U M A T R I LO G I A S O B R E O “ S O C I A L I S M O R E A L”
A ilusão
dos inocentes
Wladimir Pomar
2a edição
U M A T R I LO G I A S O B R E O “ S O C I A L I S M O R E A L”
A ilusão
dos inocentes
Wladimir Pomar
2a edição
Wladimir Pomar
A ILUSÃO DOS INOCENTES
2a edição, São Paulo, 2022, Página 13
1a edição: novembro de 1994, Editora Página Aberta
Coordenação editorial
Valter Pomar
Coeditor
Patrick Campos Araújo
Revisão da 3a edição
Rita Camacho
Projeto gráfico e diagramação
Emilio Font
Conselho editorial Página 13
Elisa Guaraná, Francisco Xarão, Giovane Zuanazzi, Jandyra Uehara, Luiz Momesso, Marcos Piccin,
Pamela Kenne, Paulo Denisar, Pedro Pomar, Pere Petit, Rodrigo César,
Rosana Ramos,Rosângela Alves de Oliveira, Sonia Fardin, Suelen Aires Gonçalves.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Pomar, Wladimir
A Ilusão dos inocentes [livro eletrônico] / Wladimir Pomar.
-- 2. ed. -- São Paulo: Associação de Estudos Página 13, 2022.
-- (Uma trilogia sobre o socialismo real)
ISBN 978-65-88850-07-7
1. Capitalismo 2. Europa, Leste - Política e governo 3. So-
cialismo I. Título II. Série.
22-113827 CDD-320.53194
Índices para catálogo sistemático:
1. Socialismo : Europa : Ciência política 320.53194
Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129
www.pagina13.org.br
Rua Silveira Martins, 147, cj. 11. Sé, São Paulo, SP. CEP 01.019-000
CNPJ 10.445.600/0001-17
SUMÁRIO
Novamente sobre a trilogia de Wladimir 5
Advertência 13
I Relembrando os motivos 15
II No melhor dos mundos 27
III Caindo na real 35
ONDE PANGLOSS TEM RAZÃO 40
O LADO ESCURO 48
VALE DE LÁGRIMAS 58
A MANCHA PAUPERIZANTE 72
A GLOBALIZAÇÃO CONFLITUOSA 78
A MORTE DO TRABALHO 91
IV O sonho dos justos 105
REFAZENDO OS ELOS 108
AS UTOPIAS FILANTRÓPICAS 116
A ILUSTRAÇÃO UTÓPICA 121
AS UTOPIAS MARXISTAS 126
A CRÍTICA DE MARX 132
V Rompendo com o presente 141
CONCEITOS MALDITOS 145
RELEMBRANDO O PASSADO 154
PECADOS CAPITAIS 164
A BARBARIZAÇÃO DO PRESENTE 183
TIGRES HETERODOXOS 197
SOCIALISMO SOBRANTE 202
VI Limites e possibilidades 221
O FRACASSO DO TRIUNFO 229
CONTINUIDADE E RUPTURAS 234
RUPTURAS E CONTINUIDADE 246
VII A transição possível 253
ESTADO SOCIALIZANTE 256
A SOCIALIZAÇÃO DO MERCADO 267
RISCO CALCULADO 288
A SOCIALIZAÇÃO DEMOCRÁTICA 293
O RENASCIMENTO DO TRABALHO 299
VIII Deixando em aberto 307
Fontes 309
CITADAS 309
Novamente sobre a trilogia de Wladimir
A ilusão dos inocentes é o terceiro livro da trilogia elaborada por
Wladimir Pomar a partir de sua viagem ao mundo soviético em
dissolução, no terceiro trimestre de 1990. Os outros dois livros são
Rasgando a cortina e Miragem do mercado, ambos publicados pelo
selo Brasil Urgente, pertencente à editora Scritta, dirigida por Breno
Altman.
Esta trilogia começou a ser elaborada no início dos anos 1990.
Não parece ter tido muita repercussão à época do seu lançamento, por
motivos variados que escapam ao propósito desta apresentação. Sorte
melhor tiveram os livros de Wladimir sobre a China, como é o caso
de O enigma chinês: capitalismo ou socialismo (Alfa-ômega e Editora
da Fundação Perseu Abramo); China, o dragão do século XXI (Ática); A
revolução chinesa (Unesp); China: desfazendo mitos (Editora Página 13
& Editora Publisher).
Foi só no ano de 2010 que a Editora Página 13 publicou uma se-
gunda edição (eletrônica) de Rasgando e de Miragem. Já A Ilusão teve
que esperar até este santo ano de 2022.
A presente terceira edição da trilogia foi precedida de uma revi-
são e preparação dos originais, na qual decidimos manter as regras
ortográficas vigentes na época da primeira edição.
A decisão de publicar – neste momento - uma nova edição da tri-
logia de Wladimir liga-se à nossa avaliação acerca da situação mundial
e nacional, determinada por uma “crise sistêmica” – ou seja, a conju-
gação orgânica de inúmeras crises: ambiental, sanitária, social, econô-
mica, política, nacional, geopolítica, cultural – da sociedade capitalis-
ta. O núcleo desta crise sistêmica é uma crise de acumulação, ou seja,
5
WLADIMIR POMAR
a crescente dificuldade que o capitalismo enfrenta para se reproduzir
de forma ampliada.
Considerando a história pregressa, existem três desfechos pos-
síveis para este tipo de situação. O primeiro deles é o colapso geral da
sociedade; o segundo desfecho possível é um novo ciclo longo de ex-
pansão capitalista; o terceiro desfecho possível é que, da atual crise
brote uma alternativa sistêmica, ou seja, um novo ciclo de experiên-
cias socialistas.
Sendo essas as variantes, seria de esperar que nós apostássemos
todas as nossas fichas no socialismo. Infelizmente, uma parte da es-
querda brasileira e uma parte do PT seguem acreditando que, nesse
momento, o máximo que podemos alcançar é a elevação dos níveis de
bem-estar, de liberdades democráticas e de relações civilizadas, mas
tudo isso dentro do capitalismo.
Esta visão não é propriamente nova – a rigor, foi hegemônica na
esquerda brasileira de 1922 a 1980 e tornou-se novamente hegemôni-
ca desde 1995. Além disso, trata-se de uma visão até certo ponto com-
preensível, tendo em conta a força do bolsonarismo. Mas constitui, em
nossa opinião, uma visão equivocada, que desconsidera a natureza do
capitalismo brasileiro e de sua classe dominante.
Somos uma nação periférica e dependente. A principal responsá-
vel por esta situação é a classe dominante brasileira, que tanto ontem
como hoje prefere usufruir das vantagens decorrentes da condição de
sócia menor das potências metropolitanas. O preço por esta opção é
pago pela maioria do povo brasileiro: para manter taxas de exploração
satisfatórias para o consórcio explorador, nosso desenvolvimento é sa-
botado, nosso bem-estar social é reduzido e nossas liberdades demo-
cráticas são violentadas. Não por acaso as piores heranças do passado
seguem assombrando o presente e o futuro do nosso povo.
A classe dominante tem como “opção preferencial” tratar a ferro
e fogo as lutas do povo por soberania, liberdade, bem-estar e desen-
volvimento. E mesmo quando era obrigada a dar um passo adiante, a
classe dominante o fazia conservando a propriedade e o poder dos de
sempre. Foi assim na Independência, feita sob comando de um filho da
família real colonizadora. Foi assim na abolição, retardada ao máximo
e desacompanhada de medidas que garantissem a devida propriedade
6
A ILUSÃO DOS INOCENTES
e poder a quem fora submetida à abjeta escravidão. Foi assim na Repú-
blica, proclamada e conduzida por militares e oligarcas. Foi assim na
chamada revolução de 1930, onde prevaleceu a modernização conser-
vadora conduzida com métodos ditatoriais. Foi assim depois de 1945,
onde a democratização foi acompanhada da repressão e restrições à
vida sindical e política da classe trabalhadora. E, por óbvio, foi assim
durante a ditadura militar. A classe dominante brasileira tem as mãos
sujas de sangue e a cabeça cheia de mentiras, pois é principalmente as-
sim que garante a exploração da maioria do povo, dos assalariados, do
campesinato, dos indígenas, dos negros, das mulheres, da juventude.
A ditadura militar iniciada com o golpe de 1964 foi derrotada,
mas não foi derrubada. Seus crimes seguem impunes, como se com-
provou mais uma vez com a recente revelação dos áudios do Supremo
Tribunal Militar. No ambiente criado por esta impunidade, cresceram
os esquadrões da morte e as atuais milícias, a sistemática violência po-
licial contra os pobres pretos periféricos, as quadrilhas que desviam
por dentro e por fora da lei os recursos públicos. A ausência de punição
para golpistas, assassinos e torturadores contribuiu para o surgimen-
to de Bolsonaro, do bolsonarismo e da atual extrema direita. Por que
os golpistas de 1964 e os criminosos da ditadura não foram punidos?
Uma das respostas é: porque nos anos 1980 prevaleceu entre os se-
tores democráticos a postura de “virar a página do golpe”. Exemplo
disso foi a decisão, adotada pelo PMDB, de indicar José Sarney – até
a véspera, presidente nacional do PDS, o partido oficial da ditadura
militar - para ser candidato a vice-presidente da República na chapa
encabeçada por Tancredo Neves. Outro exemplo foi a indicação de ou-
tro prócer da ditadura, o senador Marco Maciel, para ser candidato a
vice-presidente da República na chapa encabeçada por Fernando Hen-
rique Cardoso. Num caso, como noutro, a indicação de um vice ligado
à ditadura foi um sinal da disposição de conciliar com o passado. Não
admira, portanto, que tanto a Nova República quanto os governos FHC
tenham sido como foram.
O Partido dos Trabalhadores nasceu enfrentando tanto a dita-
dura quanto a conciliação das elites. Recusou comparecer ao colégio
eleitoral; assinou, mas não chancelou com seu voto a versão final da
Constituição de 1988; ofereceu ao país uma alternativa presidencial
7
WLADIMIR POMAR
radical em 1989; fez oposição aos governos tucanos e construiu, no
congresso de Olinda de 2001, sob a batuta do companheiro Celso Da-
niel, um programa de ruptura com o neoliberalismo. Hoje é comum
encontrar quem tente apagar esta história ou mesmo apresentá-la de
maneira totalmente diferente, como fazem aqueles que tentam apre-
sentar o PSDB e o PT como irmãos separados pelo acaso. Mas não há
como disfarçar: durante os anos 1990, os tucanos se converteram no
principal partido do capital financeiro, do agronegócio, da grande mi-
neração, das transnacionais, do Consenso de Washington. Já o PT é o
partido que representa os setores exploradas e oprimidos exatamente
pelos patrões do tucanato.
De 2003 a 2016, o Partido dos Trabalhadores venceu quatro
eleições presidenciais, governou o Brasil e implementou importantes
políticas públicas em favor do povo brasileiro. Tais medidas desagra-
daram, em maior ou menor medida, a classe dominante, seus repre-
sentantes políticos e seus sócios estrangeiros. Mas as mudanças im-
plementadas pelo PT não chegaram ao ponto de afetar os instrumentos
utilizados pela classe dominante para efetivar o golpe de 2016 (instru-
mentos que, por sinal, foram utilizados nos golpes de 1954 e 1964). Não
quebramos o oligopólio que controla a comunicação; não derrotamos a
hegemonia pró-EUA e golpista existente nas forças armadas; não alte-
ramos os mecanismos que impõem uma maioria antipopular no legis-
lativo; e, pior ainda, fortalecemos os mecanismos que permitiram ao
sistema judiciário operar a AP 470 e a Operação Lava Jato. Sem estes
e outros instrumentos a serviço da classe dominante, não teriam tido
êxito o golpe de 2016 contra o governo da presidenta Dilma Rousseff,
nem o golpe de 2018 contra a candidatura do presidente Lula.
O golpe de 2016, a condenação, a prisão e a interdição da can-
didatura de Lula em 2018 demonstraram mais uma vez a natureza
golpista, liberticida, antidemocrática, antinacional e antipopular da
classe dominante brasileira e da imensa maioria de seus instrumen-
tos políticos. Como em 1954 e em 1964, o golpe teve o apoio da maioria
da classe dominante e contou com amplo apoio nos setores médios,
em parcelas do povo, na alta burocracia do Estado, nas forças armadas
e policiais, nos meios de comunicação e nos vendilhões do templo. O
golpe de 2016 foi obra da direita gourmet, dos neoliberais tradicionais
8
A ILUSÃO DOS INOCENTES
do PSDB, do MDB e do DEM, partidos que criaram e sustentaram o go-
verno Temer e sua ponte para o passado. Exitosa no golpe, a direita
tradicional achou que ganharia a eleição presidencial de 2018. Mas
foi surpreendida e atropelada pelo crescimento eleitoral de Bolsona-
ro e da extrema direita. Fora do segundo turno, a classe dominante e
a maioria de seus representantes políticos não teve dúvida: entre um
professor e um defensor da tortura, optaram por derrotar o PT. E ao
longo do governo cavernícola, a direita gourmet fez de tudo – apoio,
cumplicidade, aliança, transação e tolerância – menos oposição de
verdade. E o motivo é evidente: o governo Bolsonaro deu e segue dando
continuidade às políticas neoliberais de Collor e dos tucanos. Só agora,
frente aos sinais crescentes de derrota do cavernícola, a direita gour-
met se aproxima da oposição de esquerda, mas sem nunca abrir mão
de seu programa neoliberal.
Coube ao PT e demais partidos, movimentos sociais e sindicatos
do campo democrático, popular e socialista fazer oposição aos gover-
nos golpistas de Temer e Bolsonaro. Mas esta oposição não foi unifica-
da: de 2016 até hoje, a oposição popular implementou duas táticas dis-
tintas. A primeira destas táticas defendia ênfase na luta popular para
derrotar Bolsonaro e os neoliberais, se possível antes de 2022. A outra
tática defendia construir uma frente ampla com setores de centro e di-
reita, com o objetivo de derrotar Bolsonaro nas eleições presidenciais.
Foi esta segunda tática que acabou prevalecendo.
No momento em que esta apresentação está sendo escrita, todos
os nossos esforços estão voltados para eleger Lula presidente da Re-
pública. Essencial para isso é não baixar a guarda: o cavernícola não
está derrotado e dispõe de instrumentos poderosos seja para travar
a disputa eleitoral, seja para tentar um golpe, assim como para fazer
uma dura oposição. Trata-se por isto de mobilizar amplos setores da
classe trabalhadora, num movimento político e social em defesa da
candidatura Lula.
A ansiada vitória de Lula nas eleições presidenciais, como é ób-
vio, não vai encerrar nosso combate. Materializar nossa soberania,
nossas liberdades, nosso bem-estar, nosso desenvolvimento, exigirá
enfrentar e derrotar o imperialismo e o conjunto da classe dominan-
te, ou seja, o capitalismo realmente existente em nosso país. Falando
9
WLADIMIR POMAR
de outra forma, trata-se de construir as condições políticas para fazer,
além de políticas públicas, transformações estruturais na sociedade
brasileira, em direção ao socialismo.
Neste sentido, devemos retomar o fio do debate travado, nos anos
1990, acerca do chamado “socialismo real”. A trilogia escrita por Wla-
dimir Pomar é útil nesse sentido, assim como seus livros sobre a China
e seus textos sobre a realidade brasileira, como é o caso de A dialéti-
ca da história (Editora Página 13), Araguaia, o partido e a guerrilha
(Brasil Debates), Pedro Pomar: uma vida em vermelho (Xamã); Quase
lá, Lula e o susto das elites (Brasil Urgente), Um mundo a ganhar (Vira-
mundo); O Brasil em 1990 e Era Vargas: a modernização conservadora
(Ática). Assim como a autobiografia O nome da vida (Fundação Perseu
Abramo), Textos e contextos (Editora Página 13) e Brasil, crise interna-
cional e projeto de sociedade (Fundação Perseu Abramo).
Wladimir Pomar nasceu em Belém do Pará, a 14 de julho de 1936,
filho de Pedro Pomar e Catarina Torres. Desde os cinco anos, conhe-
ceu a vida da clandestinidade, pela perseguição que a polícia do Estado
Novo de Vargas movia às atividades do Partido Comunista do Brasil
(PCB), do qual seu pai era membro.
Começou a trabalhar aos doze anos, como aprendiz de linotipista,
ao mesmo tempo que fazia o ginásio. Depois trabalhou como repórter e
redator nos jornais Tribuna Popular e Classe Operária. Foi colaborador
do jornal Movimento, diretor do Correio Agropecuário, além de repór-
ter e diretor editorial de Brasil Extra.
Adquiriu formação técnica e trabalhou como técnico de planeja-
mento e manutenção de máquinas pesadas da Companhia Siderúrgi-
ca Nacional (CSN), em Volta Redonda (RJ) e Conselheiro Lafaiete (MG).
Foi engenheiro de serviços da General Eletric, no setor de locomotivas,
tendo trabalhado junto às estradas de ferro Leopoldina (RJ) e Leste-
-Brasileira (BA). Também trabalhou como engenheiro de manutenção
da Cerâmica do Cariri.
Militante político desde 1949, quando ingressou no PCB, Wladi-
mir Pomar atuou inicialmente no movimento estudantil secundarista.
Em 1951, estudou ajustagem mecânica no Senai, trabalhou na Arno e
participou no movimento sindical metalúrgico. Em 1962, fez parte do
movimento que deu origem ao PCdoB. Em 1964, foi preso na Bahia, por
10
A ILUSÃO DOS INOCENTES
ação de resistência ao golpe militar. Solto no final daquele ano, devido
a habeas corpus, foi julgado e condenado à revelia.
Depois de 1964, colaborou com a imprensa partidária e desen-
volveu suas atividades políticas principalmente no interior de Goiás
e do Ceará, neste último entre os sindicatos de trabalhadores rurais.
Viveu clandestinamente até 1976, quando foi preso novamente. Desta
vez, durante uma ação militar que assassinou três dirigentes do PC-
doB, no bairro da Lapa (SP), um dos quais seu pai. Foi libertado pouco
antes da Anistia, em 1979. Posteriormente, ingressou no Partido dos
Trabalhadores.
De 1984 a 1990, integrou a executiva nacional do PT, onde foi res-
ponsável pela secretaria nacional de formação política, atividade que
acumulou com a coordenação do Instituto Cajamar. Em 1986, partici-
pou da coordenação da campanha de Lula a deputado federal consti-
tuinte. Durante as eleições presidenciais de 1989, foi coordenador-ge-
ral da campanha Lula. Em 1990, deixou o Diretório Nacional do PT.
Nos últimos 32 anos, tem atuado como militante, assumindo tarefas
diversas, especialmente na formação política e contribuindo regular-
mente com diversos jornais e revistas, como o Correio da Cidadania, a
revista Teoria e Debate e o site Página 13.
Terminamos esta apresentação reproduzindo as últimas pala-
vras do livro que o leitor tem em mãos: “as ilusões dos inocentes, mal
ou bem, foram as fontes em que se embebedaram os sonhos dos justos.
Sonhos que alimentaram as lutas por um mundo melhor e que conti-
nuam por concretizar-se. Por isso mesmo, o debate e o combate per-
manecem em aberto”.
Valter Pomar
Membro do Diretório Nacional do PT e
diretor da Fundação Perseu Abramo.
11
12
Advertência
Este texto é dedicado, principalmente, às pessoas que não tiveram for-
mação acadêmica ou mesmo universitária. Por isso, para facilitar sua leitu-
ra, evitamos ao máximo utilizar termos técnicos pouco conhecidos, embora
nem sempre isso tenha sido possível. Também usamos a transcrição livre de
trechos de obras de outros autores, com os quais concordamos ou polemiza-
mos, de modo a torná-los mais compreensíveis aos leitores. As obras, revistas
ou jornais dos quais as citações foram retiradas encontram-se numa biblio-
grafia no final do livro.
13
14
I Relembrando os motivos
F oi no terceiro trimestre de 1990 que percorri, durante três meses,
os antigos países socialistas do Leste europeu. Era um tempo con-
fuso, de mudanças que se sucediam com muita rapidez. Os governos
comunistas e/ou socialistas da Polônia, Tchecoeslovaquia, Hungria,
Bulgária, Romênia e Alemanha Oriental haviam ruído sob a pressão de
grandes movimentos populares e do olhar complacente ou do empur-
rão solidário das principais lideranças soviéticas. O Muro de Berlim,
que simbolizava mais do que qualquer outra coisa a divisão entre os
dois sistemas sociais e políticos, fora derrubado e abrira as comportas
para a reunificação alemã e a integração da parte oriental ao conjunto
da Europa e do Ocidente.
A Iugoslávia e a Albânia, que em passado ainda recente viviam
às turras em virtude das estreitas relações da primeira com os paí-
ses ocidentais, pareciam agüentar o tranco. Entretanto, eram eviden-
tes os sinais, muito vivos, de que a situação iria deteriorar-se e que
esses países poderiam explodir em convulsões ainda mais graves. A
União Soviética, por seu turno, continuava alardeando as vantagens
da glasnost e da perestroika. E Gorbachev parecia acreditar, piamente,
que elas contribuíram para a reforma e o reforçamento do socialismo.
Mas aí também os indícios da desorganização econômica e social e da
fermentação política eram muito fortes para ser ignorados.
O furacão que desestabilizara as sociedades da Europa central e
oriental não arrefecera seu ímpeto. Tudo indicava que deveria esten-
der-se pelos Bálcãs e pelo mais antigo país socialista. Mas não era só
nessa parte do mundo que ele causava estragos de toda ordem. Comu-
nistas, socialistas e anticapitalistas dos mais diferentes e longínquos
15
WLADIMIR POMAR
países do mundo sentiam-se perplexos e sem condições de explicar
coerentemente os acontecimentos do leste europeu. Já normalmente
atomizado, o movimento socialista dispersou-se ainda mais nas tenta-
tivas, as mais disparatadas, de avaliar as causas e as conseqüências do
desmoronamento do sistema soviético.
Por toda parte, assistia-se a um furor inusitado no descarte de
Marx e do marxismo, na adoção da modernidade capitalista como a
posição mais radical e inovadora e na inflexão para o neoliberalismo
como o politicamente mais correto. Não foram somente os povos do
leste europeu que acreditavam no milagre do mercado e passaram a
viver a ilusão de uma rápida evolução de suas condições de vida para
os padrões ocidentais, como se ocidentais fossem unicamente os altos
padrões de consumo dos países ricos. Muitos socialistas sucumbiram
à ilusão dos inocentes e também passaram a acreditar na suposta nova
ordem mundial capitalista de paz, prosperidade e democracia.
Alguns, por outro lado, acreditavam haver enxergado a mão im-
perialista nos acontecimentos e ainda nutriam a esperança de uma
recuperação a partir da própria União Soviética. Outros, mais realis-
tas, voltavam-se para a social-democracia como a tábua de salvação
das conquistas sociais, reais ou fictícias, do antigo regime. A maioria,
entre perplexa e desorientada, perguntava-se o que realmente aconte-
cera. Já não havia mais certeza de que o socialismo fora algo de bom
ocorrido na história humana. Que tivesse futuro, nem falar.
Foi nesse contexto e sob o impacto de observações in loco, que fo-
ram escritos e publicados, ainda em 1991, Rasgando a cortina e A mira-
gem do mercado. Rasgando a cortina combina reportagem de viagem com
uma breve análise do socialismo naqueles países, das causas de seu
fracasso e das ilusões que o mercado capitalista fizera florescer entre
suas populações. Descarta a idéia de que tais países não teriam sido
socialistas, entre outras razões por considerá-la uma fuga ao enfren-
tamento do problema. Também não aceita a tese da conspiração im-
perialista. Mesmo acreditando que o imperialismo sempre conspirou
para derrubar o socialismo, defende um ponto de vista mais plausível.
O que fracassou naqueles países foi um tipo específico de socialismo,
o tipo soviético, por sua incapacidade de reformar-se e superar as con-
tradições que gerou em seu processo de construção.
16
A ILUSÃO DOS INOCENTES
Por isso mesmo, não aceita que a vitória saboreada pelo capita-
lismo seja uma vitória definitiva. O sistema de produção-para-lucro,
como chama Carson, não é capaz de proporcionar prosperidade, paz
e democracia a toda a humanidade. Em sua expansão cíclica, o capital
coloca os seres humanos, cada vez mais, diante da necessidade de op-
tar entre a destruição, a barbárie e o socialismo.
A miragem do mercado, escrito antes da desagregação da União
Soviética, procura desenvolver mais extensamente essas idéias. Não
aceita fantasias em torno da possibilidade de reverter a situação nos
antigos regimes socialistas de tipo soviético.
Recoloca em evidência a férrea lógica do capital, que não pode
deixar dúvidas sobre o que se deve esperar de seu domínio. As mu-
danças que continuavam a ocorrer na Europa oriental reforçavam as
tendências ao mercado capitalista, à desagregação nacional, à amplia-
ção da miséria e ao ressurgimento da luta de classes. Ao derrubar o
tipo soviético de socialismo, o capital deveria marcar os anos vindou-
ros pelo agravamento de suas próprias contradições internas e pelo
renascimento de novas variantes de socialismo.
A ironia da história é que o próprio capital, sempre às voltas com
suas tentativas de sufocar a luta de classes e matar o socialismo, exala
o socialismo por todos os poros.
Por isso mesmo, o último capítulo de A miragem do mercado trata
da recuperação da esperança, da possibilidade de que o futuro venha
a pertencer ao socialismo. O que não se esperava é que muitas das ten-
dências apontadas nesse texto e no anterior, que na época pareciam
barcos navegando contra a corrente, se confirmassem de forma tão
precisa e tão veloz, contradizendo a maioria das análises que vislum-
bravam um novo e eterno nível de desenvolvimento capitalista.
As dificuldades na anexação da Alemanha Oriental; a divisão
da Tchecoslováquia em dois estados independentes; a desagregação
e extinção da União Soviética; a transformação da Albânia; a guerra
fratricida entre as etnias da antiga Iugoslávia, Rússia, Armênia, Azer-
baijão, Geórgia, Tajiquistão e em outras regiões dessa parte do mundo;
a expansão do desemprego e da miséria de massa, em contraste com
a acumulação selvagem da nova riqueza capitalista em todos os paí-
ses do antigo socialismo europeu; a permanente instabilidade políti-
17
WLADIMIR POMAR
ca e a substituição da participação popular, que marcara a derrubada
dos regimes socialistas, por novos tipos de autoritarismo liberal; tudo
isso tornou incertas e sombrias as tão ansiadas paz, prosperidade e
democracia que a implantação do mercado capitalista prometera. Não
menos veloz foi a extensão da crise do socialismo europeu oriental ao
capitalismo ocidental e japonês. O que parecia uma crise estrutural
exclusiva do socialismo transformou-se, muito rapidamente, numa
crise geral do sistema capitalista mundial. Os ventos recessivos, que
há muito sopravam da periferia do sistema, atingiram os países cen-
trais, levantando as fuligens acumuladas pelo alastramento da miséria
de massa. A xenofobia e as rivalidades étnicas e religiosas passaram a
manchar as vitrines coloridas com as quais os bolsões de riqueza do
mundo atraem os povos para as delícias do capital.
E natural, assim, que este novo texto comece relembrando as ilu-
sões suscitadas pelo capitalismo com a derrocada do socialismo sovi-
ético. Elas impregnaram os inocentes não só dos antigos países socia-
listas, como também da maioria dos países do mundo. Os arautos do
capital prometeram o melhor dos mundos para os povos libertos do co-
munismo. E também para seus próprios povos, supostamente libertos
do medo do comunismo. Nas mais diferentes regiões do planeta, con-
seguiram ressuscitar Pangloss, famoso personagem de Voltaire criado
para ridicularizar o sistema feudal e para quem tudo estava sempre
bem, no melhor dos mundos.
Foi um tempo em que pulularam panglossianos de todos os mati-
zes liberais e socialistas. Estes, arrependidos de haver tentado o assal-
to aos céus, procuraram adaptar-se à moda predominante e apagar a
linha de distinção entre capitalismo e socialismo. Aqueles, explorando
ao máximo as oportunidades abertas pela derrocada do socialismo na
Europa central e oriental. Esforçaram-se para tornar verdades absolu-
tas suas promessas de paz na Terra, superioridade da democracia libe-
ral e das virtudes do capital, fim das guerras e da luta de classes e eter-
nidade capitalista. Esse mundo panglossiano não é, porém, o mundo
real. É verdade que os novos Panglosses aparentam boa dose de razão
quando falam entusiasmados da expansão capitalista. Esta foi capaz
de criar um novo mercado mundial, novos padrões de produtividade
e um novo estágio da concorrência, sob os auspícios da terceira revo-
18
A ILUSÃO DOS INOCENTES
lução tecnológica conhecida pela humanidade. Criou sociedades de
bem-estar (welfare states) e uma vasta produção global capaz de atender
às necessidades alimentares e de conforto de toda a humanidade. E fez
florescer e disseminar a democracia, em que todos são iguais perante
as leis e têm as mesmas oportunidades, pelo menos formalmente.
Contraditoriamente, esse é também o mundo que transformou
continentes inteiros em repositórios de refugos e de estoques de força
de trabalho desempregada ou subempregada, vivendo na miséria mais
deprimente, uma verdadeira chaga pestilenta. É o mundo que assiste à
impiedosa disseminação dessa chaga pelos antigos países do socialis-
mo europeu e pelos próprios países ricos. A mancha da pauperização
absoluta, que parecia fadada a ser enterrada com o socialismo e o mar-
xismo que a previu, volta a assustar os ideólogos do capital porque não
mais consegue ficar restrita aos países e regiões relegados ao atraso.
Tão assustadora quanto o alastramento da miséria de massa pa-
rece ser a aceleração de algumas tendências desse mundo, que pode-
ríamos chamar de tendências longas. Certamente, algumas apontam
para condições reputadas como favoráveis aos povos do planeta, dando
razão a Pangloss multipolaridade econômica e política; continuidade
da revolução tecnológica e elevação da produtividade; ampliação das
demandas democráticas e do pluralismo político; despertar da aten-
ção ecológica. Outras, porém, apontam para a destruição e a barbárie:
hegemonia militar dos Estados Unidos; expansão do desemprego tec-
nológico ou estrutural e correspondente morte do trabalho; intensifi-
cação da guerra comercial, formação de blocos regionais e aumento do
protecionismo; concentração das riquezas, terras e capitais nas mãos
de estratos cada vez mais reduzidos da população mundial; dissemi-
nação dos conflitos de baixa intensidade; novas ameaças à democracia
e ressurgimento de diferentes formas de autoritarismo; persistência
das ameaças de desastres ecológicos.
Esse mundo capitalista real e contraditório, carregado de antago-
nismos, é a origem das desgraças da humanidade desde que se firmou
como sistema dominante.
Mas é, também, a origem de muitos de seus benefícios e de seus
sonhos e utopias em construir um mundo melhor. Aliás, a humanidade
teima em sonhar um mundo livre e justo desde os primórdios de sua
19
WLADIMIR POMAR
civilização. Nas mitologias egípcia, chinesa e grega da antiguidade, o
sonho de libertar-se do domínio das forças da natureza levou os ho-
mens a sofrimentos de toda ordem. Durante o Império Romano, escra-
vos, cristãos e povos bárbaros insurgiram-se na busca da liberdade,
adotando um sistema comunitário que já se tornara irremediavelmen-
te parte do passado. O máximo que conseguiram foi evoluir da opres-
são escravista para a não menos opressiva proteção feudal.
Os oprimidos do feudalismo, na sua vez, depois de muitos levan-
tes, acreditaram na igualdade, fraternidade e liberdade que a burgue-
sia lhes ofereceu. Deram-lhe suporte para destruir o antigo regime e
implantar o capitalismo, em que todos teriam as mesmas condições
para vencer na vida. Resvalaram, porém, num novo tipo de opressão
e sofrimento. Mais uma vez, como se estivessem eternamente à busca
do Santo Graal da liberdade e da justiça, foram levados a novos sonhos
e a novas utopias, comunistas e socialistas.
Recuperamos essas manifestações dos sonhos dos justos, pro-
vocadas pelas contradições do mundo real. Quisemos mostrar não só
sua constante aproximação da justiça e da liberdade almejadas, mas
também desmistificar a idéia de que tais sonhos e utopias seriam uma
invenção de Marx e Engels.
O que nos obrigou a reavaliar as críticas de Marx, tanto ao sistema
capitalista quanto a diversas utopias de sua época. Marx foi o primeiro
pensador a afirmar que a transformação de um tipo de sociedade em
outra era fruto do desenvolvimento das contradições dessa sociedade
e não das utopias dos homens, por mais justas e libertárias que estas
fossem. Para demonstrar essa teoria, usou-a como método para estu-
dar o capitalismo no país em que mais se desenvolvera a Inglaterra. E
concluiu que esse sistema econômico e social gerava contradições pró-
prias que deveriam transformá-lo, ao amadurecerem, numa sociedade
de novo tipo. Chamou-a socialismo (fase inicial) e comunismo (fase su-
perior), talvez em homenagem aos utópicos que criticara.
Apesar de sua aversão às utopias, Marx não chegou a se livrar
completamente delas. Enxergou as contradições do capitalismo desen-
volvido na Inglaterra, França e Alemanha muito antes que elas tives-
sem realmente ocorrido. Como conseqüência, supôs prematuramente
que estavam dadas as condições para a revolução social. E não deu a
20
A ILUSÃO DOS INOCENTES
importância devida à ação do Estado burguês para minorar as crises
cíclicas do capitalismo. Nem à possibilidade de ocorrerem revoluções
anticapitalistas em países onde as forças produtivas e as relações ca-
pitalistas ainda se encontravam atrasadas.
Marx é também acusado de outras utopias, como a de haver so-
nhado com a abundância. Com base na tendência de desenvolvimento
das forças produtivas sociais, ele previu uma era de tão alta produti-
vidade que seria possível um tempo mínimo de trabalho necessário
e a satisfação de todas as necessidades materiais e culturais de cada
elemento singular da sociedade. Estariam dadas, aí, as condições para
a emergência de um novo homem, profissional e culturalmente poli-
valente.
A dura realidade do socialismo implantado em diversas partes
do mundo teria desmentido não só tais utopias como também todas
as contribuições de Marx no campo da economia, da filosofia e da po-
lítica. Os liberais (mas não só eles) simplesmente relegaram Marx ao
monturo da história. Estariam mortos ele e sua doutrina, e ponto final.
Diante dessa pretensa e até mesmo possível verdade, os socialistas são
compelidos a rever toda a elaboração teórica marxista. Precisam re-
passá-la no teste da comprovação, verificando suas potencialidades na
análise das experiências concretas de setenta anos de construção da
nova sociedade.
Hobsbawn tem razão quando diz que, pela primeira vez, os so-
cialistas se vêem obrigados a pensar sobre o socialismo. Afinal, o
desenvolvimento desigual do capitalismo colocou para o movimento
socialista dos países avançados mudanças na forma do Estado e nos
padrões de exploração dos trabalhadores não previstas na análise fei-
ta por Marx. Diante das concessões da burguesia, da diminuição da
miséria de massa e do aumento do poder social dos trabalhadores, os
socialistas desses países foram tentados a empreender um longo ca-
minho de reformas, até mesmo na esperança de que, nesse processo,
seria possível civilizar e humanizar o capitalismo.
Por outro lado, esse mesmo desenvolvimento desigual apresen-
tou para os trabalhadores de muitos países atrasados um problema
novo e inusitado, igualmente não previsto por Marx. As burguesias
desses países mostraram-se incapazes de realizar ou completar sua
21
WLADIMIR POMAR
própria revolução. Os socialistas foram, assim, tentados a dirigir e rea-
lizar uma revolução política, cujas bases econômicas e sociais ainda se
encontravam circunscritas ao âmbito do capital. Condições políticas
específicas introduziram nessa revolução um forte componente anti-
capitalista, que a empurrava rumo ao socialismo.
Isso fez as experiências socialistas que conhecemos se transfor-
marem, ao contrário do que Marx pensara, num período de tentativas
de passagem de sociedades capitalistas atrasadas, e não desenvolvi-
das, a um novo tipo de sociedade, pós-capitalista.
Essa rasteira da história trincou o socialismo em duas grandes
tendências principais, embora cada uma delas tenha comportado
inúmeras e variadas tendências secundárias. A primeira delas, a so-
cial-democracia, procurou responder às contradições concretas das
sociedades capitalistas desenvolvidas, que haviam atingido a fase do
capital financeiro e do imperialismo e se beneficiavam de uma expan-
são sem precedentes. A segunda, que chamo de socialista revolucioná-
ria, embora consciente de que essa conceituação pode gerar polêmica,
foi predominante nos países capitalistas mais atrasados, nas colônias
e semi-colônias. Em geral, mesmo seguindo caminhos diferenciados
de país para país, procurou responder às aspirações de modernização
de seus países, que sofriam as agruras da espoliação imperialista, às
vezes combinada com um desenvolvimento capitalista selvagem.
Ambas enfrentavam contradições que não podiam ser previstas
e ambas sofreram, e sofrem ainda hoje, adversidades que parecem in-
transponíveis. Que lições os socialistas podem extrair dessas experi-
ências? A análise de Marx sobre o sistema capitalista continua válida?
Ou o capitalismo terá triunfado definitivamente, como proclamam os
liberais? Procuro dar algumas respostas a essas questões. Em pri-
meiro lugar volto a falar, de outra forma, das tendências principais do
mundo real em que vivemos, das quais destaco a barbarizarão que vai
predominando na maioria das sociedades existentes. Mas sou obriga-
do a destacar, da mesma forma, no meio dessas tendências e sofrendo
sua influência, alguns fenômenos que parecem fugir das regras. Os pe-
quenos Tigres Asiáticos, que tiveram um desenvolvimento capitalis-
ta acelerado na última década, diferenciam-se em vários aspectos do
modelo capitalista ocidental e ainda não perderam todo o impulso. Por
22
A ILUSÃO DOS INOCENTES
outro lado, apesar de toda a morte anunciada do socialismo, sobram
países que teimam em ser chamados socialistas. A China segue um
longo curso de reformas e desenvolvimento desde 1978. O Vietnã in-
gressou num caminho idêntico pelo menos desde 1986. Cuba e Coréia
do Norte realizam movimentos de adaptação ao momento e as previ-
sões de desmoronamento imediato de seus regimes têm sido paula-
tinamente adiadas. Embora muita gente boa duvide da natureza so-
cialista desses regimes e, como no caso da China, afirme que lá exista
um sistema capitalista ditatorial sob um invólucro socialista, seria no
mínimo anticientífico deixar de examiná-los mais atentamente. Pelo
menos deve-se tentar responder por que as reformas empreendidas
por esses países não desembocaram no mesmo desastre social e polí-
tico da perestroika soviética.
Penso que todas essas experiências, tanto as que sucumbiram
quanto as que obraram, podem ser úteis para o futuro da luta socia-
lista. Mesmo porque as ilusões sobre a eternidade do capitalismo são
fugazes. Seus limites são cada vez mais visíveis, aproximando-se pe-
rigosamente das hipóteses de Marx. O que tem levado alguns pensa-
dores marxistas a supor que o capitalismo seja incapaz de algum novo
tipo de expansão. Isso colocaria a humanidade definitivamente diante
da necessidade de optar entre a destruição ou o comunismo.
Ao contrário dessa hipótese, procuro trabalhar a possibilidade
de desenvolvimentos intermediários ou transições que completem as
chamadas tarefas da revolução burguesa e incorporem elementos so-
cialistas ao novo processo de modernização. Mesmo no atual estágio
alcançado pelo capitalismo, não acredito que a humanidade seja inca-
paz de livrar-se da opção de tudo ou nada. Penso, ao contrário, que as
contradições do capitalismo em escala mundial abrem campo para o
surgimento de novas variantes de socialismo, tanto nos países desen-
volvidos quanto nos demais.
Se essa hipótese for verdadeira, os socialistas terão de retomar
toda a antiga discussão sobre a relação da revolução política com a
revolução econômica, sobre a violência e as rupturas, sobre a relação
entre reformas e revolução, sobre as possibilidades da democracia po-
lítica e sobre as unhas da transição possível, agora levando em con-
ta todo o acervo de experiências históricas acumuladas nos últimos
23
WLADIMIR POMAR
cem anos ou mais. O socialismo apresenta-se cada vez mais como um
processo em que continuidade e rupturas estão entrelaçadas de forma
complexa, sofrendo o peso fundamental das realidades nacionais em
que ocorrem, apesar de todo o avanço da internacionalização ou glo-
balização capitalista.
As vias para romper com o domínio do capital e ingressar nes-
sa sociedade de transição terão de ser examinadas abertamente. No
passado, foram tentados tanto o caminho revolucionário quanto o ca-
minho pacífico-institucional. Alega-se hoje que somente o caminho
pacífico-institucional teria validade. Além das mudanças ocorridas
no Estado, abrindo campo para reformas progressivas na sociedade, a
violência, revolucionária ou não, teria demonstrado uma vocação ine-
vitável para a ditadura e o autoritarismo. Qualquer que seja a possibili-
dade mais viável dessas hipóteses, não se pode ignorar que a reestru-
turação do Estado e da propriedade, indispensável para ingressar em
qualquer processo de transição socialista, gera tensões que nenhuma
transformação social, reformista ou não, deve deixar de prevenir.
Nessas condições, todas as possíveis variantes de socialismo,
como demonstraram suas tentativas de reforma, fracassadas ou que
tiveram sucesso, muito provavelmente terão que combinar um forte
papel gestor e orientador do Estado (através do planejamento e de ou-
tros mecanismos de intervenção econômica e política) com boas do-
ses de mercado. Isso deve significar, necessariamente, a existência de
diferentes tipos de propriedade e gestão empresarial, a participação
no mercado mundial, a revolucionarização permanente das forças
produtivas e a elevação da produção. Uma mistura desse tipo, mesmo
tendendo a aumentar a socialização das forças produtivas, deve conti-
nuar produzindo desigualdades e polarizações. E gerando, por sua vez,
demandas e conflitos sociais e políticos nem sempre de fácil solução.
Nesse processo, a socialização da política deve ganhar um sig-
nificado e uma importância que não experimentou em nenhuma das
tentativas socialistas anteriores.
Isso não significa que basta querer para ter resolvida a dicotomia
democracia-ditadura. A disputa real pela hegemonia e pelo consenso,
a resistência das antigas classes dominantes, a implementação de po-
líticas incorretas, as pressões sociais concretas, a disputa ideológica
24
A ILUSÃO DOS INOCENTES
e a configuração de uma nova cultura socialista, tudo isso vai influir
sobre a luta política real e permitir ou não uma democratização mais
intensa da sociedade. De qualquer modo, tornou-se bastante evidente
que uma das tarefas mais importantes de todos os socialistas consiste
na recuperação da bandeira e do carisma democrático para seu campo.
Em linhas gerais, as diversas variantes de socialismo deverão
enfrentar alguns grandes desafios que o capitalismo não resolveu, ou
resolveu de forma limitada e parcial, e que as experiências socialistas
só agora começam a se colocar. Em primeiro lugar, o tratamento a ser
dado às desigualdades e polarizações, uma das consequências natu-
rais da ação do mercado. Em segundo lugar, o enfrentamento da ques-
tão do desemprego estrutural, resultado igualmente natural do desen-
volvimento tecnológico e científico e da elevação da produtividade do
trabalho. Ele aponta para a necessidade de institucionalizar progres-
sivamente o direito ao não-trabalho, com todas as conseqüências que
isso deve trazer ao funcionamento da sociedade. E, em terceiro lugar,
a construção de uma cultura e uma democracia que todos os membros
da sociedade possam usufruir de modo ativo e participativo. Dizendo
de outro modo, a linha geral da transição socialista mais provável é
a da construção articulada de ampla base material de cunho social,
sobre a qual possa se sustentar uma vida cultural e política apropriada
pelo conjunto dos indivíduos dessa sociedade.
Desse modo, o sonho socialista continua vivo. Talvez por isso,
este texto não tenha conclusões. Esforcei-me somente para abrir espa-
ços de discussão sobre o futuro da luta socialista, a partir das experi-
ências vividas e das tendências, cada dia, mais nítidas, de desenvolvi-
mento do capitalismo. Entre a barbárie e a destruição capitalistas, de
um lado, e as tentativas de construir uma nova sociedade, socialista,
menos injusta e menos desigual, de outro, ainda acho que vale a pena
optar pelo socialismo. Os inocentes e justos deste nosso mundo pode-
rão desvencilhar-se das ilusões e miragens do mercado capitalista e
retomar a luta socialista, como alternativa de sobrevivência. E muito
mais cedo do que se poderia esperar, como já é possível certificar em
diversas partes do mundo.
25
26
II No melhor dos mundos
O desmoronamento dos regimes socialistas do leste europeu pare-
ce haver exercido um efeito mágico sobre o ânimo das pessoas em
muitas regiões do mundo. Num passe ilusionista, fez renascer o terno
e crédulo Pangloss, personagem que Voltaire tornou famoso em seu
romance Cândido. Para Pangloss, tudo estava sempre bem no melhor
dos mundos. No rastro do estrondoso fim do socialismo e da festejada
morte do marxismo, multiplicaram-se Panglosses e panglossianos por
toda parte, de todos os matizes. Panglosses e panglossianos capitalis-
tas, liberais, neoliberais e nem tanto. Panglosses e panglossianos so-
cialistas, social democratas, democratas e neodemocratas. Panglosses
e panglossianos do meio-termo, amarelos por dentro e rosa por fora,
ou vice-versa. Todos, quase sem exceção, prevendo uma nova era, uma
nova modernidade, um tempo em que afinal as coisas iriam ajustar-se
e tudo passaria a fluir harmoniosamente.
Nunca mais seremos escravos! O brado de Sandor Petofi, poeta
e revolucionário húngaro de 1848, ressoou na Budapeste de 1989, du-
rante os funerais de Imre Nagy, de uma forma ao mesmo tempo irônica
e sarcástica. Nagy fora um líder comunista, assassinado pelo regime
socialista, após a invasão de 1956. E, em 1990, Vaclav Havei, também
poeta e escritor, transformado em presidente da Tchecoslováquia na
crista das manifestações populares que derrubaram o regime, procla-
mou com ingênua sinceridade: “Povo, teu governo voltou a ti!”
Francis Fukuyama, um até então obscuro funcionário do Depar-
tamento de Estado dos Estados Unidos, talvez tenha se tornado o mais
famoso e o mais radical da primeira leva de panglossianos capitalistas.
Ele não deixou por menos: a vitória do capitalismo sobre o socialismo
27
WLADIMIR POMAR
teria sido a vitória sem ressalvas do liberalismo econômico e político,
o triunfo do Ocidente, da idéia ocidental, assinalando o fim da história
como tal. Ainda segundo ele, não restando mais conflitos fundamen-
tais dentro da sociedade, tornar-se-iam claros os contornos do “estado
homogêneo universal”, uma feliz combinação de democracia liberal
na esfera política com fácil acesso a videocassetes e estéreos na eco-
nomia. A democracia liberal seria a forma de organização social que
apresenta reais perspectivas de convivência democrática, progresso
econômico, ampliação do bem-estar e paz internacional.
Essas teses tiveram grande repercussão em todo o mundo. A mí-
dia capitalista empenhou-se em difundi-las largamente, sob os mais
diferentes pretextos. Fukuyama transformou-se num conferencista
solicitado pelas mais seletas audiências do mundo rico de cada país.
Mesmo assim, suas teses foram consideradas medíocres até por outros
panglossianos. Elas poderiam não ser levadas a sério, colocando em
risco a exploração positiva da vitória capitalista. Afinal, como expli-
citou Ralph Dahrendorf, era preciso enunciar inequivocamente que o
socialismo morrera e que nenhuma de suas variantes poderia ressus-
citar. E isso deveria ser feito com argumentos convincentes.
Timothy Ash, que chegou a participar ativamente dos aconteci-
mentos no leste europeu, afirmou categoricamente que o movimento
operário internacional não mais existia. Para ele, entre todas as idéias
bem experimentadas, cujo tempo chegara com os levantes populares
daquela parte do mundo, a mais importante seria a descoberta fun-
damental da modernidade, a sociedade aberta, um tipo de sociedade
defendida pelos liberais radicais e que, teoricamente, nada teria a ver
com o capitalismo.
A euforia capitalista era de tal ordem, e a pressão dos Panglosses
da vida tão consistente, que um socialista como Eric Hobsbawn teve
de reconhecer que o medo capitalista da instabilidade de seu sistema
e por uma alternativa soviética fora reduzido consideravelmente. A di-
minuição da classe operária industrial, o declínio de seus movimentos
e a redescoberta da autoconfiança modificaram o ânimo do capitalis-
mo. Nessas condições, Jeffrey Sachs não se incomoda em reconhecer,
ao contrário de Fukuyama, que o colapso do comunismo talvez não te-
nha acabado com a história. O importante seria propalar que tal colap-
28
A ILUSÃO DOS INOCENTES
so certamente tornou possível uma era de paz e prosperidade.
Paz, prosperidade, democracia, sociedade aberta, capitalismo
virtuoso, pensamento positivo, alegria, muita alegria, no melhor dos
mundos, onde tudo vai bem, esse deveria ser o marketing panglossiano
da vitoriosa façanha do cavaleiro capitalista sobre o dragão comunista
(ou socialista, para a propaganda tanto faz). Como diria Liberatore, o
panglossiano criado por Jacob Gorender para exprimir o conjunto das
idéias liberais, o capitalismo moderno dispensa guerras e conquistas
coloniais: o imperialismo seria um tipo de expansionismo arcaico, es-
tranho à natureza do capital. Este, segundo Schumpeter, teria introdu-
zido a racionalidade em todas as esferas da vida social e precisaria de
ambiente de paz para o florescimento de seus negócios. Depois de tudo
isso, estamos quase convencidos de que as desgraças que a história
nos apresenta foram causadas pela ausência ou pelo desenvolvimento
insuficiente do capital. Ainda bem que Pangloss nos garante que agora
é a vitória definitiva e eterna do sistema de produção-para-lucro.
Dahrendorf assegura, no entanto, a continuidade dos conflitos
sociais. Estes só podem ser administrados e dirimidos dentro das re-
gras de jogo aceitas por trabalhadores, empresários e governo, condu-
zindo a soluções adequadas às sociedades abertas e não às socieda-
des capitalistas. As lágrimas de 1989, derramadas na Europa central e
oriental, em sua maioria teriam sido lágrimas de alegria, mas não para
cair sob o sistema capitalista.
Mas, baseado em sua própria vivência dos acontecimentos des-
sa parte do mundo, Ash garante que a aspiração de suas populações
era a constituição de uma autêntica economia capitalista de mercado.
Para ele parecia certo, no início de 90, que haveria uma nova Europa,
um lugar diferente para os países outrora descritos como europeus
orientais e, pelo menos, para uma Alemanha menos dividida. A Comu-
nidade Européia, com sua autoconfiança recuperada, havia reiterado
seu objetivo de constituir um único mercado até fins de 1992. Seriam
corporificadas assim as quatro liberdades do movimento de bens, ser-
viços, capital e pessoas.
Nada mais certo, então, como fizeram todos os panglossianos, do
que propalar aos quatro cantos as necessidades recuperadoras do Les-
te europeu e dos mercados novos, com centenas de milhões de pesso-
29
WLADIMIR POMAR
as. Lester Thurow garantiu que a Europa central e oriental estava ten-
tando fazer uma coisa que o mundo capitalista nunca fizera — começar
o jogo de mercado honestamente.
Premido por essa nova aura, o presidente Bush teria mesmo de
prometer uma América mais bondosa, mais suave, como fez para que
todos ouvissem. Estavam dadas, desse modo, todas as condições para
o capitalismo experimentar uma nova era de expansão global, a ser
acompanhada de uma crescente ampliação do mercado de trabalho e
do poder social dos trabalhadores. Dahreridorf curva-se a essa pers-
pectiva, anunciando que deveria sobrar um único mundo com preten-
sões sérias ao desenvolvimento e à hegemonia. O primeiro e o segundo
mundos deveriam reunir-se em algo que ainda não teria nem nome
nem número, mas seria simplesmente o Mundo.
Na mesma linha de raciocínio, John Naisbitt previa que o mundo,
em poucos anos, se transformaria numa economia global próspera.
Um mundo em que, de acordo com Ash, a cidadania e a sociedade civil
seriam os faróis da nova marcha para a liberdade.
O grito por uma autêntica economia de mercado teria mobilizado
a esperança das massas dos antigos países socialistas quanto a uma
elevação rápida do nível de vida, plenamente possível com a colabora-
ção e os investimentos do primeiro mundo.
Enquanto Liberatore supõe que o progresso dos países desenvol-
vidos se transmitiria aos países atrasados, Thurow confiava que o sis-
tema americano seria adotado em toda parte e duraria eternamente. E,
em caso de dúvida, Fukuyama aconselhava que se tomassem os Tigres
Asiáticos como exemplo de que é possível alcançar a igualdade sob o
capitalismo.
Isso correspondia plenamente às aspirações dos povos dos an-
tigos países socialistas. Ash confirma que eles queriam ser cidadãos,
mas também ser de classe média, no mesmo sentido que a maioria dos
cidadãos da metade mais afortunada da Europa era de classe média.
Gluksmann assegura que a esquerda russa, esquerda significando aqui
o setor avançado da sociedade, quer o capitalismo com direitos huma-
nos, já que fora da privatização dos circuitos comerciais não existe sal-
vação. E Ash reitera que em toda a Europa do leste brotava o mesmo
modelo fundamental, ocidental e europeu: democracia parlamentar,
30
A ILUSÃO DOS INOCENTES
domínio da lei, economia de mercado. Não existiria uma terceira via.
Nem mesmo o socialismo de rosto humano. Era a concepção de norma-
lidade que parecia estar conquistando triunfantemente o mundo.
Liberatore garante que o capitalismo possui elasticidade para ab-
sorver crises e para subir a patamares sempre mais elevados de bem-
-estar e de organização social. O intenso progresso dos países onde o
capitalismo realmente funciona teria permitido que os trabalhadores
alcançassem padrões de vida surpreendentes. Eles disporiam de as-
sistência médica tão boa quanto a dos patrões e gozariam as férias nos
países estrangeiros. A automação teria tornado o trabalho manual ex-
tenuante mais interessante e lucrativo.
No bojo desse triunfalismo desbragado, os países do terceiro
mundo eram aconselhados a mirar-se no espelho mexicano. Também
lá o receituário neoliberal do mercado livre estaria produzindo mila-
gres: a receita fiscal se elevara de 8,7% do PIB, em 1982, para 10,6%
em 1992. Com o corte de despesas e a venda de estatais para o setor
privado, os gastos públicos haviam diminuído de 44,5% para 30%, no
mesmo período. O déficit público fora reduzido de 16,9% para 1,9%
do PIB, enquanto a inflação caíra de 131,8%, em 1987, para 23,3% em
1991. E, mais importante do que tudo, o PIB crescera 2,9% em 1989 e
4,8% em 1991.
A Venezuela também seguira o mesmo receituário de privatiza-
ções, abertura da economia e redução do déficit público, conseguindo
alcançar em 1991 um crescimento econômico de 9,8%. Como diria Ash
e tantos outros panglossianos liberais: todos sabem que a economia de
livre-mercado funciona, sendo capaz de resolver todos os problemas se
lhe permitirem gerar um crescimento suficiente.
Diante dessa avassaladora onda triunfante do sistema de produ-
ção-para-lucro, muitos socialistas procuraram aproveitar o embalo e
aderir ao otimismo de Pangloss. Alguns, como Zalasvskaia, asseguram
que, do ponto de vista dos princípios, o critério de escolha das formas
econômicas é a medida com que elas contribuem para elevar a eficiên-
cia da produção. Aquelas que melhor resolvem essa tarefa devem ser
consideradas socialistas. Talvez com esse mesmo tipo de pensamento
reducionista, Alfonso Guerra, subsecretário geral do Partido Socialista
Operário Espanhol, tenha se sentido à vontade para dizer, tranqüila-
31
WLADIMIR POMAR
mente, que o socialismo e o capitalismo se transformaram e não mais se
opõem. Para ele, a sociedade do futuro deverá ser uma sociedade aberta,
na qual o direito à diferença será um dos principais direitos.
Dahrendorf reforça essa idéia e reitera que os países do Leste não
teriam alijado o comunismo para aceitar o capitalismo. Teriam derruba-
do um sistema fechado para criar uma sociedade aberta. Para ser exato,
a sociedade aberta, porque embora possa haver muitos sistemas só ha-
veria uma sociedade aberta. Nessa sociedade aberta, o importante é que
a propriedade privada esteja disponível como uma opção e seja protegi-
da, que seja impedida a generalização dos monopólios, embora sejam
aceitáveis estradas-de-ferro de propriedade do Estado. Nem a adminis-
tração da demanda à la Keynes nem a seguridade social à la Beverid-
ge seriam constitucionalmente incompatíveis com a sociedade aberta.
Entretanto, contratos legalmente protegidos deveriam ser uma garantia
para a existência de mercados. Para não parecer utópico, Dahrendorf dá
alguns exemplos de sociedades abertas, sociedades que teriam rompi-
do os estreitos limites do sistema capitalista. Cita a Grã-Bretanha como
uma antiga sociedade aberta; assegura que a economia japonesa difi-
cilmente pode ser considerada capitalista; estima que a Alemanha di-
ficilmente será compatível com a publicamente defendida economia de
mercado. E, para finalizar os exemplos concretos, diz que a Suécia não
seria decididamente, em sentido estrito, um país capitalista.
Os panglossianos capitalistas e socialistas podem até divergir, em
vários aspectos, sobre o tipo exato de sociedade que desejariam. Afinal,
ninguém é perfeito e, apesar das loas em torno da sociedade aberta, o
que os Democratas Livres húngaros desejam é mesmo o livre-mercado.
O próprio Ash reconhece que essa é a mais recente utopia da Europa
central e oriental. De qualquer modo, embora divergindo quanto ao fu-
turo, todos esses panglossianos afirmam que não há democracia socia-
lista. Haveria apenas democracia, a multipartidária e parlamentar. Não
haveria legalidade socialista, mas unicamente a legalidade, o domínio
da lei, garantida pela independência do Judiciário, ancorada na Cons-
tituição. Não haveria economia socialista, mas somente economia; não
uma economia de mercado socialista, mas uma economia de mercado
social, como proclamou Ludwig Ehrard, o reconstrutor da economia
alemã do pós-guerra.
32
A ILUSÃO DOS INOCENTES
Todos esses panglossianos previram o fim das guerras, da luta
de classes e da violência, a disseminação da democracia parlamentar
como a única maneira de garantir a justiça social e a consolidação das
virtudes da modernidade capitalista. A pauta de ação desses panglos-
sianos, liberais ou socialistas, subordinou-se à pauta de ação do mundo
do capital, na suposição de que este se transformara e passara a traba-
lhar por uma nova ordem internacional mais justa e mais humanitária.
Ash tranqüilizava que, na pior das hipóteses, poderiam ainda ad-
vir novos ditadores no leste europeu, mas seriam ditadores diferen-
tes. Também achava que poderiam surgir novamente conflitos étni-
cos, mas que a primavera das nações da Europa central e oriental não
seria, necessariamente, uma primavera do nacionalismo. Gorbachev,
por seu turno, estava convencido que todos nós, no mundo atual, temos
uma dependência mútua e nos tornamos cada vez mais indispensáveis
uns aos outros. Como proceder para acabar com a fome e a miséria
em vastas áreas da Terra? Somente o trabalho conjunto poderia trazer
benefício para a humanidade.
Por isso, acrescentava o mesmo Gorbachev, pela primeira vez
na história, tornou-se exigência vital a idéia de se elaborar normas de
política internacional baseadas na ética e na moral, comuns a toda a
humanidade, ao mesmo tempo que se humanizam as relações entre
Estados soberanos. Haveria mundo mais risonho e belo que esse so-
nhado pelo Pangloss que foi o principal dirigente da ex-União Soviética
no período de sua desagregação? Por tudo isso, talvez seja útil retor-
nar, mais uma vez, às opiniões de Fukuyama. Ciente de que sua tese
de fim da história causara muitos embaraços aos próprios liberais,
procurou explicar-se melhor. O fim da história, acrescentou, dará lu-
gar a um tempo muito triste. A luta pelo reconhecimento, a disposição
de arriscar a própria vida por um objetivo puramente abstrato, a luta
ideológica mundial que gerou ousadia, coragem, imaginação e idealis-
mo, será substituída pelo cálculo econômico, a solução interminável
de problemas técnicos, preocupações ambientais e a satisfação de so-
fisticadas demandas de consumidores, quase certamente em torno de
videocassetes e estéreos de nova geração.
Sem dar-se conta, ou talvez por completo desconhecimento,
Fukuyama faz da suposta fase definitiva do capitalismo a mesma cari-
33
WLADIMIR POMAR
catura que muitos marxistas vulgares faziam da futura sociedade co-
munista prevista por Marx. De qualquer modo, até esse mundo triste e
insosso, do fim da história de Fukuyama, seria bem menos pior que o
verdadeiro mundo que temos realmente à frente.
34
III Caindo na real
P obre Pangloss. O mundo real em que vivemos não é bem o mundo
que pensa ser à sua volta. É verdade que do mesmo modo que a
Lua possui um lado brilhante, este mundo real apresenta visões pan-
glossianas inegáveis, criadas pela expansão do capital. Este foi com-
petente em criar sociedades avançadas, de bem-estar social, amplas
condições de consumo de massa e poderoso desenvolvimento técnico
e cientifico. Estados Unidos, Europa Ocidental e Central, nações nór-
dicas, Japão, Canadá e Austrália são exemplos de riqueza e opulência
que enchem os olhos dos Panglosses de todos os tipos. E também da-
queles que não alcançaram seus padrões de vida.
Além disso, o capital foi capaz de criar um novo mercado mundial,
transformando nosso planeta numa aldeia global única, onde as leis
que valem são as leis do modo de produção capitalista. A internacio-
nalização ou globalização da economia força as fronteiras nacionais,
massifica as comunicações e as informações, universaliza padrões de
vida e trabalho e rompe com corporativismos e provincianismos. Mais
do que isso, impõe um padrão de produtividade que se transforma em
desafio para todas as sociedades nacionais com alguma pretensão de
fornecer a seus povos uma vida digna e confortável.
Finalmente, e não menos importante, os países capitalistas de-
senvolvidos ou centrais foram capazes de assimilar regimes políticos
democrático-liberais que, apesar de suas limitações, representam as
conquistas das lutas de seus povos pela cidadania, por maiores liber-
dades civis e políticas. Essa assimilação teve um papel importante na
ampliação da perspectiva democrática para o resto do mundo, em par-
ticular para aqueles países capitalistas e socialistas de regimes autori-
35
WLADIMIR POMAR
tários e/ou despóticos.
Não sem razão, Pangloss se extasia com essas breves pinceladas
do brilho capitalista e cerra as pálpebras para o lado escuro de seu mun-
do real. Basta, porém, entreabrir os olhos para enxergar as outras con-
seqüências da expansão capitalista. Paul Kennedy reconhece que agora
nos damos conta de que o mundo não está vivendo uma nova ordem, e
sim uma ordem fraturada. Nesta, o fosso que separa os países ricos dos
pobres está aumentando e as pessoas percebem mais suas diferenças
que suas semelhanças.
O terceiro mundo foi transformado em repositório do refugo e do
exército industrial de reserva do mercado capitalista mundial, com to-
dos os dramas e tragédias que isso pode significar. Quase todos os países
desse mundo abandonado pela sorte, mesmo os que chegaram a trilhar
a industrialização capitalista, assistiram a seu crescimento econômico
ser acompanhado de uma ampliação persistente da pobreza e da misé-
ria de massa. E aquelas nações que tentaram enveredar por um provável
caminho não-capitalista ou de orientação socialista foram submetidas
a bloqueios, guerras civis e intervenções militares que, em diversos ca-
sos, inviabilizaram qualquer progresso econômico e político alternativo
mais consistente. Em praticamente todos eles, a década de 80 foi par-
ticularmente perversa e trágica. Seus povos viram-se naufragados em
mares de miséria e violência incompatíveis com a capacidade produtiva
e com o nível de cultura alcançados pelo conjunto da humanidade.
Não menos terrível vem sendo a reconversão do socialismo da
Europa central e oriental. Ao fracassar na reforma de seu socialismo
soviético, o até então considerado segundo mundo viu-se inapelavel-
mente atraído pela força e pujança dos países capitalistas centrais, as-
sim como pelas promessas dos líderes ocidentais. Mergulhou, então,
de ponta-cabeça, como faria Pangloss tranqüilamente, no sistema de
livre mercado do capital. O resultado tem sido uma persistente desor-
ganização econômica, combinada com desagregação social, conflitos
étnicos e religiosos e instabilidade política. O antigo segundo mundo
está perdendo seu status anterior e se incorporando com armas e ba-
gagens ao terceiro mundo.
Pouco adianta que Ash lastime que os tesouros encontrados no
Leste socialista, como companheirismo, tempo e espaço para música e
36
A ILUSÃO DOS INOCENTES
literatura sérias, comunhão cristã na sua forma pura e original, qualida-
de no relacionamento entre homens e mulheres e um etos de solidarie-
dade, sejam varridos na corrida — que ele considera perfeitamente com-
preensível — pela afluência. Mesmo no período áureo de Pangloss, logo
após os acontecimentos de 1989, Ash se perguntava quantos, dos que
puderam sobreviver a quarenta anos de comunismo, seriam capazes de
sobreviver a um ou mais anos de capitalismo. Não por acaso ele citava
Arpad Goncz, um velho militante húngaro, que afirmava estar feliz por
ter vivido para ver o fim daquele desastre, mas querer morrer antes de
ver o começo do próximo.
Naquele momento, Pangloss sem dúvida diria que era preciso, aci-
ma de tudo, ser otimista. O primeiro mundo continuava esbanjando ri-
queza e bem-estar. A miséria fora erradicada e até os pobres tinham pa-
drões dignos de vida. Mais cedo ou mais tarde, completaria, os demais
países do mundo aprenderão com as técnicas e os métodos avançados
do mundo desenvolvido e superarão todos os problemas. Como sempre,
tudo irá bem no melhor dos mundos.
Pobre Pangloss. Mesmo então, Hobsbawn concordava com o his-
toriador húngaro que considerava terminado o curto século XX (1914-
1990), mas assinalava que o século XXI deveria enfrentar, pelo menos,
três problemas de longo prazo que já estavam piorando: o crescimen-
to do fosso entre o mundo rico e o pobre (e, provavelmente, dentro do
mundo rico, entre seus ricos e seus pobres); a elevação do racismo e da
xenofobia; e a crise ecológica do globo, que afeta a todos. A curto prazo,
seria possível constatar instabilidade na Europa, ressurgimento das ri-
validades e conflitos nacionais e a instabilidade da democracia liberal
imposta aos países do Leste europeu.
O que nem mesmo Hobsbawn pôde prever é que, em muito pou-
co tempo e bem antes da chegada do século XXI, a vitória esmagado-
ra do capitalismo sobre o socialismo soviético iria afundar o vencedor
numa crise que colocaria à mostra seu reverso perverso e destrutivo.
Uma crise aparentemente brusca e inesperada, se levarmos em conta a
era dourada de expansão que o capital viveu nos últimos vinte e poucos
anos. Nesse período, ele conheceu, como sempre, ciclos de recessão e
crescimento, mas nenhuma expansão foi tão vigorosa e ampla quanto
a que teve lugar nos anos 70 e 80. O desemprego e a pobreza nos países
37
WLADIMIR POMAR
centrais era, então, tão residual que levou Norberto Bobbio a dizer que,
neles, a sociedade dos 2/3 dirige e prospera sem ter nada a temer do 1/3
de pobres-diabos que nela vive e vegeta. Bobbio só chama a atenção para
ter em mente que o resto do mundo, os 2/3 (ou 4/5 ou 9/10) da sociedade,
está do outro lado.
A atual recessão nos países centrais, que não deixou de lado se-
quer o dinâmico Japão, está apresentando, porém, um assustador cres-
cimento da miséria de massa no coração da riqueza. Com uma caracte-
rística atroz: a miséria não é apenas resultado do desemprego recessivo,
mas também do desemprego causado pela revolução técnico-
científica e sua propensão a poupar mão-de-obra. Em outras pa-
lavras, o capital ingressou numa fase tecnológica em que a retomada
do ciclo de crescimento não é garantia da diminuição substancial do
desemprego e, portanto, da miséria. Tão consistente vem sendo esse
desemprego estrutural ou tecnológico nos países centrais que é reco-
nhecido como fenômeno estonteante por grande parte dos cientistas so-
ciais e políticos. Seu alastramento acabará recolocando em discussão a
tese de Marx, tantas vezes rechaçada como inconsistente e superada, da
pauperização dos trabalhadores.
Bem vistas as coisas, como disse Ash, o ano de 1989 terminará por
surgir, aos participantes e aos historiadores, como um breve momen-
to brilhante entre os sofrimentos de ontem e os de (hoje e) amanhã. Ao
contrário do que supunham os panglossianos, o capitalismo mundial
está longe de apresentar qualquer perspectiva real de paz, prosperidade
e convivência harmoniosa. As tendências de longo prazo, com as quais
ele vem marcando o tempo presente, são bastante contraditórias e, em
diversos casos, antagônicas. A globalização dos mercados tem sido
acompanhada, por exemplo, de um intenso processo de concentração
de empresas e de centralização e oligopolização da economia. A carac-
terística principal dos capitais, centralizados em alguns poucos países,
é seu controle sobre poderosas redes internacionais de produção e dis-
tribuição, que só podem se expandir se tiverem livre trânsito pelas fron-
teiras que separam os países. A escala alcançada por esses capitais, com
ação sobre todo o mundo, tende a unificar os países, num único mundo,
conforme disse Dahrendorf.
Paradoxalmente, esses mesmos capitais que exigem fronteiras
38
A ILUSÃO DOS INOCENTES
abertas para. suas atividades, crescentemente quebram as regras que
regulam o mercado mundial.
Estabelecem medidas protecionistas em seus próprios países-se-
des (ou em blocos regionais dos quais participam), em relação aos ca-
pitais de fora. Como é natural, os países de desenvolvimento tardio e
insuficiente, que não alcançaram o patamar dos países centrais, vivem
o drama de abrir-se completamente à ação do capitalismo desenvolvi-
do ou adotar medidas protecionistas do mesmo tipo. Assim, embora se
dê como certo e inexorável o processo de integração internacional, não
se pode desprezar as forças centrífugas que agem no sentido da multi-
polaridade e de defesa dos capitais nacionais, inclusive como forma de
manutenção da soberania política.
Nesse processo conflitante, o déficit comercial dos Estados Unidos
e, agora, da Alemanha, o superávit do Japão e outras disparidades no in-
tercâmbio externo entre os países estão criando um forte desequilíbrio
estrutural no comércio internacional, desequilíbrio que Thurow com-
para às forças gravitacionais de um buraco negro no espaço. Ele consi-
dera que nunca os déficits e superávits foram tão grandes e duradouros,
distorcendo a própria natureza da economia mundial. Prevê que ne-
nhum país pode continuar indefinidamente administrando déficits co-
merciais e que os Estados Unidos (que precisam tomar emprestados 200
bilhões de dólares por ano para financiar o déficit comercial e pagar os
juros da dívida), assim como os demais deficitários, em algum momento
deverão adotar medidas para superar sua crise.
Em outras palavras, mais cedo ou mais tarde os Estados Unidos
deverão tomar o remédio amargo que costumam receitar aos outros:
cortar taxas de crescimento, reduzir importações, desvalorizar sua
moeda, criar novas barreiras comerciais e alcançar superávits co-
merciais. Se os Estados Unidos empreenderem esse caminho e alcan-
çarem um superávit de 100 bilhões de dólares, isso pode significar,
de acordo com Thurow, 2,5 milhões de novos postos de trabalho no
território americano. E, consequentemente, um forte desequilíbrio de
emprego no resto do mundo.
Embora essas projeções de Thurow sejam muito lineares, não há
dúvida de que elas expressam, de um modo ou de outro, as dificulda-
des com as quais economistas e outros cientistas sociais se defrontam
39
WLADIMIR POMAR
diante das atuais tendências longas do sistema de produção-para-lucro.
Essas tendências têm como base, ao mesmo tempo agindo sobre elas,
três movimentos conjugados do capital mundial, com maior dinamismo
nos países centrais, mas também atuando nos países periféricos. Em
primeiro lugar, a substituição da força de trabalho mais cara por outra
mais barata, através da utilização do trabalho feminino (e também in-
fantil, como na Itália) e dos imigrantes (como na Europa, Estados Unidos
e agora até no Japão e Argentina). Em segundo lugar, pela exportação
das plantas industriais de uso intensivo de mão-de-obra ou poluentes
para países onde a força de trabalho é mais barata e a legislação am-
biental mais permissiva (como é o caso das transferências de firmas
americanas para o México). Em terceiro lugar, a aplicação acelerada de
novas tecnologias, fornecidas pela terceira revolução técnico-científica
da produção, e de novas formas de organização do processo produtivo.
Todos esses movimentos, tendo o terceiro como principal, destinam-se
a cortar custos e elevar a produtividade a níveis jamais alcançados em
qualquer época anterior.
A aplicação acelerada de novas tecnologias e novas formas de or-
ganização do trabalho vem determinando uma verdadeira revolução na
produção e nas relações do trabalho. Mudanças estruturais de enverga-
dura em todas as sociedades regidas pelo modo de produção capitalista
apontam para a morte do trabalho de forma crescente e inapelável. As
modificações do perfil produtivo, com ênfase na produção do desper-
dício e do destrutivo, abrindo campo para desastres ecológicos e para
a morte massiva pela fome, pela miséria e pelas guerras, estão direta-
mente relacionadas às transformações que o capital tem imprimido às
suas forças produtivas.
Pangloss diria que as tendências favoráveis acabarão se impondo.
Afinal, elas apontam para um mundo bem diferente do atual. O proble-
ma são as tendências desfavoráveis. Mas, para não demonstrar intole-
rância, caiamos na real por onde Pangloss tem razão.
ONDE PANGLOSS TEM RAZÃO
O esmagamento do nazismo e do fascismo, na Segunda Guerra
Mundial, não resultou, como todos esperavam, num mundo de paz.
40
A ILUSÃO DOS INOCENTES
Mal acabara o conflito que causou mais de 50 milhões de mortos, a
ameaça de choques entre os dois sistemas em que o planeta se parti-
ra — capitalismo e socialismo ou comunismo — passou a pesar sobre
todos os povos. Uma Guerra Fria, com perigo de colisão nuclear, foi de-
clarada entre os dois campos. Uma disputa irreconciliável se espraiou
por todos os terrenos da atividade humana. O mais simples dos gestos
passou a exprimir, verdadeiramente ou não, uma conotação ideológica
e política a um dos campos em luta.
Durante algum tempo, o sistema socialista pareceu levar vanta-
gem. A presença militar soviética na Europa centro-oriental dera uma
contribuição decisiva para a instalação de governos e regimes chama-
dos de democracia-popular nos países recém-libertados da ocupação
nazista nessa parte do mundo. A União Soviética também dava mos-
tras de grande potencialidade ao recuperar rapidamente sua econo-
mia, devastada pela guerra. Suas novas conquistas científicas e tecno-
lógicas, particularmente na corrida espacial, sua propalada igualdade
social e seu apoio às lutas de descolonização exerciam grande atração
sobre povos e países.
Alguns desses povos e países realizaram revoluções vitoriosas e
se incorporaram à via de construção socialista, cujo modelo era a pró-
pria União Soviética. China, Vietnã, Laos, Cuba, Angola, Moçambique,
Guiné-Bissau, Cabo Verde, Etiópia juntaram-se ao que se convencionou
chamar de campo socialista. Outros, como Argélia, Iraque, Birmânia,
Zâmbia, Congo, Líbia, Burkina Faso, Tanzânia, Iêmen do Sul, Somália,
Síria, buscavam uma via não-capitalista ou de orientação socialista.
Fortes movimentos de cunho socialista ocorriam em praticamente to-
das as regiões do planeta. A marcha para o socialismo apresentava-se
como inexorável.
Apesar dos Panglosses socialistas dessa época, já então erguiam-
-se vozes e problemas alertando para o fato de que nem tudo ia bem no
campo socialista. Iugoslávia e China haviam rompido com o modelo
soviético de desenvolvimento, a primeira ainda na década de 40 e a
segunda no final dos anos 50, sem que isso pudesse ser analisado em
toda a sua extensão e com a isenção necessária. A Guerra Fria impe-
dia variantes fora dos dois pólos, embaçando as visões e o raciocínio.
A Iugoslávia foi alijada das relações entre os países socialistas como
41
WLADIMIR POMAR
revisionista e traidora, e a China acabou seguindo o mesmo caminho
no início dos anos 60.
Hoje sabemos o resultado da disputa entre os campos socialista
e capitalista. Os fatores de fracasso do socialismo soviético foram exa-
minados em Rasgando a cortina e A miragem do mercado, mas voltare-
mos a nos referir a eles mais adiante. No momento, porém, será mais
útil avaliar os fatores que levaram o capitalismo a vencer a parada e
que dão razão ao otimismo de Pangloss. Afinal, o capitalismo não te-
ria conseguido uma vitória tão significativa, mesmo relativa, se fosse
completamente desprovido de qualquer atrativo e de qualidades posi-
tivas que lhe dessem força e hegemonia.
A maioria dos estudiosos concorda que o capitalismo contou com
dois trunfos fundamentais em sua disputa com o mundo socialista.
Primeiro, sob a hegemonia dos Estados Unidos, único país capitalis-
ta desenvolvido que saíra consideravelmente reforçado da Segunda
Guerra Mundial, as demais potências industriais do Ocidente e o Japão
aceitaram sufocar a concorrência cega que antes existira entre elas e
estabelecer uma colaboração estreita para enfrentar o perigo verme-
lho. Thurow reconhece que as necessidades militares impediram que
os conflitos econômicos assumissem proporções incontroláveis. Eles
foram sufocados e subordinados à estratégia de enfrentamento contra
o socialismo.
Segundo, em grande parte com base na premissa anterior, os Es-
tados Unidos e demais países capitalistas avançados empreenderam a
reconstrução do mercado capitalista mundial em novos moldes. Em-
bora a força militar continuasse exercendo importante papel em toda
a estratégia anti-soviética e de contenção dos movimentos socialistas,
a utilização de mecanismos econômicos de expansão e integração ga-
nhou uma dimensão desconhecida da história mundial do sistema ca-
pitalista.
Esses trunfos permitiram transformar o fordismo americano no
padrão industrial das economias recuperadas da Europa e do Japão.
Em especial na Europa ocidental, foram erigidas novas sociedades de
consumo de massa, que concederam a seus povos Estados de bem-es-
tar social, com altos e crescentes rendimentos para seus assalariados,
sistemas de seguridade e outros benefícios. Em conseqüência, diminu-
42
A ILUSÃO DOS INOCENTES
íram as desigualdades sociais e aumentaram as oportunidades de vida.
Tudo isso, como disse Hobsbawn, foi resultado do medo. Medo
dos pobres e dos maiores e bem organizados blocos de cidadãos dos
Estados industrializados — os trabalhadores. Foi o medo de uma al-
ternativa que realmente existia e poderia espraiar-se notavelmente na
forma do comunismo soviético. Foi ainda o medo da própria instabili-
dade do sistema que levou os países centrais a fazer tantas concessões
a seus trabalhadores.
Os motivos podem ter sido outros. Mas, quaisquer que tenham
sido, o fato é que o capitalismo foi capaz de criar Estados de bem-estar,
nos quais o poder social dos trabalhadores igualmente se expandiu.
Nos vinte e poucos anos que abrangem essa primeira onda de expan-
são capitalista do pós-guerra, os Estados Unidos alcançaram um pro-
duto nacional bruto superior a 1 trilhão de dólares, o Japão, 201 bilhões
de dólares, a Alemanha Ocidental, 173 bilhões de dólares, a França,
151 bilhões de dólares e a Inglaterra, 125 bilhões de dólares. A manu-
tenção de altas taxas de emprego, combinada com a seguridade social,
permitiu aos trabalhadores um padrão de vida relativamente elevado
e uma distribuição mais equitativa da renda per capita, que chegou a
4.949 dólares nos Estados Unidos, 2.860 na Alemanha Ocidental, 2.990
na França, 2.250 na Inglaterra e 1.940 no Japão.
Embora o Japão mantivesse políticas salariais e sociais mais res-
tritivas, no seu caso isso era compensado em boa parte pelo sistema de
emprego vitalício. Mas há ainda outros indicadores que, embora não
demonstrem cabalmente o pleno desenvolvimento humano, apontam
para a pujança e o bem-estar alcançados pelos países capitalistas cen-
trais. A escolarização de terceiro grau, por exemplo, no final da década
de 60 era de mais de 50% nos Estados Unidos, mais de 20% na Ale-
manha Ocidental e entre 14% e 20% na França, Japão e Inglaterra. Se
tomarmos o número de televisores como indicativo da posse de bens
de consumo duráveis, sua proporção por mil habitantes era de mais
de quatrocentos nos Estados Unidos, mais de trezentos na Alemanha
Ocidental, Inglaterra e Japão e mais de duzentos na França.
Para efeito de comparação, podemos tomar o Brasil, que entrara
recentemente num processo acelerado de industrialização. Em 1970,
seu produto interno bruto crescera para 43 bilhões de dólares, sua ren-
43
WLADIMIR POMAR
da per capita chegara a 450 dólares, a escolarização de terceiro grau
era de 5,3% e o número de televisores por mil habitantes era de 64.
Podemos também considerar a União Soviética, o país industrial-
mente mais desenvolvido do campo socialista, onde o produto mate-
rial líquido (produto interno bruto menos o valor dos consumos inter-
mediários) era superior a trezentos bilhões de dólares. Lá, a renda per
capita média era, então, de 1,5 mil dólares, a escolarização de terceiro
grau, 25% e 143 o número de televisores por mil habitantes.
Essa pujança capitalista pode, além disso, ser aferida pelo fato
de que em poucos anos após a guerra, as antigas potências industriais
européias e o Japão passaram a seguir os passos do capital america-
no, retomando suas características de exportadores de mercadorias e
de capitais. As empresas dos países desenvolvidos disseminaram-se
pelo resto do mundo, desde a década de 50, comandando processos de
industrialização tardia e de absorção do modo capitalista de produção
em países atrasados. Alguns desses países, que adotaram a via de de-
senvolvimento capitalista na segunda metade deste século, chegaram
a alcançar taxas de crescimento superiores às dos países desenvolvi-
dos e de vários dos países socialistas. No início dos anos 70, o Brasil
apresentava uma taxa anual de crescimento de 8,3%, o Irã 9,8%, a Tur-
quia 7,2%, a Coréia do Sul 10,6%, a Tailândia 7,4% e o Iraque 10,8%.
Entre os países centrais, o mais dinâmico era o Japão (7,6%) e, entre os
socialistas, a Polônia (7,6%).
A expansão foi, sem dúvida, muito desigual, mas o capitalismo
criou realmente um mercado mundial, do qual os próprios países socia-
listas não puderam escapar, como comprova Luís Fernandes. Com isso,
aconteceu uma ampliação sem precedentes do comércio internacional
de mercadorias e um crescimento acentuado dos investimentos de capi-
tal em todo o mundo. No final da década de 60, as exportações mundiais
alcançaram a cifra de 302 bilhões de dólares, quase dobrando em rela-
ção aos vinte anos anteriores. Os países centrais detinham mais de 70%
desse montante (45% só os europeus), enquanto os países em vias de
desenvolvimento ficavam com 17% e o Leste europeu com 6%.
Se Pangloss já tinha motivos de sobra para regozijar-se com os
progressos que vão do fim da Segunda Guerra Mundial até 1970, a partir
de então ele deve ter entrado em estado de graça. Apesar das crises re-
44
A ILUSÃO DOS INOCENTES
cessivas enfrentadas em 1974-75 e 1980-82, os países industrializados
centrais realizaram verdadeiros saltos nessas duas décadas. Em 1991,
o produto nacional bruto dos Estados Unidos tinha alcançado o volu-
me de 5,6 trilhões de dólares, sendo seguido pelo Japão (3,3 trilhões),
Alemanha Ocidental (1,5 trilhão), França (1,1 trilhão) e Inglaterra (966
bilhões). Em outras palavras, no espaço que vai de 1970 a 1990, o pro-
duto nacional americano cresceu cinco vezes, o japonês quinze vezes, o
alemão nove vezes, o francês sete e o inglês oito vezes. É fácil verificar
que os capitais alemão e japonês expandiram-se mais rapidamente que
os demais. Por outro lado, se considerarmos a Comunidade Européia,
formada no final da década de 60, ela soma hoje um produto interno su-
perior a 5,7 trilhões de dólares, tendo ultrapassado os Estados Unidos.
O comércio internacional viveu uma verdadeira explosão, pas-
sando dos 302 bilhões de 1970 para 3,35 trilhões de dólares em 1990,
ou seja, um crescimento de 11 vezes. É interessante notar que, en-
quanto os Estados Unidos reduziram sua participação nesse comércio
em 3,6%, a Europa e o Japão aumentaram a sua na mesma proporção.
Os países em desenvolvimento, por sua vez, elevaram sua parte de
17% para 24%, enquanto os países socialistas tiveram uma queda de
mais de 4%.
O fluxo de capitais também foi muito intenso no período, mas so-
freu algumas interferências dignas de nota. Nos anos anteriores a 1980,
o fluxo de capitais dos países centrais para os países em vias de desen-
volvimento foi sempre positivo. Em 1980, por exemplo, as transferên-
cias líquidas de recursos daqueles países para o terceiro mundo foram
de 37 bilhões de dólares. Entre 1980 e 1990, houve, porém, uma inver-
são e o fluxo dirigiu-se em boa parte dos países em desenvolvimento
para os centrais. Em 1985, esse desinvestimento chegou a 4,6 bilhões de
dólares e em 1988, a 5,8 bilhões de dólares. Estima-se que nesse perío-
do o fluxo de capitais tenha circulado entre os próprios países centrais,
cujos mercados afluentes poderiam consumir mais rapidamente a pro-
dução gerada pelas novas tecnologias e estas, por sua vez, passaram a
representar mercados de alta potencialidade para os investimentos de
capital. Na verdade, como disse Giovani Arrighi, esse período marca
o momento em que o mercado mundial parece haver se tornado, pro-
gressivamente, uma força autônoma que nenhum Estado, inclusive os
45
WLADIMIR POMAR
Estados Unidos, poderia controlar dentro de seus limites. Dahrendorf
reconhece nas empresas transnacionais a grande força produtiva que
tornou irremediavelmente ultrapassadas as velhas relações de produ-
ção nacionais. Organizaram-se poderosos conglomerados financeiros,
industriais e comerciais, empurrados por fusões, compras, participa-
ções, joint ventures e outros mecanismos de movimentação de capitais.
Forçado por esse processo interior do sistema de produção-para-lucro,
o mundo parecia passar por um grande movimento de reunificação que
deveria empurrar o campo socialista para profundas redefinições.
O capitalismo dos países avançados, acompanhado por seu con-
gênere de algumas outras nações de desenvolvimento tardio na Ásia e
América Latina, propiciou, assim, uma expansão sem precedentes da
capacidade produtiva mundial. Mesmo na agricultura, que jamais con-
seguiu acompanhar as taxas de crescimento da indústria e dos serviços,
ficando limitada a uma média de 2,5% ao ano nesse período, o modo de
produção do capital conseguiu aumentar a disponibilidade alimentar
per capita mundial de 2,5 mil para 2,6 mil calorias. Isso representa, na
prática, 1,1 mil calorias a mais do que cada indivíduo do planeta tem
consumido, em média, para sobreviver. O capitalismo vem demonstran-
do, apesar de todas as distorções produtivas causadas pela busca cega
do lucro, que é possível desenvolver uma base de produção material ca-
paz de atender às necessidades de todos os seres humanos.
Esse aumento da capacidade produtiva se deve essencialmente à
rápida elevação da produtividade, propiciada pela revolução técnico-
-científica dos últimos vinte anos, e à sofreguidão com que as empresas
se lançaram na atividade de cortar custos para enfrentar a competitivi-
dade no mercado internacional. Com a rápida evolução das ciências e
de suas aplicações tecnológicas, a expansão capitalista e seu mercado
mundial assumiram um caráter avassalador. A ciência consolidou-se
como a principal força produtiva, impulsionando novos e poderosos
avanços na informática, microeletrônica, biotecnologia, novos mate-
riais, telecomunicações, automação e transportes. E, consequentemen-
te, introduziu mudanças profundas na força de trabalho nos sistemas de
produção e em suas formas de organização, nos padrões de consumo,
no papel crescente da educação e investigação científica e técnica e na
globalização da economia.
46
A ILUSÃO DOS INOCENTES
O Japão foi o país capitalista desenvolvido que mais rapidamente
incorporou esses avanços e mudanças em seu processo produtivo. Pos-
suindo cerca de trezentos mil robôs industriais (contra uns quarenta
mil dos Estados Unidos), superou o fordismo, que havia se generalizado
no período anterior, e impôs ao mercado mundial um novo patamar de
competitividade. Elevou a produtividade e a eficiência a níveis desco-
nhecidos da história capitalista de revolucionarização constante das
forças produtivas.
Esses novos padrões de produtividade e eficiência do capital tor-
naram-se os principais desafios que levaram a sucumbir tanto o socia-
lismo europeu oriental como muitos dos países que se encontravam
em vias de desenvolvimento capitalista. É quase certo que durante as
décadas vindouras a elevação da produtividade do trabalho interferirá
cada vez mais em todos os problemas evolutivos enfrentados pela hu-
manidade.
O capital foi capaz, ainda, de mostrar muita segurança na expor-
tação de sua democracia liberal. Simplesmente desprezando suas li-
mitações e sua história, o capital conseguiu transformar a democracia
liberal numa bandeira capaz de atrair não só os povos dos países em
que tinha a hegemonia, mas também os dos países do Leste socialista e
de todo o mundo. Particularmente nos últimos quinze anos, houve uma
sensível diminuição dos países regidos por ditaduras abertas ou gover-
nos autoritários. Uma persistente introdução de elementos da democra-
cia (eleições, um homem um voto, representação parlamentar, divisão
e separação de poderes, império da lei, etc.) acompanhou as mudanças
políticas registradas em boa parte do mundo. Usando sua democracia
liberal como mercadoria abundante, o capital produziu um verdadeiro
dumping sobre grande parte dos regimes políticos diferentes dissemina-
dos pelo planeta. Estimulou movimentos contrários, desorganizou-os e,
em vários casos, conseguiu a sua demolição.
Esse o lado panglossiano do capital. Um lado que, paradoxalmente,
está cada vez mais próximo do tipo ideal de capitalismo previsto por
Marx. Pelo menos é o que reconhecem estudiosos menos deslumbra-
dos, que conseguem enxergar não só o lado brilhante e visível desse
mito, mas também seu lado escuro e sombrio.
47
WLADIMIR POMAR
O LADO ESCURO
Os países atrasados do ponto de vista capitalista viveram seu mo-
mento de Pangloss nas décadas de 50 a 70. Deslumbrados com a rápida
recuperação pós-guerra da Europa Ocidental e do Japão e com as ofer-
tas de capitais externos para trilharem o caminho da industrialização,
nutriram a esperança de que com isso pudessem superar suas tradi-
cionais condições de atraso, pobreza e miséria. Idealizando a cons-
trução de sociedades ricas, diversos desses países na América Latina,
Ásia e África ingressaram, a partir da segunda metade dos anos 50, na
via de desenvolvimento capitalista acelerado.
Evidentemente, cada país e cada região apresentaram resul-
tados que tinham muito a ver com suas próprias condições físicas e
históricas. Alguns, por exemplo, realizaram reformas agrárias que, de
uma forma ou de outra, permitiram a incorporação de elementos da
revolução verde em sua estrutura agrícola e propiciaram melhorias
na produção, incorporando contingentes razoáveis do antigo campe-
sinato na vida econômica e social. Outros realizaram a mesma revo-
lução agrícola através de um intenso processo de mecanização dos
campos, gerando fortes fluxos migratórios das zonas rurais para as
cidades ou para novas áreas de colonização, alcançando também ra-
zoáveis incrementos da produção, embora sem ampliação significativa
de seu mercado interno. Em geral, quase todos esses países consegui-
ram performances notáveis nos ritmos de crescimento de seu produto
global, reforçando a impressão de que poderiam igualar-se aos países
desenvolvidos. Entretanto, escurecendo essas tendências positivas, a
maioria esmagadora dos novos países industrializados jamais chegou
a construir algo parecido com as sociedades de bem-estar e consumo
de massa dos países centrais. Ao contrário, deram surgimento a socie-
dades industriais de segunda linha, nas quais parcelas consideráveis
da população ficaram marginalizadas do sistema produtivo e dos pa-
drões de consumo que tal sistema criou.
É lógico que o crescimento econômico e o conseqüente aumento
do produto interno bruto fizeram com que a renda média per capita se
elevasse. Durante os anos 70, a taxa média anual de crescimento dos
países em desenvolvimento chegou a 5,5%, apesar da crise de 1974-75.
48
A ILUSÃO DOS INOCENTES
Na América Latina, o aumento da renda média per capita anual man-
teve-se em 3,8%.
Isso poderia levar à suposição panglossiana de que os habitantes
dessas nações se beneficiaram do crescimento econômico de forma
mais ou menos idêntica, para não falar equitativa. Na verdade, a renda
gerada pelo desenvolvimento foi distribuída de forma extremamente
desigual. No Brasil, por exemplo, conforme dados compilados por De-
decca e Brandão, a parcela de renda apropriada pelos 50% dos traba-
lhadores mais pobres caiu de 17,4% em 1960 para 12,6% em 1980.
Usando somente os indicadores de renda, o Banco Mundial calcu-
lou que o planeta contava, em 1991, com cerca de 1,16 bilhões de po-
bres, espalhados principalmente pelos países do mundo subdesenvol-
vido ou em desenvolvimento. Sabe-se que se forem levados em conta
outros indicadores, como moradia, instrução, acesso à saúde e alimen-
tação, o número de pobres mundiais deve triplicar. O relatório das Na-
ções Unidas, de 1990, constata a existência de 1 bilhão de pessoas em
pobreza extrema ou absoluta, 900 milhões de analfabetos, 2 bilhões
sem água potável, 100 milhões de sem-teto, 800 milhões de famintos,
150mmilhões de crianças desnutridas e 14 milhões de crianças mor-
tas anualmente antes de completar 5 dias de nascidas.
Pangloss poderia dizer que, afinal de contas, o capitalismo nada
tem a ver com isso. Até mesmo um crítico feroz desse modo de produção,
ao qual chama de sistema produtor de mercadorias, como Robert Kurz,
chegou à conclusão de que hoje o que faz sofrer as massas do terceiro
mundo não é a provada exploração capitalista de seu trabalho, mas sim,
ao contrário, a ausência dessa exploração. Roberto Campos, defensor
perseverante do capitalismo neoliberal ou conservador, vive repetindo
isso à exaustão. Como diria Pangloss, o capitalismo a ser tomado como
parâmetro deve ser o dos países centrais. O resto... bem, é o resto.
The Economist disse mais ou menos a mesma coisa ao saudar a
América Latina por estar deixando para trás seu velho estilo. Que es-
tilo seria esse? Para The Economist, o estilo de construir indústrias por
trás de altas barreiras tarifárias para atingir a auto-suficiência; de de-
sencorajar investimentos estrangeiros por serem imperialistas; de não
dar atenção às exportações; de deixar os déficits fiscais crescerem; de
assumir empresas quase falidas do setor privado nas quais empregos
49
WLADIMIR POMAR
estariam em perigo; e de levantar elevados empréstimos junto a bancos
estrangeiros. The Economist, em outras palavras, está dizendo que ago-
ra a América Latina ingressa verdadeiramente no mundo do capital, o
mundo supostamente maravilhoso das sociedades afluentes. O que a
América Latina fez antes teria sido um descaminho. Alguém teria dado
para ela e para os demais países do terceiro mundo a receita errada.
Pode até ser que Kurz esteja se referindo àqueles países em que
não ocorreram sequer processos de industrialização no pós-guerra.
São países que alguns autores se negam mesmo a situar no terceiro
mundo, preferindo empurrá-los para um quarto mundo sem eira nem
beira. São países ou regiões da Ásia Meridional, África do Norte, África
Subsaariana e América Latina onde as relações assalariadas de pro-
dução ainda não se enraizaram firmemente. Thurow considera que o
desaparecimento de qualquer desses países passaria desapercebido
e não iria influir em nada no desenvolvimento da economia mundial.
Apesar disso, tais regiões há muito estão condicionadas e subordina-
das pelo mercado mundial capitalista e por sua exploração. O capita-
lismo determina suas vidas e Kurz certamente não ignora esse fato.
Se Kurz deu um cochilo, The Economist, ao contrário, sabe exata-
mente do que se trata. A história da América Latina nos últimos qua-
renta e tantos anos é justamente a história da consolidação do modo de
produção capitalista na maioria de seus países. Do mesmo modo que
os demais países em desenvolvimento do terceiro mundo, eles expe-
rimentaram em toda a sua extensão e intensidade a exploração direta
do sistema produtor de mercadorias. A rigor, não exclusivamente de
seu capitalismo, mas especialmente do capitalismo exportado pelos
países centrais.
A construção da indústria moderna nesses países contou fun-
damentalmente com investimentos estrangeiros. Eles arreganharam
suas portas e derrubaram suas barreiras tarifárias para permitir que
os capitais salvadores do primeiro mundo se implantassem em seus
solos e multiplicassem os supostos frutos milagrosos de bonança e
bem-estar. Em qualquer uma das nações do terceiro mundo é fácil
verificar a predominância das empresas estrangeiras nos principais
ramos produtivos. Para isso, os Estados nacionais e suas empresas
estatais encarregaram-se da construção da infra-estrutura (energia,
50
A ILUSÃO DOS INOCENTES
transportes, comunicações), indispensável à implantação e funciona-
mento das unidades industriais. Se mais tarde essas nações voltaram
a levantar barreiras tarifárias, isso se deveu principalmente aos inte-
resses e pressões das próprias empresas estrangeiras, no sentido de
manter mercados cativos e a salvo da concorrência com outras multi-
nacionais.
Fazia parte dos interesses do capital das nações centrais investir
em regiões atrasadas. Esses investimentos têm representado uma das
principais medidas compensatórias encontradas pelo capital para fa-
zer frente à tendência de queda de sua taxa média de lucro. A exporta-
ção de plantas industriais menos rentáveis e, em geral, poluentes para
os países em desenvolvimento, foi parte do processo geral de exporta-
ção de capitais e mercadorias dos países centrais no pós-guerra. Por
esse meio, aproveitavam-se das vantagens de mão-de-obra e matérias-
-primas mais baratas para elevar as taxas de lucro e atender àquela
necessidade compensatória.
Falando em outros termos, em seu processo de expansão perma-
nente, o capital cresce tanto em profundidade ou verticalmente, ele-
vando a produtividade, aumentando a parcela do capital constante e
a extração da mais-valia relativa, quanto em extensão ou horizontal-
mente, aceitando níveis inferiores de produtividade, grande participa-
ção do capital variável e a extração da mais-valia absoluta.
É verdade que o processo de recuperação dos países centrais
após a Segunda Guerra Mundial e, depois, as demandas de investi-
mentos determinadas pela revolução científica e tecnológica, direcio-
naram os fluxos de capitais principalmente entre os próprios países
centrais. Mesmo assim, os países em desenvolvimento do terceiro
mundo mantiveram por quase duas décadas uma participação signi-
ficativa nos fluxos de investimentos diretos provenientes do primeiro
mundo, chegando a 42% do total em 1975. O capital sempre manteve,
em todo o período, sua tendência para produzir peças e equipamentos
menos sofisticados em países onde matérias-primas e força de traba-
lho podiam ser encontradas a preços mais baixos.
A inflexão nessa tendência só ocorreu a partir de meados dos
anos 70. Os fluxos de investimentos dos países centrais para os paí-
ses da periferia do sistema passaram a diminuir de forma acentuada,
51
WLADIMIR POMAR
chegando mesmo a mudar de sentido nos anos 80, quando o fluxo de
capitais dos países pobres para os ricos se elevou a 450 bilhões de dó-
lares. Desde então, a contratação de empréstimos externos pelo setor
público passou a desempenhar papel mais importante na manutenção
de taxas positivas de desenvolvimento no terceiro (e também no se-
gundo) mundo. Isso se tornou possível em particular porque o sistema
financeiro internacional se apropriara de grande volume de dólares
que a alta do petróleo concentrara momentaneamente nos países ára-
bes produtores. Criou-se todo tipo de facilidade para emprestar esse
dinheiro aos países necessitados.
The Economist tem razão ao responsabilizar os países do terceiro
e do quarto mundos pelo levantamento de empréstimos em bancos es-
trangeiros, sem ter condições para saldá-los e, pior, pelo uso indevido
que muitas vezes praticaram com o dinheiro obtido. Bilhões de dóla-
res escoaram pelas malhas da corrupção, indo engordar as riquezas
das classes ou frações de classe que dominavam a economia e o poder
político desses países. Não esqueçamos que, na luta para derrotar a
União Soviética e o socialismo, a sagrada aliança dos países centrais
capitalistas aceitava todo tipo de aliado, desde que mantivesse o poder
e não tivesse escrúpulos para esmagar o inimigo vermelho.
The Economist omite maliciosamente a parte de responsabilidade
que cabe aos países centrais na orgia financeira em que se transfor-
mou o endividamento externo durante a década de 70. De qualquer
modo, o resultado de tudo foi que a dívida dos países em desenvolvi-
mento, que era de 62 bilhões de dólares em 1970, saltou para 572,8 bi-
lhões em 1980. Em grande parte porque o pagamento dos juros e servi-
ços da dívida era facilitado pela oferta de novos créditos pelos bancos
internacionais.
Em 1979, a dívida teve um acréscimo ainda mais rápido porque
os juros praticados pelos Estados Unidos foram elevados bruscamen-
te e de forma unilateral, resultando num crescimento inusitado dos
pagamentos líquidos que os países devedores tinham que desembol-
sar. Essa situação acabou levando o México a decretar a moratória, em
1982. Em contrapartida, o sistema financeiro internacional suspendeu
os empréstimos voluntários que praticava e colocou o Fundo Mone-
tário Internacional (FMI) como xerife responsável por programas de
52
A ILUSÃO DOS INOCENTES
ajuste financeiro e econômico, que os devedores deveriam aplicar para
ter direito a novos empréstimos.
Os países em desenvolvimento entraram nos anos 80, des-
sa forma, com problemas de toda ordem, em especial na balança de
pagamentos com o exterior. Foram obrigados a comprimir substan-
cialmente seu consumo interno, suas importações e suas taxas de in-
vestimento, ao mesmo tempo que faziam esforços desesperados para
elevar suas exportações, com o fito de fazer frente aos encargos da dí-
vida externa. Isso explica, em parte, por que os países em desenvolvi-
mento elevaram sua participação no comércio internacional e ainda
conseguiram manter taxas positivas de crescimento durante os anos
80 (3,8%), embora bem inferiores às do passado.
Assim, ao contrário do que afirma The Economist, as economias
do terceiro mundo chegaram a ser qualificadas de economias exporta-
doras durante a década de 80, na busca de divisas com as quais pudes-
sem saldar os juros e serviços da dívida externa. Apesar de haver com-
prometido valores que, em alguns casos, chegaram de 10 a 15 bilhões
de dólares anuais, esses países viram sua dívida total mais que dobrar
entre 1980 e 1990. Transferiram cerca de 200 bilhões de dólares para
pagamento de juros, mas mesmo assim sua dívida externa atingiu a
cifra astronômica de 1,28 trilhão de dólares em 1990.
Uma situação dessas teria, inevitavelmente, que desarranjar as
economias dos países devedores. Para sustentar as taxas de cresci-
mento destinadas a alimentar as exportações, foi necessário combinar
generosos incentivos fiscais com subsídios e outras formas de estímu-
lo às exportações, incluindo investimentos financiados pelo Tesouro
nacional. O déficit público tornou-se um pesadelo, coadjuvado e reali-
mentado pela inflação. Os setores não exportadores sofreram uma ver-
tiginosa queda em suas atividades produtivas. Governos assumiram
empresas falidas do setor privado para salvar os capitalistas, não os
empregados. Em 1990, a média de produção por habitante, na América
Latina, havia voltado aos níveis de 1976, configurando os anos 80 como
uma década perdida. Perdida principalmente porque esses países não
tiveram condições de investir em novas plantas industriais e, muito
menos, em pesquisa e desenvolvimento (para não falar em educação),
ficando impossibilitados de enfrentar com o mínimo de condições so-
53
WLADIMIR POMAR
beranas os desafios que começaram a ser colocados pela revolução
técnico-científica.
No início dos anos 90, o fosso que separa os países ricos dos pa-
íses pobres havia se alargado tragicamente. Enquanto a renda per ca-
pita dos países centrais tinha ultrapassado a casa dos 20 mil dólares
anuais, a dos países em desenvolvimento (como Brasil, índia, México,
Irã e outros), excetuando os Tigres Asiáticos, não chegara a 3 mil dó-
lares. E a dos países do chamado quarto mundo (Bangladesh, Zaire,
Zâmbia, Bolívia) não chegava a mil dólares. Embora, como já dissemos,
a renda per capita não seja um indicador completamente válido para
medir o desenvolvimento humano de um país, ela pode dar uma idéia
de como as desigualdades entre os diversos povos havia se alargado.
Uma coisa, porém, era comum a todas as nações em desenvolvi-
mento e subdesenvolvidas: o empobrecimento havia se espraiado de
forma assustadora. Os ajustes estruturais das economias em desen-
volvimento, impostos pelo FMI (reequilíbrio da balança do pagamen-
tos, contração do consumo interno e redução do déficit público, com
cortes nos investimentos sociais), aprofundaram a miséria e tornaram
ainda mais desastrosos seus efeitos recessivos. O outro lado da vitrine
mexicana, por exemplo, sempre apresentada como modelo de ajuste a
ser seguido, era deprimente: déficits na balança comercial (cerca de 8
bilhões de dólares em 1991), achatamento do salário mínimo (que, em
1990, chegou a 42% do de 1982) e perda do poder de compra dos salá-
rios mais altos em torno de 20%.
Em todo o terceiro mundo, o desemprego atingiu parcelas signifi-
cativas da força de trabalho (em alguns casos, até 30%), fazendo emer-
gir exércitos de indigentes de vários milhões de seres. As epidemias
de fome em diversas regiões da Ásia, África e América Latina torna-
ram-se fato corriqueiro no noticiário internacional. Surtos de violência
aparentemente imotivados passaram a explodir em todas as regiões
que se encontram no lado escuro do mundo dominado pelo capital.
Em 1991 e 1992, as economias em desenvolvimento voltaram a
dar indícios de crescimento, embora lento e instável, particularmente
na América Latina e Ásia. Eles coincidem com os ajustes estruturais
dos países centrais, que forçam os países pobres a realizar abertu-
ras ainda mais amplas para receber os segmentos industriais menos
54
A ILUSÃO DOS INOCENTES
rentáveis, mais poluentes, mais exigentes de mão-de-obra, energia e
matérias-primas e cujos mercados não apresentam a potencialidade
de antes. Apesar de toda a retórica modernizadora, essas são as con-
dições básicas do primeiro mundo para que os países do terceiro se
habilitem a receber novos investimentos. O mesmo The Economist, que
hipocritamente pretende dar lições de moral aos países atrasados, re-
ferindo-se a um polêmico memorandum de Lawrence Summers, econo-
mista-chefe do Banco Mundial, concorda que a migração de indústrias
para o terceiro mundo, incluindo indústrias sujas, é de fato desejável.
Os argumentos de Summers enquadram-se totalmente na lógica
econômica do sistema de produção-para-lucro. Ela mostra que o custo
econômico da poluição depende dos ganhos não realizados, devido a
mortes e doenças. Como nos países pobres esses custos são mais bai-
xos, as indústrias sujas teriam maiores ganhos. Além disso, os custos
crescem desproporcionalmente em relação ao aumento da poluição.
Como os países pobres apresentam lugares mais limpos, a transferên-
cia de indústrias poluentes para esses lugares reverteria em redução
de custos. Finalmente, como o valor agregado do meio ambiente sa-
dio aumenta de acordo com a renda, a população dos países pobres
seria beneficiada com a transferência da poluição dos países ricos. O
pior é que essa, digamos, teoria do benefício da poluição não se desti-
na a justificar uma ação futura. Há muito tempo, não só as indústrias
poluentes dos países centrais vêm sendo exportadas para o terceiro e
quarto mundos (quem se esquece do desastre da indústria da Union
Carbide, em Boppal, na Índia?), mas os próprios rejeitos tóxicos dos
Estados Unidos, Comunidade Européia e Japão (só os Estados Unidos
produzem 200 a 400 milhões de toneladas de lixo tóxico) são expor-
tados para países da Ásia, África, América Latina e Europa Oriental,
a preços que variam entre 40 e mil dólares a tonelada. Há pouco, os
movimentos ecológicos descobriram exportações de materiais tóxicos
para o Brasil, usados criminosamente na produção de fertilizantes.
Thurow considera que os fracassos do terceiro mundo superam
em muito os sucessos do primeiro mundo. Suas matérias-primas terão
mercados cada vez menores porque a revolução de materiais científi-
cos usa um número cada vez menor de recursos naturais por unida-
de do produto nacional bruto. Essa redução tem provocado sensíveis
55
WLADIMIR POMAR
quedas nos preços das matérias-primas. Em 1990, esses preços foram
30% inferiores aos de 1988 e quase 40% abaixo do que foram em 1970,
a preços corrigidos. Por outro lado, ainda segundo Thurow, a América
Latina e a África não poderão crescer se tiverem que saldar dívidas na
proporção das existentes.
Os reajustes estruturais dos países ricos e a tendência crescente
para a formação de blocos regionais, como a CEE e o Nafta (este en-
globando Estados Unidos, Canadá e México), também podem prejudi-
car grande parte dos países do terceiro e quarto mundos. A Europa e
os Estados Unidos tendem a priorizar as importações de produtos de
baixa remuneração das regiões mais próximas de suas fronteiras para
assegurar que elas mantenham empregos ativos e aliviem as pressões
migratórias.
Diante de todas essas variáveis, com um mercado interno acha-
tado, ainda assolados por processos inflacionários e pressionados
pelos encargos das dívidas externa e interna, os países pobres ou em
desenvolvimento só conseguirão efetivar a recuperação econômica e
enfrentar todos os desafios que os países centrais estão lhes impondo,
se alcançarem competitividade no mercado internacional e consegui-
rem crescentes saldos positivos na balança comercial. Paradoxalmen-
te, isso impõe, ao mesmo tempo, a adoção de políticas tarifárias pro-
tecionistas e políticas de abertura ao exterior, além da adequação das
empresas que funcionam em seu interior aos padrões de competição
mundial. Esses novos desafios estão, por exemplo, obrigando a indús-
tria automobilística da maioria dos países ocidentais do terceiro mun-
do (na verdade, as mesmas Volkswagen, Ford, General Motors, etc, dos
países centrais do ocidente), mas com padrões tecnológicos inferiores,
a investir em tecnologia e cortar custos.
Elas devem preparar-se para a concorrência com empresas mais
competitivas, que antes não faziam parte dos cartéis que dominavam
os mercados desses países, como as japonesas e coreanas. Situação
idêntica enfrentam todos os outros segmentos econômicos instalados
em cada nação. Isso torna a retomada do crescimento dos países em
desenvolvimento ainda mais contraditória.
Essa retomada tende a incorporar avanços tecnológicos e novas
formas de organização da produção, portanto elevando a produtivida-
56
A ILUSÃO DOS INOCENTES
de. Ao mesmo tempo, deve aproveitar as vantagens de uma mão-de-
-obra mais barata. Em diversos países em desenvolvimento, o desem-
prego não se alastrou vigorosamente porque a compressão salarial
permitiu às empresas manter o mesmo número de trabalhadores, com
dispêndio muito menor de capital variável. No Brasil, por exemplo,
conforme dados de Dedecca e Brandão, o salário mínimo foi reduzido
à metade, em termos reais, entre 1980 e 1990, hoje correspondendo a
1/4 de seu valor médio de 1959. Assim, mesmo que o desemprego não
tenha alcançado índices mais devastadores, esse fenômeno intensifi-
cou a miséria de massa. A combinação dessas tendências contraditó-
rias, que acabam resultando em mais miséria, mais marginalização,
mais polarização das tensões sociais, aponta em vários casos para a
ocorrência de caos econômico e social. Infelizmente, a Somália e o Hai-
ti não são situações isoladas.
Bem vistas as coisas, a expansão do modo capitalista de produ-
ção para os países periféricos criou sociedades de extrema polariza-
ção entre riqueza e pobreza, particularmente se comparadas às dos
países centrais. O terceiro e o quarto mundos estão separados do pri-
meiro por uma fenda abissal, não só em termos de padrões de produ-
ção e consumo mas também em termos de ciência e tecnologia. Isso
ergue diante deles dificuldades incomensuráveis para acompanhar os
desafios da era atual e superar seus problemas econômicos e sociais
extremamente graves.
Historicamente, vendo a situação sob o prisma da construção
do mercado capitalista mundial, os países capitalistas desenvolvi-
dos mantiveram os países atrasados como seu principal repositório
de reserva de mão-de-obra. Isso lhes permitiu, durante muitos anos,
manter altas taxas de emprego em seu próprio interior e recorrer a
esse exército de força de trabalho estrangeiro sempre que se tornou
necessário. Isso tanto para acionar as fábricas que exportavam para
as regiões menos desenvolvidas, quanto para realizar o trabalho sujo
e mais pesado nas próprias metrópoles, às vezes sob o eufemismo de
trabalhadores convidados.
O padrão de desenvolvimento exportado pelos países centrais
para a periferia funcionou, mesmo com altos e baixos, pelo menos até
meados dos anos 70. Propiciaram elevadas taxas de crescimento, que
57
WLADIMIR POMAR
mascaravam o alargamento da pobreza em contraste com a concen-
tração da riqueza. Nesse contexto, puderam também manter-se regi-
mes ditatoriais e autoritários na esmagadora maioria dos países que
ingressaram pela via do desenvolvimento capitalista, assim como na-
queles que nem a isso chegaram. Sob o pretexto da Guerra Fria contra
o inimigo vermelho, os Estados Unidos e demais países ricos apoia-
ram, estimularam, financiaram e sustentaram esses regimes, em ge-
ral sanguinários, em nome da democracia ocidental.
O esgotamento daquele padrão de desenvolvimento, aliado ao
fato de que o capitalismo precisava da bandeira da democracia libe-
ral para levar avante a sua luta pela demolição do campo socialista,
acabou facilitando a falência ditatorial no terceiro e quarto mundos,
embora não de forma definitiva e cabal. De qualquer modo, democra-
cias tuteladas pelos militares passaram fazer parte do cenário inter-
nacional, para deleite dos Panglosses de todos os matizes, e também
para satisfação das massas populares. Afinal, a conquista de maiores
liberdades e nas democracias está permitindo aos povos desses países
um balanço mais transparente dos quarenta e tantos anos de desen-
volvimento capitalista e de inserção no mercado mundial.
O quadro com que se deparam, como vimos até agora, não favo-
rece Pangloss.
VALE DE LÁGRIMAS
O que vai acontecer depois da revolução: uma contra-revolução
ou uma sociedade de consumo ocidental? Essa era a pergunta que Jiri
Dientslier fazia a Timothy Ash durante os acontecimentos da chamada
revolução de veludo na Tchecoslováquia.
Essa era a pergunta que milhões de pessoas talvez se fizessem
naquela ocasião e nos momentos seguintes.
Em trabalhos anteriores, levantamos hipóteses sobre as respos-
tas possíveis.
Especulamos a respeito dos caminhos mais prováveis que as
nações do Leste europeu teriam que seguir ao adotar a economia ca-
pitalista de mercado. E não chegamos a conclusões otimistas. Hoje é
possível dizer que havia uma boa dose de acerto naquelas conclusões,
58
A ILUSÃO DOS INOCENTES
embora não haja mérito algum em haver vislumbrado as conseqüên-
cias da conversão do socialismo de tipo soviético para o liberalismo
econômico e político.
Até mesmo um liberal como Dahrendorf havia dito, na mesma
ocasião, que as reformas econômicas do leste europeu levariam as
pessoas por um vale de lágrimas.
Para ele, como para outros, as coisas forçosamente se tornariam
piores antes de melhorar. Somente Pangloss, assim como as massas do
Leste, pensavam diferente.
Acreditaram ingressar numa vida de fartura, liberdade e aven-
tura. Deixaram-se seduzir por todas as promessas que o capital lhes
sussurrou através de mil e uma formas. E agora estão vertendo lágri-
mas amargas diante de uma realidade que lhes é francamente desfa-
vorável.
A chamada transição do comunismo para o capitalismo tem gera-
do, em todos os antigos países socialistas europeus, recessão, desem-
prego, inflação, transformação da antiga burocracia na nova burgue-
sia espoliadora, sucateamento industrial e tecnológico e uma série de
outros fenômenos negativos. Embora Dahrendorf e muitos outros libe-
rais tenham a esperança de que as coisas um dia melhorarão, o antigo
segundo mundo socialista corre o risco de tornar-se parte integrante
do terceiro mundo capitalista.
Apesar de seu realismo, Dahrendorf acreditou numa assistência
generosa dos países capitalistas centrais para amortecer a dolorosa
jornada dos convertidos pelo vale de lágrimas. Ajuda, crédito, investi-
mentos diretos jamais se concretizaram, porém, no volume prometido
e esperado. Os 24 bilhões de dólares anunciados como ajuda e crédito
à Rússia, transformaram-se nos 3 bilhões de dólares decididos na cú-
pula dos 7 ricos em Tóquio (julho de 93), mesmo assim vinculados às
exigências de programas de estabilização do FMI.
Thurow havia alertado que a técnica padrão do Ocidente para
controlar a inflação (políticas macroeconômicas recessivas, com au-
mento do desemprego, forçando salários e preços para baixo) não po-
deria ser aplicada no Leste, entre outras coisas porque essa região não
contava com mecanismos monetários e fiscais adequados. Nessa mes-
ma linha, outros especialistas sugeriram que algumas dessas exigên-
59
WLADIMIR POMAR
cias não deveriam ser implementadas de imediato, tal o risco de caos
social que poderiam provocar.
As altas substanciais nos preços de energia e matérias-primas,
mesmo aplicadas em escala menor, já haviam provocado falências e
desemprego em massa. A conversibilidade das moedas poderia tornar
os ativos existentes muito baratos, permitindo sua compra massiva
por estrangeiros e criando problemas políticos complicados. Por outro
lado, os fluxos de investimentos de capital externo, que prometiam mo-
dernizar as economias e as sociedades do antigo socialismo, viram-se
confrontados não só com a recessão e a instabilidade política daquela
região, mas também com a recessão capitalista em escala mundial.
Do sonho cabalado por muitos, de que os povos do Leste consti-
tuiriam novos e pujantes mercados à espera de mercadorias e capitais,
sobrou uma ressaca mórbida. A capacidade aquisitiva reprimida pela
escassez de produtos, existente anteriormente, esfumou-se, comida
pelo choque de preços dos novos governos liberais. Na Rússia, por
exemplo, a liberação decretada em janeiro de 1992 elevou os preços,
em um ano, em dezesseis vezes, contra uma elevação salarial de três
a quatro vezes. Diversos produtos, antes escassos, voltaram a encher
as prateleiras, mas 90% da população viu-se rapidamente desprovi-
da dos recursos que, de forma espontânea ou forçada, havia poupado
anteriormente. Restou um poder aquisitivo abaixo do mínimo para a
sobrevivência. Os doentes e os velhos viram-se de repente, contra a
vontade, diante da porta do inferno, aquela da qual, segundo Dante,
não há mais retorno.
As massas do Leste conheceram, assim, o paradoxo do consumo.
Nas economias de comando em que viviam, quase nada podiam com-
prar, apesar de seu poder aquisitivo relativamente alto: os preços eram
baixos, mas não existiam mercadorias suficientes. Na redescoberta da
economia de mercado, também quase nada podem comprar, embora
haja uma relativa abundância de produtos à venda: os preços são altos e
o poder aquisitivo afundou.
A inflação contribuiu para corroer ainda mais esse poder aqui-
sitivo em queda livre. Na Rússia, em 1991, os índices inflacionários
atravessaram a casa dos mil por cento; na Romênia, 344%; na ex-Iu-
goslávia, 215%; na Bulgária, 250%. A Polônia, cuja inflação chegara
60
A ILUSÃO DOS INOCENTES
a 640% em 1989, conseguiu baixá-la para 60,3% em 1991, à custa de
uma recessão que jogou 2 milhões de trabalhadores no desemprego.
Durante 1992, a maioria dos países do Leste procurou seguir o modelo
polonês para baixar os índices inflacionários, agravando a recessão e
o desemprego.
Kurz, com razão, ironizou as opiniões que previam a emergência
de mercados novos na Europa oriental com base nas necessidades de
seus povos. Apropriadamente, lembrou que necessidades sensíveis e
desejos humanos não fazem surgir nenhum mercado ou, em outras pa-
lavras, nenhuma capacidade aquisitiva produtiva. No sistema produtor
de mercadorias essa capacidade só nasce através da exploração da for-
ça de trabalho humano nas empresas. Assim, antes que isso ocorresse,
seria necessário modificar todo o estatuto da propriedade e fazer com
que o sistema de exploração do trabalho funcionasse a plena carga.
Havia a hipótese, não considerada por Kurz, de que o sistema so-
cialista houvesse permitido uma acumulação de dinheiro substancial
em várias camadas da população, configurando um razoável merca-
do potencial. Thurow lembra que os salários reais dos países socia-
listas eram muito mais altos do que os nominais, uma vez que mui-
tas necessidades adquiridas por compra nas sociedades capitalistas,
nas sociedades socialistas eram supridas de graça ou quase de graça.
Teoricamente, deveria haver uma poupança considerável à espera da
economia de mercado.
Entretanto, é ainda Thurow quem alerta, numa economia de mer-
cado essas necessidades passam a ser ofertadas a preços que devem
chegar ao nível dos preços praticados em outras economias de merca-
do. A moradia, que representava 1% a 5% da renda familiar nos antigos
regimes, deveria passar a 30% ou 40% daquela renda. Na prática, para
cobrir essa elevação de gastos, os salários em dinheiro deveriam ser
aumentados em proporções idênticas. Teoricamente, assim, tendo em
conta o nível de instrução e qualificação da força de trabalho no les-
te europeu, a tendência seria de que os países dessa região pudessem
competir com os países em desenvolvimento de salários médios.
Vimos como a poupança foi rapidamente dilapidada pelo brutal
reajustamento dos preços e pela lenta e desproporcional elevação dos
salários. Para piorar as coisas, em todas as economias do antigo Leste
61
WLADIMIR POMAR
socialista, convertidas ao sistema de mercado capitalista, a produção
industrial (e, em diversos casos, também a agrícola) despencou.
Entre 1980 e 1988, a taxa de crescimento anual da Hungria foi
1,6%, a da Polônia 2,5% e a da Tchecoslováquia 2,0%. Essas taxas já
apontavam para os graves problemas enfrentados por sua estrutura
econômica. Mas em 1990 e 1991 a situação agravou-se de forma brus-
ca: a Hungria apresentou taxas negativas de 6,4% e 8,0%; a Polônia, de
-14,0% e -9,0%; e a Tchecoslováquia, de -3,5% e -16,0%. Em 1991, a Bul-
gária apresentou crescimento negativo de 23,0%, a Romênia, de -8,0%,
a ex-Iugoslávia, de 28,0%, a Albânia, de -21,0% e a URSS, de-17,0%.
No território da antiga RDA, anexado pela Alemanha Ocidental,
a situação não é muito diferente. A decretação, em julho de 1990, da
paridade do marco oriental em relação ao marco ocidental aniquilou,
abruptamente, as vantagens de que muitas empresas da Alemanha
Oriental ainda poderiam dispor em suas relações com os antigos par-
ceiros do leste europeu. Tornou as exportações mais caras, fazendo
com que a região perdesse mercados. Além disso, os produtos internos
foram suplantados por mercadorias ocidentais, nem sempre de me-
lhor qualidade, resultando numa queda brusca de demanda e levando
à ruína ramos industriais inteiros. A produção industrial caiu mais de
70% e o desemprego atinge cerca de cinco milhões de trabalhadores
numa força de trabalho de nove milhões.
A característica marcante dos ajustes impostos pela conversão
econômica para o mercado capitalista têm sido fechamento de fábricas,
perdas consideráveis de fundos tecnológicos e desemprego em massa.
A recessão nos países centrais os levou a descobrir, de um momento
para outro, que se encontram com uma supercapacidade produtiva.
Desse modo, o que interessa ao capital desenvolvido, neste momento,
é que as privatizações do Leste resultem na destruição da capacidade
produtiva de sua base industrial, de modo a não concorrer com aque-
la supercapacidade. A capacidade produtiva só deve ser mantida onde
houver, compensadoramente, uma massa de baixos salários.
Um exemplo inesperado tem sido a indústria bélica russa. Havia
fundadas esperanças de que suas fábricas, com elevados níveis tecno-
lógicos e pessoal altamente qualificado, constituiriam instrumentos
inigualáveis para a modernização da indústria civil. Tinham todas as
62
A ILUSÃO DOS INOCENTES
condições de colocar no mercado, teoricamente ávido de mercadorias,
produtos de boa qualidade a preços acessíveis. Entretanto, com a bru-
tal compressão do mercado interno e a liberação, mesmo parcial, dos
preços das matérias-primas e energéticas (além da desorganização
econômica geral), passaram a enfrentar o perigo do sucateamento e
da falência.
Acrescente-se a tudo isso o fato de que a austeridade financeira,
exigida pelo FMI e praticada fielmente por todas as convertidas eco-
nomias de mercado do Leste, atingiu severamente não só as despesas
com educação, saúde pública e seguridade social mas também as des-
pesas militares. Se o corte das despesas armamentistas pode ser sau-
dável para a paz mundial e, a prazo mais largo, para as próprias eco-
nomias nacionais, a curtíssimo prazo isso lançou parcela do parque
industrial, tecnológico e científico de algumas nações do leste europeu
diante de uma catástrofe. A bóia de salvação para evitar o naufrágio foi
apelar para o mercado mundial de armamentos, no qual passaram a
oferecer equipamentos militares de última geração a preços atrativos.
Esses equipamentos têm incluído motores para mísseis, caças
supersônicos e outros dispositivos da alta tecnologia militar soviética.
Esse tipo de solução, porém, não é comum aos demais ramos in-
dustriais. Mesmo a indústria bélica não tem conseguido evitar que o
sucateamento atinja diversos de seus setores. A fuga de pessoal espe-
cializado para nações ocidentais, ou outras, que lhe dêem novas opor-
tunidades de emprego e lhe paguem melhores salários, mesmo que
sejam inferiores aos do mercado, tornou-se uma preocupação perma-
nente. Cerca de 100 mil técnicos na Rússia e em outras repúblicas da
ex-URSS, esperam ser contratados por qualquer empresa estrangeira.
Uma parte do pessoal qualificado, em virtude de sua alta capa-
citação científica e tecnológica, ainda consegue emigrar em busca de
novas oportunidades de trabalho, embora a recessão e o desemprego
sejam pragas que se alastraram por quase todo o mundo capitalista
e impeçam uma absorção mais massiva dessa força de trabalho de
alto nível. A maioria da população desempregada dos antigos países
socialistas, porém, tende a transformar-se em legiões de miseráveis.
Segundo dados do PNUD, quase metade da população ativa da Albânia
está desempregada. Na Bulgária, 10%. Nas nações da ex-Iugoslávia há
63
WLADIMIR POMAR
mais de 1,5 milhão sem trabalho, e na Romênia 550 mil. Na Hungria,
há previsão de que o número dos sem-trabalho chegue perto de 1 mi-
lhão em 1993, para uma população de 10,5 milhões. Na Polônia, os 2
milhões do início de 1992 podem chegar a 6 milhões, enquanto na Re-
pública Tcheca e na República da Eslováquia o desemprego já atinge
mais de 7% da população ativa. Na Rússia e nos demais Estados da
antiga União Soviética, os últimos dados disponíveis falavam em mais
de 15 milhões de trabalhadores sem emprego, mas há estimativas de
que os números verdadeiros sejam maiores. Por outro lado, a conver-
são para uma economia de mercado, qualquer que ela seja, liberal ou
socialista, deve resolver como questão essencial a reordenação do di-
reito de propriedade.
No caso de mudança para uma economia de mercado capitalis-
ta, deve tornar propriedade privada a esmagadora maioria dos bens e
meios de produção que se encontravam em poder do Estado. O proces-
so de privatização sonhado pelas populações do Leste, e prometido pe-
los governos liberais que assumiram o poder, tinha como substância
o direito democrático de oportunidades iguais. Relembrando o que ve-
rificou Ash: todos queriam ser proprietários de classe média. No vale
de lágrimas em que se transformou a Europa central e oriental, porém,
a privatização levada a efeito pelos novos Estados liberal-capitalistas
tem se assemelhado, em muitos aspectos, ao processo de acumulação
primitiva do capital, entre os séculos XTV e XVII.
Formalmente, as privatizações seguem três linhas diferenciadas,
que permitiriam o acesso de toda a população à propriedade privada.
Na prática, acontece um violento processo de apropriação que faz sur-
gir capitalistas bilionários da noite para o dia (ou vice-versa).
Na República Tcheca, foi oficializado um processo de redistri-
buição dos ativos públicos para a população, tendo como mecanismo
principal a venda de cupons ou vouchers pelo Estado. Com os cupons,
todos os cidadãos têm, teoricamente, a oportunidade de comprar ações
e transformar-se em acionistas das empresas que escolherem. Na prá-
tica, cupons e ações são adquiridos principalmente por novos capita-
listas que conseguiram acumular capital por meios menos ortodoxos e
agora aproveitam a ocasião para legalizá-lo.
A Polônia criou um método aparentemente mais sofisticado de
64
A ILUSÃO DOS INOCENTES
privatização. Organizou instituições financeiras encarregadas de ge-
rir a propriedade pública e em condições de operar diversos fundos,
como os de pensão e fundos comuns de investimento. Através desse
verdadeiro mercado financeiro, as ações das empresas estatais são am-
plamente negociadas, transferindo-se sua propriedade. Desse modo,
quem já possui capital acumulado, legalmente ou não, tem condições
de participar efetivamente desse mercado e adquirir a propriedade das
empresas. Já a Hungria utiliza um método mais simples e mais direto,
vendendo as empresas estatais a proprietários nacionais e estrangei-
ros, em especial as firmas mais rentáveis e eficientes.
Os demais países do antigo bloco socialista europeu empregam
métodos semelhantes ou uma combinação deles. Na realidade, esses
métodos ou sua combinação mascaram o processo real de acumula-
ção de capital que se processa nessa região. A derrocada dos regimes
socialistas permitiu a constituição de poderosas máfias que se espe-
cializaram na pilhagem dos ativos públicos. Formadas pela associa-
ção entre uma parte considerável da antiga nomenklatura (diretores
de empresas e cooperativas, funcionários graduados dos ministérios
e do partido dominante e dirigentes dos diferentes órgãos estatais), que
detinha laços de poder, informações e influência, e grupos criminosos
que há muito haviam se estabelecido nas sociedades socialistas, essas
máfias conquistaram uma força inusitada. Essa bizarra conjunção da
nomenklatura reciclada e reformada com as antigas máfias é hoje o nú-
cleo principal da nova burguesia dos países do leste europeu. E nela
que se trava a luta mais feroz pelo domínio da propriedade privada e do
poder naquela parte do mundo, assenhoreando-se dos negócios e dos
novos aparelhos de Estado criados pela conversão do capitalismo. Não
se pode negar que os antigos burocratas comunistas demonstraram
grande capacidade em assimilar o espírito de iniciativa e de empreen-
dimento tão característico dos empresários burgueses, descobrindo
meios criativos e inesperados para realizar uma rápida acumulação de
capital e resolver o problema da transformação acelerada da proprie-
dade social em propriedade privada. Problema que antes, reconheço,
para nós configurava-se bastante complexo e de difícil solução.
Ash já tinha notado que a maior parte da burocracia central da
Polônia continuara em seus postos e trabalhava lealmente, até avida-
65
WLADIMIR POMAR
mente, para os novos patrões. Ainda em 90, durante a viagem pelo leste
europeu, tivemos contatos com diversos ex-funcionários partidários,
intelectuais e funcionários de estatais, que estavam se transformando
rapidamente em prósperos empresários privados. Bóris Kagarlitsk ve-
rifica que na Rússia não há distinção entre a burguesia e a burocracia
e que a privatização não é nada mais do que roubo do dinheiro público.
Na disputa pelo botim, os setores do empresariado nacional e estran-
geiro que não se associaram às máfias são obrigados a empregar os an-
tigos combatentes militares do Afeganistão, os chamados afganes, para
protegê-los. Como contrapartida das máfias, vicejam assim as empre-
sas de proteção dos afganes.
De um modo ou de outro, os novos capitalistas da Europa central
e oriental são vistos da mesma maneira como os brasileiros enxergam
os agiotas e especuladores: exploradores sem nenhum escrúpulo, ca-
pazes de praticar crimes, se isso representar um negócio altamente
lucrativo. Essa característica se torna particularmente contrastante
porque em todos os países do Leste europeu, apesar das brutais difi-
culdades enfrentadas pela maioria esmagadora da população, formou-
-se uma casta de bilionários, capazes de pagar cruzeiros de luxo aos
pontos de veraneio e badalação das elites endinheiradas dos países
ricos.
Kurz parece ter razão quando afirma que, junto com as estrutu-
ras da economia de comando, está sendo arrasada a própria substân-
cia de sociedade industrial, que permitiu àqueles povos existir, por al-
gum tempo, nas estruturas de uma sociedade moderna. Ele considera
que, sob a pressão do mercado mundial capitalista, as sociedades que
desistiram do socialismo não conseguirão manter os antigos níveis de
industrialização. Kagarlitsk também considera que, sob o projeto ne-
oliberal do FMI, não há espaço para nenhum tipo de desenvolvimento
industrial na Rússia. Dahrendorf, por motivos opostos aos de Kurz e
Kagarlitsk, preocupa-se com a surpreendente escassez de soluções
para descobrir o caminho que leva do socialismo à sociedade aberta.
Ele chega mesmo a supor que, em vez de caminhar para o século XXI,
em muitos aspectos aqueles países podem regredir ao século XIX.
É significativo, nesse sentido, que o capital dos países centrais
pretenda empregar, em relação ao leste europeu, os mesmos padrões
66
A ILUSÃO DOS INOCENTES
de exportação de mercadorias e capitais que utiliza em suas relações
com o terceiro mundo. Ou seja, exportações de empresas menos rentá-
veis que aproveitem, ainda, as vantagens comparativas de mão-de-o-
bra e matérias-primas mais baratas. A terceirização empreendida por
muitas empresas centrais para cortar custos inclui a transferência de
operações menos sofisticadas para aquelas regiões. A Ford, por exem-
plo, está abrindo uma fábrica de assentos na Polônia com o objetivo de
suprir toda a Europa. Outros conglomerados industriais estão seguin-
do o mesmo caminho.
De qualquer modo, o Banco Mundial supõe que só em 1996 as
economias do Leste estarão saindo do vale de lágrimas. Naisbitt não
é tão otimista. Prevê que somente durante o próximo século os países
do Leste conseguirão desenvolver economias semelhantes às de seus
vizinhos ocidentais. A maioria dos estrategistas liberais, porém, con-
diciona essa possibilidade à conquista da estabilidade política.
Nesse terreno, as coisas também não são tranqüilas. As reformas
políticas desencadeadas pela glasnost de Gorbachev até hoje não nor-
malizaram as relações políticas e, muito menos, as relações nacionais.
As democracias liberais implantadas nos países do Leste tendem, com
muita facilidade, para novas formas de autoritarismo e não conseguem
assimilar pacificamente o ressurgimento de sentimentos e pretensões
nacionalistas, étnicas e religiosas, para não falar das demandas de
maior participação popular nos negócios do Estado.
No período posterior à publicação de A miragem do mercado, os
acontecimentos mais significativos no antigo campo socialista foram
a desintegração da União Soviética, a completa liquidação do Partido
Comunista da União Soviética, a explosão de conflitos nacionais e ét-
nicos, particularmente no Cáucaso e na Iugoslávia, e a desintegração
dos movimentos populares que marcaram os principais avanços da
democracia em todos os países daquele campo. Esses acontecimentos
aceleraram a derrocada do que sobrava das reformas preconizadas
por Gorbachev para o socialismo soviético.
Os dirigentes soviéticos, inclusive Gorbachev, além de profunda-
mente divididos quanto à estratégia de implementação das reformas,
continuavam enredados em seu próprio orgulho e jactância de grande
potência. Não tinham condições, assim, de exercitar o mínimo de mo-
67
WLADIMIR POMAR
déstia para aproveitar-se das experiências dos outros nem vislumbrar
a magnitude das forças destrutivas que estavam desencadeando. Dessa
forma, conseguiram destruir tanto a tentativa de reforma de seu socia-
lismo de comando num socialismo de outro tipo, democrático e plura-
lista, quanto qualquer tipo de socialismo no Leste europeu, pelo menos
a curto prazo. E, apesar dos Panglosses deste mundo, que só enxerga-
ram benefícios e melhorias nessa destruição, escancararam as portas
de todos aqueles países para inomináveis tragédias sociais e humanas.
Já antes da tentativa de golpe de agosto de 1991, a União Soviética
fazia esforços consistentes para se tornar um país normal e civilizado,
na expressão de seus dirigentes. Ela tomou a iniciativa de promover
os acordos de desarmamento, mesmo levando desvantagem; aceitou a
anexação da Alemanha Oriental pela Ocidental, sem nenhuma garan-
tia ou condição; empenhou-se em romper os laços que mantinha com
Cuba e outros aliados que não mostravam grande entusiasmo pelas
mudanças que patrocinava em todo o Leste; deu apoio à guerra con-
tra o Iraque; renunciou a qualquer postura contestadora em relação
aos Estados Unidos e ao Ocidente, inclusive cortando qualquer tipo
de ajuda aos movimentos revolucionários; e promoveu a economia de
mercado e a democracia liberal do Ocidente como as grandes reformas
salvadoras do socialismo.
A vitória contra o golpe e as modificações que se seguiram — prin-
cipalmente a liquidação do PCUS e o fim da União, substituída por uma
Comunidade de Estados Independentes — serviram para consolidar,
na verdade, os projetos nacionais emergentes da Rússia e da Ucrânia,
em desrespeito ao plebiscito que aprovara a continuidade da União. A
Rússia, particularmente, cristalizou uma política de cima para baixo
que a levou a apoderar-se de praticamente toda a herança material le-
gada pela União das Repúblicas, a abandonar qualquer veleidade sócia,
com as conseqüências do estabelecimento da economia capitalista de
mercado e da democracia liberal e a esforçar-se para resgatar seu pas-
sado pré-revolucionário. Os ex-comunistas que agora dirigem a Rússia
curvam-se respeitosamente diante das tradições do czarismo e da no-
breza grã-russa, como se estivessem saboreando tradições de grande
valor cultural e humanístico. A história que se lixe.
Abba Eban, ex-ministro do exterior de Israel, considerava que
68
A ILUSÃO DOS INOCENTES
Gorbachev oferecia um caminho melhor do que o separatismo para as
repúblicas que compunham a ex-União Soviética. Ele talvez se preo-
cupasse com os perigos que a implosão da União e o crescimento das
rivalidades nacionais poderiam representar. A atuação das novas li-
deranças da Rússia e da Ucrânia parecem lhe dar razão. Para elas, a
nova Comunidade de Estados Independentes (CEI) não passa de uma
administração mal coordenada para a liquidação definitiva de qual-
quer traço da antiga União.
Coincidentemente, as outras repúblicas independentes não con-
seguem esconder o seu temor de que a CEI venha a se constituir num
mecanismo, eventualmente utilizado pela Rússia, para reafirmar suas
históricas pretensões de domínio. Os protestos contra o chauvinismo
grã-russo, quando Moscou se apoderou dos tesouros e bens da União,
dão bem a idéia da prevenção que existe a respeito do velho e sempre
voraz Urso russo.
Nessas condições, é até natural que as disputas nacionalistas e
étnicas voltem a acirrar-se como no tempo do Império. Todos os novos
Estados independentes apressaram-se a formar exércitos nacionais e
os conflitos causados por movimentos independentistas ou secessio-
nistas alastraram-se, tanto nas regiões autônomas da Rússia quanto
na Moldávia, Geórgia, Armênia, Azerbaijão e Tajiquistão. Até agora, a
situação interna da Rússia a tem impedido de usar suas tropas ou as
forças da CEI, na maior parte de nacionalidade russa, para interferir
abertamente nas disputas das outras regiões ou repúblicas. Nada ga-
rante, porém, que essa situação de imobilismo russo perdure.
A Rússia possui mais de vinte milhões de seus cidadãos vivendo
em outras ex-repúblicas da União, incluindo aí as tropas russas esta-
cionadas nesses territórios. Em diversos casos, os russos são minorias
nacionais (Tartária, 43%, Tchuváquia, 26%, Tuva, 30%, Estônia, 38%,
Letônia, 48%). Em outras, os russos constituem maioria (Carélia, 73%,
Buriátia, 70%, Iakutia-Sakha, 50%). Um agravante na situação dessas
populações russas é que elas vêm sendo privadas dos direitos civis e
políticos como uma forma de pressão para que voltem a emigrar para
a Rússia. Calcula-se que, até o início de 1993, mais de 250 mil russos já
haviam tomado o caminho de retorno ao lar natal, para escapar a essas
discriminações.
69
WLADIMIR POMAR
Mas há reações diferentes. Na Moldávia, os russos da região do
Dniester decidiram fundar a República do Transdniester, enquanto na
Criméia eles reivindicam o retorno da península à Rússia e resistem
em entregar à Ucrânia metade da frota do mar Negro, conforme acordo
selado entre os presidentes dos dois países. É difícil prever até quando
o Urso russo suportará passivamente supostas ações e discriminações
que prejudicam seus nacionais. Até o momento só há indícios e acusa-
ções não plenamente comprovadas de que Moscou estaria por trás dos
movimentos nacionalistas russos na Geórgia e na Moldávia.
Sem esquecer a pressão do fundamentalismo islâmico sobre
os Estados da Ásia Central, o território que hoje compõe a CEI carre-
ga conflitos reais e potenciais que constituem o mesmo estopim que
acendeu a guerra fratricida que está consumindo a antiga Iugoslávia.
Os conflitos envolvendo bósnios, croatas e sérvios (e que ameaçam en-
globar os albaneses de Kosovo, os montenegrinos e os macedônios),
além de milhares de mortos e feridos e da destruição indiscriminada
de cidades, vias de transporte, fábricas e outros equipamentos indis-
pensáveis à vida social, provocou o maior fluxo de refugiados na Euro-
pa desde a Segunda Guerra Mundial. Mais de 2 milhões de pessoas já
se deslocaram dos lugares onde habitavam para escapar das atrocida-
des da purificação étnica que cegou todos os lados, indistintamente.
Mais feliz foi a Tchecoeslováquia, que selou a separação entre a
República Tcheca e a Eslováquia de forma menos traumática, pelo me-
nos até agora. O que não as salva, porém, de ter de atravessar o doloro-
so vale de lágrimas.
Tão ou mais doloroso do que isso é constatar, como faz Kagarlit-
sk, que o vertiginoso crescimento do envolvimento popular na esfera
pública entrou em colapso. É verdade que os princípios programáticos
de várias correntes que se encontravam à testa dos movimentos popu-
lares que derrubaram os regimes socialistas de tipo soviético da Euro-
pa central e oriental eram fundamentalmente liberais, não ensejando
muitas ilusões. Tanto as principais lideranças do Solidariedade, na
Polônia, quanto do Fórum Cívico, na Tchecoeslováquia, ou do Fórum
Democrático, na Hungria, para ficar apenas em algumas, defendiam
proposições que ficavam restritas aos princípios elitistas da democra-
cia liberal: domínio da lei, garantida por um judiciário pretensamente
70
A ILUSÃO DOS INOCENTES
independente, eleições livres em todos os níveis, economia de merca-
do e justiça social, como se ambas fossem complementares.
Somente alguns movimentos aparentados ao socialismo demo-
crático, como o Novo Fórum, na Alemanha Oriental, preocupavam-se
realmente na criação de mecanismos de participação popular que
mantivessem o processo de reformas nas mãos do povo. Esses movi-
mentos, porém, foram atropelados pelos acontecimentos. Os liberais e
neoliberais tiveram êxito, como ainda constata Kargalítsk, em retirar o
processo de reformas das mãos do povo, fragmentar e isolar as forças
populares e, assim, derrotar todos os movimentos populares.
A disputa entre Bóris Ieltsin e a maioria do parlamento russo, que
resultou no bombardeio do principal símbolo da democracia liberal,
parece comprovar o colapso e a desintegração do envolvimento po-
pular nas lutas políticas que marcaram as revoluções anti-socialistas
do Leste europeu. Na resistência ao golpe de agosto de 1991, quando
estiveram do mesmo lado Ieltsin, Rutskoi e Khasbulatov em apoio a
Gorbachev, ainda foi possível notar uma mobilização popular espon-
tânea, embora em escala inferior à das vezes anteriores. No caso mais
recente, a disputa cingiu-se ao contingente dos grupos rivais, que an-
tes eram aliados. A decisão, porém, ficou por conta do alto-comando
das forças armadas, quando pendeu a favor de um dos grupos. A popu-
lação não passou de simples espectadora. Os contingentes populares
que entraram na liça parecem tê-lo feito mais por ódio e frustração do
que em apoio a um dos lados.
Depois de caminhar durante estes poucos anos pelo vale de lágri-
mas, talvez Jiri Dientsbierjá não esteja fazendo as mesmas perguntas.
Afinal, vai ficando claro que depois da revolução não está acontecendo
nenhuma contra-revolução. As antigas sociedades socialistas também
não estão conseguindo se transformar em sociedades de consumo de
massa. Como tinha notado Hans Enzensberger, as revoluções do Leste
não apresentaram nenhuma nova demanda. As únicas são de 1848,
que permanecem inconclusas até hoje. Nessas condições, a abolição
do que muitos chamavam de socialismo real resultou não na elevação
a um novo patamar de vida e trabalho, mas no retorno ao velho, aos
símbolos nacionais e, onde foi possível, representou a continuação
de tradições políticas e das organizações partidárias dos anos entre
71
WLADIMIR POMAR
as duas guerras mundiais. O renascimento do neonazismo alemão e
ucraniano é apenas a ponta do iceberg que está por vir à tona.
A revolução do Leste foi a própria contra-revolução travestida,
aproveitando-se das contradições, erros e crimes do tipo soviético de
socialismo ali implantado. Para a maioria de suas populações, o vale
de lágrimas talvez não desemboque nem mesmo em sociedades seme-
lhantes às desenvolvidas do terceiro mundo. O que pode levar alguns
de seus setores à enganosa suposição de que eram felizes mas não sa-
biam.
A MANCHA PAUPERIZANTE
A tese de Marx sobre a pauperização absoluta e relativa dos tra-
balhadores sob o capitalismo sempre foi muito discutível. Não somen-
te os liberais e conservadores a atacavam como irreal e inconsistente.
Muitos socialistas igualmente não a aceitavam com tranqüilidade. E,
durante o desmoronamento dos regimes socialistas do Leste europeu,
ela se tornou uma das opiniões marxistas mais desprezadas e vilipen-
diadas pelos Panglosses liberais e socialistas, deslumbrados com as
perspectivas de vida que a expansão do capital pretensamente abria
aos trabalhadores.
Se aquela tese era antiquada nas condições anteriores do sistema
produtor de mercadorias, ainda mais irreal e inverossímil aparenta-
va mostrar-se nas modernas condições do capital na nova revolução
das forças produtivas sociais. O melhor exemplo seriam os países ca-
pitalistas centrais, onde as taxas de emprego se mantinham elevadas,
sendo acompanhadas por um aumento constante da renda per capita e
por uma distribuição mais ampla da riqueza social. Jürgen Habermas
concluiu, a partir daí, que o conflito clássico da distribuição da rique-
za na sociedade havia mudado de natureza nos países de bem-estar
social. Neles, a maioria do povo trabalhador se confrontaria com uma
minoria de grupos marginais. E o ex-presidente Bush, provavelmente
embriagado pelo que deve considerar como o maior sucesso do cha-
mado mundo livre em todos os tempos, sequer pestanejou ao declarar
que os Estados Unidos eram a sociedade mais igualitária do planeta.
Evidentemente, Pangloss e os que o acompanhavam nessa cruza-
72
A ILUSÃO DOS INOCENTES
da contra Marx fingiam ignorar que o sistema de produção-para-lucro,
ao criar um mercado global único, havia incorporado seu sistema to-
dos os países periféricos. Neles, o processo de pauperização não podia
ser mascarado. Saltava aos olhos, de irmã clara e insofismável, mesmo
quando as taxas de crescimento eram ascendentes. Já vimos isso nos
capítulos anteriores e não vamos mais nos deter nesse aspecto. Entre-
tanto, em relação centro do sistema, Pangloss e seus aliados pareciam
ter razão.
O poder social dos trabalhadores nos países centrais se alargara
consideravelmente. Salários crescentes, benefícios sociais, seguro-de-
semprego e outras modalidades de seguridade social, tudo isso permi-
tia aos trabalhadores, ou à maioria esmagadora, uma vida confortável.
Nos Estados Unidos, por exemplo, para ser considerado pobre era pre-
ciso ter uma renda anual inferior a 6,8 mil dólares. Na França, apenas
quem percebesse salário correspondente à metade do salário mínimo
era dado como estando no limiar da pobreza. Durante os anos 70 e iní-
cio dos anos 80 não atingia 10% a porcentagem da população dos pa-
íses capitalistas desenvolvidos que poderia ser tida como pobre. Uma
minoria residual que, como pensava Habermas, talvez não chegasse a
manchar o bem-estar dos outros 90%.
A situação era de tal ordem favorável que os trabalhadores mo-
mentaneamente desempregados recusavam-se a aceitar trabalhos su-
jos e estafantes, de menor remuneração. Assim, mesmo com uma taxa
residual de 2% a 3% de desempregados, como média, em cada país
central, abriu-se campo para a imigração de trabalhadores estrangei-
ros que se dispusessem a aceitar trabalhos pouco qualificados.
A Europa rica se encheu de força de trabalho portuguesa, espa-
nhola, iugoslava, grega, turca, africana, árabe e asiática. Três milhões
de imigrantes das ex-colônias britânicas reforçaram o mercado de tra-
balho inglês. Dois milhões de turcos e outros quatro milhões de es-
trangeiros localizaram-se nas diversas cidades da Alemanha Federal.
A França foi invadida por mais de cinco milhões de argelinos, marro-
quinos, vietnamitas e outros trabalhadores oriundos de países africa-
nos, árabes, latinoamericanos e asiáticos. Ao todo, cerca de dezessete
milhões de imigrantes se espalharam por toda a Europa.
Os Estados Unidos também viram afluir a seu território levas
73
WLADIMIR POMAR
crescentes de chineses, coreanos, vietnamitas, árabes, mexicanos,
costa-riquenhos e outros latino-americanos.
Os novos bárbaros invadiram o centro do império do capital.
Aproveitavam-se das ofertas de trabalho e das melhores condições de
vida que o opulento primeiro mundo proporcionava. Somente o Japão,
por uma questão de cultura e uma deliberada política estatal, resistiu
por mais tempo à importação de mão-de-obra estrangeira. De qual-
quer maneira, a teoria da pauperização de Marx, como disse alguém,
parecia haver sido definitivamente levada pelo vento.
Uma aparente distribuição ampla da riqueza social mascarara,
no entanto, o alargamento do fosso entre os detentores do “capital e
o restante da sociedade. Em 1977, por exemplo, os 40% mais pobres
dos Estados Unidos ainda abocanhavam o dobro da renda dos 1% mais
ricos. Em 1988, seja devido ao crescimento dos lucros do capital, seja
porque a era Reagan propiciou uma queda de 18% nos impostos sobre
os ricos, essa situação se inverteu e a renda dos 1% mais ricos igualou-
-se à renda dos 40% mais pobres. Em dez anos, os ricos tinham au-
mentado sua renda familiar em 122%, enquanto os 40% mais pobres
viram minguar a sua em 10%. Dessa forma, se em 1982 aqueles 1%
detinham 31% do patrimônio privado dos Estados Unidos, em 1989
haviam alargado essa posse para 37%. Cerca de 834 mil americanos
possuíam um patrimônio de 5,7 trilhões de dólares, maior do que o pa-
trimônio total de outros 150 milhões de habitantes do país mais rico do
mundo. Bush, quando disse que os Estados Unidos eram a sociedade
mais igualitária do planeta, provavelmente estava fazendo uma piada.
Essa situação não é particular aos Estados Unidos. Na Austrália,
Nova Zelândia e Suíça, em 1991, os 20% mais ricos dispunham de ren-
da dez vezes maior do que a dos 20% mais pobres. Proporções relati-
vamente idênticas ocorrem na Alemanha, França, Inglaterra e Itália.
Mesmo no Japão, considerado um dos países centrais menos desi-
guais, a renda dos mais ricos é mito superior à renda dos mais pobres.
A pauperização relativa para uma realidade também no mundo rico,
apesar dos efeitos pirotécnicos para escondê-la.
No início dos anos 90, porém, para complicar ainda mais os pan-
glossianos em seu momento de glória, os bolsões de pobreza as países
centrais se rompem e começam a alastrar-se a um ritmo desconhecido
74
A ILUSÃO DOS INOCENTES
do pós-guerra. Há uma conjunção perversa. Cresce o desemprego es-
trutural, resultante da introdução de novas tecnologias e dos cortes de
custos efetivados pelas empresas durante toda a década. Acrescenta-
-se o desemprego conjuntural, causado pela recessão. Há, finalmente,
uma redução de subsídios e cortes profundos nos benefícios sociais,
resultantes da adoção de medidas estatais para solucionar a chamada
crise dos países desenvolvidos.
Dahrendorf já tinha chamado a atenção para o fato de que a déca-
da de 80 presenciara o renascimento do empresário, com todas as suas
qualidades criativas e destrutivas, mas que o preço desse novo milagre
havia sido alto. Do ponto de vista social, fizera emergir uma subclas-
se de indivíduos há muito desempregados e continuamente pobres. O
problema novo para boa parte dos cientistas sociais, e aparentemente
sem solução à vista, é que essa subclasse passou a crescer muito rapi-
damente.
Entre 1980 e 1990, os países centrais ainda mantiveram uma
taxa média de crescimento econômico (3,1%) superior a sua taxa de
crescimento demográfico (aproximadamente 1,0%), mas a taxa de de-
semprego manteve-se em torno de 6,0% da população economicamen-
te ativa. Em 1991, essa taxa elevou-se para 7,1%, com uma assustadora
tendência ao incremento. Relatório da OCDE estima que em 1994 os
países desenvolvidos deverão ter 36 milhões de desempregados, 8,5%
da força de trabalho do primeiro mundo. E no horizonte futuro des-
ses países não há qualquer perspectiva séria de que a reanimação das
atividades econômicas conduza a uma diminuição sensível no desem-
prego.
O aumento da competitividade das seis grandes empresas auto-
mobilísticas européias frente às japonesas significará um corte de 100
mil a 120 mil empregos, entre 1992 e 1996, de um total de 800 mil. Em
1978, a Ford britânica possuía 30 mil empregados. Em 1992, esse nú-
mero fora reduzido a 8 mil, tanto devido à robotização quanto à tercei-
rização (subcontratação de serviços). Esse processo tem se aprofun-
dado, inclusive através da exportação de unidades terceirizadas para
países de mão-de-obra mais barata, como vimos no caso da Polônia.
Essa tendência não se restringe à indústria automobilística. To-
dos os ramos industriais estão passando pelo mesmo tipo de refor-
75
WLADIMIR POMAR
mulação. A provável saída da recessão deve deixar à mostra, então,
de uma forma mais crua, a extensão do desemprego tecnológico e da
mancha da pobreza estrutural dos países centrais. Kurz tem razão
quando sustenta que o sistema produtor de mercadorias, em seu atual
nível de desenvolvimento, tem que produzir perdedores em massa.
As massas de desempregados, coadjuvadas pelo fluxo migrató-
rio (apesar das fortes medidas restritivas e discriminatórias adotadas
pela Comunidade Européia e pelos Estados Unidos), exercerão uma
crescente pressão sobre o mercado de trabalho. Nessas condições,
embora a tendência do capital seja libertar a mão-de-obra, como re-
sultado do uso de novas tecnologias, ele não se furtará de aproveitar
as chances que lhe propiciam essas pressões do mundo do trabalho.
Tentará impor formas mais intensivas de exploração da força huma-
na. Na Itália, por ‘exemplo, as centrais sindicais aceitaram um acordo
com os empresários sobre o custo do trabalho, pelo qual os salários
só poderão crescer em função da inflação programada e da situação
das empresas. O acordo prevê, também, a adoção do trabalho eventual
(contrato por tempo limitado, através de agências privadas), até então
considerado ilegal. Os capitalistas saúdam o acordo como exemplo de
modernidade, embora muitos trabalhadores vejam nele um retorno às
capatazias da era feudal. Qualquer que seja a interpretação, porém, há
um resultado incontestável: os salários serão mantidos em níveis mais
baixos.
Estudos realizados nos Estados Unidos sobre o declínio do lazer
apontam também para fenômenos que destoam da tendência à liber-
tação da mão-de-obra, proporcionada pelo aumento da produtividade.
Esse aumento, teoricamente, deveria combinar a liberação da mão-de-
-obra excedente com uma progressiva redução da jornada de trabalho.
Tal redução daria possibilidade a que o desemprego estrutural fosse, in-
clusive, menor. No entanto, nos últimos vinte anos, o americano médio
aumentou em nove horas o tempo que passa trabalhando, em cada ano.
Nesse ritmo, no final do século os trabalhadores americanos es-
tarão como na década de 20: sessenta horas por semana, cinqüenta
semanas por ano, três mil horas anuais. Para as mulheres casadas
que trabalham fora de casa, deve-se acrescentar a isso mais 5 horas
semanais de atividades caseiras. A escassez crônica de empregos tor-
76
A ILUSÃO DOS INOCENTES
nou difícil aos trabalhadores resistir às pressões patronais por maio-
res jornadas e menores salários. Thurow calcula que 10 milhões de
norte-americanos recebem salários abaixo do salário-mínimo legal.
Qualquer economista medianamente informado veria aí a tradicional
extração combinada de mais-valia relativa e mais-valia absoluta. A
modernidade capitalista torna-se cada vez mais uma caixa cheia de
surpresas.
Os cortes nos benefícios sociais, outra importante bandeira do
neoliberalismo para a economia retomar o seu funcionamento nor-
mal, agravam ainda mais as mazelas do desemprego. Fazem aumen-
tar, por toda parte do centro do sistema, as parcelas da população sem
acesso à moradia e a qualquer tipo de seguro-saúde. Na Inglaterra, em
1990, os homeless já eram mais de duzentos mil, enquanto nos Estados
Unidos chegavam a um milhão. Esses números podem tornar-se ainda
mais dramáticos se os cortes nos subsídios à agricultura forem final-
mente efetivados. Alguns milhões de agricultores, principalmente na
França e nos Estados Unidos, incapacitados de concorrer com os novos
conglomerados agroindustriais que empregam a biotecnologia e a in-
formática, deverão falir irremediavelmente e engrossar as fileiras dos
desempregados.
Pelo jeito, o vale das lágrimas que os povos do Leste deveriam
atravessar para alcançar a felicidade capitalista, estende-se como uma
viscosa mancha pelos países centrais, ameaçando o sistema de produ-
ção-para-lucro com a ressurreição da teoria da pauperização relativa e
absoluta e com o redemoinho de suas próprias contradições.
Mesmo porque, como diz Dahrendorf, o custo mais alto do mi-
lagre econômico dos anos 80 nos países centrais ainda poderá estar
por vir. Afinal, repetindo uma frase de Susan Strange, aquela década
foi uma década de capitalismo de cassino, no qual dinheiro era gerado
por dinheiro e não pela criação de riqueza duradoura. A cobiça, a frau-
de e o interesse de curto prazo substituíram, com freqüência grande
demais, a poupança, o negócio honesto e a perspectiva a prazo mais
longo, para nada dizer da preocupação com os semelhantes.
Em outras palavras, nada de novo em relação ao que o velho Marx
já dissera em relação ao capital. O problema deste não é produzir mer-
cadorias, ou mais empregos. É produzir mais capital. O resto é detalhe
77
WLADIMIR POMAR
complementar.
Quando um liberal radical chega a reconhecer o quadro real da
marcha do capitalismo, mesmo que de forma benevolente e com espe-
rança de que as coisas melhorem, é porque as contradições internas
do sistema afloraram com tal força que até mesmo alguns panglossia-
nos não podem ignorá-las.
A GLOBALIZAÇÃO CONFLITUOSA
O processo de expansão do capital jamais foi linear ou harmonio-
so. Em todo o seu curso, ele tem apresentado tendências extremamen-
te contraditórias, que se chocam, mas ao mesmo tempo andam unidas
como a unha e a carne. A tendência à concentração e centralização dos
capitais, por exemplo, que vem agindo desde o nascimento do siste-
ma de produção-para-lucro, acelerou-se consideravelmente nos últi-
mos tempos, conduzindo à expansão das empresas transnacionais, à
formação de intrincadas redes financeiras produtivas e comerciais e
à internacionalização e globalização das relações econômicas. Todo
esse processo tendencial parece tornar insustentável a manutenção
de barreiras e fronteiras nacionais, a preservação dos Estados-nação e
qualquer tentativa de revigorar o protecionismo.
Sob a hegemonia americana, a vitória do capitalismo sobre o so-
cialismo soviético tornou aparentemente ainda mais irresistíveis o li-
vre-comércio, a transformação do mundo num único mercado e a su-
peração dos pruridos de soberania nacional onde se fizerem presentes.
No entanto, os Estados Unidos não estão mais sozinhos nem dão mais
a última palavra, embora continuem esbanjando um forte poder mili-
tar, econômico e político. Após a Segunda Guerra Mundial, a Europa e o
Japão elevaram a produtividade de suas economias muito mais acele-
radamente do que os Estados Unidos, enquanto estes se afundavam na
corrida armamentista com a União Soviética, elevando perigosamente
os gastos públicos, permitindo a disseminação da especulação finan-
ceira e endividando-se de uma maneira até então desconhecida.
Nesse novo quadro mundial, a hegemonia americana passou a
ser contestada justamente por seus antigos aliados centrais. Acen-
tuou-se a multipolaridade econômica e política, fazendo crescer, si-
78
A ILUSÃO DOS INOCENTES
multaneamente, a pressão pela conformação de blocos regionais e
multinacionais. Em quase todas as partes do mundo, os Estados nacio-
nais esforçam-se’ em renovar sua vitalidade e reafirmar sua sobera-
nia. Os próprios países centrais retomam práticas protecionistas para
garantir a prosperidade de suas empresas e a competitividade de seus
produtos. A Nomura Securities, uma gigantesca corporação financeira
japonesa, afirma que está preparada para um mundo no qual a com-
petição pela conquista de mercados deverá ser muito intensa. Nessas
condições, a todo momento os povos são assustados com a possibilida-
de da eclosão de um verdadeiro confronto comercial entre as princi-
pais nações desenvolvidas.
Manifestam-se, assim, tendências opostas de grande vigor, em-
baralhando a percepção dos acontecimentos e interferindo e modifi-
cando seu curso. Tendências opostas comumente se combinam em
composições complexas, com resultantes aparentemente inesperados
e inexplicáveis. Uma guerra comercial, por exemplo, poderia conduzir
à fragmentação do mercado mundial, chocando-se contra a tendência
à globalização do capital e ao atual processo acelerado de elevação da
produtividade. Sem mercado mundial, o capital pode, eventualmente,
resvalar para uma crise ainda mais grave e profunda, assemelhada às
que o afundaram nas duas guerras mundiais.
Essas tendências contraditórias manifestam-se de forma cada
vez mais nítida, indicando que o capital alcançou uma fase bem mais
madura de sua evolução. A economia mundial é cada vez mais do-
minada pelas grandes empresas transnacionais, numa simbiose im-
pressionante entre os sistemas financeiro, produtivo e comercial. Em
1970, 64 das 100 maiores corporações industriais estavam sediadas
nos Estados Unidos, 26 na Europa e 8 no Japão. Em 1968, essa situação
havia mudado: 42 das 100 maiores ficavam nos Estados Unidos, 33 na
Europa e 15 no Japão. Em 1970, 19 dos maiores bancos do mundo eram
americanos, 16 europeus e 11 japoneses. Em 1988, unicamente 5 eram
americanos, enquanto 17 eram europeus e 24 japoneses. Atualmente,
9 das 10 maiores firmas de serviços são japonesas.
Essas transnacionais, sediadas nos três principais pólos econô-
micos do planeta, concentram recursos incalculáveis, empregam mi-
lhões de trabalhadores e estão ramificadas por todos os países, seja
79
WLADIMIR POMAR
diretamente, através de filiais ou associadas, seja indiretamente, por
meio do sistema financeiro ou do comércio internacional.
Exxon, Chase Manhattan, Mitsubishi, Lockheed, Philips, IBM,
Unilever, Volkswagen, Hitachi, General Motors, Sumitomo são alguns
poucos exemplos de transnacionais conhecidas praticamente em cada
canto do mundo e cujos investimentos e projetos em larga escala in-
fluenciam a economia e a política a nível local e mundial. A grandeza
dessas empresas e de suas redes pode ser medida, em parte, pelo fato
de que a frota de petroleiros da Exxon era maior do que a da antiga
União Soviética e a receita das vendas da General Motors, no início dos
70, já era superior ao produto nacional bruto da Bélgica e da Suíça. Se-
gundo o Departamento de Comércio dos Estados Unidos, as 200 maio-
res empresas americanas produziam, em 1987, 43% do valor adicional
total na indústria manufatureira contra 30% em 1948.
Articuladas a um sistema financeiro que funciona à velocidade
da luz, 24 horas por dia, rompendo os fusos horários, as empresas
transnacionais estruturaram uma vasta rede de organizações econô-
micas cobrindo o globo. Com isso, elas controlam todas as movimenta-
ções de dinheiro e mercadorias e aceleraram desmesuradamente a ve-
locidade de circulação desses bens. Vários autores concordam em que
as transnacionais transformaram o sistema de circulação monetária
num cassino que funciona sem parar. Thurow diz explicitamente que
o capitalismo tem uma tendência natural a derivar para a instabilidade
financeira e o monopólio, concordando, assim, com os vários autores
marxistas que trataram do assunto.
Um exemplo desse processo é a fusão da Bell e da TCI num ne-
gócio de 44 bilhões de dólares, estabelecendo um novo patamar das
corporações na área de telecomunicações. Forma agora um full service
network (rede completa de serviços), que vai da telefonia à educação e
da saúde ao entretenimento, através de um único equipamento.
Roland Leuschel, do Banque Bruxelas Lambert, assegura que o
sistema financeiro de paridades flutuantes resultou num enorme cas-
sino para especuladores internacionais. A cada 24 horas negociam-se
de 500 bilhões a 1 trilhão de dólares em divisas, com apenas 3% a 5%
desses negócios vinculados a efetivas transações internacionais de
bens e serviços. Esse cassino especulativo já causou sérias comoções
80
A ILUSÃO DOS INOCENTES
internacionais no passado mais longínquo, como a quebra da Bolsa de
Nova York, em 1929, e mais recente, como os 20% de queda das ações
na mesma Bolsa de Nova York, em outubro de 1987. Esse perigo per-
manente tem exigido dos Bancos Centrais dos países ricos uma cons-
tante vigilância e intervenção no mercado financeiro, tornando-os fia-
dores da especulação internacional.
É evidente que essa integração e internacionalização do sistema
só se tornou possível com a nova tecnologia e com os novos meios de
comunicação. O sistema global de comunicações, baseado em satéli-
tes, computadores, teleimpressoras e outros dispositivos eletrônicos,
permite um processo de integração e uma velocidade de transmissão
e recepção que na década de 60 não passavam de ficção. O sistema fi-
nanceiro, compreendendo uma malha extensa e diversificada de ban-
cos e outras instituições financeiras, faz com que o dinheiro e o crédito
fiquem fora de controle de qualquer governo nacional e à mercê dos
interesses especulativos do próprio sistema.
Por outro lado, as novas tecnologias de produção tornaram os ci-
clos de vida dos produtos mais curtos, estimulando a adoção de padrões
mais voláteis de consumo e incrementando a rapidez de obsolescência
das mercadorias. Esse desenvolvimento forçou a reestruturação dos
mercados em todo o mundo e tornou a produção e a circulação trans-
nacionais uma necessidade imperiosa para a reprodução do capital.
A globalização da produção através das empresas transnacionais
permite que elas organizem a produção aproveitando-se ao máximo
das vantagens comparativas que o desenvolvimento desigual do modo
capitalista de produção apresenta. Muitos acreditam que essa interna-
cionalização da produção estaria diminuindo a importância da nacio-
nalidade das corporações. As atividades estratégicas, como pesquisa e
desenvolvimento, por exemplo, também estariam se dispersando geo-
graficamente, seguindo a tendência geral das transnacionais. Lawren-
ce Franko contesta essa alegação. Os trabalhos de maior capacitação e
maiores salários continuariam quase universalmente perto das sedes,
assim como os processos decisórios sobre questões sensíveis, como a
alocação fiscal das multinacionais.
O mais comum é que as transnacionais realizem a pesquisa e o
desenvolvimento, em geral, na sede da empresa, ou ao mesmo tempo
81
WLADIMIR POMAR
nos países desenvolvidos que ofereçam melhores condições para isso.
A produção de componentes, por sua vez, pode estar distribuída por
diversos países, enquanto a montagem pode ser realizada por outros.
Às vezes, a comercialização dos produtos (tanto o equipamento mon-
tado quanto os componentes) não é realizada em nenhum dos países
que serviram de território para a produção e a montagem. Finalmente,
os recursos obtidos com as vendas podem ser depositados num ban-
co situado em alguns dos paraísos fiscais existentes, para escapar dos
controles e maximizar ganhos. O sistema transnacional de produção,
com filiais, associados, dealers, franquias e outros mecanismos que
conformam uma vasta e intrincada rede de vasos comunicantes, atra-
vessa toda e qualquer fronteira nacional.
Essa situação de relativa debilidade dos Estados nacionais é
agravada pelo fato de que a maioria dos distúrbios econômicos e das
ondas de poluição penetra pelos territórios dos diferentes países com
a maior facilidade, ignorando as divisões formais e artificiais dos es-
paços territorial, marítimo e aéreo. A globalização é de tal ordem que,
como constata Alvim Tofler, mesmo centenas de milhões de lavradores
que trabalham para a subsistência, em países pobres, encontram-se
integrados ao mercado e ao sistema monetário que o acompanha.
Do ponto de vista político, o efeito mais evidente do desenvolvi-
mento das empresas transnacionais e da globalização do mercado ca-
pitalista tem sido a pressão para modificar a posição do Estado-nação
(ou nação-Estado). Isso ocorre tanto porque os interesses das trans-
nacionais nem sempre coincidem com os interesses da nação-sede
e quase nunca respeitam os interesses da nação-hospedeira, quanto
pelo fato de que o Estado-nação, em ambos os casos, não consegue
comportar a escala das relações em nível global. São significativos os
crescentes ataques teóricos e práticos à autodeterminação. Glotz não
titubeia em afirmar que neste final do século XX a nação-
Estado estaria econômica, ecológica, militar e culturalmente ul-
trapassada. Dahrendorf, por seu lado, embora reconheça que não exis-
tem sinais no processo europeu de cooperação que tornem supérflua
a nação-Estado, considera que a autodeterminação é, na melhor das
hipóteses, um direito de segunda classe que não pode prevalecer sobre
os direitos básicos individuais dos cidadãos.
82
A ILUSÃO DOS INOCENTES
Outras vozes poderosas têm enfatizado que a indignação provo-
cada por abusos aos direitos humanos vem minando o sólido princípio
de não-intervenção. Nessas condições, a chamada comunidade inter-
nacional (leia-se grupo dos 7 países ricos) estaria inclinada a adotar
a tese de que não existiria justificativa moral para, em defesa dos di-
reitos humanos universais, recuar diante das fronteiras de um país. O
grupo dos países ricos parece haver encontrado nos direitos humanos
a justificativa para romper as fronteiras dos Estados nacionais e, na
prática, fazer valer os interesses da transnacionalização ali onde a na-
ção está sendo um obstáculo à globalização do mercado.
A guerra do Golfo é um exemplo cabal dos verdadeiros interesses
que movimentam os Estados nacionais poderosos. A intervenção dos
exércitos liderados pelos Estados Unidos simplesmente ignorou os inte-
resses e os direitos humanos dos curdos e xiitas do Iraque, assim como
a opressão sofrida por eles. O que realmente movimentou o dinheiro e
as tropas foi a defesa dos interesses petrolíferos no Kuwait. A pretensa
intervenção humanitária na Somália evidenciou-se como uma másca-
ra que encobre o interesse estratégico americano no chifre da África.
A constituição do grupo dos sete (Estados Unidos, Alemanha, Ja-
pão, França, Itália, Inglaterra e Canadá) como comitê coordenador do
processo de transnacionalização representa uma das manifestações
mais evidentes da tendência à globalização. Como diz Thurow, uma
economia multipolar e aberta requer coordenação monetária e fiscal,
que só pode existir se os grandes países estimularem ou restringirem
suas economias de forma articulada e unânime. Além disso, os acor-
dos que funcionavam para um mundo unipolar, hegemonizado pelos
Estados Unidos, não funcionam para um mundo multipolar.
Thurow explica que, nas crises recessivas dos anos 70 e 80, para
impedir que elas se transformassem numa depressão (e causassem sé-
rios danos à luta contra o socialismo soviético, acrescento), os Estados
Unidos apelaram para as suas políticas fiscal e monetária para estimu-
lar a demanda, conforme o receituário de Keynes. Essa ação beneficiou
tanto os produtores americanos quanto os estrangeiros. Pode-se dizer
que a maior parte do crescimento da Europa, Tigres Asiáticos, outros
países em desenvolvimento, assim como dos próprios Estados Unidos,
deveu-se às exportações para o mercado americano.
83
WLADIMIR POMAR
Entretanto, é ainda Thurow quem afirma, a recessão de 81-82
marca o esgotamento dessa capacidade dos Estados Unidos. As expor-
tações americanas, necessárias para equilibrar as importações, tor-
naram-se coisa do passado. A revolução verde restringiu o mercado
externo para os produtos agrícolas americanos. De exportador de pe-
tróleo, os Estados Unidos tornaram-se importador. Os produtos de alta
tecnologia deixaram de ser exclusividade americana. Pela primeira
vez, os Estados Unidos viram-se confrontados com grande déficit co-
mercial, que de cíclico passou a estrutural. Em lugar de solucionador
dos desequilíbrios econômicos mundiais, os Estados Unidos transfor-
maram-se, muito provavelmente, no principal fator de desequilíbrio.
Nessas condições, não lhe restou alternativa senão aceitar a co-partici-
pação dos outros países centrais na coordenação econômica e, conse-
quentemente, política mundial. Como sede da maioria esmagadora das
transnacionais que operam no planeta, esses países se outorgaram o
direito de determinar os rumos de todo o mundo. Deles depende a re-
cuperação da economia, a efetivação ou não dos acordos de proteção
ambiental, a decisão de intervir em tal ou qual nação e a implementa-
ção das medidas adotadas pela ONU.
Paradoxalmente, o grupo dos sete reflete, também, todas as ten-
dências que se opõem à globalização. Na reunião de Tóquio, em julho
de 93, os sete ricos reiteraram a decisão de eliminar barreiras ao livre-
-comércio e à circulação de capitais, aparentemente dando um impulso
decisivo a essa globalização. Entretanto, a lista dos produtos liberados
é justamente aquela em que os países centrais possuem uma eviden-
te vantagem comparativa em termos de custos, eficiência e qualidade.
Em relação aos demais produtos, que foram objeto de uma acirrada
disputa no âmbito da Rodada Uruguai do Gatt, as nações desenvolvidas
continuam praticando um protecionismo aberto ou maquiado, seja em
relação aos demais países do globo, seja em relação aos próprios par-
ceiros de hegemonia mundial.
Os americanos têm acusado os japoneses de permitir práticas
discriminatórias em relação aos produtos e capitais dos Estados Uni-
dos. A balança comercial do Japão só aponta 6% do total para impor-
tados, enquanto a dos Estados Unidos indica 15%. Pior do que isso, a
balança comercial entre os dois países apresenta um déficit contra os
84
A ILUSÃO DOS INOCENTES
Estados Unidos de 50 bilhões de dólares, quase a metade de seu déficit
total de 106 bilhões de dólares, em 1992. Os Estados Unidos reclamam
do Japão, e também da França (que quer manter os subsídios de sua
agricultura), mas sobretaxam o aço brasileiro e produtos de diversos
outros países para proteger suas indústrias. Os desequilíbrios da ba-
lança comercial dos países ricos são hoje a principal razão para o au-
mento das barreiras protecionistas de suas economias, embora conti-
nuem exigindo a aceitação do livre-comércio pelos demais.
O acirramento da concorrência, segundo Thurow, leva todos a
querer assegurar posições de superioridade. As barreiras não tarifá-
rias estão aumentando, enquanto as portas para merca acordos bi-
laterais rompem com o estatuto do GATT e estão liquidando com o
princípio de nação mais favorecida, que permitiria a todas ser tratadas
igualmente no patamar da que estivesse em melhores condições. Essa
atitude de duas faces dos ricos diante do livre-comércio e da eliminação
das barreiras protecionistas estimula os países em desenvolvimento e
os mais pobres a adotar diferentes tipos de proteção, apesar de bem
menos eficazes. De qualquer modo, todas essas ações levantam novos
obstáculos à globalização e são reforçadas, ainda mais, pelo processo
de regionalização incentivado pelos países centrais europeus e acom-
panhado, com nuances acentuadas, pelos Estados Unidos e pelo Japão.
A Comunidade Européia é, sem dúvida, o movimento mais for-
te e consistente de regionalização ou conformação de um novo e po-
deroso bloco de comércio. A reunião de cúpula de Maastricht, apesar
de todas as resistências nacionais e problemas que tem encontrado,
representou a consolidação da linha de unificação de uma nova Euro-
pa. Estabeleceu as condições para a existência de uma moeda única
européia, a ECU (European Currency Unit ou Unidade Monetária Euro-
péia). Definiu as normas para uma estratégia comum de defesa, com a
criação da União Européia Ocidental, seu braço armado que deve atuar
em cooperação, e não subordinado à OTAN. Finalmente, aprovou sua
carta social, estabelecendo a livre circulação de pessoas, a assistência
previdenciária e a igualdade de salários e das condições de trabalho
entre os diversos países membros.
Essa integração européia num bloco desse tipo, no qual são es-
tabelecidas regras para seus membros diferentes das regras para as
85
WLADIMIR POMAR
relações com países fora do bloco, deve conduzir, quase certamente, a
uma confrontação econômica. Apesar de todas as tentativas para man-
ter vivas as regras de comércio livre, estabelecidas no Acordo Geral
de Comércio e Tarifas (GATT), o que vai predominando são as novas
regras de comércio administrado, estabelecidas pela Comunidade Eu-
ropéia.
Não por acaso, os Estados Unidos se lançaram na tentativa, ainda
não consolidada, de formação do Nafta, juntamente com o Canadá e o
México. O Japão se movimenta para articular-se mais intimamente aos
Tigres Asiáticos e aos países de industrialização recente do Pacífico
Oriental. Outras articulações, como o Mercosul, apontam no sentido
da constituição de blocos regionais, destinados a facilitar a coopera-
ção entre os países que os formam. Elas propiciariam condições para
competir com vantagem no terreno econômico e político internacio-
nal, frente aos outros blocos e países.
Entretanto, a formação desses blocos regionais, apesar de apa-
rentemente vantajosa para seus membros, não consegue sufocar in-
teresses estritamente nacionais e corporativos que eventualmente se
chocam com os interesses do bloco. A Inglaterra resiste à moeda única
e à carta social européias, a Alemanha praticamente rompeu o acordo
de paridade cambial quando elevou suas taxas de juros para captar
capitais necessários a financiar seu déficit comercial e seus investi-
mentos na antiga Alemanha Oriental, a Argentina quebrou o acordo
de comércio do Mercosul, sobretaxando produtos brasileiros, e assim
por diante. Além disso, a moderna tecnologia, particularmente nas
comunicações, pode facilitar a formação de blocos comerciais entre
países sem fronteiras geográficas. Baseado nisso, o Chile pretende in-
tegrar-se ao Nafta, em vez de participar do Mercosul, enquanto países
da Ásia do Pacífico tendem a aliar-se aos Estados Unidos, em vez de ao
Japão.
Em todos esses procedimentos para incentivar ora uma, ora ou-
tra das tendências em curso, o Estado tem desempenhado papel de es-
timulador e regulador da economia e instrumento eficaz para enfren-
tar e suplantar pelo menos alguns aspectos da presente crise mundial.
Aqui também aparece com crueza a dupla face dos países ricos. Eles
recomendam e mesmo impõem aos países mais pobres, através do
86
A ILUSÃO DOS INOCENTES
FMI e outras instituições financeiras internacionais, a receita de me-
nos Estado e menos intervenção na economia, enquanto eles próprios
adotam medidas para transformar o seu Estado na principal alavanca
para revitalizar e modernizar suas empresas e enfrentar, externamen-
te, a concorrência das empresas de outros países.
Os japoneses há muito, através do seu Ministério de Indústria e
Comércio Internacional, realizam o planejamento macroeconômico de
sua economia e incentivam e financiam suas corporações na competi-
ção externa. Para atacar e conquistar mercados estrangeiros, tornou-
-se prática comum nipônica a utilização do sistema de dumping, com-
pensado posteriormente pela elevação dos preços após desaparecida
a concorrência.
A Europa está investindo pesadamente na constituição de proje-
tos de pesquisa e desenvolvimento, num sistema de consorciação en-
tre o Estado e empresas transnacionais, como o Eureka, Jessi e Esprit.
Os Estados Unidos, sob a rubrica de projetos militares, estão cami-
nhando no mesmo sentido de aumentar o financiamento às empresas
para elevar sua competitividade na guerra comercial.
Aspecto complementar e ilustrativo desse processo pode ser ob-
servado na reformulação dos objetivos dos diversos serviços de espio-
nagem dos países centrais.
Helena Celestino relata que tais serviços estão voltados agora
para infiltrar espiões em companhias estrangeiras no exterior, a fim
de roubar idéias e tecnologias. A CIA considera o Canadá e a Alemanha
muito ativos na espionagem econômica e comercial, só perdendo para
a França, a mais desenvolta de todas. Jim Woolsey, diretor da Central
americana, afirmou que eles derrotaram o grande dragão comunis-
ta, mas vivem hoje numa sala infestada de perigosas serpentes vene-
nosas. aqueles que se dizem amigos dos americanos espionam suas
empresas e corrompem governos estrangeiros para obter contratos
destinados às companhias estadunidenses. Durante a guerra Fria, os
Estados Unidos precisavam de sua cooperação contra o inimigo comu-
nista e, por isso, fechavam os olhos. Mas essa época acabou e será co-
locado um ponto final nisso.
Essa situação reflete bem o novo nível de disputa pela hegemo-
nia mundial, antes restrita às duas superpotências. Com o desmante-
87
WLADIMIR POMAR
lamento de uma delas, foi aberto espaço para que as outras potências
econômicas se firmassem como tais e passassem disputar seu espaço
no cenário internacional. Os países emergentes da Ásia do Pacífico, aí
incluída a China, que resistem à onda recessiva que afoga o sistema
capitalista, também acirram a tendência à multipolaridade e a disputa
pelos diversos mercados nacionais e pelo mercado global.
Esses movimentos de sentido contraditório disseminam incerte-
zas. Muita gente enxerga na crise atual, na qual se conjugaram o des-
mantelamento do socialismo soviético e uma recessão duradoura do
capitalismo ocidental, uma crise geral da civilização industrial em seu
todo. Tofier e Kurz chegam a conlusões idênticas, embora com formu-
lações diferentes quanto ao futuro. Tofier chega a parafrasear Marx ao
dizer que esta civilização, agora moribunda, se teve alguma missão,
essa teria sido a de mercadizar o mundo.
Se, diante dessas incertezas, os executivos das empresas trans-
nacionais têm dificuldades para enfrentar as oscilações das políticas
industriais e monetárias e tomar decisões, nem por isso essas empre-
sas paralisam seu inexorável processo de expansão. Movidas por sua
lógica interna, elas procuram adaptar-se às próprias forças que desen-
cadearam ao realizar o desmembramento generalizado do mercado de
consumo e do mercado de trabalho. Procuram criar, continuamente,
milhares de novos modelos de produtos para todos os usos e todos os
gostos, embora se esforcem por demonstrar que os parâmetros da nova
competitividade mundial se encontram nas tecnologias do processo e
não nas tecnologias dos produtos. Na verdade, um dos pontos críticos
de sua crise atual reside precisamente na dificuldade de encontrar um
ou alguns novos produtos que possam penetrar no saturado e cada vez
mais restrito mercado de consumo da maioria dos países.
Além disso, as transnacionais têm que especializar seus pon-
tos de venda para atender aos segmentos diferenciados do mercado
e dar mais visibilidade à diferenciação das mercadorias. São obriga-
das, portanto, a transformar mercados de massa, como o de tecidos,
em mercados de nicho, como o das confecções de moda. E mercados
de nicho, como o de computadores pessoais, em mercados de massa,
como o de calçados. Vêem-se, assim, obrigadas a proliferar o cada vez
mais restrito mercado de trabalho com novas ocupações, que atendam
88
A ILUSÃO DOS INOCENTES
aos novos processos tecnológicos e aos novos produtos, impondo aos
trabalhadores necessidade de adquirir diferentes especialidades para
pode competir melhor em seu próprio mundo do trabalho.
É bem verdade que as tecnologias de processo, baseadas na flexi-
bilidade, em estoques programados ( just-in-time) e no controle estatís-
tico, indispensáveis para a fabricação de produtos cada vez mais bara-
tos, dependem em grande escala da cooperação da força de trabalho,
de sua melhor qualificação e de sua autonomia no próprio trabalho.
Como veremos mais adiante, isso se choca frontalmente com a tendên-
cia, igualmente presente no atual processo de reestruturação do siste-
ma de produção-para-lucro, de pagar baixos salários e realizar cortes
na mão-de-obra.
Não há dúvida de que as novas tecnologias tornam possível a
construção de fábricas mais compactas, fisicamente menores, mas de
alta intensidade de capital e de alto poder produtivo. O capital sente-se
atraído, assim, a investir em sua própria nação-sede e a diminuir os
investimentos no exterior, onde os riscos são grandes em virtude da
instabilidade política, dos altos índices inflacionários e de outros fato-
res de incerteza que podem incidir sobre as taxas de retorno do capital.
Kurz constata esse fenômeno ao verificar que os investimentos base-
ados no deslocamento de partes da produção para o Norte da África, o
Sudeste da Ásia e a América Latina não apenas ficaram muito atrás dos
investimentos em países ocidentais capitalistas como também dimi-
nuíram consideravelmente durante os anos 80.
Kurz descobre na intensidade elevada do capital os motivos des-
sa nova tendência. Goendevert, ex-presidente da Ford em Colônia, Ale-
manha, reforça a opinião de Kurz ao afirmar que o deslocamento da
produção para os lugares com mão-de-obra mais barata teria perdido
sua importância em virtude da compulsão das empresas pela renta-
bilidade. Elas estariam preferindo cortar custos e, com isso, libertar a
mão-de-obra. Para Kurz, essa tendência principal do capital na atuali-
dade fecharia para o próprio Ocidente uma saída exteriorizante de sua
crise por meio da exploração daqueles mercados novos. Daí a concluir
que o capital não tem mais saída foi um passo.
Entretanto, tanto a tendência que expusemos acima como essa
tendência contrária são faces opostas de um mesmo processo contra-
89
WLADIMIR POMAR
ditório. É verdade que na década de 80 houve uma certa reversão na
tendência das transnacionais produzirem no exterior componentes
intensivos de mão-de-obra. A revolução científica e tecnológica exi-
giu investimentos vultosos, principalmente na pesquisa e desenvolvi-
mento de novas tecnologias de processo e novos materiais, realizados
fundamentalmente nas nações sede. Apesar disso, mesmo durante os
anos 80, as transnacionais continuaram investindo nos países em de-
senvolvimento, em especial naqueles que apresentavam maior estabi-
lidade econômica, financeira e política. E há indicações de que a prá-
tica de instalar fábricas em países onde a mão-de-obra é mais barata
voltou a intensificar-se no início dos anos 90.
De algum tempo para cá, apareceu um novo elemento de atra-
ção para o capital das nações centrais: os países onde a legislação
ambiental é menos rígida e oferecem condições para implantação de
indústrias e equipamentos sujos. Jamais esqueçamos as propostas de
Summers a respeito. A implantação do Nafta sofreu um sério bloqueio
dos ambientalistas dos Estados Unidos e do México, certamente por-
que eles descobriram que o interesse de muitas empresas americanas,
na concretização desse bloco regional, consistia na possibilidade de
fugir das exigências da nova legislação ambiental dos Estados Unidos.
No México, não seriam obrigadas a dispender somas consideráveis na
fabricação de equipamentos antipoluentes.
Sintomático é que as empresas transnacionais também estejam
realizando mudanças significativas em seu perfil produtivo. A com-
petitividade mundial as fez ingressar de forma crescente na comer-
cialização de tecnologias e serviços gerenciais, produtos que antes
eram segredos guardados a sete chaves. A rapidez com que as novas
tecnologias, incluídos aí os novos materiais, tornam-se superadas por
outras, ainda mais novas, reduziu em muito o tempo em que vale a
pena para as empresas mantê-las em segredo. Tornou-se muito mais
rentável concentrar esforços na pesquisa e desenvolvimento de novas
tecnologias e novas técnicas gerenciais e ampliar os mercados para
sua circulação.
Em conseqüência, como vimos, as empresas tendem a concen-
trar na sede as atividades de pesquisa e desenvolvimento científico e
tecnológico, que demandam altos investimentos em capital, e transfe-
90
A ILUSÃO DOS INOCENTES
rir para outros países de mão-de-obra mais barata as atividades pro-
dutivas comuns. No entanto, ao vender novas tecnologias, mesmo que
cercadas de truques e dispositivos que prendam os compradores aos
vendedores e dificultem o seu domínio rápido, as empresas transna-
cionais estão disseminando as condições para o surgimento de novos
competidores na arena internacional.
Olhando para todas essas tendências contraditórias, que ora
agem de forma conjugada, ora se excluem em sentidos opostos, e às
vezes, se transmutam umas em outras, provavelmente seja cedo para
afirmar que o capital tenha esgotado sua capacidade de superar mais
uma crise, como supõe Kurz. Pode-se admitir que a distância entre
uma crise e outra torna-se cada vez menor. Ao mesmo tempo, cada
nova crise traz à tona, com mais vigor, as distorções estruturais do
sistema produtor de mercadorias. Mesmo assim, as tendências à mul-
tipolaridade e ao seu desenvolvimento desigual ainda podem lhe dar
algum fôlego, por certo tempo. Mas dificilmente poderão continuar ali-
mentando, como na breve euforia panglossiana do final dos anos 80 e
início dos anos 90, a perspectiva de viver no melhor dos mundos, sob a
égide do sistema capitalista.
A MORTE DO TRABALHO
As tendências contraditórias do capitalismo manifestam-se com
tanta maior nitidez quanto mais madura é a fase alcançada pelo desen-
volvimento de suas forças produtivas ou, falando de outro modo, pela
socialização da produção. Essas tendências longas do sistema pro-
dutor de mercadorias foram analisadas por Marx em O capital e, em
geral, estão sendo comprovadas pela vida e pela história. O que Marx
dificilmente poderia prever é que o tipo ideal do modo capitalista de
produção e distribuição, que ele pensara haver encontrado na Ingla-
terra da revolução industrial do século XIX, só iria manifestar-se em
toda a sua plenitude na segunda metade do século XX. Com a revolução
eletrônica, o capital finalmente constituiu o sistema nervoso central de
seu corpo econômico e sentiu-se em condições de comandar todas as
atividades viventes do planeta.
Surgiu daí a idéia de que o mundo ingressara na era pós-indus-
91
WLADIMIR POMAR
trial. Tofler situa a explosão da crise do industrialismo no final dos
anos 60. De lá para cá, as tendências longas do capital (concentra-
ção, centralização, globalização, multipolaridade, etc.) aceleraram-se
de maneira inusitada, estimulando tanto previsões otimistas quan-
to pessimistas. Kurz, por exemplo, supõe que o sistema produtor de
mercadorias, com sua explosão dos últimos trinta anos, esgotou sua
capacidade de gerar novos ciclos expansionistas. A crise atual seria
a expressão desse esgotamento. Cada tentativa para superá-la apenas
tenderia a levar o capitalismo a debater-se em crises mais freqüentes
e mais convulsivas. A crise e a derrocada do socialismo soviético não
passariam, nesse sentido, do fracasso de um determinado tipo de mo-
dernização do próprio sistema produtor de mercadorias e uma preli-
minar da crise geral que deverá atingir todo o sistema mundial capita-
lista. A crise dos anos 90 parece lhe dar razão.
Apesar disso, Pangloss também tem carradas de motivos para
deslumbrar-se com os resultados mais que visíveis dos avanços cien-
tíficos e tecnológicos do capitalismo. A robótica oferece condições, se-
quer imaginadas pelos trabalhadores, para torná-los livres não só dos
trabalhos pesados, insalubres e perigosos, mas também da própria
obrigação massacrante do trabalho. A informática, além de fornecer o
cérebro e o sistema nervoso da robótica, abre para todos os indivíduos
um campo novo e ainda pouco explorado para tornar o acesso às in-
formações plenamente democrático. As telecomunicações massificam
essa possibilidade, aproximando as pessoas e os acontecimentos dos
pontos mais distantes do planeta.
As possibilidades não param por aí. A biotecnologia descerra os
caminhos para libertar as mulheres e os homens das doenças e melho-
rar o padrão de saúde de toda a humanidade. De quebra, está produ-
zindo uma nova revolução agrícola, criando as condições para elevar
a produtividade das plantas e dos animais a patamares inimagináveis,
sem precisar degradar os solos, a água e a própria biodiversidade. Por
outro lado, os novos materiais, entre eles as fibras óticas, as ligas ce-
râmicas e as resinas sintéticas, permitirão reduzir sensivelmente os
dispêndios de recursos naturais, elevando a produção global e poden-
do, inclusive, gerar novos produtos capazes de melhorar as condições
da vida humana.
92
A ILUSÃO DOS INOCENTES
A relação das novas conquistas é vasta. A humanidade, porém,
ainda está apenas no limiar dessa nova era, descortinada pela revolu-
ção científica e tecnológica da segunda metade do século XX. Mesmo
assim, embora circunscrita às primeiras décadas do que Tofler cha-
mou de terceira onda, a humanidade já foi capaz de alcançar um poder
produtivo e uma produtividade difíceis de imaginar poucos anos atrás.
Mais importante do que isso, pela primeira vez na história do desen-
volvimento de sua capacidade produtiva, o ser humano parece estar
encontrando os meios científicos e técnicos para limitar ou frear a des-
truição da natureza, sem que seja necessário abalar aquela capacidade
produtiva. Existe a probabilidade real de eliminar o uso indiscrimi-
nado dos recursos naturais e a poluição através de novos processos
produtivos e novos materiais.
Em nenhuma época anterior da história humana criaram-se con-
dições tão favoráveis para que o trabalho de tão poucos pudesse suprir
as necessidades materiais de cada um dos bilhões de indivíduos do
planeta Terra. Pangloss teria tudo para sentir-se realmente no melhor
dos mundos, não fosse o que chamamos de teorema de Kurz. Para este,
acompanhando a teoria geral de Marx, os avanços científicos e tecnoló-
gicos e a conseqüente elevação da produtividade não deságuam unica-
mente em facilidades e conquistas positivas. Com equipamentos mais
produtivos e novas formas de organização da produção, o capital in-
troduz um elemento de perversão na possibilidade de o homem liber-
tar-se do trabalho. Simplesmente empurra o trabalho e seu detentor, o
trabalhador, para a morte.
Tofler não considera essa alternativa. Thurow, por seu lado, con-
sidera que, no futuro, as vantagens competitivas sustentáveis depen-
derão mais de inovações tecnológicas nos processos de produção do
que de novos produtos. As novas indústrias do futuro, como a biotec-
nologia, dependem da capacidade mental. A vantagem comparativa
criada pelo homem substituiria a vantagem comparativa criada pela
natureza (dotações de recursos naturais) e pela história (dotações de
capital). Assim, embora Thurow tenha consciência da tendência longa
representada pelas inovações tecnológicas e pela nova vantagem com-
parativa da capacidade mental do homem, ele não tira as conclusões
sobre a relação desse processo com a realidade do mundo do trabalho
93
WLADIMIR POMAR
(além de não considerar, como devia, esse mundo como a base de sus-
tentação do próprio sistema produtor de mercadorias).
Nos países centrais, onde o mundo do trabalho parecia a salvo da
miséria, hoje ele está sofrendo mudanças radicais e destrutivas não só
em seu padrão de vida, como também em seu perfil. Nesses países não
se pode alegar, como às vezes fazem os cínicos defensores do capital
ou os socialistas desatentos, que os trabalhadores se encontram de-
sempregados e sofrem, não pela presença, mas pela ausência do capi-
talismo. Nesses países, mais do que em quaisquer outros, o capital in-
troduz novas máquinas e novas tecnologias, numa rapidez espantosa,
ocupando o espaço da mão-de-obra. O problema não consiste em que
o sistema de produção-para-lucro liberte os trabalhadores do traba-
lho, mas sim que os liberta, ao mesmo tempo, da possibilidade de viver
como seres humanos.
Andrada e Silva verifica que o desemprego está se tornando uma
epidemia, não apenas em conseqüência da recessão, mas em virtude
de um desequilíbrio estrutural.
Segundo Ignacy Sachs (não confundir com Jeffrey Sachs, de quem
não é parente e com quem não concorda), esse desemprego estrutural
tem três raízes: o progresso técnico, que promove crescimento sem
emprego; os controles macroeconômicos neoliberais e as iniciativas
microeconômicas dos empresários, que abandonaram qualquer pre-
ocupação social; e a dissociação da economia real da economia finan-
ceira, que tira recursos do circuito do investimento e da produção e os
mantém no circuito estéril da especulação.
Carson concorda com o fato de que o desemprego estrutural
surge como decorrência de empregos eliminados por mudanças nas
necessidades de especialização, introdução da automação, declínio
permanente de ramos industriais ou relocalização geográfica dos em-
pregos.
Carson também chama a atenção para o fato de que o desemprego
estrutural, que, até poucos anos atrás, ficava restrito a alguns bolsões,
agora está se estendendo rapidamente. A partir dos anos 70, houve
uma crescente propensão para a permanência do desemprego duran-
te os ciclos de pleno emprego da capacidade produtiva (o crescimento
sem emprego, de Ignacy Sachs). No início dos anos 70 havia 3,5% de
94
A ILUSÃO DOS INOCENTES
desempregados no ciclo de crescimento. Mais adiante esse percentual
subiu para 4,5% e, no final dos anos 80, estava em 6%. Há uma tão
grande probabilidade de que esse índice suba, ainda mais significa-
tivamente, quando o sistema de produção-para-lucro ingressar numa
nova fase de crescimento, que os economistas neoliberais deram sur-
gimento à idéia de um desemprego aceitável comum, que chamaram
taxa natural de desemprego.
Segundo os economistas, o alto e crescente desemprego estrutu-
ral torna inaceitáveis os preços das políticas tradicionais de combate
ao desemprego, como as de aumento da demanda agregada através de
investimentos públicos, preconizadas por Keynes. Nessas condições,
o desemprego tende a sair também das preocupações públicas, como
aponta Sachs, Ignacy, deixando-se ao próprio mercado sua solução. Ou
seja, como diz Carson, deixando que os salários caiam abaixo do ponto
em que o trabalhador anterior, de alto preço, possa ser absorvido por
novos empregadores e em que a força de trabalho seja forçada a migrar
para novas regiões geográficas de salários inferiores.
Carson relembra, muito apropriadamente, que o fundamental
na teoria salarial convencional é que o trabalhador vale apenas o que
pode produzir marginalmente, ou seja, a mais, e que vale a pena con-
tratá-lo apenas se o produto em dinheiro que ele cria com seu trabalho
é maior do que os retornos possíveis com o aluguel de um recurso al-
ternativo. Carson concorda que essa teoria, aceita como pura verda-
de econômica, é do ponto de vista humano, implacável. De qualquer
maneira, não deixa de ser interessante que a mais-valia, descoberta
por Marx, seja admitida, pelo menos, como a teoria convencional dos
salários do sistema capitalista.
Nessas condições, os trabalhadores com pouca especialização ou
com idades superiores a um certo teto, que varia de país para país, ten-
dem a ficar desempregados permanentemente ou a ser jogados para
trabalhos marginais, pesados, perigosos e de baixa remuneração, em
que as novas tecnologias ainda não aportaram. Thurow aceita que é
assim que o capitalismo funciona. Transforma-se numa selva, onde se
trava uma batalha feroz pela sobrevivência. Uma guerra surda e às ve-
zes aberta, corrosiva e destrutiva, entre os trabalhadores mais jovens
e os mais velhos, entre os trabalhadores femininos e os masculinos e
95
WLADIMIR POMAR
entre os nacionais e os estrangeiros.
Nos países centrais, a disputa pelo trabalho entre os nacionais,
descartados pelo avanço técnico, e os imigrantes, que foram atraídos
pelo brilho da riqueza do primeiro mundo e buscam qualquer coisa
melhor do que a vida que levavam em seus países de origem, ganha
contornos de guerra. Ela pode recrudescer se as previsões sobre o de-
semprego se concretizarem. A ONU calcula que no ano 2025 poderá
haver 500 milhões de desempregados no mundo rico, para outros 500
milhões, ou menos, trabalhando. Por outro lado, todos eles estarão
pressionados e sofrendo o assédio de algo em torno de 3 bilhões de
trabalhadores sem emprego nos países em desenvolvimento e subde-
senvolvidos, para uma força de trabalho empregada de 2,5 bilhões ou
menos, segundo estimativas do Banco Mundial.
Para tentar manter-se no emprego, os trabalhadores serão obri-
gados cada vez mais a apresentar conhecimentos e treinamento mul-
tidisciplinar. Thurow afirma que no século XXI a instrução e a capaci-
dade da força de trabalho constituirão a arma competitiva dominante.
Mas os progressos científicos e técnicos, assegura Tom Bottomore,
tendem a produzir somente duas categorias de trabalhadores: os cien-
tistas e engenheiros informáticos, que criam e mantêm complexos
sistemas informáticos de informação e controle; e os usuários roti-
neiros dos terminais informativos. Os da primeira categoria, pequena
minoria altamente qualificada, são trabalhadores autônomos em suas
práticas laborais e, às vezes, independentes. Os da segunda categoria,
estejam empregados em fábricas, caixas de supermercados, postos ad-
ministrativos em bancos ou outros serviços, ocupam-se de operações
rotineiras mediadas por computadores, subordinados a estritos pro-
cedimentos de trabalho, escravos das máquinas.
Para ser mais preciso, deve-se acrescentar que tal tendência,
descrita por Bottomore, reduz constantemente o campo de trabalho
de ambas as categorias, empurrando elementos da primeira para a se-
gunda, e os desta para fora do mercado de trabalho. O mundo do tra-
balho do futuro deve exigir operários com conhecimentos científicos
e técnicos, mesmo para realizar atividades rotineiras, desfazendo-se
constantemente dos operários sem qualificação. Umberto Cerroni
aponta para o progressivo assalariamento dos estratos sociais médios
96
A ILUSÃO DOS INOCENTES
— sobretudo os intelectuais, os técnicos é os cientistas —, cujo estatuto
social cada vez mais aproxima-se do trabalhador assalariado. Thurow
lembra que, para implantar o controle de qualidade estatístico, cada
empregado da produção tem que aprender noções básicas de pesquisa
operacional, o que exige um nível básico de matemática superior ao
que possuem os diplomados do segundo grau nos Estados Unidos.
Essa tendência de redução levará o mundo do trabalho a tornar-
-se, um dia, se continuar o domínio do sistema de produção-para-lu-
cro, no campo de ação de apenas alguns eleitos. Até mesmo os ope-
rários altamente qualificados, aí podendo-se incluir aqueles estratos
sociais médios citados por Cerroni, serão descartáveis. Aqueles que
a duras penas vislumbraram as tendências do futuro e conseguiram
transformar-se em trabalhadores de várias carreiras, polivalentes e
capazes de adequar-se com flexibilidade a qualquer tipo de trabalho
existente, acabarão sendo paulatinamente incluídos na cota de descar-
te e jogados na massa dos desnecessários.
Kurz considera que esse processo, que marca com ferro em bra-
sa o desemprego do mundo ocidental desenvolvido, deve-se exclusiva-
mente às conseqüências da penetração das ciências e intensificação da
produtividade. No entanto, novas tecnologias e exportação de fábricas
foram responsáveis, entre 1960 e 1980, pela redução de 25% para 20%
dos operários trabalhando nas indústrias do primeiro mundo. Conti-
nuaram sendo responsáveis pelas reduções ocorridas na década de 80
e início dos anos 90 e devem continuar a sê-lo no futuro.
Carson mostra que nenhuma atividade econômica será instalada
geograficamente num determinado lugar a menos que esse lugar ofere-
ça o custo mais baixo para a produção do produto específico. Por isso,
os trabalhadores não-qualificados dos países ricos terão que aceitar os
mesmos salários dos não-qualificados que vivem nos países pobres.
Se não aceitarem essas condições, as tarefas que não requerem mão-
-de-obra especial acabarão sendo transferidas para os países pobres.
Esse procedimento está se alastrando aos operários qualificados.
Engolfados no mercado mundial, os países que recebem as indústrias
obsoletas do mundo desenvolvido são obrigados a seguir o mesmo pa-
drão. Há uma repetição cega e inexorável dos modelos e caminhos. A
Avibrás, uma empresa brasileira de armamentos, situada em São José
97
WLADIMIR POMAR
dos Campos, possuía 5,7 mil empregados em 1990. A crise recessiva
levou-a a reduzir seu quadro de pessoal para quatrocentos e a reali-
zar vigoroso processo de recuperação para não fechar as portas. Entre
1990 e 1992, diversificou a linha de produção de material bélico para
os setores de fibras óticas e telecomunicações, voltando a trabalhar a
plena carga. Adaptou-se, assim, rapidamente, à revolução científica e
tecnológica e às novas tendências do mercado. Seu quadro de pesso-
al voltou a crescer, mas ficou limitado a novecentos empregados. Os
salários desse pessoal, em grande parte qualificado, devem ser meno-
res do que os dos países desenvolvidos, transformando-se, assim, em
campo de atração de indústrias semelhantes.
Esse é o crescimento em novas bases, de elevação substancial da
produtividade, rebaixamento dos salários e descarte da força de tra-
balho. Foi ele que permitiu às quinhentas maiores empresas brasilei-
ras aumentarem suas vendas de 145 bilhões de dólares, em 1992, para
mais de 169 bilhões de dólares, em 1993, um crescimento de 11,5%. E,
principalmente, que os lucros, no mesmo período, fossem dez vezes
maiores, saltando de quinhentos milhões de dólares para cinco bilhões
de dólares. Quem se importa com o destino dos outros 4,8 mil empre-
gados da Avibrás? O novo padrão de crescimento dos países centrais e
dos países em desenvolvimento para sair da recessão pode estar, como
acentua Carson, utilizando plenamente sua capacidade produtiva ins-
talada, ter um desemprego cíclico zero e, ao mesmo tempo, ter grande
desemprego estrutural. Esse fenômeno, por outro lado, pode permitir
que a produtividade média das empresas se eleve, mesmo que a pro-
dução se encontre em crise cíclica. No Brasil, em 1991, apesar de uma
queda de 0,5% na produção, a produtividade cresceu 10,8%.
Esse novo tipo de crescimento pode explicar por que a recupera-
ção econômica dos países da América Latina, anunciada como a grande
novidade deste início dos anos 90, deverá ter um efeito relativamente
pequeno sobre os seus milhões de desempregados, podendo inclusive
agravar a sua situação. E explica por que o desemprego, como diz An-
drada e Silva, está se tornando uma síndrome destinada a romper a re-
lação existente entre o trabalho e o capital há mais de cem anos.
Talvez por isso, Kurz acredite que a abolição do trabalho, no in-
vólucro do sistema produtor de mercadorias, não nasça como pura
98
A ILUSÃO DOS INOCENTES
alegria e felicidade, mas somente de forma negativa, como crise e, fi-
nalmente, como crise absoluta de reprodução. A sociedade mundial
capitalista, segundo Kurz, estaria assim se aproximando de sua prova
de resistência e ruptura, pois tem de chegar a um ponto em que supri-
mirá o trabalho abstrato em sua aptidão de ser substância social do
valor econômico.
Kurz tem razão quando destaca a tendência real, negativa, do
capital em relação ao trabalho. As crises de reprodução da força de
trabalho tendem a ser cada vez mais avassaladoras e degradantes.
Entretanto, Kurz parece tentado a cair na mesma utopia que criticou
em Marx. Enxerga no capitalismo um ponto de ruptura que pode estar
visível, mas que talvez não esteja nem tão próximo nem tão maduro
quanto supõe.
Apesar de todos os avanços científicos e tecnológicos, as econo-
mias dos países centrais, como aponta Bottomore, continuam basica-
mente industriais, e não pós-industriais. Cerca de 50% de seu produto
bruto ainda depende de manufaturas.
Os demais países capitalistas, em desenvolvimento ou subdesen-
volvidos, ainda procuram completar seus processos de industrializa-
ção, apesar de todas as dificuldades e da complexidade que a presen-
te divisão internacional do trabalho lhes está impondo. Além disso, o
processo de desemprego não é absoluto nem conforma somente dois
campos opostos (empregados e desempregados). Em geral, mesmo nos
países desenvolvidos, forma-se uma massa intermediária que se mete
pelas brechas do sistema. Ela procura sobreviver, às vezes descam-
bando para o banditismo, o tráfico de entorpecentes ou outras formas
anti-sociais de redistribuição de renda. A Organização Internacional
do Trabalho (OIT) estimou em trezentos milhões o número de pessoas
atuando na chamada economia informal em todo o mundo e prevê que
esse número deve crescer substancialmente nos próximos anos.
O Japão, os Tigres Asiáticos e os países de industrialização recen-
te do Pacífico, por outro lado, ainda não apresentam as mesmas taxas
de desemprego e descarte da mão-de-obra que as economias capitalis-
tas ocidentais. Eles basearam seu crescimento numa combinação bem
mais ampla, de alta tecnologia de processo, tecnologia muito variada
de produtos, longas jornadas de trabalho e baixa participação dos sa-
99
WLADIMIR POMAR
lários na renda nacional.
No Japão, ainda hoje, os operários trabalham seis dias por se-
mana e o mínimo de oito horas por dia, embora esse país seja o que
possui o maior número de robôs industriais. Sua taxa de desemprego
atingiu 2,2% em 1992 e parece também estar crescendo. Mas o de-
semprego estrutural ainda não é a fonte principal da morte do traba-
lho nesse país do Oriente. Lá, 45% dos executivos, segundo pesquisa
do British Medicai Journal, trabalham mais de 50 horas semanais e
25% fazem, pelo menos, 120 horas extras por mês. Resultado: o ka-
roshi, morte repentina por excesso de trabalho. Em lugar da morte
lenta e degradante do desemprego permanente, a morte rápida e ful-
minante no posto de trabalho.
Na Coréia do Sul, é comum os trabalhadores comparecerem às
fábricas para trabalhar três domingos por mês. Os demais Tigres e as
nações de industrialização recente seguem padrão idêntico. Com ar-
gumentos, motivações e coerção ideológica, os trabalhadores desses
países, assim como do Japão, têm sido convencidos de que o impor-
tante não são os altos salários nem a capacidade interna de consumo.
Importante mesmo seria compartilhar a mesma sorte de construir o
país, princípio que era tanto mais assimilado quanto menos importan-
te era o mercado interno para a expansão do capital. O grande êxito
nos mercados internacionais permitiu ao capitalismo dessas nações
desconsiderar o mercado interno para sua própria produção.
Somente agora, com a crise recessiva mundial, o capitalismo oci-
dental começa a pressionar o Japão e os demais países industrializa-
dos da Ásia a mudar seus métodos, por considerá-los desiguais e des-
leais para a competitividade no mercado mundial, único. Akio Morita,
presidente da Sony Corporation, está convencido que as empresas ja-
ponesas terão que adaptar seu estilo administrativo para não competir
desigualmente com europeus e americanos. Terão que equiparar salá-
rios, reduzir jornadas de trabalho e assumir responsabilidades sociais
(férias, custos ambientais e outros benefícios) que não faziam parte de
sua lista de obrigações.
O Japão, pela primeira vez em muitos anos, também começa a
sentir o vento morno da recessão. Tudo isso obriga-o a acelerar suas
reformulações e mudanças. O povo japonês começa a ser instado a
100
A ILUSÃO DOS INOCENTES
consumir mais. Contraditoriamente, seu mundo do trabalho, até então
submisso ao consenso ideológico, cuja base era o emprego vitalício,
agora se vê às voltas com o rompimento da garantia da estabilidade.
A chaga do desemprego, embora ainda pequena, começa a se estender
pela pele pretensamente imaculada da economia do Sol Nascente.
Assim, embora o desemprego estrutural seja uma tendência
avassaladora do capital, em todas as suas formas e nuances, produ-
zindo massas deserdadas de maneira crescente e ampliada, essa não é
uma tendência linear. Nem mesmo se pode dizer que a crise absoluta,
prevista por Kurz, deva dar-se a curto prazo e sem mediações. Até nos
países centrais o capital tem imposto aos trabalhadores, temerosos de
perder o emprego, aumento nas jornadas de trabalho e reduções sala-
riais.
Em todos os países capitalistas, tem sido comum que os traba-
lhadores, ameaçados pelos cortes de pessoal, submetam-se às pres-
sões patronais para trabalhar mais por menores salários. Entre 1973
e 1990, segundo Thurow, o produto nacional bruto per capita dos Esta-
dos Unidos subiu 28%, mas a remuneração por hora dos trabalhadores
em funções não-gerenciais (2/3 da força total de trabalho) caiu 12%. O
salário real semanal caiu ainda mais fortemente (18%), em virtude da
disseminação da terceirização, dos trabalhos eventuais e por emprei-
tada e da queda da força dos sindicatos.
Tornou-se comum, em países onde o desemprego cíclico ou re-
cessivo se apresenta muito forte, agravando a situação do desemprego
estrutural, que os trabalhadores aceitem reduções nos salários, acom-
panhadas de reduções nas jornadas, desde que haja o compromisso,
por parte dos empresários, de manutenção do quadro de pessoal. O
acordo da Volkswagen alemã com o sindicato dos metalúrgicos é o
exemplo mais recente desse tipo de medida para enfrentar a crise, po-
dendo ser copiado mais amplamente em outros países da Europa. O ca-
pital é capaz de admitir combinações variadas, que mantenham seus
ganhos, mesmo que elas representem cargas pesadas sobre os traba-
lhadores. De qualquer forma, a tendência real tem sido a de declínio do
salário real e de aumento do desemprego estrutural.
Tudo isso tem resultado numa queda significativa da ética do
trabalho e no aparecimento de problemas psicológicos e sociais que
101
WLADIMIR POMAR
tendem a se agravar. O que podem pensar gerações crescentes sem
empregos, em especial se ao exército de desempregados se agregam
indivíduos com conhecimentos técnicos e científicos, que normalmen-
te deveriam estar bem empregados? Que reação devem ter trabalhado-
res não-qualificados ou de baixa qualificação quando vêem seus pos-
tos de trabalho sendo disputados por engenheiros e outros indivíduos
com formação técnica superior? Esse agravamento do desemprego
estrutural tem levado muitos cientistas a trabalhar a hipótese de um
mundo sem emprego e sem trabalho. Eles sentem, porém, enormes
dificuldades para dar solução ao problema nos marcos do sistema ca-
pitalista. Como distribuir a riqueza, gerada por muito trabalho morto
e muito pouco trabalho vivo, mas apropriada pelo dono do capital, se
praticamente já não existe a mercadoria força de trabalho, que desem-
penhava o papel de instrumento de troca entre os trabalhadores e o
capitalista? Como garantir aos indivíduos e famílias não-proprietários
de capital (a esmagadora maioria) os elementos de sua reprodução hu-
mana, se a única mercadoria que possuíam para vender, sua força de
trabalho, já não é necessária nem possui, por isso, mais valor algum?
Além disso, que sentido terá a produção se a desaparição do trabalho
elimina uma parte considerável do poder aquisitivo social? Fábricas
automatizadas venderão seus produtos e suas tecnologias para outras
fábricas automatizadas, que venderão para quem? Marx foi o primeiro
a estudar essa tendência do capital para descartar e assassinar o tra-
balho e o trabalhador como uma lei de população inexorável do modo
capitalista de produção. Há muito chegou à conclusão de que ela não
pode ser resolvida a não ser rompendo com o sistema de produção-
-para-lucro e socializando a apropriação da própria riqueza. Durante
mais de um século, os economistas e cientistas burgueses procuraram
ridicularizar e desconsiderar essa tese de Marx. Mas não deixa de ser
irônico, agora que o marxismo está pretensamente morto, que eles se
vejam procurando solução para um problema que consideravam ine-
xistentes, mesmo em perspectiva. Ainda bem que sempre apareceram
vozes isoladas, como Rossana Rossanda, para lembrar que Marx nunca
escreveu palavras tão fortes como as que tratam do holocausto operá-
rio que acompanhou às mudanças do capital. Este sempre demonstrou
força capaz de se renovar constantemente, na busca de seu crescimen-
102
A ILUSÃO DOS INOCENTES
to através da tecnologia e, por ela, da compressão do trabalho humano
e de seu valor como mercadoria.
A morte do trabalho sob o capitalismo fere de morte o próprio
sistema. Quanto mais ele avançar por esse caminho, internacionali-
zando o exército de reserva industrial, sem perspectiva de vir a em-
pregá-lo, impulsionado por sua própria lógica cega de funcionamento
e reprodução, mais forçará o renascimento do socialismo, sob as mais
variadas formas, como a possibilidade real de encontrar uma solução
humana para os desafios colocados pela revolução científica e tecnoló-
gica e pela elevação constante da produtividade.
103
104
IV O sonho dos justos
O mundo real em que vivemos nos obriga a colocar Pangloss de
lado. Afinal, para infelicidade dele, a vitória do capitalismo e do
liberalismo sobre o socialismo soviético acabou tendo um resultado de
certo modo indesejado. Sem inimigo aparente sobre o qual atirar todos
os males e problemas deste mundo, o capitalismo tem sido levado a
desnudar-se muito rapidamente. Os males e as tragédias, gerados pelo
seu funcionamento e expansão, saltam aos olhos.
Por outro lado, se o socialismo deixou de ser, momentaneamente,
para parcelas consideráveis de trabalhadores em todo o mundo, uma
referência palpável e viável para sua libertação das mazelas do siste-
ma de produção-para-lucro, nem por isso os trabalhadores deixarão
de se revoltar e procurar saídas para a exploração e a opressão que
sofrem. O próprio capital, que lhes prometeu o céu e o paraíso após a
vitória contra o inimigo socialista, os empurra cada vez mais para o
inferno dos diferentes tipos de desemprego e para a miséria de massa.
Além disso, os socialistas que não capitularam aos encantos do neoli-
beralismo continuam tentando exorcizar seus demônios e recuperar a
perspectiva socialista, depois da longa e penosa experiência soviética.
É natural, assim, que proliferem não só as mais contraditórias
análises sobre a experiência socialista soviética, como sobre o socialis-
mo em geral e os caminhos de superação do capitalismo. Dahrendorf e
Kurz apontam, com razão, que alguns intelectuais tentam manter vivo
o sonho de algum socialismo real, ao alegar que nenhuma das versões
realmente existentes teria tido algo a ver com os verdadeiros ideais so-
cialistas. Não teriam passado de traições a esses ideais, sendo necessá-
rio recuperá-los, principalmente de um ponto de vista ético e político.
105
WLADIMIR POMAR
Surgem, a partir daí, inúmeras interpretações dos ideais socialis-
tas. André Gorz enfatiza o fato de que o socialismo deve ser uma forma
de sociedade na qual as demandas derivadas de sua racionalidade es-
tejam subordinadas às metas sociais e culturais. Diane Elson relembra
que a tradição socialista tem sempre dado ênfase a que a direção social
consciente da economia deve satisfazer antes às necessidades do que
ao lucro. E Hobsbawn afirma que, enquanto a alma de uma sociedade
individualista era a competição, isto é, o mercado, a base da sociedade
socialista tinha que ser a cooperação ou a solidariedade. Para ele, o
socialismo deve ser julgado economicamente com base em sua capaci-
dade de satisfazer mais e melhor — e diversamente do capitalismo — as
necessidades materiais dos homens.
Kurz, por sua vez, considera que, historicamente, os setenta anos
de URSS e os quarenta anos de Europa Oriental e China representam
um espaço de tempo minúsculo que nos faz duvidar se o socialismo
real jamais aparecerá nos anais da humanidade como formação social
independente que mereça ser mencionada. Para ele, será talvez ape-
nas uma nota de rodapé no processo transitório, historicamente cur-
to, dos sistemas produtores de mercadorias e de sua crise global. Esse
desprezo de Kurz pela experiência do socialismo soviético o conduz a
supor uma passagem abrupta e sem transição do capitalismo para o
comunismo.
Não são, como se pode notar, opiniões completamente conver-
gentes. Para complicar, as desesperanças e as incertezas geradas pela
derrota do socialismo soviético, acompanhadas pela crise cíclica que
se espraiou pelo mundo capitalista rico, estão fazendo ressurgir não
só antigas utopias como também reações anticapitalistas passadistas.
Reaparecem, seja entre os socialistas, seja também entre setores de
trabalhadores marginalizados pelo sistema produtor de mercadorias,
os velhos ideais de igualdade, liberdade e justiça, desligados das con-
dições concretas em que tais ideais podem efetivamente enraizar-se e
tomar corpo.
Em muitos países atrasados do ponto de vista capitalista, os cam-
poneses sem-terra, expropriados pela expansão do capital, retomam a
trajetória dos diggers (cavadores) ingleses do século XVII, instituindo
comunidades produtivas agrárias, na esperança de que com isso pos-
106
A ILUSÃO DOS INOCENTES
sam ver-se livres do sistema que os marginalizou. Em outros, o fun-
damentalismo islâmico, ou outro tipo de fundamentalismo religioso,
se eleva como a única barreira contra a expansão satânica do capital,
justificando a religiosidade extremada e as ações santas como o modo
de alcançar a salvação e a libertação. De um modo ou de outro, a der-
rota do socialismo soviético e o agravamento das condições de vida
das massas trabalhadoras em todo o mundo, inclusive nos países ca-
pitalistas desenvolvidos, têm feito renascer os sonhos que povoaram
a mente dos explorados e dos oprimidos desde que passaram a viver
o pesadelo da divisão da sociedade em classes. Desde que os homens
evoluíram da sociedade comunitária primitiva para sociedades so-
cialmente divididas, a vida comunitária passou a refletir-se em suas
mentes como a época de ouro da igualdade, da liberdade e da justiça.
E provável que na época primitiva comunitária tais conceitos
nem existissem ou tivessem qualquer significado. A igualdade, a liber-
dade e a justiça faziam parte natural do sistema social em que viviam,
do mesmo modo que eram alheias a tal sistema a exploração e a opres-
são. Apenas depois que se instauraram novos sistemas sociais, com
base na divisão de classes, os diversos aspectos de seu modo anterior
de vida ganharam um significado especial. Os sonhos dos deserdados
passaram, então, a ser povoados pelas lembranças douradas de um
tempo que se fora, mas que eles queriam de volta. A maior parte dos
movimentos e sublevações dos oprimidos e socialmente subalternos
das sociedades anteriores ao capitalismo foi marcada pelo desejo e
pela aspiração de retomar o estilo de vida daquele período.
O renascimento desses sonhos nos estimula a relembrá-los. É
possível que boa parte dos leitores os conheça. Mas, nunca é demais
rememorar a maneira como a humanidade tem alargado, de forma
paulatina e sofrida, com recuos e descontinuidades, os círculos da
igualdade, liberdade e justiça.
Do mesmo modo que os episódios que marcaram, desde os tem-
pos mais remotos, as tentativas de concretização desses sonhos, os
movimentos socialistas modernos, incluindo o socialismo soviético,
deverão aparecer na história como elos no esforço sempre crescente
para ampliar a igualdade, a liberdade e a justiça. Até que, de tão natu-
rais que se tornem, sonhos e realidades cheguem a se fundir em algo
107
WLADIMIR POMAR
novo que leve homens e mulheres a ansiar por modos de vida ainda
mais elevados e nobres.
REFAZENDO OS ELOS
São fragmentários os conhecimentos sobre as manifestações
mais antigas dos sonhos das mulheres e homens que habitaram o pla-
neta. Sabe-se que nas antigas sociedades escravistas ou asiáticas do
Egito, Mesopotâmia, China, Pérsia, índia e Grécia, as aspirações e as
revoltas dos escravos e oprimidos quase sempre tinham como emble-
ma aqueles sonhos. Nas ideologias dominantes da época, mais conhe-
cidas, aparecem como contraponto argumentos e idéias que procuram
justificar as desigualdades, a ausência de liberdade, as injustiças e ou-
tras mazelas que faziam parte da realidade que sucedeu as sociedades
primitivas.
No Egito do terceiro milênio a.C, Ptah-Lotep, um nobre de des-
taque, escreveu A sabedoria, uma obra que procura estabelecer as
normas de conduta para a sociedade de sua época. Essa sociedade só
possuía duas espécies de homens: os que ocupam a posição inferior,
que são maus, e os que ocupam a posição superior, que são valorosos e
nobres. Os que ocupam a posição inferior devem obediência e submis-
são aos superiores, de cuja boa-vontade e benevolência depende seu
bem-estar. Dobra a espinha ante os nobres e ricos, aconselhava Ptah-
-Lotep aos inferiores, provavelmente preocupado em evitar que os so-
nhos destes se transformassem em ações contra os valorosos nobres.
Mais tarde, já na X dinastia (início do segundo milênio a.C), a Ins-
trução do rei Ahtoy recomenda esmagar violentamente os facciosos e
ser implacável com os pobres que pretendiam apoderar-se dos bens
escravistas. Para ele, o rico não era injusto, pois era dono das coisas e
não tinha necessidades. Os pobres, ao contrário, eram desprotegidos
e cobiçavam o alheio. Por isso eram elementos perturbadores, mesmo
no exército. Não deixa de ser uma teoria original, embora francamente
cínica.
Na Babilônia, com o Código de Hamurabi, e na índia, com o Có-
digo de Manu, são justificadas a desigualdade social, a total ausência
de liberdade para os escravos e a justiça que protege os escravistas, os
108
A ILUSÃO DOS INOCENTES
sacerdotes, os nobres e o rei. Na China, a doutrina de Confúcio segue os
mesmos preceitos, embora as agudas contradições sociais também o
levassem a aconselhar benevolência em relação ao povo. No século VII
a.C, durante o período dos reinos guerreiros, caracterizado por contra-
dições sociais de todos os tipos e agudas lutas de classes, apareceu a
doutrina de Lao-Tsé, o taoísmo, na qual pela primeira vez se traduz o
protesto do povo trabalhador, arruinado pela exploração e a opressão
dos senhores. Lao-Tsé exorta os homens a retornar à idade de ouro,
na qual seguiam a lei natural, o Tao, em que não aspiravam adquirir
riquezas e se indultavam os crimes. No livro sobre o Tao e o Te, Lao-Tsé
reprova a ostentação da corte e a acumulação de riquezas, enquanto os
campos estavam tomados pelas ervas daninhas, os celeiros estavam
vazios e o povo passava fome, assolado pelos tributos e impostos.
Na antiguidade grega, a divisão da sociedade em classes ocorreu
entre os séculos VII e VI a.C, com a implantação do escravismo. For-
mada por inúmeras polis, cada uma delas constituída por uma cidade
e vários povoados, seu regime político reflete a complexa luta de clas-
ses que envolvia escravos e homens livres (estes englobando a nobreza
agrária, os comerciantes e várias categorias de pobres livres, como os
artesãos e os camponeses). A preocupação com a manutenção do do-
mínio sobre os escravos (que em algumas polis eram a maioria dos
habitantes), ou sobre outras etnias, também escravizadas ou transfor-
madas em colônias pagadoras de tributos, deu surgimento a uma vasta
literatura política e filosófica, que chegou aos nossos dias.
Ela reflete, sobretudo, a acirrada e sangrenta luta política e mili-
tar entre diferentes polis dominantes, entre os regimes políticos (aris-
tocracia e democracia), que opõem a nobreza agrária e os comerciantes
escravistas aos demais homens livres com poucas posses. E, embora
considerando os escravos como simples instrumentos falantes, não
podiam ignorar as suas constantes sublevações pela emancipação.
Hesíodo, poeta que viveu no início do século VII a.C, relembra a
idade de ouro, na qual não havia nem sofrimentos nem preocupações,
como algo que se tornara lenda. A realidade, desde então, nas idades
de prata, cobre e ferro, era a dos homens sobrecarregados com traba-
lho insuportável, porque os ricos haviam concentrado em seu poder
todas as riquezas. A recordação da igualdade e da liberdade existentes
109
WLADIMIR POMAR
durante a idade de ouro conservou-se no culto ao deus Cronos e em
grande parte da variada mitologia grega. Mas está expressa, também,
na influência das idéias escravistas e aristocráticas que predomina-
ram em sua sociedade durante muitos séculos.
A lenda de Prometeus, um dos titãs que trabalhavam para He-
festos, deus do fogo e protetor das forjas, exprime com grande força
dramática a luta e a ânsia dos homens para libertar-se dos poderes
dominadores da natureza e de outros homens. Prometeus entrega aos
homens o segredo do fogo e da arte da forjaria, privilégio dos deuses,
capacitando-os a enfrentá-los. Esse ato de rebeldia desencadeia a fú-
ria e a ira de Zeus, o deus dos deuses, e de Hefestos. Este acorrenta
Prometeus nos penhascos e o condena a ter seu fígado eternamente
devorado pelos abutres. No sofrimento de Prometeus, os escravos e os
pobres deveriam sentir o seu próprio sofrimento se ousassem afrontar
a ordem estabelecida pelos nobres escravistas.
Do mesmo modo que Prometeus jamais se curvou, assim tam-
bém o fizeram os mélios diante das ameaças escravizadoras dos ate-
nienses. Tucídides, famoso estrategista e historiador do período, des-
creve em detalhes o diálogo entre representantes das duas etnias, no
qual se chocam de forma aberta e crua as mentalidades dos escravis-
tas e daqueles que pretendiam conservar a liberdade.
“Viestes para serdes vós mesmos os juízes e o resultado de nosso
debate é evidente”, dizem os mélios, “se vencermos na discussão por
ser justa a nossa causa, e então nos recusarmos a ceder, será a guerra
para nós; se nos deixarmos convencer, será a servidão”. Em resposta,
os atenienses não utilizam nenhum subterfúgio. São francos e diretos:
“exercemos o direito de dominar, porque deveis saber tanto quanto
nós que o justo, nas discussões entre os homens, só prevalece quando
os interesses de ambos os lados são compatíveis, e que os fortes exer-
cem o poder e os fracos se submetem. Nosso desejo é manter o domínio
sobre vós sem problemas para nós e ver-vos a salvo para as vantagens
de ambos os lados”.
Os mélios ainda procuram saber que vantagens poderiam ter em
ser escravos, em comparação com as dos atenienses em dominá-los.
O argumento destes é antológico. “Ser-vos-ia vantajoso”, dizem eles,
“submeter-vos antes de terdes sofrido os mais terríveis males. Nós ga-
110
A ILUSÃO DOS INOCENTES
nharíamos por não termos de vos destruir. Aqueles que preservam a
sua liberdade, a devem à sua força e que não os atacamos por medo”.
Esse não era o caso dos mélios, que tinham plena consciência
de sua fraqueza diante dos atenienses. Ao mesmo tempo, achavam o
cúmulo da degradação e covardia não recorrer a qualquer meio an-
tes de se submeter à escravidão. Ceder imediatamente seria perder
toda a esperança. Contavam com o apoio dos lacedemônios e com sua
própria firmeza. Suportaram um cerco prolongado mas, enfrentando
traições internas e a falta de colaboração dos aliados, viram-se obri-
gados a capitular. Os atenienses mataram todos os mélios em idade
militar que capturaram e reduziram as crianças e mulheres à escra-
vidão.
Assim, enfrentando a ira dos deuses e dos poderosos e domi-
nadores, os defensores da liberdade sacrificaram-se inúmeras vezes
por ela. Nunca deixaram de sonhar com a volta à idade do ouro. Outra
bela página dessa história foi vivida por Espártaco, escravo e gladia-
dor Trácio, que comandou um exército de escravos sublevados contra
o Império Romano, impondo severas derrotas militares às hostes do
maior império mundial de então.
Espártaco sonhou o sonho impossível de fazer com que todos os
escravos retornassem a suas comunidades de origem, onde deveriam
encontrar a igualdade e a liberdade perdidas ao ser aprisionados e
escravizados. No seu idealismo de volta à idade de ouro, Espártaco
cometeu o erro fatal: desistiu de atacar e destruir Roma.
Durante a Idade Média, foram inúmeras as sublevações campo-
nesas em todas as regiões do mundo onde o feudalismo se implanta-
ra. Todas elas reproduziram, com nuances e colorido próprios de sua
época, os mesmos sonhos de igualdade, liberdade e justiça dos derro-
tados sonhadores do passado. Os oprimidos de todas as eras parecem
repetir, eternamente, como Prometeus, o mesmo ato de ousadia no
afrontamento aos dominadores e o mesmo sofrimento. Assim foram
os cristãos da antiguidade, um movimento dos oprimidos do Império
Romano que se exprimia como religião dos escravos e dos libertos,
dos pobres e dos que careciam de direitos. Reunidos em suas comuni-
dades, distinguiam-se pelo igualitarismo e pelo sistema democrático
de adoção de suas decisões.
111
WLADIMIR POMAR
Assim foram, também, as heresias que surgiram contra o cris-
tianismo da hierarquia sacerdotal, completamente diferente e oposta
ao cristianismo comunitário de suas origens. A Igreja católica pratica-
mente fundira-se ao sistema feudal, tanto por defender os seus valo-
res quanto por haver se tornado uma das maiores possuidoras de ter-
ras e de riquezas. Converteu-se, assim, num ato natural que qualquer
ataque ao feudalismo se voltasse, em primeiro lugar contra a Igreja
que o sustentava ideologicamente.
As heresias representaram tanto a oposição das cidades emanci-
padas quanto a sublevação dos camponeses contra o feudalismo. Em
alguns casos, como no dos valdenses, expressava ainda a resistência
contra os invasores feudais.
Os bogomilos eslavos renegavam a hierarquia da Igreja, deseja-
vam restaurar as antigas comunidades cristãs, repudiavam a proprie-
dade privada e rebelavam-se contra a exploração dos trabalhadores pe-
los senhores feudais, tanto seculares quanto eclesiásticos. Os cátaros,
que ganharam denominações diferentes em várias regiões da Europa
Ocidental (albigenses, humiliatos, catarenos, hetzers ou hereges), pre-
gavam que o papa era representante de Satanás e não de Cristo e opu-
nham-se ao serviço militar, à pena de morte e outras ordens dos feudais.
Os lolardos ingleses, sacerdotes dos pobres, pregavam o retorno
à antiga simplicidade das comunidades cristãs e atacavam as rique-
zas colossais e a vida luxuosa e desregrada do clero. A pregação dos
lolardos acabou tendo grande influência sobre a revolta camponesa
dirigida por Wiat Tyler contra a propriedade feudal. Os hussitas, da
Boêmia, rebelaram-se somente contra as indulgências e reivindica-
ram que se estendesse aos seculares a mesma liturgia de comunhão
estabelecida para os servidores do culto.
Mesmo assim, acabaram estimulando fortemente o movimento
de emancipação nacional checo e levaram ao surgimento de uma cor-
rente milenarista, que pregava o advento do reino milenar de Cristo.
Não na vida extraterrena, mas na Terra, onde deveria ressurgir o co-
munitarismo dos primeiros cristãos em relação aos bens e ao traba-
lho. Para isso, queriam abolir não só o sistema de estamentos, mas a
própria propriedade feudal. O milenarismo constitui-se uma das cor-
rentes em que se dividiu a Reforma preconizada por Lutero, a mais
112
A ILUSÃO DOS INOCENTES
séria heresia enfrentada pela Igreja desde que o cristianismo havia
se tornado a religião dominante do Ocidente. Enquanto a Reforma lu-
terana exigia que a Igreja restaurasse o sistema de simplicidade dos
primeiros tempos, abolindo a cúria romana, a instituição monástica
e a casta dos sacerdotes, os milenaristas, dirigidos por Tomas Mun-
zer, iam muito além. Eles pretendiam tudo isso mais a instauração
da igualdade cristã e seu reconhecimento como norma para toda a
sociedade.
Se os filhos de Deus eram iguais, os cidadãos também deveriam
ser iguais, assim como suas posses. Não havia razão para que os no-
bres estivessem acima dos camponeses, e os comerciantes e burgue-
ses ricos acima dos plebeus. Os serviços pessoais, os censos, os tribu-
tos e outros privilégios feudais e burgueses deveriam ser suprimidos
e as diferenças de propriedade niveladas. Os trabalhos e os bens deve-
riam ser comuns e a igualdade completa, afirmava Munzer.
A corrente milenarista de Munzer provocou uma grande suble-
vação camponesa e plebéia na Alemanha e Boêmia, fraturando não
apenas o poder da Igreja católica tradicional, mas ainda o sistema feu-
dal que lhe servia de suporte. Em condições idênticas, apareceram na
Inglaterra do século seguinte correntes milenaristas dos mais dife-
rentes tipos, com conseqüências ainda mais profundas. Elas transfor-
maram as décadas centrais do século XVII, como conta Christopher
Hill, na maior revolução já presenciada por aquele país.
Dentro da própria revolução, que chegou a destituir a monarquia
e instituir a república, alastrou-se a revolta das populações pobres e
deserdadas, adotando diferentes formas: levellers (niveladores), dig-
gers (cavadores) e pentamonarquistas ofereceram novas soluções po-
líticas à revolução (e, no caso dos diggers, novas soluções econômicas
também); as seitas batistas, quakers e muggletonianas propuseram
novas soluções religiosas; os seekers, ranters, outra vez os diggers, além
de outros grupos, formularam questões de teor cético acerca de todas
as instituições e crenças de sua sociedade.
Hill tem páginas brilhantes e detalhadas nas quais narra como
o parlamento parecia haver triunfado sobre o rei e, em função dis-
so, como a pequena nobreza e os grandes comerciantes, que haviam
apoiado a causa parlamentar durante a guerra civil, esperavam re-
113
WLADIMIR POMAR
construir as instituições da sociedade segundo seus próprios dese-
jos e valores. Entretanto, viram-se questionados tanto em relação aos
valores da velha sociedade hierárquica, quanto aos novos valores e à
própria ética protestante. Os levellers e os diggers, dentre todos os gru-
pos e correntes plebéias que brotaram durante a revolução inglesa,
foram os que mais se destacaram nesses questionamentos.
Hill conta que os levellers e os diggers já haviam aparecido na re-
volta de 1381 e reapareceram na revolta das Midlands, em 1607. Eles
são o produto mais genuíno da expropriação violenta das terras co-
munais dos camponeses, resultante do cercamento efetuado pelos
senhores fundiários. Nos movimentos de destruição das cercas, em
1647, eles voltaram com toda a força, mas pelo menos até 1649 ne-
nhuma petição leveller reivindicava a abolição da propriedade. Sua
ênfase na reforma agrária visava a abolição dos modos vis de posse
da terra e o desfrute de sua propriedade pelos que nela trabalhassem.
Foram as divergências sobre a condução da revolução e o ataque do
exército do parlamento contra os levellers, em Burford, que os empur-
rou para posições mais radicais e fez crescer a influência dos diggers.
Estes eram também chamados de levellers autênticos. Assemelhavam-
-se aos outros levellers por seu desafio simbólico a todos os valores e
decretos das autoridades civis e religiosas. Mas distinguiam-se deles
por realizar ações práticas para implantar as medidas econômicas
que consideravam necessárias à sua sobrevivência e à construção
de uma nova sociedade. Particularmente na colina St. George, perto
de Londres, eles cavaram (daí sua designação de diggers ou cavado-
res) e cultivaram as terras, combinando a produção de alimentos e de
ferragens para o inverno com a fertilização do solo. Eles proibiam o
corte das árvores dos bosques comunais, propunham a anulação das
vendas das terras autorizadas pelo parlamento e a incorporação das
terras confiscadas à Igreja a um fundo de terras da República.
Gerard Winstanley tornou-se a grande liderança dos diggers,
tanto prática quanto teórica. Ele defendia que o cultivo dos terrenos
comunais (os senhores dos solares alegavam deter o direito de pro-
priedade sobre esses terrenos e impediam os pobres de cultivá-los,
apesar de a fome alastrar-se de forma trágica) era a base para resolver
o problema da fome e o ponto de partida para construir uma comuni-
114
A ILUSÃO DOS INOCENTES
dade de iguais. Proclamava que os que se resolvessem a trabalhar e a
comer juntos, fazendo da terra um tesouro comum, uniriam as mãos
a Cristo para libertar a Criação e purificar todas as coisas da maldição
original. A servidão de que se queixavam os pobres, mantidos pobres
por seus irmãos numa terra que seria abundante para todos, devia-se
ao fato de a cobiça e a arrogância reinarem na dominação de um ir-
mão sobre o outro.
Em 1652, após a experiência da colina Saint George, Winstanley
publica sua Law offreedont (Lei da Liberdade), na qual, além de criticar
os males de seu tempo, apresenta um projeto de nova sociedade. Nes-
ta, os magistrados e funcionários seriam eleitos anualmente; todos
os varões, com exceção dos partidários do rei Carlos I e daqueles que
haviam especulado com a compra e a venda de terras da República,
teriam os mesmos direitos políticos; era instituída a tolerância reli-
giosa, assim como o casamento civil por amor; a compra e a venda
seriam abolidas, assim como o trabalho assalariado; a educação seria
universal e igual; os inventos teriam recompensas e incentivos; e se-
riam abolidos os segredos das corporações e ofícios.
Nesse mesmo período, o ranter Abiezer Coppe considera a aboli-
ção da propriedade um desígnio gloriosíssimo e clama pela igualdade,
comunismo e amor universal, segundo ele, para a completa confusão
dessas coisas abomináveis que são o orgulho, o crime, a hipocrisia, a
tirania e a opressão.
Assim, mesmo sem dar-se conta, sofrendo as agruras de inúme-
ras derrotas e sofrimentos, os justos foram pouco a pouco se apro-
ximando novamente da concretização de seus sonhos de igualdade,
liberdade e justiça. As mais contundentes derrotas dos oprimidos e
dominados muitas vezes forçaram os vencedores dominantes a con-
ceder direitos então considerados inconcebíveis.
Depois de aparentemente ver naufragar sua nova idade de ouro,
os justos pareciam haver ingressado numa espiral na qual, paulati-
namente, se livravam do domínio da natureza e, também paulatina-
mente, iam se livrando do domínio absoluto de outros homens. Reno-
varam-se, assim, as condições para sonhar repetidamente com uma
idade de ouro que pudesse concretizar-se.
115
WLADIMIR POMAR
AS UTOPIAS FILANTRÓPICAS
O ritmo acelerado da acumulação primitiva do capital, a partir
dos séculos XIV e XV, faz com que estalem, em quase todas as regi-
ões da Europa Ocidental, paralelamente aos movimentos burgueses,
movimentos de massas expropriadas. Como aponta Engels, as suble-
vações revolucionárias dos camponeses, dos plebeus servos ou livres,
algumas das quais acabamos de relembrar, foram acompanhadas por
manifestações teóricas de descrições de regimes ideais de sociedade.
Munzer, Winstanley e, depois, Babeuf, na revolução francesa, foram
revolucionários práticos que elaboraram propostas teóricas com base
na experiência vivida.
Porém, eles não foram os únicos. Apareceram outros pensado-
res, muitas vezes integrantes das próprias classes dominantes que,
tocados pela vida trágica das massas pobres do povo, buscaram ex-
plicações para as causas da situação e idealizaram caminhos para a
construção de uma sociedade de novo tipo. Thomas Morus, Tomas
Campanella, Jean Meslier, Morelli e Gabriel de Mably destacaram-se
pela obra literária deixada. Mas, apesar do vigor com que as escreve-
ram, suas utopias possuem um cunho filantrópico evidente, nem por
isso menos importante para a história dos sonhos dos justos.
Thomas Morus (1478-1535) foi lorde chanceler de Henrique VIII,
rei inglês que fundou o anglicanismo, como variante nacional ao ca-
tolicismo e ao luteranismo. Morus escreveu e publicou o livro Utopia,
em que apresenta uma das primeiras sistematizações das idéias do co-
munismo na história do pensamento social. Nesse livro, faz uma crí-
tica candente da situação econômica, política e jurídica da Inglaterra,
culpando a própria sociedade pelas condições que obrigavam os ho-
mens a praticar delitos. Denuncia de forma veemente a expropriação
desumana das populações camponesas, quando a agricultura ingle-
sa foi substituída pelas pastagens de ovelhas para atender à produção
de lã para as indústrias têxteis da Holanda. E lamenta a existência de
uma massa enorme de gente desocupada, obrigada pela legislação a
procurar trabalho por salários insignificantes ou a sofrer castigos por
pauladas, ferro em brasa ou outros tormentos.
Depois de pintar o quadro doloroso da vida e do trabalho dos opri-
116
A ILUSÃO DOS INOCENTES
midos, Morus chega à conclusão de que a causa dos males sofridos pelo
povo é a propriedade privada. A forma de liquidar com essa situação e
alcançar a felicidade seria, então, a abolição da propriedade privada e
a instauração de um novo regime social e político, que ele situa no país
da ilha da Utopia. Nesta todos trabalham, permitindo uma curta jorna-
da de trabalho e a satisfação de todas as necessidades de seus habitan-
tes. Os frutos desse trabalho são distribuídos gratuitamente entre as
famílias através dos armazéns estatais. Ao Estado também pertencem
as casas, que são distribuídas para uso dos cidadãos através de sorteio.
O modo de vida distingue-se pela simplicidade, o que não exclui que se
possa torná-lo agradável e cheio de prazeres.
O Estado da Utopia é democrático, com as autoridades eleitas. Há
completa tolerância religiosa, embora todos os habitantes sejam obri-
gados a acreditar em Deus e na imortalidade da alma. Aos ateus não
é prevista nenhuma penalidade, mas eles ficam impedidos de ocupar
cargos públicos.
Se ainda hoje as aspirações por uma sociedade socialista são con-
sideradas sonhos irrealizáveis, imagine-se o que não foram nas condi-
ções da sociedade feudal inglesa do século XVI. As premissas mate-
riais para concretizar o sonho comunista de Morus mal começavam a
aparecer embrionariamente. Nesse contexto, sua Utopia tinha, quase
necessariamente, de ser associada a algo impossível de se alcançar, a
um regime futuro sem bases reais para sua efetivação. Apesar disso,
os mesmos sonhos de igualdade, liberdade e justiça tornaram-se cada
vez mais presentes no cotidiano de outros pensadores. As mudanças
aceleradas que o mundo presenciava com o progresso industrial e a
expansão do novo modo de produção capitalista impunham encontrar
uma saída para os grandes sofrimentos enfrentados pelo povo pobre.
Tomas Campanella, um filósofo italiano que viveu um século de-
pois de Morus, também desenvolveu suas idéias de um comunismo
utópico em seu trabalho A Cidade do Sol. Suas concepções são idênticas
às do pensador inglês. O regime social de sua cidade comunista, lo-
calizada na ilha de Taprobana, caracteriza-se pela obrigatoriedade do
trabalho e pela ausência da propriedade privada. E seu regime político
é uma mescla de princípios democráticos com as práticas medievais
de governo. Como no caso de seu predecessor, Campanella criou seu
117
WLADIMIR POMAR
regime utópico como reação à penosa situação dos camponeses e tra-
balhadores da península italiana.
Na França do século XVIII, as idéias comunistas utópicas surgem
através de três sacerdotes. Eles se confrontavam com a miséria pro-
porcionada pelo arruinamento dos camponeses e por sua transforma-
ção em trabalhadores das manufaturas que se desenvolviam rapida-
mente no país. O primeiro deles, Jean Meslier, concentra suas críticas
principalmente na sociedade feudal e nas extravagâncias religiosas,
causadoras dos males e das injustiças reinantes. Em seu livro O tes-
tamento, condena a propriedade privada, as desigualdades e o para-
sitismo das classes possuidoras. Propõe organizar a sociedade sobre
novas bases: todos os seus membros deveriam dedicar-se igualmente
a trabalhos úteis, distribuídos de acordo com as necessidades. Como
resultado, seria possível produzir o necessário para a satisfação de
todos, sem esforços insuportáveis, e construir habitações e palácios
para uso das famílias e das comunidades. Todos os homens teriam di-
reito à liberdade, inclusive religiosa, e à instrução.
Morelli é outro dos pensadores daquele período que identifica na
propriedade privada a fonte dos males que causam sofrimentos aos
homens. Ele retoma a idéia da existência de uma idade de ouro anterior
ao surgimento da propriedade privada e coloca esta em oposição ao re-
gime social em que vigoravam as leis da natureza, quando os homens
viviam agrupados em famílias, sem Estado, numa ordem solidária, na
qual as crianças eram protegidas e os velhos respeitados por sua sabe-
doria e experiência.
Embora não acreditasse ser possível reinstalar uma república
que fosse regida pelas mesmas leis naturais daquela idade dourada,
Morelli indica três leis fundamentais e sagradas para um regime social
capaz de proporcionar a verdadeira liberdade ao homem: a abolição da
propriedade privada, a garantia do direito ao trabalho e da manuten-
ção de cada cidadão por uma conta social e, finalmente, a obrigação
de cada um trabalhar, de acordo com suas forças, talentos e idade, em
função do interesse social. Com base nessas leis fundamentais, Morelli
acha dispensável preocupar-se com que forma política a sociedade vai
funcionar. Não existindo a propriedade, não existiria a propensão a
subjugar os demais. Para ele, a verdadeira liberdade política assenta-
118
A ILUSÃO DOS INOCENTES
-se na utilização de tudo que pode dar satisfação aos desejos naturais,
e, portanto legítimos, dos homens.
O abade Gabriel de Mably, autor de diversas obras históricas, fi-
losóficas e políticas, também desenvolve a idéia de que a igualdade é
uma lei natural. A natureza não teria criado nem pobres, nem ricos,
raças inferiores ou superiores, servos ou senhores. A propriedade
privada não seria compatível com a natureza humana, havendo uma
época em que ela não havia existido. Todos trabalhavam em comum e
distribuíam aquilo que produziam de acordo com as necessidades. A
implantação da propriedade privada teria causado aos homens todas
as calamidades, vícios e imoralidades. Riqueza e moralidade seriam
antagônicas.
Considerando impossível retornar ao século de ouro da comuni-
dade primitiva de bens, pela oposição dos nobres e abastados e pela
impotência dos pobres e humilhados, apesar da miséria em que estes
vegetavam, Mably limita suas propostas a uma série de reformas que
aproximem os homens, paulatinamente, da sociedade da igualdade. E,
como quase todos os utópicos, sonha com uma ilha deserta, coberta
por um céu claro e na qual corre água boa para a saúde, para onde
pudesse mudar-se e fundar uma república. Aí, todos os ricos e todos os
pobres seriam iguais e livres, considerando-se irmãos. A primeira lei
seria a proibição de propriedades.
Mably já havia morrido quando estourou a grande revolução
francesa de 1789, na qual fundiram-se numa mesma corrente pela
igualdade, liberdade e fraternidade tanto os burgueses quanto as
massas plebéias da população. Mas era inevitável que, no fogo da tor-
menta revolucionária, fossem se diferenciando e até se chocando as
leituras que os diversos segmentos sociais e políticos faziam daquelas
bandeiras. Os constitucionalistas, representantes da grande burgue-
sia, buscavam o compromisso com a nobreza, reafirmando o direito à
propriedade como sagrado e estabelecendo a igualdade dos cidadãos
somente perante a lei. Os girondinos, que defendiam os interesses da
média burguesia, vacilavam entre o compromisso com o poder real e a
radicalização da democracia pretendida pelos jacobinos. Estes, apoia-
dos nos sentimentos da pequena burguesia e, em parte, das camadas
pobres da população, ampliavam sensivelmente seus conceitos sobre
119
WLADIMIR POMAR
a igualdade, a liberdade e a fraternidade. Estendiam a igualdade de
todos perante a lei ao direito eleitoral universal e igual e ao estabele-
cimento da soberania do povo. E proclamavam o direito do povo de
organizar-se livremente.
Apesar do papel positivo dos jacobinos na defesa dos interesses
populares na revolução francesa, foram os raivosos, como Leclerc e
Roux, os que melhor expressaram os sentimentos de igualdade e liber-
dade das massas populares pobres no interior da revolução. Retoman-
do a tradição dos revolucionários práticos que também elaboravam
propostas teóricas para uma nova sociedade, eles exigiam que as rei-
vindicações econômicas e sociais dessas massas fossem incorporadas
à Constituição.
Propuseram a nacionalização da terra e a sua distribuição pe-
los que a desejassem cultivar. Para os especuladores, exigiam a pena
de morte. Roux afirmava que a liberdade não era senão um fantasma
quando uma classe de pessoas podia matar outra de fome. Para ele, a
igualdade seria uma simples visão se o rico pudesse obter pela com-
pra o direito de dispor da vida e morte de seus próximos. E a república
seria apenas uma aparência se permitisse que a contra-revolução se
tornasse, cada dia mais, dona dos preços sobre os produtos aos quais
três quartas-partes dos cidadãos não tinham acesso sem derramar
suas lágrimas.
Após a derrota dos jacobinos diante do golpe contra-revolucio-
nário de 1794 (9 de Termidor), o sonho comunista volta a ter presença
através da conspiração dos iguais, cuja figura de maior expressão foi
François (Graco) Babeuf. Ele participou de todo o processo revolucio-
nário que derrubou a monarquia e o feudalismo, mas não aceitava o
formalismo da igualdade proclamada pela burguesia nem a perma-
nência do contraste entre a riqueza e a pobreza. O que lhe interessava
era a igualdade de bens e para isso lutava pelo prosseguimento da re-
volução. Para Babeuf, a revolução francesa era apenas a anunciadora
de outra, maior e mais solene, que deveria acabar com a desigualda-
de e instaurar a felicidade geral. Do mesmo modo que os comunis-
tas utópicos que o antecederam, proclama a necessidade de abolir a
propriedade privada (causa de todas as desigualdades) e estabelecer
uma igualdade efetiva através da comunidade de bens e do trabalho
120
A ILUSÃO DOS INOCENTES
obrigatório. Cada cidadão deveria receber, pelo seu trabalho, os meios
necessários para satisfazer as suas necessidades naturais. Poderia
ainda satisfazer algumas necessidades supérfluas, desde que todos
pudessem ter a mesma possibilidade.
Apesar da intensa participação das massas populares nas revo-
luções burguesas, particularmente na inglesa e na francesa, com suas
aspirações próprias de igualdade, liberdade e justiça, no final acabou
prevalecendo a interpretação burguesa dessas aspirações. A igualda-
de perante a lei traduziu-se não só na desigualdade econômica e so-
cial, mas também na desigualdade política e jurídica, que impedia os
trabalhadores de votarem e serem votados, que tratava as mulheres
como seres de segunda categoria, que impedia os pobres de recorrer à
justiça e que estabelecia uma série enorme de discriminações em re-
lação aos setores inferiores da sociedade. A liberdade verdadeiramen-
te conquistada pelos trabalhadores foi a de poder vender sua força de
trabalho para os capitalistas. O que não lhes garantia que os capitalis-
tas a comprassem e, menos ainda, pelo preço justo.
De qualquer modo, as revoluções burguesas representaram um
imenso avanço para a concretização do sonho dos justos. A produção
tomou um rumo de socialização que forçava, ao mesmo tempo, o alar-
gamento dos círculos de socialização política, algo impensável nas
formações sociais anteriores. No paradoxo em que sempre se enredou
o sonho dos justos, a opressão e a exploração que passaram a sofrer
sob o modo de produção e distribuição capitalista significavam, como
nunca, a possibilidade real de alcançar a igualdade, a liberdade e a
justiça ansiadas.
A ILUSTRAÇÃO UTÓPICA
O processo de expansão capitalista, sobre as ruínas do mundo
feudal em decomposição, foi um dos mais selvagens da história hu-
mana. Produziu tragédias de toda ordem para as massas pobres, em-
bora contraditoriamente fizesse surgir condições materiais e políticas
inigualáveis para a libertação dos trabalhadores. Era natural, assim,
que voltassem a ressurgir os sonhos e as idéias que buscavam acabar
com os sofrimentos populares e implantar sociedades mais justas. E
121
WLADIMIR POMAR
que tais sonhos e idéias exprimissem os protestos e desencantos dos
trabalhadores, não mais contra o feudalismo, mas diretamente contra
o capitalismo.
É nesse contexto que se situam as elaborações teóricas e os ex-
perimentos práticos dos três grandes socialistas utópicos do século
XIX: Saint Simon, Fourier e Owen. Eles avaliavam que as contradições
e defeitos do capitalismo1 eram, na verdade, conseqüência das debili-
dades e imperfeições da própria razão humana. Se os representantes
das classes sociais fossem alertados para a falta de racionalidade e de
justiça do capitalismo e educados de acordo com projetos racionais de
um novo sistema social justo, aquelas contradições e defeitos seriam
superados e se chegaria a uma sociedade harmônica.
Todos os três tiveram a vantagem de viver numa época em que
o sistema capitalista se desenvolvia rapidamente, estimulado pela re-
volução industrial. Nesse sentido, seus estudos e elaborações conse-
guem realizar uma crítica muito mais objetiva sobre esse novo modo
de produção. E os elementos socialistas que projetam para o futuro
são bem mais consistente por se assentarem sobre premissas mais
concretas. A idéia de uma solução justa para o destino da classe mais
numerosa e mais indigente, como diz Saint Simon, é a linha mestra da
preocupação dos três.
Saint Simon, ao contrário de todos os utópicos anteriores, consi-
dera positivamente a instituição da propriedade privada dos meios de
produção e sua passagem histórica de uma classe para outra. Justa-
mente por isso, diferentemente de Rousseau, que enxergava na comu-
nidade primitiva o ideal de um regime social justo, Saint Simon coloca
sua idade de ouro no futuro, como resultado da evolução histórica.
Para ele, a propriedade é que serve de fundamento ao edifício social.
Por isso, o problema mais importante a resolver deveria ser o que diz
respeito à organização da propriedade, para a maior felicidade de toda
a sociedade, no aspecto da liberdade e no da riqueza.
Para Saint Simon, a economia do futuro regime social industrial,
oposto ao regime feudal, deveria organizar-se com base numa planifi-
cação científica, capaz de assegurar a satisfação das necessidades dos
membros da sociedade, os quais deveriam trabalhar de acordo com
suas condições e aptidões. O regime social industrial deveria basear-
122
A ILUSÃO DOS INOCENTES
-se no princípio da igualdade completa, contrário a qualquer direito
de privilégio.
François Fourier, como Saint Simon, viveu os acontecimentos da
revolução francesa e acreditou que ela traria o triunfo da razão e da li-
berdade. Entretanto, logo se deu conta de que o novo regime capitalista
de produção provocava tormentos e calamidades para as massas po-
bres da população tão grandes ou maiores do que os do antigo regime
feudal. Como resultado dessa conclusão, Fourier dedica-se a realizar
uma crítica fundamentada da civilização capitalista, para ele um in-
ferno social. Fourier é o primeiro estudioso da economia capitalista a
assinalar a existência da anarquia que reina na produção dominada
pelo capital. Para ele, é um absurdo produzir desordenadamente, sem
nenhum método quanto à recompensa proporcional, sem nenhuma
garantia de acesso do produtor ou do operário à riqueza acrescentada.
Fourier ataca a anarquia da produção como a base dos contrastes
sociais da civilização burguesa e aponta a falsidade dos direitos e li-
berdades do homem, proclamados pelas constituições do novo regime.
O direito é ilusório, diz ele, quando não pode ser exercido. O direito à
soberania popular não é nada quando o plebeu carece até da possibi-
lidade de comer e há uma distância bastante grande entre a pretensão
à soberania e a possibilidade de almoçar. Ligado a isso, Fourier tam-
bém critica a ausência do direito ao trabalho entre os direitos individu-
ais da civilização do capital. Fourier ataca particularmente o sistema
mercantil dessa civilização, que tende a transformar todas as relações
humanas, incluindo as matrimoniais e familiares, as morais e artísti-
cas, em simples transações comerciais. Em especial, ele analisa com
perspicácia a posição da mulher na civilização do capital, chegando à
conclusão de que, em cada sociedade, o grau de emancipação da | mu-
lher é a medida natural da libertação social.
Com base nessa análise da civilização capitalista, Fourier conclui
que ela empurra os setores que arruína e empobrece para a revolta
contra a ordem social injusta. Propõe, então, a transformação desse
regime injusto e irracional num outro em que reine a harmonia social,
baseada numa aliança amistosa dos grupos sociais, no interior das as-
sociações produtivas ou falanstérios.
Esses falanstérios seriam constituídos de associações indus-
123
WLADIMIR POMAR
triais e agrícolas, nas quais a divisão do trabalho deveria ser adaptada
às inclinações e aptidões individuais de cada membro. A divisão das
rendas e das riquezas, por seu turno, seria efetivada levando em conta
a soma de capitais investidos pelos seus membros, a quantidade e qua-
lidade do trabalho efetuado e os talentos e aptidões especiais demons-
trados pelos indivíduos, em proporções adequadas. Isso permitiria a
colaboração harmônica dos grupos sociais diferentes e a aliança do
capital, do trabalho e do talento. O socialismo de Fourier não preten-
de, desse modo, liquidar com a propriedade privada, as classes sociais
e as desigualdades. Seu objetivo é assegurar uma participação real a
todos na abundância resultante do trabalho, mesmo que essa partici-
pação seja desigual. Robert Owen foi contemporâneo de Saint Simon e
Fourier, mas nasceu e viveu na Inglaterra, onde a revolução industrial
permitiu um desenvolvimento mais rápido da produção capitalista e a
transformação da manufatura na produção mecanizada. Owen, além
de pensador social, convivia diretamente com a produção capitalista
e com o trabalho operário ao gerenciar uma grande fábrica de tecidos
de algodão em New Lanarck, na Escócia. Conhecia de perto, assim, não
só a situação de indigência e desespero a que o desemprego em massa
lançava grandes parcelas de trabalhadores como também as terríveis
condições de trabalho a que eram submetidos aqueles que conseguiam
empregar-se.
Durante os 29 anos em que dirigiu a fábrica de New Lanarck,
Owen introduziu uma série de melhorias nas condições de vida e tra-
balho de seus operários. Reduziu a jornada de trabalho a dez horas e
meia, contra as treze a quatorze horas habituais da indústria inglesa
do período. Manteve o emprego e o salário dos operários durante o fe-
chamento da fábrica, causado pela crise da indústria algodoeira. Pela
primeira vez no mundo, organizou uma creche e um jardim de infân-
cia para atender aos filhos dos operários e organizou cooperativas de
consumo para os trabalhadores.
Apesar desses exemplos práticos de que era possível melhorar as
condições de trabalho e existência dos operários e, ainda, obter lucros
que permitissem a reprodução do capital, Owen não conseguiu sensi-
bilizar os demais capitalistas, como supunha. Deu-se conta, paulatina-
mente, de que o império da propriedade privada era um obstáculo in-
124
A ILUSÃO DOS INOCENTES
transponível a que os trabalhadores pudessem apropriar-se dos frutos
de seu trabalho. Ao contrário de Saint Simon e de Fourier, convence-se
da necessidade de aboli-la e de evitar as desigualdades econômicas.
Segundo ele, a propriedade privada teria sido e continuaria sendo a
causa do número infinito de crimes e sofrimentos por que o homem
passa, sendo a origem das guerras em todas as épocas anteriores da
história da humanidade.
Owen dedica-se, então, a formular projetos de reformas sociais
que pudessem implementar, mesmo no interior do sistema capitalista,
colônias socialistas de produção onde vigoraria a comunidade de bens
e de trabalho, o que permitiria a existência de condições ideais para
o aperfeiçoamento moral dos indivíduos. Com base nessas experiên-
cias socialistas, a sociedade como um todo acabaria compreendendo
as suas vantagens. Estariam criadas, assim pensava, as condições
para o advento de uma sociedade em que tudo, com exceção apenas
dos objetos de uso meramente pessoal, se converteria em patrimônio
social. Existiria, pois, abundância para todos e se compreenderia a in-
comparável superioridade do sistema de propriedade coletiva sobre o
sistema de propriedade privada.
Saint Simon, Fourier e Owen deram contribuições valiosas ao fu-
turo da luta socialista, particularmente porque começaram a apontar,
mesmo inconscientemente, que as condições para a realização do so-
nho dos justos encontravam-se na sociedade que criticavam. Na verda-
de, revendo os sonhos das mais diferentes épocas, em especial os dos
comunistas e socialistas utópicos da era de surgimento do capitalismo,
é possível descobrir preocupações e pontos comuns em todos eles. A
propriedade está sempre presente como um pesadelo, embora Saint
Simon e Fourier hajam vislumbrado nela um papel histórico positivo.
O trabalho, ou o direito ao trabalho, aparece de forma bastante contra-
ditória, seja como instrumento de opressão, seja como possibilidade
de vida. A abundância é uma meta sonhada por todos, mesmo que se
expresse numa vida simples. A igualdade é quase uma unanimidade,
também apesar dos dois grandes utópicos franceses.
Quaisquer que tenham sido as aspirações dos pobres e oprimi-
dos, que sonharam em alcançar um mundo mais justo e igualitário, e
dos pensadores, que sonharam em reformar o mundo iníquo em que
125
WLADIMIR POMAR
viveram, uma coisa é certa. O capitalismo criou um mundo em que os
sonhos dos justos passaram a ser esmagados, crescentemente, pela
exploração e opressão do sistema de produção-para-lucro e, ao mesmo
tempo, passaram a encontrar condições cada vez mais favoráveis para
tornar-se realidade.
AS UTOPIAS MARXISTAS
Embora um pouco mais jovem, Karl Marx foi, durante algum
tempo, contemporâneo dos grandes socialistas utópicos do século
XIX. Como eles, confrontou-se com as brutais condições de vida dos
camponeses e pequenos produtores e dos trabalhadores expropriados
e explorados pelo capital. Conviveu com as idéias ricas, variadas e vi-
brantes de seu tempo e, da mesma forma que eles, interessou-se por
filosofia, direito, economia política, história e pela realidade da vida
econômica, social, política e cultural.
Marx, porém, embora tivesse em alta conta as contribuições dos
utópicos, realizou uma crítica severa das sociedades ideais por eles
propostas. Para isso, partiu da premissa de que só dissecando a socie-
dade capitalista seria possível descobrir as contradições que geravam
o seu desenvolvimento e, portanto, a sua transformação futura numa
nova sociedade. O socialismo não deveria ser fruto da construção de
sistemas ideais de sociedade, mas das condições materiais e políticas
criadas pelo próprio sistema de produção-para-lucro.
É verdade, como veremos mais adiante, que Marx dedicou a parte
principal de seus esforços à análise do modo de produção e circulação
capitalista. Conseguiu, com isso, fornecer duas contribuições funda-
mentais para se compreender o socialismo como produto do antago-
nismo entre a burguesia e os trabalhadores: o materialismo histórico e
as leis de transformação daquele modo de produção. Além disso, Marx
teve uma produção teórica muito vasta, inclusive relacionada com os
acontecimentos políticos imediatos, opinando assim sobre uma gama
relativamente ampla de assuntos. Toda essa obra sempre foi muito po-
lêmica e objeto de ataques de toda ordem.
A derrocada do socialismo soviético serviu para que esses ata-
ques se redobrassem. A teoria de Marx, mais que antes, tem sido con-
126
A ILUSÃO DOS INOCENTES
siderada ultrapassada e utópica. Carson assegura que a visão de Marx
sobre o capitalismo foi o mais grandioso de todos os cenários de ca-
tástrofe. A profecia de Marx sobre o fim do capitalismo teria sido ex-
traordinariamente sensata em termos das realidades do sistema de
produção-para-lucro do século XIX, da luta de classes e das tendências
políticas e econômicas aparentes. O esvaziamento dessa visão marxis-
ta teria sido o resultado das mudanças sofridas pelo mundo, mudanças
que tornaram o cenário de catástrofe inconseqüente e irrelevante.
As mudanças econômicas e sociais, assegura Carson, algumas
acidentais e outras resultantes de mudanças deliberadas de política,
teriam solapado o argumento marxista da inevitabilidade da revolu-
ção proletária e derrubada das instituições da propriedade privada.
Na medida em que o capitalismo mudou, Marx teria tido razão em sua
crítica geral, mas o mundo capitalista que ele conheceu no século XIX
teria terminado — pelo menos em termos de sua profecia — “não com
um estrondo, mas com uma lamúria”. Desse modo, Marx também teria
na busca do sonho dourado da igualdade, liberdade e justiça, resva-
lado pelas mesmas ilusões utópicas que criticara em seus predeces-
sores socialistas. Carson certamente se refere a uma das mais cons-
tantes acusações feitas às utopias marxistas: as previsões ou profecias
a respeito do amadurecimento das condições para a revolução social
nos países capitalistas desenvolvidos. Embora Marx e seu parceiro de
elaboração teórica, Friedrich Engels, sempre se ativessem à necessi-
dade de subordinar a perspectiva do socialismo ao grau de desenvolvi-
mento das forças produtivas e das relações capitalistas, na prática eles
acreditaram que a expansão capitalista nos países centrais europeus
havia chegado a seu apogeu na segunda metade do século XIX.
Engels, por exemplo, dizia que a abolição das classes sociais só
poderia ocorrer quando a sociedade alcançasse um determinado grau
histórico de desenvolvimento.
Nesse ponto, a existência de qualquer tipo de classe dominante,
qualquer que ela fosse, assim como das próprias diferenças de classe,
deveria representar um anacronismo. Num grau culminante do desen-
volvimento da produção e dos produtos e, portanto, do poder político,
o monopólio da cultura e da direção espiritual por uma determinada
classe da sociedade se tomaria supérfluo. Em outras palavras, sua con-
127
WLADIMIR POMAR
tinuidade constituiria uma barreira econômica, política e intelectual
ao progresso. Teoricamente, portanto, Engels atinha-se à idéia de que
o capitalismo só poderia ser efetivamente superado ao esgotar todo o
seu processo de desenvolvimento.
Na prática, porém, Engels acreditou que esse ponto já tinha che-
gado. Para ele, a bancarrota política e intelectual da burguesia expres-
sava-se no fato de que ela não era sequer capaz de levar avante suas
próprias reformas capitalistas, como haviam demonstrado as revolu-
ções de 1848 e todas as sublevações que se seguiram. Sua bancarro-
ta econômica era demonstrada pelas crises cíclicas que se repetiam a
cada dez anos. Por isso, não seria desproposital pensar que a Alemanha
fosse o cenário do primeiro grande triunfo do proletariado europeu.
Marx também supunha que deveria existir, necessariamente,
uma classe dominante e uma classe oprimida e pobre, enquanto não
se pudesse conseguir uma quantidade de produtos bastante para to-
dos e para permitir a existência de um certo excedente (para aumentar
o capital social e seguir fomentando as forças produtivas). A constitui-
ção e o caráter dessas classes dependeria do grau de desenvolvimento
da produção. Somente quando as forças produtivas se desenvolvessem
a ponto de proporcionar uma quantidade de bens suficiente para to-
dos, a propriedade privada se tornaria uma trava, um obstáculo para o
progresso social, devendo ser suprimida.
Apesar disso, também ele, em diversos trabalhos e na sua corres-
pondência, vez por outra frisava que esse momento estava muito pró-
ximo. Assegurava que a grande indústria, ao criar o mercado mundial,
unira tão estreitamente todos os povos do globo terrestre, sobretudo
os povos civilizados, que cada um dependia do que ocorria na terra do
outro. Além disso, complementava, o mercado mundial nivelara, em
todos os países avançados, o desenvolvimento social. A tal ponto isso
se dera que em todos esses países a burguesia e o proletariado haviam
se erigido as duas classes decisivas da sociedade e a luta entre elas se
convertera na principal luta daquela época.
Como ele acreditava que a revolução socialista não seria uma re-
volução puramente nacional, mas deveria eclodir simultaneamente em
todos os países civilizados, isto é, pelo menos na Inglaterra, América,
França e Alemanha, onde as condições estariam maduras ou próximas
128
A ILUSÃO DOS INOCENTES
de amadurecer para a revolução social, não era difícil concluir que tal
revolução, de âmbito universal, estava para ocorrer. Hoje é fácil dizer
que Marx e Engels estavam errados ao fazer essas suposições. Em pri-
meiro lugar, o capitalismo ainda não havia desenvolvido todas as forças
produtivas que as relações privadas de propriedade suportavam. Mes-
mo nos países desenvolvidos, o capital demonstrou uma grande vitali-
dade e continuou se expandindo velozmente, apesar das crises cíclicas
e das imensas forças destrutivas que gerava. A propriedade privada
conservava um grande potencial para comportar essa expansão e ain-
da hoje não é certeza que haja se transformado em obstáculo intrans-
ponível, embora já apareçam indicativos mais claros nesse sentido.
Em segundo lugar, Marx e Engels não levaram em conta que os
Estados capitalistas poderiam ser capazes de adotar políticas anticí-
clicas, impedindo que suas crises recessivas os jogassem no fundo do
poço da depressão econômica. No entanto, o próprio capitalismo cus-
tou muito a aceitar essa hipótese. Do mesmo modo que Marx supunha
que as forças destrutivas do mercado se desenvolveriam espontanea-
mente, levando o modo de produção capitalista à inevitável revolução
social, também o capitalismo acreditava unicamente na capacidade
recuperadora das forças criativas do mercado para superar suas cri-
ses. Foi somente na década de 30 deste século, sob o impacto da quebra
da Bolsa de Nova York, em 1929, e da depressão que atingiu os países
capitalistas, que os economistas e os políticos da burguesia aceitaram
a teoria de Keynes sobre o uso de gastos públicos maciços para estimu-
lar a demanda e, nessa base, elevar a produção e o emprego.
Em terceiro lugar, Marx e Engels enganaram-se também ao supor
que o mercado mundial seria capaz de nivelar o desenvolvimento so-
cial em todos os países. Na verdade, o desenvolvimento capitalista era
extremamente desigual de país para país, apesar da capacidade avas-
saladora do capital em subordinar todos eles a seus interesses e a seu
modo de produção. Lênin, mais adiante, deu destaque a esse fenômeno
para justificar o fato de que a revolução socialista estava se dando pri-
meiro num país atrasado do ponto de vista capitalista.
Mas ele próprio não conseguiu tirar todas as conclusões desse
processo. Acreditou que as massas dos países atrasados, conduzidas
pelo proletariado consciente dos países desenvolvidos, poderiam al-
129
WLADIMIR POMAR
cançar o comunismo sem passar pelas diferentes etapas do desenvol-
vimento capitalista. Aferrou-se às conclusões práticas de Marx e En-
gels e não às premissas teóricas que ambos haviam estabelecido ao
analisar cientificamente o modo capitalista e o método de desenvol-
vimento histórico. Esse tipo de confusão é ainda hoje comum quando
se trata de discutir os diversos caminhos de transição do capitalismo
para o socialismo.
O fato de que as chamadas revoluções socialistas tiveram por pal-
co países atrasados do ponto de vista capitalista, algo não previsto por
Marx e teoricamente mal-resolvido por Lênin e seus companheiros de
revolução russa, não deixou de ter conseqüências graves na escolha
dos métodos e caminhos de construção socialista. Entretanto, também
aqui seria demasiado exigir de Marx, e de Engels, soluções para pro-
blemas que não estavam colocados em sua época, ou só o estavam de
forma muito embrionária e tênue.
Mesmo assim, para Dahrendorf, Marx sonhava eternamente
com a revolução futura que corrigiria tudo. Alguém pode até consi-
derar que isso seja um elogio. No entanto, o sonho com a revolução
parece mais associado a um desejo voluntarista de corrigir os defeitos
da sociedade capitalista, do mesmo modo que pensavam os utópicos.
Ora, Marx pensava a revolução em termos completamente distintos.
Em resumo, ele considerava que no desenvolvimento das forças pro-
dutivas, dos meios de troca e do poder político chegar-se-ia a uma fase
na qual, sob as relações existentes, tais forças se transformariam de
produtivas em destrutivas.
Por outro lado, a classe condenada a suportar todos os inconve-
nientes da sociedade, sem gozar de suas vantagens, acabaria sendo ex-
pulsa da sociedade e obrigada a colocar-se na mais resoluta contradição
com as outras classes. Essa classe, comportando a maioria da socieda-
de, acabaria tendo sua consciência despertada para a necessidade de
realizar uma revolução radical contra a classe que a vinha dominando.
Como essa revolução teria que se dirigir, necessariamente, contra o ca-
ráter anterior de sua atividade — no caso do capitalismo, o sistema pro-
dutor de mercadorias, com base na propriedade privada e no trabalho
assalariado —, ela teria que eliminar o trabalho e suprimir a dominação
de todas as classes ao abolir a propriedade privada.
130
A ILUSÃO DOS INOCENTES
Marx considerava que, para engendrar a consciência capaz de
levar avante tanto a revolução quanto a abolição do trabalho e da pro-
priedade privada, seria necessária uma transformação em massa dos
homens, algo unicamente possível de se conseguir através de um mo-
vimento prático, uma revolução. Assim, esta seria necessária não só
porque a classe dominante não aceita sair de cena de outro modo, como
também porque unicamente por meio de uma revolução a classe domi-
nada logrará elevar-se da miséria humana em que vive e tornar-se ca-
paz de fundar a sociedade sobre novas bases.
Assim, pois, em lugar de um sonho voluntarista, Marx aferrava-se
à necessidade objetiva da revolução com base nas condições geradas
pela própria civilização capitalista. Aliás, essa é a mesma visão geral
que ele tinha dos defeitos do capitalismo.
Primeiro, Marx sempre considerou o modo de produção capitalista
como algo historicamente dado, fruto da evolução das diferentes forma-
ções econômico-sociais conhecidas pela história humana. Depois, ele
sempre partiu da idéia de que tais defeitos eram aspectos necessários
e contraditórios do sistema comandado pelo capital, que apenas po-
deriam ser superados à medida que o próprio capital se desenvolves-
se e tornasse uma necessidade imperiosa sua transformação em outro
modo de produção.
Para ele, no sistema capitalista o trabalhador cai na miséria e o
pauperismo cresce mais rapidamente que a população e a riqueza.
Nesse contexto, a burguesia perde a capacidade de continuar desem-
penhando o papel de classe dominante da sociedade e de impor a esta,
como lei reguladora, as condições de existência de sua classe. Perde a
capacidade de dominar porque não consegue mais assegurar a seu es-
cravo a existência nem sequer dentro do marco da escravidão. Vê-se
obrigada, em virtude da férrea lógica de reprodução do capital, a deixar
que seu escravo trabalhador decaia até o ponto de ter que mantê-lo, em
lugar de ser mantida por ele.
Arrighi tem razão quando acentua que Marx não previu que essa
ampliação da miséria do trabalho se daria de forma polarizada e desi-
gual, do mesmo modo que o poder social dos trabalhadores. O que se
tornou particularmente verdadeiro após a ruptura do mercado mundial
pela disputa burguesa interestados da primeira metade do século XX.
131
WLADIMIR POMAR
Mas isso não nega o fato de que a previsão gera] de Marx mostrou-se
correta, inclusive quando se olha hoje a situação dos trabalhadores nos
países centrais. Pode haver algo mais parecido com a previsão de Marx
do que a situação das massas de trabalhadores qualificados desempre-
gados pelo uso de novas tecnologias, tendo em parte que ser sustentados
pelo Estado burguês? Entretanto, é nas previsões sobre a transformação
da sociedade capitalista numa nova sociedade que Marx mais é designa-
do como utópico. A derrocada do socialismo ou comunismo soviético te-
ria corroborado um pensamento que há muito era difundido em vários
círculos liberais. Hayeck nunca deixou de proclamar a impossibilidade
do socialismo (e, por conseqüência, de qualquer intervenção estatal).
No Brasil, Gudin, Bulhões e Campos foram campeões na perse-
verança com que se ativeram à visão do fracasso inevitável da expe-
riência comunista. A previsão de que o desenvolvimento das forças
produtivas do capitalismo as levaria a chocar-se com a estreiteza e a
mesquinhez das relações de propriedade que as conformavam não
passaria de uma pretensa cientificidade. A dialética desse processo
exposto por Marx seria um simples jogo de palavras e de conceitos
para justificar a manipulação dos trabalhadores e ignorantes pelos
eternos insatisfeitos com o êxito alheio.
Já vimos nos capítulos anteriores o quanto de falso e irreal há
nessas apreciações sobre as impossibilidades do socialismo com base
nas capacidades do capitalismo. Na verdade, são justamente essas ca-
pacidades capitalistas que geram o socialismo, criando antagonismos
que só podem ser resolvidos com a substituição do próprio sistema.
Isso não nega os enganos e previsões incorretas marxistas, embora es-
tas não cheguem a desqualificar o que há de fundamental na teoria de
Marx, justamente aquilo que até hoje não foi superado’ e cuja correção
o tempo vai demonstrando passo a passo: o método de análise históri-
ca e as leis de transformação do sistema capitalista.
A CRÍTICA DE MARX
A crítica de Marx ao capitalismo tem sido sistematicamente ata-
cada, desqualificada, deturpada e morta pelos conservadores, liberais
e demais defensores desse sistema. Os menos dogmáticos chegam a
132
A ILUSÃO DOS INOCENTES
visualizar, como faz Carson, alguma validade na análise de Marx do ca-
pitalismo do século XIX, mas logo lembram que o capitalismo mudou e,
portanto, o que Marx disse já não vale mais nada. Outros se apegam aos
erros e utopias de Marx, os elegem como os aspectos principais do cor-
po teórico elaborado por ele, e desqualificam assim o valor de seu tra-
balho e, principalmente, as conseqüências práticas que emanam dele.
No período mais agudo da crise do socialismo soviético, muitos
socialistas apressaram-se a desfazer-se de Marx. Evidentemente, para
ser socialista não é necessário ser marxista nem mesmo concordar
com suas opiniões acerca dos traços gerais da nova sociedade que deve
substituir o sistema de produção-para-lucro. Também é desnecessário
concordar com qualquer uma das diversas interpretações dos marxis-
tas, que acabaram levando o socialismo por caminhos inimagináveis.
Provavelmente, também Marx não concordaria com a maioria delas,
ou mesmo com todas. Apesar disso, é uma vantagem que os socialistas
tenham Marx do seu lado. E isso pelo simples fato de que, apesar de
todas as avaliações liberais e conservadoras, a análise de Marx sobre
o sistema capitalista ainda não foi superada nem desmentida em seus
aspectos essenciais. Como não se pode ser socialista sem ter um conhe-
cimento adequado do funcionamento do sistema produtor de mercado-
rias, Marx é um colaborador fundamental. Não vale a pena desfazer-se
dele, mesmo que seja para agradar à burguesia e granjear sua simpatia.
Ao contrário dos socialistas utópicos de seu tempo, Marx conse-
guiu ir além da crítica às manifestações e às conseqüências do funcio-
namento do modo capitalista de produção. Ele descobriu, como mais
tarde afirmou em O capital, que as condições históricas de existência
dessa relação social não se davam com a circulação de mercadorias
e de dinheiro. O capital só surgia ali onde o proprietário de meios de
produção e de vida encontrava, no mercado, o operário livre como
vendedor de sua força de trabalho. Essa era uma condição histórica,
envolvendo toda uma história universal. Sem o trabalhador livre, sem
o trabalho assalariado, o capital não poderia existir como tal.
Para chegar a essa conclusão, Marx teve não só que aprofundar-se
nos estudos de economia política, para entender a anatomia da socieda-
de em que vivia, como também nos estudos de história e filosofia, para
entender o modo como as sociedades se transformavam. Não podemos
133
WLADIMIR POMAR
esquecer que em sua época a sociedade era considerada como um agre-
gado mecânico de indivíduos, cujas mudanças dependiam exclusiva-
mente das vontades fortuitas ou acidentais dos reis, príncipes e chefes.
A história, como ainda hoje é ensinada em muitos lugares, era conside-
rada como uma seqüência dos atos daquelas personalidades poderosas.
O povo, quando era citado, aparecia somente como coadjuvante.
Marx se convenceu de que as sociedades são, na verdade, forma-
ções econômico-sociais que vêm se transformando progressivamente
com o correr do tempo. O modo pelo qual os homens produzem em
cada época dá a característica da formação econômico-social. Nesse
sentido, os modos de produção asiático, antigo, feudal e burguês mo-
derno ou capitalista poderiam ser designados como épocas progressi-
vas da formação sócio-econômica. Embora na vida real em cada for-
mação sócio-econômica se encontrem elementos de outros modos de
produção, é o modo dominante que o marca e lhe dá a denominação.
Marx também concluiu que os homens, ao realizar a produção
de suas condições de existência (alimentos, roupas, instrumentos, etc),
eram levados a entrar em determinadas relações entre si, indepen-
dentemente de sua vontade. Tais relações, que chamou de relações de
produção, correspondem a um determinado grau de desenvolvimento
das forças produtivas materiais existentes (meios de produção, como
ferramentas, instrumentos, máquinas, meios de transporte, etc, mais
a força de trabalho) e constituem a estrutura econômica da sociedade.
Sobre essa estrutura se eleva uma superestrutura jurídica e política,
a que correspondem formas sociais determinadas de consciência. Em
termos gerais, Marx dividia as relações sociais em relações materiais
e relações ideológicas, havendo uma determinada correspondência
entre elas.
Durante o processo de seu desenvolvimento, as forças produti-
vas da sociedade entram em contradição com as relações de produção
existentes ou, o que não é mais do que sua expressão jurídica, com as
relações de propriedade em cujo interior se haviam movimentado até
então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, tais rela-
ções se convertem em travas, abrindo um período de revolução social.
A mudança que se produz na base econômica transtorna de uma for-
ma lenta ou rápida toda a colossal superestrutura erigida sobre ela.
134
A ILUSÃO DOS INOCENTES
Uma sociedade, porém, não desaparece jamais antes de que se
desenvolvam todas as forças produtivas que pode comportar. E jamais
aparecem relações de produção novas e mais elevadas antes que as
condições materiais para a sua existência hajam brotado no próprio
seio da antiga sociedade. Por isso mesmo, a humanidade só se propõe
problemas quando existem as condições materiais, mesmo embriona-
riamente, para a sua solução.
Essas conclusões a que Marx chegou representaram para ele a
descoberta de um método de estudo histórico, que chamou de concep-
ção materialista da história e que passou a lhe servir de guia em seus
estudos posteriores e, essencialmente, no estudo e na análise do capi-
tal e de seu sistema de reprodução. Por essa concepção, o capitalismo
não era resultado dos descaminhos da razão humana, como até então
pensavam muitos socialistas, mas sim do próprio desenvolvimento
das forças produtivas sociais no interior da sociedade feudal. Da mes-
ma maneira, a propriedade privada, as diferentes formas do trabalho
e as desigualdades são manifestações necessárias, historicamente de-
terminadas, do longo processo de evolução da humanidade.
Para Marx, a partir dessas premissas, não se tratava de construir
sistemas ideais de sociedade, mas sim dissecar a sociedade capitalista
para descobrir as contradições que conduziam ao seu desenvolvimen-
to e, portanto, a sua superação futura por uma nova sociedade. A essa
tarefa ele dedicou a maior parte da sua vida, reunindo em O capital as
principais conclusões que extraiu de sua análise do modo de produção
capitalista. O capital foi precisamente a exposição e a demonstração
prática de seu método materialista histórico.
Partindo da análise da mercadoria, a relação mais simples exis-
tente no capitalismo (o modo capitalista de produção é fundamental-
mente um sistema produtor de mercadorias), Marx consegue desven-
dar a intrincada conexão existente entre as diversas outras relações
que ela produz com seu movimento. Descobre, em particular, o se-
gredo da reprodução ampliada do capital, através da apropriação da
mais-valia produzida pelo trabalhador durante o processo produtivo.
E consegue captar as principais tendências do capitalismo em seu mo-
vimento e expansão contraditórios, como a concentração, a centraliza-
ção, a revolucionarização constante de suas forças produtivas, a con-
135
WLADIMIR POMAR
formação de um mercado mundial, o descarte da força de trabalho e
a morte do trabalho pela elevação da produtividade, a queda da taxa
média de lucro, o papel cada vez mais saliente do capital financeiro e
outras, que hoje estão explodindo na face de todo mundo.
Como apontamos atrás, diversas das observações e previsões de
Marx mostraram-se parcial ou totalmente incorretas. Outras, como
a da pauperização absoluta e relativa dos trabalhadores, foram mo-
mentaneamente contidas pelo capital, levando muitos a supor que es-
tariam completamente superadas. No entanto, o pior que aconteceu a
Marx foi que muitos dos seus seguidores tomaram sua obra como um
esquema ou um sistema de idéias, a ser aplicado em qualquer con-
dição de tempo e de lugar. Embora isso se chocasse contra o que o
próprio Marx pensava a respeito, a concepção de que sua descoberta
fundamental fora o método de investigação científica ficou relegada
a segundo plano no movimento socialista, durante muito tempo. Até
a frase muito significativa de Lênin de que o marxismo era a análise
concreta de uma situação concreta sempre foi tomada como força de
expressão e não como a substância do trabalho científico de Marx.
Nesse sentido, o socialismo de Marx não surge de sua vontade
moral e humanitária de superar os sofrimentos da classe ou das clas-
ses que constituíam a maioria da sociedade burguesa. Embora tudo
o que era humano fosse de sua preocupação constante, ele sabia que
a concorrência imposta pelo sistema de produção-para-lucro isolava
os indivíduos, tanto os burgueses quanto os proletários, levando-os a
confrontar-se entre si, apesar de também aglutiná-los. Para que esses
indivíduos isolados pudessem agrupar-se, socializando-se, seria ne-
cessário que o desenvolvimento capitalista oferecesse as condições
para tanto, através da grande indústria, da urbanização, dos meios
socializantes.
Como esse processo gerador de socialização deveria ser lento e
carregado de complicadores, Marx considerava que qualquer poder
erigido sobre uma sociedade de indivíduos ainda isolados só poderia
ser vencido depois de longas lutas. Para ele, pedir o contrário seria o
mesmo que pedir que a concorrência não existisse no capitalismo ou
que os indivíduos tirassem da cabeça as relações sobre as quais, como
indivíduos isolados, não possuem o menor controle. Assim, na medi-
136
A ILUSÃO DOS INOCENTES
da em que os indivíduos trabalhadores isolados são obrigados a travar
uma luta comum contra os indivíduos burgueses já agrupados numa
classe e num Estado, eles também são levados a formar uma classe e
a socializar sua luta, socializando a política.
A socialização dos meios de produção e a socialização da polí-
tica são, assim, as duas bases sobre as quais se assenta o socialismo
de Marx. Embora extremamente contraditórias, tanto internamente
quanto entre si, elas têm avançado continuamente, de tal modo que
mesmo alguns entraves visualizados por Marx como difíceis de ser
derrubados parecem estar sucumbindo a esse processo. Gorender
lembra que Marx e Engels prognosticaram a socialização crescente
da economia e sua internacionalização, mas consideraram que o de-
senvolvimento dessas tendências se chocaria com os interesses bur-
gueses enquadrados pela estreiteza dos Estados nacionais. Como a
unificação econômica dos principais países europeus na CEE repre-
sentou uma solução bem-sucedida para a formação de um mercado
supranacional, adequado ao potencial das novas forças produtivas,
isso, como diz Gorender, representa um fator de desvio nos prognós-
ticos de Marx. No entanto, ao mesmo tempo, confirma como principal
a tendência à socialização, corroborando, nesse sentido, a percepção
de Marx.
Por outro lado, no aspecto puramente político, a socialização
também encontra entraves de toda ordem por parte da burguesia.
Marx, analisando a Constituição francesa de 1848, acentuava que a
contradição que atingia essa Constituição residia no fato de que as
classes sociais, cuja escravatura ela deveria perpetuar (proletariado,
camponeses, pequena burguesia), haviam conquistado a posse do po-
der político através do sufrágio universal, enquanto a classe cujo ve-
lho poder ela sancionava, a burguesia, subtraía as garantias políticas
daquele poder. Em outras palavras, as condições democráticas facili-
tavam, a cada momento, a vitória das classes inimigas da burguesia,
pondo em questão as próprias bases da sociedade burguesa. Mas, ao
mesmo tempo, limitavam o domínio político das classes trabalhado-
ras. A estas, a Constituição exigia que não passassem da emancipação
política à emancipação social. À burguesia exigia que não retrocedes-
se da restauração social (de domínio de uma classe sobre as demais)
137
WLADIMIR POMAR
para a restauração política (na qual a ditadura de uma única classe
era tanto prática quanto institucional).
Por isso mesmo, Marx considerava que todas as chamadas liber-
dades e instituições progressistas burguesas atacavam e ameaçavam
o próprio domínio de classe da burguesia, tanto na sua base social
como na sua cúpula política. Tinham, na expressão de Marx, se torna-
do socialistas. Não devemos nos esquecer que a moderna sociedade
capitalista, através da ação da concorrência, realiza uma dissolução
privatista da sociedade que, deixada à própria sorte, a faria implo-
dir. O Estado funciona, então, como necessidade histórica de gestão
e unificação da sociedade burguesa, tanto através da coerção, como
do consenso político e ideológico. Constitui uma esfera separada da
gestão privada, embora mantenha seu caráter de classe.
Entretanto, o Estado não pode desprezar o fato de que a nova ges-
tão privada, diferentemente da época feudal, tem por base a liberdade
política. A relação social entre os homens, como diz Cerroni, já não
ocorre pela coerção extra-econômica, que vinculava os indivíduos a
uma determinada condição social. Realiza-se por uma coerção econô-
mica, tendencialmente pura, por força da qual o produtor moderno (o
proletário) se decide livremente ao contrato de trabalho assalariado.
O Estado precisa, então, comportar mecanismos formais que se-
jam expressão da liberdade e igualdade política e jurídica dos mem-
bros da sociedade e, ao mesmo tempo, dos limites dessa liberdade e
igualdade. Desse modo, sua função de guardião da desigualdade eco-
nômica, que resulta do caráter privado da propriedade dos meios de
produção, representa uma contradição interna do Estado burguês.
Esta tende a agravar-se, tanto mais quanto maior for a socialização
dos meios de produção e a socialização das liberdades e das institui-
ções da sociedade burguesa. Cerroni tem, então, razão, quando diz
que a luta pela transformação social é, também e ao mesmo tempo, a
luta pela transformação das instituições políticas. Afinal, para Marx,
a liberdade universal da natureza humana só se realizaria verdadei-
ramente numa sociedade política real, na qual a separação entre o
privado e o social houvesse sido superada pela socialização das duas
esferas, de tal modo que as funções políticas tenham se tornado dire-
tamente sociais.
138
A ILUSÃO DOS INOCENTES
Por tudo isso, a crítica econômica, sociológica, política e cultural
de Marx precisa ser levada em conta seriamente pelos socialistas se
estes pretenderem, como parece repensar o socialismo e aprofundar
a crítica ao capitalismo do final deste século.
Mesmo porque, como disse apropriadamente Leandro Konder
há vários indícios de que o arsenal teórico de Karl Marx está para ser
novamente reconhecido em toda a sua riqueza. O que parecia morto
e acabado renasce com novo vigor, dessa vez alimentado não só pela
crise, mas fundamentalmente pelas contradições da revolução cientí-
fica e tecnológica do capital.
139
140
V Rompendo com o presente
R omper com o passado é um problema puramente teórico. A vida
já se encarregou de realizar o rompimento prático e nos colocar
frente a frente com a nova realidade. Trata-se então de resgatar os as-
pectos teóricos, cuja validade foi demonstrada pela experimentação
prática, e descartar aqueles que se revelaram inconsistentes, embora
sempre se corra o perigo de que a própria vida, mais adiante, venha a
valorizar aquilo que momentaneamente pareceu falso. Romper com o
presente que nos assola, porém, é não só um problema teórico, como
prático. Demanda esforços políticos e operacionais para demonstrar
que as teses defendidas têm validade real na prática social e histórica
da atualidade.
As dificuldades dos socialistas relacionam-se tanto com a ne-
cessidade de realizar rompimentos com o passado, como com o pró-
prio presente. Mais: vivem a difícil situação de ter que romper com o
presente sem perder os referenciais positivos do passado. Ou, como
se diz popularmente, derramar a água suja, sem jogar fora a bacia e
a criança. Toda a perspectiva futura, na realidade, encontra-se anco-
rada nessas operações teóricas e práticas. Basta ver a crítica de Kurz
à esquerda em geral. Segundo ele, após a derrota dos chamados mer-
cados planejados da modernização recuperadora empreendida pelos
países socialistas do e este europeu, a esquerda deveria radicalizar-se
e combater, no nível atual da crise, a lógica do mercado. Ao invés dis-
so, passou a aproximar-se das forças ocidentais do mercado, original-
mente capitalistas. E isso, completa Kurz, em parte nas pontas dos pés,
mas em parte também esmagando, e com toda a força, o seu próprio
papel anterior de oposição.
141
WLADIMIR POMAR
Pode-se até alegar que Kurz generaliza demais. Mas o que ele
afirma parece ser verdadeiro pelo menos para uma parte significativa
dos antigos socialistas, em praticamente todo o mundo. Essa parte da
esquerda passou a rejeitar em bloco as experiências e as problemá-
ticas do que se convencionou chamar de socialismo real, culpando a
própria teoria do socialismo pelo seu fracasso. Outra parte prefere o
meio termo, indigitando um ou alguns teóricos ou líderes revolucioná-
rios pelos descaminhos praticados. Rubens Pinto Lyra, por exemplo,
responsabiliza o Leninismo por haver produzido o contrário do que
objetivava, ao pretender saltar etapas na construção do socialismo.
Teria produzido um formidável salto para trás, comprometendo, por
um tempo indefinido, as chances de uma alternativa socialista no pri-
meiro mundo.
Essa não é bem a opinião de Hobsbawn, para quem o socialismo
soviético representou um importante instrumento de pressão sobre o
capitalismo para a emergência dos Estados de bem-estar social no pri-
meiro mundo. Esta também parece ser a opinião atualizada do Papa.
E, diga-se de passagem, Hobsbawn e João Paulo II não são daqueles
que morriam de amores pelo sistema soviético, embora por motivos
diametralmente opostos. Além disso, como teremos oportunidade de
examinar mais adiante, a ausência ou presença de uma alternativa so-
cialista no primeiro mundo constitui um assunto bem mais complexo
do que a responsabilidade do Leninismo e da revolução russa.
Evidentemente, há ainda uma parte da esquerda, bem minoritá-
ria, que continua fiel ao positivismo da experiência soviética, culpando
por seu fracasso os revisionistas, os renegados, os traidores, o conluio
imperialista e outros monstros, se mais houvessem.
Nesse sentido, a posição de Kurz é sui generis. Primeiro, ele não
aceita que o socialismo chamado real fosse uma variante anticapita-
lista ou verdadeiramente socialista. Segundo, ele relativiza a vitória
ocidental, considerando que na verdade, com a crise do sistema per-
dedor soviético, foi deflagrada uma crise global que também ameaça
o pretenso vencedor e indica a existência de fundamentos comuns aos
dois sistemas.
Ora, a demolição do Leste é um fato incontestável. Não adianta
procurar refúgio para a derrota culpando o Ocidente e seus agentes.
142
A ILUSÃO DOS INOCENTES
Estes tinham o dever de classe de lutar pela destruição do socialismo.
Este é que tinha que elevar sua capacidade de enfrentar e superar as
estratégias e táticas demolidoras do adversário. Então, é preciso bus-
car no próprio socialismo soviético as raízes de seu fracasso, as con-
tradições reais que o enfraqueceram e o levaram à derrota. Senão, não
adianta trocar velhas ilusões por novas. Por outro lado, estranho seria
se o socialismo, soviético ou outro qualquer, não possuísse fundamen-
tos que o assemelhassem, em vários pontos, ao capitalismo. Como uma
formação econômica e social de transição pode estar completamente
isenta de elementos da formação que lhe deu origem? Assim, o acerto
de contas com o passado socialista, pelo menos nas suas principais
vertentes, ainda é uma questão em curso. Por outro lado, tanto o so-
cialismo da vertente social-democrata, quanto da vertente chamada
real, aqui incluindo o soviético, que parece ter degringolado de modo
irreversível, e os sobrantes, que buscam reformar-se ou adaptar-se
às novas circunstâncias mundiais, ainda fazem parte do presente. O
capitalismo, como não poderia deixar de ser, desconsidera a socialde-
mocracia como socialismo ou, na melhor das hipóteses, a aceita como
socialismo democrático oposto ao socialismo comunista soviético. E
considera o socialismo real definitivamente morto, já que até mesmo
os sobrantes estão adotando a economia de mercado para superar sua
crise.
Apesar de todas as suas certezas, porém, o capitalismo ainda está
às voltas com os destroços soviéticos, sem saber ao certo que rumo
tomarão depois de falharem todas as promessas com que alimenta-
ram as ilusões dos inocentes desses países e de todo o mundo. E os
socialistas, pelo menos aqueles que não se deixaram abater, também
consideram o sovietismo morto e incapaz de renascer das cinzas. Mas
vêem, ao mesmo tempo, a falência, nem sempre honrosa, da social-de-
mocracia, aliada à crise do capitalismo.
Hobsbawn afirma, com propriedade, que os comunistas e os so-
cial-democratas estão descobrindo que não podem mais levar avante
as políticas que mais ou menos improvisaram ou adaptaram após a
primeira guerra mundial, jamais havendo realmente pensado sobre
elas. Mesmo que Hobsbawn exagere em relação a essa omissão de pen-
samento, ele está certo ao concluir que a História lhes permitiu sabo-
143
WLADIMIR POMAR
rear o gosto de sucesso, ou pelo menos de um relativo sucesso, que
agora se esfumou. Com isso, repetindo uma frase sua que utilizamos
no início do livro, pela primeira vez os socialistas têm que pensar so-
bre o socialismo.
Luís Fernandes nos diz que a crise do Leste serviu para despertar
o pensamento marxista (ou pelo menos parte dele) para a identificação
de problemas fundamentais da experiência socialista, que permane-
ciam ofuscados por boa dose de sono dogmático. E haja dose! O rom-
pimento com o passado e com o presente vai nos obrigar a arremessar
longe os rótulos que eram empregados pelas diversas correntes socia-
listas para caracterizar, na maioria das vezes pejorativamente, as cor-
rentes contrárias, rótulos que acabavam impedindo uma análise mais
profunda das opiniões e das condições em que elas surgiam. E vai nos
obrigar a retomar Marx naquilo que ele criou de essencial, seu método
de investigação científica, de análise concreta de situações concretas.
A crise do socialismo coincide com a terceira revolução tecno-
lógica da História e seus dilemas evolutivos. A ciência consolidou-se
como a principal força produtiva, descortinando para a humanidade
perspectivas promissoras, mas igualmente perigos bárbaros e destru-
tivos. Prosseguem os avanços na microeletrônica, informática, biotec-
nologia, novos materiais, telecomunicações e automação, causando
mudanças profundas na força de trabalho, nos sistemas de produção
e suas formas de organização, nos padrões de consumo e no crescente
papel da investigação e educação científica e tecnológica.
O consumismo ameaça romper os parâmetros ecológicos, ape-
sar da diminuição da pressão sobre os recursos naturais, advinda da
descoberta de novos materiais sintéticos. Problemas como a criação,
transferência e adoção de novas tecnologias, utilização de bancos ge-
néticos, propriedade intelectual e uso das informações transforma-
ram-se em questões que incidem diretamente sobre a soberania dos
países, as liberdades individuais e a organização democrática. Ao
mesmo tempo que expressam a crescente socialização da produção e
da política, elas demandam socialismo para viabilizar-se como forças
favoráveis, e não destrutivas, para a humanidade.
O rompimento com o presente é, assim, uma tarefa relacionada
com o futuro, com nossa capacidade de, pela primeira, vez pensarmos
144
A ILUSÃO DOS INOCENTES
seriamente o socialismo. Sobre Marx temos a vantagem de poder exor-
cizar os socialismos reais que existiram, ou continuam existindo, em-
bora não sejam exatamente aqueles que idealizamos.
CONCEITOS MALDITOS
Ash, Dahrendorf e outros autores, tanto liberais quanto marxis-
tas, reconhecem que comunismo e socialismo acabaram por transfor-
mar-se em conceitos malditos nos países socialistas do leste europeu.
Isso certamente também é verdade em relação a grandes parcelas po-
pulacionais de nosso planeta, que não tiveram acesso a outras infor-
mações e sucumbiram sob o bombardeio insistente e massificante da
propaganda ideológica burguesa. Talvez não seja coisa totalmente do
passado a idéia de que comunistas devoravam criancinhas, segundo a
versão de prelados das mais diversas confissões religiosas.
Os comunistas e os socialistas, por outro lado, se não podem ser
responsabilizados por versões tenebrosas desse tipo, foram geradores
de inúmeras confusões em torno de suas políticas e em torno do sig-
nificado real desses conceitos. Eles aparecem tão embaralhados, tanto
na terminologia marxista quanto na liberal, que seria útil começar por
eles nosso rompimento com o passado. É verdade que ambos são ter-
mos que aparecem na História bem antes que Marx e Engels os apro-
veitassem.
Talvez por isso, nos seus escritos, ambos desprezem qualquer ri-
gidez conceitual, empregando os dois termos indistintamente, ora com
um mesmo significado, ora com significado diferente.
Inicialmente, Marx distingue o comunismo do socialismo pelo
caráter políticos diferentes que possuíam, particularmente durante
o século XIX. Enquanto o socialismo estava mais ligado àquelas cor-
rentes que consideravam possível reformar o capitalismo e torná-lo
mais humano, principalmente os socialistas utópicos, o comunismo
relacionava-se àquelas nitidamente plebéias, que trabalhavam pela
destruição do capitalismo e sua substituição por uma sociedade livre
da propriedade privada e da exploração do homem pelo homem. Nes-
se sentido, o comunismo moderno dava continuidade à tradição dos
comunistas utópicos, embora Marx não aceitasse a igualdade e a abo-
145
WLADIMIR POMAR
lição da propriedade privada nos termos em que era colocada por seus
predecessores.
Mais adiante, Marx e Engels introduziram uma distinção entre
comunismo e socialismo como fases de um mesmo processo de transi-
ção do capitalismo ao comunismo. Mas, ao mesmo tempo, mantiveram
a identidade entre comunismo e socialismo, em termos de movimento
político. Neste sentido é que Engels afirma que o socialismo moderno,
em sua forma teórica, começa apresentando-se como uma continua-
ção mais desenvolvida e mais conseqüente dos princípios proclama-
dos pelos grandes ilustradores franceses do século XVIII. É, por seu
conteúdo, resultado tanto dos antagonismos de classe que imperam na
sociedade burguesa, quanto da anarquia que reina na produção.
Marx, por seu turno, considera que o traço distintivo do comu-
nismo não é a abolição da propriedade em geral, mas sim a abolição da
propriedade privada capitalista. A supressão dessa propriedade espe-
cífica, explica Engels, deverá resultar na associação geral de todos os
membros da sociedade. O objetivo dessa associação é utilizar coletiva
e racionalmente as forças produtivas. A produção será fomentada para
cobrir as necessidades de todos, liquidando o estado de coisas em que
as necessidades de uns se satisfaçam à custa das de outros. As classes
e o antagonismo entre elas serão suprimidos. As faculdades univer-
sais de todos os membros da sociedade serão desenvolvidas através
da eliminação da divisão do trabalho, da educação industrial, do inter-
câmbio de atividades, da participação de todos no usufruto dos bens
criados por todos e, finalmente, da fusão da cidade com o campo.
O comunismo, por essa visão, seria, portanto, o momento culmi-
nante da nova sociedade. Marx argumentava que, com a derrocada da
ordem social burguesa, por obra da revolução comunista e da aboli-
ção da propriedade privada, dissolvia-se aquele poder estranho aos
indivíduos, que o subjugavam como mercado mundial. A libertação de
cada indivíduo se daria na medida em que, associado aos demais in-
divíduos, passasse a abordar de forma consciente todas as premissas
naturais como criação dos homens anteriores. Sua instituição seria,
portanto, essencialmente econômica, resultante das condições mate-
riais dessa associação.
O que criaria o comunismo seria, precisamente, a base material
146
A ILUSÃO DOS INOCENTES
para tornar impossível tudo aquilo que existisse alheio aos indivíduos.
Toda relação anterior, existente no sistema de produção de mercadorias,
só ocorria em determinadas condições (trabalho real e trabalho acumu-
lado, isto é, propriedade privada), e não como relação dos indivíduos
entre si. Ao desaparecerem essas duas condições, ou uma delas, para-
lisasse a relação que impunha aos indivíduos poderes dominadores es-
tranhos a eles. Libertos desses poderes, passam a relacionar-se entre si
como indivíduos que são.
Essa visão de Marx sobre as condições para a existência do comu-
nismo acabou resultando numa interpretação vulgar de que, ao chegar a
esse ponto, deixariam de existir os conflitos e as contradições e se cria-
ria uma sociedade completamente homogênea. Dahrendorf aproveita-
-se dessa versão marxista vulgar para contrapor ao comunismo a socie-
dade aberta, onde o indivíduo tem que conviver com o conflito e dar-lhe
uso criativo, em vez de tentar varrê-lo para baixo do tapete e procurar
uma falsa harmonia, que quase sempre significa tirania. É provável que,
se Marx estivesse vivo, concordasse com essa definição de Dahrendorf
para o próprio comunismo. A diferença entre eles continuaria sendo,
certamente, a determinação das condições para a existência dessa so-
ciedade. Enquanto Dahrendorf permanece apegado à propriedade pri-
vada dos meios de produção, mas já se dá conta de que o trabalho tende
a desaparecer, Marx reiteraria a necessidade de abolição de ambos.
Dizendo de outro modo, para a concretização do comunismo, se-
gundo Marx, seria necessário que houvessem amadurecido as condi-
ções para a supressão da propriedade privada e do trabalho, ou de pelo
menos um deles. Ele acrescentava que a supressão da propriedade pri-
vada faz-se possível e, inclusive, necessária quando 1) constituíram-se
capitais e forças produtivas em proporções sem precedentes e existem
meios para aumentar, a curto prazo, essas forças produtivas; 2) tais
forças produtivas concentraram-se em mãos de um reduzido número
de burgueses, enquanto a grande massa do povo se converte em prole-
tários, com a particularidade de que sua situação se faz mais precária
e insuportável na medida em que aumenta a riqueza dos burgueses;
3) a multiplicação das forças produtivas rompe os marcos da proprie-
dade privada e torna supérflua a existência do burguês, provocando
continuamente grandes comoções de ordem social.
147
WLADIMIR POMAR
O comunismo, portanto, na visão de Marx, é um passo necessá-
rio para superar as contradições geradas pelas sociedades capitalistas
que alcançaram seu grau máximo de desenvolvimento. Em resumo, as
sociedades comunistas devem ter uma capacidade produtiva de tal en-
vergadura, que sejam capazes de atender às necessidades materiais e
espirituais de todos e de cada um de seus membros. Como tais necessi-
dades são desiguais (os homens possuem diferenças biológicas, gostos
diferenciados, etc), a igualdade econômica deve consistir em atender
a essas desigualdades, de acordo com as necessidades singulares de
cada uma. Ao atingir a capacidade de atender plenamente a todos os
indivíduos, a sociedade torna desnecessárias a utilidade do dinheiro e
a existência mesma das mercadorias: os bens necessários serão uni-
camente valores de uso.
A abolição da apropriação privada e sua substituição pela apro-
priação social dos resultados do trabalho torna também supérflua a
divisão do trabalho, levando ao desaparecimento das classes e à ex-
tinção do Estado. Este desaparece ao perder a sua função principal
de administrar a luta de classes em benefício da classe dominante.
Abrem-se assim as condições que permitirão aos homens se organi-
zarem de forma diferente para administrar as coisas e não mais para
subordinar uns homens aos outros.
Por outro lado, a produtividade do trabalho deve estar tão de-
senvolvida, que a jornada de trabalho pode ser reduzida ao mínimo.
O trabalho deixa, então, de ser uma necessidade para a sobrevivência
cotidiana e, com a instituição da distribuição de acordo com a neces-
sidade de cada indivíduo singular, passa a ser uma necessidade física
e espiritual para a reprodução do ser humano como tal. O direito ao
trabalho e o direito ao não-trabalho se equivalerão, permitindo aos in-
divíduos elevar-se científica e culturalmente. Na concepção de Marx, o
comunismo deve representar a conquista de uma civilização material
e espiritual altamente elevada.
Evidentemente, há marxistas que fazem coro com os liberais e
consideram toda essa visão de Marx, ou parte dela, fruto de sonhos utó-
picos. A questão da abundância, ou da capacidade produtiva para satis-
fazer plenamente as necessidades de cada indivíduo da sociedade, em
particular, é bastante polêmica. Enrique Rubio sustenta que a utopia de
148
A ILUSÃO DOS INOCENTES
uma sociedade da abundância, ou da determinação crescente pela eco-
nomia, encontra parâmetros ecológicos que não deve transgredir. As
práticas destrutivas do capitalismo (e também do socialismo soviético),
manifestadas pela anarquia na produção, pelo consumismo, pelo des-
perdício, pelas crises e pelas guerras, seriam uma indicação mais do
que segura de que a humanidade jamais terá condições de alcançar tal
capacidade produtiva sem, ao mesmo tempo, destruir o meio ambiente.
Se isso pode ser uma verdade para as condições do capitalismo,
pode não ser, necessariamente, para as condições de uma sociedade
completamente diferente. Em primeiro lugar, a presente revolução tec-
nológica e científica aponta para a possibilidade de novos processos
produtivos e novos materiais poupadores de recursos naturais e con-
servadores do meio ambiente. O solo pode ser libertado da obrigação
de arcar com o peso principal de garantir a alimentação humana e as
matérias-primas produtivas. Em segundo lugar, com a liquidação da
anarquia da produção e das guerras, liquidam-se fatores importantes
de destruição e desperdício em massa das forças produtivas, dos ho-
mens e do meio ambiente.
Em terceiro lugar, as necessidades devem passar a ser reguladas
consciente e racionalmente pelos próprios indivíduos associados. Os
padrões de consumo deverão sofrer, então, uma verdadeira revolução.
O consumismo é um produto histórico da produção e da circulação de
mercadorias do capital e deve desaparecer junto com o desapareci-
mento da propriedade privada e -do trabalho e com a elevação do nível
cultural e científico. Nessas condições, pode ocorrer uma conjugação
de elevadas taxas de produção e produtividade, taxas de crescimento
demográfico moderadas, redução sensível do uso dos recursos natu-
rais e eliminação do desperdício e do consumismo, proporcionando
a possibilidade de a sociedade alcançar um excedente produtivo ca-
paz de atender às necessidades de todos os indivíduos. Assim, embo-
ra somente o futuro possa dirimir essa polêmica, há indicadores que
apontam tanto para a impossibilidade quanto para a possibilidade de
se atingir a abundância. De qualquer modo, como dizia Engels, a hu-
manidade só conseguirá dar o salto do reino da necessidade ao reino
da liberdade se fizer cessar o império do produto sobre os produtores.
Ou, como diz Elson, se for evitada a polarização do processo que per-
149
WLADIMIR POMAR
petua e intensifica a dominação do poder de compra sobre a satisfação
das necessidades.
Essa sociedade comunista, prevista por Marx e Engels, que de-
veria surgir da revolução nos países capitalistas avançados, não se re-
alizou, porém, nem foi tentada, a rigor, em parte alguma do mundo.
Por razões históricas que veremos mais adiante, nenhuma das socie-
dades capitalistas desenvolvidas assistiu ao triunfo revolucionário do
comunismo. As revoluções comunistas ou socialistas, que a História
conheceu nos últimos 70 anos, ocorreram em países onde o modo
de produção capitalista mal se desenvolvera, ainda engatinhava ou,
simplesmente, subordinava os antigos modos de produção. Na falta
de indicações teóricas mais precisas sobre a transição de sociedades
atrasadas desse tipo para o comunismo previsto por Marx, essas revo-
luções tentaram seguir, em certa medida e por um tempo relativamen-
te longo, o preceito de Lênin, de passagem direta para uma civilização
superior. Na maioria, porém, esqueceram a condição essencial, sim-
ples e real, de que deveriam estar presentes no cenário revolucioná-
rio mundial os países avançados do ponto de vista capitalista. Ou seja,
a revolução, para Lênin, só poderia ter êxito nos países atrasados se
fosse acompanhada, ao mesmo tempo, pela revolução nos países capi-
talistas desenvolvidos. Se o preceito Leninista já era duvidoso na pre-
sença dessa premissa, imagine-se sem ela.
De qualquer maneira, Marx não pode ser completamente respon-
sabilizado por esses problemas. Seus argumentos teóricos eram clara-
mente ancorados no pressuposto da revolução em países avançados,
no bojo de um processo revolucionário universal. Mesmo nessas con-
dições, ele não previa qualquer passagem direta e rápida. Frisava que
uma sociedade que acaba de sair precisamente do sistema produtor
de mercadorias e que, portanto, em todos os seus aspectos econômi-
cos, morais e intelectuais, apresenta a marca da velha sociedade da
qual procede, ainda terá que conviver durante algum tempo com seus
resquícios e com o próprio direito burguês. Nisso residem os funda-
mentos comuns descobertos por Kurz. No próprio Manifesto comunis-
ta, Marx e Engels dizem textualmente que o proletariado se valerá de
sua dominação política para ir arrancando, gradualmente, à burgue-
sia, todo o capital, para centralizar todos os instrumentos de produção
150
A ILUSÃO DOS INOCENTES
em mãos do Estado e para aumentar com a maior rapidez possível a
soma das forças produtivas. Somente quando houver desaparecido a
subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho e,
com ela, a oposição entre o trabalho manual e o trabalho intelectual.
Somente quando o trabalho não for somente um meio de vida, porém
sua primeira necessidade vital. Somente quando, com o desenvolvi-
mento dos indivíduos em todos os seus aspectos, crescerem também
as forças produtivas e jorrarem os mananciais da riqueza coletiva. Só
então poderá rebaixar-se o estreito horizonte do direito burguês e a
sociedade poderá inscrever em sua bandeira: de cada um segundo sua
capacidade, a cada um segundo sua necessidade.
Desse modo, Marx supunha o socialismo como uma primeira
fase transitória do capitalismo desenvolvido para o comunismo, fase
que poderia ser mais longa ou mais curta, dependendo do grau de de-
senvolvimento de suas forças produtivas, da cultura e da democratiza-
ção política. Ele considerava impossível suprimir de golpe a proprie-
dade privada, do mesmo modo que não se poderia aumentar de chofre
as forças produtivas existentes, na medida necessária pára criar uma
economia coletiva. Por isso, acentuava, a revolução proletária apenas
poderá transformar paulatinamente a sociedade atual. E acabará com
a propriedade privada unicamente quando houver criado a necessária
quantidade de meios de produção que a tornarem supérflua.
É interessante relembrar as medidas mais importantes que Marx
e Engels propunham para a revolução comunista, que deveria instau-
rar a fase de transição socialista. Engels, em particular, enfatizava que
a revolução estabeleceria um regime democrático e, portanto, direta
ou indiretamente, a dominação política do proletariado. Para ele, a
democracia seria absolutamente inútil para o proletariado se não a
utilizasse imediatamente como meio para levar a cabo amplas medi-
das que atentassem diretamente contra a propriedade privada e asse-
gurassem a existência do proletariado. Que medidas eram essas? Em
primeiro lugar, a restrição da propriedade privada mediante impostos
(imposto progressivo, taxação de heranças, etc). Depois, a expropria-
ção gradual dos proprietários agrários e proprietários de ferrovias e
navios, parcialmente com a ajuda da concorrência por parte da indús-
tria estatal e, parcialmente de modo direto, com indenização em pa-
151
WLADIMIR POMAR
péis da dívida pública. Nos dias de hoje, com tais propostas, ambos
seriam naturalmente taxados de reformistas juramentados. Mas vale
a pena notar como eles davam importância aos meios econômicos so-
bre os administrativos para atentar contra a propriedade privada. O
confisco de bens só era previsto para o caso dos emigrados e contra-
-revolucionários.
Nas medidas relacionadas com o trabalho, eles propunham a
organização e ocupação dos proletários em fazendas, fábricas e ofici-
nas nacionais e a obrigação dos empresários privados, que permane-
cessem, de pagarem salários tão altos quanto os pagos pelo Estado. O
trabalho deveria ser um dever obrigatório para todos os membros da
sociedade, até a completa supressão da propriedade privada.
Aqui reside um dos pontos de controvérsia de Kurz, tanto em re-
lação ao socialismo soviético, quanto em relação ao próprio Marx. Kurz
considera que a controvérsia social e histórica que dominou a moder-
nidade, compreendida pelo marxismo como luta de classes, apoiou-se
em um fundamento comum, a sociedade do trabalho, fundamento que
deixa agora transparecer sua limitação e, caído em crise, aguarda sua
dissolução.
A manutenção da sociedade do trabalho durante o socialismo,
seja teoricamente por Marx, seja praticamente pelo socialismo sovié-
tico, representaria a manutenção do sistema produtor de mercadorias,
do capitalismo, em qualquer das suas duas formas fundamentais, que
Kurz define como as formas estatista e monetarista. Esta é a razão pela
qual ele não aceita que o socialismo tenha sequer existido em qualquer
dos países que assim se autodenominaram. O que existiu, com a ma-
nutenção da sociedade do trabalho, teria sido a variante estatista da
modernização capitalista. Kurz só admite uma possibilidade: a passa-
gem direta da sociedade do trabalho (capitalista) para a sociedade do
não-trabalho (comunista), quando aquela afundar em sua crise abso-
luta e definitiva.
Marx, ao contrário, admite esse período transitório no qual, além
das medidas apontadas acima, deverá haver a centralização dos crédi-
tos e dos bancos em mãos do Estado, a educação pública e geral combi-
nada com o trabalho, a igualdade do direito de herança e a concentra-
ção de todos os meios de transporte em mãos da nação. Quando todo
152
A ILUSÃO DOS INOCENTES
o capital, toda a produção e toda a troca estiverem concentrados nas
mãos da nação, a propriedade privada deixará de existir por si mesma.
O dinheiro se fará supérfluo, a produção aumentará e os homens terão
mudado tanto, que poderão ser suprimidas também as últimas formas
de relações da velha sociedade. Evidentemente, Marx parece não ha-
ver levado em conta que a manutenção do pleno emprego do trabalho
representa, objetivamente, um entrave à elevação da produtividade e à
revolucionarização das forças produtivas. Mas isso não chega a deses-
truturar a linha geral de suas previsões.
Para ele, conforme atesta Cerroni, a socialização completa-se
quando a própria sociedade, à medida que vai homogeneizando suas
estruturas econômicas, reabsorve as funções políticas. Não se trata de
tornar mais eficiente a comunidade ilusória do Estado, mas de tornar
comunidade real a desagregada sociedade atomizada dos indivíduos
privados. Esta deve libertar-se, simultaneamente, da exploração de
classe e da gestão política separada. Nesse sentido, o estado de transi-
ção socialista não se centraria na redução do emprego da coerção, mas
sim na redução da separação entre a esfera política e a esfera social.
Em outras palavras, a socialização da economia deveria ser
acompanhada por uma progressiva assimilação de funções políticas,
tornadas diretamente sociais, e por uma crescente vigilância demo-
crática do próprio Estado, através de uma também crescente par-
ticipação da população em todos os negócios do Estado. Marx dizia
explicitamente que, para acabar com a burocracia, era necessário o
exercício universal das funções públicas. Isto é, uma situação em que
todos assumissem as funções de controle e vigilância, em que todos
fossem, ao mesmo tempo, burocratas e, portanto, ninguém pudesse
tornar-se um burocrata.
O socialismo, pelas formulações teóricas de Marx, não passaria
assim de um período de transição em que conviveriam, lado a lado,
integrando-se e repelindo-se, desenvolvendo-se contraditoriamente,
elementos que são resquícios capitalistas e burgueses e elementos que
já pertencem ao futuro, que são embriões desse futuro e devem de-
senvolver-se em confronto com aqueles resquícios. Supor o socialismo
como uma sociedade em que toda a propriedade seja social, em que vi-
gore a igualdade e tenha desaparecido a concorrência, em que o traba-
153
WLADIMIR POMAR
lho haja se tornado desnecessário e em que o Estado tenha perdido seu
papel de instrumento de dominação de uma classe sobre outra, signifi-
ca o mesmo que sobrepor a fase de transição à fase posterior. Como em
nenhum lugar foi tentada, praticamente, a transição socialista de uma
sociedade desenvolvida para o comunismo, pode-se considerar tal hi-
pótese como unilateral, do mesmo modo que Marx considerava, talvez
injustamente, uma idéia unilateral francesa a concepção da sociedade
socialista como o reino da igualdade.
Entretanto, o problema que está posto para os socialistas é outro.
O socialismo chamado real, tanto o soviético quanto aqueles que reali-
zam reformas e tentam sobreviver ao furacão que varreu o sovietismo
do leste europeu, não foi tentado em países capitalistas desenvolvidos,
mas sim atrasados. E, de uma forma voluntarista e em contraste com
as principais conclusões de Marx, procurou queimar etapas e confun-
diu os dados da realidade.
As revoluções socialistas tentaram erigir um socialismo em que a
propriedade privada deveria ser abolida administrativamente, em que
a igualdade deveria se estabelecer sem que houvesse produção sufi-
ciente para atender às necessidades de todos os indivíduos, no qual
a concorrência deveria ser proibida e no qual, contraditoriamente, o
trabalho seria transformado em dogma eterno da religião do Estado.
Este, por sua vez, em lugar de desaparecer, teria que ser reforçado
indefinidamente. Nessas condições, como acabou acontecendo, teria
mesmo que transformar-se, de instrumento de dominação da classe
majoritária sobre a minoria contra-revolucionária, no instrumento de
dominação de sua própria burocracia sobre as classes majoritária e
sobre toda a sociedade.
RELEMBRANDO O PASSADO
As previsões, suposições e afirmações de Marx sobre o desenvol-
vimento capitalista e as perspectivas de sua transformação em socia-
lismo e comunismo, como vimos, receberam a interferência de inúme-
ros fatores não previstos por ele. No caso particular do capital como
sistema de produção, as linhas mestras de sua análise têm demons-
trado validade e comprovação ao serem comparadas às principais ten-
154
A ILUSÃO DOS INOCENTES
dências de desenvolvimento do capitalismo. Mas não sem que essas
tendências tenham sido sustadas em vários momentos, ou desviadas
por caminhos completamente imprevisíveis ou, em alguns casos, tão
modificadas, que se transformaram em duas ou mais tendências dife-
rentes, dando a impressão de que a análise de Marx estaria incorreta.
Arrighi cita, por exemplo, a previsão de que o crescimento do po-
der social dos trabalhadores e o aumento da miséria de massas de-
veriam embaralhar-se constantemente, tanto dentro de cada área da
economia mundial capitalista, como através de suas várias áreas, pelo
domínio e pela ação niveladora do mercado. Ele lembra que isso não
ocorreu durante um largo período. Na primeira metade do século XX,
o mercado mundial foi rompido pela disputa interestados (e burguesa).
Criaram-se blocos de comércio e sucederam-se confrontos armados
de proporções mundiais. Nessas condições, o poder social e a miséria
de massa do trabalho cresceram mais rapidamente do que antes, mas
não de forma embaralhada dentro e através das várias áreas da econo-
mia capitalista mundial. Isso ocorreu de forma polarizada, com o pro-
letariado em algumas regiões experimentando primeiro um aumento
do poder social e, em outras, primeiro a miséria de massa do trabalho.
O desenvolvimento bastante desigual dos diversos países capita-
listas, inclusive através da expansão colonial do século XIX e início do
século XX, permitiu uma expansão muito mais rápida do capitalismo
nos países centrais da Europa e América.
Nesses países ficou concentrada a produção industrial das mer-
cadorias. A exportação de manufaturados para ps países atrasados e
a importação de matérias-primas baratas destes para os países cen-
trais constituíam as formas principais de movimentação do capital.
Nessas condições, a expansão da força do proletariado concentrava-
-se, também, basicamente nos países capitalistas desenvolvidos, pres-
sionando o capital a realizar concessões e a melhorar seu padrão de
vida, como resposta ao aumento da produtividade e à concentração de
riquezas. As sublevações operárias, ocorridas durante o século XIX,
representaram um acicate poderoso para que a burguesia aceitasse
ampliar as faixas de salários mais elevados e concedesse importantes
liberdades civis e políticas.
Esse processo se acelerou no final do século XIX, à medida que o
155
WLADIMIR POMAR
capitalismo atingiu a fase da centralização financeira, de constituição
dos monopólios e da exportação de capitais. Ou seja, à medida que o
capitalismo acelerou a socialização da produção. A localização de in-
dústrias nos países mais atrasados, para aproveitar as vantagens com-
parativas de mão-de-obra e matérias-primas mais baratas, ampliou a
presença da classe operária nesses novos países, mas de uma forma
que relembrava o processo selvagem de acumulação primitiva do ca-
pital. Os trabalhadores encontraram enorme dificuldade para concre-
tizar seu poder social, a miséria de massa expandiu-se rapidamente e
o capitalismo defrontou-se, por seu lado, com uma resistência muitas
vezes também selvagem.
Nessas novas condições, a burguesia optou claramente por dei-
xar que se consolidassem as vitórias econômicas e sociais do traba-
lho nos países centrais, embora nem sempre isso representasse mais
tranqüilidade em sua retaguarda. Cristalizou-se aquilo que Lênin cha-
mou de desenvolvimento desigual do capitalismo.
Sua expansão se dava principalmente em profundidade, nos pa-
íses desenvolvidos, através do aumento do capital constante, da pro-
dutividade, da extração da mais-valia relativa, da concentração, cen-
tralização e exportação de capitais. Nos países atrasados, ela ocorria
principalmente em extensão, por meio do uso intensivo de mão-de-o-
bra e de capital variável, da extração da mais-valia absoluta e do inves-
timento nos ramos produtores de matérias-primas (agrícolas e mine-
rais) necessárias aos países industriais.
Desse modo, as tendências ao crescimento do poder social e do
aumento da miséria de massa do trabalho teriam que ocorrer de for-
ma polarizada e não embaralhada num mesmo processo de nivelação.
Como diz Arrighi, essa forma polarizada, na qual as duas tendências se
materializaram, teria que fazer as lutas, ideologias e organizações se
desenvolverem por trajetórias que jamais Marx previu ou advogou. A
premissa de Marx para a transformação socialista mundial tinha como
ingrediente essencial a suposição de que as duas tendências (aumento
do poder social e aumento da miséria de massa) afetariam o mesmo
material humano através do espaço da economia capitalista mundial.
Somente sob essa premissa as lutas cotidianas do proletariado
poderiam ser inerentemente revolucionárias, no sentido de que elas
156
A ILUSÃO DOS INOCENTES
produziriam um poder social frente aos Estados e ao capital, que estes
jamais poderiam extinguir ou acomodar. A revolução socialista era o
processo em larga escala e de longa duração, através do qual o con-
junto dessas lutas imporia à burguesia mundial uma ordem baseada
sobre o consenso e a cooperação, em lugar da coerção e competição.
Isso não ocorreu. Nos países centrais da Europa e Estados Uni-
dos, o desenvolvimento capitalista criou uma burguesia forte, coesa e,
como diz Cerroni, organizada num tipo de Estado que foi se articulan-
do cada vez mais com técnicas e estruturas requintadas. O parlamento
nacional equilibrou-se com a contraposição de organismos locais. A
divisão dos poderes, a codificação do direito e a formalização do prece-
dente jurídico consolidaram-se. O alargamento numérico da burocra-
cia transformou-a na real coluna de apoio do regime representativo.
A definição rigorosa da liberdade e dos seus limites teve como conse-
qüência a definição de um rigoroso regime caucionador. Este compen-
sa a exclusão da gestão política (delegada no corpo representativo) com
uma precisa garantia da autonomia privada, quer na esfera da proprie-
dade, quer na esfera das liberdades pessoais e civis.
Institucionalizou-se, continua Cerroni, um regime liberal que ta-
pava todas as passagens aos temas do exercício direto da soberania, da
socialização da propriedade e do direito ao trabalho. Isso tudo era faci-
litado, como constata Arrighi, pelo fato de que, nesses países, o poder
social dos trabalhadores ampliava-se não só com base em suas lutas e
conquistas, forçando concessões da burguesia. Esta podia transferir
para seus trabalhadores uma parte substancial da mais-valia absoluta
que arrancava dos trabalhadores das colônias e de outros países atra-
sados. Os sucessos eleitorais dos socialistas apontavam para a con-
quista do poder de uma forma muito mais tranqüila do que supunham
os radicais de diferentes tipos. Em 1898 Bernstein sintetizou o progra-
ma que as tendências capitalistas centrais permitiam ao socialismo.
Ele simplesmente afirmava que, ao contrário do que Marx disse-
ra, a classe média não estava desaparecendo e o número de pessoas
proprietárias crescia. Em lugar da pauperização, tinha lugar o aumen-
to de conquistas e vantagens pelos trabalhadores.
Em vez de concentrar-se num pequeno número de grandes ca-
pitalistas, o capital democratizava-se com a concretização das so-
157
WLADIMIR POMAR
ciedades por ações. O consumo ampliava-se entre a classe média e o
proletariado, melhorando suas condições de vida. Por outro lado, a am-
pliação da circulação monetária afastava as possibilidades de crises
econômicas e, ainda mais, a probabilidade de uma ruína final. Se os
socialistas fossem esperar por esses eventos para instaurar a socieda-
de de seus sonhos, jamais a alcançariam.
Bernstein propõe, então, que os socialistas mudem radicalmente
sua postura diante do capital. Se a ruína deste, e a revolução que a isso
se seguiria, não é mais inevitável, o que melhor corresponderia aos
interesses dos trabalhadores seria lutar por uma sociedade, mesmo
capitalista, mas eticamente democrática, baseada no apoio de todas as
classes e não só do proletariado. Não se tratava mais de derrubar a or-
dem capitalista existente, mas de ganhar o apoio da burguesia para as
reformas que permitissem aos trabalhadores partilharem com ela os
direitos e as responsabilidades políticas. Bernstein dava, assim, fun-
damentação teórica à ação prática de colaboração entre os socialistas
e os partidos burgueses, inaugurada pelo socialista francês Millerand.
Bernstein foi ainda mais longe em sua crítica, e revisão, de Marx,
e na apologia da nova forma que o Estado burguês assumia. Colocou
o socialismo como continuidade ideológica e política do liberalismo,
sustentando que, se a democracia era a forma política do liberalismo,
o socialismo não era senão o liberalismo organizado. O complicado em
todos esses problemas colocados por Bernstein é que eles se basea-
vam em mudanças concretas que o capitalismo estava realizando, pelo
menos em suas áreas centrais, tanto na economia, quanto na política.
O capital, contra a visão vulgar corrente no socialismo da época,
estava não só continuando a revolucionar suas forças produtivas e per-
mitindo o aumento do poder social do trabalho, como evitando o au-
mento da miséria de massa e, mais do que isso, modificando a própria
forma de agir de seu Estado. Este deixava de constituir um simples co-
mitê coercitivo e violento da dominação de classe da burguesia, para
transformar-se, através da ampliação do voto universal e das liberda-
des políticas, numa arena, digamos, aparentemente mais civilizada,
da disputa entre as classes. Ou, como diria Marx, para introduzir mais
um elemento de socialização no próprio sistema.
O anátema de Bernstein resultou numa profunda cisão na cor-
158
A ILUSÃO DOS INOCENTES
rente socialista e ganhou muita força nos países capitalistas europeus,
em especial na Escandinávia, Alemanha, França e Inglaterra. É ver-
dade que no primeiro momento houve um processo de dispersão con-
siderável, aliás reforçando variantes reais de pensamento que já vi-
nham se manifestando como reação às mudanças do capitalismo. Não
apenas se multiplicaram aquelas que assumiam a reforma do sistema
produtor de mercadorias como seu próprio fim, como as que se opu-
nham vigorosamente a isso, em nome, do anarquismo e de diferentes
concepções revolucionárias. É interessante notar que, inicialmente,
lideranças consagradas da social-democracia de então, como Kautsky
e Rosa Luxemburgo, colocaram-se em oposição às teses de Bernstein,
embora com argumentos diferentes.
Não é nosso intuito refazer toda a trajetória desse debate, nem
as mudanças que ocorreram nas opiniões dos diversos contendores.
O importante a frisar é que o pensamento de Bernstein não foi devida-
mente refutado ou derrotado, nem mesmo quando novas crises abala-
ram o sistema capitalista e este teve que ingressar nas guerras mun-
diais que consumiram milhões de vidas e forças produtivas imensas. O
capital dos países centrais foi suficientemente forte para cicatrizar as
feridas e ingressar em ciclos de expansão econômica e política ainda
mais amplos, renovando e reforçando os pressupostos de Bernstein.
Estes puderam se constituir, assim, na origem da social-demo-
cracia moderna. A crença de que o capitalismo seria capaz de evitar
a miséria de massa e, ao mesmo tempo, de agasalhar a expansão do
poder social dos trabalhadores, dividindo com estes a administração
da ordem social, tem sido a justificação moral e política dessa vertente
que resultou da mais abrangente cisão socialista desde então.
A contraface da social-democracia foi a persistência do que cha-
mo, em todo o decorrer deste texto, por motivos puramente didáticos,
de socialismo revolucionário. Na maioria dos casos, esse socialismo
revolucionário era constituído por inúmeras correntes, as quais às ve-
zes negavam essa qualidade a outras que se consideravam do mesmo
campo. Embora respeitando o direito de cada uma dessas correntes
singulares ver registrado o seu papel na História, optamos por regis-
trar como unificadores as tendências principais que as caracteriza-
vam como socialistas revolucionárias.
159
WLADIMIR POMAR
Feita essa ressalva, voltemos ao caso. Esse socialismo revolucioná-
rio pretendia, teoricamente, ater-se ao espírito da obra de Marx, acusan-
do Bernstein daquilo que considerava então o mais dos crimes ideológi-
cos e políticos: o revisionismo. A ironia da história é que, no movimento
real, ela também teve que achar suas próprias justificativas teóricas e
práticas para alcançar seus objetivos de transformação social.
Os socialistas revolucionários que mais se rebelaram contra Ber-
nstein foram aqueles que viviam nas sociedades atrasadas do ponto
de vista capitalista. Conviviam num meio em que se confirmavam as
previsões de Marx sobre o aumento da miséria de massa, acompanha-
do de um certo crescimento do poder social do trabalho. Era um meio,
porém, em que não estavam dadas as condições materiais para o so-
cialismo, se fossem observados rigorosamente os pressupostos esta-
belecidos por Marx.
Diante disso, os socialistas revolucionários tinham que reconhe-
cer que enfrentavam uma situação não prevista. Encontravam-se fren-
te a frente a conjunturas históricas em que a burguesia não quisera,
ou não pudera, cumprir sua tarefa de transformadora do antigo regi-
me. Sem revolução política, o capitalismo desenvolvia-se em inúme-
ros países atrasados em meio às estruturas políticas anacrônicas e à
podridão dos restos servis e feudais. Tal situação era particularmente
aguda na Rússia, onde a expansão capitalista, particularmente impul-
sionada por capitais externos franceses e ingleses, convivia com uma
estrutura agrária ultrapassada e com uma aristocracia impermeável a
qualquer mudança. Amadurecia uma complexa situação revolucioná-
ria, com diversas soluções possíveis.
Os populistas pretendiam impedir o desenvolvimento capita-
lista através da expansão da agricultura comunitária camponesa. Os
liberais ou cadetes buscavam um acordo com o czarismo para a intro-
dução de pequenas reformas na monarquia. Entre as diversas alas da
social-democracia foi Lênin, sem dúvida, quem conseguiu achar a so-
lução teórica e prática mais adequada àquela situação concreta. Revi-
sando Marx dentro do espírito geral de seu método histórico, elaborou
não só a teoria do desenvolvimento desigual do capitalismo e, portan-
to, da revolução, como a teoria da hegemonia proletária na revolução
democrática burguesa.
160
A ILUSÃO DOS INOCENTES
Lênin sugeriu e levou à prática uma luta combinada contra a
autocracia russa e pela democracia política, e contra o capitalismo e
pelo atendimento de reivindicações socialistas. Ele defendia o pon-
to de vista de que um programa desse tipo permitiria aos operários
conquistar a hegemonia nos sovietes ou conselhos, que na prática da
revolução russa representavam, como diz Cerroni, sua forma política
específica de gestão. Na luta levada a cabo pelos operários, campone-
ses e soldados russos, os sovietes transformaram-se em seus órgãos
reais representativos, como alternativa às Dumas ou parlamentos do
Estado czarista. E deveriam representar, como pensava Lênin, o elo de
ligação da revolução democrática com a revolução socialista, como de
fato aconteceu nas revoluções de fevereiro e outubro de 1917.
Cerroni considera que o conceito de todo poder aos sovietes, no
qual a idéia central era a conquista do consenso dos sovietes por parte
do partido revolucionário, constitui a primeira teoria do Estado de tran-
sição elaborada pelo movimento socialista marxista. Lênin, com razão,
defendia o ponto de vista de que não era possível redigir resoluções para
a luta parlamentar onde não havia parlamentos dignos desse nome.
Nessas condições, sem a existência de democracia, a revolução
burguesa dirigida à implantação do regime republicano democrático,
era mais vantajosa para o proletariado do que para a burguesia, prin-
cipalmente se fosse dirigida pelo próprio proletariado.
Até então, Lênin distinguia claramente a situação entre os países
avançados, em que as reformas democráticas tinham se verificado e
continuavam em curso, dos países atrasados, nos quais as reformas
democráticas não haviam ocorrido ou haviam sido introduzidas de
forma embrionária e parcial. Apesar disso, Lênin ancorava a possi-
bilidade de êxito da revolução socialista em países atrasados ao de-
sencadeamento e sucesso da revolução em todos ou pelo menos em
alguns países avançados. Por isso mesmo, Lênin desconsiderava as
mudanças, digamos, positivas, do capitalismo nos países centrais e os
problemas reais que elas erigiam diante dos socialistas Atacava os re-
formistas e revisionistas com o mesmo vigor com que atacava aqueles
que poderiam, por suas opiniões teóricas e por sua prática política, le-
var a revolução russa ao apodrecimento.
Isso provavelmente o impediu de reconhecer todas as conse-
161
WLADIMIR POMAR
qüências que comportavam as mudanças teóricas e práticas que in-
troduzira na teoria de Marx. O êxito da revolução soviética pareceu
dar razão aos socialistas revolucionários contra os social-democratas,
principalmente depois dos resultados do apoio destes à guerra e a seus
governos, durante a Primeira Guerra Mundial. Não por acaso, no pe-
ríodo posterior à revolução russa, todo o peso moral, político e estatal
dos socialistas revolucionários, mesmo enquanto Lênin vivia, foi jo-
gado na tentativa de fazer com que o modelo de revolução soviética se
transformasse em modelo universal. A cisão entre socialdemocratas e
socialistas revolucionários, apesar das cisões secundárias num e nou-
tro campo, continuaria ainda por muito tempo a constituir o grande
desdobramento do socialismo.
Kurz também associa, de certa maneira, os desdobramentos do
socialismo aos desdobramentos do capitalismo durante todo o perío-
do das duas guerras mundiais. Para ele, essa época ainda faz parte da
história global de desdobramento do capital, que somente após 1945
teria começado a assumir o caráter de um sistema universal, coeren-
te e maduro. Mas, para Kurz, esse desdobramento não está restrito à
divisão do mercado mundial e à formação de blocos capitalistas, que
desembocaram nas duas grandes guerras. Está relacionado, ainda,
aos ciclos monetarista e estatista que o capital se viu obrigado a seguir
para enfrentar suas crises gerais, associando a revolução russa ao ci-
clo estatista.
Kurz é de opinião que, em toda a história da modernidade, a ten-
dência estatista, qualquer que seja seu fundo social ou ideológico, é
um elemento integrante do processo capitalista, e não um lado oposto
deste ou potência que possa eventualmente suprimi-lo. Nesse sentido,
ele relembra que a época do nascimento e ascensão da União Soviética
à segunda potência mundial era também, no Ocidente, um período de
estatismo: a economia planejada do fascismo alemão nos anos 30, o
triunfo do keynesianismo e a constituição de um paradigma do Estado
social.
Por isso, conclui Kurz, a revolução proletária, como ironia do des-
tino, não aconteceu no Ocidente. Aqui o capital já estava desenvolvido e
não precisava da revolução para fazer o próximo passo da moderniza-
ção burguesa. Bastava para essa tarefa a social-democracia e sua polí-
162
A ILUSÃO DOS INOCENTES
tica. Na Rússia, pelo contrário, o atraso do desenvolvimento capitalista
exigia meios mais radicais. Somente dessa forma se explicaria o cisma
socialista daquela época, do mesmo modo que a triste reunificação
atual da social-democracia global, prestes a reconhecer sua identida-
de como força burguesa, representante da sociedade do trabalho e da
modernização.
Kurz consegue, assim, colocar todos os movimentos sociais do
proletariado como parte integrante do movimento de modernização
burguesa. É certo que Marx dizia a mesma coisa de outro modo. Marx
fazia, porém, distinção entre os movimentos dirigidos pelos liberais
burgueses e os dirigidos pelos socialistas. Kurz, ao contrário, descon-
sidera a possibilidade de um movimento de modernização burguesa,
impulsionado pelos socialistas, ter seu curso encaminhado de forma
diferente daquele efetuado diretamente pela burguesia. Do seu ponto
de vista, tanto faz como tanto fez, seguir Bernstein ou Lênin. Ambos
desembocariam, no final das contas, como desembocaram, segundo
ele, em diferentes estágios da modernização capitalista.
O que vale verdadeiramente, para Kurz, é que o sistema moderno
de produção de mercadorias chegue ao fim, por qualquer desses cami-
nhos, conformando um mundo único, atacado por crises, revelando-se
como visão de terror de uma guerra civil mundial, que está por vir,
guerra em que não haverá frentes firmes, mas apenas surtos de violên-
cia cega em todos os níveis.
Quem sabe se Kurz houvesse aparecido um pouco antes na His-
tória, isso teria permitido a todos os socialistas evitar seus cismas e
divergências, e as agruras e sofrimentos da luta de classes. Conhece-
dores da inevitável marcha do capitalismo para sua modernidade ter-
rificante, poderiam aguardar serenamente que o próprio capitalismo
chegasse a seu momento final de terror. Na certa, uma época universal
de Mad Maxes e Blade Runners, na qual se poderia, finalmente, reunir
as forças conscientes, derrubar o comitê de executivos da burguesia e,
abolindo as formas mercadoria e dinheiro, ingressar no reino da liber-
dade. Ao desprezar a política e a ação dos homens, espontâneas e cons-
cientes, por sua própria libertação, pensadores como Kurz desprezam
as mediações que todo processo histórico comporta. Descartam, em
particular, as possibilidades abertas pela luta socialista para evitar a
163
WLADIMIR POMAR
visão apocalíptica do fim do capitalismo. Não é possível acumular for-
ça e experiência, sem atravessar uma longa estrada de lutas, cheia de
obstáculos, vitórias e derrotas (talvez mais derrotas do que vitórias),
que capacitem os socialistas e os trabalhadores a enfrentar uma pro-
vável situação extrema, em que o capitalismo ainda tenha força sufi-
ciente para tentar destruir a humanidade junto com o seu fim.
Por isso, tem razão Blackburn quando sustenta que, para aqueles
que querem construir uma alternativa ao capitalismo, não é possível
nem desejável encarar as experiências comunistas passadas como
algo sem significado.
PECADOS CAPITAIS
Entre o final do século XIX e meados do século XX, a social-demo-
cracia e o socialismo revolucionário marcharam como duas grandes
correntes professadamente socialistas, mas possuidoras de métodos,
fundamentos teóricos e objetivos que pareciam distanciar-se cada vez
mais. Muitas vezes confrontaram-se tanto em escala nacional quanto
internacional. Isso foi tragicamente verdadeiro não só durante a guer-
ra de 1914-18, a revolução alemã de 1919 e o enfrentamento da ascen-
são nazista no final da década de 20 e início dos anos 30. Depois da
guerra mundial contra o nazismo, a social-democracia, na maior parte
do tempo, cerrou fileiras na cruzada contra a União Soviética, então
considerada o templo da maior parte das correntes do socialismo re-
volucionário.
Apesar das duas grandes guerras e das diversas crises cíclicas
que o capitalismo continuou enfrentando, a expansão do capital nos
países desenvolvidos parecia dar razão a Bernstein e aos social-de-
mocratas. Fortes movimentos sindicais e grande presença dos traba-
lhadores nas disputas eleitorais permitiram aos social-democratas
introduzir importantes reformas sociais e políticas no sistema capita-
lista de seus países e erigir Estados de bem-estar social e democracias
representativas relativamente amplos. Os partidos social-democratas
chegaram ao poder em diversos países da Europa ocidental, e seu rodí-
zio com partidos conservadores passou a ser encarado como fato nor-
mal da vida política dessas nações.
164
A ILUSÃO DOS INOCENTES
Os socialistas revolucionários das nações centrais jamais conse-
guiram fazer com que suas propostas de revolução socialista se consti-
tuíssem em alternativas práticas para os trabalhadores de seus países,
embora na França e na Itália tenham chegado a colocar em risco a he-
gemonia e a dominação dos partidos burgueses e social-democratas.
De qualquer modo, a maioria dos trabalhadores e os outros setores so-
ciais que poderiam aliar-se a eles não demonstraram vontade de cor-
rer o risco de trocar as melhorias, que haviam obtido nas sociedades
afluentes do primeiro mundo, por uma perspectiva revolucionária in-
certa e, ainda por cima, pintada em cores tenebrosas pela propaganda,
tanto burguesa quanto social-democrata.
Por outro lado, os social-democratas avançaram muito pouco na
conquista dos trabalhadores e demais camadas pobres das nações e
regiões atrasadas. Em nenhum desses países conseguiram construir
partidos verdadeiramente fortes e que se diferenciassem dos partidos
burgueses, como defensores das massas oprimidas e exploradas. Ao
contrário dos países desenvolvidos, nos países em desenvolvimento
e subdesenvolvidos não havia bem-estar econômico e social para a
maioria da população e a democracia era, na maioria das vezes, uma
miragem no horizonte político. Nessas condições, foram os socialistas
revolucionários que constituíram alternativas reais para garantir não
somente a sobrevivência dos trabalhadores, mas também de suas na-
ções como tais.
Arrighi atesta que o socialismo revolucionário, que chama de mar-
xismo histórico, acabou por identificar-se de forma absoluta com o au-
mento da miséria de massa e com as lutas sangrentas, através das quais
as organizações marxistas tentavam a derrubada do poder que causava
a miséria de massa. Quanto mais isso acontecia, mais o marxismo tor-
nava-se alheio e repugnante aos proletários dos países centrais.
Inversamente, quanto mais as organizações proletárias, basea-
das no aumento do poder social dos países centrais, tinham sucesso
em obter uma parcela do poder e riqueza de seus respectivos Estados,
mais eram percebidos e apresentados pelos marxistas como membros
subordinados e corruptos do bloco social que dominava o mundo.
A revolução socialista na Rússia e a consolidação da União Sovié-
tica, seguida pela quase sempre esquecida Mongólia, foram o primeiro
165
WLADIMIR POMAR
exemplo das possibilidades de êxito do socialismo revolucionário. A
tentativa nazi-fascista de liquidar a URSS, embora a longo prazo tenha
se constituído numa contribuição de suma importância para a derro-
cada dos anos 80 e 90, num primeiro momento teve como resultado a
expansão do socialismo para quase metade da Europa e para regiões
estratégicas da Ásia. Os movimentos de descolonização e libertação
nacional, que no pós-guerra alastraram-se pela Ásia e África tinham,
na maior parte dos casos, o socialismo revolucionário como influência
e referência.
A expansão do socialismo revolucionário era de tal ordem que,
em 1961, o primeiro-ministro conservador da Inglaterra, Harold Mac-
Millan, supunha que na luta contra o comunismo, os sucessos capita-
listas haviam sido poucos e as perdas consideráveis. Ele se lamentava
de que a superioridade militar do Ocidente havia sido substituída pelo
equilíbrio de forças e que, no campo econômico, a força e o crescimen-
to da produção e da tecnologia comunistas haviam sido formidáveis.
E uma ironia do destino que a força e a expansão experimentadas
tanto pela social-democracia, no primeiro mundo, quanto pelo socia-
lismo revolucionário, nos países atrasados do ponto de vista capita-
lista, hajam entrado em declínio em períodos mais ou menos conver-
gentes. A primeira defrontou-se com a crise do capitalismo nos anos
80, que parece estender-se pela presente década, exigindo mudanças
estruturais de monta, com conseqüências devastadoras sobre os Esta-
dos de bem-estar social. O segundo, convertido em sua maior parte em
socialismo soviético, viu-se enredado em suas próprias deformações
estruturais. Tentou alcançar os objetivos máximos socialistas, sem
haver completado as tarefas da revolução capitalista das forças produ-
tivas, sem haver criado as bases materiais para uma verdadeira trans-
formação das relações sociais e sem haver empreendido a socialização
ou democratização da política, à medida que a produção avançava em
sua socialização.
A social-democracia ligou seu destino de forma muito umbilical
ao êxito do Estado capitalista de bem-estar social. Ela estava conven-
cida que a acumulação capitalista era plenamente capaz de superar a
miséria de massa que Marx previra e, ao mesmo tempo, permitir que
os trabalhadores, organizados em suas associações sindicais e nos
166
A ILUSÃO DOS INOCENTES
partidos trabalhistas, socialistas democráticos ou social-democratas,
introduzissem no Estado as modificações necessárias para garantir o
funcionamento de mecanismos protetores ao trabalho, tanto no terre-
no econômico e social, quanto no terreno político.
Dahrendorf aponta que a social-democracia teve uma afinidade
peculiar com o Estado.
Muito longe de combatê-lo como o corpo que administra os inte-
resses comerciais comuns da classe burguesa, na formulação de Marx
e Engels, os social-democratas usaram-no para reparar as injustiças
do capitalismo.
Coutinho é de opinião que a opção pelo reformismo social-demo-
crata possibilitou, à classe trabalhadora do ocidente, significativas e
duradouras conquistas sociais e democráticas, certamente mais am-
plas, sobretudo no que se refere à democracia, do que as obtidas nos
países orientais, que seguiram um caminho não capitalista. Hobs-
bawn completaria que a existência dos países orientais socialistas e
as lutas dos trabalhadores no terceiro mundo também facilitaram as
conquistas reformistas pelo medo que causavam à burguesia dos pa-
íses centrais. De um modo ou outro, é preciso reconhecer, como faz
Adam Przeworski, que durante quase 60 anos a social-democracia
sueca criou o paradigma mundial de como se poderia combinar o de-
senvolvimento do capitalismo com a maior elevação do padrão de vida
dos trabalhadores. Segundo ele, os social-democratas suecos haviam
encontrado em Keynes a fundamentação teórica e a orientação prática
para fazer do aumento constante da demanda dos trabalhadores o fa-
tor dinâmico da iniciativa do capital privado.
Talvez não só. Bernstein, com razão, tinha compreendido que
essa situação apenas poderia manter-se em ligação indissolúvel com
a política externa dos países centrais, isto é, aos mercados externos
desses países. A maioria dos líderes social-democratas sempre pro-
curou, porém, negar que a posição de relativo bem-estar alcançada
pelos trabalhadores do primeiro mundo estava relacionada com a ex-
ploração dos trabalhadores do mundo capitalista atrasado. A medida
que o papel desse mundo atrasado perde peso na reestruturação da
divisão internacional do trabalho e que a recessão nos países centrais
se combina com um desemprego estrutural, que tende a se ampliar
167
WLADIMIR POMAR
e a tornar realidade a miséria de massa prevista por Marx, o Estado
de bem-estar e a corrente social e política que o promoveu entram em
crise existencial.
A recessão de 80-82 já havia explicitado, como diz Gorender, a
estreiteza da social-democracia. Como ela pretendia beneficiar os tra-
balhadores através da manutenção do capitalismo, teria que pagar o
preço exigido pela lógica do sistema. Incapacitada para debelar a infla-
ção incrementada nos anos 70, a social-democracia foi ao chão diante
do impacto recessivo do início dos anos 80. A social-democracia sueca,
exemplifica Gorender, havia feito do seu capitalismo uma galinha de
ovos de ouro, dos quais retirava cerca de 60% para a despesa pública,
de tal maneira que 1/3 do produto interno bruto podia ser destinado
pelo Estado aos gastos sociais. Mas, em 90, viu-se atingida pela sín-
drome da crise fiscal, causada por uma inflação renitente de 10%, pelo
desemprego de 5%, pela perda da capacidade competitiva no mercado
internacional e fuga de capital privado.
O grande produto histórico da social-democracia — o Welfare Sta-
te ou Estado do Bem-Estar — atravessa assim uma fase crítica, diz Cou-
tinho, expressa numa crise fiscal do Estado e num déficit de legitima-
ção. Ele sugere que o reformismo social-democrata apresenta limites
que se manifestam de duas maneiras principais. No plano econômico,
a ampliação crescente dos direitos sociais é, a longo prazo, incompa-
tível com a lógica da acumulação capitalista. Conservada essa lógica,
não é possível ampliar o nível de satisfação das demandas sociais (sa-
lários, empregos, etc.) além do ponto em que tal ampliação, ao impor
um aumento excessivo da tributação e do déficit público, termine por
bloquear a reprodução do capital global. No plano público, o limite do
reformismo social-democrata consiste em sua incapacidade de supe-
rar uma visão neutra e instrumental da democracia estatal.
Jorge Semprún considera que, no debate histórico com o comu-
nismo, a social-democracia teve razão. Entretanto, não pode deixar de
reconhecer que ela é insuficiente para esclarecer o futuro. A autonomia
socialista não teria levado em conta questões como o tipo de socieda-
de que queria construir, os problemas do papel do proletariado, a rup-
tura revolucionária com o sistema capitalista, a apropriação coletiva
dos meios de produção. Hoje a social-democracia, segundo Semprún,
168
A ILUSÃO DOS INOCENTES
precisa voltar a discutir essas questões fundamentais. O pragmatismo
não seria mais suficiente. Estamos diante da realidade da sociedade
na qual vivemos, com seu horizonte insuperável, inabalável para um
grande número de pessoas. É preciso modificá-la. Voltamos assim ao
ponto de partida, conclui ele.
Bela forma de dizer que a social-democracia teve razão. Afinal,
voltamos ao ponto de partida, enfrentando os mesmos problemas que
Bernstein pensava haver resolvido contra Marx, num quadro de re-
alidade que se aproxima cada vez mais estreitamente das previsões
deste e não daquele. A crise que assola os países centrais, por outro
lado, não está somente colocando à mostra a incompatibilidade da ló-
gica do sistema de produção-para-lucro com a superação da miséria
de massa. Está, ainda, trazendo à luz as entranhas do sistema político
que permitiu à social-democracia revezar-se no poder com os partidos
burgueses, ou mesmo participar no poder em coligação com eles. A si-
tuação italiana, em particular, coloca em evidência o tipo de democra-
cia que permitiu perpetuar no poder uma coligação espúria que mis-
turava corrupção, crime organizado e conspiração política e militar.
Neste caso, a socialdemocracia está naufragando de forma desonrosa
e trágica. Mas também em outros países do primeiro mundo, onde du-
rante muito tempo a social-democracia comandava os mecanismos do
poder político, ela perde terreno ou simplesmente foi desalojada por
agrupamentos de centro ou de direita ou, em surpreendentes revitali-
zações, pela esquerda socialista.
O socialismo soviético também começou sua caminhada com
grandes promessas e esperanças, conseguindo mesmo transformar-
-se num modelo que todos os demais socialistas revolucionários de-
veriam copiar. Se dera certo na atrasada Rússia, por que não daria nos
demais países atrasados? Assim, não foi só o método revolucionário
de substituição do velho regime por um novo, que passou a ser indica-
do como o único válido, mas também o método de industrialização e
construção econômica aplicado pelo país dos sovietes.
Durante os primeiros 10 a 12 anos de instituição do poder sovié-
tico, demorou a cristalizar-se um método que pudesse ser sacramen-
tado como definitivo. Há muitos textos de análise sobre esse processo
histórico e também tratamos dele, sumariamente, em A miragem do
169
WLADIMIR POMAR
mercado. Por isso, vamos nos restringir, agora, a alguns dos problemas
mais polêmicos da experiência soviética, recolocados como ponto de
partida por Semprún. Eles também dizem respeito ao tipo de socieda-
de que ela queria construir, ao papel do proletariado, à ruptura revolu-
cionária com o sistema capitalista e à apropriação coletiva dos meios
de produção.
Ou, colocando de outro modo, para ser mais específico em relação
aos problemas concretos dessa experiência: às possibilidades de cons-
trução de sociedades socialistas em países atrasados, e isolados em
meio a uma maioria de países capitalistas; à necessidade de realizar a
industrialização e dos métodos a serem observados nesse processo; à
necessidade de competirem no mercado internacional dominado pelo
capital; à perspectiva de abolição da propriedade privada dos meios
de produção e extinção da sociedade do trabalho; e, finalmente, como
dizia Lênin, a fazer com que a própria classe trabalhadora tivesse o
poder político, efetuando com toda a coerência um grau de democrati-
zação que assegurasse seu pleno domínio pela maioria da população.
Marx e Engels não consideravam a revolução e a construção da
sociedade fora do contexto universal. Mais tarde, já após a vitória da
revolução russa de 1917, Lênin também achava inconcebível que o po-
der soviético pudesse existir ao lado dos Estados imperialistas por um
longo tempo. Ele admitia mesmo que, no final, um ou outro teria que
triunfar. Os acontecimentos que conduziram à restauração de regimes
pró-capitalistas na Europa centro-oriental e os esforços para transfor-
mar as economias de comando em economias capitalistas de mercado,
assim como as reformas em curso no socialismo sobrante, parecem
dar razão a esses teóricos do socialismo.
Kurz, em sua crítica ao chamado socialismo real, vai ainda mais
longe na exploração dessa impossibilidade. Ele afirma que o socialis-
mo revolucionário (que ele denomina de socialismo do movimento ope-
rário) não poderia pôr em prática o programa da crítica da economia
política de Marx, simplesmente porque seu tempo ainda não chegara.
Só lhe restaria repetir e realizar, na melhor das hipóteses, as idéias
mercantilistas tardias de Fichte. Por isso, no caso da Rússia, como a
tarefa de modernização burguesa não podia ser realizada pela burgue-
sia liberal, que desempenhava apenas um papel marginal, essa tarefa
170
A ILUSÃO DOS INOCENTES
deveria ser realizada por um partido radical de trabalhadores. Para
Kurz, somente um partido desse tipo, distanciado do capitalismo oci-
dental, seria capaz de iniciar, nessas condições, um desenvolvimento
capitalista recuperador. Por essa razão, os bolcheviques ficaram pra-
ticamente com a razão, tendo que se iludir, porém, ideologicamente,
quanto ao verdadeiro conteúdo de sua revolução, devido à ilusão de
Lênin com a primazia da política.
O esquema de Kurz é original e possui uma certa lógica interna,
mas seu reducionismo é evidente. São relativamente conhecidas as va-
cilações e os esforços de Lênin para dar solução ao complexo quadro
criado com uma revolução dirigida por um partido operário e anti-ca-
pitalista, num país cujas condições materiais eram muito atrasadas e
insuficientes para a construção socialistas. Arrighi sublinha bem que
o aumento da miséria de massa foi uma condição necessária para a
vitória da estratégia revolucionária de tomada do poder elaborada por
Lênin, mas que, tão rápido quanto o poder de Estado foi tomado, a mi-
séria de massa tornou-se um sério obstáculo ao que Lênin e seus su-
cessores poderiam fazer com aquele poder.
Lênin, ao mesmo tempo que conclamava os soviéticos a aprender
e adotar o capitalismo estatal alemão, asseverava que não era possível
manter o poder proletário num país incrivelmente arruinado e com
um gigantesco predomínio do campesinato, igualmente arruinado,
sem a ajuda do capital. Nesse sentido, Lênin estava disposto a pagar
os juros que fossem necessários para desenvolver as forças produtivas
da sociedade soviética e construir as premissas sem as quais não seria
possível alcançar o nível de cultura indispensável para criar o socia-
lismo. Foi somente no final dos anos 20, bem depois da morte de Lênin,
como aponta Luis Fernandes, que a política oficial soviética proclamou
que já haviam amadurecido as condições para complementar a cons-
trução da base econômica do socialismo, restringindo progressiva-
mente as concessões ao capitalismo adotadas pela NEP (Nova Política
Econômica) e cortando drasticamente todos os fluxos de capital entre
a sua economia e os países capitalistas centrais, dentro de uma estra-
tégia de ruptura com o imperialismo.
Na verdade, Kurz não aceita que o desenvolvimento desigual do
capitalismo e o abandono, pela burguesia da maioria dos países capi-
171
WLADIMIR POMAR
talistas atrasados, de sua missão modernizadora revolucionária, tenha
criado uma situação histórica nova. Esta situação acabou por depositar
nas mãos de partidos de trabalhadores a missão de completar aquela
tarefa de modernização, inclusive contra a própria burguesia. Esse
fato histórico, que não poderia ser previsto por Marx e Engels, apesar
da posição em geral assumida pela burguesia, a partir das sublevações
operárias de 1848, colocou os socialistas diante de um problema com-
plexo e, ao mesmo tempo, instigante. Poderiam essas revoluções — po-
líticas — completar as tarefas burguesas e levar adiante a construção
do socialismo? Ou, como pretende Kurz, já que o socialismo real não
poderia suprimir a sociedade capitalista da modernidade, deveria o
próprio socialismo fazer parte do sistema burguês produtor de merca-
dorias, sem ao menos tentar substituir essa forma histórica por outra?
Kurz prefere considerar que o chamado socialismo real representou
somente outra face do desenvolvimento da mesma formação de épo-
ca. Aquilo que prometia uma sociedade futura, pós-burguesa, teria se
revelado um regime transitório pré-burguês, estagnado, a caminho da
modernidade. Não valeria a pena tanto sacrifício. Kurz não enfrenta,
porém, o problema de voltarem a repetir-se situações idênticas às que
o socialismo revolucionário enfrentou durante meio século. Koestler
lembra que, durante um largo período, o contraste entre a tendência
decadente do capitalismo e o simultâneo crescimento rápido da eco-
nomia soviética era tão impressionante e óbvio, que conduzia à igual-
mente óbvia conclusão de que o socialismo era o futuro e o capitalismo
o passado. A vida mostrou-se mais complicada que a obviedade.
Hoje parece ocorrer um paralelismo invertido, com a expansão
da modernidade capitalista e a crise e derrocada do socialismo soviéti-
co. O socialismo seria o passado e o capitalismo o futuro. Kurz também
prefere ignorar esta outra obviedade. Tem certeza do fim conjunto e
caótico de todo o sistema capitalista. Retoma, de certa maneira, a tese
inicial de Marx, de nivelamento do desenvolvimento do sistema de
produção-para-lucro, no qual o aumento do poder social do trabalho
e o crescimento da miséria de massa deveriam embaralhar-se dentro
e através de todos os países capitalistas, chegando a conclusões igual-
mente óbvias.
Entretanto, o desenvolvimento das tendências longas do capita-
172
A ILUSÃO DOS INOCENTES
lismo aponta para o aguçamento do crescimento desigual dos diversos
países capitalistas. A expansão persistente da miséria de massa se dá
tanto nos países mais atrasados como nos países centrais, mas não
igualmente. O aumento do poder social dos trabalhadores também é
muito desigual. Não há, portanto, ao contrário do que pensa Kurz, e do
que pensavam Marx e Engels no século passado, um nivelamento da
maturidade capitalista. Assim, apesar da derrota relativa do socialis-
mo numa parte importante do mundo, continuam dadas as condições
para movimentos e explosões anti-capitalistas em diferentes países.
A expansão do islamismo é somente uma das diversas expres-
sões que esse anti-capitalismo pode assumir, na ausência de uma vi-
são e alternativa afirmativa como a socialista.
Dessa maneira, também o socialismo, que continua vivo e atuan-
te, sob diferentes modalidades, na América Latina, na Ásia e também
na África (e que, apesar de tudo, não foi completamente aniquilado na
Europa e nos Estados Unidos), pode voltar a firmar-se. E ver-se dian-
te da necessidade de enfrentar, concretamente, a situação política de
completar, em lugar de, e contra a própria burguesia, as tarefas histó-
ricas que esta não foi capaz de concluir. Mais uma vez se verá às voltas,
assim, com o problema da construção socialista em países isolados,
nos quais as condições econômicas, sociais e culturais para esse novo
sistema social ainda não estão dadas.
Mais uma vez terá que decidir entre simplesmente devolver o po-
der à burguesia ou tentar um caminho diverso, tanto do que foi pre-
visto pelos teóricos do socialismo moderno, quanto do que foi tentado
pelo socialismo soviético.
Isso inclui, desde logo, o problema da industrialização. Nenhuma
nação pode dar-se ao desplante de ignorar as necessidades de cresci-
mento econômico, a não ser que queira ver-se afundar na pobreza. A
industrialização constituiu e ainda constitui um instrumento impor-
tante desse processo que permitiu elevar consideravelmente a pro-
dutividade do trabalho e, portanto, a possibilidade de poucas pessoas
produzirem uma riqueza muito superior às suas necessidades de con-
sumo. Em todos os países que ingressaram na industrialização isso
demandou, além de uma combinação adequada dos recursos existen-
tes (terra, matérias-primas, capacidade da força de trabalho e capital
173
WLADIMIR POMAR
acumulado, tanto em meios de produção quanto em reservas financei-
ras), a adoção de políticas para otimizar as ofertas de cada um desses
fatores e concentrar-se nos aspectos chaves do processo.
Luís Fernandes lembra as características da industrialização
tardia na Europa (as chamadas seis proposições de Gershenkron): 1)
forma de um grande surto, com ritmos elevadíssimos de crescimento,
2) prioridade à construção de fábricas e empresas de grande porte, 3)
prioridade à produção de bens de produção em relação aos bens de
consumo, 4) forte pressão para conter o nível de consumo e elevar o ní-
vel de investimento, 5) intervenção ativa do Estado, 6) papel secundá-
rio da agricultura. E conclui que a industrialização soviética reprodu-
ziu ou acentuou essas características. Eu diria que, em alguns casos,
as acentuou de forma tão intensa que chegou a criar características de
qualidade nova.
Em primeiro lugar, o estatismo soviético nem de longe pode ser
comparado aos surtos de estatismo praticados pelas economias ca-
pitalistas. O Estado soviético não somente intervinha no sentido de
direcionar os investimentos públicos e incentivar os investimentos
privados. Com o fim da NEP, o Estado soviético monopolizou toda a
propriedade dos meios de produção, com exceção de algumas peque-
nas áreas, e todos os investimentos. Desse modo, o estatismo soviético
concentrou em suas mãos todos os recursos disponíveis e alocava-os
de acordo com um planejamento igualmente ultra-centralizado. Por
outro lado, se a pressão para conter os níveis de consumo foram tão ou
mais fortes do que no capitalismo tardio, a centralização estatal per-
mitiu uma distribuição mais equitativa da renda e um contingencia-
mento mais eficaz das desigualdades sociais. A garantia de emprego
vitalício era não apenas a contraface da disciplina militarista do tra-
balho, mas também daquilo que Kurz qualifica de divinização do tra-
balho. Para ele, essa divinização do trabalho fez do socialismo do mo-
vimento operário um simples prolongamento do princípio capitalista.
Em supressão desse princípio, fez dele, na realidade social da União
Soviética e, depois, dos demais países socialistas, o executor histórico
desse princípio capitalista na própria carne. Kurz não se preocupa em
responder como seria possível, naquelas condições sociais, suprimir
o princípio do trabalho, Como desconsidera qualquer possibilidade de
174
A ILUSÃO DOS INOCENTES
intermediações e transições mistas, não pode deixar de censurar os
socialistas revolucionários por haverem carregado o fardo de cumprir
aquele papel em lugar da burguesia, principalmente porque avalia que
não foi contra ela, porém por ela. Apesar de todas essas admoestações
e das previsões do que seria ideal, essa problemática deverá bater de
frente novamente, inúmeras vezes, com as políticas socialistas.
Em segundo lugar, ao invés de aprofundar a reforma agrária de-
mocratizante da revolução, o Estado soviético ingressou num proces-
so de coletivização forçada, cujos resultados, quanto à produtividade
e aumento da produção global, têm sido objeto de muitas dúvidas e
polêmicas. Há críticos que consideram haver sido possível realizar a
política de industrialização acelerada sem a utilização da coletivização
forçada. A questão que se coloca, porém, é se seria viável empregar
outras formas de expropriação do campesinato, para transformá-lo
em força de trabalho industrial para o crescimento acelerado. Porque,
na realidade, esse foi o principal resultado da coletivização agrícola
na União Soviética, além, é claro, de permitir uma transferência mais
controlada da renda da agricultura para a indústria.
Por outro lado, uma série de outros mecanismos e políticas de de-
senvolvimento e regulação da economia soviética a distinguiram dos
países capitalistas de industrialização tardia. Nestes, a compressão do
consumo ocorreu, em geral, numa certa fase do processo, sendo pau-
latinamente substituída por uma ampliação para várias fatias do mer-
cado ou para todo o mercado consumidor. Basta ver o que aconteceu
na Alemanha, Japão e Itália, apesar dos aspectos que os diferenciam.
O consumo de massa passou a desempenhar um papel, importante no
desenvolvimento industrial moderno e, na disputa entre capitalismo e
socialismo, acabou por transformar-se num ponto crucial.
Em alguns países muito populosos, por outro lado, a compres-
são do consumo pode introduzir um ingrediente perigoso e instável de
insatisfação popular, tornando impraticável um processo idêntico ao
seguido por alguns países de industrialização tardia, como a União So-
viética, a Coréia do Sul e Taiwan, por exemplo. Não foi por outro motivo
que a China, desde 1957, procurou escapar do modelo soviético, dando
mais importância à agricultura e à produção de bens de consumo de
massa. Todas as tentativas para voltar à industrialização rápida, tendo
175
WLADIMIR POMAR
por base a compressão do consumo, entre as quais pode se incluir a
revolução cultural entre 1966 e 1976, acabaram fracassando.
A União Soviética, porém, manteve indefinidamente sua política
de compressão do consumo. Não tanto, é verdade, para continuar man-
tendo altas taxas de investimento e crescimento econômico, mas fun-
damentalmente para suportar as astronômicas despesas requeridas
pela corrida armamentista com os Estados Unidos. Associada à baixa
produtividade técnica do trabalho que caracterizou a industrializa-
ção soviética (portanto de custos mais altos), a não transferência das
descobertas tecnológicas da indústria bélica para a indústria civil e a
outros fatores inerentes à economia de comando, aquela compressão
teria, necessariamente, que gerar uma imensa insatisfação popular,
particularmente quando teve de confrontar-se com as informações
coloridas do mercado ocidental nas televisões.
Outro aspecto determinante da experiência soviética foi sua ten-
tativa de erigir como política econômica externa sua exclusão dos flu-
xos de capital do mercado capitalista mundial, como acentua Luís Fer-
nandes. Os soviéticos acreditavam na possibilidade de manter com os
países capitalistas somente o fluxo de comércio. Na suposição de que
poderiam romper com o capitalismo interna e externamente, superan-
do o mercado, não só passaram a fixar os preços internos conforme o
arbítrio do planejamento centralizado, como tornaram o rublo moeda
não conversível nos mercados monetários internacionais. Essas me-
didas representaram, sem dúvida, um apoio às restrições comerciais
adotadas pelos países capitalistas em suas relações com a União Sovi-
ética e demais países socialistas.
Anastas Mikoyan, que foi vice-presidente da União Soviética, di-
zia em 1952 que o mercado do campo socialista dispunha de recur-
sos que permitiam, a cada país, encontrar tudo aquilo que precisavam
para o seu desenvolvimento econômico.
Ampliava, assim, para todos os países socialistas sob influência
soviética direta, a política autárquica erigida antes para a União So-
viética. Esse isolamento dos países socialistas, do fluxo internacional
de capitais e de comércio, os afastou tanto de possíveis investimentos,
como também do fluxo e intercâmbio de tecnologias, seja de produtos,
seja de processos. Além disso, os impediu de acompanhar os padrões
176
A ILUSÃO DOS INOCENTES
de produtividade e competitividade que, num mercado mundial, são
determinantes no estabelecimento dos valores das mercadorias e, por-
tanto, dos preços e salários.
Che Guevara acentuava, com razão, que nesse sentido o ponto de
partida era o cálculo do trabalho socialmente necessário à produção
de um dado artigo, mas que estava sendo esquecido o fato de que esse
trabalho socialmente necessário era um conceito econômico e histó-
rico. Ele se modificava, assim, não somente ao nível local ou nacional,
mas também em termos mundiais. Os continuados avanços técnicos,
um resultado da competição no mundo capitalista, reduziam os gastos
do trabalho necessário e rebaixavam, pois, o valor do produto. Uma
sociedade fechada poderia ignorar tais mudanças por um certo tempo,
mas teria que voltar a essas relações internacionais de modo a poder
comparar os valores dos produtos. Se uma dada sociedade ignorasse
tais mudanças por um longo tempo, frisava Guevara, sem desenvolver
novas e acuradas fórmulas para substituir as velhas, ela criaria inter-
pelações internas que transformariam sua própria estrutura de valor.
Esta poderia ser internamente consistente, mas estar em contradição
com as tendências da tecnologia mais altamente desenvolvida. Pode-
ria resultar em reversões de alguma importância e, em qualquer caso,
produzir distorções na lei do valor em escala internacional, tornando
impossível comparar economias.
Guevara tocou o ponto nevrálgico da inserção dos países socialis-
tas e de quaisquer outros países no mercado mundial capitalista, nas
condições de existência deste. Entretanto, os soviéticos trabalhavam a
hipótese de que o seu socialismo chegara a um nível em que poderia
dispensar as categorias fundamentais do capitalismo, como salário,
preço, lucro (portanto, trabalho assalariado, produção de mais-valia,
produção de mercadorias e valor). Não levavam em conta que sua ca-
pacidade jamais alcançara um patamar que a capacitasse a atender
às necessidades materiais e culturais de todos os membros de sua so-
ciedade. Nem que o trabalho continuava sendo uma exigência para a
sobrevivência, remunerado por um salário acima ou abaixo do valor
da força de trabalho, conforme acontecia em qualquer país capitalista.
Nessas condições, o isolamento da competição capitalista mun-
dial, em lugar de proteger os países socialistas dos efeitos maléficos da
177
WLADIMIR POMAR
ação do capital, representou uma trava poderosa no desenvolvimento
de suas forças produtivas. Blackburn sugere que as estratégias de au-
tarquia nacional adotadas pelos Estados socialistas ou comunistas, em
geral, os conduziram à estagnação. Portanto, à completa impossibili-
dade de consolidar as condições necessárias para a efetiva construção
socialista. E, como efeito acessório, terminou por conduzir esses paí-
ses a participar, de forma enviesada, do mercado mundial que repu-
diavam.
Passaram a realizar esforços para exportar seus produtos para
todos os países da esfera capitalista, e não apenas para aqueles con-
siderados de orientação socialista, abrindo inclusive créditos que lhes
permitissem compras a mais longo prazo. Ofereceram financiamentos
para a construção de projetos de infra-estrutura, em condições e por
métodos que pouco se diferenciavam dos usados pelas nações capi-
talistas. Ao mesmo tempo, como alerta Luiz Fernandes, mantinham
em vigor a maioria dos mecanismos que impediam uma participa-
ção plena no mercado mundial, aí incluídos a inconversibilidade das
moedas, os preços administrados e os níveis de qualidade abaixo dos
padrões internacionais. Nessas condições, os países socialistas não fo-
ram sequer capazes de tirar partido das vantagens comparativas que
detinham, como a alta ciência, a tecnologia espacial, os preços com-
petitivos do petróleo e de alguns outros produtos. Foi relativamente
tarde que o primeiro-ministro Kossiguin reconheceu, em 1966, que a
revolução técnico-científica em curso no mundo demandava contatos
internacionais mais livres e um amplo intercâmbio econômico. Como
diz Gorender, uma economia socialista à margem do mercado mundial
será sempre um retrocesso, uma tentativa condenada à frustração e ao
fracasso. E esse não é somente o dilema implacável do socialismo num
só país, acrescento eu, mas mesmo do socialismo em vários países, se
seu sistema não for mundialmente predominante.
Há um reconhecimento generalizado de que a centralização ex-
cessiva das economias de tipo soviético, baseada na estatização qua-
se absoluta dos meios de produção e de troca, engessou o desenvol-
vimento econômico e social do socialismo. Ao contrário do que Marx
propunha, os soviéticos avançaram muito rapidamente no processo de
estatização da economia, bem antes de que houvessem amadurecido
178
A ILUSÃO DOS INOCENTES
as condições para a abolição da propriedade privada. Ao regular admi-
nistrativamente as relações de produção, embora mantendo diversas
categorias típicas do modo de produção capitalista, o socialismo sovi-
ético eliminou um dos principais instrumentos de que aquele sempre
se valeu para revolucionar constantemente suas forças produtivas: a
concorrência.
Sem que essas forças produtivas houvessem alcançado um está-
gio inigualável de desenvolvimento, estágio que somente a atual revo-
lução técnico-científica está deixando entrever, os soviéticos acredita-
ram que poderiam ver-se livres da concorrência e das mazelas que a
acompanham, substituindo-a por uma emulação consciente entre tra-
balhadores e empresas pela elevação da produtividade. Pretenderam
que o homem soviético agisse como um homem emancipado e livre,
embora ele continuasse amarrado aos ditames de uma sociedade que
ainda precisava basear-se no trabalho humano. Portanto, onde o tra-
balho permanecia sendo obrigação, esforço físico e mental, sofrimento
e dispêndio de tempo humano sob coação.
Houve exemplos heróicos nessa tentativa. Trabalhadores que
conseguiam extrair o máximo das máquinas em que trabalhavam. A
produtividade, nesse caso, estava quase sempre relacionada ao desem-
penho humano na utilização das máquinas. Mas houve muito pouco
em relação à melhoria do desempenho das máquinas, para permitir a
substituição dos homens e sua liberação. O pleno emprego e o sistema
de metas quantitativas de produção, desvinculados da comercializa-
ção, minguaram o esforço para revolucionar equipamentos e proces-
sos de produção e funcionaram como ingredientes desestimuladores
da substituição dos homens pelas máquinas. A emulação transfor-
mou-se, desse modo, num simples instrumento burocrático de distri-
buição de prêmios, sem qualquer vínculo efetivo com a necessidade de
revolucionar as forças produtivas para, através delas, revolucionar as
próprias relações de propriedade e a consciência dos homens.
O socialismo não poderia abolir por decreto a concorrência. En-
quanto perdurassem as premissas da existência da propriedade priva-
da, do trabalho assalariado, da produção e troca de mercadorias, seria
necessário que a concorrência continuasse atuando como o principal
acicate de crescimento da produtividade. Marx viu na concorrência
179
WLADIMIR POMAR
um mecanismo histórico único para empurrar as forças produtivas a
um movimento permanente de transformações.
Como diz Kurz, a concorrência priva o homem de sossego, mas
desacredita a estupidez. Destrói existências, mas torna obsoleta toda
relação estamental e grosseira, toda relação de dependência pessoal.
Priva massas humanas da satisfação de suas necessidades, mas tam-
bém desenvolve, em escala cada vez maior, as necessidades das mas-
sas. A concorrência barateia certos bens até então reservados para o
consumo de luxo, incorporando-os ao consumo de massas. Desuma-
niza os homens, fazendo deles meras máscaras do dinheiro. Mas ao
mesmo tempo os humaniza, transformando-os em sujeitos, ao des-
truir todos os fetiches naturais e poderes institucionais.
Sobretudo, a concorrência força e chicoteia os homens ao dispên-
dio abstrato de sua força de trabalho. E é, ao mesmo tempo, o princí-
pio dinâmico que suprime o trabalho e o torna obsoleto mediante sua
outra tendência, igualmente implacável, de surtos de produtividade e
cientificismo. A concorrência transforma as forças produtivas em for-
ças destrutivas, mas eleva ao mesmo tempo a apropriação da natureza
pelo homem a um nível nunca visto. Apesar de sua força destrutiva
frente aos homens e à natureza, a máquina da concorrência é, ao mes-
mo tempo, emancipação negativa, por alcançar inevitavelmente, me-
diante desenvolvimento ininterrupto das forças produtivas, o ponto de
uma abolição do trabalho.
O socialismo, se for entendido como o longo processo de tran-
sição, no qual ingressam países atrasados, para completar a moder-
nização capitalista e, ao mesmo tempo, iniciar a construção de uma
nova sociedade, não pode escapar de conviver com essas contradições
vivas da concorrência. Elas são, e continuarão sendo por bom tempo, o
principal instrumento para revolucionar as forças produtivas. Nessas
condições, o estatismo absoluto funciona como os grilhões que acor-
rentavam Prometeus e o mantinham impotente à voracidade dos abu-
tres. Ele aniquila a concorrência e mesmo qualquer tipo de emulação
e, com elas, toda esperança de expansão plena das forças produtivas.
Além de toda essa problemática enfrentada pelo socialismo revo-
lucionário na tentativa de construção econômica socialista em países
atrasados, é preciso considerar a questão, tão ou mais importante, do
180
A ILUSÃO DOS INOCENTES
Estado e da democratização. Marx defendia que o socialismo deveria
superar a separação entre Estado e sociedade. Essa mesma tese foi de-
senvolvida por Lênin pouco antes da revolução russa, numa obra que
ficou famosa e hoje é execrada por inúmeros socialistas que não a le-
ram devidamente: O Estado e a revolução.
Na verdade, o destino fez uma ironia com Lênin. Este enfrentava
um problema específico, no qual o Estado russo continuava a apresen-
tar-se como a velha máquina repressora, em que não existia parla-
mento no estilo ocidental e onde nem mesmo as liberdades políticas
burguesas mínimas funcionavam. A hegemonia operária na revolução
democrática, através dos conselhos de operários, camponeses e sol-
dados, foi a solução inovadora que Lênin deu a seu problema político
prático, solução que se mostrou correta é adequada às condições da
revolução russa.
No entanto, ao desenvolver a teoria do Estado socialista, Lênin
parte dos mesmos pressupostos de Marx e avança ainda mais na for-
mulação de uma série de propostas de extensão da democracia e so-
cialização da política que podem muito bem atender aos atuais garga-
los do desenvolvimento e socialização da economia e da política dos
países avançados, mas que tinham pouco valor concreto para os pro-
blemas enfrentados pela Rússia de então. Cerroni se pergunta como
seria possível destruir, num novo modelo institucional, a separação de
Estado e sociedade onde esta separação fundamentalmente ainda não
se produzira? Como seria possível produzir a auto-direção geral dos
trabalhadores, onde se registrava um dos mais baixos níveis de cresci-
mento civil, técnico, científico e cultural? Reconstruir a comunidade a
partir dos níveis mais baixos da história universal, como conclui Cer-
roni, tornava-se um empreendimento titânico.
Os ditames da centralização econômica, exigida para uma in-
dustrialização acelerada, além do enfrentamento do bloqueio externo
e dos preparativos de guerra, só serviram para embaralhar aqueles
dados e congelar, se não os níveis de. crescimento técnico, científico e
cultural, pelo menos os níveis de crescimento civil. Em lugar de favo-
recer um aumento da participação da população nos negócios do Esta-
do, tanto através da ampliação do pluralismo, quanto de mecanismos
representativos que permitissem a unificação de uma vontade geral,
181
WLADIMIR POMAR
o Estado soviético fundiu-se ao partido dirigente (que se transformou
em partido único), arrogou-se em intérprete da vontade geral da po-
pulação, exigiu uma unidade monolítica em torno das suas decisões e
aboliu todos os mecanismos formais de liberdade e igualdade política.
Nessas condições, a famosa igualdade socialista ficou reduzida
a uma pretensa igualdade econômica. Partindo do pressuposto de que
no capitalismo prevaleciam a liberdade e igualdade formais (todos os
homens são livres e iguais perante a lei) e a desigualdade e falta de li-
berdade reais (desigualdade econômica e somente a liberdade de ven-
der sua força de trabalho), o socialismo passou a ser entendido como a
concretização da igualdade e liberdade econômicas reais. Na ausência
da propriedade privada e da exploração do trabalho, todos os homens
seriam pretensamente iguais. Os mecanismos formais de exercício das
liberdades políticas tornavam-se então desnecessários, diante da pre-
sença da igualdade e da liberdade reais. Assistiu-se assim ao holocaus-
to da democracia no socialismo. E, com o tempo, a igualdade econômica
também se deteriorou. Transformou-se numa crescente desigualdade
entre os privilégios da nomenklatura e a vida dos cidadãos comuns.
Ash destaca as contradições que essa situação criou. Diz que a
combinação de nivelamento deliberado, com absurdos não intencio-
nais, resultou em uma distribuição da riqueza pela maior parte da
sociedade que se revelou mais desordenada que igualitária. Isso te-
ria gerado uma grande consciência da divisão real existente entre a
classe superior/dirigente comunista, a nomenklatura, e todo o resto.
Ao mesmo tempo, considerava extraordinariamente alto o nível de
consciência política popular. Todos tinham uma educação básica, alta-
mente politizada. Muita gente reagia a essa politização com um recuo
obstinado para a vida privada e um apoliticismo quase pragmático.
Contudo, ninguém podia ter qualquer dúvida de que as palavras e as
idéias tinham importância e conseqüências reais para a vida de todos
os dias.
Por isso mesmo, o conceito que desempenhou papel central no
pensamento da oposição ao socialismo na década de 80, completa
Ash, foi o de sociedade civil. O comunismo conseguiu envenenar a pa-
lavra socialismo e criar a unidade social que contribuiu para seu fim,
revigorando as palavras cidadão e cívico. Ou seja, empurrou a socie-
182
A ILUSÃO DOS INOCENTES
dade para a separação entre Estado e sociedade civil através de um
processo excludente e privatista da política, oposto aos princípios do
socialismo.
Teria sido necessário agir conscientemente sobre esse processo
de separação, combinando o pluralismo com formas de participação
direta e representativa da população nos assuntos do Estado, demo-
cratizando a sociedade em círculos cada vez mais amplos. Mas esta é
uma experiência que o socialismo revolucionário fica devendo.
A BARBARIZAÇÃO DO PRESENTE
O propalado mundo de paz, justiça e democracia, que deveria
resultar do fim do comunismo e da instituição da pax americana, foi
rapidamente substituído por um mundo em que a formação de blo-
cos regionais prefiguram a ocorrência de guerras comerciais, em que
explodem manifestações boçais de xenofobia, ódios étnicos, raciais
e religiosos, discriminações nacionais e banditismo. A situação de-
sastrosa do antigo segundo mundo, e dos terceiro e quarto mundos,
pode explodir em guerras e conflitos dos mais diferentes tipos. E no
qual a hegemonia militar dos Estados Unidos pretende desempenhar
o papel de polícia mundial financiada pelo primeiro mundo. Com a
vitória do capitalismo, a barbárie se espraia de forma aparentemente
incontrolável. André Fontaine reconhece que o sonho de um mundo
reconciliado esbarra na crescente atomização do planeta.
O funcionamento sem travas da concorrência e da competiti-
vidade do sistema de produção-para-lucro conduz o mundo à beira
do abismo. Embora seja difícil concordar com as visões catastróficas
de Kurz, assim como com suas pretensões utópicas, não se pode dei-
xar de reconhecer que o planeta vive atualmente surtos de violência
cega, que apontam para uma perspectiva terrificante e desagregado-
ra. Basta raciocinar um pouco sobre os produtos que ocupam as três
principais posições no mercado mundial: petróleo, armas e drogas.
Todos os três movimentam investimentos de bilhões de dólares e não
podem deixar de contar com a participação de grandes corporações
transnacionais. Bancos de porte são responsáveis pela lavagem do di-
nheiro sujo do contrabando de armas e do tráfico de entorpecentes. E
183
WLADIMIR POMAR
todos os três só podem manter essa posição se alimentarem o consu-
mo destrutivo das guerras, do banditismo, da degradação humana e
da devastação da natureza.
A ONU estima que cerca de 11 % da superfície verde da Terra so-
freu degradação de moderada a forte nos últimos 45 anos. Anualmente
são perdidos 7 milhões de hectares de terras férteis, pelo excesso de
pastagens, pesticidas, máquinas pesadas e desmatamentos. A cada
ano são extintas 5 mil espécies animais e vegetais. Thurow aponta que
os problemas do capitalismo nos anos 80 e início de 90 foram provo-
cados por uma economia que extrapolou as relações de cooperação,
particularmente com o meio ambiente. Os mercados subestimam os
custos da poluição e não dão importância à eliminação das espécies,
causando perdas irreparáveis ao desenvolvimento humano. Não custa
relembrar que as nações desenvolvidas, representando 1/4 da popula-
ção mundial, consomem 75% das matérias-primas de todo o mundo e
produzem igual percentagem de lixo.
Os Estados Unidos — maior exportador mundial de armamentos,
maior importador de cocaína e outros narcóticos e, reconhecidamen-
te, maior poluidor do planeta — procuram a todo custo manter as posi-
ções que conquistaram. Chomsky chama a atenção para o fato de que
o relatório sobre estratégia de segurança nacional, remetido pela Casa
Branca ao Congresso em março de 90, afirma que na nova era a potên-
cia militar dos Estados Unidos continuará sendo um elemento básico
de equilíbrio mundial. As maiores possibilidades de intervenção das
forças americanas estarão no terceiro mundo. A crescente sofisticação
dos conflitos representará sérias demandas às forças americanas e po-
derá ameaçar os interesses dos Estados Unidos. Por isso, estes devem
estar preparados para deslocar forças baseadas em seu território, a fim
de reforçar postos de vanguarda ou projetar seu poder em zonas onde
não têm presença permanente, sobretudo no Oriente Médio, devido à
dependência do mundo livre em relação ao petróleo dessa região chave.
Ainda segundo o relatório, os Estados Unidos devem preparar-se tam-
bém para intervir em conflitos de baixa intensidade, como terrorismo,
narcotráfico ou ameaças de insurreição no Terceiro Mundo.
No passado, a aparência de disputa ideológica com a União Sovi-
ética não representava mais do que pretexto para os Estados Unidos
184
A ILUSÃO DOS INOCENTES
intervirem em qualquer parte do mundo em que sentiam ameaçados
seus interesses estratégicos. Assim, o fim do comunismo não exclui
de sua doutrina militar a intervenção armada nas zonas petrolíferas
e nos países do terceiro mundo que se insurgirem contra o despotis-
mo do capitalismo mundial. Atualmente, fazem o possível para isolar
da comunidade internacional o Iraque, Síria, Líbia, Coréia do Norte e
Cuba (quatro islâmicos e dois socialistas sobrantes), deixando momen-
taneamente de lado o Irã, em função da disputa com o Iraque. Ou inter-
vém ou ameaçam intervir em qualquer país que consideram passível
de sua ação policial. Sua nova situação, de única potência militarmen-
te hegemônica, somente serviu para explicitar uma política que antes
era mascarada pelo véu enganoso daquela disputa ideológica com a
outra superpotência.
Chomsky assegura que, para os Estados Unidos, a Guerra Fria foi
uma história de subversão, agressão e terrorismo de Estado em todo
o mundo. A contraparte interna teria sido, e ainda é, o entrincheira-
mento do complexo industrial-militar. O mecanismo institucional que
permite o funcionamento desse complexo consiste num sistema esta-
tal-empresarial de administração, que subvenciona a indústria militar
de alta tecnologia com fundos públicos, e entrega os lucros às empre-
sas privadas. Dessa maneira, a Guerra Fria contribuiu para fortalecer
o sistema de subsídio público e lucro privado que carrega o ilustre tí-
tulo de livre empresa. E ainda tem gente que acredita na completa au-
sência do Estado na economia americana. O fato é que o setor de Defesa
consumiu três trilhões de dólares da renda americana nos últimos 10
anos, para engordar os lucros de algumas grandes empresas.
Entretanto, a hegemonia militar dos Estados Unidos consolida-se
justamente no momento em que perdem a hegemonia econômica e tec-
nológica para a Europa e o Japão e perdem a condição de maior credor
mundial. Vêem-se obrigados, assim, a realizar esforços, até há pouco
impensáveis, para reestruturar sua economia. Precisam enfrentar os
desafios da nova competividade internacional e cobrir os enormes dé-
ficits orçamentários e da balança de pagamentos, que os transforma-
ram no maior devedor mundial. Eles só podem aplicar efetivamente
sua estratégia militar, sem comprometer sua saúde financeira, se se
oferecerem como os centuriões a soldo da era moderna.
185
WLADIMIR POMAR
Um comentarista financeiro do Chicago Tribune desenvolveu
abertamente essa idéia. Ele explicitou que os Estados Unidos deveriam
explorar seu virtual monopólio do mercado da segurança como ala-
vanca para extrair fundos e concessões econômicas da Comunidade
Européia e do Japão. Reconheceu que os Estados Unidos poderiam ser
qualificados de mercenários, mas contra-atacou reiterando que seu
país deveria ser capaz de dar murros sobre algumas mesas e obter um
bom preço pelos serviços, seja através de bônus a juros baixos ou, o
que seria melhor, por aportes diretos ao Tesouro americano. Para ele,
se os Estados Unidos abandonarem esse papel de agentes policiais,
isso se dará à custa de perderem grande parte de seu controle sobre o
sistema econômico mundial.
O sistema de proteção, empregado pelas máfias e outras gangues
em quase todo o mundo, tende a cristalizar-se como doutrina de Esta-
do da potência militar deste final de século. Aliás, ela já foi empregada
com certo êxito na guerra contra o Iraque. E há uma pressão constante
para fazer com que a ONU forneça seu nome e sua bandeira, e funcione
como o tesoureiro repassador de recursos, para as ações militares dos
Estados Unidos em todo o mundo. Esse sistema, porém, não é cômodo
nem ágil. Os Estados Unidos não estão trabalhando com comerciantes
desprotegidos que sucumbem à pressão e à chantagem de gangues ar-
madas. Eles estão se entendendo com potências econômicas e, de certo
modo, também militares, que querem ser ouvidas e que só se dispõem
a pagar se seus interesses forem igualmente levados em conta.
Foi esse um dos motivos principais que impediram os Estados
Unidos de bombardear os sérvio da Bósnia ou mesmo intervir mais
diretamente no conflito dos Bálcãs. Por outro lado, a criação da força
franco-alemã unificada e a futura constituição de um exército único da
Comunidade Européia indicam que os europeus querem manter certa
independência militar, deixando de depender exclusivamente da ação
militar americana ou da Otan, onde a presença americana também é
determinante. A Europa, como apontou The Economist, talvez se depa-
re cada vez mais com uma nova versão da Questão Oriental do século
XIX, gerada pelas diferenças entre suas partes ocidental e oriental, e se
prepara para tratá-la à sua própria maneira. Ela procura desesperada-
mente identificar o que pode ameaçá-la, em especial se a economia do
186
A ILUSÃO DOS INOCENTES
leste não melhorar, para agir de acordo com seus interesses.
Nesse sentido, a pressão migratória já se tornou um pesade-
lo para ela. Thurow é de opinião que a propensão a longo prazo para
emigrar seria muito acentuada sobre as populações do leste, se os pa-
drões de vida não melhorassem rapidamente. Ele acreditava que essa
propensão forçaria os europeus ocidentais a fornecerem substanciais
ajudas econômicas aos países da Europa oriental, a menos que preten-
dessem erguer um Muro de Berlim às avessas. Na realidade, parece
ser esta última opção a escolhida. A Europa unificada vem adotando
restrições cada vez mais draconianas para impedir ou, no mínimo, li-
mitar ao máximo a imigração, particularmente das massas humanas
do leste europeu e do norte da África, que podem alcançar mais facil-
mente a Europa central.
Enfrentando uma recessão, que tende a ser prolongada, e o au-
mento do desemprego, que transforma os antigos trabalhadores bem-
-sucedidos numa multidão de miseráveis, a migração proveniente de
todas as partes do mundo iria, inevitavelmente, engrossar a miséria de
massa, que se apresenta como uma realidade cada dia mais gritante
e mais inexplicável no mundo rico. Esse é o caldo de cultura em que
proliferam as discórdias étnicas, nacionalistas, religiosas e também
políticas. É desse caldo de cultura que se ceva o nazismo renascido
e o banditismo de toda ordem. E todos os acordos, leis e medidas que
procuram deter a invasão de migrantes, tanto na Europa, quanto nos
Estados Unidos e no Japão.
Na França, em particular, o problema migratório está há muito
no primeiro plano de sua política, como explana Marcos Strecker. To-
dos os líderes políticos, dos socialistas à direita, incorporaram à sua
plataforma política a crítica aos imigrantes.
Chirac declarou que o trabalhador francês não podia suportar o
cheiro dos estrangeiros. Edith Cresson, que foi primeira-ministra, res-
suscitou os vôos charter de Chirac e Pasqua, de 1986, para expulsar
os clandestinos. Giscard D’Estaing declarou que o país enfrenta uma
invasão. Mitterrand considera que o limite da tolerância foi atingido.
Tudo isso, acrescenta Strecker, apesar das estatísticas não indicarem
aumento no número de estrangeiros na França. Havia 3,6 milhões em
julho de 1991, contra 3,7 milhões no mesmo período de 1982. A úni-
187
WLADIMIR POMAR
ca coisa que realmente mudou foi a origem dos imigrantes. Agora eles
vêm mais das ex-colônias do norte da África, Turquia, África negra e
sudeste asiático.
Mas os gritos, as ameaças e os ataques aos estrangeiros, migran-
tes ou não, para camuflar as causas reais do desemprego e do aumento
da miséria de massa, não acontecem só na França. Na Alemanha su-
cederam-se diversos atentados e incêndios a residências e albergues
de turcos, vietnamitas e africanos. O slogan mais difundido é “A Ale-
manha para os alemães”. Na Inglaterra, hooligans e skinheads têm como
seu alvo preferido os hindus, paquistaneses e africanos, acusados de
roubarem os empregos, as moradias e as mulheres, que deveriam ser
privativos dos habitantes da ilha britânica. A Espanha, como Portugal,
expulsa dos próprios aeroportos de entrada os latino-americanos das
ex-colônias, sobre os quais recai a suspeita de busca de trabalho ou
prostituição.
Não é por acaso que a transformação da Comunidade Européia
e da América do Norte em fortalezas, bem provisionadas e protegidas
por maciças muralhas e fossos, contra aqueles que não fazem parte de-
las, toma corpo a cada dia que passa, embora Dahrendorf, assim como
Thurow, considerassem que essa situação não deveria acontecer. No
entanto, como constata Chomsky, talvez o primeiro mundo tenha
diante de si muito poucas alternativas em relação aos terceiro e quarto
mundos: ou empreendem programas construtivos, como querem os li-
berais humanistas, ou deixam que os pobres não meritórios afundem
em sua miséria, como querem os conservadores.
Em qualquer dos dois casos, porém, o mundo rico parece impo-
tente para reverter o aprofundamento da miséria e da degradação dos
pobres e sua compulsão a fazer como os insetos diante da luz. Milhões
de pobres continuarão tentando voar para a luz da riqueza capitalista,
por mais embaçada que ela se encontre pela recessão e por sua própria
miséria de massa. Ao chocar-se contra as proteções que os impedem
de alcançar o brilho almejado, poderão debater-se em convulsões de
toda ordem.
Nessas condições, os soldados europeus poderão ver-se na con-
tingência de enfrentar conflitos fora de seus territórios, mas que dizem
respeito aos interesses globais da Comunidade Européia e à manuten-
188
A ILUSÃO DOS INOCENTES
ção de sua fortaleza, independentemente dos interesses dos Estados
Unidos. Permanece, apesar de tudo, a incógnita do urso russo. A Rússia
continua sendo, embora em decadência, uma potência militar nuclear.
Suas dificuldades internas a impedem de vôos mais altos no momento,
mas nem por isso seu ministro da Defesa deixou de advertir que a in-
tervenção de tropas estrangeiras em países adjacentes à Rússia seria
considerada uma ameaça militar. Em outras palavras, apesar de suas
fraquezas atuais, a Rússia considera todas as repúblicas da ex-URSS
como partes de sua esfera de interesses.
Pode ser que isso não passe de nostalgia da época em que a União
Soviética tinha capacidade para contrapor-se às ações militares dos
Estados Unidos. Afinal, ainda não está claro o futuro da Rússia e de-
mais repúblicas daquela parte do mundo. Os mais pessimistas pen-
sam que elas deverão engrossar o rol dos países do terceiro mundo.
Mas a Rússia, e também a Ucrânia, possuem um grande potencial eco-
nômico e, eventualmente, podem emergir da crise numa condição di-
ferente. A escala da indústria armamentista da Rússia está permitindo
que ela use a venda de armas no mercado mundial como fonte de fi-
nanciamento para a sua reconversão. Isso tem contribuído para acele-
rar a corrida aos armamentos convencionais e posicionar a Rússia no
mercado mundial, como grande fabricante e exportadora de material
bélico, ferindo os interesses dos Estados Unidos, França, Inglaterra e
Alemanha nessa área.
Mais cedo ou mais tarde, a Europa unida do ocidente terá que
decidir se inclui ou não a Rússia, Ucrânia e Belaraus, além dos anti-
gos países socialistas da Europa central, numa nova Casa da Europa.
Um quadro como este pode desbalancear totalmente o atual equilíbrio
de forças, relegando os Estados Unidos a potência secundária, não só
econômica, mas até mesmo militar. A esperança de Eagleburguêr, de
que a nova ordem mundial se basearia numa nova espécie de invenção
diplomática, segundo a qual os Estados Unidos manteriam a ordem
mediante intervenções militares, e os outros pagariam a conta, pode
sofrer contratempos inesperados.
Além da evolução futura do leste da Europa, também não estão
claros os caminhos que o Japão e os demais países asiáticos de indus-
trialização recente devem seguir nessa nova ordem mundial. O Japão
189
WLADIMIR POMAR
possui um contencioso comercial e financeiro com os Estados Unidos
de difícil solução. A política de dumping das corporações japonesas ten-
de a acirrar as disputas econômicas regionais e mundiais e tem levado
ao surgimento de vozes dentro do país que pretendem vê-lo com maior
capacidade militar para enfrentar imprevistos. De qualquer modo,
também por aí os Estados Unidos não encontrarão um terreno comple-
tamente favorável para desenvolver tranqüilamente sua estratégia de
protetor exclusivo.
Entretanto, mesmo a curto prazo os Estados Unidos não estão
conseguindo desempenhar satisfatoriamente seu pretendido papel.
Segundo relatório da ONU, 48 países vivem conflitos étnicos de en-
vergadura variável. A ONU se encontra presente em vários deles, com
tropas de diferentes países, mas essa ação tem fornecido resultados
polêmicos e escassos. No caso da Somália, em que os Estados Unidos
agiram unilateralmente, só depois sendo secundados por contingen-
tes sob o comando da ONU, a intervenção quase se transformou num
genocídio, pior do que a guerra civil que pretensamente procurara
estancar. Não foram poucas as dificuldades, mesmo para uma saída
honrosa da região.
Embora em algumas partes do mundo os processos de guerra
civil em curso tenham se transformado, apesar das dificuldades, em
processo de negociações para chegar à paz (El Salvador, Camboja,
África do Sul, Palestina), em outras as negociações fracassaram (An-
gola, Afeganistão, Bósnia). Tomaram-se lutas fratricidas sangrentas e
destruidoras, que tendem a chegar à paz pela exaustão. Há, igualmen-
te, pelo menos 11 áreas críticas onde explodiram ou podem explodir
conflitos étnicos e religiosos de gravidade: Kosovo, Macedônia, Egito,
Ucrânia, Geórgia, Armênia, Iraque, Tajiquistão, Rússia e índia. A maio-
ria dessas áreas encontra-se na Europa ou na Ásia Central que a cerca.
Os programas construtivos, de que fala Chomsky, poderiam
eventualmente diluir os focos de tensão e criar uma duradoura situ-
ação de distensão internacional. Afinal de contas, menos de 20% da
população do planeta situada no mundo rico, consome 80% de tudo
aquilo que é produzido pelo conjunto da humanidade. Não seria nada
demais que esse consumo fosse parcialmente redistribuído, contri-
buindo para que os 80% da população mundial tivesse algo mais do
190
A ILUSÃO DOS INOCENTES
que sobras e migalhas. Mas aqueles programas têm somado alguma
coisa em torno de 40 bilhões de dólares anuais. Desse total, 10% têm
se destinado à saúde, saneamento, planejamento familiar e educação.
A parte principal, englobando 90%, é gasta no pagamento da dívida
externa e em despesas militares.
Não deve causar estranheza, portanto, conforme constata a Uni-
cef, que 13 milhões de crianças morram anualmente em virtude de
doenças simples como pneumonia, diarréia e sarampo, cuja causa bá-
sica é a desnutrição, ou melhor, a fome. Provavelmente, 25 bilhões de
dólares anuais fossem suficientes para impedir essa situação. Seria
um montante inferior ao que os europeus gastam anualmente em ci-
garros, os japoneses em entretenimentos e os americanos em cerveja.
Nos países em desenvolvimento, as taxas de mortalidade infantil são
dez vezes maiores do que as das nações desenvolvidas.
O aumento da miséria de massa, tanto nos países desenvolvidos,
quanto no resto do mundo, aliado às pressões migratórias, em corrom-
pido de forma irremediável o tecido social de todas as sociedades ca-
pitalistas. Tem feito ressurgir, com muita força, não só as lutas de clas-
se dos trabalhadores, mas igualmente as lutas dos demais segmentos
oprimidos da sociedade. E tem estimulado a eclosão de distúrbios e
conflitos raciais e a expansão do banditismo, em suas mais diferen-
tes modalidades. Nos Estados Unidos, o próprio Fukuyama reconhece
que os conflitos latentes ou abertos entre negros, hispânicos, asiáticos
e anglo-saxões tornaram-se, muito provavelmente, o problema social
mais sério daquele país.
O badernaço de Los Angeles e de diversas outras cidades ameri-
canas, porém, colocou à mostra muito mais do que o ódio racial que
impregna diversos segmentos da sociedade norte-americana. Mostrou
que há uma crise extremamente profunda, expressa entre outras coi-
sas no fato de que uma cidade como Nova York colocou fora de funcio-
namento 1/4 das luzes urbanas, fechou asilos para pessoas sem casa,
cerrou as piscinas dos bairros pobres e os hospitais do Harlem e des-
pediu 10% dos professores.
Mais cruamente dos que os filmes, exibiu a extensão das gangues
organizadas que dominam e aterrorizam bairros inteiros. E, melhor do
que mil palavras, destampou de vez a lona que cobria o mar de pobreza
191
WLADIMIR POMAR
e miséria que afoga mais de 30 milhões de americanos e é a princi-
pal fonte de violência que marca aquela sociedade. Nela, a violência
transformou-se num fato corriqueiro, que a polícia institucionalizou
como forma de tratamento a qualquer ato que considere transgressão
à ordem e à autoridade.
A conjugação desses fatores, numa sociedade de cidadãos arma-
dos, só pode resultar num crescimento inusitado dos assassinatos por
razões fúteis e em explosões de violência irracional.
A Europa, por seu turno, vem enfrentando greves e manifesta-
ções operárias e populares cada vez mais selvagens, à medida que pre-
tende resolver a crise por meio de maior desemprego e menos seguri-
dade social. Além disso, não escapa das constantes ações incendiárias
dos neo-nazistas, do vandalismo dos hooligans, do crescente tráfico de
drogas e também do banditismo, que encontram na juventude desem-
pregada e sem perspectiva do futuro o material humano mais facil-
mente cooptável. Essa situação é mais grave e mais caótica nos países
orientais da Europa, mas é igualmente verdadeira nas regiões ociden-
tais, mais ricas e afluentes. No leste europeu, as mulheres têm sido jo-
gadas mais rapidamente no desemprego do que os homens e privadas
de uma série de garantias. O acesso a creches, divórcio, aborto, contro-
le da natalidade e amparo às mães solteiras simplesmente desapare-
ceu. As creches foram desativadas ou privatizadas, o aborto tornou-se
uma opção cara e as mães solteiras voltaram a ser discriminadas.
Entretanto, é no terceiro e quarto mundos onde a desagregação
social, as lutas selvagens e o banditismo vêm explodindo de forma
mais intensa. A escravidão tem ressurgido sob novas formas, tanto nas
zonas urbanas quanto rurais, particularmente sob o manto de dívidas
contraídas. Na Tailândia, do mesmo modo que no Nordeste brasilei-
ro, o negócio do sexo envolve mais de um milhão de mulheres, grande
parte das quais crianças e adolescentes. É comum a venda de meninas
de 10 anos para os prostíbulos e o rapto e seqüestro de crianças birma-
nesas e de outros países do sudeste asiático para trabalhar na Tailân-
dia. O Japão se tornou, igualmente, um poderoso importador de jovens
para a escravidão sexual, controlada pela Yazuka e outras máfias.
O trabalho infantil voltou a ser explorado tanto ou mais do que
nos velhos tempos de Charles Dickens. A prostituição de crianças não é
192
A ILUSÃO DOS INOCENTES
um privilégio da Tailândia e do Brasil; é encontrada em qualquer gran-
de cidade dos terceiro e quarto mundos. Na índia, estima-se que 55
milhões de crianças trabalham em condições que se aproximam da
servidão, em garagens e fábricas de tapetes, fósforo e fogos de artifício.
No Peru, mais de sete mil crianças trabalham nos garimpos de ouro
de Madre de Dios, onde foram encontrados 71 cemitérios com ossadas
de meninos escravos. No Sudão, África Ocidental, Paquistão, Turquia,
Bangladesh, Colômbia, Brasil e em quase todos os países que com-
põem o mundo subdesenvolvido e em desenvolvimento, a exploração
escrava do trabalho infantil é uma realidade. Mas na Itália do primei-
ro mundo, meio milhão de crianças são empregadas nos arredores de
Nápoles, para fabricar sapatos femininos. Em praticamente todos os
países que não fazem parte do primeiro mundo, o banditismo funciona
como verdadeiro redistribuidor de renda, permitindo a sobrevivência
de alguns setores da população, através da mão armada, e a opulência
de outros, por meio da corrupção. Esse banditismo cerca a sociedade
pelas duas pontas. Penetra nas forças de segurança, no judiciário, no
aparelho executivo e legislativo do Estado e nos meios empresariais.
Interpenetra-se através do tráfico de drogas, da prostituição, do con-
trabando e dos serviços de proteção. O Estado, em especial, converteu-
-se em arena privilegiada de pilhagem. Somas bilionárias dos cofres
públicos, que deveriam ser investidas nas áreas sociais e nos sistemas
produtivos, são desviadas por quadrilhas de assaltantes, muitas das
quais de colarinho-branco.
Enquanto o banditismo de pé-de-chinelo é combatido a ferro e
fogo (a polícia, em geral, primeiro atira para depois perguntar), o ban-
ditismo de colarinho-branco só a muito custo e sob muita pressão po-
pular sofre algum tipo de penalidade. Os escândalos que explodiram
na Itália e no Brasil, envolvendo desde primeiros-ministros e presi-
dentes, passando por juízes e parlamentares, até mafiosos dos mais
diferentes calibres, é uma demonstração cabal daquela interpretação e
da profundidade a que chegou essa chaga social. E também, com certa
exceção italiana, da impunidade que grassa na maioria dos países. A
mesma impunidade e a mesma selvageria que ocorre na Rússia, ago-
ra convertida à economia capitalista de mercado. Segundo Horencia
Costa, os homens de negócio desse país apelam cada mais para armas
193
WLADIMIR POMAR
pesadas, como forma de resolver suas pendências financeiras, apro-
ximando-os intimamente das poderosas máfias que atuam em todo
o território da república. As autoridades do Ministério do Interior re-
conhecem que está ocorrendo uma verdadeira explosão da criminali-
dade organizada. Boa parte dos 1.500 bancos comerciais que operam
na Rússia são controlados por grupos criminosos. A única vantagem
é que, por acordo entre eles, não existem roubos a bancos nesse país.
Essa barbarização das relações sociais se expande por pratica-
mente todos os países do mundo, como contraface aos aspectos pro-
gressistas do capitalismo. Reflete-se na política, pondo em risco as
conquistas democráticas do passado e o próprio dumping recente de
democracia, patrocinado pelos Estados Unidos e pela Europa em di-
versas regiões do planeta. Aliás, Gorender já havia notado que não é a
primeira vez neste século que os países capitalistas centrais utilizam
a bandeira da democracia como poderoso instrumento de luta ideoló-
gica, política e até militar. Durante a Segunda Guerra Mundial, lembra
ele, os países capitalistas democráticos fizeram de seus regimes políti-
cos uma bandeira ideológica para a mobilização dos próprios povos e
dos aliados contra o nazismo.
A utilização da mesma bandeira para mobilizar os povos dos paí-
ses socialistas do Leste mostrou-se de uma eficácia tremenda, desper-
tando esperanças, reavivando expectativas de conquista da liberdade
e da cidadania e mobilizando milhões de pessoas para derrubar aque-
les regimes autoritários. No entanto, muito rapidamente, as perspec-
tivas de regimes democráticos de ampla participação popular foram
minguando, pela ação das lideranças liberais que assumiram a dire-
ção do processo democratizante.
Como nos processos de dumping econômico, tão logo derrotado
o concorrente passa a vigorar o preço real do vencedor. Nas democra-
cias conquistadas do Leste, passou a vigorar não a democracia que as
populações sonharam durante suas manifestações massivas e suas
assembléias de soberania direta, mas a democracia liberal represen-
tativa, com todas as suas limitações, impedimentos e exclusões.
Até isso, hoje, corre o risco de ser perdido. Com certeza, as opi-
niões a respeito não são necessariamente homogêneas. Glotz enxer-
ga pelo menos duas ameaças à incipiente democratização da Europa
194
A ILUSÃO DOS INOCENTES
oriental: o despontar de um novo nacionalismo na Europa, resultado
do processo de balcanização que ela enfrenta, e a ascensão de forças
populares de direita que tentam resistir à integração européia. É pre-
ciso não esquecer, igualmente, os esforços constantemente renovados
de realizar caça às bruxas, seja por forte espírito de vingança contra
ex-dirigentes comunistas, seja para impedir que os partidos comunis-
tas, operários ou socialistas venham a conquistar novamente o poder,
desta vez por meios eleitorais. Esses partidos, em geral reciclados,
continuam a ter certa influência social e já demonstraram força eleito-
ral em diferentes ocasiões após a derrocada socialista.
Dahrenfort também vê com muita preocupação a ascensão do an-
ti-semitismo e de um nacionalismo que pouco tem a ver com a nação-
-estado e muito com a homogeneidade étnica e com ressentimentos
daqueles que são diferentes. Mas ele não descarta os perigos embu-
tidos no colapso do centro político, que teria atingido proporções que
tornariam difícil a qualquer pessoa ou grupo manter as coisas coesas
para gerar reforma efetiva. Por isso, ele não supõe que a democracia,
no sentido de pedir às pessoas que decidam, possa preencher o vácuo
criado pelo colapso do centro. As boas intenções democráticas só po-
deriam mesmo resultar no retorno das velhas rivalidades nacionais,
étnicas e religiosas. Para ele, a ilusão democrática de que há essa coisa
de governo pelo povo sempre foi um convite a usurpadores e a novos
monopólios. A democracia seria apenas uma forma de governo, não
um banho de vapor de sentimentos populares.
A franqueza de Dahrendorf pelo menos coloca no terreno da re-
alidade o sentido da democracia implantada no leste europeu e que é,
de certo modo, a que vigora de forma mais desenvolvida, no resto do
mundo capitalista. Nesse mundo, como diz Lima de Arruda, a grande
maioria da população não prova sequer o gostinho das migalhas da
cidadania, ainda mais onde os governos não planejam a ampliação das
cidades e, com isso, potencializam os conflitos. Coutinho explica que a
multiplicação, no capitalismo, de associações particulares, coagulan-
do interesses setoriais limitados, leva freqüentemente a fenômenos de
corporativismo selvagem, com o conseqüente eclipse da vontade geral.
Ele complementa que a mediação entre os interesses corporati-
vos passa a ser feita pelo mercado, o que consolida a perpetuação da
195
WLADIMIR POMAR
ordem privatista do capitalismo. Se a supressão do pluralismo conduz
ao despotismo totalitário, sua afirmação incontrolada leva ao liberal-
-corporativismo, o qual, em articulação com a burocratização do Esta-
do, é o modo pelo qual a burguesia tenta pôr a seu serviço, ou pelo me-
nos neutralizar, os resultados do processo de socialização da política.
Sem o predomínio da vontade geral do interesse público, o pluralismo
pode ser um óbice à plena afirmação da democracia. Esse processo
de absolutização do pluralismo tem sido permanentemente estimu-
lado nos países capitalistas, como contraposição aos movimentos de
unificação política e participação direta da população nos negócios do
Estado.
Entretanto, até essa tendência ao liberal-corporativismo não está
imune de sofrer retrocessos de sentido totalitário. Thurow atesta que
mercados livres tendem a produzir níveis de desigualdade na distri-
buição de renda, politicamente incompatíveis com um governo demo-
crático. Ele alerta para o fato de que os Estados Unidos estão enfren-
tando uma crescente desigualdade distributiva e uma séria crise de
moradia, com mais de um milhão de sem-teto, e que isso pode ser um
perigo mesmo para a consolidada democracia americana. Imagine-se,
então, o que pode estar produzindo o mercado livre na Rússia e em
outros países menos afortunados, sobre suas incipientes democracias.
Não é por acaso que Kurz vislumbra o retorno feroz do terroris-
mo de Estado como final do capitalismo para salvar-se de catástrofe.
Dahrendorf, porém, considera que será bastante deixar que a onda
da modernidade, mercado, esplendor barato e, tudo o mais, role por
cima da gente. Depois que ela passar, basta trazer novamente a cabeça
para fora d’água. De outra forma, o perigo de um coice de arma, de tipo
fascista, será ainda maior. Bastaria, assim, perseverar nas mudanças
estratégicas neoliberais, adicionando uma pitada de política social às
reformas econômicas, para evitar sofrimentos demasiados.
Dahrendorf não se dá conta de que o perigo do coice de arma, de
tipo fascista, reside justamente nas conseqüências sociais que a onda
de modernidade deve espalhar à sua passagem e que consistem na
barbarização de que falamos. Bobbio lembra que aqueles que se rebe-
laram no leste europeu apelaram precisamente para o reconhecimen-
to dos direitos à liberdade, que são o primeiro requisito da democracia.
196
A ILUSÃO DOS INOCENTES
Não da democracia progressista ou popular, mas precisamente
da democracia que podemos chamar de liberal e que emergiu e se con-
solidou através da conquista lenta e árdua de certas liberdades básicas.
Em particular, das quatro grandes liberdades do homem moderno: 1)
a liberdade individual, ou o direito de não ser preso arbitrariamente e
ser julgado de acordo com as regras penais e judiciais claramente defi-
nidas; 2) a liberdade de imprensa e opinião; 3) a liberdade de reunião;
4) a liberdade de associação, fora da qual sindicatos livres e partidos
não existem. Sem estes, não existe a sociedade pluralista, em cuja au-
sência a democracia será uma ficção.
A barbarização capitalista tende não somente a barrar a amplia-
ção dessa democracia liberal, mas tornar suas migalhas ainda mais
escassas para a maioria da população. Que pobre tem o direito de não
ser preso arbitrariamente e ser julgado de acordo com as regras clara-
mente definidas? Pior, o capital tende a aniquilar aquelas liberdades da
democracia liberal que, mesmo limitadas, se opõem mais firmemente
ao avanço da barbarização. Embora as previsões de Kurz sejam mui-
to imediatistas, a presente barbarização geral da vida social não é um
bom agouro para o futuro.
TIGRES HETERODOXOS
Ao examinar para e por onde caminha o mundo dominado pelo
capital, um mundo no qual o desenvolvimento desigual e contraditório
é a regra e no qual o nivelamento é a exceção que a confirma, seria uma
omissão imperdoável deixar de olhar mais de perto a experiência dos
chamados Tigres Asiáticos, agora acompanhados de alguns novos pa-
íses de industrialização recente. Referimo-nos à Coréia do Sul, Formo-
sa (Taiwan), Hong Kong e Cingapura (os tigres) e Malásia e Tailândia
(industrialização recente).
O que há de diferente nesses países que os destaca das demais
nações do terceiro mundo que ingressaram na via de desenvolvimen-
to capitalista após os anos 60? Em primeiro lugar, o fato incontestável
de que, enquanto os demais, como Brasil, México e índia, entraram na
crise da dívida externa durante os anos 80 e praticamente deixaram de
crescer desde então, aqueles países do Pacífico oriental mantiveram
197
WLADIMIR POMAR
seu crescimento. Mais significativo ainda é o fato de que, enquanto o
mundo capitalista ocidental e o próprio Japão pareciam tragados pela
recessão no início dos anos 90, os antigos e novos tigres asiáticos con-
tinuavam resistindo aos rigores do problema.
Os tigres asiáticos apresentam, em seu processo de desenvolvi-
mento econômico, similitudes e diferenças tanto em relação aos pa-
íses em desenvolvimento do terceiro mundo, quanto em relação aos
países socialistas. Ao contrário dos países em desenvolvimento da
América Latina e da África, por exemplo, mas de forma idêntica aos
países socialistas, eles foram capazes de realizar reformas agrárias.
Através delas, romperam com o predomínio econômico e político dos
tradicionais setores latifundiários, realizaram assentamentos relati-
vamente amplos com agricultores pobres e sem-terra e incentivaram a
produção agrícola por meio de incentivos e outras medidas protetoras.
Por outro lado, seguindo um padrão mais ou menos semelhante
ao de todos os países em desenvolvimento e ao dos países socialistas,
eles adotaram o planejamento como instrumento de orientação e regu-
lação econômica. Ao mesmo tempo, e na mesma linha de semelhança,
estatizaram os setores estratégicos da economia, como energéticos,
química e outros ramos, e intervieram na formação de preços e salá-
rios, muitas vezes tabelando preços em discordância com o mercado.
Os países em desenvolvimento da América Latina e da África uti-
lizaram-se de regimes ditatoriais e de ideologias aparentadas ao na-
cional-populismo para alcançar a coesão nacional e o consenso, sem
os quais os trabalhadores não suportariam passivamente as vicissitu-
des e as agruras de um trabalho duro, cujos benefícios eram prome-
tidos para um futuro indefinido. Os socialistas e os tigres asiáticos se
valeram de regimes idênticos, mas enquanto os primeiros procuraram
impor a ideologia do igualitarismo e do trabalho divinizado, os tigres
encontraram nas suas tradições culturais a ideologia conformista que
lhes possibilitou levar adiante a tarefa da construção econômica.
Blackburn acha que os regimes ditatoriais não representaram
um ingrediente vital na mistura que conduziu os tigres asiáticos ao
sucesso econômico porque o Japão, que foi o modelo seguido por eles,
respeitou as normas democrático-burguesas. Isso tem uma certa dose
de verdade, embora Carson, que é um liberal, considere o regime polí-
198
A ILUSÃO DOS INOCENTES
tico japonês simplesmente despótico. Será útil, então, acrescentar que
essa democracia burguesa japonesa estabeleceu um sistema eleitoral
que permitiu o monopólio de um partido, o PLD, por 38 anos. A rigor,
as quatro liberdades formais exigidas por Bobbio para a democracia
liberal estavam razoavelmente presentes no sistema nipônico. Mas, o
controle do PLD sobre a economia, a sociedade e a política era de tal
ordem que havia quase uma simbiose entre ele, o Estado e as corpora-
ções capitalistas, idêntica à simbiose existente no socialismo soviético.
De qualquer modo, Blackburn tem razão quando sugere que se
procure na exploração das condições históricas abertas pelo Ociden-
te o principal ingrediente do sucesso das economias daqueles países
asiáticos. Os Estados Unidos, em particular, realizaram investimentos,
forneceram créditos e abriram seus mercados de consumo à produção
dessas nações. Pouco importava para os americanos, naquela ocasião,
que os tigres asiáticos praticassem uma economia dirigida de merca-
do, que pouco tinha a ver com o tipo de mercado dos países capitalistas
ocidentais. O que lhes interessava, realmente, é que aquelas nações er-
guessem barreiras efetivas à expansão socialista na Ásia. Em função
disso, foram os próprios americanos que impuseram a reforma agrá-
ria ao Japão e induziram os demais a seguir o mesmo exemplo.
Da mesma forma que os países socialistas, os tigres asiáticos de-
senvolveram esforços consistentes para conquistar a colaboração dos
trabalhadores no crescimento produtivo. Enquanto os socialistas em-
pregavam a emulação, premiando e dando destaque àqueles que mais
trabalhavam, os tigres seguiram a experiência japonesa na organiza-
ção de círculos de controle da qualidade e outras formas relativamen-
te participativas no andamento da produção. Não há dúvida de que os
tigres levaram uma nítida vantagem sobre os socialistas, adaptando-
-se melhor ao desenvolvimento das forças produtivas modernas, que
exigem um poder de decisão e participação mais intenso dos operários
de base da produção.
Há, por outro lado, uma nítida diferença entre os tigres asiáticos e
os demais países em desenvolvimento quanto ao tratamento dispensa-
do aos mercados interno e externo. Países em desenvolvimento como
Brasil, México e outros ingressaram na industrialização realizando
aquilo que se convencionou chamar de substituição das importações.
199
WLADIMIR POMAR
Somente com a crise da dívida externa essas nações voltaram-se forte-
mente para as exportações, mas mesmo assim de forma relativamen-
te atabalhoada e sem uma estratégia definida. Os tigres, ao contrário,
desde o início praticaram políticas de reserva de mercado interno para
diversos ramos industriais prioritários, particularmente de bens de
consumo, exigindo em contrapartida que tais ramos operassem em
bases competitivas no mercado internacional. Desse modo, em vez da
reserva de mercado funcionar como amortecedor para o desenvolvi-
mento tecnológico e a produtividade, indispensáveis para a concor-
rência internacional, ela funcionou como alavanca.
Essa política também distingue os tigres asiáticos do socialismo
soviético. Este não só ficou voltado quase exclusivamente para o mer-
cado interno, como deu prioridade absoluta às indústrias de bens de
produção. A comercialização era um aspecto meramente supérfluo na
economia de tipo soviético, gerando um completo desprezo pelas tec-
nologias de produto e pelo controle de qualidade. Nessas condições,
quando o socialismo soviético foi obrigado, pelas circunstâncias, a in-
gressar no mercado internacional, a grande maioria de seus produtos,
mesmo cotados a preços inferiores, tinha muito pequeno poder com-
petitivo.
Comparativamente aos socialistas, os tigres asiáticos construí-
ram sociedades bem menos igualitárias. Entretanto, compara dos aos
demais países em desenvolvimento, as diferenças entre riqueza e po-
breza são muito menos gritantes. Os tigres podem até aparentar um
igualitarismo pouco comum no mundo capitalista de hoje. A relação
entre os segmentos mais ricos e mais pobres chega a ser menor do que
na Suécia e no Japão, demonstrando que a selvageria econômica não
precisa ser um componente indispensável para o desenvolvimento ca-
pitalista, mesmo tardio.
Apesar dessas vantagens todas, os tigres asiáticos não parecem
completamente imunes aos distúrbios do mercado mundial capitalis-
ta. Está findando a era em que podiam aproveitar-se sem restrições
do mercado americano, tanto para colocar suas mercadorias, quan-
to para obter as tecnologias de ponta indispensáveis para continuar
avançando em produtividade. As medidas protecionistas dos Estados
Unidos colocarão empecilhos, mais cedo ou mais tarde, às exportações
200
A ILUSÃO DOS INOCENTES
de mercadorias e às importações de tecnologias e capitais praticadas
pelos tigres. O comércio de tecnologias, em especial, vem se trans-
formando num ingrediente essencial da estratégia das corporações
americanas para melhorar sua rentabilidade, havendo uma tendência
generalizada para o uso de franquias com a cobrança de royalties mais
elevados.
As exportações para a Europa tendem, igualmente, a enfren-
tar crescentes dificuldades. A organização da Comunidade Européia
como bloco unificado de comércio, que privilegia as mercadorias de
seus membros, imporá cada vez maiores restrições às mercadorias de
fora do bloco. Resta a esperança de que o Japão possa se transformar
no que Thurow chama de importador líquido. Mas essa possibilidade
não tem combinado com as práticas comerciais japonesas, mesmo em
relação a seus vizinhos. Tanto a Europa quanto o Japão são, por outro
lado, concorrentes aguerridos dos tigres asiáticos no mercado interna-
cional e não devem facilitar as coisas para eles, fornecendo-lhes tecno-
logias a custos mais baixos.
Essas dificuldades estão empurrando as empresas dos tigres asi-
áticos para a corrida de corte de custos, primeiro através de cortes nos
salários. Seguindo a trilha de muitas firmas japonesas e americanas,
elas estão transferindo suas plantas industriais para países que ofere-
cem mão-de-obra mais barata, inclusive a China, de modo a garantir
a competitividade de seus produtos, enquanto não encontram uma so-
lução para os impasses tecnológicos que enfrentam. A Coréia do Sul,
entre todos eles, era o que conseguia resistir melhor a essa contingên-
cia, beneficiando-se de haver investido pesadamente em pesquisa e
desenvolvimento. Mas, mesmo as suas firmas estão tratando de pre-
caver-se contra os tempos difíceis e transferindo-se para o exterior.
As gigantes Samsung e Hyundai, por exemplo, já estão implantando
fábricas no Brasil.
A situação de Hong Kong é sui generis. Em 1997 deve voltar a in-
tegrar a China e, obedecido o protocolo acordado entre esta e a Ingla-
terra, manterá seu status capitalista, pelo menos por 50 anos. O estrei-
tamento das relações com o mercado chinês, facilitado pelas reformas
e a abertura econômica do dragão asiático, tem lhe permitido apro-
veitar-se de forma privilegiada do florescente mercado interno chinês
201
WLADIMIR POMAR
que, com mais de um bilhão de habitantes, parece inesgotável. Eviden-
temente, essa situação dependerá, em grande parte, da capacidade da
China para manter seus ritmos de crescimento econômico, mesmo em
meio à recessão mundial. De qualquer maneira, durante algum tempo
Hong Kong deverá ser, entre os tigres asiáticos, aquele em melhores
condições de manter o título.
SOCIALISMO SOBRANTE
A onda avassaladora que varreu o socialismo europeu só deixou
destroços naquilo que antes se apresentava como o futuro da huma-
nidade. Era natural, portanto, aceitar como coisa certa o fim do socia-
lismo, conforme anunciado em todos os quadrantes. Aguardava-se,
apenas, a queda inevitável dos últimos regimes que ainda teimavam
em denominar-se como tais — Cuba, Coréia do Norte, Vietnã e China.
Dar-se-ia então por encerrada essa curta e, para alguns, inexpressiva
aventura da história humana. Paradoxalmente, o socialismo dessas
nações, embora sofrendo restrições e desqualificações à direita e à es-
querda, parece haver resistido aos ventos mais destrutivos. E realiza
adaptações e reformas que o conduzem para desenvolvimentos polê-
micos e imprevisíveis.
Cuba é, provavelmente, o país que parece enfrentar as maiores
dificuldades. A economia cubana ficou atrelada, durante muitos anos,
à economia do leste europeu.
Dependia de seu comércio externo com o Comecon, do qual fazia
parte, comércio que tinha como principal base de troca o açúcar de
cana. Pressionada pelo bloqueio norte-americano e enquadrada, em
parte, pelas próprias concepções predominantes no campo socialista
soviético a respeito da transição socialista e da competição internacio-
nal, Cuba acabou seguindo o padrão geral da divisão internacional do
trabalho desse campo. Não teve condições, dessa maneira, de romper
com sua matriz produtiva baseada na cana-de-açúcar, nem dar um
salto significativo no desenvolvimento de suas forças produtivas.
Cuba também seguiu o modelo soviético de estatização completa
da propriedade, inclusive agrícola e comercial, mas não chegou a in-
gressar num processo de industrialização acelerada. Sua escassez em
202
A ILUSÃO DOS INOCENTES
recursos naturais e fontes energéticas permitiu a ela escapar de alguns
dos impasses fatais que o socialismo do leste europeu encontrou pela
frente com suas grandes unidades produtivas de bens de produção.
Inteligentemente, Cuba preferiu concentrar-se em algumas áreas
onde poderia apresentar uma nítida vantagem comparativa em rela-
ção a outros países, como a produção de fármacos para o tratamento
de doenças tropicais e diversas outras especialidades na área médica e
de saúde. Mesmo assim, a falta de um intercâmbio internacional mais
intenso, comercial e tecnológico, impediu que Cuba desenvolvesse
melhor essas áreas e conquistasse posições no mercado mundial que
poderiam ter lhe facilitado o enfrentamento das dificuldades futuras.
Cuba parece, ainda, haver iniciado tarde seus movimentos de
adaptação à nova situação. Mesmo antes da perestroika de Gorbachev
já havia sinais das dificuldades que a economia soviética enfrentava.
A perestroika e a acelerada desorganização econômica que ela causou,
sem colocar nada em seu lugar, deveriam ter alertado as lideranças
cubanas para a adoção de medidas mais rápidas de adaptação. En-
tretanto, foi somente após o colapso do Europa oriental e diante das
evidentes pressões soviéticas para aderir ao mesmo processo, que
aquelas lideranças foram levadas a preocupar-se seriamente em ado-
tar medidas que possibilitassem ao país resistir às intempéries que
haviam se materializado rapidamente.
A ex-União Soviética, ainda em 1991, fornecia 66,2% dos produ-
tos importados por Cuba e consumia 80,5% do que esse país exporta-
va. É verdade que a maior parte dos volumes exportados e importados
era constituída pelo açúcar e por petróleo. Em 1990, a ex-URSS forne-
ceu 13 milhões de toneladas de petróleo, mas em 1991 esses números
caíram bruscamente para oito milhões e, em 1992, para três milhões
de toneladas. Ao mesmo tempo, a Rússia e outras repúblicas da nova
Comunidade de Estados Independentes, que continuaram a manter
laços de comércio com Cuba, abandonaram todos os itens que permi-
tiam qualquer tipo de privilégio aos cubanos, em matéria de preços e
prazos. O petróleo fornecido a Cuba e o açúcar a ela comprado passa-
ram a ser cotados pelos preços do mercado internacional. Desse modo,
Cuba só recebeu metade do preço contratado pelas quatro milhões de
toneladas exportadas para a ex-União Soviética, em 1991.
203
WLADIMIR POMAR
A brusca mudança nas regras do jogo de comércio com seus an-
tigos parceiros resultou em transtornos graves à economia cubana.
Houve um quebra de 35% nas atividades econômicas após 1989. O
crescimento do produto nacional líquido, que fora de 4,6% durante a
década de 80, caiu para 1,0% em 1990. A carência de combustíveis,
matérias-primas e peças sobressalentes afetou o funcionamento das
usinas, dos transportes, da colheita mecanizada de cana e da produ-
ção da indústria leve. O país ingressou rapidamente numa situação de
escassez excepcional. Houve desabastecimento, fechamento de em-
presas, a indústria passou a funcionar de modo descontinuo, alastrou-
-se a falta de ocupação, um eufemismo para o desemprego, e o produto
nacional global caiu 40% em 1992.
Paralelamente, cresceu o mercado clandestino e a economia sub-
terrânea, aumentou a concentração monetária, ocorreu matança ilegal
de gado e foram afetados a saúde, a educação e os esportes, áreas a
que Cuba dedicava atenção prioritária. As exportações, cuja média nos
anos 80 situara-se em torno de oito bilhões de dólares, caíram para 2,2
bilhões em 1992. Para complicar, Cuba foi particularmente maltratada
pela Tormenta do Século, catástrofe natural que lhe causou um prejuí-
zo de um bilhão de dólares e afetou a safra açucareira em mais de 40%.
Além disso, uma epidemia de neuropatia impôs ao governo despesas
de mais de 50 milhões de dólares e dispersão nos seus esforços para
vencer a crise.
O governo viu-se obrigado a transferir milhares de cidadãos para
os trabalhos agrícolas, com o objetivo de semear todo tipo de comestí-
veis, em todos os lugares possíveis, de modo a garantir a alimentação
da população. Ao mesmo tempo, foi adotada uma série de medidas no
sentido de abrir mais o país para o exterior, estimulando o aumento
da produção de mercadorias exportáveis e permitindo o ingresso de
capitais estrangeiros, principalmente nas áreas de turismo e petróleo.
Tem havido um esforço considerável para ampliar o número de novos
parceiros comerciais e intensificar a produção nas áreas de biotecno-
logia, petróleo, níquel e açúcar. Mais recentemente, além de legalizar
o trabalho dos artesãos do mercado informal, o governo permitiu o co-
mércio com dólares, a fim de melhorar a captação de divisas fortes,
indispensáveis para o incremento do comércio internacional do país.
204
A ILUSÃO DOS INOCENTES
Apesar desses esforços de adaptação ao quadro mundial de de-
fensiva do socialismo, Cuba ainda parece tatear as medidas de refor-
ma de seu sistema. Com muita relutância, e somente dentro das con-
tingências do que chamam “período especial”, as lideranças cubanas
têm permitido, paulatinamente, a convivência de setores da pequena
produção e troca mercantil e de setores capitalistas ao lado de setores
socialistas. A contragosto e a conta gotas, estão abrindo a possibilidade
de existência da propriedade e da ação privada de pequenos lavrado-
res, de mercados livres camponeses e de negócios privados nas áreas
de comércio, serviços e indústria de importância secundária. Pare-
cem não aceitar e não concordar que essa seja a tendência principal da
transição socialista em países pobres, em particular após a fracassada
experiência do socialismo soviético.
No terreno político, ocorreram igualmente algumas reformas que
pretendem ampliar a participação popular no parlamento e no próprio
partido comunista. Os deputados à assembléia nacional serão eleitos
diretamente por sufrágio universal e voto secreto, e não mais indire-
tamente. Pessoas que tenham crenças religiosas poderão ingressar no
partido comunista. Houve uma ampla reestruturação do partido e do
Estado cubanos no sentido de reduzir as suas instâncias e funcioná-
rios burocráticos e liberar mais quadros para as atividades produtivas.
Continua a vigorar, porém, o regime de partido único, não sendo admi-
tida mesmo a existência de uma oposição socialista ou democrática.
Cuba atravessa, assim, tempos muito difíceis. Apesar das me-
didas econômicas e políticas adotadas, os resultados ainda são ale-
atórios. Alguns subprodutos são, inclusive, muito problemáticos. A
expansão do turismo estrangeiro, aliada às dificuldades enfrentadas
pela população, tem gerado manifestações de corrupção, prostituição
e delinqüência. O setor informal da economia também tem se expan-
dido, embora arriscado a sofrer sanções e repressões. De qualquer
modo, além de ter que definir melhor sua estratégia de reformas, Cuba
enfrenta um problema de tempo, para fazê-las vingar e evitar um co-
lapso semelhante a muitos países do leste europeu.
É certo que, ao contrário daqueles países, Cuba conta com uma
coesão nacional e social que representa um ingrediente ideológico
fundamental na manutenção de seu socialismo. A grande maioria de
205
WLADIMIR POMAR
sua população não pretende ter o retorno da máfia que dominava e di-
rigia o país antes da revolução, e que agora está refugiada em Miami.
Nem quer voltar, igualmente, a ser um simples quintal dos Estados
Unidos. Além disso, os cubanos não estão dispostos a desistir de seu
sistema de educação e saúde, que escolariza 80% dos jovens entre 12 e
17 anos, propicia ensino universitário a 20% dos que concluem os es-
tudos secundários (taxa tão elevada quanto as do primeiro mundo), fez
baixar a mortalidade infantil para 13 por mil nascituros (era de 42,5
por mil em 1970) e elevou a expectativa de vida de 69,6 anos em 1970
para 76 anos em 1990.
Mesmo assim, há limites para a resistência à escassez em perío-
dos de paz. Na guerra, a escassez e a fome são suportadas até limites
impensáveis, pela imposição de leis férreas que permitem pouquíssi-
mas opções. Na paz, porém, alguns poucos anos de escassez, por moti-
vos de ordem política, podem abrir um leque muito grande de possibi-
lidades, mesmo que isso represente eventualmente a perda do orgulho
nacional.
A coesão social e nacional, que os albaneses haviam demons-
trado na luta contra a dominação turca e, depois, contra os italianos e
alemães, durante a Segunda Guerra mundial, desmoronou diante das
sobras de comida que vislumbraram conseguir, ao assistir na televisão
a opulência da vizinha Itália. A avidez dos alemães orientais pelos pro-
dutos da irmã ocidental e a dos soviéticos, búlgaros e romenos, pelos
produtos americanos, refletem, em escala menor, a mesma problemá-
tica.
Nessas condições, Cuba pode ver-se diante da necessidade de
acelerar suas reformas econômicas e sua abertura ao exterior. Sem
conseguir abrir os gargalos da escassez, será difícil evitar a desagre-
gação ideológica e política. Isso seria fatal para a sobrevivência do
socialismo na Ilha do Caribe. E, também, para o prosseguimento de
reformas que pudessem consolidar tanto uma linha de socialização
econômica mais equilibrada, quanto de socialização da política, por
meio de uma democratização mais ampla.
Situação idêntica vive a Coréia do Norte, apesar de sua proximi-
dade com a zona do mundo que mantém a maior vitalidade econômi-
ca da atualidade. Embora não tenha embarcado numa industrializa-
206
A ILUSÃO DOS INOCENTES
ção de tipo soviético, a Coréia do Norte procurou seguir, na medida
de suas possibilidades, o modelo soviético de construção socialista.
Apesar dos laços criados com os chineses, que os apoiaram, com envio
de voluntários, na guerra contra a Coréia do Sul e uma coligação de
forças comandada pelos norte-americanos, os norte-coreanos jamais
acompanharam a China em suas inovações na construção socialista.
A União Soviética manteve-se sempre como o principal mentor e par-
ceiro econômico e político da Coréia do Norte. Mais da metade de suas
importações e exportações realizavam-se com a URSS.
Era inevitável, assim, que os acontecimentos no leste europeu re-
percutissem negativamente na economia norte-coreana. A taxa anual
de crescimento caiu de 7,5%, da década de 80, para 5,9%, em 1990,
atingindo principalmente a produção agrícola e de energéticos. O in-
tercâmbio comercial com seu principal parceiro despencou dos 887
milhões de dólares dos primeiros sete meses de 90, para 11 milhões
de dólares, no mesmo período de 91. O governo norte-coreano viu-se
na contingência de empreender esforços de adaptação para manter a
sobrevivência do regime.
Iniciou uma série de reformas na economia, incluindo a permis-
são das atividades privadas dos pequenos agricultores e pequenos co-
merciantes e uma abertura, ainda tímida, em direção a China, Coréia
do Sul e Japão, com vistas a investimentos e maior fluxo de comércio.
Na área política, foram adotadas medidas no sentido de normalização
de relações com a Coréia do Sul, Japão e Estados Unidos, além de um
esforço persistente para ampliar as relações diplomáticas e comer-
ciais com um leque maior de nações.
Depois de anos de recusa, os norte-coreanos decidiram solicitar
seu ingresso da ONU e, apesar das divergências suscitadas durante
todo o ano de 1991, em torno das inspeções requeridas pela Agência
Internacional de Energia Atômica (AIEA), acabaram cedendo depois
que os Estados Unidos e a Coréia do Sul aceitaram o princípio da ins-
peção mútua, ao norte e ao sul.
Embora os americanos tenham feito grande estardalhaço sobre
a capacidade das instalações nucleares norte-coreanas para fabricar
artefatos atômicos, as inspeções não detectaram qualquer evidência
nesse sentido. É possível, por outro lado, que os norte-coreanos te-
207
WLADIMIR POMAR
nham se aproveitado das incertezas e preocupações americanas para
obter maiores concessões destes, não só a respeito das inspeções na
Coréia do Sul, mas também no campo das relações bilaterais. De uma
forma ou outra, ao mesmo tempo que realiza essas aberturas, o gover-
no adota decisões para preservar o regime de possíveis contestações.
Reforçou a posição do exército no comando do país e promoveu uma
série de quadros mais jovens para os postos de direção.
Por outro lado, ao contrário do que pretendiam anteriormente, os
setores dirigentes da Coréia do Sul não parecem mais ter um interesse
imediato na queda do regime socialista vigorante na parte norte da pe-
nínsula. As voltas com inflação, queda em sua competitividade inter-
nacional, déficit comercial, deterioração da credibilidade das lideran-
ças políticas, fraturas na coesão social e deterioração na disciplina e
na ética do trabalho, os liberais sul-coreanos passaram a acreditar que
o colapso do regime socialista da Coréia do Norte poderia trazer-lhes
mais problemas do que benefícios.
Nessas condições, apesar das semelhanças com os problemas
enfrentados por Cuba, o socialismo norte-coreano talvez tenha melho-
res chances para tentar uma reforma e sobreviver ao furacão liberal.
O Vietnã apresenta uma situação bem melhor do que Cuba e
Coréia do Norte. Primeiro, porque sempre conservou ingredientes
muito fortes de sua cultura nacional no processo de construção socia-
lista, iniciado após a vitória da guerra de libertação nacional. Na agri-
cultura, realizou uma reforma agrária que deu a terra em usufruto às
pequenas famílias camponesas e jamais teve condições de ingressar
na aventura da coletivização e da construção de grandes unidades in-
dustriais. Apesar disso, as relações com a URSS tinham uma posição
de destaque em seu comércio exterior e demais relações econômicas.
Em 1990, 67,1% das importações vietnamitas vieram daquele país e
45,9% das exportações foram para lá.
A extinção do Comecon e da própria União Soviética, e a mudança
radical da política econômica externa da nova Rússia, obrigando seus
parceiros comerciais a acertar as contas em divisas fortes, induziu o
Vietnã a realizar as mudanças correspondentes. Além, é claro, de ter
que negociar um contencioso pendente, entre os dois países, em torno
do aluguel da base de Cam Ranh, da dívida externa vietnamita de 10
208
A ILUSÃO DOS INOCENTES
bilhões de rublos e dos milhares de vietnamitas que estavam na Rús-
sia como trabalhadores convidados da ex-União Soviética.
O Vietnã teve, porém, colheitas muito favoráveis nos últimos anos
(21,7 milhões de toneladas de cereais em 1991) e a produção e expor-
tação de petróleo se manteve ascendente. Além disso, as reformas vi-
sando adequar sua economia às regras do mercado contribuíram para
diminuir as tensões existentes com as tentativas de implementar um
planejamento forçado. Este se chocava com a existência de milhões de
pequena unidades produtivas, rurais e urbanas, de propriedade indi-
vidual e familiar, que jamais deixaram de operar. A economia vietna-
mita é hoje uma combinação de unidades de propriedade estatal, pri-
vada e cooperativa, que procuram adaptar-se às leis concorrenciais do
mercado e que estão injetando um novo vigor à produção e ao comér-
cio. Toda tentativa de coletivização foi abandonada em 1989. A terra
continua nacionalizada, como propriedade estatal, mas os 55 milhões
de agricultores têm direito ao usufruto pleno do solo, podendo arren-
dá-lo, hipotecá-lo, herdá-lo e vendê-lo como posse ou serviço, por um
período de 20 a 50 anos.
O Vietnã soube, igualmente, realizar mudanças relativamente rá-
pidas era sua política econômica externa. Reatou relações diplomáti-
cas com a China, intensificando seu tradicional fluxo de comércio com
o vizinho do norte; solicitou sua admissão na Associação das Nações
do Sudeste Asiático (ANSEA), até há pouco considerada inimiga vis-
ceral, estreitando rapidamente seus laços econômicos com os países
membros da Associação, assim como com o Japão, Hong Kong, Taiwan,
Coréia do Sul e Austrália. Joint ventures para a exploração petrolífe-
ra no mar da China estão sendo estabelecidas com empresas privadas
desses países, também interessadas em outras áreas econômicas para
aproveitar a mão-de-obra barata e a relativa estabilidade política e so-
cial vietnamita.
As perspectivas de o Vietnã superar os problemas causados pela
crise do socialismo no leste europeu têm despertado, ainda, o interesse
da França, seu antigo colonizador, e dos Estados Unidos, que sofreu na
mão dos vietnamitas a maior derrota militar dos tempos modernos. Li-
gações históricas, nem sempre positivas, estão sendo aproveitadas por
essas potências do primeiro mundo. Pretendem abrir espaços, para o
209
WLADIMIR POMAR
estabelecimento de posições estratégicas no Pacifico oriental, a região
mundial de maior vitalidade econômica da atualidade. A abertura do
Vietnã oferece condições excepcionais para que todos os concorrentes
disputem tais espaços com certa igualdade de oportunidades e os viet-
namitas parecem dispostos a tirar o melhor proveito possível desse
contexto.
A abertura ao mercado e ao exterior tem gerado, por outro lado,
as já conhecidas distorções, com a intensificação da corrupção, do
contrabando, da delinqüência e outros fenômenos idênticos. Isso tem
resultado na adoção de legislação mais dura contra atos ilícitos na eco-
nomia e no reforçamento do papel gestor do Estado, embora também
nesse terreno tenham ocorrido reformas. O partido comunista conti-
nua mantendo sua posição oficial de força dirigente e não é permitida a
existência de outros partidos, mas a constituição de 1992 estabeleceu
a separação entre as funções do Estado e do partido, fortaleceu o papel
da assembléia nacional como órgão efetivamente legislativo, que elege
o presidente e o conselho de ministros, e somente ao qual estes devem
prestar contas de sua ação. Por essa constituição, o presidente recebe
poderes mais amplos, na verdade introduzindo o sistema presidencia-
lista.
De todos os socialismos sobrantes, porém, China é de longe o que
apresenta resultados mais surpreendentes, incógnitas mais agudas e
polêmicas e, talvez por isso, desinformações e opiniões mais divergen-
tes. Em 1990, com base em informações do Der Spiegel, Kurz previa que,
precisamente na China, estariam se iniciando, quase despercebida pelo
público ocidental, mais interessado no leste europeu, uma gigantesca
catástrofe sócio-econômica, com conseqüências incontroláveis. Kurz
entendia como confiáveis as cifras de 240 a 260 milhões de desempre-
gados e as informações de que as taxas de crescimento na China esta-
vam diminuindo. E dava sua palavra final de que as reformas de Deng,
particularmente aquelas do sistema de preços, elevadas com grande
pompa ideológica ao grau de uma doutrina nova, teriam sido, em gran-
de parte, revogadas. De modo algum isto teria acontecido apenas para
salvar a pretensão do partido, conforme afirmavam os meios de comu-
nicação ocidentais desde o massacre da Paz Celestial. O fundamental
é que as conseqüências socio-econômicas das reformas, no sentido da
210
A ILUSÃO DOS INOCENTES
economia de mercado, estavam em perigo de escapar ao controle. As
reformas teriam, então, que ser detidas.
Thurow também fala da retirada da China do mercado, em 1989,
e prevê que se ela conseguisse retomar seu movimento em direção à
economia de mercado, teria todos os problemas que se observam hoje
na Europa centro-oriental. Outros analistas, que descobriram há pouco
as reformas chinesas, chegam igualmente a conclusões contraditórias.
Marxistas-Lêninistas de carteirinha continuavam a afirmar que a socie-
dade chinesa jamais atingira o estágio socialista. Portanto, as reformas
em processo naquele país apenas serviam para reforçar seu conteúdo
capitalista. Alguns não chegavam a negar o passado socialista do país
do meio, mas já não nutriam qualquer dúvida de que ele fosse um país
capitalista. Seus dirigentes podem até continuar falando de um suposto
regime socialista com economia de mercado, mas isso não passaria de
retórica. A vida das pessoas comuns já estaria completamente tomada
pela lógica do mercado capitalista.
Há ainda aqueles que enxergam brutais disparidades entre as zo-
nas urbanas, de rápido desenvolvimento, e as zonas rurais, estagnadas.
Nestas estariam concentrados, perigosamente, milhões de desempre-
gados. A esmagadora maioria continua referindo-se à brutal ditadura
comunista de partido único, embora se espante com a abertura ao ex-
terior, com a possibilidade de os estrangeiros e chineses se movimenta-
rem livremente por todas as regiões do país e dos jornais e revistas, na-
cionais e estrangeiros, tratarem de todos os assuntos e, com exceção dos
pornográficos, poderem ser adquiridos sem problemas. Mais espantoso
é que os chineses tenham liberdade de viajar ao exterior, sem outros
empecilhos que os normais da legislação de qualquer país do mundo.
A China não é, evidentemente, um enigma indecifrável. Essa ima-
gem literária pode ser empregada no sentido de acentuar as característi-
cas que tornaram sua história, inclusive a recente, tão rica em aspectos
polêmicos e aparentemente desencontrados. Ou, para chamar a atenção
sobre as visões, ligeiras e lineares, que procuram explicar os aconteci-
mentos por meio de verdades apriorísticas, definitivas e absolutas. Es-
sas atitudes sempre foram comuns no Ocidente, tanto à direita quanto
à esquerda, quando o assunto era a China. Em 1986, quando teve inicio
a revolução cultural chamada proletária, grande parte da esquerda en-
211
WLADIMIR POMAR
xergou nela o caminho inigualável para o advento do reino da igualdade
econômica e política. Depois, de 1978 em diante, quando tiveram início
as reformas do socialismo chinês em direção ao mercado, primeiro na
agricultura e, depois, nas cidades e na indústria urbana, a direita sau-
dou com fanfarras a ressurreição do capitalismo. Grande parte da es-
querda, com a mesma visão, abominou as reformas. Mais adiante, em
1989, no embalo dos acontecimentos do leste europeu, o massacre da
praça da Paz Celestial (Tiennamen) selou uma convergência maior de
opiniões entre a direita e a esquerda ocidental: ambos vislumbraram
nesse acontecimento o fim das reformas, a restauração de uma sangui-
nária ditadura comunista e a perspectiva de um desastre social e políti-
co ainda maior do que o da Europa do leste. Kurz, sem dúvida, conseguiu
exprimir com fidelidade essa convergência de opiniões.
Três anos após os acontecimentos de Tiennamen, nem as pre-
visões de Kurz, nem de Thurow se concretizaram. A China continua
mantendo elevada sua taxa de crescimento anual, há uma melhora do
padrão de vida da população, reconhecida por todos os órgãos interna-
cionais, e a previsão dos estudiosos ocidentais, que acompanham mais
de perto a evolução chinesa, é de que esse país será um dos que ingres-
sará no século XXI em melhores condições comparativas. Não é por aca-
so que a propaganda capitalista, apesar de tudo, continua propalando
que a China deve seu êxito ao mercado. Os liberais chegam a creditar o
crescimento chinês única e exclusivamente aos investimentos estran-
geiros, prevendo que seu sucesso econômico, associado à ampliação da
educação e da intelectualidade científica e técnica, acabará se chocando
com o regime e, como na União Soviética, dando-lhe fim.
Os socialistas, por sua vez, vêem-se embaraçados para jogar às
traças uma experiência que persevera em autoproclamar-se socialista.
Além disso, as reformas chinesas, em suas linhas gerais, conservam
muita semelhança com a perestroika soviética, com a diferença de que
esta deu em desastre, e aquela segue um rumo ascendente, apesar dos
problemas detectados. Valeri Smirnov diz que a perestroika colocou em
cena todos os meios para destruir o antigo sistema, mas não tinha a mí-
nima idéia de como construir o novo, com mais democracia, mais socia-
lismo e mais mercado.
Evidentemente, muitos socialistas poderão achar essa mistura
212
A ILUSÃO DOS INOCENTES
incompatível. Mas é justamente ela que consta das prolongadas funda-
mentações das reformas chinesas, desde que tiveram início em 1978. A
rigor, apesar dos acidentes de percurso e das correções de rumo, nor-
mais em qualquer estratégia de longo prazo, o que impressiona nessas
reformas é sua perseverança nas linhas gerais estabelecidas naquela
ocasião, independentemente de qualquer argumento de valor sobre sua
natureza capitalista ou socialista.
Por isso, deixemos de lado, momentaneamente, as avaliações ide-
ológicas ou políticas. O fato concreto, ocorrido na China, nestes últimos
15 anos, é que ela ingressou num processo de reforma econômica, que
lhe permitiu quadruplicar seu produto interno bruto e a renda de sua
população de um bilhão e cem milhões de habitantes. Nesse mesmo pe-
ríodo, ela ignorou as crises cíclicas enfrentadas pela maioria dos países
capitalistas, na década de 80 e agora nos anos 90, e transformou-se no
maior produtor mundial de cereais (mais de 430 milhões de toneladas
anuais). Deu um salto na produção de energéticos, ingressou firmemen-
te na modernização tecnológica e na disputa mundial do mercado es-
pacial e, conforme previsões do Banco Mundial e do FMI, deve ombrear
sua potência econômica com os países do primeiro mundo, durante as
duas primeiras décadas do século XXI. Sua acelerada penetração no
mercado internacional pode ser medida pelo crescimento da balança
comercial, que saltou de 4,6 bilhões de dólares, em 1970, para 38,0 bi-
lhões, em 1980, e 114,4 bilhões de dólares em 1990. Em 1992, alcançou
a cifra de 160,0 bilhões de dólares. Os produtos manufaturados repre-
sentam cerca de 70% do total dessas exportações.
Que caminhos a China seguiu para alcançar esses resultados, tão
diferentes da perestroika soviética? Em primeiro lugar, é preciso reco-
nhecer que as premissas para as reformas chinesas eram mais propí-
cias do que as soviéticas. A economia chinesa apresentava um desequi-
líbrio menos acentuado entre indústria, agricultura e serviços.
Desde 1957, havia uma busca para combinar o planejamento cen-
tralizado com certa autonomia e descentralização administrativa. Até
1966, quando teve início a revolução cultural, o mercado rural e o mer-
cado de bens de consumo de massa continuavam muito ativos. A revo-
lução cultural, justamente pelos estragos que causou à produção, à orga-
nização produtiva e ao padrão de vida da população, desfechou um sério
213
WLADIMIR POMAR
golpe nas idéias que a promoveram e supunham ser possível instaurar
o igualitarismo comunista, sem antes construir as condições materiais
e culturais para tanto. Além disso, desorganizou e enfraqueceu a buro-
cracia, abrindo espaço para as reformas.
Com base nessas premissas, a partir de 1978, a China introduziu
reformas na agricultura, com vistas a superar as crises de abastecimen-
to e criar um mercado interno efetivo para uma posterior alavancagem
da indústria. Mesmo mantendo nacionalizada a terra, passou a entre-
gá-la em usufruto para as famílias, indivíduos ou grupos de lavradores.
Com base em contratos de responsabilidade, os camponeses compro-
metiam-se a produzir uma quantia mínima de cereais ou outros pro-
dutos agrícolas, a serem vendidos ao Estado por preços previamente
acertados. Tudo o que ultrapassasse o volume estipulado no contrato
poderia ser comercializado livremente pelos camponeses no mercado
local e nas cidades. O Estado, além disso, mesmo mantendo estáveis os
preços de venda dos estoques governamentais para as populações ur-
banas, elevou os preços pagos aos camponeses pelos seus produtos. As-
sim, uma combinação de preços com a liberdade de trabalhar conforme
o potencial e a disposição de cada família, indivíduo ou grupo, permitiu
uma grande liberação de energia nas zonas rurais e um contínuo cres-
cimento da produção de alimentos e outras matérias primas agrícolas.
A produção global da agricultura saiu das 150 milhões de toneladas de
1978, para 435 milhões de toneladas de 1992.
Essa rápida expansão agrícola permitiu à China não só melho-
rar a renda dos camponeses e o abastecimento dos centros urbanos,
como também procurar novos caminhos para alocar a população ativa
sobrante, gerada pela elevação da produtividade rural. O artesanato e
a pequena indústria rural, que tinham grande tradição histórica, pu-
deram aproveitar-se da expansão da renda camponesa e dos braços
que os trabalhos agrícolas liberavam, para realizar uma expansão com
idêntica rapidez. Dessa forma, bem antes das reformas na indústria
urbana, que tiveram inicio em 1984, a indústria rural (implementos
agrícolas, motores elétricos, bombas hidráulicas e, principalmente,
confecções) já empregava mais de um terço da população ativa do
campo chinês. Essa expansão foi facilitada ainda mais pela política
de abertura ao exterior, que criou mercados inesperados para muitas
214
A ILUSÃO DOS INOCENTES
dessas indústrias localizadas nas áreas rurais.
A política de abertura ao exterior foi construída com pistas de mão
dupla. A China instituiu zonas econômicas especiais e portos de livre
comércio, onde poderiam realizar-se investimentos estrangeiros, dire-
tamente ou em joint ventures com empresas chinesas, desde que as fir-
mas estrangeiras garantissem o aporte de tecnologias de ponta e tives-
sem o mercado externo como o alvo principal de sua produção. O desvio
de parte dessa produção para o mercado interno seria feito de forma
seletiva e como elemento propulsionador da modernização tecnológica
do conjunto da indústria chinesa. Para atender a expansão da produção
agrícola e o ritmo de investimentos estrangeiros, foi necessário superar
lacunas antigas na infra-estrutura de estradas, comunicações, produ-
ção de energéticos, armazéns, silos, novas instalações e outros equi-
pamentos, dando surgimento a uma febre intensa de construções que,
por sua vez, representou um novo impulso para o desenvolvimento das
indústrias rurais. Grande parte das empresas de construção civil, sur-
gidas nesse período, era proveniente de desdobramentos das indústrias
rurais.
Quando as reformas nas indústrias urbanas tiveram início, em
1984, a China havia resolvido seu problema agrícola, expandido seu
mercado interno, aberto o caminho para a absorção e intercâmbio das
novas tecnologias e ingressado na concorrência internacional. Já havia,
também, uma clara evidência de que era preciso abrir a economia para
a convivência da propriedade estatal e da propriedade cooperativa com
a propriedade privada e de que o mercado jogava um papel importante
no desenvolvimento das forças produtivas e da produção.
Desse modo, o novo passo estratégico das reformas concentrou-
-se na legalização dos negócios privados, na concessão de autonomia
para as empresas estatais conduzirem sua própria produção e comer-
cializarem seus produtos no mercado e numa cuidadosa reforma dos
preços e salários. Toda a legislação referente à propriedade foi revisada
e surgiram inúmeras empresas privadas, que alcançaram 20% do total
das propriedades em 1992. Esses negócios privados ocuparam espaços
vazios, deixados pelas propriedades estatal e cooperativa, particular-
mente no setor de serviços, que saltou de 15,1% do PIB em 1980, para
27,3% em 1990.
215
WLADIMIR POMAR
Roberto Abdenur, ex-embaixador brasileiro na China, testemu-
nha que foi se formando um mercado interno integrado, em substitui-
ção ao arquipélago de pólos econômicos fragmentados e desconecta-
dos. Ele constatou que o mercado de consumo se afigurou de nível de
renda muito superior ao que supunham as estimativas e que as empre-
sas cooperativas e privadas, alheias ao setor estatal, já respondiam por
41 % do produto industrial, em 1990. Isso significa que 59% da pro-
dução encontram-se sob responsabilidade das empresas estatais, que,
além disso, mantém em seu poder os setores estratégicos da econo-
mia, inclusive em joint ventures com empresas privadas estrangeiras.
No entanto, as empresas estatais entraram igualmente no pro-
cesso de reforma, ganhando autonomia. Essa autonomia começou com
o estabelecimento de contratos de responsabilidade entre o governo e
tais empresas, através dos quais elas passavam a estabelecer suas pró-
prias metas de produção, a relacionar-se diretamente com seus clien-
tes e fornecedores (antes isso era realizado pelos ministérios), a definir
preços de venda e salários e a gerir seus próprios investimentos. Em
contrapartida, teriam que pagar os impostos estabelecidos pelo Estado,
assim como os benefícios que este teria direito como proprietário so-
cial. Em muitos casos, o contrato de responsabilidade incluiu o coletivo
de trabalhadores, que passou a ter o direito de eleger os diretores da em-
presa e influir diretamente no estabelecimento dos planos de produção
e comercialização, nos regulamentos internos, no controle financeiro
e nos planos de aplicação dos benefícios sociais para os trabalhadores.
O processo de autonomia das empresas estatais, que objetiva,
entre outras coisas, torná-las rentáveis e com alta produtividade, de-
senvolveu-se durante toda a segunda metade dos anos 80 e ainda con-
tinua em curso. Paulatinamente, o Estado vai se abstendo de salvar
empresas de baixa produtividade e insolventes. Abriu terreno para sua
privatização, inclusive através de arrendamentos, e para sua falência,
de acordo com a legislação promulgada após um longo debate públi-
co. Hoje calcula-se que mais de 40% das antigas empresas estatais se
modernizaram e atingiram níveis internacionais de produtividade e
rentabilidade. Tão ou mais difícil que a autonomização das empresas
estatais tem sido o processo de reforma de preços e salários. Afastados
durante muitos anos dos padrões internacionais de produtividade e,
216
A ILUSÃO DOS INOCENTES
portanto, de preços e salários puxados pelos seus níveis mais eleva-
dos, os chineses têm encontrado muitas dificuldades para realizar os
reajustes necessários, sem causar sobrecargas aos salários ou surtos
inflacionários. Quando essas pressões se conjugaram a momentos de
superaquecimento da economia, as tensões sociais elevaram-se e po-
larizaram-se. Na primavera de 1989, conduziram a explosões como a
da Praça da Paz Celestial. Apesar disso, mantidas as condições atuais,
é muito provável que dentro dos próximos dez a quinze anos a China
tenha concluído sua reforma nesse terreno e seus preços e salários te-
nham alcançado os patamares internacionais. Todas essas reformas
trazem embutidos problemas sociais que se conflitam com alguns pre-
ceitos políticos ainda hoje considerados intocáveis por boa parte dos
socialistas. Rompe em primeiro lugar, com qualquer idéia de iguali-
tarismo. Ao abrir chance para o funcionamento do mercado, mesmo
que ele tenha o rótulo de socialista, e para a expansão da proprieda-
de privada, mesmo dentro de alguns limites, o regime aceita formal
e praticamente o desenvolvimento desigual da riqueza, seja entre os
indivíduos, seja entre regiões. A palavra de ordem de enriquecer di-
ficilmente será entendida como algo a ser alcançado solidariamente.
É inevitável, pois, como vem ocorrendo, que diferentes indivídu-
os a entendam de uma forma bem unilateral, aproveitando-se das van-
tagens de sua posição no aparelho de Estado, ou no partido dirigente,
para conquistá-la de forma bem mais rápida do que os demais. Na raiz
dos acontecimentos de 1989 estava, igualmente, o descontentamento
com a proliferação de casos de corrupção e tráfico de influência nos
diversos escalões governamentais. Não é outro o motivo que levou os
dirigentes chineses a promulgar uma legislação severa para casos de
corrupção de funcionários do Estado e do partido, incluindo a pena de
morte para os mais graves.
Há muitas outras conseqüências da ação do mercado bem conhe-
cidas que também se espraiaram pela China no curso das reformas
e colocam em dúvida a natureza de seu futuro. Delinqüência, porno-
grafia, contrabando, narcotráfico, prostituição e outras manifestações
anti-sociais fazem parte das listas de delitos que ocorrem nas mais
diferentes esferas da sociedade chinesa. Ao lado disso, e pressionan-
do-a fortemente, há o difícil e complexo problema do emprego (ou do
217
WLADIMIR POMAR
desemprego). Gerar cerca de 14 milhões de novas vagas anualmente já
seria, mesmo que sozinha, uma tarefa de difícil solução até num país
economicamente desenvolvido.
Antes das reformas, esse problema era resolvido entulhando
fábricas, serviços e brigadas de produção rurais, com todos os eco-
nomicamente ativos. O Estado determinava onde cada um deveria
trabalhar, pouco importando que a produção não se elevasse tão ra-
pidamente quanto o aumento da força de trabalho. A tendência mais
atuante apontava para uma perigosa baixa na produtividade e, portan-
to, para a possibilidade real de que cada um recebesse uma parte cada
vez menor da riqueza social declinante. Socializava-se a pobreza.
As reformas dão uma ênfase particular à elevação da produti-
vidade e da rentabilidade, instrumentos geradores de excedentes de
força de trabalho em qualquer situação. Por outro lado, o Estado chi-
nês também abandonou seu papel de alocador de mão-de-obra, libe-
rando os trabalhadores a conseguir trabalho onde achassem melhor
e, lógico, onde fossem aceitos. Existe, assim, uma situação bastante
complexa que pode, eventualmente, criar massas de desempregados,
principalmente se levarmos em conta as condições populacionais da
China. Apesar disso, até agora essa situação tem se mantido sob certo
controle e as estimativas sobre desempregados são bastante exagera-
das, mesmo quando aparecem sob a responsabilidade de autoridades
chinesas não identificadas. Em primeiro lugar, o desemprego não é
tão vasto porque a industrialização acelerada tem combinado o cres-
cimento intensivo da produtividade nos setores de ponta da indústria,
da agricultura e dos serviços, com o uso extensivo de mão-de-obra nos
demais setores.
O estímulo à expansão de milhões de pequenos e médios negó-
cios, especialmente nas zonas rurais, com financiamento e incentivo
do poder público, tem permitido absorver uma parte muito conside-
rável da força de trabalho excedente. Por outro lado, os investimen-
tos em educação e reciclagem profissional e técnica da mão-de-obra,
tem crescido substancialmente ano a ano, ampliando as oportunida-
des de qualificação profissional e cultural. Tem havido igualmente a
preocupação de criar um sistema de seguro desemprego que, aliado
ao processo de reciclagem técnica e profissional, mantenha os desem-
218
A ILUSÃO DOS INOCENTES
pregados com condições dignas de vida e lhes abra a chance de em-
pregos de qualificação superior. De qualquer modo, talvez mais do que
em qualquer outra parte do mundo, o problema da abolição do sistema
de trabalho na China se apresente com muita força, logo que os inves-
timentos em capital intensivo superarem os investimentos intensivos
em mão-de-obra.
Apesar de todos esses problemas, e do fato de haverem surgido
muitos milionários na sociedade chinesa, enquanto parcelas consi-
deráveis vivem em situação de pobreza, as diferenças de renda entre
os mais ricos e os mais pobres são relativamente pequenas. Nenhum
dos países em desenvolvimento conseguiu um crescimento tão rápi-
do, com o uso de mecanismos de mercado, sem polarizações sociais
muito agudas, quanto a China. Por outro lado, embora as zonas econô-
micas especiais apresentem um crescimento muito mais veloz que as
demais, e o litoral continue sendo bem mais desenvolvido que as planí-
cies centrais e o planalto ocidental, estas regiões historicamente mais
atrasadas vêm experimentando um desenvolvimento significativo por
meio de investimentos orientados. Tais desequilíbrios, no entanto, po-
dem se acentuar se o governo não mantiver um constante monitora-
mento da situação e adotar a tempo, medidas compensatórias.
Finalmente, há o problema político. Embora o regime chinês não
seja formalmente um regime de partido único (há outros oito partidos
que fazem parte do Conselho Político Consultivo Nacional), o partido
comunista constitui-se como partido dirigente e determina, no funda-
mental, as políticas do país. Em seus planos estratégicos, estão defini-
das linhas de ampliação crescente da democracia, mas suas lideran-
ças são de opinião que esse processo não pode ser rápido nem abrupto.
Eles alegam haver passado pela experiência de democracia direta da
revolução cultural e haver assistido à derrocada da União Soviética e
do leste europeu, onde afinal de contas nem mesmo a democracia libe-
ral parece haver se consolidado.
Com base nesses argumentos, e também em sua diferente tradi-
ção histórica e cultural, eles se declaram dispostos a não permitir que
suas reformas sejam destruídas por qualquer hipotética implantação
desordenada dos mecanismos da democracia liberal. Reiteram seu
compromisso de seguir outros caminhos para alcançar a democra-
219
WLADIMIR POMAR
cia plena. Consideram-se legitimados por um prolongado processo de
luta revolucionária que, lembram, livrou a China de uma situação de
atraso, miséria e subserviência nacional. Preferem um processo len-
to, mas que consideram mais seguro, de combinação da democracia
econômica e social com um paulatino alargamento da democratização
política. A verdade seja dita: eles não encontram muitos adeptos para
suas teses no socialismo ocidental e pode ser que encontrem resistên-
cias e dificuldades, cada vez maiores, dentro da própria China, para
demonstrá-las. Mas só o tempo dirá do que foram realmente capazes.
Inclusive se suas reformas conduziram à construção das condições
para uma sociedade de tipo superior, onde seja possível viver sem a
propriedade privada e o Estado, ou se levaram à consolidação do modo
capitalista de produção e de troca.
220
VI Limites e possibilidades
R ealizamos, até aqui, uma longa viagem. Visitamos o lado brilhante
do mundo de Pangloss e caímos na real do mundo real do capital.
Andamos em delírio pelos sonhos, esperanças e utopias dos justos. E
chegamos a uma encruzilhada, diante de vários caminhos, nenhum
deles atapetado com pétalas ou algodão. Em todos eles, o capital está
sempre presente, como guardião aparentemente imbatível e indestru-
tível, apesar das previsões de que, como tudo na vida, ele teve um co-
meço e terá, igualmente, um fim. Enquanto se apresentar como vence-
dor, com seu poderoso mercado mundial, sempre persistirá a inocente
ilusão de que os homens terão que continuar vagando eternamente por
seu sistema produtor de mercadorias.
Quais, realmente, as possibilidades e os limites do capital? Ele
surgiu na história como a culminância de todo o processo anterior,
devendo consolidar-se como um sistema definitivo e eterno? Ou não
passa de mais uma etapa ou um passo no longo caminho espiral da
humanidade? Sem responder a perguntas como essas, dificilmente os
socialistas se sentirão em condições de trilhar alguma das diversas
estradas que a vida lhes apresenta.
Os defensores mais intransigentes do sistema produtor de merca-
dorias não aceitam pensar na hipótese de que exista um ponto crítico,
além do qual o capitalismo seja obrigado a transformar-se numa outra
formação econômico-social, como ocorreu na história com outros sis-
temas sociais. A humanidade teria, com o capital, encontrado o siste-
ma ideal para o pleno florescimento das ambições e potencialidades
humanas. As formações sociais anteriores não passariam de tentati-
vas pré-históricas na busca desse sistema ideal. Mesmo o socialismo,
221
WLADIMIR POMAR
assegura Dahrendorf, não teria sido sequer um fenômeno de países em
desenvolvimento, mas de países que não se sustentam para além dos
estágios iniciais do desenvolvimento. Estaria, portanto, dentro daque-
las tentativas pré-históricas. Somente as economias orientadas para
o mercado, baseadas em incentivos, e não em planejamento e força,
representariam o estágio avançado do desenvolvimento moderno.
Mas, quando Dahrendorf fala em economias orientadas para o
mercado, ele não está necessariamente falando do capitalismo, po-
rém de sua sociedade aberta. Ele chega a admitir que o capitalismo,
se for um sistema, precisa ser combatido tão vigorosamente quanto o
comunismo teve que ser enfrentado, pois todos os sistemas significam
servidão, incluindo o sistema natural da ordem de mercado total. Sa-
bemos, no entanto, como Dahrendorf embaralha idéias e realidades,
supondo que a Inglaterra, Alemanha e Suécia não sejam sociedades
capitalistas, mas sociedades abertas. O importante no caso é que,
como ele, a maioria dos liberais ortodoxos e conservadores costuma
empregar argumentos idênticos para caracterizar o sistema capitalis-
ta ideal e eterno, como algo natural, que dispensa planejamento e força
para funcionar e evoluir.
Se for verdade que as economias orientadas para o mercado de-
vem basear-se exclusivamente em incentivos, não em planejamento e
força, isso retiraria do mapa das possibilidades praticamente todos os
países capitalistas. Evidentemente, todos eles têm economias orien-
tadas para o mercado mas, qual deles não se baseia num sistema de
força, mesmo que consensualmente admitido? Que país capitalista
moderno despreza o planejamento em seu processo de expansão? A
Inglaterra, Alemanha e Suécia, consideradas sociedades abertas por
Dahrendorf? Basta dar uma simples espiada na história moderna des-
ses países para verificar como a força e o planejamento foram utiliza-
das como incentivos, tanto para desenvolver o seu sistema de produ-
ção quanto para salvá-lo de suas crises.
Na realidade, independentemente da sua vontade, o capitalismo
foi se conformando como um sistema mundial que se pensava a salvo
de todas as complicações. Carson conta como, na década de 60, havia
nos Estados Unidos a confiança de que a nação seria capaz de ser salva
de todos e quaisquer dilemas econômicos. Primeiro, havia a ciência
222
A ILUSÃO DOS INOCENTES
econômica e as teses de John Maynard Keynes, que defendiam o uso
hábil do poder do governo, de tributar e gastar para produzir. Com isso
seria possível evitar qualquer queda geral da atividade econômica. Se-
gundo, havia a crença de que a intervenção governamental em mer-
cados específicos, visando atingir objetivos populares de engenharia
social, melhoraria acentuadamente a qualidade de vida da população.
Que dúvida poderia haver sobre as vantagens e a eternidade de tal sis-
tema, mesmo que ele não fosse a sociedade aberta sonhada pelos li-
berais radicais? Mas o longo período de alta dos anos 60 cedeu lugar
à inflação e à estagnação crônicas da década de 70. As teorias de Ke-
ynes perderam vigor e, em seu lugar, tomaram assento os defensores
conservadores do livre mercado, os neoliberais apresentando a velha
teoria econômica como a nova onda do futuro.
Desregulamentação, monetarismo, economia de oferta e Esta-
do mínimo, segundo Carson, tornaram-se as palavras da moda. En-
tretanto, nunca o Estado interveio tanto na economia como nos anos
dourados do neoliberalismo. O dispêndio público, nos países ricos,
aumentou de 37% em 1979, para 40% em 1989, exceto na Alemanha e
na Inglaterra. Mas, na Alemanha, os incentivos industriais equivalem
a uma proteção tarifária de 30%, como reconhecem a OCDE e o FMI. E
Thurow admite que, se o governo não tivesse acorrido a tempo, o ca-
pitalismo financeiro, tal como é praticado nos Estados Unidos, estaria
hoje agonizante. A maioria dos bancos de poupança e de empréstimos
dos Estados Unidos é subsidiada pelo governo.
Kennedy também admite que o capitalismo desenfreado não con-
segue solucionar os problemas mundiais. Segundo ele, ao caminhar
para um mundo de 8 a 10 bilhões de pessoas, seria necessário criar o
que chama de capitalismo sustentável, um capitalismo inteligente, que
utilize a tecnologia para produzir novos produtos, mas que seja social-
mente responsável. Em duas décadas, o capitalismo desenfreado sim-
plesmente não será mais tolerável. Kennedy supõe, assim, ser possível
separar na unidade contraditória do capital, seus aspectos positivos (o
capitalismo inteligente e responsável) dos aspectos negativos (o capita-
lismo desenfreado e destrutivo). Como todos os inocentes, ilusoriamen-
te supõe liquidar um dos aspectos sem liquidar o próprio ser capitalista.
Thurow, porém, diz que a história ensina que o capitalismo é ine-
223
WLADIMIR POMAR
rentemente instável e, de vez em quando, precisa ser salvo de si mes-
mo. Ele acredita ser necessário construir uma locomotiva macroeco-
nômica cooperativa, capaz de evitar que a competição entre as duas
variantes do capitalismo — individualista anglo-saxão britânico-ame-
ricano e comunitário alemão-japonês — saia do controle e não consiga
deter os ciclos inerentes ao capital. Mas ele próprio reconhece que uma
locomotiva desse tipo só funcionou quando os Estados Unidos eram a
superpotência econômica e militar única do mundo capitalista e quan-
do o perigo vermelho colocou todas as demais nações capitalistas sob
seu manto protetor. Agora, o que existe são várias potências econô-
micas disputando o bolo. E o único perigo real são as massas pobres
do terceiro e quarto mundos que, convenhamos, dificilmente poderão
servir de justificativa ideológica e política para brandir arsenais nucle-
ares e corridas armamentistas.
Bobbio se pergunta se as democracias que governam os países
mais ricos do mundo serão capazes de resolver os problemas que o co-
munismo falhou em solucionar. Para ele, essa é a verdadeira questão
que se coloca hoje para a humanidade. O comunismo histórico teria fa-
lhado, mas os problemas permanecem. Aqueles mesmos problemas que
a utopia comunista apontava e pretendia resolver, e que agora existem,
reitera Bobbio, ou muito rapidamente existirão, em escala mundial.
Afinal de contas, todos esses pensadores acabam por dar razão a
Marx, para quem o limite do capital era o próprio capital. Para ele, cedo
ou tarde, a acumulação capitalista se tornaria autodestrutiva, exigindo
sua superação. As relações burguesas se tornariam demasiado estrei-
tas para conter as riquezas criadas em seu seio. No Manifesto comunista,
Marx e Engels afirmam que a dinâmica da acumulação capitalista fa-
ria com que a burguesia se tornasse incapaz de assegurar a existência
de seu escravo, o trabalhador assalariado. Coutinho considera que isso
teria sido verdadeiro na época (1848), mas não mais no século XX, em
que a exploração do trabalhador passou a ser feita sobretudo através
da extração da mais-valia relativa, permitindo um aumento simultâ-
neo dos lucros e salários e, por conseguinte, abrindo espaço para ne-
gociações e concessões. Nessas condições, a luta de classes nos países
mais desenvolvidos teria deixado de se expressar como uma guerra
civil mais ou menos oculta, passando a assumir a forma de uma longa
224
A ILUSÃO DOS INOCENTES
e progressiva batalha pela conquista dos direitos políticos e sociais.
Talvez a proposição de Coutinho se mostrasse completamente
válida para os anos 80 deste século, mas a progressiva morte do tra-
balho e a presente barbarização capitalista tornam mais complexas e
mais fluidas as formas que a luta de classes deve assumir, trazendo
inclusive de volta à realidade velhas afirmações do Manifesto.
Arrighi trata essa problemática de outra maneira. Para ele, a úni-
ca coisa que seria inevitável no modelo descrito por Marx é que a acu-
mulação capitalista criaria as condições para um aumento no número
de vitórias proletárias sobre as derrotas proletárias, até que o regime
burguês fosse deslocado, substituído ou transformado.
Arrighi, como Coutinho, preferiu desprezar uma outra hipótese,
levantada por Rosa Luxemburgo, de disseminação da barbárie capita-
lista em oposição à possibilidade socialista. E também não levou em
conta a possibilidade de que o capitalismo, sem encontrar uma força
política e social que transforme o regime burguês e evite sua ação
destrutiva, acabe convertendo-se num buraco negro, capaz de tragar
a humanidade e a destruir junto consigo. A inversão das expectativas
capitalistas neste final de século mostra que nenhuma tendência line-
ar, baseada em apenas um de seus diferentes aspectos contraditórios,
pode ser tomada como definitiva.
As hipóteses de Kurz a respeito dos limites do capital combinam
visões catastróficas com possibilidades de sua transformação na so-
ciedade comunista. Para ele, com a decadência do boom fordista e o
desenvolvimento de forças produtivas completamente novas, da racio-
nalização e automatização, foram estabelecidas condições irreversí-
veis de rentabilidade. Nestas, começou a manifestar-se, pela primeira
vez, o limite lógico inerente ao movimento de exploração abstrata da
força de trabalho. Por isso, depois dos colapsos do terceiro mundo nos
anos 80, e do socialismo real no começo dos anos 90, teria chegado a
hora do próprio Ocidente. A chamada era moderna, supõe Kurz, entra-
rá numa era das trevas, do caos e da decadência das estruturas sociais,
tal como jamais existiu na história do mundo, antes mesmo de termi-
nar o século XX.
Kurz reescreve, assim, o Tacão de ferro, de Jack London, em lin-
guagem sociológica. Ele acredita que essa era, com suas formas de
225
WLADIMIR POMAR
percurso e acontecimentos catastróficos, deverá abranger boa parte
do século XXI. A crise provocará no capitalismo um novo surto esta-
tista. Mas, dessa vez, não como modernização, mas como progressiva
administração de emergência do sistema em colapso. Será um estatis-
mo terrorista da fase final, que procurará obstinadamente conservar
o invólucro vazio das relações mercadoria-dinheiro. Tudo à custa de
uma administração violenta da miséria, que se transformará em ter-
ror, para acabar na autodestruição absoluta. A única forma de superar
essa crise, ainda segundo Kurz, estaria num consciente movimento
social de supressão, que acabasse com aquela administração, e que te-
ria de derrubar com violência maior ou menor, também seus aparatos.
Kurz encontra no comunismo das coisas o entrelaçamento global
do conteúdo da reprodução humana. Ele já estaria presente, embora
na forma errada e negativa, dentro do invólucro capitalista do siste-
ma mundial produtor de mercadorias. Por isso, seria a única possibi-
lidade de superação do capitalismo, não como uma utopia ou objetivo
distante, mas sim como fenômeno atual e o mais próximo que pode
ser encontrado na realidade. Essa socialização da humanidade, em
sua forma comunista, existente dentro do próprio capital pelas forças
produtivas que criou, seria a demonstração mais cabal de que o capi-
talismo teria chegado a seus limites.
Talvez o eurocentrismo de Kurz o tenha impedido de ver com
mais realismo os enormes graus de desigualdade com que o sistema
capitalista se desenvolveu pelas mais diferentes regiões do globo ter-
restre. Ao visualizar somente a explosão das forças produtivas no pri-
meiro mundo e a expansão do mercado mundial capitalista sobre toda
a superfície mundial, com todas as conseqüências que isso gera, Kurz
nivela todo o processo pelos seus pontos mais elevados. Desse modo,
acha possível criar um movimento de supressão, como força social de
âmbito mundial, capaz de realizar uma revolução de fato. Esta elimi-
naria o sistema produtor de mercadorias, arrancando-lhe seu invólu-
cro capitalista e permitindo que o comunismo aparecesse, finalmente,
em sua forma certa e positiva.
Kurz considera que a criação desse movimento de supressão,
como força social, só é possível por meio da consciência e, com isso,
mediante a conscientização. Não se trataria, de forma alguma, de uma
226
A ILUSÃO DOS INOCENTES
revolução na qual uma classe dentro da forma mercadoria (e consti-
tuída por essa), tivesse que derrotar outra classe como sujeito antípo-
da. A possível violência resultaria do fato de que um sistema louco e
perigoso para a humanidade não será abandonado voluntariamente
por seus representantes (os executivos, a classe política e o aparato de
administração e de emergência). Assim, no movimento e na revolução
de Kurz não existe a política, não existe a luta política por objetivos
tanto imediatos quanto futuros, como a forma mais provada e eficiente
para a conscientização em massa e para a transformação das formas
sociais em verdadeiras forças políticas transformadoras.
Kurz, na realidade, dá-se conta que o capitalismo dos países cen-
trais aproxima-se cada vez mais dos limites previstos por Marx. Deduz
daí, acertadamente, todas as conseqüências que esse fato fará recair
sobre a humanidade, mas acaba resvalando por trilhas utópicas. Des-
preza as diferenças existentes nos processos de desenvolvimento do
capital, nos vários países do mundo e, mais ainda, ignora completa-
mente os movimentos reais que ocorrem em cada um, como resistên-
cia a tal desenvolvimento e por sua superação. A suposição de Lenin de
que era indispensável enxergar, simultaneamente, as características
peculiares de desenvolvimento capitalista, tanto nos países atrasados
como nos países avançados, continua válida ainda hoje. Em nenhum
dos casos, o capitalismo se desenvolve linearmente, seja em extensão
ou profundidade. E, também em nenhum dos casos, a resistência e as
lutas contra o capital se dão simultaneamente e sob as mesmas ban-
deiras de momento.
Evidentemente, não se pode acusar Kurz de falta de lógica. Ele
considera a revolução de qualquer classe inerente ao sistema capita-
lista, inclusive a trabalhadora, como revolução modernizadora do pró-
prio sistema. Assim, pois, ao considerar esgotadas as possibilidades
de novas modernizações, já que não teria mais sentido algum recorrer
ao Estado contra o mercado, e ao mercado contra o Estado, Kurz te-
ria que desprezar qualquer revolução classista e qualquer mediação
que tentasse a superação da modernização capitalista por caminhos
intermediários. Para ele, a falha do Estado e a falha do mercado torna-
ram-se idênticas porque a forma de reprodução social da modernida-
de perdeu completamente sua capacidade de funcionamento. Nessas
227
WLADIMIR POMAR
condições, quanto mais a moderna sociedade do trabalho abstrato se
aproxima de seus limites econômicos e ecológicos, tanto mais rápida e
desesperadamente tem que realizar o revezamento, tanto mais curtas
ficam as ondas do estatismo e do monetarismo. Em outras palavras,
aproxima-se a todo o galope a crise final.
Pode-se duvidar dessas previsões absolutas de Kurz. Como afir-
mamos anteriormente, o capital deu inúmeras demonstrações de sua
capacidade de ressurgir das crises mais devastadoras e realizar novos
ciclos de desenvolvimento, rios quais se dão novas explosões das forças
produtivas e, contraditoriamente, preparam-se crises ainda mais de-
vastadoras do que as anteriores. Em geral, o desenvolvimento desigual
do capitalismo nas mais diferentes regiões do globo tem lhe permitido
conter, em certa medida, sua tendência declinante da taxa media de lu-
cro e manter sua reprodução ampliada. Essas condições não estão to-
talmente esgotadas, apesar do brilhantismo da argumentação de Kurz.
Mas este tem razão ao acentuar a repetição das crises cíclicas a
intervalos cada vez mais curtos e a incapacidade cada vez maior das
políticas keynesistas ou estatistas. Elas já não conseguem resolver se-
quer os problemas conjunturais, como inflação e recessão, muito me-
nos os problemas estruturais, como a retração do mercado aquisitivo
social, o desemprego tecnológico, os desequilíbrios nas balanças de
pagamento e outros. A aproximação dos limites do capital recoloca na
ordem do dia a necessidade de sua própria abolição e sua substituição
por um tipo de formação social mais avançada. Retomando os concei-
tos de Marx, e coerente com sua visão de que o comunismo foi errone-
amente confundido com as sociedades da modernização recuperadora
do capital, Kurz rebatiza tal formação como comunista; Tanto se lhe dá
que os conceitos evoluam, ganhem conotações históricas que pouco
ou nada têm a ver com sua significação original ou mesmo se transfor-
mem em conceitos malditos.
Seja como for, não deixa de ser esperançosa sua confiança de que
as palavras malditas venham a recuperar seu verdadeiro significado e
se convertam nas bandeiras de preservação e desenvolvimento da hu-
manidade. O principal da argumentação de Kurz reside precisamente
na constatação de que o capitalismo, ao revolucionar constantemente
suas forças produtivas sociais, socializa-se cada vez mais, gera socia-
228
A ILUSÃO DOS INOCENTES
lismo e comunismo por todos os poros, tanto mais crescentemente
quanto mais se aproxima de seus limites e possibilidades. O privatis-
mo da apropriação da riqueza e da articulação do poder político são as
camisas-de-força que a sociedade precisa romper para ingressar num
novo e promissor caminho. A possibilidade de que isso não venha a
ocorrer descortina um horizonte muito sombrio.
O FRACASSO DO TRIUNFO
Não deixa de ser uma nova ironia da história que as previsões de
Marx sobre os limites do capitalismo começassem a se tornar mais evi-
dentes justamente quando o capital saboreava o maior triunfo já alcan-
çado, em toda a história, contra o socialismo. Durante todo o século XIX,
especialmente nas revoluções de 1848 a 1854 e na Comuna de Paris,
em 1871, a burguesia impôs derrotas esmagadoras contra o socialismo.
Pode-se até alegar que, em boa parte dos casos, depois de vitoriosa ela
sentiu-se obrigada a conceder muitos dos direitos reivindicados pelos
derrotados. Foi dessa forma que vingou o direito de voto universal e se-
creto, a jornada de oito horas de trabalho e diversos outros preceitos
considerados conquistas dos trabalhadores e dos socialistas.
Entretanto, pode-se alegar, por outro lado, que essas conquis-
tas não passavam de direitos burgueses que o capitalismo, por uma
dessas incoerências cegas tão comuns nas classes sociais, negava-se
a praticar. Incoerência que o levou, em 1917, a sofrer a primeira derro-
ta séria para o socialismo, ao ver derrubado o regime czarista (que, a
rigor, não era o que se poderia chamar de burguês, no sentido estrito
do termo). Isso, mesmo após passar pela experiência da insurreição de
1905, quando poderia haver aprendido algo sobre os perigos que o ron-
davam e ter feito algumas concessões que amansassem os derrotados.
Mesmo após 1917, o capitalismo continuou derrotando o socialis-
mo, todas as vezes em que o confronto decisivo entre os dois se apre-
sentou como inevitável. Excetuando a longínqua e esquecida Mongólia,
derrotou-o na Hungria e na Alemanha de forma violenta e selvagem, e
na França, Inglaterra e outros países capitalistas, combinando vitórias
eleitorais com repressões de diferentes tipos. Por quase um século,
desde 1848, a Europa e grande parte do mundo continuaram sendo
229
WLADIMIR POMAR
um extenso campo de batalha entre as classes e nações, tendo como
conteúdo explícito ou oculto a disputa entre capitalismo e socialismo.
Mas o processo de competição intercapitalista, a partir da década de
1930, alargou sobremaneira as probabilidades de expansão socialista.
As agressões japonesas, em toda a Ásia, potenciaram as guerras
civis que vinham se desenvolvendo em algumas regiões (China e Indo-
china, em particular), transformando-as em guerras de resistência na-
cional, e levaram ao desencadeamento de outras guerras de libertação
nacional. As agressões alemães na Europa e, depois, o ataque japonês
a Pearl Harbour, envolveram o mundo todo na mais devastadora das
guerras. E, criaram o paradoxo de fazer com que as principais potências
capitalistas de então, as chamadas democracias ocidentais (Estados
Unidos, Inglaterra e França), tivessem que aliar-se à União Soviética e
a vários movimentos de resistência e libertação nacional, dirigidos por
comunistas e socialistas. Como resultado da segunda guerra mundial,
os Estados Unidos saíram como a única potência mundial, capitalista
ou não, realmente fortalecida. Mas a porção centro-oriental da Europa
havia descambado para o socialismo, mesmo que isso se devesse, em
boa parte, à presença das tropas soviéticas, que tornaram impraticável
qualquer golpe de força contra os socialistas e comunistas.
No final da década de 40, a China também havia mudado de cor e
a Indochina só não completara essa passagem porque as tropas fran-
cesas intervieram pesadamente e forçaram os povos dessa região
(vietnamitas, laocianos e cambojanos) a travar uma prolongada guerra
de libertação. Isso marca, juntamente com os acontecimentos de Ber-
lim em 1948, o início da prolongada Guerra Fria entre o capitalismo e
o socialismo, que se estendeu durante 41 anos e marcou todos os acon-
tecimentos mundiais desse período. O socialismo ainda realizou algu-
mas conquistas importantes durante os anos 50, como Cuba e o início
da descolonização da Ásia e da África. O impasse da guerra da Coréia
foi uma demonstração clara de que o capitalismo estava disposto a uti-
lizar todas as suas forças antes de aceitar a derrota.
A vitória do povo vietnamita contra a guerra de agressão prati-
cada pelos Estados Unidos foi, ao mesmo tempo, a mais significativa
dos anos 60 e o ponto de virada da tendência ascendente do socialismo
revolucionário, que tivera início com a Revolução de 1917 na Rússia.
230
A ILUSÃO DOS INOCENTES
A partir dai, os problemas da construção econômica, social e política,
nos países em que fora vitorioso, começaram a tornar-se mais envol-
ventes e mais decisivos do que a contínua expansão do regime socia-
lista a novos países. Além disso, com sua enorme capacidade indus-
trial e financeira, coadjuvados pela expansão capitalista na Europa e
no Japão, os Estados Unidos passaram a executar uma estratégia de
estirar ao máximo a corda da corrida armamentista, agravando assim
os problemas estruturais enfrentados pela União Soviética e demais
países socialistas.
A rigor, todas as novas tentativas de estabelecer regimes socialis-
tas, durante as décadas de 70 e 80, fracassaram diante da resistência
capitalista, ao mesmo tempo que o capital ia paulatinamente impon-
do aos antigos países socialistas as regras de seu mercado mundial.
A China foi provavelmente a primeira a entender a nova situação de
defensiva do mundo socialista e a sugerir uma estratégia de adaptação
e de convivência a longo prazo, sugestivamente taxada de social-de-
mocrata e revisionista. Apesar disso, a ela seguiram-se uma série de
países considerados de orientação socialista, (na realidade capitalis-
tas, que orbitavam por diferentes motivos, na esfera socialista). Eles
começaram a voltar-se mais decididamente para a Europa Ocidental,
Japão e Estados Unidos. A curva descendente chegou ao fundo do poço
com o fiasco da intervenção soviética no Afeganistão e o colapso do
socialismo centro-oriental europeu e da União Soviética. O capitalis-
mo deu por encerrada sua guerra contra o socialismo, decretando não
apenas a sua morte definitiva, mas o próprio fim da história. Estaria
demonstrado que o capitalismo não teria limites. Seria, finalmente, a
tão ansiada formação social eterna, capaz de revolucionar-se constan-
temente, superando suas próprias deficiências e distorções.
Já tivemos oportunidade de discutir, em diversos momentos,
quanto são ilusórias essas suposições do capital. No primeiro mundo
ele se debate com seus próprios limites ao decretar a morte do trabalho
e resolver suas crises de superprodução através da produção para o
consumo destrutivo e da retração do mercado. Como diz Thurow, tal-
vez ele não seja a onda avassaladora do futuro que os teóricos da direi-
ta gostam de exaltar. No terceiro mundo, ele impõe um processo eco-
nômico extremamente espoliativo e destrutivo, gerando uma miséria
231
WLADIMIR POMAR
de massa caótica e degradante que se aprofunda à medida que, tam-
bém ali, a revolução científica e tecnológica crava suas normas. No an-
tigo segundo mundo socialista, reconvertido à religião do capital, este
repete a selvageria de sua acumulação original. Destrói forças produ-
tivas, massas humanas e ilusões inocentes, para criar uma nova bur-
guesia com a mais pura linhagem dos barões mafiosos. Até Ash ousa
dizer que os novos dirigentes dos países do Leste serão corrompidos.
A produtividade, como acentua Kurz, chegou a um nível tão alto
que só pode gerar, por sua própria lógica contraditória, cada vez menos
capacidade aquisitiva produtiva no mercado mundial. Assim, quanto
mais aprofunda a socialização da produção, mais o capitalismo exclui
os trabalhadores dos frutos dessa mesma produção. Vê-se obrigado, ao
mesmo tempo, a enrolar sua bandeira democrática, apesar de haver se
comprometido em demasia com ela diante dos povos que assistiram a
sua luta contra o socialismo. Esforça-se por impedir a consolidação da
soberania popular, excluindo os trabalhadores, como diz Cerroni, dos
mecanismos de direção consciente da sociedade, do Estado e da pro-
dução, numa época que, ao contrário, carece de socialização do poder.
Por toda parte, o capital espalha a barbarização das relações so-
ciais. Faz questão de contrapor, ao design moderno e limpo de seus
produtos, a sujeira e a podridão da luta pela sobrevivência daqueles
que nada têm e também daqueles que, tendo algo, aprenderam com
os barões do capital os métodos corruptos e ilícitos de fazer fortuna. O
mundo do capital vai se transformando no mundo onde vigora a lei da
selva e no qual as armas e as drogas transformaram-se nas mercado-
rias mais procuradas e nos mais eficientes instrumentos de domina-
ção e poder. Racismo, intolerância religiosa, nazismo, nacionalismo e
outras manifestações doentias ressurgem com vigor pela ação do ca-
pital. Thurow acredita que um misto de altruísmo e medo do caos nas
suas fronteiras imediatas levará a um plano semelhante ao Plano Mar-
shall para a Europa central e oriental. Acontece que as condições da
Europa Ocidental e dos Estados Unidos nos dias de hoje, para efetivar
um Plano Marshall, são muito diferentes das condições dos Estados
Unidos naquela época. Em vez de um plano desse tipo, o mais provável
é que se contentem em erguer um novo Muro de Berlim às avessas,
como o próprio Thurow cogitou.
232
A ILUSÃO DOS INOCENTES
As guerras na ex-Iugoslávia, em Angola, em várias repúblicas da
ex-União Soviética; os choques sangrentos na África do Sul, Palestina,
índia, Ceilão, Afeganistão; os atentados terroristas das máfias do nar-
cotráfico na Itália e na Colômbia; tudo isso são explosões concentradas
de um mesmo processo de barbarização que, em seu conteúdo, não são
muito diferentes dos incidentes policiais nos Estados Unidos, das guer-
ras de gangues dos morros no Brasil e das ações da Yazuka no Japão. O
mundo rico se comove com a morte e a mutilação de algumas centenas
de crianças na Bósnia, mas é incapaz de dirigir sequer o olhar para as
milhares de mortes da guerra civil de Angola ou para os que morrem
de fome no Nordeste brasileiro. A Bósnia dá ibope, tem facilidade de
transformar-se num show de TV por se encontrar na própria Europa.
Angola, pobre, suja e negra, está muito longe e parece selvagem de-
mais para ser entendida. A fome brasileira é simplesmente patética e já
não comove. A Somália só vale por sua posição estratégica. E, no Haiti,
os interesses das empresas americanas compensam um acordo com
os grupos criminosos, comandados pelos ditadores de plantão.
A disseminação da barbárie, acompanhando a difusão e alastra-
mento da miséria de massa, parece firmar-se como a tendência prin-
cipal do mundo do capital. Em lugar de proporcionar um mundo de
paz, em que as armas de guerra deveriam tornar-se desnecessárias,
o capital alimenta aquela barbárie ao intensificar o comércio mundial
de armamentos como uma das formas de enfrentar sua crise. Os Esta-
dos Unidos, Rússia, Ucrânia, Cazaquistão e, em menor escala, França,
mantêm seus arsenais atômicos e não parecem dispostos a avançar
muito rapidamente em sua destruição. A China igualmente conserva
suas armas nucleares, enquanto Israel, África do Sul, índia e Paquistão
declaram-se em condições de fabricar artefatos nucleares. Com muito
mais razão poderiam fazê-los, se quisessem, a Alemanha e o Japão.
A continuidade da expansão armamentista, mesmo que limitada às
armas convencionais, mantém acesas as brasas que podem alimen-
tar fogueiras regionais, e eventualmente, espraiar-se por continentes
inteiros. A conjugação da barbarização com o armamentismo pode
produzir uma mistura altamente explosiva que tornem realidade as
previsões mais pessimistas sobre o futuro da humanidade.
Nesse caldo geral, posicionando-se como uma força de resis-
233
WLADIMIR POMAR
tência à expansão do capital do primeiro mundo, particularmente do
norte-americano, dissemina-se rapidamente o fundamentalismo islâ-
mico. Em grande medida ele ocupa o vácuo deixado pela esperança
socialista, mas a partir de uma posição que lembra muito a dos socia-
listas feudais e reacionários descritos por Marx e Engels. É um anti-
-capitalismo que busca um regresso ao passado ou, pelos menos, a
imutabilidade do presente de suas sociedades atrasadas, e que tende a
manter os homens, e principalmente as mulheres, num regime tão ou
mais opressivo do que o capitalismo.
As opções que se apresentam são perversas. Entretanto, relem-
brando Marx, o próprio capital gera sem cessar as condições para sua
própria superação. Ele cria socialismo a todo instante, mesmo que em
forma negativa, como diz Kurz. Sua vitória sobre o socialismo de tipo
soviético faz parte, como lembrou Arrighi, daquele processo longo
e penoso em que as derrotas socialistas acabarão por ser em menor
quantidade do que suas vitórias. Mesmo porque a humanidade será
levada, pelo capital mesmo, a tomar consciência de que suas opções
restringem-se à barbárie, destruição ou socialismo. Esse é, afinal de
contas, o resultado mais palpável do triunfo do capitalismo sobre o so-
cialismo. Ou do fracasso desse triunfo, levando o papa João Paulo II a
proclamar que as sementes da verdade do socialismo não devem ser
destruídas. Quem diria!
CONTINUIDADE E RUPTURAS
Os limites e o fracasso triunfante do capital são fontes permanen-
tes de tensões, crises e conflitos sociais e políticos. Conflitos e crises
que, como ensina Bobbio, acabam sempre resolvidos pelo entendi-
mento ou pela força. Ou, como diriam outros, por uma complexa com-
binação de entendimento e força. A década de 80 e o início dos anos
90 foram, aliás, pródigos em combinações desse tipo. Movimentos re-
volucionários armados, como os da Nicarágua, El Salvador, Camboja,
Palestina e África do Sul, transformaram-se em processos de negocia-
ção e entendimento. Movimentos revolucionários pacíficos, como os
do leste europeu (excetuando-se a Romênia), também desembocaram
em canais de negociação. Movimentos reformistas de diferentes tipos,
234
A ILUSÃO DOS INOCENTES
em inúmeros países, abrangendo desde lutas por salários até mobili-
zações pela deposição de ditaduras ou presidentes corruptos, conse-
guiram igualmente encontrar o leito da negociação e do entendimento.
Evidentemente, o mundo não assistiu somente ao espetáculo da
concórdia. Já vimos, em páginas anteriores, o outro lado da moeda.
Mas é importante assinalar que, embalada pela glasnost soviética e
pelo dumping democrático do capitalismo liberal, uma boa parte do
planeta ingressou num vigoroso processo de distensão, levando a crer
que, finalmente, chegara o momento de substituir a força pelo enten-
dimento. Essa impressão foi reforçada ainda mais pela compreensão,
como diz Coutinho, de que o surgimento de Estados mais amplos, onde
a sociedade civil desempenha um forte papel político, através de múl-
tiplos interesses organizados na esfera pública, faz com que a obtenção
do consenso — de hegemonia através da negociação política — se torne
o recurso principal da ação política, superando a coerção predominan-
te do antigo Estado.
Nesse sentido, é interessante notar que todos aqueles movimen-
tos, conforme atesta Ralph Milliband, tenderam a resgatar o que pode
ser chamado de governo representativo tradicional. Essa situação le-
vou Hobsbawn a relembrar que a realização mais duradoura da revolu-
ção russa de 1917 foi derrotar o fascismo e garantir a democracia bur-
guesa para o mundo capitalista desenvolvido, numa ironia da história.
E a supor que a realização mais duradoura do colapso socialista, numa
nova ironia, talvez seja garantir a democracia burguesa para o mundo
capitalista não desenvolvido. Para ele, a expansão da democracia libe-
ral parece haver sido o resultado mais significativo de todos os movi-
mentos, revolucionários e reformistas, da década passada. Isso abriria
campo à transição socialista, numa expansão sem precedentes.
Os socialistas vêem-se colocados, assim, talvez com mais ênfase
do que na época de Bernstein, frente a frente com o problema da passa-
gem do capitalismo para o socialismo, por meio de um processo de re-
formas contínuas das instituições econômicas e políticas da burguesia.
Ao contrário da antiga tradição socialista revolucionária, os aconteci-
mentos dos anos 80 disseminaram a crença sobre as condições favorá-
veis para alcançar o poder e realizar as transformações na sociedade,
sem a necessidade de romper com as regras institucionais burguesas
235
WLADIMIR POMAR
abruptamente. Os processos de democratização, patrocinados pelo li-
beralismo dos países ricos, abriram novas chances para as correntes
socialistas atuarem livremente e, inclusive, disputarem o poder. Por
outro lado, as experiências despóticas dos países socialistas reforça-
ram a opinião de que o autoritarismo era fruto direto dá violência em-
pregada na ação de conquista do poder. Como contraponto, a ascensão
de partidos social-democratas ao poder seria uma demonstração cabal
da possibilidade de realizar as reformas necessárias sem chegar ao uso
da violência e, portanto, de sistemas autoritários e repressivos.
Apesar dos ventos de entendimento daqueles anos, a viragem
nessas perspectivas e possibilidades está sendo muito veloz. Aquilo
que parecia um período duradouro de paz, prosperidade e democracia
transformou-se, como vimos em capítulos anteriores, num complexo
processo de barbarização. Paralelamente as negociações e entendi-
mentos e à expansão da democracia liberal, disseminam-se guerras
de baixa intensidade, a prosperidade das massas do primeiro mundo
despenca num pântano movediço e incerto, as esperanças das popu-
lações do antigo segundo mundo socialista morrem esfaceladas pelo
triturador do mercado real e pelos limites autoritários da democracia
liberal, e a miséria de massa dos terceiro e quarto mundos parecem
haver ultrapassado as fronteiras do absurdo. Finalmente, a ampliação
da democracia liberal começa a ser repensada pelo próprio capital,
diante do crescimento das lutas e movimentos sociais e de incipien-
tes demonstrações de que partidos e correntes socialistas parecem
renascer das cinzas, até mesmo em antigos países socialistas do leste
europeu. Tudo agravado pelo fato de que a vitória conservadora e neo-
liberal começa a apresentar um desgaste político arrasador.
Há muito tempo os trabalhadores europeus não realizavam gre-
ves e demonstrações tão radicais quanto as que surgiram ultimamente
na Alemanha, França e Bélgica, contra o desemprego e as reestrutu-
rações modernizadoras do sistema de produção-para-lucro. Os mo-
vimentos por redução das jornadas de trabalho, manutenção dos be-
nefícios da seguridade social, contra a fome, por moradia, contra os
ataques ao meio ambiente, pelos direitos humanos, etc, que vinham
sendo assimilados com certa indulgência pelas democracias liberais,
parecem encontrar cada dia maior resistência, chocando-se com a
236
A ILUSÃO DOS INOCENTES
barbarização presente e com um capitalismo que tende a aumentar
sua impermeabilidade às preocupações sociais. As principais medi-
das para enfrentar a crise voltam-se para os cortes nos gastos sociais e
nas vantagens oferecidas pelo Estado de bem-estar. Nessas condições,
a continuidade das reformas sob o capitalismo torna-se cada vez mais
incerta e improvável.
Talvez por isso, também aumente o número de socialistas que
considera a reforma permanente inviável sob o capitalismo. Gorender
diz, por exemplo, que as burguesias respeitam as constituições de-
mocráticas e a alternância do poder enquanto o poder muda de mãos
confiáveis para outras mãos confiáveis. Não há, até agora, realmente,
qualquer exemplo histórico de países capitalistas que tenham aceito a
alternância de poder com socialistas dispostos a realizar reformas es-
truturais. A socialdemocracia só foi aceita como partícipe na alternân-
cia de poder após haver abandonado qualquer veleidade por reformas
que tocassem profundamente no estatuto da propriedade. Por parado-
xal que pareça, foram os socialistas do leste europeu e da Nicarágua
os primeiros a realmente aceitar uma alternância pacífica do poder e
mudanças na natureza do regime econômico e social.
Por isso, embora Coutinho tenha razão em falar de Estados mais
amplos, nos quais pode dar-se a disputa negociada da hegemonia, é
preciso evitar um voluntarismo às avessas. Os socialistas revolucio-
nários, baseados naquela impossibilidade apontada por Gorender, es-
tabeleceram como dogma que a revolução só poderia dar-se de forma
violenta, comportando unicamente uma grande ruptura. A partir dai,
passaram a disseminar a idéia de preparar-se para a revolução vio-
lenta, em quaisquer circunstâncias. Chegaram, em muitos lugares, ao
cúmulo de tentar utilizar a violência como instrumento de engajamen-
to das classes subalternas contra a burguesia. O Sendero Luminoso
talvez seja o exemplo mais aberrante dessa pretensão. Com isso, ne-
garam-se terminantemente a examinar qualquer outra possibilidade
de ascensão ao poder, de introdução das reformas democráticas ra-
dicais e da adoção de medidas socialistas, através de um processo de
rupturas parciais. Por isso, quando o sistema produtor de mercadorias
realizou mudanças em seu sistema político, ampliando o seu Estado e
admitindo a luta de classes em seu interior, os socialistas revolucioná-
237
WLADIMIR POMAR
rios perderam o pé e ficaram sem condições de disputar a hegemonia
nos países democrático-liberais.
Por outro lado, por mais que se queira acreditar que a humani-
dade seria bem melhor se não precisasse empregar a violência, esta
continua presente no dia a dia e, infelizmente, não foi abandonada pe-
las classes dominantes como recurso para resolver suas pendências
com as classes dominadas e mesmo entre si. Não é nosso desejo pio
que pode superar essa situação. Até mesmo a suposição de que um dos
lados aceite a submissão e decida imolar-se sem qualquer resistência,
não soluciona a questão. Em si, a submissão representa um ato de vio-
lência e, voltamos ao ponto de partida. Assim, o desvio dos socialistas
revolucionários não consistiu em reconhecer a violência como um ins-
trumento de desenvolvimento histórico, mas em transformar essa evi-
dência em verdade absoluta, que deveria ser entendida pelas massas
quase automaticamente e em qualquer situação.
Esse desvio acentuou-se com as vitórias dos socialistas revolu-
cionários na Rússia, China, Cuba, Vietnã e outros países onde ocorre-
ram guerras, revolucionárias ou revoluções bem sucedidas. Todas elas
justificavam, aos olhos e mentes revolucionários, as premissas de que
a burguesia e outras classes conservadoras não podiam ser apeadas
do poder sem violência. Para que perder tempo com reformas e dis-
putas negociadas pela hegemonia, se a burguesia iria, sempre, apelar
para sua costumeira força bruta? Era preferível o atalho da preparação
revolucionária.
Em contrapartida, a burguesia também passou a disseminar a
idéia de que os socialistas revolucionários eram incapazes de chegar
ao poder sem conspirações e golpes armados. Seriam, pois, incompe-
tentes para a disputa democrática, para o jogo político aberto e fran-
co dentro dos quadros de uma legalidade consensualmente admitida.
Criou-se uma situação em que pouco adiantava dizer o quanto de hi-
pocrisia estava contida nessa propaganda burguesa. A atitude e a ação
dos socialistas revolucionários davam-lhe uma aparência de razão.
Dessa forma, ela penetrou de forma mais ou menos intensa entre ca-
madas trabalhadoras e oprimidas das populações de diferentes paí-
ses, que teoricamente conformavam as bases de sustentação dos so-
cialistas revolucionários, mas que na prática lhes negaram apoio.
238
A ILUSÃO DOS INOCENTES
Pode-se dizer que os socialistas revolucionários não prestaram
atenção ao alerta de Engels sobre a violência revolucionária. Para ele,
decidir ou não sobre a violência não deveria ser uma exclusividade
nem uma iniciativa dos socialistas. Estes deveriam esgotar todas as
possibilidades legais e eleitorais para alcançar o poder. O ônus de rom-
per com a legalidade existente, diante das grandes massas do povo,
deveria caber à burguesia e seus aliados. Só diante da violência rea-
cionária e por decisão dos trabalhadores como classe, os socialistas
deveriam empregar a violência revolucionária. Engels sugeria, assim,
um método educativo de legitimação e justificação da violência, com-
pletamente diferente daquele que acabou sendo adotado como o único
possível pelos socialistas revolucionários.
Lênin defendia, igualmente, a tese de que os trabalhadores cons-
cientes, para se tornarem poder, deveriam conquistar a maioria. Para
ele, enquanto não houvesse violência contra as massas, não haveria
outro modo para chegar ao poder. E frisava que os socialistas revolu-
cionários não deveriam ser adeptos dos métodos de Louis Blanq (blan-
quismo) e não queriam a conquista do poder por parte de uma mino-
ria. Nessa perspectiva, Lênin lançou a idéia de todo poder aos sovietes,
que representavam o instrumento democrático de poder da revolução
russa, e de alcançar a hegemonia sobre eles, numa época em que os
revolucionários eram minoritários.
Na realidade, como Cerroni admite, o verdadeiro, o grande pro-
blema, não era, como não é, a escolha entre legalidade e insurreição,
mas o nexo entre democracia política e socialismo, entre socialização
do poder e socialização econômica, entre instituições políticas e re-
lações econômicas. Nesse contexto, quando Engels falava em esgotar
todas as possibilidades, na verdade ele estava falando na necessidade
de fazer com que os círculos da democracia política (ou da socialização
das instituições políticas) fossem alargados, pela luta dos trabalhado-
res, até onde a socialização econômica já os comportassem. Isso era ex-
tremamente importante para a luta pela hegemonia, para a expansão
da influência dos partidos socialistas sobre as instituições de massa
dos trabalhadores e mesmo para facilitar as rupturas necessárias em
relação à ordem vigente. No entanto, as concepções predominantes no
movimento socialista revolucionário, inclusive naqueles setores que
239
WLADIMIR POMAR
criticavam Lênin pelas medidas da revolução russa, compreendiam a
democracia política como algo que só estaria presente após a toma-
da do poder. Este seria o momento em que os trabalhadores deveriam
criar uma democracia socialista, de novo tipo.
A ruptura seria, assim, completa, tanto em relação à democracia
burguesa quanto em relação às instituições democráticas de massa,
criadas e existentes no âmbito daquela democracia. No bojo dessas
concepções, as teses de Lênin dando conseqüência ao alerta de En-
gels, só poderiam ser entendidas, pela maior parte dos revolucioná-
rios russos e de outros países, como um recurso tático para a tomada
do poder, e não como o cerne de uma teoria democrática de Estado
socialista. São mais ou menos conhecidos os debates de Lênin, nos pri-
meiros anos de poder soviético, para manter viva sua teoria de demo-
cratização do poder. Mas, logo após sua morte, ela foi abandonada e a
revolução russa deslizou não só pela ruptura com o Estado absolutista
do czarismo, mas também com a democracia dos conselhos ou sovie-
tes. Para colocar em funcionamento a economia de comando, criou um
novo Estado absolutista, ao invés de um Estado democrático socialista.
As reflexões de Engels e Lênin podem servir de referência histó-
rica para esse debate, que tende a retornar à ordem do dia mais cedo
ou mais tarde. Bobbio reafirma que os fundamentos do Estado demo-
crático-liberal, baseado na lei, não são suficientes para resolver os
problemas que deram nascimento ao movimento proletário dos países
que empreenderam uma forma selvagem de industrialização e, ao de-
sejo de revolução, entre os camponeses pobres do terceiro mundo. Os
pobres e marginalizados ainda estão condenados a viver num mundo
de terríveis injustiças, esmagados por inatingíveis e aparentemente
imutáveis magnatas econômicos, dos quais as autoridades políticas,
mesmo quando formalmente democráticas, quase sempre dependem.
Assim, conclui Bobbio, em tal mundo a idéia de que o desejo de revo-
lução acabou, que terminou em virtude da queda do comunismo, é fe-
char os olhos e nada ver. Como todos sabem, Bobbio não é o que se
poderia denominar socialista revolucionário, mesmo forçando a mão.
Mas, suas palavras ganham ainda maior significado porque ele
as disse antes que a crise do sistema de produção-para-lucro explodis-
se inesperadamente e colocasse a nu os aspectos negativos e destru-
240
A ILUSÃO DOS INOCENTES
tivos de sua expansão também no primeiro mundo. Aqui, do mesmo
modo que nas demais regiões do planeta, a miséria de massa tende a
espraiar-se de forma irresistível, com as mesmas características de-
gradantes e corruptoras. Desse modo, igualmente no mundo rico seria
fechar os olhos e nada ver, a suposição de que o desejo de revolução
não renascerá diante das novas condições com as quais se confrontam
os assalariados. Embora as coisas não devam se passar tão rapida-
mente quanto Kurz prevê, a questão da revolução e dos métodos de sua
realização deverão ressurgir com força, tanto nos países do terceiro
mundo e nos países socialistas reconvertidos ao capitalismo, quanto
nos países capitalistas desenvolvidos.
Os socialistas serão obrigados a examinar as mesmas possibili-
dades com que se confrontaram seus antecessores, cem anos atrás.
Cerroni sustenta que o desenvolvimento histórico da contradição
apontada por Marx na Constituição francesa de 1848 comporta a pro-
babilidade de evoluir importantes diferenças na relação entre o mo-
vimento socialista e as instituições democrático-burguesas. Pode-se
chegar, por exemplo, àquele limite definido por Engels e Lênin, passa-
do o qual a democracia conseqüente se transforma, por um lado, em
socialismo, e exige, por outro, o socialismo, tanto como forma política,
como enquanto modo de produção. A possibilidade de transição para
o socialismo, completa Cerroni, através do consenso, seria dedutível
da necessidade de uma mediação entre a problemática da socialização
econômica e a problemática da socialização política, entre a implanta-
ção sócio-econômica e a implantação política do socialismo.
Nesse sentido, o dumping da democracia liberal representa, afi-
nal de contas, uma concessão que acabará sendo mais perniciosa do
que positiva para o capitalismo. Lênin já reconhecia, acompanhando
Marx, que a república democrática é, sob o capitalismo, a melhor for-
ma de Estado para o proletariado. A democracia é o reconhecimento
formal da igualdade entre os cidadãos, do direito igual para todos de
determinar a forma do Estado e de o administrar. Se todos os homens
participarem realmente da gestão do Estado, já não será possível ao ca-
pitalismo manter-se. O progresso político da burguesia cria as premis-
sas para que todos possam efetivamente participar da gestão do Esta-
do. Tomado em si mesmo, nenhum democratismo dará no socialismo.
241
WLADIMIR POMAR
Mas, na vida nunca o democratismo será tomado em si mesmo. Será
tomado no conjunto, e exercerá sua influência inclusive sobre a econo-
mia. Estimulará a transformação desta e, ao mesmo tempo, também
sofrerá a influência do desenvolvimento econômico. Vista desse modo
por Lênin, a democracia ou o processo de democratização ganha uma
importância para a luta socialista que nenhuma de suas grandes ver-
tentes, muito menos as que se autodenominaram leninistas, assumiu.
A social-democracia perdeu-se em pequenas reformas e, como
afirmou Semprún, não foi suficientemente reformista na elaboração
de seu objetivo social. Coutinho intui que ela, na realidade, de acordo
com Bemstein, abandonou o objetivo final ao optar por uma política
de reformas. Bastava-se com o aumento do poder social dos traba-
lhadores e com sua capacidade para arrancar da burguesia, nas lutas
parlamentares e sindicais, concessões que melhorassem seu padrão
econômico de vida. O socialismo revolucionário, por seu turno, aban-
donou qualquer política de reformas e de ampliação da democracia li-
beral, pelo menos como plano consciente, e descambou para a violên-
cia como única forma de implantar o que supunha a verdadeira e real
democracia, em oposição à democracia formal da burguesia.
Na verdade, tanto a social-democracia quanto o socialismo revo-
lucionário partiam do pressuposto comum de que a democracia liberal
é a única forma de Estado existente sob o domínio da burguesia. A so-
cial-democracia sucumbiu a essa conclusão e, conjugando-a à hipóte-
se de melhorias contínuas da situação dos trabalhadores sob o capital,
incapacitou-se para ser consequentemente reformista, como Semprún
gostaria que fosse. O socialismo revolucionário, exasperado diante da
mesma conclusão, apelava para a insurreição, sonhava com uma nova
democracia pós-revolucionária e, mesmo atribuindo-se a ortodoxia
marxista-leninista, jogou para debaixo do tapete as opiniões princi-
pais de Marx, Engels e Lênin sobre o assunto, assim como as conquis-
tas reais dos trabalhadores em suas lutas por liberdades políticas mais
amplas dentro do sistema produtor de mercadorias.
Coutinho tem razão quando diz que é falsa a antinomia entre de-
mocracia formal ou burguesa e democracia substantiva ou proletária,
com a possível e lastimável conclusão de que deveriam ser elimina-
dos, no socialismo, os procedimentos formais de criação da vontade
242
A ILUSÃO DOS INOCENTES
política surgidos no capitalismo. Não pretendo entrar na discussão,
suscitada por ele, sobre o valor universal da democracia, mesmo por-
que o próprio Coutinho faz uma distinção entre democracia liberal e
democracia de massas ou socialista, no mesmo sentido em que Lênin
distinguia as duas vocações da democracia política, como a liberal e
a radical, a puramente representativa e a participativa ou revolucio-
nária. O importante, no caso, é que ele, como Engels e Lênin, retoma a
luta pela democracia, pela auto-organização popular, como sendo des-
de já um momento de luta pelo socialismo.
Nesse sentido, a democracia socialista não será a continuação
direta da democracia liberal. Coutinho sustenta que haverá a criação
de novos institutos políticos e a mudança de função de alguns velhos,
como os parlamentos, Mas, acrescenta, seria um equívoco supor que
esse novo patamar do processo de democratização só possa se ma-
nifestar após a plena conquista do poder. Os elementos de uma nova
democracia, para ele uma democracia de massas, para outros uma
democracia popular, para outros ainda uma democracia participativa
ou radical, já se esboçam e tomam corpo, em oposição aos interesses
burgueses e aos pressupostos teóricos do liberalismo clássico, no seio
dos regimes políticos democráticos, ainda sob a hegemonia burgue-
sa. A sociedade civil, com partidos de massa, sindicatos, associações
profissionais, comitês de empresa e bairro, organizações culturais
etc, constituem sujeitos coletivos, relacionados com os processos de
socialização das forças produtivas, que a própria dinâmica capitalista
estimula. Estimulando, portanto, a socialização da política, ou seja, a
ampliação do número de pessoas e de grupos empenhados organiza-
damente na defesa de seus interesses.
Coutinho conclui daí que a complexidade das sociedades moder-
nas, entre as quais ele inclui a brasileira, impõe uma concepção pro-
cessual da revolução: a mudança política radical pode e deve ser obtida
através de uma conjunção sistemática de reformas de estrutura, numa
estratégia que poderia ser definida como reforma revolucionária. As
reformas seriam, hoje, o caminho da revolução, e não uma das formas
alternativas de luta. Coutinho contrapõe, assim, esse novo caminho
ao perseguido pelos socialistas revolucionários. Entretanto, histori-
camente, as reformas sempre foram o caminho das revoluções, como
243
WLADIMIR POMAR
movimentos de massa e não como ações de minorias, mesmo quando
isso não era aceito por uma parcela dos revolucionários. Todos os pro-
gramas que conduziram às revoluções vitoriosas, como as russa, chi-
nesa, cubana, vietnamita, eram primeiro programas de reformas. Sem
isso, não teriam tido condições de conquistar grandes massas, obter a
hegemonia e alcançar sucesso no confronto com o poder dominante.
Nos grandes movimentos sociais, os indivíduos têm noção mais
ou menos clara contra o que estão lutando, mas muito nebulosa pelo
que estão lutando. O aspecto negativo do processo é muito mais for-
te. Suas demandas positivas, afirmativas, são mais imediatas, mais
reformistas do que revolucionárias. O que transforma a reforma em
revolução é a resistência dos grupos ou classes dominantes e sua inca-
pacidade em absorver e implementar aquelas reformas, quase sempre
possíveis no âmbito de seu próprio” sistema.
O problema, então, reiteramos, não consiste na escolha dos meios
reformistas inconseqüentes ou insurrecionais ou violentos. Consiste
em compreender a indissolúvel relação entre a luta pelo fim da explo-
ração capitalista e a luta pela eliminação do tipo de democracia limita-
da pela representação política sem controle social. Ou dizendo de ou-
tra forma, pela eliminação do tipo de democracia que é limitada pelo
parlamentarismo puro, sem mecanismos de participação e controle
pela soberania popular.
O processo de socialização da economia deve ser acompanhado
por um constante processo de democratização política, de expansão
das liberdades políticas e civis e pela participação da população na
gestão pública, de tal modo que o poder democrático do povo se so-
breponha paulatinamente ao poder liberal e restritivo da burguesia. A
forma como aquele poder democrático popular romperá com o poder
liberal não deixa de ser importante, mas é secundário e subordinado
ao processo de construção daquele poder democrático de massas.
Por isso mesmo, não considero totalmente adequada a formu-
lação de Coutinho em relação às formações sociais onde ainda não
ocorreu uma significativa socialização da política. Onde, portanto, não
existe uma sociedade civil pluralista e desenvolvida.
Segundo Coutinho, nessas formações sociais a luta de classes se
travaria predominantemente em torno da conquista do Estado-coer-
244
A ILUSÃO DOS INOCENTES
ção, mediante um assalto revolucionário, contrariamente às forma-
ções sociais onde o Estado se ampliou. Aqui, as lutas por transforma-
ções radicais se travariam no âmbito da sociedade civil, disputando o
consenso da maioria da população, e se orientariam, desde o início,
para influir e obter espaços no seio dos próprios aparelhos de Estado.
Entretanto, seja nas formações sociais que não alcançaram sig-
nificativa socialização política, seja naqueles em que o Estado abriu-se
como arena da própria luta de classes, o consenso é da maioria e não da
totalidade das classes que formam a sociedade. E tal consenso é fun-
damental para a luta pelas transformações. Em ambas as formações, a
luta por reformas e pela ampliação da democracia (ou por sua conquis-
ta, onde ela ainda não exista), é crucial para a obtenção de hegemonia
ou do consenso da maioria, de modo que se criem as condições para a
mudança no domínio do poder. A diferença consiste em que, nas socie-
dades onde a coerção é mais forte do que o consenso na manutenção do
domínio de classe sobre o Estado, a resistência às reformas e à demo-
cratização podem se cristalizar mais facilmente em repressões e fecha-
mentos ditatoriais. Impermeabiliza, então, o Estado à luta de classes e
obriga que o consenso majoritária mente oposicionista se transforme
naquele assalto revolucionário. Nesses casos, o velho Estado desmoro-
na e o consenso vitorioso deve construir um novo Estado.
Nas sociedades em que um novo consenso vai se tornando predo-
minante e nas quais o Estado absorve mais ou menos tranqüilamente
que tal consenso conquiste espaços em seu aparelho de dominação,
pode ocorrer que esse processo de rupturas paulatinas e parciais che-
gue até o ponto em que o Estado mude de natureza, demonstrando a
viabilidade da tese de Coutinho. Essa é uma probabilidade das socie-
dades modernas que os socialistas não devem desprezar, se querem
efetivamente disputar a hegemonia sobre a sociedade. Por outro lado,
ainda não aconteceu qualquer confirmação histórica de que a burgue-
sia absorverá todas as reformas radicais e abrirá mão de forçar a maio-
ria da população a apelar para métodos de contra-coerção. Todos os
Estados, mesmo os mais amplos, misturam, como apontava Gramsci,
coerção e consenso na direção de classe da sociedade. Nessas condi-
ções, seria ingenuidade desprezar a possibilidade de rupturas confli-
tuosas também nos casos de Estados amplos.
245
WLADIMIR POMAR
Em termos práticos, os socialistas dos países avançados, do mes-
mo modo que os dos atrasados, se verão na contingência de realizar
lutas e travar batalhas que, dentro do sistema capitalista, ampliem a
participação eleitoral, reforcem a emergência e a ação do pluralismo
popular e da democracia de base, criem novas instituições de consulta
e controle social e definam e consolidem as instâncias de representa-
ção e organização da vontade geral da maioria. Evidentemente, tudo
isso traz embutido uma série de perigos, que vai desde o cretinismo
parlamentar, os compromissos sem princípio, o reformismo limitado,
até a aceitação da ordem de coisas vigorante e a recusa e o medo de
realizar rupturas nessa ordem.
A maneira de ser conseqüente na luta por transformações real-
mente qualitativas na situação é, como diz acertadamente Coutinho,
tomar o objetivo final como pauta para a hierarquização da reforma.
Isto é, fazer com que o objetivo explícito das reformas seja o aprofun-
damento da democracia e a superação do capitalismo. E, além disso,
como aponta Milliband, realizar uma crítica permanente e fundamen-
tada aos limites e distorções da democracia liberal, à sua estreiteza e
formalismo, às suas tendências e práticas autoritárias nas diferentes
esferas da vida social e política, contrapondo a elas a democracia inter-
na dos movimentos sociais e das lutas e mobilizações extra-parlamen-
tares e extra-institucionais.
De qualquer modo, seja através da ampliação ao máximo dos li-
mites da democracia liberal, socializando a política até o ponto em que
essa socialização necessita e impõe o socialismo como transição para
outra sociedade, seja através das tentativas frustradas de democrati-
zar a sociedade contra a vontade e a resistência do Estado coercitivo e
das classes que o dominam, há um ponto em que a continuidade das
lutas se transforma em ruptura. Essa é a dialética da vida, da qual os
socialistas não poderão escapar.
RUPTURAS E CONTINUIDADE
Tratar das rupturas ainda hoje causa tremores. A social-demo-
cracia abandonou-as como problema sem solução e algo irrealizável.
O máximo possível seriam pequenas rupturas parciais, que melhoras-
246
A ILUSÃO DOS INOCENTES
sem a situação dos trabalhadores. Por isso mesmo, Ash considerava
que uma revolução pacífica era uma contradição em termos e Adam
Michnik, do Solidariedade, dizia que aqueles que começassem atacan-
do bastilhas, acabariam construindo as suas próprias. Os socialistas
revolucionários, ao contrário, depositavam na perspectiva de uma
grande ruptura revolucionária e violenta todas as esperanças de mu-
danças sociais, econômicas e políticas. Através dela, nada seria como
antes. Não poderia haver continuidades do velho sistema no novo.
Todo o velho seria abolido. Sobre os escombros do edifício da antiga
sociedade se ergueriam os alicerces de um prédio inteiramente novo.
A rigor, como diz Gorender, a violência sem limite na lei seria
decorrência da situação transitória da luta armada do processo de
ruptura. Cessada a situação de guerra civil, a ditadura do proletaria-
do deveria assumir o caráter de Estado socialista de direito, no qual
governantes e governados estariam obrigados à observância incondi-
cional da legalidade socialista. Entretanto, se nada deveria ser como
antes, como estabelecer um Estado socialista de direito diante dos
resquícios do antigo sistema, resquícios que teimavam em viver, ga-
nhar corpo e agir na nova sociedade? Dominados por suas premissas,
os socialistas revolucionários teriam que voltar a ditadura contra tais
resquícios e, depois, contra os próprios revolucionários que passaram
a admiti-los e defendê-los como necessários ao processo de transição
socialista. Naqueles países onde a burguesia e seu aparato de conser-
vação resistiram selvagemente às mudanças, como ocorreu na Rússia,
essa situação de repúdio aos resquícios burgueses só poderia ganhar
contornos bizarros e, ao mesmo tempo, trágicos.
Apesar disso, os socialistas terão que se haver com problemas
idênticos em suas tentativas de romper com o sistema capitalista. É
verdade que sua solução poderá ser eventualmente facilitada pela am-
pliação atual da luta democrática e pela compreensão mais generali-
zada de que as sociedades socialistas de transição terão fundamentos
comuns com as sociedades capitalistas. Nelas deverão continuar agin-
do e até mesmo se desenvolvendo resquícios e elementos típicos do sis-
tema produtor de mercadorias, ao lado e concorrendo com elementos
da nova formação social. Empregar a ditadura contra eles seria fazer
como Don Quixote contra os moinhos de vento, causando prejuízos
247
WLADIMIR POMAR
sem conta contra o próprio socialismo, conforme evidencia a experi-
ência do chamado socialismo real.
Por outro lado, essa convivência contraditória jamais poderá ser
suave ou isenta de choques e rupturas diversas. O processo de sociali-
zação econômica e democratização política das sociedades nas quais
os socialistas conquistam a hegemonia e empreendem processos de
transformação pode colocar diante deles problemas e situações menos
ou mais agudos. A amplitude da resistência da burguesia, por exem-
plo, combinada ao grau de sua violência, deverá determinar os ritmos
e os avanços posteriores, tanto da democratização política quanto do
desenvolvimento das forças produtivas. Só os santos não acreditam na
existência de contra-revolucionários. Ou de que eles sejam capazes de
se abster de aproveitar qualquer circunstância para sabotar ou sub-
verter o novo regime, ou mesmo um governo socialista eleito segundo
as regras ainda predominantes da democracia liberal. Os contra-re-
volucionários continuarão existindo por longo tempo nas sociedades
socialistas e não será a implantação de uma democracia plena, com os
derrotados gozando de todos os direitos e garantias políticas, que os
conduzirá pelos caminhos da razão e da cooperação.
Essa situação deverá ser verdadeira nos países atrasados, onde o
velho tipo de Estado-coerção é predominante, como nos casos do Hai-
ti, Peru e assemelhados. Também deverá estar presente em países de
desenvolvimento tardio e excludente, onde o Estado mantém um certo
equilíbrio instável entre coerção e consenso, como nos casos do Brasil,
México e Argentina. E deverá ocorrer nos países avançados, nos quais
o Estado amplo e consensual tornou-se predominante.
Nestes, o progresso político que acompanhou a evolução da bur-
guesia pode haver conformado um bloco social unitário anticapita-
lista, com forte embasamento na sociedade civil. Nessas condições, a
burguesia pode ver-se forçada a negociar e aceitar a nova hegemonia e
o programa de reformas econômicas e políticas de transição, tornando
desnecessário que a democracia de massas exile alguma classe ou fra-
ção de classe de seus direitos políticos. As ações de sabotagem podem
ficar restritas a elementos ou grupos isolados da classe perdedora e
a resistência de classe pode enquadrar-se na obediência às regras e
procedimentos democráticos formais estabelecidos para as disputas
248
A ILUSÃO DOS INOCENTES
políticas. Numa situação desse tipo, as reformas visando abolir a pro-
priedade privada dos meios de produção e eliminar o trabalho como
mercadoria, muito provavelmente poderão seguir o processo paulati-
no preconizado por Marx.
Nos países de desenvolvimento tardio e excludente, onde a socia-
lização econômica e a democratização política avançaram, mas convi-
vem com situações de atraso e polarização, o processo de reformas e
transformações pode apresentar variantes e combinações bem mais
complexas. A começar pelo fato de que a política de reformas econômi-
cas terá que dar prioridade não àquelas voltadas para abolir o lucro e o
consumo privado, ou a propriedade privada e o trabalho, porém àque-
las destinadas a superar os bolsões e os gargalos de atraso e miséria.
Isso pode, quase certamente, reforçar a lógica da acumulação privada
e do sistema de exploração do trabalho. Na política, as reformas talvez
tenham, ao mesmo tempo, que estimular o pluralismo das organiza-
ções sociais e reforçar os instrumentos de obtenção da vontade geral,
ampliar os direitos e garantias da maioria da população e privar dos
direitos e garantias a classe derrubada ou frações dessa classe.
Nesses países, existe a possibilidade de vitórias eleitorais dos so-
cialistas na disputa pelo governo e a probabilidade de que os conser-
vadores aceitem tal vitória ou, ao contrário, rompam com as regras do
jogo que eles próprios estabeleceram para o chamado rodízio no po-
der. Os socialistas poderão ver-se, assim, diante de situações antagô-
nicas. Poderão ingressar num processo de contínuas reformas e rup-
turas parciais, inclusive da própria institucionalidade, que acelerem e
consolidem a socialização econômica e a democratização política por
meio do evidente consenso da maioria em torno das reformas propos-
tas. Ou poderão ser levados a enfrentar um difícil e doloroso confronto
com a burguesia, que geralmente é tentada a resgatar o caráter coerci-
tivo de seu Estado para impedir as mudanças. Nessa condição é muito
difícil definir modelos e critérios apriorísticos para os processos de
socialização econômica e política.
Se a burguesia tiver capacidade para impor o confronto, isso se
deverá, muito provavelmente, ao fato de que o bloco hegemônico da
maioria não possui um embasamento sólido na sociedade civil. Não
chegou a alcançar, pois, um suficiente grau de desenvolvimento, que
249
WLADIMIR POMAR
houvesse conformado uma maioria nítida e esmagadora. Na política
real, porém, nem sempre é possível fugir ou adiar um confronto desse
tipo. De qualquer maneira, se seu resultado for o sucesso socialista, o
Estado resultante será, quase certamente, uma mistura desproporcio-
nal entre coerção e consenso e será quase impossível evitar medidas de
repressão e exílio sobre as classes ou frações de classe que forçaram o
confronto. Tais medidas, inclusive, dependerão muito pouco dos socia-
listas e muito mais da imposição das forças sociais que os apóiam. Elas
poderão forçar caminhos mais ou menos duros, mais ou menos ditato-
riais, mais ou menos despóticos, dependendo das seqüelas da resistên-
cia e violência contra-revolucionária e do estágio cultural da sociedade.
Em situações como essa, o processo de democratização política
torna-se muito mais complexo. Em tese, a tarefa principal dos socialis-
tas deve consistir em ampliar os mecanismos de representação política
e estimular a criação de novos instrumentos participativos de massa,
que aumentem a consulta e o controle social e alarguem os círculos de
participação da população trabalhadora na tomada das decisões polí-
ticas e administrativas. Mas o ritmo e a amplitude desse processo de-
penderão de inúmeros fatores difíceis de precisar com antecedência.
Nos países mais atrasados na socialização da economia e na de-
mocratização política, todos esses problemas deverão apresentar-se
ainda mais embaralhados e com mais agudeza. Os socialistas deverão,
em conseqüência, enfrentar situações idênticas às que envolveram
os revolucionários dos países que ingressaram no socialismo real, os
quais, por circunstâncias históricas e culturais, viram-se obrigados a
seguir por vias tortuosas de confrontos e rupturas com inimigos po-
derosos e implacáveis. Mais uma vez se verão às voltas com a neces-
sidade de incentivar a criação de uma sociedade civil, cujo pluralismo
pode tender facilmente para o corporativismo e o tribalismo, passando
a representar um sério empecilho à conformação de uma vontade ge-
ral que se volte efetivamente para retirar o país do atraso e da miséria
em que se encontra.
As tensões, os atritos e as disjunções, principalmente se sofre-
rem a interferência das antigas classes dominantes, também tende-
rão a ser resolvidas pela força, após entendimentos frustrados e como
base para um novo entendimento. O Estado, nestas condições, mante-
250
rá um forte papel coercitivo por um período difícil de prever, mesmo
que os socialistas realizem um esforço perseverante para ampliar o
consenso, como aspecto principal e predominante de sua ação. A de-
mocratização política vai depender, em grande medida, do avanço da
socialização econômica e, também, da elevação do nível cultural geral
da população, embora ela influencie, por sua vez, a socialização econô-
mica e a elevação cultural.
Um dos males dos socialistas revolucionários do passado foi não
considerar a coerção como uma situação transitória, na perspectiva
apontada por Gorender, desprezando totalmente a construção de uma
legalidade consensualmente aceita e obrigatória para todos, indistin-
tamente. Essa é uma das condições para a construção de uma socieda-
de civil, coisa que o próprio Dahrendorf reconhece não ser uma tare-
fa fácil. Mais difícil ainda é realizá-la em países onde sequer existem
traços de seus fundamentos e onde não havia ou não há tradição de-
mocrática. Ou construí-la, desde o início, no sentido de levá-la a apro-
priar-se paulatinamente das funções políticas do poder.
As experiências nesse sentido são poucas e negativas. Na antiga
União Soviética, a tarefa de construir uma sociedade civil socialista foi
não só desprezada, como impedida. Quando a glasnost foi implementa-
da, a democratização não encontrou uma sociedade civil capaz de ab-
sorver e apropriar-se de muitas das funções políticas monopolizadas
pelo Estado despótico. O pluralismo funcionou com um efeito explosivo,
sobrepondo-se à vontade geral e resultando num processo destrutivo
que tornava inviável até mesmo a esperança de que pudesse instalar-se
uma democracia liberal mais ou menos avançada. Os acontecimentos
na nova Rússia mostram o quanto a ausência de uma sociedade civil
forte abre campo tanto para a anarquia política e social como para no-
vas aventuras autoritárias e despóticas, inclusive fascistas.
Nos países do socialismo sobrante, os descaminhos e a pouca
perseverança na democratização pesam até hoje no processo de re-
formas e no ritmo e amplitude da socialização da política. Apesar dis-
so, querer impor a esses países que aceitem, de chofre, a assimilação
e a implantação de todos os mecanismos da democracia liberal, nas
condições em que o capitalismo contínua pressionando para liquidar
qualquer resquício de socialismo, é o mesmo que desejar que se repi-
251
WLADIMIR POMAR
ta neles a explosão que a glasnost causou no leste europeu e saudar
isso como uma grande e saudável vitória da liberdade e da democracia.
Essa visão ainda era aceitável nos primeiros momentos após a derro-
cada dos regimes políticos de tipo soviético, quando parecia que as re-
formas políticas e econômicas poderiam ser conduzidas por estradas
verdadeiramente democráticas, ampliando a participação política e
mantendo e ampliando as conquistas econômicas e sociais.
No entanto, até o papa parece haver entendido a verdadeira natu-
reza das reformas capitalistas da Europa oriental, com a instauração
do autoritarismo liberal, o alijamento das populações da participação
política, com a brutal e selvagem acumulação capitalista às custas de
uma inominável ampliação da miséria de massa e a liquidação de toda
e qualquer conquista anterior. Nessa situação, manter a mesma exi-
gência é querer impedir, a priori, qualquer possibilidade de uma refor-
ma do socialismo que conduza, não ao capitalismo, mas a uma transi-
ção em direção a sociedades onde a exploração e a opressão possam,
mesmo paulatinamente, tornar-se coisas do passado.
Essas observações não se restringem, porém, às dificuldades do
socialismo sobrante para reformar-se e consolidar um processo de
transição que intensifique a socialização econômica e a democratiza-
ção política. Elas dizem respeito, igualmente, às dificuldades que os
socialistas de cada país terão que enfrentar se ingressarem na via de
transição socialista. Todos eles terão pela frente condições econômi-
cas, sociais, políticas, culturais, raciais, étnicas e religiosas, todas elas
historicamente formadas e com características peculiares, que vão
determinar as formas e os ritmos das transformações, assim como as
rupturas e continuidades possíveis.
252
VII A transição possível
R etomando as ponderações de Marx sobre a transição do capitalis-
mo para o socialismo, mas levando em conta, ao mesmo tempo, as
experiências da luta socialista e comunista nestes últimos cem anos,
assim como a aguçamento do processo de desenvolvimento desigual
do sistema produtor de mercadorias, é possível prever a ocorrência de
novas revoluções sociais (pacíficas ou não), mesmo em países ainda re-
lativamente atrasados. Em todos os países em que essa situação ocor-
rer, os socialistas ver-se-ão diante da necessidade, sempre, de rematar
o desenvolvimento capitalista não completado pela burguesia, intensi-
ficando a socialização da produção e da política a partir do estágio al-
cançado por aquele desenvolvimento, e não a partir de sua vontade de
ver implantadas a igualdade econômica e social e a democracia plena.
Em tese, nos países avançados a transição do capitalismo para
uma sociedade realmente igualitária pode ser mais rápida, com as
rupturas mais profundas e as continuidades menos extensas. Nos paí-
ses mais atrasados, a transição pode se arrastar por um longo período,
com as continuidades tão longas e as rupturas tão parciais que pode-
-se ter a impressão de estar reconstruindo (ou construindo) um capi-
talismo mais civilizado, em lugar do socialismo. Em outras palavras, a
transição socialista será muito diferenciada de país para país, sendo a
transição possível em cada um deles, conforme o espírito da expressão
cunhada por Alec Nove.
Mas esse é um campo de discussão relativamente novo para os
socialistas, embora isso possa parecer paradoxal. Primeiro porque só
agora existe uma experiência concreta de construção socialista a ser
analisada, embora ela seja encarada de forma muito negativa e pre-
253
WLADIMIR POMAR
conceituosa. Segundo, porque há uma forte resistência dos socialistas
em aceitar a transição como um processo de convivência, conflituosa
e também cooperativa, entre dois sistemas sociais e, no qual, um tende
a superar o outro, ao mesmo tempo conservando e modificando (dando
continuidade e rompendo) os elementos positivos do antigo sistema e
abolindo os elementos negativos. Vimos como Kurz se insurge contra
a possível existência de fundamentos comuns aos dois. Ele acredita
mesmo que, em face das ações coletivas de suicídio do sistema pro-
dutor de mercadorias, em escala mundial, já não teria sentido discutir
reformas isoladas.
Em terceiro lugar, ressurgem com força esperanças de um socia-
lismo ideal que não repita os erros e desacertos das experiências reais.
Rubio crê que se trata de conceber e realizar modelos de desenvolvi-
mento autenticamente humanos, com primazia ao valor de uso sobre
o valor de troca e a um conceito mais amplo e racional da eficiência
produtiva. Ele não explica como alcançar esse patamar sem antes de-
senvolver as forças produtivas de uma maneira consistente, tendo que
atravessar, portanto, pelo sistema de trabalho e pelo sistema produtor
de mercadorias, que Kurz pretende aniquilar o quanto antes.
Quiniou, ao contrário, procura pensar a transição como um tem-
po longo, independentemente de todo voluntarismo idealista, como
evolução revolucionária, sempre materialmente determinada, sejam
quais forem as rupturas necessárias. Arrighi também supõe que o
tempo e as modalidades da transição para a ordem pós-burguesa de-
verão ser indeterminados, precisamente porque a transição vai depen-
der de uma multiplicidade de vitórias e derrotas, combinadas espacial
e temporalmente. A miséria de massa, por exemplo, tão disseminada
nos países capitalistas atrasados, é um sério obstáculo ao uso do poder
para alcançar a sociedade igualitária. Luís Fernandes, por seu turno,
prevê que transição socialista terá que conviver, por um longo período
histórico, com relações de mercado e com a competição do setor socia-
lista com diferentes formas de propriedade, ampliando progressiva-
mente os mecanismos de regulação social da economia, à medida que
se avançar na progressiva socialização da produção.
Em alguns países que ingressarem na transição socialista, a de-
mocracia política poderá se aproveitar melhor das conquistas anterio-
254
A ILUSÃO DOS INOCENTES
res da democracia liberal. Em outros isso não será possível. A transi-
ção de regimes políticos mais fechados para democracias mais amplas
poderá seguir caminhos mais difíceis e pouco sólidos, dependendo
dos confrontos que as classes derrubadas impuserem. E, mesmo nos
países onde a democracia já tenha alcançado um alto nível de partici-
pação, seria ilusão tola supor que o socialismo esteja infenso de ver-se
às voltas com situações idênticas às da primavera de 1989 em Pequim.
Ou, como na Nicarágua, seja asfixiado até ter que contentar-se com um
acordo que lhe permita disputar o próximo rodízio, antes tendo que
esmagar antigos combatentes da luta de libertação.
Em vários países, o mercado terá mais força do que o Estado, im-
pondo distorções e desigualdades mais acentuadas. Em outros, a pro-
priedade estatal e outras formas de propriedade social permitirão uma
concorrência mais equilibrada e uma ação estratégica mais planejada,
tomando mais em conta as preocupações de Rubio. Qualquer que seja,
porém, a correlação entre a ação do mercado e do Estado socialista,
a distribuição da riqueza social ainda se dará de forma desigual, em
virtude dos diferentes tipos de propriedade e dos desequilíbrios so-
ciais e regionais historicamente herdados. E sempre haverá o perigo
de que tais desigualdades se polarizem e gerem conflitos sociais e po-
líticos. Mecanismos capitalistas e mecanismos socialistas conviverão
e se atritarão durante um largo período, permanecendo a indagação de
qual deles, afinal das contas, prevalecerá.
Hayek tinha razão quando dizia que a relação entre a ordem do
mercado, eufemismo que usava para denominar o capitalismo, e o so-
cialismo, era nada menos do que uma questão de sobrevivência. Se ele
pudesse, eliminaria qualquer possibilidade de socialização da pro-
dução pelo capitalismo e sublimaria a ordem do mercado através de
produtores individuais que não dependessem uns dos outros. Só que,
nesse caso, o mercado ruiria e não teria razão de ser. Muitos socialistas
revolucionários pensavam como Hayek, mas de forma invertida. Para
eles, o socialismo deveria existir eliminando qualquer vestígio do ca-
pitalismo e, se possível, surgindo de qualquer outra coisa. Até Lênin,
que costumava ser realista quando analisava uma situação, supôs a
possibilidade de construir o socialismo sem passar pelos dissabores
do modo de produção capitalista.
255
WLADIMIR POMAR
Depois de todos esses anos de experiências, em que vitórias e
fracassos combinam-se numa equação bastante complexa, vemo-nos
obrigados a reconhecer a realidade de que o socialismo surge, indis-
cutivelmente, dentro do próprio sistema capitalista, como negação a
seus aspectos ou elementos negativos. Só pode superar o capitalismo,
abolindo e eliminando tais aspectos ou elementos negativos e conser-
vando e transformando seus aspectos e elementos positivos. Se todos
esses aspectos e elementos do capitalismo, negativos e positivos, não
estiverem suficientemente desenvolvidos e em condições de serem
abolidos e transformados, mas as forças políticas socialistas forem le-
vadas a assumir o poder político, não lhes resta outro caminho senão
desenvolver tais aspectos do capitalismo, até poder aboli-los e trans-
formá-los. Essa é a condição necessária para desenvolver o próprio
socialismo.
Queiramos ou não, a experiência vem mostrando que essa é a
transição possível. Ou nos dispomos a seguir por ela, apesar de todos
os transtornos, dificuldades, incompreensões e riscos, ou seremos
obrigados a sonhar novas utopias e aguardar o fim abrupto e devas-
tador do capitalismo, como sinal de advento de um novo mundo. Isso,
é lógico, se não formos atropelados pelos deserdados do capitalismo
que, como todos os deserdados da história, sempre acharam um meio
de lutar e criar novas lideranças quando as antigas não conseguiam
enxergar seu próprio papel.
ESTADO SOCIALIZANTE
Uma questão crucial, tanto para a ruptura com a ordem capita-
lista dominante quanto para a transição a uma nova ordem de socia-
lização econômica e política, continua sendo a referente ao papel do
Estado. Mesmo que ocorresse a revolução sonhada por Kurz, com base
no movimento de supressão formado pela conscientização da humani-
dade, dificilmente seria possível descartar de imediato o Estado. Não
só porque, como o próprio Kurz admite, seria necessário resolver a
situação dos representantes do sistema a ser aniquilado, mas princi-
palmente porque a abolição da propriedade privada, do sistema capi-
talista de produção e distribuição e do conjunto relativamente extenso
256
A ILUSÃO DOS INOCENTES
de mecanismo que conformam esse sistema, exigiria a presença do
Estado por um período mais ou menos longo. Mesmo porque tudo isso
dependeria, fundamentalmente, de estarem efetivamente criadas as
condições que tornam supérflua a existência da propriedade privada.
Marx dizia que a posse dos meios de produção em nome da so-
ciedade é o primeiro ato no qual o Estado se manifesta, efetivamente,
como representante de toda a sociedade. E é, ao mesmo tempo, seu úl-
timo ato independente como Estado. A intervenção da autoridade do
Estado nas relações sociais se fará supérflua num campo atrás do ou-
tro da vida social e cessará por si mesma. O Estado não será abolido,
se extinguira.
Entretanto, o próprio Marx era de opinião que esse ideal futuro
de apropriação de todos os meios de produção pela sociedade só pode-
ria realizar-se, só poderia converter-se numa necessidade histórica, se
antes se dessem as condições efetivas para a sua realização. Ou seja,
não bastaria que a razão compreendesse que a existência das classes é
incompatível com os ditames da justiça, da igualdade etc. Não bastaria
a vontade de abolir essas classes. Seriam necessárias determinadas
condições econômicas novas. O fato do trabalho global da sociedade
só render o estritamente necessário para cobrir as necessidades mais
elementares, e o fato do trabalho absorver todo ou quase todo o tempo
da imensa maioria dos membros da sociedade, (deveriam haver se tor-
nado coisa do passado.
Para Marx, pois, só seria possível harmonizar o modo de produ-
ção, apropriação e troca com o caráter social dos meios de produção,
reconhecendo de modo efetivo o caráter social das forças produtivas
modernas. Ou seja, tais forças produtivas deveriam haver alcançado
um desenvolvimento de tal ordem que o trabalho global passasse a
render muito além do estritamente necessário e o trabalho da maioria
dos membros da sociedade houvesse deixado de ser uma necessidade
para o funcionamento e a reprodução ampliada da produção. Nessas
condições, as forças produtivas não poderiam mais ser contidas pelo
invólucro da propriedade privada e o romperiam, tornando-a descar-
tável. Só então seria possível realizar a extinção paulatina do Estado.
Por isso mesmo não vale a pena nos alongarmos muito sobre a in-
congruência de Kurz ao admitir a necessidade de um período de tran-
257
WLADIMIR POMAR
sição, no qual o Estado teria um papel determinante. Na prática, ele
coloca os socialistas da revolução global e final diante de problemas
idênticos aos enfrentados por seus congêneres após a revolução de
1917. O que importa, então, é discutir o papel do Estado nos processos
de transição possível nos diferentes países de desenvolvimento capi-
talista desigual. Nesse sentido, Kurz tem o mérito de haver apontado
para os surtos de estatismo como contraface dos surtos monetaristas
do capital. Eles seriam uma unidade dialética que expressaria a ten-
dência do capital em se autodestruir, seja criando classes antagônicas,
seja funcionando expansivamente pelo motor da concorrência louca
que pode afundá-lo em crises implosivas. A lógica de Kurz, porém,
embaça essa visão dialética. Não o deixa ver o fato de que, enquan-
to não estiverem realmente maduras as condições para a abolição da
propriedade privada, do trabalho, do salário, preço, lucro, mercado-
ria e mercado, nos termos sugeridos por Marx, o estatismo continuará
sendo necessário como contraponto às manifestações e ações moneta-
ristas descontroladas do mercado.
Estatismo e monetarismo, Estado e anarquia da produção, pla-
nejamento e mercado, são pólos contrários de uma mesma unidade,
aspectos opostos de uma mesma contradição. Um só pode ser abolido
quando o outro for transformado. O neoliberalismo supôs possível re-
duzir o Estado a um estado mínimo, com vistas a um funcionamen-
to menos crítico do capital. O mercado, retomando as velhas teses de
Adam Smith, seria capaz de solucionar seus próprios problemas pela
ação de sua mão invisível. Thatcher e Reagan impuseram esse princí-
pio e procuraram levá-lo às últimas conseqüências na Inglaterra e nos
Estados Unidos. No entanto, para impulsionar seu surto monetarista,
os Estados inglês e americano reforçaram sua intervenção no mer-
cado, impondo desregulamentações, privatizações e financiamentos
ao capital privado, num esforço desesperado para alcançar a síntese
dialética de transformação do pólo estatista em seu contrário mone-
tarista. Os países centrais, de um modo ou outro, procuraram seguir
a mesma receita neoliberal monetarista, transformando seus Estados
de bem-estar social em Estados de incentivo à rentabilidade e eficiên-
cia econômica do capital.
Apesar desse esforço estatista em socorro do monetarismo, os re-
258
A ILUSÃO DOS INOCENTES
sultados têm sido desastrosos. E, do mesmo modo que a crise fiscal dos
Estados de bem-estar tem levado a social-democracia à derrota, o fra-
casso do neoliberalismo está levando os conservadores a amargar sérios
revezes, obrigando a tendência monetarista a ceder lugar, novamente,
ao estatismo, não necessariamente patrocinado pela social-democracia.
O socialismo de comando, do tipo soviético, absolutizou o estatis-
mo como pretensa negação do próprio capitalismo e não somente de
seu aspecto monetarista. Pretendeu abolir administrativamente a pro-
priedade privada e o mercado. Nos momentos de maior exacerbação
estatista, achou possível abolir o dinheiro e o salário. No entanto, do
mesmo modo que o aprendiz de feiticeiro da fábula musical foi incapaz
de paralisar a ação da vassoura e do balde, aos quais dera movimento,
o Estado máximo soviético igualmente não foi capaz de liquidar os me-
canismos econômicos que expressavam a necessidade de existência
da propriedade privada e do mercado. A força de trabalho para movi-
mentar os instrumentos de produção, o salário para remunerar o tra-
balho, o dinheiro como meio de troca, o preço como medida de valor,
a compra e a venda de mercadorias, todos esses elementos do sistema
capitalista povoavam como almas penadas um mundo que se preten-
dia livre da materialidade dessas reinvenções do capital.
A sociedade acabou mostrando ser mais forte do que o Estado
criado para ordená-la, quando essa ordenação se contrapôs às tendên-
cias materiais de seu desenvolvimento. Acabou criando mecanismos
próprios que rompiam as ordens do Estado e recolocaram na pauta da
sociedade suas necessidades concretas, monetaristas e privatistas,
artificialmente extintas.
O engessamento do estatismo soviético, sufocando o monetaris-
mo, desenvolveu um prolongado processo de supurações anárquicas
na economia, como os negócios subterrâneos, e estimulou um exage-
rado privatismo na política e nas relações pessoais. Blackburn notou
que a formação social do tipo soviético deu muito pouco lugar à inicia-
tiva popular e ao pluralismo, ou ao auto-reconhecimento e à auto-ativi-
dade (coletiva ou individual) , tanto na vida econômica, quanto na po-
lítica e na cultural. Paradoxalmente, quanto mais estas manifestações
eram tomadas ou confundidas com o individualismo, o liberalismo e
o capitalismo (portanto, com seu aspecto monetarista), mais estati-
259
WLADIMIR POMAR
zação as autoridades soviéticas aplicavam, num esforço desesperado
para livrar-se dos resquícios burgueses e, supostamente, avançar na
construção socialista. Já vimos a maneira pelo qual um fenômeno se
transforma em seu contrário, levando o estatismo soviético a ser nau-
fragado pelo monetarismo neoliberal, embora para isso necessite de
um novo estatismo, tão ou mais autoritário quanto o anterior.
Assim, queiram ou não, os socialistas terão que conviver com o
Estado por um longo período. Sem Estado, como diz Herbert de Souza,
no mundo moderno não existe sociedade, nem nação, nem desenvol-
vimento humano, social e político. Mesmo que os socialistas se vejam
na contingência de apoiar os trabalhadores no esmagamento, ou des-
truição, do velho Estado, terão que criar um novo. E esse novo Estado
socialista, como construção histórica, não conseguirá fugir das atri-
buições fundamentais de exercer a coerção e formar o consenso na so-
ciedade que deve ordenar. Continuará sendo um dos pólos das contra-
dições geradas pela propriedade privada e existirá enquanto esta não
houver esgotado suas possibilidades de desenvolvimento.
Por outro lado, os socialistas não poderão resvalar pelo mesmo
erro soviético, supondo que a propriedade estatal sobre os meios de
produção possa dar solução ao conflito entre o caráter social da produ-
ção e o privatismo de sua apropriação. As forças produtivas não per-
dem sua condição de capital ao transformar-se em propriedade das
sociedades anônimas e dos monopólios. Também não perdem essa
condição ao transformar-se em propriedade do Estado. Isso é verdade
mesmo que esse Estado seja dirigido pelos socialistas e tenha a pers-
pectiva explícita de desenvolver a socialização das forças produtivas
e do poder, de modo a criar condições para a abolição da propriedade
privada e do trabalho (e, portanto, de si próprio). A abolição prematura,
pela via político-administrativa, da propriedade privada, exacerbará
o estatismo e acabará gerando um Estado despótico, burocrático e re-
pressivo. Sua história é bem conhecida.
A diferença do Estado das sociedades de transição socialista, em
relação ao Estado capitalista, consiste em que há uma mudança na
natureza de classe do Estado e que, com isso, fortalece-se a tendên-
cia a fazer com que a socialização do poder corresponda mais apro-
ximadamente à socialização econômica. O Estado socialista intervém
260
A ILUSÃO DOS INOCENTES
no sentido de elevar o nível de socialização econômica. Desenvolve as
forças produtivas, revolucionando-as constantemente. Impede a ação
anárquica e destrutiva do mercado e estimula sua própria socialização
ou democratização. Em outras palavras, vê-se obrigado a combinar es-
tatismo e monetarismo, planejamento e mercado, propriedade social e
propriedade privada, coerção e consenso, pluralismo e vontade geral,
representação e consulta.
Marx dizia que o Estado não era mais do que uma organização
criada pela sociedade burguesa para defender as condições exteriores
gerais do modo de produção capitalista contra os atentados, tanto dos
operários quanto dos capitalistas individuais.
Talvez pudéssemos dizer, parafraseando-o, que o Estado de tran-
sição socialista deve ser uma organização, criada pela revolução (no
sentido mais amplo do termo), para evitar a ação cega do mercado e di-
recionar seus aspectos positivos no sentido do desenvolvimento con-
tinuado das forças produtivas e de sua socialização gradual e persis-
tente. Isso deve significar entre outras coisas, a defesa das condições
exteriores gerais da transição do modo capitalista de produção para
um modo pós-capitalista contra os atentados, tanto dos capitalistas
quanto dos trabalhadores individuais.
Não é consensual entre os socialistas, porém, que nas socieda-
des de transição socialista devam continuar presentes a propriedade
privada, o mercado, a burguesia e as conseqüências daí resultantes.
Alguns abominam a idéia de que no socialismo possam haver patrões,
pelo simples fato de que, com eles controlando ramos inteiros da pro-
dução, haveria uma sabotagem econômica sistemática, que impedirá
a construção do socialismo. Não levam em conta que o Estado socia-
lista poderia agir economicamente para impedir o domínio de ramos
inteiros. A existência de capitalistas individuais não deve significar,
automaticamente, o monopólio capitalista. Por outro lado, na socieda-
de capitalista o mercado também permite uma sabotagem econômica
sistemática de uns capitalistas contra outros. Paradoxalmente, esse é
o motor da construção capitalista, com o Estado intervindo para evi-
tar que sua aceleração destrua a si próprio. Por que o Estado socialis-
ta estaria a priori incapacitado para cumprir esse papel na sociedade
de transição? Coutinho, por sua vez, sugere uma política de reformas
261
WLADIMIR POMAR
revolucionárias que leve à transição socialista e obtenha o consenso
necessário para reformas estruturais que construam uma nova lógica
de acumulação e de investimento. Ele quer que essa lógica não esteja
mais centrada na busca do lucro e na satisfação do consumo puramen-
te privado, mas no crescimento do bem-estar social e dos consumos
coletivos. Coutinho reconhece que a execução dessa proposta deman-
da modificações no estatuto da propriedade, que levem a um controle
público (não necessariamente estatal) dos setores chave da economia.
Os objetivos sugeridos por Coutinho devem ser, sem dúvida, da
natureza da transição socialista. No entanto, eles não podem ser apli-
cados em qualquer lugar e a qualquer tempo. O fim da lógica centrada
na busca do lucro e do consumo puramente privado vai depender do
nível de desenvolvimento da socialização econômica e não do desejo
ou vontade do Estado socialista. Em países onde não foram até agora
realizadas reformas econômicas democráticas, como a agrária, e onde
as grandes massas do povo estiveram marginalizadas da sociedade
de consumo (como é o caso do Brasil, apesar de seu desenvolvimento
em outros setores), será inevitável que a lógica da busca do lucro e do
consumo privado ainda se imponha com muita força. A não ser que se
cristalize um estatismo de tipo soviético, para impor outra lógica, o
que sei estar fora das cogitações de Coutinho.
Ele tem razão, porém, quando advoga a necessidade de modificar
o estatuto da propriedade dos setores-chave da economia, que levem a
um controle público desses setores. Mas, talvez, sob a pressão do nega-
tivismo do estatismo soviético e, também, do brasileiro, Coutinho faz a
ressalva de que tal controle não precisa ser, necessariamente, estatal.
Entretanto, mesmo quando a propriedade for estatal, será necessário
um controle público sobre ela. Isso depende, porém, do grau de socia-
lização do poder e não somente das formas de propriedade e de gestão
da economia. O estatismo exacerbado manifesta-se não só na estatiza-
ção da propriedade e na centralização absurda da gestão, mas também
na ausência de controles externos ao poder. E manifesta-se, além dis-
so, na idéia de que o voluntarismo do poder é capaz de gerar resultados
satisfatórios em quaisquer condições.
Por tudo isso, se há algo que o estatismo soviético pode ensinar
aos socialistas, pelo exemplo negativo, é que as leis contraditórias da
262
A ILUSÃO DOS INOCENTES
economia, por mais indesejáveis que sejam, não podem ser abolidas
pelo livre arbítrio dos homens, mas somente pelo desenvolvimento de
suas próprias contradições. A política não pode andar na frente da eco-
nomia: ela pode resolver os problemas colocados por esta, até mesmo
embrionariamente, mas não é capaz de substituir a economia e deter-
minar seus rumos, por mais justos que sejam os propósitos políticos.
Nessas condições, o Estado socialista de transição deve atuar
sobre os aspectos estratégicos da situação econômica, mantendo em
seu poder os setores econômicos que são determinantes na evolução
de todo o processo e utilizando seu poder econômico e administrativo
para direcionar o desenvolvimento das forças produtivas e a amplia-
ção de novas formas de propriedade social ou pública. Entretanto, o
Estado socialista não deve aproveitar-se de seu poder para estatizar
arbitrária ou administrativamente empresas privadas, em particular
se elas desempenham de forma satisfatória suas funções econômicas
e produtivas. O Estado não deve apressar-se nesse processo, nem mes-
mo quando situações políticas de aguçamento da luta de classes o obri-
gam a golpear setores da burguesia. Num contexto desses, se houver
que estatizar ou nacionalizar empresas por imposição política, o Esta-
do deve estar preparado para recuar no momento seguinte e repriva-
tizar tais empresas. O critério fundamental para extinguir setores da
propriedade privada é o grau de socialização das forças produtivas, se
esse grau comporta ou não o estreitamento da propriedade privada e a
ampliação da propriedade social em suas diferentes formas.
O mesmo é verdade em relação ao mercado. Em virtude de sua
ação cega, o mercado obriga os homens a criar elementos inibidores,
como as diversas regulamentações, que impeçam ou suavizem seus
efeitos destrutivos. No capitalismo, as regulamentações foram estabe-
lecidas sempre que foi necessário garantir a rentabilidade do capital
ou de seus setores predominantes. Ou foram atacadas ou derrubadas
toda vez que se voltaram contra eles. A legislação antimonopolista é
um exemplo típico como tentativa de retardar o processo de concen-
tração e centralização de capitais e evitar que os monopólios esma-
gassem os pequenos concorrentes e a concorrência em geral, transfor-
mando-a em processo administrado ou em luta entre gigantes.
Na transição socialista, os elementos inibidores do mercado de-
263
WLADIMIR POMAR
verão continuar existindo. Mas devem voltar-se fundamentalmente
para garantir a democracia econômica da competição entre os diferen-
tes tipos de propriedade e de gestão e para evitar que os monopólios e
as grandes empresas empreguem uma ação castradora sobre o mer-
cado. Para isso, as grandes empresas estatais terão que se subordinar
às regras gerais do mercado socialista, o que só será possível se elas
tiverem autonomia para gerir seus próprios negócios e condições de
elevar sua produtividade e rentabilidade a níveis que lhes permitam
enfrentar os padrões gerais de competitividade.
Em certo sentido, o papel gestor (coercitivo e consensual) do
Estado na transição socialista é muito mais complexo do que no ca-
pitalismo. Ele deve trabalhar no sentido de sua própria extinção, re-
vigorando permanentemente a socialização da economia e, ao mesmo
tempo, a sociedade civil que deve apropriar-se das funções políticas
da gestão econômica e social. Cabe a ele acelerar o crescimento econô-
mico, investindo em fábricas, agricultura, equipamentos, qualificação
e requalificação da força de trabalho, infra-estrutura, pesquisa e de-
senvolvimento. Mas ele deve fazer tudo isso principalmente por meios
econômicos, utilizando as instituições financeiras e seus mecanismos
para impulsionar os setores estratégicos, inibir ou, ao contrário, esti-
mular a competitividade e constituir fundos de desenvolvimento que
diminuam ou evitem os desequilíbrios sociais e regionais.
O Estado socialista terá, sobretudo, que realizar um esforço con-
sistente para desenvolver a educação, as ciências e a cultura, sem o
que será impossível não só realizar um contínuo desenvolvimento das
forças produtivas, como uma persistente democratização do poder.
Dahrendorf tem razão quando diz que a cidadania não é apenas um
estado passivo. É uma oportunidade, uma chance de levar uma vida
ativa e plena de participação no processo político, no mercado de tra-
balho, na sociedade.
Paradoxalmente, como diria Benjamin Constant, o cidadão que
vota a cada quatro anos e não pode ser eleito; não tem direito legitimo
de intervir nos negócios públicos: só garante o cenário no qual os pro-
prietários podem desenvolver sua liberdade de ação econômica, seu
comércio e seus poderes. No capitalismo, há um círculo vicioso, cada
vez mais amplo, no qual os indivíduos sem condições de participar no
264
A ILUSÃO DOS INOCENTES
mercado de trabalho não são, sequer, considerados cidadãos de se-
gunda categoria.
O socialismo de transição terá que inverter essa tendência, que
é tão mais forte quanto mais atrasado (menos socializado e menos de-
mocratizado) é o país. A educação, as ciências e a cultura são compo-
nentes indispensáveis nesse esforço, do mesmo modo que a constru-
ção e o desenvolvimento da sociedade civil, do paulatino e complexo
processo de transformação dos indivíduos em cidadãos, de difusão do
pluralismo político e da construção de uma vontade geral.
É ilusão supor que a democracia encontra terreno sólido onde
existe uma população analfabeta e uma cultura que não ultrapassou
os limites do tradicionalismo e do saber prático, por mais respeitosa-
mente que estes possam ser encarados. Em situações desse tipo, quase
sempre prevalecem os interesses imediatos, corporativistas e indivi-
dualistas das diferentes frações ou agrupamentos sociais, contra o in-
teresse geral da população. Este tende então a desagregar-se, deixando
que afinal de contas predomine o interesse exclusivista de uma daque-
las frações ou agrupamentos da sociedade. Quanto mais universal for
a educação científica e mais ampla e humanista a cultura, mais condi-
ções existirão para intensificar a socialização política, democratizan-
do o poder. O Estado pode então, como supunha Gramsci, exercer seu
poder não somente pela violência coercitiva, mas principalmente pelo
consenso resultante da hegemonia política e espiritual.
Nesse sentido, como sugere Coutinho, não há reformas radicais
na ordem econômica e social, sem uma concomitante reforma radical
na máquina do Estado, com alteração da direção política e uma de-
mocratização no modo de fazer política. Ele considera que só numa
democracia de massas é possível fazer com que uma política de refor-
mas conduza à superação gradual do capitalismo. Para ele, o proble-
ma consiste em superar a contradição existente entre a socialização
da participação política, por um lado, e a apropriação não social dos
mecanismos de governo da sociedade, por outro. Superar a alienação
econômica seria condição necessária, mas não suficiente, para a reali-
zação integral das potencialidades abertas pela crescente socialização
do homem. Essa realização implica ainda o fim da alienação política, o
que, no limite, torna-se realidade mediante a reabsorção dos aparelhos
265
WLADIMIR POMAR
estatais pela sociedade que os produziu e da qual eles se alienaram.
Os socialistas têm diante de si, assim, além da superação da alie-
nação econômica, a superação da alienação política, através da reab-
sorção social do poder político. Onde entra, nesse processo, a demo-
cracia de massas (um conceito que também qualifica positivamente o
tipo de democracia que os socialistas desejam)? Como condição para
a superação das alienações econômica e política, ou como resultado
do processo de desalienação? Ou a democratização de massas é um
processo que se alarga à medida que há socialização econômica e polí-
tica e reabsorção social do poder político? Estas são questões teóricas e
práticas que têm dividido os socialistas em suas políticas direcionadas
a romper com a ordem capitalista e que, como vimos devem continuar
gerando polêmica na transição socialista. Marx, por exemplo, achava
que entre a sociedade capitalista e a sociedade comunista deveria me-
diar um período de transformação revolucionaria, à qual correspon-
deria também um período de transição política. Ao Estado desse pe-
ríodo ele chamou de ditadura revolucionária do proletariado, conceito
que, como outros, o socialismo real transformou em maldito.
Cerroni, porém, lembra que Lênin explicitava esse Estado como
uma alternativa baseada na expansão da democracia, na participação
direta dos produtores, na elegibilidade e destituição dos funcionários
públicos e na reabsorção — como chamava Gramsci — das funções
políticas nas atividades civis. Em outras palavras, uma mudança das
estruturas políticas e econômicas baseada na autodireção dos produ-
tores, algo que o amadurecimento da revolução científica e tecnológica
está tornando uma exigência cada vez mais concreta. Bottomore lem-
bra que o tempo livre, seja pela redução da jornada de trabalho, seja
pelo desemprego, além de aumentar a variedade de trabalhos artesa-
nais e domésticos, tem aumentado significativamente a participação
dos indivíduos nas questões cívicas e nos movimentos sociais, am-
pliando pois as condições para a participação nos negócios do Estado.
De qualquer modo, a alternativa de Marx à democracia represen-
tativa da burguesia baseava-se na necessidade de criar formas mais
diretas de expressão da soberania popular e do poder democrático,
que mantivessem as formas de representação constantemente e vigi-
lantemente sob supervisão de seus constituintes e sujeitas a freqüen-
266
A ILUSÃO DOS INOCENTES
tes eleições e chamadas. A representação, acentuava Marx, é sempre
uma meia representação, perpetuando a alienação da massa do povo
em relação ao poder político. Não vale a pena voltar a discutir o quanto
essa alternativa de Marx e Lênin, colocada sob a rubrica de ditadura do
proletariado, mudou de significado sob as condições do socialismo so-
viético. Mas vale a pena relembrar que seu conteúdo era aparentemen-
te mais aplicável a nações desenvolvidas do ponto de vista econômico
e político, onde a sociedade civil já ganhara corpo, espaço e poder, do
que a nações em que a socialização econômica e política avançara pou-
co, em que a separação entre Estado e sociedade ainda era incipiente
e em que a cidadania não passara de uma aspiração a ser alcançada.
Como aliás era a Rússia no momento em que Lênin escreveu sua obra
sobre o Estado e a revolução.
Olhando o mundo real dos dias de hoje, nos diferentes e desiguais
países que o formam, talvez os problemas-chave da transição socialis-
ta e de seu Estado venham a ser, afinal, como evitar a miséria e aumen-
tar o poder social das massas da população cujo trabalho a produtivi-
dade torna supérfluo. E como incorporar à direção do Estado, através
de múltiplos instrumentos de participação, os diversos segmentos de
trabalhadores, tanto os que continuam permanentemente emprega-
dos, quanto os que vão sendo colocados à parte dessa atividade.
Evidentemente, esse reducionismo pode parecer forçado. Mas,
sem dar solução prática a esses assuntos que parecem menores, di-
ficilmente se conseguirá ir muito longe no processo de transição so-
cialista e no enfrentamento dos grandes problemas da modernidade.
A SOCIALIZAÇÃO DO MERCADO
A utilização ou não do mercado durante a transição socialista
é um velho debate nos meios socialistas. Agora, em especial, ele re-
tornou com força por imposição da derrocada do socialismo soviéti-
co, pelas reformas do socialismo sobrante em direção à economia de
mercado e pela pujante propaganda dos meios burgueses em torno
das excelências dessa relação econômica. Apesar disso, grande parte
dos socialistas refuga em aceitar sequer que o mercado esteja entre
aqueles mecanismos que a transição socialista deva manter, mesmo
267
WLADIMIR POMAR
temporariamente, como continuidade, resquício ou fundamento co-
mum do capitalismo na formação social de transição pós-capitalista.
Da mesma forma que o liberal ortodoxo e anti-socialista Hayek, esses
socialistas consideram que socialismo e mercado são incompatíveis.
Essa, porém, deixou de ser uma questão puramente ideológica.
Tornou-se política e econômica, por imposição econômica. A liquida-
ção dos mecanismos de mercado, por meio de medidas políticas, en-
gessou o socialismo soviético e conduziu-o a transformar-se em seu
contrário. A introdução do mercado no socialismo sobrante, segundo a
apreciação da mídia capitalista e de não poucos socialistas, o está con-
duzindo igualmente a transformar-se no sistema de produção-para-
-lucro. É evidente para todos que essa transformação do socialismo so-
brante está se dando por caminhos diferentes aos do vale de lágrimas
do leste europeu, mas isso não parece ter maior significado para os que
igualam mercado e capitalismo. Nessas condições, muitos se pergun-
tam se não haveria uma terceira via de transição socialista, livre do
estatismo de tipo soviético e do mercado. E, apesar da peremptória ne-
gativa dos liberais, para os quais só existe a via capitalista, procuram
responder positivamente a essa angústia.
Partem do pressuposto, diferente do de Marx, de que não é pos-
sível atender a todas as necessidades dos membros da sociedade. Do
mesmo modo que Nove, eles só trabalham a hipótese de um mundo
de escassez relativa de recursos, sem considerar o consumismo e a
abundância como fenômenos históricos. Até mesmo Ernest Mandei,
que parte da mesma premissa de Marx, considera necessário e possí-
vel encontrar uma via que escape ao mercado. Para ele, todo sistema
econômico deve caracterizar-se por mecanismos específicos de de-
terminação de prioridades. Numa economia regulada pelo mercado,
essas prioridades são definidas em função do lucro privado. Na econo-
mia soviética de comando, as prioridades eram arbitrárias, de acordo
com os interesses da burocracia. No socialismo, deveríamos ter uma
via cujos interesses fossem determinados pelo povo, através de me-
canismos democráticos e empregando os recursos disponíveis, cujas
fontes seriam a redução dos gastos militares e repressivos, a elimina-
ção total do desemprego dos recursos (homens, terras, instrumentos
de trabalho e capacidade produtiva) e a redistribuição da propriedade.
268
A ILUSÃO DOS INOCENTES
Exploremos um pouco as possibilidades dessa via. Em socieda-
des onde, por muito tempo, grandes massas da população foram pri-
vadas de participar da sociedade de consumo, em contraste com a bur-
guesia e frações das classes médias, essas massas tenderão a optar,
democrática e naturalmente, pela elevação de seu consumo e poderão
até mesmo optar, apesar de qualquer propaganda em contrário, pelo
consumismo conforme os padrões das camadas abastadas. Isso deve-
rá pressionar o emprego dos recursos disponíveis, podendo mesmo
tornar possível o segundo aspecto da proposição de Mandei, embora
o primeiro aspecto seja o oposto do que predica. Cria-se, então, uma
contradição que pode colocar a nova via diante de impasses compli-
cados.
Por outro lado, Mandei não explica como seriam determinados os
preços e os salários, nem os mecanismos para a reprodução ampliada
da produção. Também não explica como seria possível manter o ple-
no emprego dos recursos humanos e, ao mesmo tempo, revolucionar
as forças produtivas e elevar a produtividade. Ou, ainda, como utilizar
plenamente a terra, preservando-a ecologicamente. Nem o que acon-
tecerá com o Estado, se o mercado for abolido. Pois, se isto acontecer
antes que a sociedade haja construído uma forte sociedade civil, a ten-
dência será que o Estado se aproprie da vontade geral, contrapondo-se
ao pluralismo corporativo das instituições democráticas.
Cairíamos, então, na mesma armadilha que levou ao sovietismo.
A receita de Mandei talvez seja viável nos países capitalistas desen-
volvidos, onde a socialização econômica e a democratização do poder
parecem manter uma certa correspondência. Mas deixa sem resposta
o problema da transição socialista em países atrasados ou com fortes
desigualdades econômicas e sociais.
Kurz é outro radical opositor ao mercado. Aliás, sua originalidade
está justamente na oposição à própria transição. Consciente de que o
mercado capitalista apresenta, negativamente, todos os aspectos que
devem ser tomados positivamente na nova sociedade pós-capitalis-
ta, propõe a recuperação desses aspectos por meio de uma revolução
mundial no interior da catástrofe do sistema produtor de mercadorias,
com a conseqüente abolição de todos os mecanismos que conformam
esse sistema. O problema do mercado, como os demais, sumiria na po-
269
WLADIMIR POMAR
eira. Essa hipótese, porém, nos coloca na inação, à espera do dia do
juízo final, enquanto a vida real nos empurra, constantemente, para
as possibilidades de transformação de formações sociais, imperfei-
tas ou desigualmente desenvolvidas, em outros tipos de sociedade. E
aqui somos levados a retomar outro paradigma histórico de Marx: uma
nova formação social jamais se desenvolve completamente antes que
a antiga tenha desenvolvido e esgotado todos os seus elementos com-
ponentes.
A transição socialista, desse modo, jamais se transformará numa
formação social totalmente pós-capitalista antes de haver desenvol-
vido, esgotado e superado todos os mecanismos que conformavam
o sistema capitalista anterior. Por que, então, deve-se excluir desses
mecanismos o mercado, mantendo, por outro lado, a produção de
mercadorias, o trabalho, os preços, os salários, o comércio de bens
de consumo, o comércio externo e, até mesmo, diferentes formas de
propriedade? Por uma questão ideológica, mesmo que isso nos leve a
construir um mostrengo difícil de administrar e que acabará desem-
bocando, apesar de todos os esforços em contrário, no sistema soviéti-
co? Ou por impor padrões de concorrência à propriedade social, obri-
gando-a, para demonstrar sua superioridade, a esforços de eficiência
que poderiam ser desprezados na ausência do mercado? É necessário
repor o mercado em seu contexto histórico. Ele não foi, certamente,
uma criação do capital. Surgiu à medida que os homens da antiguidade
conseguiram excedentes na produção de seus meios de vida, que pas-
saram a ser intercambiados entre indivíduos e comunidades diferen-
tes. O capitalismo teve o mérito de mercadizar todas as relações huma-
nas, transformando em mercadoria a força de trabalho e o dinheiro.
Ao desenvolver o mercado e expandi-lo mundialmente, utilizando-se
do motor da concorrência ou da competição, o capital desenvolveu ao
mesmo tempo todos os seus aspectos destrutivos e criativos, negativos
e positivos. Com isso, apresentou à humanidade, pela primeira vez na
história, a possibilidade de superar o próprio mercado e transformá-
-lo num novo tipo de relação entre os homens. Uma relação que, como
pretende Coutinho, não esteja subordinada à busca do lucro e do con-
sumo privado, mas sim de bem-estar e do consumo coletivo.
Entretanto, enquanto as forças produtivas não alcançarem uma
270
A ILUSÃO DOS INOCENTES
escala e uma produtividade que tornem possível o atendimento das
necessidades de todos os indivíduos singulares da sociedade huma-
na (inclusive através da modificação dos padrões de consumo e do
emprego dos recursos naturais), o problema do cálculo econômico se
manterá na ordem do dia. Os homens precisarão ter critérios para alo-
car os recursos disponíveis, para definir preços e salários, para esta-
belecer parâmetros aos lucros, para verificar as distorções ou desvios
na oferta e na demanda dos bens produzidos, para redefinir formas
de propriedade e gestão que ofereçam melhores condições aos empre-
endimentos e às inovações técnicas e econômicas e para delimitar os
riscos empresariais e as responsabilidades econômicas e sociais. Não
é outro o motivo que fez com que todo o debate, desde a década de 20,
em torno do mercado e do planejamento, fosse centrado justamente no
cálculo econômico.
Bukharin, que fora um defensor extremado da teoria do comu-
nismo de guerra, com a experiência soviética da NEP passou a advo-
gar a necessidade do cálculo econômico e da manutenção do mercado.
Ele considerava que isso seria possível no socialismo, aplicando a lei
do valor, mantendo uma certa proporcionalidade entre os diferentes
ramos produtivos e, principalmente, estimulando a produção campo-
nesa, de modo que ela se constituísse no mercado sobre o qual poderia
desenvolver-se a produção industrial. Abandonando completamente
sua teoria anterior, Bukharin opunha-se à industrialização baseada
em planos arbitrários, que desprezavam um conhecimento apropriado
dos recursos econômicos existentes. É interessante notar que a linha
geral das reformas chinesas, de 1978, e vietnamitas, de 1987, é seme-
lhante às proposições de Bukharin e tem permitido à China e ao Vietnã
um desenvolvimento intenso. Entretanto, Bukharin parece não haver
levado em conta que um processo industrializante, que parte de quase
nada, pode permitir um cálculo econômico razoável e uma utilização
relativamente racional dos recursos disponíveis pelo planejamento
centralizado, até um certo patamar. Desse modo, o sucesso da indus-
trialização soviética pareceu dar razão a Stálin e não a Bukharin. Fo-
ram precisos mais de 30 anos para que surgissem indícios fortes dos
descompassos e mais de 60 anos para que a razão se invertesse.
Ludwig von Mises, economista liberal austríaco, discutia na
271
WLADIMIR POMAR
mesma época a impossibilidade de adotar critérios orientadores para
alocar recursos, numa economia em que os mecanismos de mercado
houvessem sido abolidos e substituídos por uma economia planeja-
da. Mises assegurava que, nestas condições, não seria possível criar
mecanismos capazes de avaliar os usos do trabalho e dos recursos
para os inúmeros fins demandados pela sociedade. Na ausência de
mercado, mesmo atribuindo valores aos diferentes tipos de trabalho,
não haveria condições de captar as demandas reais e diferenciadas da
sociedade. Para ele, o único modo do planejamento socialista realizar
seus cálculos. nesse contexto, seria através da utilização de valores ex-
traídos da contraparte capitalista. A existência de dinheiro, salários
e um mercado de consumo, mesmo restrito, poderia eventualmente
propiciar ao planejamento central soviético realizar alguns remendos
no cálculo econômico. Mas, na ausência de critérios gerais para detec-
tar a demanda e definir preços e salários, o governo planejador deveria
substituir as funções dos consumidores e dos empresários, resvalan-
do para soluções autoritárias.
Em termos gerais, as ponderações de Mises mostraram-se acer-
tadas. No processo inicial da construção socialista soviética, a aloca-
ção de recursos ainda obedeceu a critérios facilmente detectáveis e o
planejamento central pode direcioná-la sem grandes desequilíbrios.
No entanto, tão logo foram assentadas as bases da indústria e criaram-
-se condições reais para o florescimento da demanda, o planejamento
central mostrou-se incapaz de detectar as milhões de necessidades
produtivas e estabelecer orientações adequadas a seu atendimento. Os
desequilíbrios entre indústria e agricultura agravaram-se e, mais ain-
da, os desequilíbrios entre indústria de bens de produção e indústria
de bens de consumo e entre indústria, comércio e serviços. Sem poder
flutuar pela ação da oferta e da demanda, os preços e os salários torna-
ram-se cada vez mais arbitrários e irreais. Tudo isso, coerente com a
concepção de que o socialismo deveria evitar a todo custo a anarquia
do mercado, o consumismo, a exploração do trabalho, o lucro e outros
mecanismos perversos do capitalismo, conduziu, como previra Mises,
a transformar o planejamento central no Deus ex machina da produção
e do consumo socialistas.
Karl Polanyi se opôs ás formulações de Mises, sugerindo que as
272
A ILUSÃO DOS INOCENTES
empresas, organizadas como monopólios por ramo industrial, pode-
riam ser geridas por conselhos de trabalhadores, enquanto o merca-
do coordenaria as relações entre as diversas indústrias. O sovietismo
aproveitou, na prática, uma parte dessa sugestão, organizando as em-
presas como monopólios por ramo de produção. Mas, sua coordenação
foi realizada não pelo mercado, mas sim pelo ministério do ramo es-
pecifico. E a gestão das empresas era de responsabilidade de diretores
nomeados, não de conselhos de trabalhadores. De qualquer modo, mes-
mo que fossem admitidos conselhos, sua subordinação aos ditames do
plano central, via ministérios, conduziria aos mesmos resultados.
Oskar Lange, por seu turno, achou que o planejamento socialis-
ta, por meio de sistemas matemáticos, poderia desenvolver modelos
simulados de preços, para comparar diferentes níveis de desenvolvi-
mento econômico. As planilhas de preços, de diferentes momentos,
serviriam de base a um processo de tentativa e erro, capaz de monito-
rar a elevação ou rebaixamento dos preços de um produto, conforme
as flutuações reais da demanda. Frederich Hayek, no entanto, o mais
renomado dos economistas liberais austríacos, argumentou que as
oportunidades de empreendimento e as relações de preços, ao con-
trário do que pensava Lange, eram mais complexas do que aquelas
variáveis matemáticas. Sem uma orientação econômica, que tornasse
relativamente precisos os retornos reais possíveis, como o banco cen-
tral socialista poderia fornecer fundos a uma empresa, em detrimento
de outra? Hayek, sem dúvida, era radicalmente contra a intromissão
estatal e adepto das maravilhas do mercado. Não via, como explicou
Otto Neurath, que o mercado refletia, fundamentalmente, as necessida-
des e os interesses dos que viviam o presente, explorando os recursos
econômicos sem levar em conta os interesses e necessidades das gera-
ções futuras. Para evitar isso, seria necessário algum tipo de ação ex-
terna sobre o mercado, inclusive estabelecendo critérios diferentes dos
do mercado para fornecer fundos a uma empresa e não a outra. A vida
provou que Neurath tinha razão contra Hayek, principalmente se levar-
mos em conta as preocupações ecológicas e aquelas voltadas para a so-
brevivência dos trabalhadores excedentes. Sem falar das intervenções
do Estado no mercado para salvá-lo de si próprio. Mesmo assim, Neu-
rath concordava com as observações de Mises e não esposou a teoria
273
WLADIMIR POMAR
de abolição do mercado no socialismo. Os problemas equacionados por
Mises, e também por Hayek, quanto aos empreendedores, o risco, as
inovações e as responsabilidades dos agentes econômicos pelo uso dos
recursos, eram procedentes e fugiam às atribuições do planejamento.
Outros economistas socialistas, como A. P. Lerner, H. D. Dikinson,
M. Dobb e M. Kalecki, entraram no debate para tentar responder à pro-
blemática exposta pelos economistas liberais a respeito do cálculo eco-
nômico, mas não tinham unidade de pontos de vista, nem informações
suficientes sobre o planejamento soviético. Na década de 70, aproveitan-
do-se de mais de 50 anos de experimentação econômica de planejamen-
to soviético, da experiência marginal do socialismo iugoslavo e da nova
experiência húngara e, ainda, do debate teórico que, apesar de tudo,
ocorria nos meios econômicos soviéticos, Nove retoma a necessidade
do mercado no socialismo.
Considera que sem os mecanismos de mercado, particularmente
dos preços, o planejamento fica privado de informações vitais sobre o
que mais urgentemente a sociedade deseja. Além disso, sugere que a uti-
lização de tais mecanismos permitiria que, na maioria dos casos, o mi-
cro detalhe pudesse ser decidido nos níveis inferiores, mais próximos
dos produtores e seus clientes. Relembra que os preços, conforme Marx
havia descoberto, deveriam ser fixados não somente de acordo com o
valor da mercadoria. Sob a influência da oferta e da demanda, eles flutu-
avam e desempenhavam um papel importante e ativo na determinação
do uso do capital, da terra e do trabalho.
Do mesmo modo que Mises, e ao contrário de Lange, Nove conside-
ra impossível controlar, com flexibilidade, milhões de preços através do
planejamento. Apesar disso, supõe possível e desejável controlar os pre-
ços de alguns bens estratégicos ou sociais, assim como impedir o uso do
poder dos monopólios para aumentar seus preços. A economia do socia-
lismo de Nove seria uma combinação de planejamento macroeconômi-
co com mecanismos de mercado, para o estabelecimento dos preços, e
com participação democrática, para definir investimentos e padrões de
consumo numa economia de escassez. Ao contrário de Marx, porém, a
quem rotula de utópico, Nove acha impossível superar essa economia de
escassez e chegar a um estágio em que, com abundância, o mercado e
seus mecanismos, assim como o Estado, se tornem supérfluos.
274
A ILUSÃO DOS INOCENTES
A idéia de combinar planejamento e mercado na transição socia-
lista, como vimos, também é antiga. No terreno prático, ela aparece
com Lênin na implantação da NEP, no início dos anos 20. Foi susten-
tada durante quase 10 anos por Bukharin e outros economistas sovi-
éticos durante o debate que resultou na vitória do planejamento cen-
tralizado, no final da mesma década. Durante os anos 30, com base no
estudo da economia soviética e do fenômeno do burocratismo desen-
volvido por ela, Leon Trotski defendeu o ponto de vista de que a ativi-
dade econômica socialista deveria ser direcionada pelo planejamento
governamental, pelo mercado e pela intervenção democrática dos tra-
balhadores, o mesmo tipo de proposição de Polanyi, depois explanada
mais amplamente por Nove: A ironia da história é que, justamente nos
anos 30, pressionado por sua crise cíclica, o capital passa a se utilizar
das vantagens do planejamento proposto pelo socialismo, sem aban-
donar o mercado, mas excluindo a participação democrática dos tra-
balhadores, ou mantendo-a dentro de certos limites.
No pós-guerra, o Japão, a Suécia e a Alemanha são os países ca-
pitalistas que mais desenvolvem essa combinação, enquanto os paí-
ses socialistas de tipo soviético se mantêm, em geral, aferrados ao
planejamento unilateral. Os tigres asiáticos também aproveitam-se
da mistura abominada por Hayek e pelo socialismo soviético, mas no
final da década de 60 a Hungria sucumbe à evidência, seguida pela
China no final dos anos 70. A perestroika de Gorbachev foi, em teoria,
uma proposta de combinação de planejamento, mercado e participa-
ção democrática dos trabalhadores, mas perdeu-se pela ausência de
uma estratégia adequada e pela ilusão de que seria possível destampar
bruscamente a prisão do gênio do mercado, para depois controlá-lo.
O menos arriscado seria adotar uma reforma balanceada e paulatina.
Começar pela agricultura (o gargalo mais entupido), indústria leve, se-
tor de serviços e comércio atacadista. Quebrar os monopólios dessas
áreas, reestruturar sua propriedade em moldes democráticos e desen-
tupir os canais de circulação mercantil entre a agricultura e as zonas
urbanas, Criar, assim, mais ou menos seguindo a receita de Bukharin,
um mercado florescente e, com base nele, realizar uma reforma mais
profunda na indústria.
A rigor, como acentua Thurow, numa economia socialista de mer-
275
WLADIMIR POMAR
cado não pode haver empresas reguladas e empresas não-reguladas.
Caso isso aconteça, a transferência de materiais de uso de baixo valor
para uso de alto valor, legítima numa economia de mercado, pode ser
considerada corrupção se houver uma regulação somente parcial.
Thurow acha que esse tipo de corrupção teve um papel prepon-
derante na conquista de apoio público à contra-revolução na China, em
1989. Se isso é verdade, também o é o fato de que a passagem abrupta
da economia centralmente planejada para uma economia que com-
bine planejamento e mercado pode causar uma completa desorgani-
zação econômica. A alocação de recursos torna-se uma desenfreada
dança de loucos, como ocorreu na União Soviética. De qualquer modo,
como diz Elson, numa economia socialista as decisões sobre inves-
timentos deveriam ser sujeitas a negociações entre a empresa inves-
tidora e aqueles que devem ser afetados pelo investimento — grupos
comunitários, grupos de consumidores etc. Ora, isso pede tanto o em-
prego de mecanismos democráticos de consulta, quanto a presença de
mecanismos de aferição econômica próprios do mercado.
Não é possível definir investimentos sem levar em conta os cus-
tos, portanto os preços dos insumos, equipamentos, construções, sa-
lários e, também, a rentabilidade ou lucro que deve permitir à empresa
reinvestir na produção e na melhoria técnica, salarial e social. Esses
critérios econômicos, como é sabido, não podem ser determinados so-
mente pelo tempo de trabalho investido na produção. Mesmo porque, o
tempo de trabalho é socialmente determinado pelos preços dos fatores
de reprodução da forma humana de trabalho, preços que também va-
riam de acordo com a oferta e a procura. Estas influenciam todo o pro-
cesso e só podem ser aferidas adequadamente por meio do funciona-
mento do mercado. Elson considera, porém, que isso gera uma grande
gama de mercados diferentes, refletindo diferentes bases sociais e
formas de regulação. O mercado, acionado pela oferta, pela demanda
e pela concorrência, estimula um insaciável padrão de consumo, in-
compatível com os limites dos recursos escassos, segundo ela. O mer-
cado socialista deveria, então, ter sistemas de regulação para evitar os
mesmos resultados do consumismo no capitalismo.
Dikinson se opunha igualmente à tendência consumista do mer-
cado, sugerindo que a máquina de propaganda e publicidade, empre-
276
A ILUSÃO DOS INOCENTES
gada pelos órgãos públicos de educação e lazer em lugar dos vendedo-
res e alimentadores da indústria do lucro, poderia desviar a demanda
para direções socialmente desejáveis, embora preservando a impres-
são subjetiva da livre escolha. Na verdade, assim como Elson, Dikinson
pretendia restringir a demanda através de mecanismos reguladores
administrativos. Isso é até possível, mas o resultado, tanto no capita-
lismo quanto no socialismo, será a elevação do preço pela redução da
oferta. No socialismo, da mesma forma que durante a lei seca nos Esta-
dos Unidos, uma tal regulação deve gerar o comércio clandestino e ile-
gal. Historicamente, o consumismo só terá condições de ser superado
com a abundância e com a elevação cultural da humanidade, de modo
a que suas necessidades passem a ser determinadas realmente pela
livre escolha e pela utilidade dos bens demandados.
Isso exigirá uma completa revolução nos padrões culturais
do consumo, dos recursos e da própria noção de abundância. Como
já discutimos em outra parte deste texto, os novos materiais devem
prover uma redução substancial na demanda dos recursos naturais.
Por outro lado, a educação científica e a cultura devem racionalizar as
necessidades de consumo, tornando possível a abundância relativa de
recursos e bens utilizáveis. Nessas condições, o mercado finalmente
poderá tornar-se supérfluo e as relações dos homens com a natureza e
dos homens ‘ entre si poderão modificar-se radicalmente. Se esta hipó-
tese for utópica, como pensa a maioria dos socialistas da atualidade, a
humanidade terá que vagar entre a perspectiva catastrófica de Kurz e
a economia do socialismo possível de Nove, até chegar a seu fim. Nem
mesmo o comunismo de Kurz, baseado na negação \ da negação capi-
talista, passará de um sonho de verão.
De uma maneira ou outra, enquanto essa hipótese permanece
polêmica, o melhor é continuar buscando a concretização do sonho
dos justos, tendo em vista as possibilidades que se apresentam. Mes-
mo que a abundância seja uma hipótese viável, até chegar a ela será
necessário caminhar pelo longo caminho da transição possível, um
caminho cheio de riscos, armadilhas e desvios. Os novos países que
ingressarem nessa transição vão se beneficiar das experiências do
socialismo soviético e do socialismo sobrante. Na verdade, todos eles
avançaram demais no planejamento centralizado e na abolição dos
277
WLADIMIR POMAR
mecanismos de mercado. Nesse sentido, tanto a perestroika fracassada
quanto as reformas e adaptações do socialismo sobrante, representam
um recuo, uma retirada estratégica. Os novos países socialistas não
precisarão realizar movimentos dessa envergadura. A combinação de
mercado, planejamento e intervenção democrática deverá estar dentro
dó processo geral de socialização da economia e da política. O mercado
deverá ser socializado paulatinamente, tanto através da intervenção
do Estado quanto da pressão dos trabalhadores e dos consumidores,
organizados em suas instituições sindicais, civis e políticas.
Há um certo consenso de que a ação do mercado no socialismo só
é compreensível com a existência de diferentes tipos de propriedade,
tanto sociais como privadas. Blackburn chama a atenção para o fato
de que o social, na propriedade social, não deveria ser derivado de um
agente econômico privilegiado — o Estado-nação — mas de uma pletora
de órgãos públicos diferentemente constituídos, mas responsáveis.
Deve-se acrescentar a isso a possibilidade de constituir empre-
sas de propriedade social de parcelas da população, desvinculadas da
propriedade estatal ou pública, como as cooperativas de produtores,
ou de trabalhadores na indústria, no comércio e nos serviços. Será ne-
cessário estabelecer mecanismos econômicos para o processo contí-
nuo, mesmo paulatino e gradual, de socialização mais intensa dessas
propriedades sociais e das propriedades privadas.
As sociedades por ações, criadas pelo capital para recolher os re-
cursos financeiros dispersos na sociedade e transformá-los em capi-
tal, podem ser utilizadas, no socialismo de transição, para estimular
o processo econômico de socialização da propriedade privada. Joint
ventures, associações e até fusões entre empresas estatais, públicas,
cooperativas e privadas podem desempenhar o mesmo papel no pro-
cesso de socialização.
Em sentido inverso, as empresas privadas poderiam assumir
serviços públicos através de contratos de responsabilidade com o Es-
tado, liberando este para as áreas estratégicas da socialização econô-
mica e política. Esses contratos podem levar as empresas privadas a
desenvolver uma ação social que deve colocar em tensão sua lógica de
rentabilidade, eficiência e produtividade, lógica que normalmente ten-
de a ignorar os problemas e contradições sociais. Essa interação pode-
278
A ILUSÃO DOS INOCENTES
ria, ainda, ser adotada por empresas estatais ou públicas de segunda
linha, arrendadas ou cedidas em leasing, como sugere Robin Murray,
para grupos privados ou cooperativas que estivessem dispostos a ob-
servar os critérios que Elson chama de performance social.
Isso traz à baila a possibilidade de utilizar diferentes formas de
gestão nas empresas de diferentes tipos de propriedade. Karl Korsh
dizia que um plano de socialização não será aceito como realização
satisfatória da idéia de socialização se não der atenção à democracia
industrial. Isto é, se não estimular o controle direto e a cogestão em
cada ramo da indústria e em cada empresa singular, por parte da co-
letividade daqueles que participam na atividade produtiva da empre-
sa e por parte dos órgãos que a mesma coletividade escolheu, como
os conselhos de fábrica, por exemplo. Korsh sugeria a necessidade
de eliminar o poder exclusivo da classe dos compradores de força de
trabalho, através de dois mecanismos que considerava exigências bá-
sicas da socialização: controle da cúpula, por parte da coletividade, e
controle da base, por parte dos que participam da produção. Embora
Korsh vislumbrasse ai o caminho do sistema dos sovietes (conselhos),
caminho que sofreu percalços irrecuperáveis, nem por isso sua propo-
sição perdeu validade.
Elson vai na mesma direção, sugerindo que a chave para a dire-
ção democrática da atividade econômica deve ser uma interação ope-
racional entre as instituições estatais, reguladas por eleições, as uni-
dades produtivas, internamente democráticas, os cidadãos, exercendo
individualmente a supervisão social através de comitês de usuários,
diretorias comunitárias etc, e uma larga faixa de grupos ativistas e de
campanhas, expressando uma variedade de necessidades e interesses
comunitários. Todo esse processo, porém, tende a ter um crescimento
bastante desigual no socialismo de transição. Vai depender, em grande
medida, do grau que essa democratização econômica alcançou sob a
própria gestão capitalista anterior. A revolução científica e tecnológi-
ca, por exemplo, está exigindo métodos gerenciais de administração
participativa, sistema de produção e controle just in time e programa-
ção aberta das máquinas, nos quais os operários substituem as chefias
na permissão para alterar programações na produção. Para elevar a
produtividade, o capital é obrigado a abrir o controle da produção para
279
WLADIMIR POMAR
os operários, criando novas condições para democratizar a atividade
econômica.
Entretanto, se isso é verdade para áreas ou regiões desenvolvi-
das, não é para áreas ou regiões atrasadas ou desigualmente desenvol-
vidas, onde o processo da direção democrática se implantará de modo
mais lento e desigual. Essa situação inclui, naturalmente, o problema
dos empreendedores econômicos, dos riscos dos investimentos e das
inovações técnicas e econômicas. Há uma série relativamente grande
de socialistas de mercado que supõe ser possível, no contexto de um
mercado socialista, orientar as inovações para alcançar um melhor
uso dos materiais descartados, ao invés da maximização dos rendi-
mentos. Argumentam que inovação econômica não é a mesma coisa
que inovação técnica e citam como exemplo as economias soviéticas
que adotaram um sem número de inovações técnicas com sucesso,
sem que elas tivessem representado benefícios sociais. Um empre-
endedor, que fabrica algo que agrada a seus clientes, pode estar rea-
lizando uma inovação econômica sem que represente uma inovação
técnica. Um sistema de mercado socializado deveria, então, encorajar
inovações econômicas desse tipo.
Embora essa preocupação seja louvável e também possa ser in-
corporada ao planejamento socialista, ela não pode resultar numa di-
retiva obrigatória indistinta para toda e qualquer economia socialista,
sob o risco de resvalar pelos mesmos erros do socialismo de comando.
O socialismo de mercado terá que admitir tanto as inovações técnicas,
estimulando aquelas que elevam a produtividade do trabalho, a efici-
ência, a liberação da força de trabalho e a maximização dos rendimen-
tos, quanto as inovações econômicas, que reaproveitem os materiais,
melhorem a qualidade e a utilidade dos produtos e satisfaçam melhor
as necessidades humanas.
A distinção entre inovações econômicas e técnicas é sutil e só
se tornou por demais evidente no socialismo soviético porque os me-
canismos de mercado foram abolidos arbitrária e artificialmente. As
inovações técnicas ocorriam fundamentalmente na indústria bélica e
não possuíam canais de aproveitamento na indústria civil. A estrutura
de trabalho desestimulava a absorção das inovações técnicas e eco-
nômicas pelos setores produtivos e pelos serviços, já que não tinham
280
A ILUSÃO DOS INOCENTES
influência alguma sobre preços, salários, rentabilidade e outros indi-
cadores econômicos. Somente sob a ação desses mecanismos típicos
do mercado, aliados a uma decidida intervenção do Estado nas áreas
de educação, pesquisa e desenvolvimento, poderão multiplicar-se as
inovações técnicas e econômicas, de processos e de produtos, contri-
buindo para a socialização e, portanto, para a ampliação dos benefí-
cios sociais.
Hayek considerava impossível que o socialismo fosse capaz de es-
timular as inovações. Para ele, estas dependiam do espírito empreen-
dedor e da capacidade de correr riscos, que só o mercado poderia criar,
com base na propriedade privada. A propriedade social ou coletiva
apagaria a responsabilidade pelas decisões de investimentos, diluin-
do-a entre a autoridade central e os gerentes ou diretores de empresas.
A propriedade privada, ao contrário, daria ênfase à responsabilidade
individual, empurrando-a para a frente pela ação da competição. Po-
lanyi argumentou em sentido inverso, mostrando que o mercado em
geral escapa de seus próprios limites e trata a natureza e o trabalho
como simples mercadorias a serem vendidas, pouco se importando
se as inovações terão ou não efeitos negativos. Mas não demonstrou,
como indica Blackburn, que a responsabilidade econômica no inves-
timento ou o sucesso no empreendimento não requerem, necessaria-
mente, a propriedade privada. A performance de muitas empresas nas
economias capitalistas, sejam empresas públicas, sejam cooperativas
ou outras formas de associação, combinadas ou não com empresas
privadas, seria uma demonstração de que a propriedade privada não
tem o monopólio sobre a inovação social e a eficiência econômica. O
próprio setor bélico da indústria soviética poderia servir de exemplo.
Por outro lado, Hayek parece haver se esquecido de que, no pró-
prio capitalismo contemporâneo, não são os proprietários privados
os grandes empreendedores e inovadores. Os agentes econômicos do
capital são assalariados especiais, os chamados executivos, que as-
sumem a responsabilidade pelos riscos da aplicação dos recursos no
mercado competitivo, sendo premiados se os resultados econômicos
forem positivos, ou sendo penalizados, com rebaixamento de funções
ou demissão, se os resultados forem negativos. O mercado socialista
pode utilizar mecanismos idênticos. A condição básica para isso é que
281
WLADIMIR POMAR
as empresas estatais, públicas e cooperativas tenham autonomia para
atuar no mercado competitivo, estabelecendo regras claras de respon-
sabilidade para seus executivos e para seus coletivos de trabalhadores.
Blackburn defende a idéia de que, numa economia socialista,
uma variedade de instituições financeiras de propriedade social —
bancos estaduais e regionais, fundos de pensão e associações filan-
trópicas — poderia oferecer fundos a empresas, num contexto compe-
titivo. Dependendo de como efetivamente aplicam esses fundos, elas
teriam que crescer ou minguar. Tributação e segurança social, e um
mínimo (e máximo legal) de rendimentos garantidos, deveriam evitar
as resultantes desigualdades de classe. Ele admite que alguns elemen-
tos de uma economia capitalista contemporânea prefigurariam alguns
aspectos desse empreendimento socialista. Uma ausência de crítica a
tais elementos poderia ser o momentum da acumulação capitalista e
sua propensão para pilhar e dividir.
O problema, então, seria saber onde parar o empreendedor an-
tes que ele se torne um capitalista bem sucedido. Na economia de
mercado socialista, segundo Blackburn, poderia haver um teto sobre
movimento financeiro das firmas privadas. Após esse teto, elas de-
veriam ser obrigadas a encontrar uma instituição financeira pública,
ou empresa socializada, para apoiar seu posterior desenvolvimento e,
assumindo a propriedade, dispensar os ganhos extras ou perdas que
herdaria. Deveria, também, estabelecer limites sobre ganhos e perdas,
para assegurar as provisões líquidas, tão longas quanto forem neces-
sárias para não erodir a responsabilidade dos agentes econômicos pe-
las conseqüências de suas decisões.
Essas são idéias que estão sendo aplicadas na China e no Vietnã,
mas não tem conseguido evitar desigualdades, nem o surgimento de
empreendedores capitalistas, já que os mínimos e máximos de rendi-
mentos e os tetos sobre as movimentações financeiras não são, nem
podem ser, valores fixos. Eles se modificam muito rapidamente com a
elevação da produtividade. O importante no processo é que exista real-
mente uma variedade de fundos públicos e instituições financeiras ca-
pazes de realizar investimentos num contexto jurídico que permita as
mesmas condições de concorrência. Mesmo assim, isto não conduzirá
a resultados iguais e haverá empresas estatais, públicas e cooperadas
282
A ILUSÃO DOS INOCENTES
que sofrerão perdas e deverão assumir as responsabilidades resultan-
tes. A existência de empresas privadas, por outro lado, tornará a com-
petição mais complexa, embora sob o mesmo arcabouço jurídico. As
empresas de propriedade social terão que demonstrar eficiência não
só em termos comparativos entre si, mas em relação àquelas empresas
privadas.
Essa competição estabelece, queira-se ou não, um padrão concor-
rencial que tende para o modelo capitalista, gerando as conseqüências
que se conhece. Por isso, Blackburn pensa que não se deveria consi-
derar bem-vindo qualquer tipo de reforma de mercado. Ou considerar
que mercado mais propriedade estatal pudesse fornecer a resposta.
Ele lembra que as reformas de mercado empreendidas na Iugoslávia
e no modelo soviético geraram desigualdade e desemprego, sem al-
cançar a produtividade e a amplitude de consumo de um sistema ca-
pitalista avançado. Para ele, onde há um grande número de empresas
de tamanho modesto, as reformas de mercado podem ter sucesso em
seus próprios termos, como na China em relação à agricultura e à in-
dústria leve, mas não na indústria pesada.
Ele talvez não tenha se dado conta, porém, de que isso pode ser
verdade por algum tempo, em vista das disparidades de produtividade
e composição orgânica do capital na agricultura, indústria leve e in-
dústria de bens de produção. Mas a tendência geral é de elevação dos
padrões tecnológicos, de concentração e centralização da produção, de
maior intensividade do capital, sem o que a socialização da produção
não ocorre. E isso, mesmo que não existisse a propriedade privada e
o mercado, geraria desemprego e desigualdade no desenvolvimento.
A não ser que se retornasse ao sistema de pleno emprego burocrático,
que estancaria a elevação da produtividade e, na ponta, conduziria a
uma equalização na distribuição da pobreza, na melhor das hipóteses.
Não é possível ter mercado socialista somente aproveitando o
lado bom do mercado. O caminho da transição por um socialismo de
mercado deve gerar, necessariamente, desemprego e desigualdades. O
problema não consiste em evitar esses problemas a curto prazo (a não
ser, talvez, nos países capitalistas avançados que ingressem na tran-
sição). Consiste em evitar as polarizações e os quadros de miséria de
massa dos países capitalistas. E, ao mesmo tempo, numa perspectiva
283
WLADIMIR POMAR
de longo prazo, desenvolver mecanismos que permitam incorporar
paulatinamente na vida social, como equivalentes, o direito ao traba-
lho e ao não-trabalho. O mercado deve ser visto como um aspecto de
processo produtivo, que tanto pode gerar poder criativo e socialização
da produção, quanto poder destrutivo e desigualdade na distribuição.
O Estado socialista deve atuar em tal contexto, estimulando esse
poder criativo e a socialização econômica, inclusive aproveitando-se
das experiências do capitalismo desenvolvido na utilização de formas
de coordenação avançadas e na elevação da produtividade e da eficiên-
cia. A constante elevação da produtividade, da eficiência e da coorde-
nação econômica são a base segura de financiamento do Estado e das
políticas sociais que ele precisa implementar para evitar as polariza-
ções, reduzir as desigualdades e encaminhar a solução do desempre-
go, em particular do desemprego estrutural.
Por outro lado, há uma tendência a considerar que, mesmo num
mercado socialista, a força de trabalho não deva ser considerada mer-
cadoria. Assim, o salário ou preço do trabalho não deveria ser deter-
minado pelo mercado, o que evitaria, entre outras coisas, a propensão
de elevar a eficiência e a rentabilidade das empresas pela compressão
salarial. Esse desejo pio esbarra, porém, com o fato de que o valor da
força de trabalho só pode ser determinado pela soma dos valores das
mercadorias que permitem a sua reprodução, aí incluídos não somen-
te a alimentação, moradia e roupa, mas igualmente educação, saúde,
lazer e outras necessidades, atendidas ou não parcialmente pelas em-
presas ou pelo Estado.
A remuneração do trabalho deverá ser feita cobrindo toda a soma
desses valores (portanto, conforme as necessidades da força de traba-
lho), ou de acordo com o trabalho efetivo gerado pela força do trabalho
(portanto, de acordo com o resultado do trabalho). Neste último caso,
a remuneração variará acima ou abaixo do valor da força de trabalho
em questão e o mercado continuará ditando, em grau considerável, seu
preço. Do mesmo modo que no capitalismo, as organizações sindicais
e civis dos assalariados terão que pressionar os empresários privados
e sociais pela elevação dos salários e redução das jornadas de traba-
lho. E o Estado terá que exercer uma ação reguladora e fiscalizadora
mais intensa, para evitar abusos e pressionar o mercado no sentido de
284
A ILUSÃO DOS INOCENTES
elevar a eficiência e a rentabilidade por meio da diminuição de custos,
das inovações técnicas, da elevação da produtividade e da melhoria da
qualidade dos produtos. A força de trabalho só deixará de ser mercado-
ria quando o próprio trabalho humano, em vista da escala da produti-
vidade, perder sua função obrigatória de gerar mais valor.
Esse é, aliás, somente um dos problemas complexos que uma
economia socialista de mercado terá que enfrentar. Não é fácil regu-
lar e introduzir planejamento onde milhões de agentes econômicos
atuam com certa liberdade em busca de seus próprios rendimentos
e vantagens. Mais difícil ainda é estimular empresas e indivíduos a
levar em conta os custos e necessidades sociais. Realizar aquilo que
Elson chama de socialização do mercado abrange uma complexa com-
binação de estímulos. Por um lado, às atividades empreendedoras,
de risco e inovadores, dos milhões de atores econômicos privados e
sociais. Por outro, com medidas reguladoras que induzam parte des-
sas atividades para objetivos sociais e de interesse geral. Isso abrange
uma gama relativamente grande de problemas, desde preservação do
meio ambiente, redução do uso de recursos naturais, conservação de
energia, incentivo a projetos de pesquisa e desenvolvimento e difusão
de tecnologias, até investimentos em educação, saúde, previdência e
seguridade social.
Quanto mais ampla for a participação social na política e, portan-
to, nos assuntos da economia, através das instituições dos diferentes
segmentos da população, mais democrático será o planejamento e a
intervenção estatal e mais campo poderá existir para aquela combi-
nação. Elson e Paul Singer sugerem, por exemplo, a constituição de
câmaras de preços que poderiam ajudar a dar mais visibilidade às
tendências do mercado e evitar custos excessivos. Outros mecanismos
participativos, que já vêm sendo empregados pelo próprio capital de-
senvolvido, como os mercados internos e o can ban, poderiam contri-
buir para que as empresas públicas e privadas captassem mais facil-
mente os interesses dos consumidores e suas necessidades, influindo
sobre as ordens de produção. A questão geral é saber até onde a inter-
venção estatal está contribuindo para a socialização efetiva e não arti-
ficial da economia e até onde a ação do mercado está agindo no mesmo
sentido, com menos ênfase para seus aspectos desagregadores, anár-
285
WLADIMIR POMAR
quicos e incentivadores das desigualdades e da miséria de massa.
O mercado é fundamental para a concorrência atuar e revolucio-
nar as forças produtivas, elevando a produtividade e a rentabilidade.
Mas o mercado gera, igualmente, desigualdades de renda entre indi-
víduos e regiões, polarizações econômicas e sociais, maior divisão de
classe e as condições para choques sociais e políticos. O Estado é obri-
gado, então, a trabalhar com políticas muitas vezes contraditórias. Sua
intervenção no mercado terá que buscar a elevação da competitividade
entre as empresas; o crescimento mais rápido de algumas delas para
servir de acicate ao crescimento das demais; o crescimento mais veloz
da renda de alguns indivíduos para incentivar os demais a seguir o
mesmo caminho; a liberação da mão-de-obra excedente para diminuir
o número de trabalhadores necessários e produzir uma quantidade
maior de artigos em menos tempo; e o aumento do lucro para elevar a
taxa de investimentos.
Mas, ao mesmo tempo, terá que evitar que a competição se trans-
forme numa guerra cega. Terá que estimular uma cooperação que,
em geral, não existe entre empresas concorrentes. Terá que intervir
no sentido de evitar que o gap entre as empresas avançadas e atrasa-
das se transforme num fosso intransponível, que leve as atrasadas à
falência pela perda de competitividade, embora isso não seja de todo
evitável. Terá que atuar conscientemente para impedir que a riqueza
forme um pólos, utilizando mecanismos econômicos e administrati-
vos para realizar uma redistribuição de renda menos desigual. E terá
que criar mecanismos que combinem a redução da jornada de traba-
lho com seguro desemprego, renda mínima e reciclagem da força de
trabalho, para evitar a degradação dos desempregados. É fundamental
ganhar experiência para um mundo em que todos deverão ter direito
ao não-trabalho e o direito ao trabalho deverá ser regulado em moldes
totalmente novos.
A intervenção e o planejamento estatais, por outro lado, sempre
correm o risco de ir além dos limites adequados. Os ciclos estatistas
ocorridos nos países capitalistas, e sua exacerbação nos países socia-
listas de tipo soviético, apontam para as distorções a que pode chegar o
poder de Estado, se não” forem colocados freios à sua ação. Na transi-
ção socialista, essa tendência a fazer com que o Estado aja no sentido de
286
A ILUSÃO DOS INOCENTES
impedir os conhecidos malefícios do mercado e avançar mais rapida-
mente na socialização, é ainda mais forte. E o pior é que essa tendência
se reflete principalmente em medidas administrativas, aparentemente
mais eficazes e mais rápidas , em lugar das ações econômicas mais du-
radouras, mas de resultados mais lentos. Tabelar ou controlar preços e
salários, por exemplo, parece muito mais eficaz do que elevar a produ-
tividade e a produção, que demandam mais tempo e esforço. No entan-
to, a maneira mais segura de estabilizar ou baixar preços consiste em
ampliar a produção” através de uma efetiva elevação da produtividade.
O que permite, em contrapartida, o aumento real dos salários.
Tendências idênticas ocorrem na disputa com os monopólios
e, em geral, com as empresas capitalistas. Tendo o poder nas mãos,
a inclinação se volta quase sempre para resolver o litígio através do
confisco da propriedade privada e sua transformação em propriedade
social, mesmo que as condições para essa medida ainda não estejam
realmente maduras. Mas isso parece bem mais fácil do que elevar a
eficiência das empresas estatais e fazê-las derrotar as empresas ca-
pitalistas, inclusive os oligopólios, no terreno econômico, embora a
longo prazo esta solução seja muito mais produtiva para a transição
socialista. Mesmo Dahrendorf reconhece que quebrar o monopólio
econômico não é tarefa fácil, necessitando algum tipo de política ou
legislação anti-monopolista. Mas isso não significa a impossibilidade
de derrotar o monopólio e o oligopólio no campo econômico.
A forte tendência em adotar medidas administrativas ou políti-
co-administrativas em lugar das ações no terreno econômico, refor-
çam o componente burocrático que é próprio da natureza do poder
de Estado, criando um sistema de auto-alimentação corporativa que
pode desvirtuar completamente a função do Estado como elemento
primordial para a transição. Quando isso acontece, o mais viável e cair
no tipo soviético ou ser obrigado a realizar uma reforma em profundi-
dade para retomar o caminho perdido. Tanto é possível a eclosão de
uma revolução cultural, para desestruturar a burocracia e abrir novos
caminhos, quanto a instituição de algum tipo de glasnost, que leve à
desagregação do tecido econômico e social e permita a exacerbação
monetarista como reação à exacerbação estatista.
Uma dosagem adequada de intervenção e planejamento estatal
287
WLADIMIR POMAR
sobre o mercado na sociedade de transição socialista não impede, po-
rém, a ocorrência de desequilíbrios econômicos, sociais e políticos no
processo de desenvolvimento da sociedade. Na maioria dos países do
mundo, há diversos tipos de desequilíbrios, formados historicamente,
que não são superáveis a curto e nem mesmo a médio prazo. Em certas
situações, esses desequilíbrios podem até aumentar se não forem en-
contradas soluções pertinentes. Ou se forem copiadas, sem qualquer
crítica, soluções que se mostraram eficazes, mas em outro contexto e
em outro momento.
Investimentos acima de uma determinada escala podem causar
demandas excessivas em matérias-primas e energia, gerando aqueci-
mento indesejável na economia, com inflação e outros fenômenos pou-
co saudáveis. Uma elevação muito rápida da produtividade pode, even-
tualmente, liberar muito mais força de trabalho do que a capacidade
do sistema de seguro e de realocação da mão-de-obra, propiciando a
existência de uma massa de desempregados intolerável para o país.
O afluxo intenso de capitais estrangeiros também pode desequilibrar
a relação entre os diversos tipos de propriedade e produzir pressões
inflacionárias ou outros tipos de tensão, colocando em risco a estabi-
lidade econômica.
Não é um caminho fácil o da socialização do mercado, Mas é o
que melhores chances oferece de sair do capitalismo sem cair na fra-
cassada experiência da economia de comando soviética. Há sempre o
perigo de retornar ao capitalismo. Mas isso pode ocorrer em qualquer
dos casos e é o risco da própria luta.
RISCO CALCULADO
A socialização econômica e a socialização política, que a transi-
ção socialista deve realizar nas condições de existência de mercado,
apresentam, além dos problemas apontados, outro tão ou mais com-
plexo. Hobsbawn sustenta que na sociedade das comunicações, mídia,
viagens e economias transnacionais globais, é impossível isolar as po-
pulações socialistas das informações do mundo não socialista, isto é,
de conhecer o quanto estão piores em termos materiais e liberdade de
escolha. Já vimos o quanto essa situação contribuiu para a derrocada
288
A ILUSÃO DOS INOCENTES
do leste europeu. Hobsbawn poderia haver acrescentado que, no está-
gio alcançado pelas forças produtivas de amplitude mundial, nenhu-
ma nação, consegue continuar desenvolvendo-se se não estiver em
constante intercâmbio científico e tecnológico com as demais, o que
inclui intercâmbio de mercadorias, capitais e pessoas.
Enzensberger assegura que não foram os trabalhadores, mas os
capitalistas e os tecnologistas de todos os países, que colocaram em
prática o internacionalismo. A idéia de uma sociedade mundial vem
sendo estabelecida pelo anônimo mercado mundial, simbolizado por
um punhado de ícones e dominado pelas multinacionais, os grandes
bancos e as organizações financeiras para-estatais. A longo prazo, se
nada interferisse nesse rumo, cairíamos nas previsões de Kurz. Mas,
como ficam nesse meio tempo, as sociedades que por acaso ingressa-
rem na transição socialista? Participam ou não do mercado mundial
dominado pelo sistema capitalista? Já tivemos ocasião de ver como o
socialismo soviético respondeu a essas questões, colocando-se fora
do mercado mundial capitalista, até ver-se constrangido a aceitar sua
participação, de um modo enviesado, sem estratégia definida e com
poucas condições de aproveitar suas vantagens comparativas. Ape-
sar dessa experiência, este é um aspecto das políticas socialistas que
quase não tem sido enfocado. Os socialistas foram acostumados com
a visão tradicional de que a exportação de capitais e mercadorias pelo
capital era o principal instrumento de subordinação dos países pobres
aos países ricos, o que não deixa de ter uma grande dose de verdade.
A partir dessa compreensão, houve mesmo socialistas que concluíram
que a dominação econômica dos países pobres pelos ricos imperia-
listas deveria, necessariamente, representar estagnação e mais atraso
para os pobres.
Não há dúvida de que os países capitalistas desenvolvidos es-
poliaram, até de forma brutal, os países do terceiro e quarto mundos,
através da exportação de suas indústrias, grande parte delas tecno-
logicamente superadas, para os territórios daqueles países. Utiliza-
ram-se de dumping, pressões políticas e militares, subversão e todos os
meios imagináveis. Tudo de modo a garantir a ação de transferência
da riqueza produzida nas regiões e países menos desenvolvidos para
as regiões e países centrais. Como, nessas condições, se poderia supor
289
WLADIMIR POMAR
que os países socialistas pudessem participar do mercado mundial,
adquirindo e vendendo tecnologias, abrindo-se para receber investi-
mentos estrangeiros, recebendo técnicos e empresários estrangeiros,
importando mercadorias e, paradoxo dos paradoxos, investindo em
outros países e enviando técnicos e empresários para o exterior? Além
disso, é preciso lembrar que o capitalismo da Guerra Fria abria poucas
oportunidades para a participação ativa dos países socialistas no mer-
cado mundial. Por outro lado, é difícil supor que os socialistas estives-
sem dispostos a essa participação, mesmo que a situação fosse menos
tensa. Como comprova Luís Fernandes, toda sua política sempre este-
ve voltada para romper com o mercado mundial dominado pelo capital
e criar um mercado ou campo oposto, como foi o caso do Comecon.
Evidentemente, a comprovação de que os investimentos estran-
geiros podiam estimular o desenvolvimento capitalista das nações
onde atuavam foi um golpe sério nas convicções sobre a inevitável es-
tagnação econômica, em virtude da penetração imperialista. Embora
ressalvando que esse desenvolvimento, particularmente no pós-guer-
ra, ocorreu paralelo a um brutal crescimento da miséria de massa, foi
preciso levar em conta que a exportação de capitais era fator de ex-
pansão do modo capitalista de produção nos países para onde se diri-
gia, e não de manutenção pura e simples da ordem antiga. No entan-
to, mesmo após aceitarem esse fato, os socialistas não foram capazes
de observar que alguns países em desenvolvimento souberam tirar
melhor proveito daquelas exportações de capital, impondo condições
para que elas se realizassem, subordinando as empresas estrangeiras
a sua própria lei e acertando com elas acordos e contratos de benefício
mútuo, embora seu cumprimento fosse sempre passível de atritos e
conflitos.
Por incrível que pareça, conseguiram manter sua soberania, pro-
teger e fazer crescer sua própria indústria nacional e atuar ativa e agres-
sivamente no mercado mundial. O caso mais notável é o do Japão, país
derrotado e praticamente destruído durante a Segunda Guerra Mundial,
ocupado militarmente pelos Estados Unidos. Parecia fadado a ser com-
pletamente dominado pelos trustes e monopólios americanos e a dan-
çar conforme a batuta dos governos que se revezassem em Washington.
Num tempo histórico relativamente curto, porém, os japoneses inverte-
290
A ILUSÃO DOS INOCENTES
ram a situação e hoje concorrem com os norte-americanos no próprio
mercado dos Estados Unidos. A partir de certo momento, inclusive, pas-
saram a estabelecer políticas muito restritivas para a ação das empre-
sas estrangeiras no mercado interno japonês, embora sem admitirem
isso formalmente. Em sentido contrário, as empresas nipônicas usam e
abusam da prática de dumping nos mercados externos, como estratégia
competitiva de conquista desses mercados.
Pode-se alegar que o Japão fora uma grande potência industrial,
com recursos técnicos e tradição que contribuíram decisivamente para
a recuperação de sua posição mundial. Mas isso não nega o fato de que,
durante um período razoável, a economia japonesa parecia dominada
pelos poderosos monopólios americanos. Aliás, situação idêntica foi
vivida pela Coréia do Sul, Taiwan, Hong Kong e Cingapura, mais tarde
identificados como tigres asiáticos, e pela Tailândia e Malásia, países
recentemente industrializados da Ásia do Pacifico. Todos eles garan-
tiam fatias do mercado interno para suas próprias indústrias que se
dispusessem a competir agressivamente no mercado internacional, re-
alizaram uma política de abertura para investimentos estrangeiros que
aportassem tecnologias de ponta e fossem voltadas preferencialmente
para o mercado externo e estabeleceram critérios para a ação e o funcio-
namento das empresas transnacionais, incluindo impostos sobre lucros
e duração dos investimentos. Assim, em lugar de se tornarem pasto do-
minado pelos monopólios estrangeiros, passaram a competir com eles
em diversas regiões do mundo.
A China adotou política idêntica de abertura ao exterior a partir
de 1978, seguindo-se a ela, mais recentemente, o Vietnã, Cuba e Coréia
do Norte. É lógico que o Japão, os tigres asiáticos e os países de indus-
trialização recente aproveitaram-se de uma situação excepcional de
Guerra Fria e tiraram partido dela em seu próprio interesse. A China
aproveitou-se, em grande medida, da fase final dessa situação, mas tam-
bém da tendência declinante do ritmo de crescimento econômico dos
países centrais, para captar investimentos e tecnologias. E as turbulên-
cias aparentemente inesperadas, surgidas após o colapso do socialismo
europeu, fizeram aparecer novos aspectos favoráveis para os países do
socialismo sobrante ingressarem no mercado mundial, mantendo sua
soberania e conseguindo alguma vantagem.
291
WLADIMIR POMAR
Pode-se, em geral, admitir que é possível, em diferentes momentos,
encontrar situações relativamente favoráveis para participar do merca-
do mundial capitalista, oferecendo vantagens mútuas e conservando a
soberania. Evidentemente, esse mercado não é um parque de diversões
para crianças. Mesmo os parques infantis têm montanhas russas, trens
fantasmas e outros brinquedos meio aterrorizantes. O mercado mun-
dial capitalista é uma arena de leões e tigres, onde se cruzam embates
de alto risco e extremamente complexos. Demanda, portanto, uma polí-
tica de Estado, com estratégias claras, objetivos definidos e consciência
das concessões a serem feitas e dos limites a que se pode chegar, assim
como dos benefícios perseguidos em troca de tais concessões.
Apesar de todos os perigos, o mercado mundial não pode ser dei-
xado de lado. Sem participar e sem competir nele, é praticamente im-
possível acompanhar os padrões de produtividade, beneficiar-se dos
avanços científicos e tecnológicos, nivelar os padrões de vida das popu-
lações nacionais pelo padrão internacional e, desse modo, incrementar
a socialização da economia. Somente dessa forma, as populações socia-
listas poderão ter a oportunidade de saber não só se estão piores, mas se
estão melhores em termos materiais e liberdade de escolha.
Rubio tem razão quando diz que o incremento das comunicações
configura uma coletivização imaginária das desigualdades, na medida
em que se desenvolve uma exibição mundial de bens inalcançáveis pela
maioria, ao mesmo tempo que se universalizam as expectativas e ganha
força a noção de que existem direitos comuns ao gênero humano. Ge-
ram-se, assim, expectativas e decepções de expressão múltipla, migra-
ções dos refugiados da pobreza, frustrações políticas e radicalizações
de todo tipo (xenofobia, racismos, fundamentalismos).
Nessas condições, o socialismo, mesmo sendo um socialismo de
mercado, com todos os problemas que a economia mercantil gera, pode
participar do mercado mundial com diversas vantagens comparativas.
Inclusive, expondo as possibilidades de realizar o crescimento econô-
mico sem produzir desigualdades e miséria de massa tão brutais quan-
to as geradas pelo sistema de produção-para-lucro. Na coletivização
imaginária das desigualdades do mundo de hoje, a transição socialista
pode apresentar uma expectativa diferente. Não deixa de ser um risco.
Mas é um risco calculado.
292
A ILUSÃO DOS INOCENTES
A SOCIALIZAÇÃO DEMOCRÁTICA
A socialização da política ou a democratização do poder é outro
aspecto chave do processo de transição socialista. Já notamos como os
social-democratas e os socialistas revolucionários não conseguiram
encaminhar satisfatoriamente a solução desse problema, seja devido à
imprevista ampliação do Estado nos países capitalistas desenvolvidos,
seja pela cristalização da velha, fechada e anacrônica forma de Estado
nos países capitalistas atrasados. O mundo de hoje, infelizmente, ain-
da apresenta as mesmas disparidades nas formas de Estado, apesar da
democracia haver alargado sua presença em vários países do terceiro
e do antigo segundo mundos.
Assim, como no período de Bernstein, Kautsky, Rosa Luxembur-
go, Millerand, Lênin e outros pensadores socialistas, marxistas ou não,
que se confrontaram com o problema, hoje vemo-nos de novo ás voltas
com as possibilidades e os limites da democracia liberal, de dar-lhe
ou não continuidade na transição socialista, ou de romper totalmen-
te com ela, independentemente da forma de passagem do capitalismo
para o socialismo de transição. Bobbio tem mantido o ponto de vista de
que as normas e instituições da democracia liberal são essenciais ao
socialismo, tese que se tornou muito receptiva durante e após o colap-
so do socialismo despótico do leste europeu e, particularmente, após
os incidentes de Pequim.
Coutinho, por seu lado, pensa que a relação da democracia de
massas, ou socialista, com a democracia liberal, não é uma relação
de negação, mas de superação dialética: a democracia de massas con-
serva e eleva a nível superior as conquistas da democracia liberal. Em
outros termos, a democracia socialista deveria conservar e elevar a
nível superior o pluralismo da sociedade civil, a conquista do consen-
so pela via da hegemonia política, os mecanismos que regulamentam
as disputas políticas para sacramentar a hegemonia real. Ou, ainda, o
Estado de direito, judiciário autônomo, parlamentos representativos,
acrescentados de novos mecanismos de exercício da soberania popu-
lar e do controle social.
Coutinho tem razão quando sugere que a democracia socialis-
ta deve conservar e, ao mesmo tempo, destruir a democracia liberal.
293
WLADIMIR POMAR
Para ele, o desafio é buscar a síntese entre o predomínio da vontade
geral (expressa no consenso e na hegemonia política) e a conservação
do pluralismo (expresso na diversidade da sociedade civil de múltiplos
interesses). A socialização da política (pelo menos onde ela ocorre, é
lógico) já criou ou, pelo menos, já esboçou as soluções institucionais
para aquela síntese, através da integração entre os organismos popu-
lares de democracia de base (criados de baixo para cima) e os meca-
nismos tradicionais de representação indireta (como os parlamentos).
Estes, sob a pressão da sociedade civil, podem adquirir uma nova fun-
ção, como local de síntese política das demandas dos vários sujeitos
coletivos. Tornam-se a instância institucional decisiva de expressão
da hegemonia negociada, nova forma do governo baseada na articula-
ção entre democracia representativa e democracia direta.
Milliband também considera que o pluralismo, com muitos cen-
tros de poder fora do Estado, só pode florescer num regime onde as
liberdades burguesas estiverem completamente garantidas e esten-
didas e vigilantemente defendidas por uma imprensa e outras mídias
livres e por muitas outras fontes. A democracia socialista, deste ponto
de vista, seria um sistema de poder dual, no qual o poder de Estado e
o poder popular complementam-se mas também controlam um ao ou-
tro. Milliband não afirma, mas é de supor que haverá sempre um ten-
sionamento entre ambos, a par da complementação, resultando numa
articulação complexa. Dahrendorf assegura que a sociedade civil sig-
nifica a criação de uma apertada rede de instituições e organizações
autônomas que tem não um, mas milhares de centros. Por isso mesmo,
aponta, não pode ser facilmente destruída por um monopolista disfar-
çado de governo e partido.
Max Adler, no debate do início do século, salientava a contradição
da democracia. A democracia burguesa se revela como uma grande e
trágica ilusão, se a medirmos pelo parâmetro da emancipação social,
desde que esta, expressa na igualdade, só pode afirmar-se como uma
instância da democracia. Por isso, Adler considerava que só se poderia
chegar à democracia política através do socialismo. O conceito de de-
mocracia era ambíguo se tomado separado de suas relações com a di-
visão de classes da sociedade burguesa. Eis porque ele fazia distinção
entre democracia burguesa e democracia social, já que um conceito
294
A ILUSÃO DOS INOCENTES
mais amplo de democracia não deveria significar apenas igualdade de
direitos, mas também poder do povo. Para ele, este poder do povo não
poderia ser plenamente realizado com as formas tradicionais da de-
mocracia no interior de uma sociedade de classes. As argumentações
de Rosa Luxemburgo orientavam-se no mesmo sentido.
Temos, desse modo, abordagens a partir de pontos diferentes,
mas que podem ser sintetizadas na idéia de que a socialização da eco-
nomia e a socialização política guardam uma certa correspondência
e uma relação mútua de causa e efeito. A socialização econômica, de-
senvolvida pelo capitalismo, força os limites da democracia liberal de
modo constante e persistente, até mesmo contra a própria burguesia,
alargando-a e expandindo-a através da criação e diversificação da so-
ciedade civil e da transformação do Estado em arena da própria luta
de classes. Força, portanto, a socialização mesma da política ou a de-
mocratização do poder. Por outro lado, o poder só se democratiza real-
mente, só alcança a socialização política completa, quando estende a
igualdade dos direitos políticos e civis à igualdade econômica, quando
a socialização se estende da produção à propriedade.
A transição socialista terá que atuar sobre esses diferentes as-
pectos da socialização política em articulação com a socialização eco-
nômica, a partir das condições reais em que ingressar na transição.
Às vezes, na ânsia de evitar os mesmos descaminhos do socialismo
soviético e do sobrante, muitos socialistas discutem o problema da
democratização do poder como se todos os países do mundo já hou-
vessem construído razoáveis sociedades civis, ampliando os seus Es-
tados, e estivessem prontos para realizar a integração dos organismos
populares da democracia de base com os mecanismos tradicionais de
representação indireta. Esquecem-se de que, como no passado, ainda
há uma gama enorme de países onde a transição socialista terá que
construir não só a sociedade civil, como até mesmo os mecanismos
de representação indireta, em condições nem sempre favoráveis. Em
outros, há disparidades e distorções evidentes na construção da socie-
dade civil e nos mecanismos de representação, exigindo reformas que
podem ser mais complexas do que a nossa ingênua filosofia.
De uma maneira ou outra, as possibilidades de desequilíbrios
econômicos e políticos no processo de transição socialista são ilimi-
295
WLADIMIR POMAR
tadas. E isso poderá ocorrer tanto nas formações com alto desenvol-
vimento da sociedade civil, como em formações com sociedades civis
fracas e Estados cujos antecessores eram fechados e repressores. Tal-
vez com muito mais razão nestas do que naquelas, mas em qualquer
dos casos seria fechar os olhos à realidade supor que a negociação e o
entendimento constituirão o caminho absoluto para resolver as crises
e atritos que tais desequilíbrios podem fazer surgir.
Um fator permanente de pressão residirá nas disputas ideoló-
gicas e políticas, por mais democratizado e aberto que seja o regime
político. Elas podem refletir caminhos próprios que cada tipo de pro-
priedade existente tende a seguir em seu desenvolvimento.
A propriedade privada sempre pretenderá mover-se num merca-
do mais livre e pouco regulamentado, em que possa expandir-se sem
peias. Os diversos tipos de propriedade cooperativa vacilarão entre
as vantagens e as desvantagens que o mercado mais ou menos aberto
oferece. E a propriedade estatal e pública procurará quase sempre va-
ler-se das regulamentações para livrar-se das dificuldades e das exi-
gências do mercado. Tais disputas podem exprimir, ainda, a situação
das diversas classes e segmentos sociais para colher o máximo de be-
nefícios, se o crescimento for ascendente, ou ter o mínimo de perdas,
nos momentos de reajuste ou crise.
Podem expressar, igualmente, um momentâneo agravamento
das desigualdades econômicas e sociais, a eclosão de aspirações dos
setores afluentes da intelectualidade técnica e científica por maior
participação no poder, a indignação contra surtos de corrupção, a
resistência contra atos continuados das autoridades públicas infrin-
gindo a própria legalidade, expectativas de reformas na legalidade no
sentido de ampliá-la, e assim por diante. Cada sociedade apresenta-
rá problemas e desequilíbrios que lhe são específicos. Quanto tempo
a sociedade norte-americana terá que gastar para tratar e superar
os problemas raciais? Quantos choques étnicos e tribais as socieda-
des africanas assistirão, obrigando intervenções nem sempre suaves
do poder de Estado? Assim, não serão a legitimidade e a hegemonia
consensual dos socialistas em relação à maioria da população que tor-
narão a transição socialista uma tranqüilidade negociada. Pode até
ocorrer que a burguesia se submeta à nova ordem e se alinhe às novas
296
A ILUSÃO DOS INOCENTES
regras do mercado, sob os vários mecanismos de intervenção do Es-
tado. A bem da verdade, isso não será muito diferente dos mercados
impuros existentes em vários países capitalistas, talvez com a desvan-
tagem de que no mercado socialista de transição deve haver uma clara
determinação de avançar no sentido da socialização completa, embora
de forma gradual. Nestas condições peculiares, a luta de classes pode
mesmo ter uma presença secundária.
Apesar disso, seria um engano esquecê-la e considerá-la morta.
A burguesia e outras eventuais forças pró-capitalistas estarão sempre
propensas a aproveitar-se dos desequilíbrios e de qualquer irrupção
de descontentamentos, para transformá-los em ações a seu favor.
Movimentos por mais abertura, melhores condições de vida, contra
a corrupção, por mais liberdades, mais democracia, sempre deverão
acontecer nas sociedades de transição, independentemente do grau de
democratização alcançado. E ensejarão que no meio de demandas jus-
tas penetrem objetivos pouco confessáveis de reversão do poder.
O poder sandinista jamais poderá ser comparado aos regimes bu-
rocrático-repressivos do leste-europeu, embora possa haver cometido
arbitrariedades de diferentes tipos no tratamento dos desequilíbrios
aparecidos na Nicarágua pós-revolução. Mesmo que essas arbitrarie-
dades tenham sido insignificantes, isso não a teria salvo do bloqueio e
da contra-insurgência cruéis, diante da perspectiva de ingressar num
processo de transição para o socialismo. O acordo de pacificação e o
rodízio de governo ainda são capítulos inacabados, assemelhando-se
mais a uma trégua armada, na qual os contendores procuram lamber
as feridas e preparar-se para a próxima batalha.
Na mesma linha de raciocínio, seria uma santa ingenuidade su-
por que a primavera de Pequim e o confronto sangrento da Praça da
Paz Celestial tenham sido frutos exclusivos da repressão de um regime
despótico sobre justas demandas democráticas. Acontecimentos des-
se tipo poderão eclodir em qualquer sociedade de transição. Regimes
políticos socialistas mais democratizados não estarão isentos dessa
fatalidade, a não ser que sejam dirigidos por homens e mulheres in-
falíveis, perfeitos em sua clarividência e na capacidade de prevenir e
tratar os desequilíbrios econômicos, sociais e políticos.
Talvez não sejam poucas as vezes em que os socialistas no poder,
297
WLADIMIR POMAR
ou fora dele, terão que se confrontar com a difícil decisão de ter que ape-
lar para a violência das armas a fim de evitar que suas próprias cabe-
ças rolem, depois que o movimento por demandas justas for ultrapas-
sado pelas forças que o manipularam com outros objetivos. As forças
socialistas e democráticas que desencadearam os movimentos para a
modificação do regime despótico da antiga Alemanha Oriental eram
contrárias ao processo acelerado de reunificação das duas Alemanhas.
Tinham claro que isso só poderia significar a anexação do lado oriental
pelo ocidental e o desmonte de todas as suas conquistas sociais. Até
hoje estão sem entender bem como foi possível perder o controle sobre
um movimento em que pareciam haver conquistado a hegemonia.
Em Angola, acreditou-se completamente na pacificação e no po-
der infalível da disputa democrática e eleitoral para nivelar as diferen-
ças e estabelecer regras consensualmente aceitáveis. A vida está mos-
trando cruelmente, aliás como quase sempre fez, que não bastam as
boas intenções do lado socialista para que o outro se conforme com as
mesmas regras do jogo. Interesses antagônicos, interferências exter-
nas, rivalidades étnicas, religiosas e nacionais, ignorância e mesmo o
caráter daqueles que a história colocou à frente dos campos em dispu-
ta, poderão influir sobre o desenrolar dos acontecimentos. E, sobre os
desejos de que os mecanismos democráticos constituam um antídoto
automático às tentativas de subverter por outros meios a orientação
socialista do Estado.
Desse modo, o grande perigo dos Estados de transição socialista
não está em se verem obrigados a ter que reprimir sedições ou outros
atos ilegais, mesmo que aparentemente camuflados por justas deman-
das. O grande perigo consiste em radicalizar a ação repressiva e to-
má-la como pretexto para restringir e retardar a democratização, ao
invés de encará-la como lição para avançar na incorporação e maior
participação da população no controle social e na tomada de decisões
políticas. Ou, ainda, em aproveitar os acontecimentos para avançar
prematuramente nas medidas relacionadas com a eliminação da bur-
guesia e, consequentemente, na abolição da propriedade privada antes
das condições para tanto haverem amadurecido.
As disputas e os confrontos políticos terão que ser admitidos na
legalidade socialista como resultado natural do desenvolvimento da so-
298
A ILUSÃO DOS INOCENTES
ciedade civil pluralista e de sua aspiração de assumir as funções do Es-
tado. Este, por seu lado, mesmo procurando expressar a vontade geral,
só conseguirá concretizar essa missão à medida que se abrir à partici-
pação política da sociedade civil. Mas esse processo é tanto consensual
como conflituoso. Haverá momentos em que o pluralismo enrijecerá
suas tendências corporativas, obrigando o Estado a capitular ou, em
sentido contrário, a cristalizar sua interpretação da vontade geral, mes-
mo que ela seja só parcialmente verdadeira. Essas contradições exigem
do Estado socialista de transição uma permanente preocupação para
reduzir as polarizações econômicas, sociais e políticas e resolvê-las
pela via da negociação e do entendimento. E, caso falhe a negociação e
o entendimento, relembrar permanentemente que a solução do conflito
pela força não elimina suas causas, mas somente suas manifestações.
Qualquer que seja o tempo necessário para superar todos os pro-
blemas de transição socialista, será imprescindível perseguir a socia-
lização econômica e a democratização do poder de modo constante e
perseverante. Demonstrar, como pensava Dikinson, que uma econo-
mia socialista é compatível com o funcionamento, de fato e necessário,
da democracia política e da salvaguarda das liberdades individuais.
Ou, como supunha Adler, que a democracia socialista consiga uma for-
ma política que promova o autogoverno de todo o povo, introduzindo
no sistema institucional um anel específico, resgatando o valor demo-
crático-socialista da soberania popular. Até lá, um dos problemas mais
importantes da democratização socialista é incorporar ao Estado, de
forma gradual mas crescente, o poder social dós trabalhadores, à me-
dida que a socialização econômica avançar.
O RENASCIMENTO DO TRABALHO
A transição socialista não poderá livrar-se, como temos repetido
ao longo deste texto, do problema da liberação da força de trabalho. A
permanente revolução das forças produtivas é uma condição do proces-
so de socialização e resulta, inevitavelmente, no descarte do trabalho e,
portanto, do trabalhador. No capitalismo desenvolvido, esse processo já
alcançou o nível de descarte da própria força de trabalho qualificada,
numa tendência que parece acelerar-se. Até agora, a maioria dos socia-
299
WLADIMIR POMAR
listas tem pensado em resolver essa situação através do pleno emprego,
adotando acima de tudo uma postura moral contra uma das mais gri-
tantes conseqüências da expansão do sistema de produção-para-lucro.
A experiência dos países socialistas de tipo soviético mostrou,
porém, de forma cristalina, que a manutenção do pleno emprego, além
de representar um freio ao desenvolvimento das forças produtivas e da
produtividade, transforma-se igualmente num sustentáculo à manu-
tenção da sociedade do trabalho, sociedade que tende a conservar os
homens subjugados e alienados.
Os homens só terão condições de desabrochar suas faculdades
verdadeiramente humanas quando o avanço tecnológico das forças
produtivas lhes permitir trabalhar, não por necessidade de sobrevivên-
cia, para ganhar o pão de cada dia, mas por uma necessidade do pró-
prio organismo humano, como condição para o seu desenvolvimento
físico e intelectual. Kurz tem plena razão quando aponta esse problema
como uma contradição dos socialismos existentes em relação aos para-
digmas de Marx. Se o capitalismo elimina o trabalho de forma negativa,
degradando e destruindo o detentor da força de trabalho, o socialismo
não pode nem deve, em contraposição, querer eliminar o capitalismo
através da conservação do trabalho como categoria eterna.
O erro de Kurz não consiste, nesse sentido, em criticar o que cha-
ma de antiga ontologia do trabalho, supostamente anticapitalista. Sua
ilusão assenta-se na suposição de que o comunismo ou socialismo do
trabalho tornou-se efetiva e definitivamente obsoleto, por já não encon-
trar nenhum fundamento na realidade. A realidade comunista por ele
prevista distinguir-se-ia do socialismo do antigo movimento operário
por ser criado não pelo proletariado, mas pela força produtiva da ciên-
cia. A moderna sociedade do trabalho, como um todo, estaria no fim. Na
área da produtividade teria passado de seus próprios limites e já não
conseguiria integrar em sua lógica a maioria da população mundial.
Kurz ignora as desigualdades do processo real. Sua realidade tem
pouco a ver com a realidade desequilibrada do mundo em que vive-
mos. Mas é positivo que ele nos indique, mesmo de forma deformada
e utópica, um problema crucial, que necessita solução adequada pelas
sociedades de transição socialista. A eliminação do trabalho é a conse-
qüência lógica e histórica da revolução técnico-científica e da elevação
300
A ILUSÃO DOS INOCENTES
da produtividade. Nessas condições, as sociedades de transição socia-
lista terão que encarar essa eliminação como um componente contra-
ditório, mas positivo, da evolução social. Terão que descobrir os meios
pelos quais será possível transformar as sociedades do trabalho em
sociedades do não-trabalho. E, ao contrário do que Kurz supõe, essa
sociedade não poderá ser criada unicamente pela força produtiva da
ciência, mas também pela ação dos trabalhadores.
A longa e persistente luta pela redução da jornada de trabalho con-
tém em si a contradição em que se debate a própria força de trabalho.
Resulta do esforço dos trabalhadores, tanto para manter sua capacidade
de reprodução como força de trabalho, quanto para preservar-se como
humanidade. Para o capital seria muito mais vantajoso manter cada
vez menos operários trabalhando mais tempo. Não fosse a luta destes,
a degradação pelo desemprego seria ainda mais massiva. Entretanto,
embora seja extremamente positiva, a luta pela redução da jornada de
trabalho não é capaz de dar solução ao problema do desemprego tecno-
lógico. A elevação da produtividade se dá num ritmo mais veloz do que
a redução das jornadas conquistadas pelos trabalhadores, tendendo a
criar um desemprego e uma miséria de massa sempre mais vasta.
Por outro lado, mesmo que a redução da jornada de trabalho ocor-
resse num ritmo tão rápido quando o aumento da produtividade, isso só
poderia ter como resultado final a jornada zero. No sistema de produ-
ção-para-lucro, tal situação deveria significar o desemprego abrupto de
todos os trabalhadores. O capital teria que optar entre manter sua ati-
tude atual, de completo desprezo pelas mazelas que a falta de trabalho
e de rendimentos provoca, ou proporcionar uma renda de subsistência
a todos os antigos portadores de força de trabalho e também aos novos.
Em qualquer das duas situações, o capital perderia sua razão de ser.
Tornar-se-ia inevitável, como prevê Kurz, a transformação do capitalis-
mo no comunismo, numa forma direta e quase sem mediações.
Esse exercício hipotético, porém, só mostra o quanto são conver-
gentes as tendências de elevação da produtividade e de liberação da for-
ça de trabalho. Essas tendências se tornaram tão fortes que nem mesmo
os pensadores liberais podem escapar de sugerir soluções. Dahrendorf
chega a postular a idéia de que o direito de não trabalhar é um candida-
to mais plausível à garantia constitucional porque protege as pessoas
301
WLADIMIR POMAR
contra o trabalho forçado. Na realidade, ele poderia dizer que o direito
ao não trabalho, mantida a renda necessária à existência, é a garantia
contra o desemprego forçado. Burtless, no entanto, considera que o au-
mento da produtividade, provocado pela automação num setor, levaria
a um aumento da renda, que resultaria em aumento da demanda de
artigos produzidos em outros setores, gerando assim novos empregos.
Como essa idéia não condiz com a realidade do desemprego estru-
tural, outros acadêmicos vislumbram, conforme Braga, cenários dife-
rentes em que os índices elevados de desemprego se tornariam crôni-
cos (20%, 30% ou mais). Segundo eles, isso exigiria dos governos o uso
do dinheiro público para pagar pessoas que fizessem trabalhos sem ne-
cessidade. Bottomore também trata do assunto. Sugere que se coloque
na pauta de discussão propostas do tipo de garantia de uma renda bá-
sica para todos os membros adultos da sociedade, além da qual se po-
deria obter uma renda adicional no emprego remunerado. Assim, além
da redução da jornada de trabalho, persistentemente buscada pelos
trabalhadores, começam a surgir outras alternativas para fazer frente
à situação de liberação crescente e permanente da força de trabalho.
Jacques Robin prevê uma revolução do trabalho. Para ele ela será
efetiva quando três perguntas básicas forem respondidas: Já que cada
vez mais se produz com menos trabalho, como organizar e dividir o
trabalho que resta? O que fazer do tempo livre? Como repartir a maior
riqueza produzida pelas máquinas? Ele reconhece que a economia de
mercado é incapaz de responder a esses desafios. As inovações tecno-
lógicas exigem inovações culturais que questionem o lugar do trabalho
na vida social e outro tipo de partilha da riqueza produzida.
Essas perguntas só podem ser totalmente respondidas quando a
riqueza produzida puder ser apropriada pelo conjunto da sociedade, e
não somente por uma minoria que possua a propriedade privada dos
meios de produção. Tal propriedade deve ser, pois, abolida para permi-
tir a apropriação social da maior riqueza produzida pelas máquinas.
Isso possibilitará, então, organizar o direito ao trabalho livre e voluntá-
rio e oferecer oportunidades diversificadas para o uso do tempo livre.
Para as sociedades de transição socialista, o problema não con-
sistirá, dentro dessa perspectiva geral, em ter ou não desemprego es-
trutural. A partir de um determinado nível de produtividade, o proble-
302
A ILUSÃO DOS INOCENTES
ma passa a ser como as sociedades socialistas tratam o desemprego e
respondem de forma gradual às perguntas colocadas por Robin. To-
das as alternativas possíveis terão que ser agilizadas à medida que a
produtividade alcançar um patamar além do qual ela vai liberar mais
força de trabalho do que os setores menos produtivos podem absorver.
Adam Schaff, que há 30 anos sustenta que o trabalho assalariado desa-
parecerá, afirma que o pleno emprego é um sonho do passado. Segun-
do ele, esse sonho precisa ser substituído pela idéia de plena atividade
do homem, numa época em que deve haver o pagamento de uma renda
básica de trabalho, não apenas aos desempregados, mas também aos
jovens com idade de ingressar no mercado minguante de trabalho.
Rossanda tem razão quando diz que a alienação só desaparecerá
nas condições em que se dê a reapropriação do trabalho como ganho,
meios e sentido pelo trabalhador.
Em outras palavras, quando sua liberdade não for condicionada
por sua necessidade de sobrevivência e ele puder se transformar no
sujeito de seu modo de produção. No entanto, como até mesmo nas so-
ciedades socialistas de transição isso só poderá ocorrer como proces-
so, será necessário combinar medidas de manutenção da sobrevivên-
cia da força de trabalho liberada, com outras relativas ao tempo livre,
resultante do desemprego ou da menor jornada de trabalho. De tempo
de angústia, ócio degenerativo e intranqüilidade pelo futuro, o tempo
livre deve ser transformado em tempo de prazer, de novas aquisições
de conhecimentos, de ampliação cultural, de lazer, de divertimento e
de participação cívica e política. Schaff diz que o mais importante é
dar um objetivo, qualquer das múltiplas ocupações úteis que os seres
humanos podem exercer para o bem geral.
Em vista disso, o socialismo de transição terá que tratar com bas-
tante atenção da redução paulatina da jornada de trabalho. Deve evitar
que a elevação da produtividade e a conseqüente liberação da força de
trabalho forme uma massa desproporcional de desempregados estru-
turais, que poderia representar um custo social e mesmo econômico
muito elevado. Ao mesmo tempo, será necessário organizar a distri-
buição, entre os desempregados, de parte da riqueza produzida. A pro-
posta de Bottomore e Schaff, de proporcionar uma renda básica a to-
dos os membros adultos da sociedade, independentemente de estarem
303
empregados ou não, poderia ser uma alternativa viável.
Por outro lado, será preciso propiciar oportunidades amplas para
reciclagens profissionais e aquisição de novos conhecimentos técnicos
e científicos, na perspectiva de formar mulheres e homens polivalen-
tes e de múltiplas habilidades, capazes de adaptar-se às mudanças nos
processos de produção. O sistema de reciclagem deveria atingir tanto
os desempregados quanto os empregados, podendo introduzir condi-
ções para um rodízio que permitisse uma divisão mais equitativa do
trabalho ainda existente entre os indivíduos da sociedade.
Além disso, é preciso aproveitar as próprias condições que o ca-
pitalismo vem sendo obrigado a criar para a construção de sociedades
do não trabalho ou do trabalho voluntariamente partilhado. Os siste-
mas de seguridade social, que em alguns casos não passam de siste-
mas de renda mínima, apontam para a possibilidade de instituição da
renda básica.
As indústrias de ensino, culturais, turísticas, de entretenimento
e lazer, embora envoltas na forma mercadoria e impeditivas ao acesso
da maioria da população, indicam mecanismos que podem transfor-
mar o tempo livre do socialismo no tempo em que o livre desenvolvi-
mento de cada um, como disse Marx, seja a condição para o livre de-
senvolvimento de todos.
São mecanismos que apontam para o tipo de luta que os traba-
lhadores precisam praticar desde agora, para enfrentar a tendência ao
desemprego estrutural e amadurecer as condições do não-trabalho a
serem expandidas pela transição socialista. A multiplicação dos equi-
pamentos culturais, de grupos e entidades voltados para a difusão e o
debate cultural e de medidas para tornar a cultura acessível a todos
os membros da sociedade; a ampliação da indústria turística como
componente importante de difusão de conhecimentos culturais, de in-
tegração dos povos e do aproveitamento do lazer; a multiplicação dos
equipamentos esportivos e de educação física e dos equipamentos de
lazer e entretenimento, tudo isso faz parte das respostas para aprovei-
tar o tempo livre, ou o ócio.
Outros, além de Battomore e Schaff, apontam para as possibilida-
des de participação ativa, voluntária e ampla, nos movimentos cívicos
e sociais, proporcionando condições muito mais efetivas de apropria-
304
ção dos assuntos políticos pela sociedade.
O tempo livre torna-se condição fundamental para que todos se-
jam burocratas, no bom sentido da função, permitindo um rodízio cons-
tante e voluntário dos que se dedicam à administração das coisas da
sociedade. Dessa maneira, o trabalho renascerá sob a forma humana,
desalienada, das cinzas do holocausto em que o capital tentou destruí-lo.
305
306
VIII Deixando em aberto
O liberalismo cantou vitória, anunciou o fim da história, pro-
meteu um mundo de paz, prosperidade e democracia. Este é, aliás, o
mundo aspirado por bilhões de seres humanos que habitam o globo
terrestre, bilhões de inocentes que acreditaram que o fim do comunis-
mo proporcionaria a civilização do capitalismo, sua humanização. Foi
a ilusão dos inocentes.
O capitalismo, ao contrário, passou a remoer sua própria crise.
Mais e mais coloca a nu as suas entranhas. Ao acabar com o comunis-
mo do socialismo soviético, arrancou seu próprio véu. Já não há a quem
culpar pelas mazelas de seu mundo. Sobra a barbárie ou a destruição.
Ou o socialismo. Com o fim do comunismo, o capital repõe a ne-
cessidade do socialismo. Um socialismo que se aproveite de todas as
lições, das experiências e das vicissitudes do passado. Sem exceções. E
que evite que os inocentes tenham novas ilusões e utopias. O socialis-
mo não é, nem será, um caminho calcado de pétalas de rosas.
Em textos anteriores sobre o socialismo, comparei os horrores do
capitalismo com o das experiências socialistas, afirmando que, afinal
de contas, nestas os horrores haviam sido bem menores. Antônio Oli-
vieri considerou que isso não parecia adequado.
Para as vítimas, não importaria se o carrasco ostenta a suástica
ou a foice e o martelo. E acrescentou que uma comparação do tipo apa-
renta reiterar a maquiavélica justificação dos meios pelos fins. Não
residiriam neste erro elementos essenciais do próprio stalinismo?,
perguntou.
Quem dera! Seria mais fácil eliminar erros desse tipo. O stalinis-
mo é o exemplo mais acabado do voluntarismo, da ilusão perversa de
307
WLADIMIR POMAR
que seria possível alcançar o reino dos céus socialista por um cami-
nho perfeito, igualitário e reto. Bastaria vontade e firmeza ideológica.
E uma atitude inflexível e implacável contra os contra-revolucionários.
Ainda hoje, muita gente que se diz contrária ao stalinismo, conti-
nua perseguindo um socialismo capaz de evitar qualquer desigualda-
de, qualquer conflito, qualquer mancha. Bastaria ter à frente homens
retos, dignos, bons e eticamente corretos. Dos quais, diga-se de passa-
gem, o inferno anda cheio.
Isso não será possível, por mais que os socialistas queiram um
caminho menos doloroso. Não só porque a burguesia resistirá. Mas
porque os bolsões de atraso, de ignorância, de patologias sociais, são
não somente grandes, mas imensos. E ainda causarão horrores no
próprio socialismo, independentemente do desejo e das ilusões das
pessoas de boa vontade e dos inocentes. As vítimas jamais absolverão
seus carrascos, mesmo socialistas, e mesmo que hajam tombado em
combate aberto e franco.
Apesar disso, sempre será um alento que os horrores do socia-
lismo sejam menores, em relação ao capitalismo, até que possam ser
finalmente suprimidos pela elevação da humanidade a um novo pa-
tamar de cultura e de vida. Chegado este momento, poderemos pelo
menos repor as utopias sobre bases reais. E relembrar as ilusões dos
inocentes que, mal ou bem, foram as fontes em que se embeberam os
sonhos dos justos. Sonhos que alimentaram as lutas por um mundo
melhor e que continuam por concretizar-se. Por isso mesmo, o debate
e o combate permanecem em aberto.
308
Fontes
Na elaboração deste texto e dos anteriores sobre a crise do socia-
lismo, eu me vali do auxílio de obras, textos e opiniões de diferentes
autores. Com eles concordei ou polemizei, aproveitando suas ideias
para desenvolver minhas próprias teses e hipóteses.
Fiz uma transcrição livre dos textos aproveitados, como alertei
na Advertência, para facilitar o trabalho dos leitores. Os erros ou omis-
sões são de minha inteira responsabilidade, assim como o conjunto
das opiniões expressas nesta obra.
A seguir, o nome dos autores e obras citadas e consultadas, inclu-
sive jornais e revistas, pela ordem em que aparecem no texto.
CITADAS
Robert Carson. O que os economistas sabem. Zahar, Rio de Janeiro,
1992
Karl Marx. Contribuicion a la critica de la Economia política. A. Co-
razon, Madrid, 1976
Karl Marx. O Capital. Abril, São Paulo, 1983
Robin Blackburn (Coord.). After theFali. Verso, London, 1991
Eric Hobsbawn. “Goodbye for ali that”, in Afier the Fali
Raph Dahrendorf. Reflexões sobre a revolução na Europa. Zahar, Rio
de Janeiro, 1991
Timothy Ash. Nós, o povo. Cia. das Letras, São Paulo, 1990
Eric Hobsbawn. “Out of the ashes”, in Afier the Fali
Jeffrey Sachs. Folha de São Paulo, 5/03/1991
Jacob Gorender. Marcino e Liberatore. Ática, São Paulo, 1992
309
WLADIMIR POMAR
Lester Thurow. Cabeça a cabeça. Rocco, Rio de Janeiro, 1993
George Bush. O Globo, 17/11/1990
John Nasbitt. Veja, 12/1991
André Gluksmann. Folha de São Paulo, 10/11/1991
Tatiana Zalasvskaia. “A estratégia social da peréstroika”. Espaço e
Tempo, Rio de Janeiro, 1989
Mikhail Gorbachev. Peréstroika. Best Seller, São Paulo, 1988
Paul Kennedy. O Globo, 6/06/1993
Norberto Bobbio. Liberalismo e democracia. Brasiliense, São Paulo,
1993
Serge Cordelier, Catherine Lapantre (Coord.). O mundo hoje/1993. En-
saio, São Paulo, 1993
Giovani Arrighi. “Marxist century, American century”, in Afier the
Fali.
Cláudio Deddeca, Sandra Brandão. “Crise, transformações estrutu-
rais e mercado de trabalho”, in Crise Brasileira, Anos 80 e Governo
Collor. Desep, Inca, São Paulo, 1993
Alfonso Guerra. Folha de São Paulo, 12/03/1991
Norberto Bobbio. “The upturned Utopia”, in Afier the Fali
Norberto Bobbio. A era dos direitos. Campus, São Paulo, 1992
Robert Kurz. O colapso da modernidade. Paz e Terra, São Paulo, 1992
The Economist. Gazeta Mercantil, 12/11 /1992
Ralph Dahrendorf. O conflito social moderno. Zahar, Rio de Janeiro,
1992
Boris Kagarlitski. Folha de São Paulo, 23/03/1993
Abba Eban. Folha de São Paulo, 6/08/1993
Hans Enzensberger. “Ways of walking. a postscript to Utopia”, in Afier
the Fali.
Jürgen Habermas. “What does socialism mean today?”, in Afier the
Fali.
Lawrence Franko. Global comparative competition. Massachussets
Universitiy, 1990
Alvim Tofler. A terceira onda. Record, Rio de Janeiro, 1980
Peter Glotz, in Ralph Dahrendorf
310
A ILUSÃO DOS INOCENTES
Helena Celestino. O Globo, 20/06/1993
Antonio Gramsci. Poder, política el partido. Brasiliense, São Paulo,
1990
Mario Andrada e Silva.. Jornal do Brasil, 13/06/1993
Ignacy Sachs. Estratégia de transição para o século XXI. Studio
Nobel, São Paulo, 1993
Tom Bottomore. Em Tempo nº. 265, março 1993
Umberto Cerroni. Teoria política do socialismo. Europa-America,
Lisboa, 1976
Akio Morita. Folha de São Paulo, 07/09/1991
Rubens P. Lyra (Coord.). Socialismo, impasses e perspectivas. Scrit-
ta, São Paulo, 1992
Rossana Rossanda. “Por uma análise marxista da crise nas socieda-
des do Leste Europeu”, in Socialismo, impasses e perspectivas.
André Gorz. “The new agenda”, in Afier the Fali.
André Gorz. Estratégia operária e neocapitalismo. Zahar, Rio de Ja-
neiro, 1968
Diane Elson. “Socializing the market”, in Afier the Fali
Diane Elson. ‘The economics of a socialist market”, in Afier the Fali.
V.S. Prokovski. História das ideologias. Estampa, Lisboa, 1972
Tucidides. História da Guerra do Peloponeso. UnB, Braseilia, 1982
Christopher Hill. O mundo de ponta cabeça. Cia das Letras, São Paulo,
1987
Friedrich Engels. “Las guerras campesinas”. Obras, Progresso, Mos-
cou, 1979
Friedrich Engels. Del socialismo utópico al socialismo cientifico.
Obras
Albert Soboul. História da revolução francesa. Zahar, Rio de Janeiro,
1981
Karl Marx. Critica da Filosofia de direito de HegeL Presença, Lisboa,
1982
Karl Marx. “El programa de Gotha”. Obras
Karl Marx, Friedrich Engels. “Manifiesto comunista”. Obras
Vladimir Ilyich Lenin. Relatório ao X Congresso do PCR (b). LP&M,
Porto Alegre, 1979
311
WLADIMIR POMAR
Eduard Bernstein, in Umberto Cerroni
Karl Kautsky. “O marxismo e seu crítico Bernstein”, in Umberto Cer-
roni
Rosa Luxemburgo. Reforma o revolucion. Baires, Buenos. Aires, 1974
Vladimir Ilyich Lenin. ‘Teses de abril”. Obras, Alfa Omega, 1981
Vladimir Ilyich Lenin. El desenvolvimiento dei capitalismo en Rús-
sia. Progresso, Moscou, 1959
Vladimir Ilyich Lenin. Duas táticas da social-democracia na revolu-
ção russa. Livramento, São Paulo, 1975
Robin Blackburn. “Fin de Siecle. socialism after the crash”, in, Afler
the Fali.
Carlos Nelson Coutinho. Democracia e socialismo. Cortez, São Paulo,
1992
Adam Przeworski. Capitalismo e social-democracia. Cia. das Letras,
São Paulo, 1989
Jorge Semprum. Folha de São Paulo, 10/11/1991
Vladimir Ilyich Lenin. “Sobre o dualismo do poder”. Obras, Alfa Ome-
ga, 1981
Vladimir Ilyich Lenin. El Estado y la revolucion. Anagrama, Barcelo-
na, 1976
Ernesto Che Guevara. Obras. Baires, Buenos. Aires, 1973
“Wladimir Pomar. O enigma chinês. capitalismo ou socialismo. Alfa
Omega, São Paulo, 1987
Noam Chomski. EUA continuan Guerra Fria en li 3& Mundo. Brecha,
Montevideo, 18/06.1992
Florencia Costa. Jornal do Brasil, 20/06/1993
Roberto Abdenur. Jornal do Brasil, 25/08/1993
Paul Kennedy. Preparando para o século XXI. Campus, São Paulo,
1993
Ralph MUIiband. “Reflexions on the crisis”, in After the Fali
Karl Marx, Friedrich Engels. “La ideologia alemana”. Obras
Enrique Rubio. Perspectivas para ei socialismo en el mundo atual.
Brecha, Montevideo. 16/04/1992
Yvon Quiniou. “Morte de Lenin, vida de Marx”, in Socialismo, impas-
312
A ILUSÃO DOS INOCENTES
ses e perspectivas
Michal Kalecki. Ensayos sobre economias em vias de desarrollo.
Critica, Barcelona, 1980
Alec Nove. A economia do socialismo possível. Ática, São Paulo, 1989
Vladimir Ilyich Lenin. Sobre el problema de los mercados. Siglo XXI,
México, 1974
Ernest Mandei. Socialismo x Mercado. Ensaio, São Paulo, 1991
Charles Bettelheim. Calculo econômico y formas de propiedad. Siglo
XXI, México, 1972
Max Adler. “Democracia política e democracia social”, in Umberto
Cerroni
Jacques Robin. Jornal do Brasil, 11/10/1993
Adam Schaff. Jornal do Brasil, 25/11/1993
Antônio Olivieri. Brasil Agora, 15/06/1992
Timothy Wirth. “Reunião preparatória da Conferência da ONU so-
bre População e desenvolvimento”. 1993
Marcos Strecker. Folha de São Paulo, 06/10/1993
Revista Forbes, 22/07/1991
Gary Burtíess, in Teodomiro Braga, Jornal do Brasil, 13/06/1993
Edmundo Lira de Arruda. Jornal do Brasil, 20/06/1993
Giorgio Romano Schutte. Alguma coisa está fora de ordem. TIE, São
Paulo, 1993 Consultados.
Fernando Haddad. O sistema soviético. Scritta, São Paulo, 1992
Martha Harneker e outros. Problemas da transição para o socialis-
mo. Iniciativas, Lisboa, 1976
Zsuzsa Ferge. A society in the making. Penguin, New York, 1976
Paul Singer. O que é o socialismo hoje. Vozes, Petrópolis, 1983
Paul Malor Sweezy. A sociedade pós-revolucionária. Zahar, Rio de
Janeiro, 1981
Diversos. Socialismo em debate. Inca, São Paulo, 1988
Istvam Mezaros. Produção destrutiva e Estado capitalista. Ensaios,
SP,1989
Istvam Mezaros. A necessidade do controle social Ensaios. São Pau-
lo, 1989
313
WLADIMIR POMAR
Diversos. “Socialismo e socialismos”. Lua Nova n°- 22, São Paulo,1990
K. Modzelewsky, J. Kuron. Socialismo o burocracia. Ruedo Ibérico,
Alencon, 1968
Eduard Kardelj. As vias da democracia na sociedade socialista. Eu-
ropa-America, Mira-Sintra, 1978
Rudolf Bahro. La alternativa. Alianza, Madrid, 1980
Sérgio Bittar. Transição, socialismo e democraàa. Paz e Terra, São
Paulo 1980
Michel Lisage. As instituições soviéticas. Almedina, Coimbra, 1976
Markus Sokol. Revolução e contrarrevolução no país de outubro.
Letras Contemporâneas, Florianópolis, 1988
Raymond Hutchings. El desarrollo econômico soviético 1917-1970.
Istmo, Madrid, 1973
Rosa Luxemburgo. Reforma, revisionismo e oportunismo. Laemert,
Rio de Janeiro, 1970
Claude Leffort. A invenção democrática. Brasiliense, São Paulo, 1987
Francisco Weffort. Porque democracia. Brasiliense, São Paulo, 1984
Crawford Brough Macpherson. A democracia liberal. Zahar, Rio de
Janeiro, 1978
Antonio Gramsci. Pequena antologia política. Fontanella, Barcelona,
1974
Nicos Poulantzas. O Estado, o poder, o socialismo. Graal, Rio de Ja-
neiro, 1978
Nicos Poulnatzas. Poder político e classes sociais. Martins Fontes,
São Paulo, 1986
Robert Nozick. Anarquia, Estado e Utopia. Zahar, Rio de Janeiro, 1991
Perry Anderson e outros. A estratégia revolucionária da atualidade.
Jorues, São Paulo, 1986
Vladimir Ilyich Lenin: Contenido econômico dei populismo. Siglo XXI,
México, 1974
Abel Aganbegyan. Movendo a montanha. Best Seller, São Paulo, 1989
314
A Miragem do Mercado é o segundo da coleção
de três textos a respeito da crise do socialismo
real. No primeiro, Rasgando a Cortina, procurei
dar um panorama geral do que pude ver, ouvir e
sentir durante a viagem empreendida pelo Leste Europeu.
E deixei clara minha opinião a respeito do fracasso do
modelo de socialismo que ali foi tentado.
Neste, trato especificamente da economia de mercado, da
democracia liberal e de seu significado para o socialismo.
Ao contrário do que dizem os propagandistas neoliberais,
a alternativa ao fracasso do modelo soviético de socialismo
não é o mercado nem a democracia capitalistas.
O capitalismo procura relacionar o fracasso do socialismo
no Leste Europeu com o fim da luta de classes e com
a ineficácia da violência revolucionária. Entretanto, a
realidade do mundo capitalista é cada vez mais a realidade
da violência institucionalizada, inclusive dos países
capitalistas desenvolvidos contra os países pobres e pouco
desenvolvidos.
Um novo sonho socialista dificilmente conseguirá escapar
dos ditames e da realidade da luta de classes, inclusive
durante o processo de construção da sociedade socialista.
O que significa dizer que cada povo, a partir de suas
condições concretas, terá que encontrar vias e métodos
próprios de construção econômica e política, visando
democratizar ou socializar esferas cada vez mais amplas
da vida social, contra a resistência das classes burguesas.
Só os inocentes acreditam que o capitalismo aceitará o jogo
democrático, superando assim os antagonismos de classe.
www.pagina13.org.br