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FILHAS DE ANNA FIERLING
O cenário é uma pequena praça, de um bairro de classe média, com aparelhos
de academia ao ar livre. A cena acontece em frente à barra de alongamento.
Ana está dentro de um grande saco de recicláveis separando coisas.
Joga para fora alguns objetos: roupa, pote de cozinha, livro, uma maleta em
bom estado, a qual, ela separa com cuidado, após jogar no saco os papéis que
estavam dentro.
ANA
É isso aí. A vida não está fácil pra ninguém. Agora só jogam fora o que não
precisam mesmo. Tempos atrás, jogavam por enjoo, raiva, desaforo, vingança.
É, talvez eu tenha que mudar de rua. Prédios mais novos, modernos, com
casais mais novos com crianças. Casais se separando. Moradores mais novos
dão sempre melhores coisas nos sacos. Casais novos, então, qualquer
briguinha lá se vão as coisas do outro pro lixo. Até anéis, perfumes, roupa
íntima, moldura com fotos, às vezes, até sacos cheios de roupas.
Ana ainda está dentro do saco quando entra uma mulher mais jovem e
bem vestida. Ela está visivelmente nervosa.
MOÇA
Com licença. Foi a senhora quem recolheu o lixo da frente do meu prédio?
ANA
Acho que não, moça. Nunca vi você por aqui.
MOÇA
O porteiro me disse que você é quem recolhe sempre o lixo das terças-feiras.
E que depois, vem pra cá pra separar as coisas e fica um tempo por aqui
esperando o seu marido passar com o carrinho de lixo.
ANA
Recicláveis.
MOÇA
Pois é.
ANA
Que porteiro?
MOÇA
O do prédio azul com sacadas.
ANA
Nunca te vi. É moradora nova?
MOÇA
Tenho que recuperar uma coisa que você pegou. Foi parar na calçada por
descuido da faxineira.
ANA
E o que vem a ser?
MOÇA
Um envelope.
ANA
Ah, vai ser difícil. A papelada já foi toda misturada: do prédio azul, do amarelo,
do branco, da rua toda.
MOÇA
A senhora não está entendendo.
ANA
Calma. Não precisa ficar nervosa, senão, eu fico também e não vamos nos
entender.
MOÇA
É muito importante. Estava dentro de uma maleta com outras lembranças. Por
gentileza, faça um esforço.
ANA
(Mostrando a maleta.) Esta aqui?
MOÇA
Essa mesma. Onde foi parar o quê estava dentro?
ANA
(Aponta pra dentro do saco.)
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MOÇA
(Pensando alto.) Meu Deus, o quê que eu estou fazendo aqui? A senhora
entendeu o que eu disse? Que é importante? Que foi por engano? Uma carta.
Ouve-se em off a parte I da carta. A moça anda de um lado para o outro,
nervosa.
MÃE
(Off.) Minha filha, já cansada de mandar mensagens e ligar pra você, sem
receber nenhum retorno, mando-te esta carta. Mas não se aborreça, porque
não quero te iludir com palavras. Só não suporto mais essa crueldade. Agora,
eu que desisto de você. Depois de tantos anos, tenho medo de te reconhecer,
de saber o motivo dessa inexplicável rejeição. Quando você se foi, há quase
10 anos, eu estava em guerra comigo mesma. Não me desculpava e não
desculpava ninguém. A morte do seu pai me tirou o chão. Sei que fui egoísta.
Podíamos ter vivido juntas o luto. Senti ciúmes da dor que a falta dele te
causou.
ANA
Estou trabalhando, deixam lá e eu cato, ora! Quer um pouco de água? Quer?
(Ana oferece a garrafinha de água, já pelo fim.)
MOÇA
Não, agradeço! Não precisa se incomodar. Meu problema não é sede.
Ela se encosta na barra de alongamento e observa o local.
MOÇA
Essa praça envelheceu. Agora no lugar do balanço e do escorregador, esses
aparelhos de velhos.
ANA
É um bairro de velhos e cães, moça. Mais cães que velhos.
MOÇA
A cidade cresceu muito.
ANA
Passou por cima da minha vila e foi embora, que praticamente hoje moro no
centro. Uns bairros como esse, envelheceram e outros novos surgiram. Sei que
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existem condomínios com grandes mansões. Centros comercias que as
pessoas que moram por lá, nem conhecem o centro da cidade. Tem de tudo,
bancos, hospitais, comércios e até cemitério por perto. Minha vila não
aumentou de tamanho, mas ficou mais apinhocada de gente. Quanto mais
pobres morrem, mais pobres nascem. Mas nos viramos melhor hoje em dia. O
lixo aumentou e a gente segue em frente pra pegar o que fica pra trás. Eu só
não cato desperdício. Só pelo peso já sei. Nem pego. Esses vão pro lixão e lá
tem centenas de catadores separando o que ainda pode virar granulado. São
tão pobres que nem doenças tem. É assustador. Lixo de pobre e de rico tudo
junto e misturado. Falo pelos cotovelos, se a moça não me interrompe, não
paro nunca mais.
MOÇA
Tudo bem. Eu precisava ficar um pouco quieta.
Silêncio constrangedor entre as duas, só o barulho do lixo sendo
separado.
ANA
Por que nunca te vi por aqui?
MOÇA
Cheguei faz pouco. Vim desocupar o apartamento. O porteiro me falou que
minha mãe conversava com você de vez em quando.
ANA
Deve ser verdade. Se ele disse. Como ela é?
MOÇA
Não sei dizer. Eu não a visitava fazia mais de 10 anos.
ANA
Aí fica difícil.
MOÇA
Era moradora do quarto andar. Professora aposentada. Pelo que o porteiro
falou tinha um cachorro, mas acho que fugiu.
ANA
Ah! A professora. Sei, sei, ela viajou. Me pagou pra cuidar do cachorro por uns
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dias. Esse não foge não, é medroso. Deixa eu ver, já tem uma semana.
MOÇA
Te pagou pra cuidar do cachorro?
ANA
Pego qualquer serviço, moça. O preço do papel caiu. Ganho uns trocados
fazendo de um tudo. Enquanto fico aqui separando as coisas, às vezes, cuido
de um velho ou outro pra empregada ir ao mercado. Olho um bebê pra babá
namorar um pouco dentro do carro. Cuido do cachorro pra dona fazer as unhas.
Faço tudo com gosto. Às vezes, dou só minha companhia. Tem muita gente
sozinha por aqui. Ano passado, meus recicláveis me rendiam quase 300 reais.
Hoje não consigo nem 200. Tenho que cobrar pelo meu tempo. Não posso dar
nada. Quem dá tem, não é?
Pausa.
MOÇA
Minha mãe falou de mim pra você?
ANA
Se falou não me recordo. Converso com tanta gente. Mas como disse, da última
vez me trouxe o cachorro, um saco com a ração e umas coisas pra mim. Viajou.
Vocês se desencontraram?
MOÇA
Ela morreu.
ANA
(Levantando.) A professora morreu? Não viajou? Morreu mesmo? (Sem saber
o que fazer.) Que dó. Sinto muito! Você está bem? Precisa de ajuda? (A moça fica
calada. Acena que não com a cabeça.)
Entra o pensamento da moça em off.
MOÇA
(Off.) Mãe, em pensamento te escrevi inúmeras cartas e aqui elas ficaram
acabrunhadas, dentro dessa gaveta velha que a chave quebrou. Te escrevi no
oco da minha cabeça, tola, culpada, dura, sabedora de todos os pecados e sem
um salmo decorado. Nenhuma reza você me ensinou. Quando realmente te
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escrevi, sabia que não te entregaria, que o correio atrasaria e que não teria
tempo de te encontrar. Lembro que sempre me apresentou os livros e talvez
eu também não devesse tê-los lido. Talvez… (recordando um poema.) “talvez
mudasse, talvez gemesse ou nunca tocasse a valsa vienense”. Tudo agora é
negação e medo. Se o pensamento tivesse uma fresta minúscula, e, sem que
ninguém soubesse, gotejasse em voz, seria apavorante e o diálogo entre nós,
seria só um diagnóstico de estupidez. Quero que saiba que me tratei, que
procurei quem tivesse a chave, uma senha, um veneno, antídoto da
impossibilidade de falar com você ou mesmo te olhar. Mãe, nem o amor é para
todos. A única coisa que é para todos, é morrer e talvez não ser esquecido.
(Voltando a falar com Ana.) Me conte mais de minha mãe. Qualquer coisa.
ANA
(Ainda desolada.) Ela falava muito pouco dela. Sabia que era professora,
porque quando comecei a fazer essa rua, ela ainda dava aulas. A gente se encontrava
todas às terças-feiras, ela saindo e eu chegando pra catar as coisas na frente do
prédio. De tanto a gente se cruzar, ela começou a falar comigo. Me dava coisas. Não
acredito que morreu! Não era tão idosa. Dou falta de muitos velhinhos e fico sabendo
depois que morreram. Mas a sua mãe. Que dó! Morreu do quê?
MOÇA
Morte súbita. Não sei.
ANA
Melhor. Não sofreu. Às vezes, as pessoas têm que morrer pra ficarem
sossegadas.
MOÇA
Pode me falar mais dela, se não se incomodar? Ela nunca falava de mim?
ANA
Não. Única coisa que me contou é que era viúva de militar. Que era o grande
amor de sua vida. Que ele era um Marechal do exército. Que sofreu muito com
a sua morte.
MOÇA
É, a morte é para os que ficam. Ela era feliz?
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ANA
Suspirava muito. Depois que se aposentou comprou o cachorro e quando
trazia ele aqui, ela se encostava nessa barra e ficava de suspiração. Pedia pra
que eu falasse de mim. Gostava de ouvir minhas histórias.
MOÇA
Era dela unir duas compreensões.
ANA
(Não entendendo.) Isso eu já não sei. Mas foi quando eu contei que mandei
meu primeiro marido embora e me juntei com o irmão dele, que ela contou que
amava muito e amaria para sempre o seu pai. Mas o meu não sabia ser marido.
Era ratazanado pelo ciúme. Me batia na frente das crianças. Meu cunhado era
mais novo e me defendia. Quando meu marido decidiu se aventurar no
garimpo, dei graças a Deus. ‘Já vai tarde’, eu pensei. Hoje, sou uma mulher
feliz. Quando convidei meu cunhado pra ficar comigo, foi como jogar osso pra
cachorro, me segue até hoje. Fiel, gentil e divertido. Gosto demais dele.
MOÇA
Quando contou isso pra minha mãe, o que ela disse?
ANA
Achou graça.
MOÇA
Não te julgou?
ANA
Não.
MOÇA
Ela mudou muito, então.
ANA
Disse uma coisa que depois eu anotei de tão bonita: “O machismo é a
arrogância dos que têm medo”. Tenho um caderno que anoto coisas que acho
bonitas. Sua mãe sabia disso e me dava livros e revistas.
MOÇA
Gosta de ler, então?
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ANA
De um tudo. Bula de remédio, manual de instrução, livros. Se tem coisa escrita,
eu já quero ler. Não resisto. Na vila, me conhecem como ‘a mulher que lê’.
(Pausa.) Se você não se ofender, posso fazer uma pergunta? (A moça não
responde.) Bom, quem cala, consente. Pode me contar, não vou falar nem pro
meu marido. Você estava presa?
MOÇA
Presa?! Não, não!
ANA
É, não tem cara de presa, não! Mas deviam era te prender, ficar tanto tempo
assim sem ver a própria mãe.
MOÇA
Pois é. Acho que não é só o machismo que é “a arrogância dos que tem medo.”
ANA
Tinha medo da sua mãe, então?
MOÇA
Não dela, mas da minha vida com ela. Quando decidi ir embora foi aproveitando
de uma coragem que surgiu em mim, algo que eu desconhecia. Queria viver
liberta daquele receio de não a amar mais.
ANA
Não consigo entender.
MOÇA
Nem eu consigo explicar. Simplesmente ela deixou de existir na minha vida.
Um vácuo.
Silêncio, só o barulho do lixo e Ana olhando sem entender.
MOÇA
Nunca soube o que fazer das pessoas e das coisas que gosto. Elas me pesam.
Mas não foi por vingança que nunca mais conversei com ela.
ANA
Nossa! Comecei a trabalhar catando coisa com a minha mãe, quando tinha 5
anos. Mais pra cuidar dela, que era viciada no craque. Cuido dela até hoje.
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Morri criança, moça.
MOÇA
Dizem que mar agitado é que faz marujo bom. Talvez meu mar tenha sido
manso demais, e quando ficou agitado, eu não soube como me salvar.
ANA
Você está em apuros, moça. Tá precisando falar, então fala. Fala.
MOÇA
(Tempo.) Depois que meu pai morreu, minha mãe se tornou outra pessoa.
Doente da alma. Pensava alto e o meu silêncio a incomodava. Se tornou uma
pessoa tóxica. Me tratava como uma personagem e esperava que eu me
comportasse da forma planejada por ela. Meu pai morreu e eu virei seu mal
secreto. Sentia isso. Desejei que ela morresse também. Já não era a minha
mãe. Deixou as coisas dele nos mesmos lugares, desde o dia em que ele
morreu. O cinzeiro com as bitucas, a carteira com os cigarros, o chinelo, o
banheiro com tudo dele. Tudo disponível para a visita do seu fantasma. Eu não
tinha mais espaço na casa. Eu suportava cada vez menos minha mãe. Onde
está a verdade, agora quando enxergo tudo nitidamente ou quando os
sentimentos fortes e densos me cegavam?
ANA
Você é complicada, moça. Vou procurar o envelope.
Off da parte II da carta da mãe.
MÃE
(Off.) Sem você, fui aos poucos recuperando a razão. Percebendo meus
equívocos e desejando seu regresso. E foram muitas as tentativas. Nenhuma
você cedeu. Muitas vezes encontrei um pouco de ternura na mágoa. Agora não
encontro mais. Não tenho mais esperanças, nem saudades, nem ternura. Não
tenho mais nenhum sentimento que alimente minha vida. Aprendi com a solidão
que não represento mais nada. Não me importo mais com as razões do seu
desprezo, dessa punição.
Ana continua vasculhando os papéis.
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ANA
As pessoas pensam que deixam o lixo ali, mas o lixo tá aqui, (aponta para o
coração) aqui! E depois o que o lixo vira? Podridão, cheiro insuportável, aquele
ruim no estômago. Eu não deixo o lixo cheirar, já vou acertando os ponteiros,
separando tudo e meu coração não faz defeito, não cheira mal.
MOÇA
Tem coisa de escritora aí. Escreve também?
ANA
Não. Você me deu corda, aí, eu ando mesmo! Posso perguntar do seu pai?
MOÇA
Senti muita falta dele. Amava meu pai. Era um homem gentil e elegante.
Sempre alegre comigo, principalmente quando eu era criança. Não recebíamos
seus amigos em casa e não tínhamos parentes em Curitiba, então, não posso
dizer se ele era assim com todos. Sua morte, seu desaparecimento repentino,
ficaram congelados naquele instante. Nos deixaram, minha mãe e eu, num
emaranhado. Um vazio doloroso que só vi o fim quando saí de casa. O
significado de família acabou para mim. Mas quando fui embora, não sabia que
seria para sempre. Nem imaginei que nunca mais me interessaria por ela. Juro
que não pensei. Aconteceu. Assim sem eu me dispor. Fui embora e me atirei
nos estudos e nada mais me interessava. Tinha nascido de novo. Estava livre.
Órfã de pai e mãe. Tive coragem de ser a outra que nem eu sabia que existia
em mim. Um casamento comigo mesma.
ANA
Nunca se casou?
MOÇA
Não.
ANA
Entendo. Filha de militar quando casa perde a pensão, não é?
MOÇA
É, mas não foi por isso que não me casei. Poderia ter uma companhia se
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quisesse. Tenho medo de repetir os sentimentos da minha mãe. Viver como se
não existisse mais nada. Nunca mais foi ela mesma. Depois de viúva, nem
aproveitou a liberdade de ser infeliz sozinha.
ANA
Acho que isso ela aproveitou sim. Não teve outra saída com você sumida.
Solidão. Taí uma coisa que não temos tempo pra sentir. Minha mãe engravidou
de mim com 12 anos. Nem teve tempo de ser filha direito e já teve que ser mãe.
Minha avó acabou cuidando da filha e da filha da filha. Como eu faço agora,
cuido da minha mãe, da minha filha e da filha da minha filha. Nossa vida é
assim moça, trabalhar e cuidar. Cuidar e trabalhar.
O celular vibra no bolso de Ana. Ela se assusta.
ANA
(Falando ao celular.) Oi, filha. Me conte. Conseguiu o encaixe para a sua avó?
(Pausa.) Bom, o postinho está sempre cheio mesmo… que bom. E o remédio?
(Pausa.) Sei… não faz mal, ainda temos pra mais uma semana. Pegou a
receita? (Pausa.) Vou ver se consigo nas Clínicas ou na Santa Casa. E como
ela está? (Pausa.) Que bom, graças a Deus! (Pausa.) Não, não precisa comprar
pão. Ah, e diga pra comadre não comprar também. Temos pão e mistura pra
dois dias… é, consegui chegar em tempo e peguei um saco cheio que o
mercado descartou. Venceu ontem, mas estão perfeitos. Tudo geladinho ainda.
As meninas foram de boa pra creche? (Pausa.) A neném foi dormindo?
(Pausa.) É assim mesmo… tá bom. Escuta, dê muita água pra sua avó… é, eu
sei que ela não quer, mas dê na marra. Diga que eu estou mandando. Ela não
pode se desidratar de novo. Água. Muita água… sei… preciso desligar.
MOÇA
(Alterando-se.) Será que a senhora poderia voltar a procurar o envelope com a
carta, por favor?
ANA
(Encarando a atitude da moça) Vai ser difícil, moça, no meio dessa papelada
toda. Como ele é? Que cor tem? Isso ajuda um pouco, sabia?
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MOÇA
Um envelope azul, com muitos selos e carimbos. Provavelmente com um
carimbo de devolução ou de destinatário não encontrado. Essas coisas de carta
devolvida ao remetente.
ANA
Como sabe que a carta foi devolvida, moça?
MOÇA
Porque eu não abri a carta e devolvi fechada numa caixa de correio.
ANA
Não abriu a carta da sua mãe?
MOÇA
Não. Não abri. Devolvi sem ler.
ANA
Por que fez isso?
MOÇA
Não senti vontade. Nada mais me ligava a ela. Acho que não sou boa. Sou
arrogante, sou injusta.
ANA
Moça você é bem esquisita. (Ana ergue a voz.) E por que quer ler essa carta
agora que sua mãe está morta?
MOÇA
(Aos prantos.) Eu não sei!
ANA
Me desculpe, mas a moça é vesga dos pensamentos. Benza a Deus!
Ana vai para os papéis. A moça chora confusa pelo arrependimento,
raiva e aversão. Entram seus pensamentos em off.
MOÇA
(Off.) Herdar seu cansaço. Que esquisito. Nossa… o lanche vai chegar, vai
esfriar. Vou vender tudo, coloco no site e fico aqui só mais uma ou duas
semanas… o lanche, merda. Uma passagem só de ida... não voltar nunca mais.
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Não ver mais essas ruas, essas pessoas deitadas nelas. Essas crianças sujas,
esses velhos tristes como ela... pra quê envelhecer? Melhor saltar do trem em
movimento. Flash rápido em direção ao nada. Vou cancelar o lanche...o bife...a
batata... tudo já frio. Ração humana com gosto de… jogar tudo no lixo… alguém
vai catar. Gente... bicho. Sempre tem quem queira.
ANA
(Se aproximando da moça com um certo cuidado.) Você pensa demais. Só
pensa quem tem tempo. Eu falo pro vento, assim gasto meus pensamentos.
Vou comprar uma água pra você ali na confeitaria. Se acalme. Já volto.
Enquanto Ana está fora de cena, a moça caminha até o saco e começa
a chutá-lo.
MOÇA
É o que me liga a você agora. Um saco de lixo. Pois, que tudo desabe de uma
vez na minha cabeça.
Moça entra no saco.
MOÇA
Talvez a mágoa escorra nesse lixo todo, onde foram parar as suas últimas
palavras, mãe. Vou mergulhar aqui nesse resto viscoso de banquete, onde os
cheiros se misturam. Pizza com sabão em pó. Sabonete com vinagre. Quero
misturar meu perfume francês com o cheiro disso tudo. Me impregnar, até
embrulhar o estômago e vomitar nisso tudo. Que merda! Eu que já tinha me
acostumado e achado até uma certa beleza em suportar sozinha o peso da
minha vida. E agora essa reviravolta. Vou ficar aqui. Nunca mais vou sair daqui.
Ana voltando com a água.
ANA
Moça do céu! Saia daí!
MOÇA
Não.
ANA
Você pode se machucar nas latas de atum. As tampinhas dão um corte feio,
sabia? Também você pode se melecar nas embalagens sujas. Venha dona,
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saia daí.
MOÇA
Já disse, estou bem aqui.
ANA
O saco é meu e já está bem cheio. E eu não quero você dentro dele. Saia!
Anda, venha.
Ana ajuda a moça a sair.
ANA
Tome a sua água. Só pode te fazer bem. Custou uma grana. Não me conformo
com o preço de uma garrafinha de água. Custa mais caro que um litro de
gasolina. E é água. Água. Isso, bebe essa fortuna. Onde é que já se viu? Uma
moça estudada, nova, bonita.
MOÇA
Lasquei minha unha.
ANA
Isso é o de menos. Unha cresce rápido. Tá mais calma?
MOÇA
Acho que sim.
ANA
Não sei se vou conseguir achar em tempo essa carta, moça. Meu marido daqui
a pouco vai passar com a carreta pra pegar esse saco e vamos juntos pra vila.
MOÇA
A senhora disse que faz trabalho extra. Eu pago (tira uma nota do bolso) Toma,
eu pago pra senhora continuar vasculhando o lixo.
ANA
Recicláveis, moça. Recicláveis.
MOÇA
Recicláveis.
ANA
Isso. Vou tentar achar. Se acalme.
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Ana volta para os papéis. A moça repara o lugar melancólica.
MOÇA
Havia bancos nessa pracinha, não havia?
ANA
(Ana vai aos poucos se alterando.) Tinha. Dois. Tiraram pros moradores de rua
não ocuparem. É um bairro metido a bacana. Não parece, moça, porque a
cidade é toda estilosa, cheia de mimos. Mas Curitiba é uma cidade cruel. Muito
cruel. Aqui os moradores fizeram um abaixo assinado para tirar os bancos e o
parquinho das crianças para colocar esses aparelhos ridículos de ginásticas.
Não está certo separar as crianças dos velhos. Um precisa do outro. Não
consigo entender vocês. Não consigo!
MOÇA
Fique calma, agora, a senhora, por favor. Estão nos olhando.
ANA
(Que está falando de dentro do saco, com corpo pra fora.) Pois que olhem.
Que olhem! (Grita.) Estou procurando uma carta que foi devolvida sem abrir.
(Entra em off a parte III da carta da mãe.)
MÃE
Minha ausência será perfeita para você. Não há mais amor em mim. Por
ninguém. Por mais nada. Todas as minhas razões me abandonaram. A morte
me parece menos terrível agora que estou cansada. Agora que estou calma.
Você viverá minha morte como lhe aprouver, como fez com a minha vida. Te
desejo toda a felicidade desse mundo. Tua mãe.
ANA
(Saindo do saco com um saco menor de papéis na mão e um livro.) Esse livro,
por acaso, estava dentro da maleta?
MOÇA
Não. Não tinha porquê. Era uma maleta com recordações guardadas pela
minha mãe. (Pegando o livro.) “Mãe Coragem”. É a tua história.
ANA
Não brinque.
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MOÇA
Leia. Você vai gostar. É o que Anna Fierling faz, catar as coisas e vender.
ANA
Gosto do que faço, moça. Mas desejo um futuro melhor pros meus filhos. Sonho
com uma profissão respeitada pra eles. Quero que apareçam. Existam. Porque
somos invisíveis. Meu marido foi atropelado por um carrão, que pra desviar a
carretinha e não arranhar a lataria, jogou meu marido que estava abaixado,
longe. Se não fosse a vila toda doar sangue ele tinha morrido. Mas foi tanto
sangue doado que o banco de sangue ficou com uma baita reserva. Somos
invisíveis pra vocês, mas existimos pra valer para os nossos.
Ana volta a mexer nos papéis. A moça chora baixinho. Pausa.
MOÇA
Fui injusta com a minha infância alegre. Esse lugar me traz imagens da minha
mãe quando eu era pequena. Parece que estou relendo um livro que estava
fechado há muitos anos. Não que eu queira, mas as lembranças agora me
atropelam. Minha mãe me trazia para brincar com outras crianças. Abria um
livro e ficava com um olho em mim outro na leitura. Nas festas da escola me
enfeitava com as fantasias que fossem. Quando tinha uma apresentação,
minha mãe aplaudia muito e gritava meu nome. Quando eu era pequena
gostava. Ficava orgulhosa. Quando fiquei adolescente odiava. Sentia muita
vergonha disso. Tive duas mães, uma antes e outra depois que o meu pai
morreu no acidente. Ela se tornou outra pessoa.
ANA
(Indo em direção a moça.) Esqueci o que eu ia falar.
MOÇA
Provavelmente ia me dizer não dá pra me enganar mais e fugir dos
acontecimentos reais. Que eu deveria considerar uma dádiva ter tido um pai e
uma mãe que me deram tudo do bom e do melhor e não me restringir só nas
lembranças que me fizeram sofrer. Parar de me rastejar e farejar coisas boas.
ANA
Não! Lembrei. Ia te perguntar, se você não quer ficar com o cachorro.
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MOÇA
Como?
ANA
O Marechal vai te fazer bem. É bobão, carinhoso, alegre. Vai fazer uma
festa quando você chegar da rua. Se você jogar uma coisa ele corre pega e
traz de volta. Aí, você joga de novo ele corre pega e traz de volta.
MOÇA
Minha vida é um cachorro.
ANA
Quer? Porque, senão, vou ter que vender o Marechal. Ele é de raça. Custou
caro, sua mãe me disse. Tem até documento, carteirinha de vacina, tudo isso.
Cachorro de raça tem doença cara. Se ficar doente não tenho como tratar. Eu
já tenho a Shakira e o Thor, dois vira latas. Se eu não vender, corro o risco da
molecada da vila roubar pra vender também. Eles não são bobos. Fazem isso
direto. Roubam cachorro de madame e vendem ou pedem dinheiro pra
devolver. Então, quer?
MOÇA
Não. Tenho medo de me apegar e não conseguir viver sem ele depois.
ANA
Acho que é disso que está precisando. (Volta para os papéis.)
MOÇA
Meu Deus! Me sinto uma ampulheta que foi virada antes de escorrer a areia
toda. Será mesmo que estou precisando de um cachorro? Marechal! Como o
meu pai era conhecido. Que doideira, minha mãe! Um cachorro agora. Passei
minha infância te pedindo um cachorro.
ANA
Ele é parecido com ela. Tem o pelo cor de café com leite. Sua mãe pintava os
cabelos da mesma cor. Então, quer? Posso te trazer na próxima terça.
MOÇA
Acho que não. Vou me desfazer das coisas do apartamento. Alugar ou pôr à
venda. Ainda não sei. Mas preciso voltar.
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ANA
A moça faz o quê?
MOÇA
Vendo pensamentos.
ANA
Minha Nossa! Nem vou perguntar que trabalho é esse. Eu também penso, mas
meus pensamentos não têm preço. Só cobro o que me custa tempo e muito
esforço.
MOÇA
Procure mais um pouco, por favor.
ANA
Não entendo. Não acha tarde pra saber o que sua mãe disse na carta?
MOÇA
Faz muito tempo que não sentia uma expectativa tão forte. Sabe quando você
tem um nome na ponta da língua e não consegue dizer? É essa sensação que
eu tenho agora. Um tormento. Preciso achar o envelope abrir, ler a carta. Dez
anos sem sentir vontade nenhuma de saber dela e agora uma necessidade de
ler suas últimas palavras. Talvez tentar me entender. Preciso que desabe tudo
na minha cabeça. (Fica nervosa.) Vou ao apartamento pegar umas coisas pra
você.
Moça sai e Ana abre um saco menor que tinha tirado de dentro do
grande. Joga os papéis no chão, vasculha. Encontra o envelope e, feliz como
quem achou um tesouro, abre como faz com tudo e começa a ler. Entra um
som de barulho de caminhão de lixo que cobre a voz baixa de Ana lendo. O
ruído vai sumindo e se ouve as últimas falas.
ANA
“Você viverá minha morte como lhe aprouver, como fez com a minha vida. Te
desejo toda a felicidade desse mundo. Tua mãe.”
Ana pensa um instante, depois amassa o envelope, a carta e esconde
os dois na roupa.
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ANA
Agora, professora, essa carta é uma verdade inútil.
MOÇA
(Entrega uns livros pra Ana.) Da minha mãe. Acho que ela gostaria que
ficassem com você.
ANA
(Visivelmente mexida com o que acabara de fazer) Muito obrigada.
MOÇA
Achou? Você me parece emocionada.
ANA
É que tenho que ir. Meu marido já vai passar pra colocar os papéis no carrinho.
Deve estar chegando.
MOÇA
Quanto vão te pagar por esses recicláveis?
ANA
Uns 50 reais.
MOÇA
Eu compro. (Dá o dinheiro à Ana.)
ANA
Tem certeza que quer ficar com esse saco? Talvez o envelope não estivesse
dentro dessa maleta. Pode ter se extraviado. Os correios andam uma bagunça,
hoje em dia.
MOÇA
Preciso tentar.
ANA
(Pegando o celular da bolsa.) Anote seu número aqui. Eu te ligo. Vai que você
decide ficar com o cachorro.
MOÇA
(Anota.) Pode me ligar, então.
ANA
Que nome bonito você tem!
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MOÇA
Obrigada. (Lembrando que não sabe ainda o nome da catadora) E você, qual
é o seu nome?
ANA
O mesmo da mulher dessa história.
MOÇA
Está brincando?
ANA
Sou Ana. Minha mãe é Dona Ana. Minha filha é Ana Maria. Minha neta, Aninha.
O que não faltam são Anas.
MOÇA
Me ligue.
ANA
Te ligo.
Ana sai. A moça começa a passar mal. Corre em busca de uma sacola
de plástico e de joelhos vomita a alma.
MOÇA
Estou virando pelo meu avesso. Que porta foi arrombada? Que desejo é esse
que toma conta de mim? De preencher esse vazio, vasculhando tudo o que foi
guardado em desordem? Fazer respirar o que não respira mais. Quase sinto
falta do medo na beira desse abismo.
Moça tirando o lixo do saco. A voz dela se ouve em off ou não.
MOÇA
(Off. Caso seja decidido assim)
Quem vai lembrar que eu vivi?
E de ti, quem vai lembrar?
Tua filha vai rezar por ti.
Eu não sei rezar. Esqueci teu rosto.
O ninho do teu colo, o gosto de seus doces.
Me ensinaram a pensar e não falar.
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Hoje é o dia da minha libertação, Ana.
Você cata o lixo de quem não vale o teu sapato gasto.
E é com sorriso que você agradece tua vida miserável.
Hoje ninguém está me pagando pra pensar.
Hoje eu calaria uma fera com a minha voz engasgada.
Se ela me amava, deveria ter gritado o meu nome.
E não, ter derramado esse amor
Entre as vírgulas de uma letra perfeita,
Em uma carta que eu não queria,
Ana, Ana, não era você que queria que eu falasse?
FIM.
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Atriz, diretora e professora, Silvia Con-
tursi, participou de diversas peças teatrais
e musicais de Curitiba por 32 anos, sendo
premiada com trabalhos que já circularam
todo o país. A extensa carreira como pro-
fessora, hoje, concentra-se em sua atua-
ção como docente do Colégio Estadual do
Paraná onde leciona no curso técnico de
artes dramáticas, há mais de 10 anos.
Atriz há mais de 50 anos, Regina Bastos é uma
das artistas mais consagradas e premiadas do
Paraná. Fez parte dos momentos históricos da
construção da cena teatral curitibana e partici-
pou de trabalhos marcantes com companhias e
diretores de renome nacional. Iniciou sua car-
reira em 1970 na Escolinha de Artes do Colégio
Estadual do Paraná e ao longo de sua carreira
já foi dirigida por nomes como, Oraci Gemba,
Antônio Carlos Kraide, Ademar Guerra, Rober-
to Vignati, Aderbal Freire Filho, Vital Santos,
Fátima Ortiz, Marcelo Marchioro e Edson Bue-
no. Com os espetáculos “A feia”, “O dedo volú-
vel do destino” e “As Kamikazes” dirigidos por
Cleide Piasecki, recebeu três prêmios pela sua
atuação. Nos último dez anos, Regina tem tra-
balhado com a diretora Ana Rosa Genari Tez-
za, na Ave Lola Trupe de Teatro, onde faz parte
do elenco dos espetáculos “Tchekhov”, “Nuon”,
“Manaós – Uma Saga de Luz e Sombra” e “Cão
Vadio”
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