que não bate com as imagens da não tem nenhuma expressão, eu comecei a dar voz a elas.
TV, e você consegue mostrar um olhar local. Também não “Ah, seus esquerdopatas!”, e eu tentei explicar que não
achava que o Redação AM teria essa repercussão quando se tratava de esquerda ou direita, que era crime contra a
resgatamos o quadro. humanidade. Eu fui dando voz, a coisa foi crescendo e eu
fui me descontrolando no ar. Fiquei meio emocionado,
Marcos Uchôa explicou na Corner #5 porquê ele não
comecei a suar. E quando acabou o programa, eu falei:
usa as redes sociais, e você tem muitos seguidores no
“mandei mal, não posso responder essas pessoas.” Desde
Twitter. Como é lidar com esse momento de polarização
então, eu tomo muito cuidado quando vou responder.
que aumentou muito a partir de 2014? No futebol, na
Eu só respondo quando acho que não vou dar voz a esse
política… O Mauro Beting foi surrado por palmeirenses
tipo de gente. Mas optei também por me divertir. Não
por ter sido isento no blog dele.
me levar a sério, senão eu não vivo. Acho que é uma baita
Olha que loucura. Eu só fiquei sabendo dessa história do ferramenta de se comunicar com o público, mas como eu
Mauro Beting por ele ter respondido a uns seguidores sei que vem muito ódio nas respostas, eu entendo pessoas
dele. Se ele não tivesse respondido, eu talvez jamais ti- como o Lédio Carmona, que não têm estômago pra lidar
vesse ficado sabendo dessa polêmica. Acabei vendo várias com isso. Eu aprendi a me divertir. Acho que temos que
respostas dele e vi que estava acontecendo alguma coisa. responder menos. O meu amigo Antero Greco também
Quando eu abri a minha conta no Twitter, foi em 2010. respondeu a muitos… E se eu puder dar um conselho a ele,
Eu estava conversando com um amigo, e ele me garantiu eu diria que ao responder, ele está dando visibilidade a este
que era uma boa ferramenta pra eu conhecer mulheres, tipo de gente que não quer conversa, só quer intolerância.
quase que um Tinder. Eu estava solteiro à época, e abri a Se respondermos menos, talvez vamos melhorar o nível
conta com esse objetivo. Não imaginava que viria a ser essa de discussão na internet.
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dando esse espaço.” Qual o maior desafio de trabalhar numa empresa como
a Globo?
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Isso tem muito a ver com a nossa cultura, que tem muita
influência do Galvão Bueno, do outro nunca ganhar e
do Brasil sempre perder. O teu “Coragem, Felipão!”
até representa um pouco isso. De não perceber que, na
ausência de Neymar e Thiago Silva contra a Alemanha,
colocar Bernard e Dante e achar que eles não só dariam
conta, como os alemães deveriam se preocupar com o
Brasil…
Não, mas eu acho legal falar! Tem que falar. Não era exa-
explicar aquele tuite, tamente que o Brasil era o maior e “vamos pra cima” o
mas ele ganhou vida que eu quis dizer. Até porque, se você pegar os programas
do Sportv na época, eu sempre achei que a Alemanha
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