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Diorama s.m. 4 museol representação de uma cena, onde
objetos, esculturas, animais empalhados etc. inserem-se
em um fundo pintado realisticamente. (Houaiss)
Depois, sempre que voltávamos para casa,
eu tinha de ler alto para você o seu livro
favorito sobre a mudança das estações,
embora você o soubesse de cor da
primeira à última linha, disse Vera, e
acrescentou que eu nunca me cansava das
imagens de inverno em particular, das
lebres, renas e perdizes imóveis de
espanto na paisagem coberta de neve
recente, e sempre que chegávamos à
página, disse Vera, disse Austerlitz, na qual
se falava que a neve cai pelos galhos das
árvores e logo cobre todo o chão da
floresta, eu erguia a vista para ela e
perguntava: Mas se tudo fica branco, como
é que os esquilos sabem onde esconderam
as suas provisões? Ale kdyz vsechno
zakryje sníh, jak veverky najdou to místo,
kde si schovaly zásoby? Eram exatamente
essas as palavras, a pergunta que eu
sempre repetia, disse Vera, e que toda vez
me inquietava. Aliás, o que sabem os
e qu e a a ás, o que sabe os
esquilos, e o que sabemos nós próprios, e
como nos recordamos, e o que
descobrimos no final?
— W. G. Sebald, Austerlitz
All that remains of The Iliad is a catalog
of ships.
— Maria Stepanova, In memory of
memory
o osso de zorrilho
Um reverendo inglês publicou um livro em 1857 sobre
as coisas que podemos encontrar na beira da praia, e
então milhares de pessoas começaram a ir atrás de
conchas. Búzios, vieiras, conchas espiraladas e algumas
que pareciam navalhas. Limpavam aquelas casas vazias
até que ficassem brilhando como cerâmica. Era uma
lembrança do mar desenhada em carbonato de cálcio,
que os amantes tomavam como um pedaço de sua
história particular e as crianças guardavam em baús
junto a bolas de gude, bilboquês e pequenos canhões de
madeira. Anos depois, haveria vitrines imensas de
besouros numerados em museus, a mandíbula de um
tubarão, pássaros tropicais com asas abertas e olhos de
vidro, a classificação obsessiva do mundo natural. Gorilas
morreriam na África para serem remontados e exibidos
em Nova York. Ninguém veria as costuras ou os pregos.
Em 1987, eu tinha nove anos e ainda estava bem longe
de tudo isso, rodeada pelo campo vazio e mordendo a
poeira da br-473. Ia sentada entre Marco e meu pai no
banco comprido da caminhonete. A janela era de
Vinícius. Ele olhava para fora com o desinteresse que
costumava sentir pela estrada e pelos lugares
despovoados, o arco metálico dos fones de ouvido
momentaneamente estragando o cabelo que ele podia
jurar que era igual ao do tecladista do Depeche Mode.
Para mim, aquelas viagens tinham o cheiro de cigarro
Minister e o som cheio de estática das milongas e dos
chamamés. Eu achava um pouco sinistro. Parecia um
baile acontecendo no além. Às vezes, o locutor
interrompia a sequência de músicas para dar o boletim
meteorológico, um oferecimento de Jimo Cupim,
qualidade comprovada. Tempo seco, céu azul.
Daquela vez, não me incomodei com o rádio. Estava
distraída. Uma horas antes, atrás de um posto de
gasolina, em um lugar chamado Torquato Severo, eu
tinha encontrado um osso. Um pequeno fêmur, talvez.
Estava só com a ponta para fora, perto de umas latas
vazias de óleo, limpinho como se tivesse sido o
brinquedo de um cão, e então cavei até minhas unhas
ficarem pretas, depois entrei no banheiro e coloquei o
osso e as mãos debaixo d’água. Havia um espelho sem
moldura na parede e três fotos de mulheres já meio
azuladas, com os peitos de fora e todo o resto. Saí de lá.
Um homem de boné vermelho estava ajoelhado no chão,
mexendo em uma bicicleta. Parecia mais velho que meu
pai. Parou de olhar a roda traseira e se virou para mim.
“Deixa eu ver isso aí que tu tem.” Segurei o osso com
mais força porque achava que ele era o dono de tudo,
das bombas de gasolina, da lanchonete engordurada,
das mulheres sem roupa, do pequeno fêmur. Ele sorriu.
“Isso aí é zorrilho”, disse, e voltou a trabalhar na
bicicleta.
Zorrilho. Quando eu chegasse em casa, ia colocar o
osso em uma caixa de sapato com minhas outras
relíquias, que incluíam o pedaço da carapaça de um tatu,
quatro sementes de paineira, algumas pinhas e meus
próprios dentes de leite. Minha mãe não gostava nada
daquela coleção.
Agora eu viajava com o fêmur no colo. Faltavam vinte e
um anos para eu montar meu primeiro animal — um
esquilo com um molde pronto em um porão em Kooskia,
Idaho —, mas apenas oito meses para que minha família
estivesse nas manchetes de todos os jornais do Rio
Grande do Sul.
Raul Matzenbacher era meu pai.
Carmen Matzenbacher era minha mãe.
Ele deixou na boca por alguns segundos o Minister
fumado pela metade e girou o volante, entrando em uma
estrada secundária ainda mais estreita e mais
esburacada que a br-473. Dava para ouvir as espingardas
balançando lá atrás. Não havia uma única casa entre o
céu imenso e o verde salpicado de poeira desde Torquato
Severo. Quando terminou o cigarro, meu pai jogou a
bagana pela janela e ajeitou a aba do chapéu campeiro
preto, que ganhara de um peão de São Gabriel durante a
campanha para deputado estadual (Doutor Raul, o
senhor salvou minha esposa de uma pneumonia braba,
agora vai salvar o Rio Grande!). Meu pai tinha quarenta
anos, e o topo da cabeça já era praticamente um terreno
aberto. Tentava escondê-lo com o chapéu, a boina de lã
ou o boné do clube de tiro.
Na caçamba, Faísca começou a latir. Eu e Marco
olhamos para trás ao mesmo tempo. Estava andando em
círculos. Quando completava uma volta, parava e latia
para o céu azul elétrico. Dois urubus pousaram no
acostamento.
“Quieto, Faísca!”, o pai gritou.
Ele ganiu e se acomodou de novo, com o focinho
tocando a lataria.
O carro começou a andar mais rápido, deixando uma
nuvem de poeira vermelha que acabou por engolir os
urubus.
“Tu deu comida pro cachorro?”
Vinícius não ouviu a pergunta. Na noite anterior,
finalmente tinha completado sua fita com as melhores
canções do rock britânico, o dedo a postos no botão do
som desde que a locutora da Rádio Ipanema anunciara
que ia rodar o pedido de um ouvinte — ele! —, Jesus and
Mary Chain, “Just like honey”. Agora tentava balbuciar as
palavras do refrão, que flutuavam em um mar revolto de
sintetizadores e guitarras distorcidas. Marco ergueu o
braço e tentou arrancar os fones de ouvido do irmão,
mas Vinícius se esquivou em direção à porta, como se só
faltasse mais um pequeno motivo para saltar. Tirou os
fones.
“Que é isso, Marco!”
“O pai tá perguntando se tu deu comida pro Faísca.”
“Ih, esqueci.”
“A escala, meu”, disse Marco. “Era a tua vez.”
“Eu esqueci de olhar a escala.”
Virei para meu pai, esperando que ele dissesse alguma
coisa. Parecia que mastigava o interior da bochecha
lentamente. A bota pisou fundo no acelerador e tudo
passou a chacoalhar ainda mais.
“Sabe de uma coisa que eu gosto?”, ele disse enfim,
com os olhos fixos na estrada. “Gratidão canina. Entrega.
Lealdade. Tu acha que o Faísca tem alguma razão para
ser grato hoje?”
“Eu posso dar meu sanduíche pra ele”, respondeu Vini.
“Cachorro não tem que comer sanduíche.”
“Ué, dá pra tentar.”
“Cadê o sanduíche, Vinícius?”
Uma cerca surgiu no lado direito. Tocos de madeira e
arame farpado. Vinícius se abaixou, tirou a tampa do
isopor que estava entre seus pés e entregou para o pai
um sanduíche enrolado em um guardanapo.
“Tu vai crescer e vai ter que fazer escolhas que nem
sempre são fáceis”, disse meu pai.
Abriu a janela e jogou o sanduíche no meio da estrada.
A estação das milongas e dos chamamés era puro
chiado agora, mas meu pai demorou a girar o botão,
como se achasse que a melhor trilha sonora para o
pampa fosse mesmo a dessintonia. Só desligou depois
que cruzamos o pórtico enferrujado da Estância Minuano,
quer dizer, da estâ ci min ano, um lugar onde eu nunca
tinha pisado antes.
Passamos diante da casa-grande sem parar, e então
meu pai pegou um caminho estreito no meio do campo.
Aquela era a propriedade de um amigo dele, não sei
quantos hectares e não sei quantas mil cabeças de boi
herdadas havia bem pouco tempo. Segundo minha mãe,
as coisas mais valiosas daquela herança eram as dívidas.
Fui falando com as vacas dentro da minha cabeça. Todo
mundo estava quieto. Quando meu pai viu uma coisinha
mais escura no horizonte, seguiu na direção dela. Dez
minutos depois, estava estacionando a F-1000 debaixo
de uma figueira — a tal coisinha escura —, cujos galhos
quase tocavam o topo da caminhonete.
Ele tirou as duas espingardas .12 de seu estojo de
couro e soltou Faísca, que deu algumas voltas ao meu
redor, depois parou completamente, atento aos ruídos do
campo. Eu não tinha as orelhas de um perdigueiro, então
aquilo era o mais perto que eu já havia chegado do
silêncio, uma escassez de estímulos sonoros que eu
procuraria anos depois nos desertos e nas florestas,
dormindo em quartos de motel com luminosos fora do
tempo — TV a cabo grátis, quartos para não fumantes —
ou campings que pareciam a última parada antes do fim
do mundo.
Vestia um colete com pequenos bolsos para os
cartuchos, que brilhavam à luz do sol. Prendeu no colete
uma tira de couro na qual mais tarde amarraria as
perdizes pelo pescoço.
Ele tinha aprendido a caçar com meu avô, Wagner
Matzenbacher, antes mesmo de conseguir ler o próprio
nome. Matavam duas dúzias de perdigões e penduravam
as aves no rack de uma Rural Willys e tiravam fotografias
para depois exibi-las aos amigos, em cidades onde não
raro homens morriam com uma faca de churrasco
enterrada nas entranhas. Sorriam nas fotos, mas de uma
forma discreta e quase apologética, de acordo com a
formalidade dos retratos dos anos sessenta no interior do
Brasil. Nunca cheguei a conhecer esse avô. Ele morreu
em um acidente de carro a caminho da serra, uns bons
dez anos antes de eu nascer, mas tenho algumas
fotografias dele. Há uma em especial que pego nos meus
arquivos umas duas vezes por ano. Olhar para esse
pedaço de papel fosco é constatar que um homem
simples pode se tornar uma figura mítica caso seja posto
na pose certa. O fotógrafo tirou o retrato em um leve
contra-plongée. Wagner, com a boca fechada que
esconde os buracos deixados por dois dentes incisivos,
ignora a câmera e olha para um ponto indefinido. Não se
trata, no entanto, de qualquer ponto, mas de algum lugar
muito acima do mundo terreno. Wagner Matzenbacher
tem seis perdizes mortas ao redor do pescoço e nove
marrecões pendurados em uma corda na cintura. Com a
mão direita, segura no cano da espingarda, que está
apoiada no chão; parece, assim, uma dessas esculturas
de mármore que precisam de um tronco, uma rocha ou
outro objeto qualquer para que não desabem com o
próprio peso.
Naquele dia da caçada, em algum lugar entre São
Gabriel e Bagé, meu pai foi seguindo Faísca, e os
meninos logo dispararam também. O campo era de um
verde seco e depois ficava dourado e batia nos joelhos
deles. Fiquei para trás procurando insetos. Quando olhei
de novo na direção dos três, o pai recarregava as
espingardas. Vinícius ajeitou uma delas no ombro, o cano
apontado na direção das macegas. Eu vi quando a perdiz
levantou voo e começou a traçar uma diagonal
previsível, mas meu irmão nem se mexeu, então o pai
mirou com pressa e deu o primeiro tiro usando a Rossi ou
a Beretta. A perdiz caiu sob a luz massacrante do sol.
Comecei a correr. Já tinha visto essa cena, as asas que
começam a bater, depois o animal despencando do céu
como se fosse um saco sujo, já tinha visto Faísca voltar
com a perdiz balançando entre os dentes, mas era a
primeira vez que meu irmão mais velho passava a mão
naquele cabelo grande dele e ficava olhando para baixo
enquanto fazia com a ponta do tênis um pequeno buraco
na terra.
“Eu te trago aqui, tu deixa o cachorro com fome e não
atira quando tem que atirar”, ouvi meu pai dizer.
Vinícius não respondeu.
“Toma, Marco, tu ganhou a chance de pegar tua
primeira perdiz.”
Sorriu com os dentes colados e tirou a carteira de
Minister do bolso.
Marco tinha treze anos. Desde os onze, atirava em
garrafas de coca-cola posicionadas em um cepo de umbu
toda vez que íamos para a estância do falecido vô
Wagner e da falecida vó Ondina perto de São Gabriel,
sendo eu a recolhedora oficial dos cacos de vidro. Mas
ele nunca havia atirado em um animal, diferentemente
de Vinícius, que ganhara esse direito havia dois anos.
Naquele momento, Marco ainda era em essência um guri
de cidade grande, que gostava de jogar Pitfall no Atari e
vivia longos conflitos armados em um tabuleiro de War.
Apoiou a espingarda .12 no ombro estreito. Parecia
imensamente grato. Quando voltássemos para a estância
da família, Marco desmontaria as armas pela primeira
vez e usaria a escova de crina e depois a escova de
algodão com um pouco de óleo lubrificante.
Meu pai olhou para mim.
“Espera a gente no carro.”
“Prefiro ficar aqui.”
“Tô te dizendo pra ir pro carro, Cecília.”
“O que eu vou fazer lá? Quero ficar com vocês.”
“Vai brincar com teu osso.”
Brincar com meu osso. Isso era o tipo de coisa que ele
dizia. Caminhei na direção da caminhonete e encontrei
um besouro e o deixei ir embora. Depois abri a porta e
me deitei no banco com o fêmur de zorrilho sobre a
barriga. Ouvi os tiros, mas não contei. Continuei deitada
por muito tempo e ainda estava na mesma posição
quando escutei as vozes e os risos cada vez mais
próximos. Foi só depois de todos entrarem no carro que
virei o pescoço para olhar. Havia seis perdizes na
caçamba. Eu sempre queria ver as perdizes mortas. Eram
da cor da terra, meio pré-históricas, com o bico
encurvado e os olhos enormes de espanto por terem
chegado tão longe na linha da evolução. Agora estavam
naquela pose de morte violenta, umas sobre as outras,
as cabeças unidas pela faixa de couro, com traços de
sangue estragando a plumagem. Mereciam mais do que
isso.
“O Marco pegou três, te mete”, disse o pai, sorrindo e
dando um tapinha no ombro dele.
A expressão do meu irmão do meio era óbvia, o mesmo
sorriso puro e deslumbrado que esboçava ao falar de
uma colega da escola chamada Clarice Nogueira. Olhei
então para Vinícius. Estava com a boca entreaberta,
como sempre, e passava às vezes a língua nos lábios,
que ficam mesmo secos quando a gente sente muita
vergonha. Olhava pela janela como se a F-1000 já
estivesse de volta na estrada.
Foi a última vez que minha família saiu para caçar
perdizes, porque a vida ficou mais complicada logo
depois, mas não há nenhuma fotografia daquela tarde na
caixa com a etiqueta 1987. A famosa espingarda Rossi,
no entanto, pode ser vista em duas imagens. A primeira
mostra meu pai e três amigos depois de uma caçada de
banhado, quase trinta marrecões pendurados em uma
Kombi branca, as galochas dos homens cheias de lama,
meu pai com o joelho esquerdo no chão e a espingarda
em diagonal sobre o peito. A segunda é a fotografia que
ilustra uma matéria de meia página no jornal Correio do
Povo. Sobre uma mesa branca da Polícia Civil, estão
alinhadas as armas apreendidas na estância dos
Matzenbacher, três longas semanas após o assassinato
do deputado João Carlos Satti.
É 2018 e estou dentro de um diorama. Sou a mulher de
botas, jardineira e máscara de pintura ajustando com um
aerógrafo a cor de um filhote empalhado de caribu. Os
cinco caribus desse museu estão comendo líquen e
mirtilo-anão aos pés das montanhas Cassiar há mais de
sessenta anos, sob uma luz que simula um entardecer de
outono. Enquanto o mundo lá fora muda, a mesma
Colúmbia Britânica milimetricamente construída por
taxidermistas e pintores pode ser observada através de
um vidro de três metros por dez. Como fui parar atrás
desse vidro é uma longa história.
Desligo o aerógrafo por um instante e me certifico de
que Greg não está por perto. Pisando com cuidado no
solo terroso da tundra, caminho até o filhote que tem o
rosto virado para trás. Parece que ele está observando
um grupo de aves da pintura ao fundo ou os matizes
crepusculares do céu. Enquanto isso, seus dois irmãos e
sua mãe estão mais preocupados com coisas mundanas:
cravar os dentes nos galhos de mirtilo-anão e mastigar. O
pai é o único dos caribus que mantém a cabeça erguida,
encarando os visitantes do museu com sua integridade
cervídea.
Fico de cócoras diante daquele filhote e olho nos olhos
dele. Sou provavelmente a primeira pessoa a fazer isso
desde 1954, ano de inauguração do diorama Família de
Caribus. Digo algumas palavras afetuosas e passo a mão
em seu focinho e peço desculpas por termos tirado esses
cinco animais das terras selvagens do Canadá. É um
pequeno ritual que prefiro não revelar a Greg (Você é a
taxidermista mais sentimental que eu conheço, Cecília).
Acontece com bastante frequência; alguém entra em
contato comigo porque encontrou uma cabeça de alce
em um saco de lixo — Eu não sabia que meu avô
guardava esse troço no porão —, e então eu dirijo até
onde quer que seja, desço no tal porão e abro o saco
preto como se estivesse libertando um espírito
desnorteado. Encaro o alce por algum tempo. Encaro o
pato-real malfeito e cheio de pó na mesa de um garage
sale e os faisões das lojas de antiguidade e o esquilo de
pé em uma base de carvalho no fundo do armário de
uma viúva. Esse tipo de descaso acontece também nos
museus, onde há muitas décadas as taxidermias perdem
espaço para exposições ditas interativas ou para
qualquer coisa que tenha a ver com dinossauros. Acabam
esquecidas nos depósitos. Algumas já terminaram a vida
em grandes fogueiras em aterros sanitários. Às vezes,
vou até essas instituições e peço para ver os velhos
ursos-polares, as águias-de-cabeça-branca, as onças, as
zebras. Quando trocamos olhares, depois de tanto
tempo, eu e os animais descartados, sinto que tenho
obrigação de pedir desculpas pelos atos contraditórios da
minha espécie, que matou para preservar, preservou
para reconstruir, e então abandonou esses animais-
objetos porque já não sentia por eles nenhuma
admiração.
Tiro a vaselina do bolso e passo um cotonete nas
pálpebras do pequeno caribu, na área do canal lacrimal e
no focinho aveludado. Então uso um pouco de Windex
nos olhos de vidro para que voltem a brilhar.
Em seguida, volto a pegar o aerógrafo e continuo o
trabalho na pelagem da filhote fêmea, comparando-a
constantemente com as amostras que tenho comigo.
Quase lá.
“Isso daí é mirtilo-anão? As folhas podiam parecer mais
crocantes.”
É a voz de Greg. Entrou pela porta lateral do diorama e
está examinando o solo.
“Não sei se entendo o que você quer dizer com
crocantes”, eu digo.
“Você entenderia se fosse um caribu.”
Dou uma risada.
“Sério, a gente tem uma verba pros arbustos?”, ele
continua. “Odeio quando uma planta velha e maltratada
compromete o conjunto.”
“A gente pode tentar falar com eles.”
Greg continua parado. Passa um dedo na sobrancelha,
depois ajeita o pequeno rabo de cavalo muito preto.
Trabalhamos juntos desde 2011 na Norton Taxidermia,
um galpão meio arruinado em Mid-City, Los Angeles, mas
Greg chegou muito antes de mim. Dá para dizer que
somos bons amigos. Já fabriquei gelecas cheias de glitter
com as filhas dele enquanto tomava mojitos, e ele já foi a
mais shows do Jesse do que jamais teria ido caso levasse
em conta seu gosto musical, que costuma oscilar entre o
country gótico e a música erudita. Nosso convívio
excessivo — estou falando de ter na roupa o sangue do
mesmo animal — levou inevitavelmente a momentos de
confidências, mas sempre fiz questão de deixar claro que
minha vida tinha de fato começado quando saí do Brasil,
em 2002. Greg já me ouvira falar sobre todos os lugares
onde eu havia morado nos Estados Unidos e tudo o que
eu tinha feito para pagar minhas contas: faxina,
reposição em um mercado de produtos brasileiros,
aquarelas vendidas em uma esquina até os fiscais
aparecerem, funcionária em um aluguel de caiaques,
guia turística, balconista de uma loja estilo gabinete de
curiosidades. É claro que ele achava estranho meu
completo silêncio sobre qualquer coisa que tivesse
ocorrido antes dos meus vinte e quatro anos. Algumas
vezes, insistiu em saber mais do que eu queria contar,
sobretudo quando a oficina estava vazia e ficávamos
trabalhando e ouvindo as Variações Goldberg até as três
da manhã. Certa noite, Greg perguntou se meus pais não
achavam meio violenta e visceral a profissão que eu
tinha escolhido. “Você nem imagina”, respondi, e fui
lavar meus bisturis e meu alicate.
“Certeza que tá tudo bem com você?”, ele diz agora,
olhando para mim.
É a terceira vez que pergunta isso hoje.
“Claro que sim.”
“Qualquer coisa, eu vou tá nos lobos, ok?”
Eu não estou bem.
Jesse viajou com a banda para o Meio-Oeste para tocar
em pequenas casas de show com a lotação pela metade,
e eu estava esperando ansiosamente por isso. Já
imaginava as longas noites de trabalho na garagem e o
conforto existencial que eu sentia quando ficava sozinha.
Sempre tinha sido assim, antes dele e com ele. Mas
quando vi, há exatamente três semanas, o carro que
levava Jesse sumir no final da rua, depois de uma
despedida pouco digna de quem sempre acreditou ser o-
melhor-casal-do-mundo, me pareceu que daquela vez
seria difícil ficar longe dele. E quase pior do que a própria
saudade era admitir para mim mesma o que eu estava
sentindo. De repente, de pé na calçada, diante da nossa
casa alugada de dois quartos e um jardim, eu me
enxergava apenas como uma mulher que sofria ao ver
um homem partir.
Outras coisas me deixaram puta comigo mesma. Não
tive persistência o suficiente para continuar procurando
um espécime de Paradisaea apoda, a grande ave-do-
paraíso, da qual precisava desde que tivera a ideia para
um projeto pessoal. Alexander von Humboldt, o famoso
naturalista cuja biografia eu vinha lendo em um ritmo
constrangedor, ficou eternamente preso no topo do
monte Chimborazo em 1802, tendo lá sua revelação
sobre como a natureza era um todo único e dinâmico.
Comi congelados. Deixei bananas ficarem pretas. Fui
uma vez ao Burger King. De vez em quando, recebia
fotos do Jesse, imagens genéricas de estradas, quartos
de hotel e cafés da manhã carregados na manteiga. Eu
achava o tempo todo que ele estava pensando em
terminar comigo, e minha reação a isso era responder às
mensagens de um jeito simpático e aéreo. Qualquer
emoção poderia ser um gatilho.
Todos os dias, e todas as horas de cada dia, eu me
perguntava se, quando Jesse voltasse, retomaríamos a
conversa do ponto em que havia parado.
Em uma noite daquela primeira semana sozinha em
casa, acabei na porta da vizinha ao lado, Rebecca,
pedindo desculpas pelo horário e dizendo que eu
precisava conversar. O filho dela por sorte já estava na
cama. Diante de uma xícara de chá de camomila, ouvi
longas histórias sobre divórcios entre pessoas que eu
nem sequer conhecia, como se todas as histórias de
separação no fundo fossem a mesma e bastasse
compreender qualquer uma delas para conseguir quebrar
a repetição.
Na segunda semana sem o Jesse, eu tinha me tornado
uma pessoa ainda mais desmotivada, tomada por aquele
tipo de ansiedade paralisante que só deixa forças para
olhar, como um rato de laboratório, as atualizações das
redes sociais. Isso até meu chefe me ligar certa noite:
“Vou te colocar no projeto de Seattle, ok? Tô mandando
as reservas pro seu e-mail”. Eu queria muito trabalhar
naquela restauração e era um alívio ouvir alguém
dizendo o que eu precisava fazer. O hotel teria aquela
espécie de conforto genérico entorpecente do qual às
vezes eu precisava tanto. Eu ia trabalhar o dia inteiro nos
dioramas, depois nadaria na piscina térmica até meus
dedos ficarem murchos. Nada pareceria fora do lugar.
Já li muita coisa sobre dioramas. Por que fazemos,
como fazemos. “Cada diorama tem pelo menos um
animal que captura o olhar do espectador e o mantém
em um estado de comunhão”, escreveu certa Donna
Haraway em um certo ensaio. “O animal está atento,
pronto para soar um alarme diante da intrusão do
homem, mas também pronto para sustentar para sempre
o olhar da aproximação, o momento da verdade, o
encontro original.”
Haraway não diz isso, mas os animais que negam a
presença do espectador são tão fundamentais quanto os
que olham para além do vidro. Ambos fazem parte do
mesmo artifício. A cena, em resumo, deve sempre
parecer um flagrante.
Depois de restaurar o tom levemente amarelado dos
cinco caribus, cubro tudo com capas plásticas. Furo o
plástico para deixar de fora as galhadas dos dois animais
adultos e termino de proteger o pelo com pedaços de
fita-crepe. Os caribus são a única espécie de cervídeo
cujas fêmeas também desenvolvem galhadas. Abro em
seguida os potes de pigmentos especiais, desenvolvidos
pelo museu em conjunto com a Norton Taxidermia. Pego
um pincel e começo a trabalhar nas galhadas. Assim
como a pelagem, elas acabam perdendo a cor após
décadas de exposição à luz artificial.
Eu adoro esse trabalho meticuloso, a ideia de que é
preciso ser uma mistura de cientista, pintora, escultora e
artesã para recriar o que a natureza gerou ao longo de
milhões de anos de aleatoriedade e evolução. Ainda
assim, hoje é um desses dias em que eu preferia estar
rodeada pela natureza autêntica. Talvez em Sedona,
penso sem querer, e vejo a mim mesma apontando a um
grupo de turistas as rochas vermelhas esboçadas no
Paleozoico e polidas posteriormente com uma paciência
milenar. Opa, parece que já estou com perigosos
sintomas de nostalgia; lá se vão doze anos e é possível
que eu logo me esqueça das tantas vezes que chamei
aquele lugar de Disneylândia esotérica, mal conseguindo
disfarçar meu desprezo por todo o comércio de cristais e
amuletos e leituras de mão e tarô e chaveirinhos de ets e
spas caríssimos que ofereciam supostos tratamentos
baseados em práticas indígenas. Eu mesma, nos
passeios guiados, era obrigada a mencionar aos
visitantes a localização dos tais quatro vórtex de energia
da cidade, uma enganação mística institucionalizada pela
secretaria de turismo, por hotéis, empresas de excursões
e comércio em geral. “As pessoas vêm de todas as partes
do planeta para experimentar as forças cósmicas
misteriosas que, acredita-se, emanam dessas rochas
vermelhas”, dizia um folheto oficial da cidade. Era
preciso dar ao turista a história na qual ele queria
desesperadamente acreditar.
Às vezes, depois de um longo dia de trabalho, eu
entrava no meu quarto sublocado na casa de uma
senhora que assistia a doze horas diárias de tv e sentia
que eu não tinha a menor condição psíquica de
permanecer entre quatro paredes. Isso acontecia não
pelas minhas questões com o capitalismo esotérico, mas
porque, ao ouvir o ronronar dos programas de auditório e
dos telejornais, era como se eu de repente voltasse aos
anos oitenta e noventa, e então me parecia que qualquer
tentativa de ir para a frente sempre me empurrava de
volta para trás. A sensação era de que eu estava
condenada a rememorar episódios que já tinham
acontecido e, mais do que isso, que tudo já tinha
acontecido. Não havia futuro possível.
Então eu saía de novo e entrava no carro e ia dormir
em algum lugar perto do riacho Oak. Podia ser em um
camping ou apenas um ponto isolado que eu achava
especialmente bonito, e só uma vez eu tivera o azar de
ser encontrada por um guarda-florestal. Sempre deixava
no porta-malas do carro uma mochila com itens
essenciais e uma barraca. Algumas pessoas desse país
fazem isso para estarem preparadas em caso de
desastre. No meu caso, o desastre já tinha acontecido.
“Tô indo almoçar. Você vem?”
É Greg de novo, enfiando a cara pela portinha do
diorama.
“Acho que vou mais tarde. Quero terminar essa
galhada.”
“Você que sabe. Tá ficando bonita.”
Trabalho mais uma hora e então saio do museu, pego a
comida e caminho até o parque. É o primeiro dia de sol
desde que cheguei a Seattle, e me pergunto se é sempre
assim por aqui. Pesco pedaços de alface com um garfo
de plástico enquanto observo as pessoas que passam. A
uns vinte metros de mim, um cara está dedilhando uma
guitarra vermelha ligada a um pequeno amplificador. Há
um microfone em um pedestal e um chapéu com a
abertura virada para cima. Parece que ainda não
começou a cantar.
Nunca dei muita atenção aos músicos de rua até
conhecer o Jesse, que me fazia escutá-los como se
tivéssemos comprado ingresso para aquilo, parados sob
o sol em Venice enquanto um cara encarnava Stevie
Wonder com playback, ou em uma esquina do centro de
Los Angeles diante de um mexicano com um violão,
cantando alguma coisa que nunca havíamos escutado
antes. Jesse ouvia por algum tempo e dava o dinheiro só
depois, para deixar claro que estava pagando pela
música, que aquilo não era nenhum tipo de caridade.
Eram notas de cinco ou dez dólares, e ele as colocava
dentro do chapéu ou da caixinha de papelão com um
sorriso encorajador, e então começávamos a nos afastar
vagarosamente, ele de vez em quando olhando para trás,
como se aquelas canções tivessem mudado nossa tarde
e ainda não fôssemos capazes de processar a
transformação. Um dia, Jesse passou o braço por cima do
meu ombro e disse, enquanto nos afastávamos de um
músico com tendências setentistas, “aquele cara poderia
ser eu”. Deixei o assunto morrer, mas a frase passou
muito tempo na minha cabeça. Será que Jesse oferecia
dinheiro a caras mais fracassados do que ele como forma
de reafirmar para si mesmo que ele tinha mais sucesso?
No parque em Seattle, o cara da guitarra vermelha
começa a cantar. Tudo ao redor continua igual. Pessoas
se exercitam ouvindo sua música particular em fones de
ouvido quase imperceptíveis. Um menino sai correndo e
dispersa um grupo de pombos, como alguém testando
um superpoder que acaba de descobrir. Os pombos
voltam. Não sei onde foram parar os velhos que
passavam o tempo nos bancos dos parques. O músico de
rua termina uma canção e não recebe aplausos. Se ao
menos o Jesse estivesse aqui. O sujeito começa então a
tocar uma melodia que me soa familiar, alguma coisa
dos anos oitenta, aquele apocalipse dançante que entrou
na minha vida de maneira tão precoce. Não consigo
lembrar direito. Meu celular apita dentro da bolsa. Uma
mensagem do Vinícius, justamente dele. Oi, Ciça. Preciso
te avisar que o pai tá no hospital. Agora o cara chegou ao
refrão. Foi um AVC, mas tá tudo bem. Pode ser The Cure,
mais ainda não consigo ter certeza antes de o músico
começar a cantar. Talvez tu devesse vir pra cá por umas
semanas. Me liga quando puder? Não. É Smiths.
Definitivamente, Smiths.
Era 2006. Eu morava em Oakland, Califórnia. As ruas
cheiravam a madeira e às vezes eu encostava meu nariz
na fachada das casas porque tinha vivido antes na
Flórida, no Novo México, no Arizona, e nenhum desses
lugares exalava aquele cheiro, o cheiro das florestas de
sequoias, derrubadas e levadas por trens e seccionadas
em tábuas e transformadas em cidades. Eu sublocava
um quarto de um casal de tatuadores, no segundo andar
de uma casa vitoriana caindo aos pedaços, com um pátio
escuro e musguento cheio de coisas quebradas e
eletrodomésticos que não funcionavam mais. Os racuns
gostavam de entrar em uma velha máquina de lavar
roupa. De vez em quando, eu chegava em casa e o Matt
estava tatuando a Heather, ou a Heather tatuando o
Matt, e depois a gente preparava o jantar como se não
houvesse um novo peixe no antebraço dela ou uma cruz
celta no pescoço dele. Eu não conhecia muita gente em
Oakland.
Isso foi logo depois de Sedona, onde pela primeira vez
eu tinha conseguido juntar algum dinheiro e traçar um
plano capenga de empreendedorismo hippie: ia abrir um
pequeníssimo negócio para levar turistas brasileiros a
parques estaduais e nacionais da Califórnia. O clima do
Arizona já tinha me cansado, e absolutamente nada me
prendia àquele lugar. Peguei um empréstimo no banco e
me mudei. Eu achava meus clientes na internet, ou às
vezes ia até o píer 39 e procurava os brasileiros no meio
da multidão e ia conversar com eles. Comecei a dirigir
uma van cinza-chumbo meio temperamental.
Não era muito comum que eu conseguisse fechar
grupos para ver as sequoias do extremo norte da
Califórnia, minha parte favorita do estado. Ficavam a
pelo menos quatro horas de San Francisco, o que fazia
daquela excursão no mínimo um passeio de dois dias
com um pernoite em algum motel modesto em uma
cidadezinha de duzentos habitantes. Quase ninguém
tinha tanta vontade de ver árvores — os outlets de
Petaluma pareciam mais interessantes para o turista
brasileiro médio — e, quando tinham, bastava ir até o
bastante próximo Muir Woods e se acotovelar para tirar
fotos de uma singela amostra do que poderiam encontrar
em sua forma muito mais grandiosa nos subpovoados e
úmidos condados de Humboldt e Del Norte.
Mas, às vezes, por um milagre, havia um punhado de
pessoas empolgadas para ir até lugares como o Parque
Nacional Redwood, pessoas que já se divertiam mesmo
antes de chegarmos ao destino, rindo das esculturas de
urso feitas com motosserra que íamos encontrando pela
estrada e das atrações pega-turista que sempre
pareciam estar a um passo da falência, vendo algum
valor, enfim, no charme decadente das cabanas com
tábuas pregadas nas janelas para evitar a presença de
animais selvagens e andarilhos viciados em
metanfetamina. Em uma dessas excursões, minha vida
prévia se cruzou com minha vida americana pela
primeira vez. Aconteceu quando fizemos nossa primeira
parada no parque. Havia um casal gaúcho no grupo,
Norberto e Alice, que não tinha falado muito até então,
mas que olhava tudo com um entusiasmo embasbacado.
Usavam roupas de trilha que pareciam novíssimas.
Tinham cerca de sessenta e cinco anos, talvez mais.
“Teu sobrenome é Matzenbacher?”, Norberto
perguntou assim que desci da van. Ele segurava meu
cartão de visita. Norberto e Alice eram dessas pessoas
que eu conseguia caçar no píer 39.
Respondi que sim e tentei sorrir enquanto sentia todo o
tipo de espasmos e fisgadas no corpo. O homem também
deu um pequeno sorriso, virou as costas e foi na direção
da esposa. Vi que falava alguma coisa para ela.
Aquela não era a primeira vez que havia gaúchos nos
passeios, muito pelo contrário, eles sempre estavam lá, e
bastava dizerem duas ou três palavras para eu
reconhecer o sotaque do Sul. A maioria tinha idade
suficiente para se lembrar do melodrama da minha
família, como se todos os detalhes que compunham o
chamado caso Satti fizessem também parte da história
deles, uma fatia significativa do que era ter vivido em
Porto Alegre no fim dos anos oitenta. Mas nunca ninguém
tinha me perguntado nada ou feito algum comentário a
respeito do meu sobrenome, então eu não pensava
muito naquilo e continuava fazendo meu trabalho.
Naquele dia no Parque Nacional Redwood, além de
sentir vergonha de me chamar Cecília Matzenbacher,
percebi a burrice tremenda que foi nunca ter mudado de
nome. Era certo que Norberto e Alice sabiam quem eu
era, mas, no meio do caminho, tinham ficado
constrangidos de perguntar mais. Quer dizer então que
havia três pessoas nesse lugar remoto da Califórnia
pensando sobre a noite de 7 de junho de 1988 em Porto
Alegre. Isso era muito mais do que eu podia aguentar.
Tentei afastar o desconforto caminhando ao redor dos
troncos descomunais. Pareciam feitos de fibras
musculares.
O grupo entrava e saía de dentro de um tronco
enegrecido, todos ainda impressionados com o fato de
que aquelas árvores podiam pegar fogo, ter seu núcleo
completamente destruído e, ainda assim, continuar
vivendo. Vivendo bem, obrigada. Mesmo ocas como
cavernas. Norberto e Alice — nunca vou me esquecer dos
nomes — saíram de dentro da sequoia e se aproximaram
de mim.
“Tu por acaso é parente do Raul Matzenbacher?”
Estavam os dois me encarando, na expectativa de uma
resposta. Eu disse a primeira mentira que consegui
articular.
“Ele é primo do meu pai.”
Os dois sorriram.
“Eu sou de São Gabriel também”, Norberto continuou.
“O Raul foi meu colega no Ginásio. Foi muito feio o que
fizeram com ele lá atrás.”
“Como assim?”
“Ele era amigo do Satti.”
“O crime”, acrescentou Alice. “Tu lembra, né? Não sei
quantos anos tu tem.”
“Ah, sim. Lembro.”
“Pode tirar uma foto nossa?”, ela disse.
Pararam, com o braço no ombro um do outro, ao lado
das raízes de uma sequoia caída, uma massa milenar
impressionante que parecia o resultado de uma explosão.
Levando em conta a altura que essas árvores podiam
alcançar, algo como um edifício de mais de vinte
andares, as raízes das sequoias eram pouco profundas,
mal chegando a dois metros. O truque estava no
crescimento horizontal. Iam para longe, afastando-se
quinze, vinte, trinta metros do tronco, e então se uniam
às raízes de outras sequoias, criando um sistema difícil
de ser vencido.
Tirei a foto, os dois muito pequenos ao lado daquele
gigante de madeira. Recomeçamos a caminhar.
Ligo para Vinícius só quando chego ao quarto do hotel,
muitas horas depois de ter recebido a mensagem. Ele
repete que nosso pai sofreu um acidente cardiovascular
cerebral e que está hospitalizado. Vinícius pegou um
avião do Rio de Janeiro a Porto Alegre assim que teve a
notícia pelo tio Werner. Marco dirigiu quatro horas e meia
desde São Gabriel, deixando a esposa com Enzo, cinco
anos, e a recém-nascida Sofia, de três semanas e quatro
dias. Depois de passar a tarde no hospital, se
convencendo de que não havia nada a ser feito a não ser
esperar, Marco pegou a estrada de volta para São
Gabriel, onde mora desde 2005 (Eu gosto do campo,
Ciça, e além do mais já tem muito pneumo em Porto
Alegre).
Vinícius está ficando na nossa velha casa. Diz que as
estrelas que colamos no teto muitos anos atrás
continuam lá, e então eu me vejo subindo a escada com
um volume da enciclopédia Britannica na mão para
emular o desenho que ilustrava o verbete Constelações.
Tento não ficar sentimental com isso. Chego perto da
janela e olho para baixo. Dali, posso ver a piscina e a
banheira de hidromassagem.
“Não sei se eu vou poder ficar muito tempo aqui”,
escuto Vinícius dizer no telefone.
“O que tu acha que ele faz o dia todo? Digo, o que ele
fazia antes do avc.”
“Devia passar o dia bebendo, mas agora acabou, né?
Recolhi as garrafas. Contei. Cinquenta e cinco vazias e
vinte e três cheias. Acho que ele comprava na fronteira.”
“Meu Deus, garrafa de quê?”
“Basicamente uísque. Ciça, sobrou só essa casa aqui
na praça, o resto é tudo prédio. Ele precisa se mudar, eu
digo pra ele sempre, o Marco também, tá até perigoso. E
não tem sentido uma pessoa sozinha num lugar tão
grande. Sabe o que ele me respondeu da última vez? Eu
fecho as portas, Vinícius, a casa tem o tamanho que eu
quiser.”
“Claro.”
“Acho que ele vai pro quarto amanhã ou depois.”
“Ele ainda tá na uti?”
“Aham. Tá meio torto.”
“Torto como?”
“Se ele quiser continuar aqui, vou ter que achar uma
cuidadora.”
Por mais estranho que possa parecer, a primeira
pessoa a ir embora daquela casa foi minha mãe. Isso
aconteceu em 1995, o mesmo ano em que entrei na
faculdade de biologia. A partida dela era um desfecho
que já parecia determinado muito tempo antes, mas que
acabou ocorrendo lentamente devido às circunstâncias. A
partir de agosto de 1990 — a data do julgamento do meu
pai —, os jornais passaram a mencionar cada vez menos
nosso sobrenome. Nas rádios locais, não havia mais
debates sobre o temperamento de Raul Matzenbacher, o
boné, o Monza cinza com aerofólio ou a confiabilidade do
testemunho de uma surda-muda que não dominava a
linguagem de sinais. Minha mãe, no entanto, parecia
ainda sentir um ímpeto irracional de proteger aquela
família, e não conseguiu ir embora até que sua lealdade
se esvaísse completamente. Quando enfim decidiu que
começaria uma nova vida, no verão de 1995, acabou
rifando os filhos junto com o marido, como se não
conseguisse visualizar esses elementos em separado; ia
alugar um apartamento pequeno e tinha planos de viajar
bastante, por isso achava melhor que nós três
continuássemos vivendo na casa de sempre. Além disso,
logo teríamos nossa vida independente. Marco estava no
segundo ano da faculdade de medicina. Vinícius fingia ir
para as aulas de história. “Tu vai gostar da faculdade,
sempre adorou bicho e planta”, minha mãe disse,
fechando a última mala e olhando o relógio com
expectativa, em um dia grudento de março.
O divórcio de Carmen e Raul foi noticiado pela
colunista social Elisa Batalha apenas algumas semanas
depois. A nota, bastante breve, mencionava a provável
“exaustão depois de um caso que mobilizou a opinião
pública do estado”, fechando com um positivo e
levemente feminista “Carmen — agora de volta ao seu
nome de solteira, Bonacina — tem a grande chance de
recomeçar a vida”.
O recorte de jornal está guardado na minha caixa com
a etiqueta 1990-1995.
No telefone, Vinícius dá um longo suspiro.
“Eu não consigo entender por que tu não tá aqui e eu
tô.”
“É, eu não entendo mesmo por que tu tá aí. Acho que
nunca entendi muito bem. Não tem a menor chance de
eu ir pra Porto Alegre, Vini.”
Fico esperando por mais um suspiro. Lá embaixo, uma
mulher entra lentamente na jacuzzi, prolongando o
prazer do primeiro contato com a água quente.
“Tu simplesmente esqueceu”, ele finalmente diz.
“O que foi que eu esqueci?”
“Ah, tu deixou as coisas pra trás, começou de novo.
Não vou dizer que tu não teve razão, né. Parece
sensato.”
“Deixar pra trás não é esquecer.”
Ele ri como se não acreditasse em mim.
“Como é que tá o Jesse?”
Me sinto aliviada por termos mudado de assunto. Moro
nos Estados Unidos há dezesseis anos, e foram raras as
vezes que passei uma semana sem falar com Vini, mas
nessas conversas quase nunca mencionamos o que
aconteceu com nossa família.
“Tá tudo bem com ele. Viajou com a banda faz umas
semanas.”
“Eu adorei o último álbum. É tão… sofisticado. Aquela
primeira música, caralho.”
“Rock de velho, tu quer dizer.”
Ele ri.
“O Jesse é muito bom. Tu também, mas acho que fica
mais fácil pra mim avaliar música.”
“Claro.”
“Eu gosto dos teus animais empalhados.”
“Brigada.”
“Às vezes fico pensando se tudo começou com o lobo-
guará que a gente viu naquele museu chinfrim do Jardim
Botânico. Tu ficou meio fascinada, eu lembro. Queria
sempre entrar lá, e o lugar já era decadente naquele
tempo.”
“Onde tu acha que começou tua vontade de trabalhar
no Ministério Público?”
“Eu só queria um emprego estável. Não tem o que
teorizar sobre isso, Ciça. Mas olha só.”
“Quê?”
“Tu não acha estranho que a gente não teve filhos?”
Eu penso em Porto Alegre o tempo todo, e já me
parece mais do que suficiente ter que lidar com esses
pequenos instantâneos. Estou falando, por exemplo, da
praça Horizonte tal como era nos anos oitenta, com as
árvores de copas mirradas, outras apenas um fiapo
protegido por uma tela circular que o vento já havia
entortado. Aquilo era um projeto de praça em um projeto
de vizinhança em um projeto de país, cujo destaque
vinha a ser um imenso reservatório de água bem no
centro, uma espécie de cálice de concreto retorcido
batizado em homenagem a um general qualquer. As
crianças da rua o chamavam de castelo. Eu mesma fui
Rapunzel ali, depois Robin Hood. Por ironia, quando a
praça atingisse seu auge, e as copas das sibipirunas e
dos ipês-roxos disfarçassem finalmente o reservatório de
água, seriam as casas que começariam a sumir, uma a
uma, levadas embora em lascas de tijolos e telhas em
caçambas de caminhões.
Estou falando também do muro baixo de pedra, e sobre
ele as tranças de coroa-de-cristo. Do Monza estacionado
logo depois do portão. Não preciso realmente voltar para
esse cenário. Tenho tudo aqui comigo.
A casa em um sábado de outubro de 1987, uma
semana depois da última caçada no pampa. A lareira
exatamente como eu sempre imagino, com as cinzas
acumuladas de dois invernos subtropicais, e minha mãe
esticada no sofá, meia-calça de náilon, saia preta, blazer
amarelo com ombreiras, o cabelo claro em um ostensivo
permanente que ainda exalava cheiro de produto
químico. Estava olhando a si mesma em um álbum de
fotografia, algo que fazia com uma frequência
preocupante. Era uma dessas típicas jovens mães
entediadas que, na ânsia de se casar e constituir uma
família, não tinha exatamente feito o cálculo do que isso
lhe traria depois. Diferente da própria mãe, das avós e de
todas as mulheres antes disso, ela não fora moldada à
perfeição para a vida doméstica, mas tampouco havia se
preparado para outra coisa. As da geração seguinte
teriam carreira, babá, comida entregue na porta de casa.
Carmen Matzenbacher tinha apenas uma enorme
ambição.
A vida da minha mãe havia começado muito antes do
que aquele álbum de fotografia contava. Nascera em
1949 em uma curva da serra. Era neta de agricultores e
filha de uma dona de casa e um caminhoneiro, a mais
bonita das três irmãs Bonacina. Quando criança, queria
ser rainha da Festa da Uva. Tudo o que brilhava poderia
ser transformado em coroa, então Carmen juntava
pedaços — garfo quebrado, lantejoulas, retalhos de tule
e cetim — e conduzia sua pequena cerimônia de
coroação diante das duas irmãs mais novas e de três
bonecas de pano, nos fundos de uma casa azul de
madeira no distrito de Ana Rech. Tal obsessão estava
provavelmente ligada a uma de suas primeiras memórias
de infância, do ponto de vista de quem se equilibrava
sobre os ombros do pai: em 1954, no palanque montado
na praça Rui Barbosa, em Caxias do Sul, o presidente da
República, Getúlio Vargas, cumprimentava a rainha da
Festa da Uva.
Não havia fotografias para contar sua história de
menina obstinada, e era preciso acreditar nela quando
dizia que tinha sido a criança mais linda de Ana Rech,
pois o único registro da infância, feito por um fotógrafo
lambe-lambe de passagem pela serra, trazia uma criança
levemente fora de foco que parecia ter sido flagrada
após um pequeno delito. Era a primeira imagem do
álbum. Depois, havia um salto para 1964: Carmen no
palco do Clube Recreio da Juventude com outras treze
meninas. Disputavam o título de rainha da Festa da Uva.
Daquela vez, era a coroa de verdade, não o arremedo de
realeza com o qual Carmen brincara durante a infância,
não a cena de consagração que passava em sua cabeça
adolescente quando se sentava diante da penteadeira. O
clube estava lotado. As torcidas gritavam o nome das
concorrentes no ar rarefeito do salão. A certa altura, a
música foi interrompida para que o apresentador
anunciasse as quatro meninas que atuariam como as
honrosas princesas da Festa da Uva de 1965. Então
Carmen Bonacina ouviu seu nome ser dito como o
terceiro da lista lida de um fôlego só. Deu um passo para
a frente, possivelmente querendo desmoronar. Nesse
ponto, todos já podiam ter certeza de que Silvia Celli, a
Mais Bela Caxiense e Rainha dos Estudantes
Secundaristas, seria mais uma vez a grande estrela da
cidade.
Como princesa, minha mãe estampou uma série de
cartões-postais que foram vendidos às centenas nos
balcões da Óptica Caxiense. As fotografias originais
podem ser vistas no álbum, ela com o traje típico das
imigrantes italianas segurando um cesto de uvas nas
posições mais esdrúxulas que aquele parreiral já tinha
visto. Alguns dos postais foram levados até a privacidade
de pequenos banheiros no meio do mato. Carmen era
reconhecida na rua. Parava para dar autógrafos nos
guardanapos da sorveteria.
Talvez esses anos tenham forjado sua resignação
orgulhosa; depois de perder o título de rainha, ela não
vestiu o ar de derrota típico dos que levam a medalha de
prata ou de bronze. Viajou pelo país inteiro divulgando a
futura edição da Festa da Uva. Foi bajulada, invejada,
mergulhou na piscina do Hotel Glória, subiu até o Cristo
Redentor. Certa noite, depois de duas taças de vinho
serrano, disse ao pé do ouvido de um garçom, no alto do
Pão de Açúcar, que ser rainha era apenas um estado de
espírito, e então se inclinou sobre o parapeito como se
quisesse agarrar todas as luzes do Rio de Janeiro. Sei
disso porque Lígia Farina, também princesa naquele ano,
lembra-se do episódio com extrema nitidez. Estava ao
lado da minha mãe e chegou a segurar a mão dela, com
medo de que Carmen se jogasse ou caísse sem querer.
“Desculpa dizer isso, mas tu perguntou”, Lígia me disse
com a xícara de café entre as mãos, muitas décadas
depois, o rosto cansado por trás da fumaça, recém-saída
de mais um turno no Hospital Conceição, onde
trabalhava como técnica de enfermagem. “Quando vi o
nome da tua mãe no jornal em 88, não fiquei tão
surpresa. Aquela guriazinha de Ana Rech sempre me
pareceu alguém talhada pra tragédia.”
No desfile, colocaram Silvia Celli sentada na parte mais
alta do carro alegórico. Ia equilibrada no topo de uma
espécie de globo vazado que continha um cacho de uva
gigante. Com a mão direita, levava as rédeas de dois
cisnes enormes e felpudos em posição de alçar voo. Com
a esquerda, acenava às pessoas amontoadas na avenida
e penduradas nas sacadas do Hotel Menegotto. Caxias do
Sul nunca tinha visto uma coisa daquelas.
No meio da multidão, estava um jovem estudante de
medicina chamado Raul Matzenbacher. Quando o carro
alegórico dos cisnes passasse, ele ficaria encantado com
uma das princesas da festa que sorria na lateral direita,
embalada pela ruidosa banda de um colégio
secundarista. Ela, por sua vez, só pensaria alguns dias
depois naquele rapaz bem-vestido com quem ia
conversar quando o desfile chegasse ao fim, pois,
naquela noite, a três cadeiras de distância, Carmen
Bonacina jantaria com o presidente Castelo Branco.
Minha mãe, a rainha e as outras princesas iam depois
dançar e cantar canções em vêneto enquanto o general
observava impassível, como um fantasma que se assusta
com quem está vivo. Embora existam fotos dela com o
presidente, atarracado, queixudo, incapaz de sorrir,
todas foram removidas do álbum logo após meu pai
lançar sua candidatura a deputado estadual pelo pmdb em
1986, as primeiras eleições diretas depois de vinte e dois
anos de ditadura.
Digamos que fosse o mesmo dia. Enquanto minha mãe
folheava o álbum, eu estava no quarto, no segundo
andar da casa, dando os toques finais na minha maquete
das chinampas astecas. Tinha feito os canais com um
garfo quente, usando o fogo sob a supervisão do Marco,
depois os pintei com tinta têmpera azul. Os canteiros
receberam cola branca e uma fina camada de erva-mate.
Dava para acreditar. Em três deles, no centro do grande
retângulo de isopor, havia também pedaços de palito de
dente que eu tinha pintado de verde e então mergulhado
uma das pontas no pote de tinta amarela. “Esses são os
milharais”, eu diria na hora da apresentação à professora
Silvana. Mas o destaque da minha maquete das
chinampas seria o barquinho de cartolina com um
cherokee dentro. “É que não dá pra comprar bonecos de
astecas”, eu ia dizer caso alguém perguntasse sobre
aquele erro histórico. O boneco indígena com a pintura
descascando estava na gaveta dos brinquedos
esquecidos do Vini fazia anos.
Agora faltava pouco. Eu adoraria colocar também
alguns patos, mas nenhum dos meus tinha a proporção
certa.
Desde que eu havia flagrado a tia Silvana chorando no
banheiro, queria fazer o melhor que podia. Isso só tinha
acontecido porque, naquela específica manhã, não era
possível ver meus pés pelo vão da porta; eu estava
sentada sobre o vaso, as pernas uma sobre a outra,
lendo um gibi da Luluzinha. Às vezes eu fazia isso para
que os colegas no pátio não pensassem “olha lá a guria
estranha sozinha lendo”. Naquele dia, tia Silvana deve
ter entrado no banheiro, conferido se havia mais alguém
ali e, certa de que todo aquele espaço de azulejo branco
era temporariamente só dela, tinha começado a chorar.
No início, era um barulho discreto, como rajadas de vento
entrando e saindo do nariz. Depois, vieram os gemidos.
Levei uns bons minutos para abrir a porta. Não tinha a
menor ideia de quem ia encontrar. Quando nos
reconhecemos, tia Silvana não sorriu nem tentou
disfarçar os olhos vermelhos e o nariz correndo. Ficou
olhando para mim sem dizer nada por um tempo que não
passava nunca, e eu entendi que aquele era o tempo dos
segredos. Lavei as mãos enquanto tia Silvana dava
encostadinhas de leve nos olhos com um pedaço de
papel higiênico. Saímos, uma depois da outra, na luz
explosiva do pátio e, desde que eu tinha cruzado a porta
daquele banheiro, vinha tentando ser a melhor aluna que
podia.
Estava colocando mais um pouco de erva-mate nos
canteiros da maquete quando comecei a escutar batidas.
Esfreguei os dedos verdes uns contra os outros e me
levantei. Vinícius tinha ligado o toca-discos. Fazia um ano
que ouvia música de forma obsessiva, tendo substituído
os disquinhos do Balão Mágico primeiro por Paralamas do
Sucesso e Legião Urbana, depois por todo um pessoal de
cabelo de esfregão que cantava em inglês. Meu irmão só
ouvia música naquele volume quando nosso pai não
estava em casa.
Carreguei minha cadeira até a janela e abri os vidros.
Como ele sempre estava com a janela do quarto dele
aberta, a música se espalhava pelo lado de fora. Subi na
cadeira. Dali eu podia ver nosso jardim dos fundos, a
área da churrasqueira e o espaço entre a casa e o muro
onde meu pai estacionava o carro.
Eu não sabia o nome das bandas, mas tinha inventado
apelidos e era capaz de reconhecê-las. Naquele sábado,
era o Voz de Jacaré que estava cantando. Minha preferida
era a terceira música do álbum. A primeira estava quase
chegando ao fim quando ouvi os sapatos da minha mãe
na escada. Só tive tempo de descer da cadeira e me
sentar no chão meio torta ao lado da maquete.
A porta se abriu.
“Ciça, tu pode levar a Nossa Senhora pra Marli?”
Ela nunca tinha me pedido isso.
“Posso.”
Deu uma olhada ao redor. Fiquei esperando que
dissesse algo sobre a maquete.
“O que aquela cadeira tá fazendo ali perto da janela?”
Mas ela fechou a porta antes que eu conseguisse
pensar no que dizer.
Agora eu estava na calçada segurando a capelinha da
Nossa Senhora, uma das cinquenta e duas que a
paróquia São Manoel fazia circular pelo bairro. Segundo o
padre Emiliano — às vezes minha mãe nos levava na
missa —, era fundamental passá-la adiante em setenta e
duas horas para que assim todas as casas fossem
igualmente abençoadas. Depois da nossa, vinha sempre
a da Marli, e eu sabia que a capela precisava chegar lá às
nove da manhã.
Passava das duas da tarde. Comecei a andar com os
braços bem esticados, cuidando para não deixar marcas
de dedo no vidro. Fiz questão de olhar na direção da
praça em busca de algum vizinho — ei, eu tinha nove
anos e estava em uma expedição religiosa de dois
quarteirões e meio! —, mas tudo o que vi foram as
árvores baixinhas e os bancos riscados de corações e
nomes. Passei na frente da guarita vazia onde havia
sempre um guardinha a partir das seis da tarde, e então
dobrei a primeira rua à esquerda. Era lá que morava o tio
Werner, irmão do meu pai, em uma casa ainda maior do
que a nossa. Marli e Adelino viviam na garagem.
Diante do portão, larguei a capelinha na calçada
musguenta. Apertei um dos botões do interfone. Marli
veio abrir. Esfregava as mãos em um avental e sorria.
“Olha, a Ciça e a Nossa Senhora.”
Tinha nascido em São Gabriel e começara a trabalhar
na estância dos meus avós aos dezesseis anos. Agora
estava casada e com filhos. Trabalhava metade do tempo
na nossa casa e metade na casa do tio Werner e da tia
Eliane. Adelino era o caseiro e o faz-tudo da família. Seus
dois meninos moravam no interior com os pais de Marli,
em uma casa de madeira meio caída para o lado.
“Entra um pouquinho, Ciça, tenho um negócio pra
entregar pra tua mãe.”
A garagem era escura, sem nem uma mínima janela.
As paredes e o piso de cimento cru pareciam querer para
si toda a luz que saía das lâmpadas. Marli colocou a
capelinha em uma mesa baixa com uma toalha de
crochê e um vaso de flores artificiais. Andou até a
máquina de costura e voltou com uma sacola.
“Tem duas calças aí da dona Carmen e duas do seu
Satti.”
Peguei a sacola.
“Fiz bainha pra ele”, ela disse, orgulhosa.
“O tio João me deu um pirulito de chiclé”, respondi,
querendo também me exibir um pouco. “Semana
passada.”
“Ele gosta de ti, Ciça. Tu acha que o seu Satti vai
aparecer na tv com as calças que eu ajeitei? Ou de
repente fazer um discurso bonito lá na Assembleia.”
É muito provável que o deputado e jornalista João
Carlos Satti tenha lido a respeito de Joe Farman. Farman
foi um geofísico britânico que, desde meados dos anos
setenta, conduziu medições de ozônio na atmosfera. A
partir de um lugar conhecido como Plataforma de Gelo
Brunt, na Antártida, ele lançou incontáveis balões
meteorológicos que carregavam precariamente um
medidor Dobson enrolado em um cobertor azul. Sempre
que voltavam a tocar a superfície gelada, os balões
traziam más notícias: havia um buraco cada vez maior na
camada de ozônio, possivelmente feito pelo ser humano.
Durante os anos oitenta, Joe Farman lançou também
seus balões a milhares de quilômetros da Plataforma de
Gelo Brunt. Analisando depois os números coletados pelo
medidor, ele pôde concluir que aquele buraco tinha um
tamanho equivalente ao do território dos Estados Unidos.
Publicou suas descobertas na revista Nature em 1985,
deixando o mundo científico em polvorosa.
Encontrar um buraco é um conceito estranho. Para
descobrir o que não está lá, você precisa na verdade
achar o que permaneceu intacto.
Logo ficou evidente para a comunidade científica que
os clorofluorcarbonetos, os chamados cfcs, eram os
principais responsáveis pela destruição da camada de
ozônio, essa região da estratosfera que protege os seres
vivos dos raios ultravioleta do sol. Inúmeros países
começaram a aprovar leis que proibiam o uso de tais
substâncias, presentes em produtos como inseticidas,
desodorantes e geladeiras.
Em agosto de 1987, João Carlos Satti apresentou na
Assembleia Legislativa um projeto que, se aprovado,
barraria a comercialização de produtos que continham
cfcs em todo o estado do Rio Grande do Sul. Foi a
primeira proposta desse tipo no território brasileiro. As
proibições já estavam acontecendo ao redor do mundo.
Raul Matzenbacher e João Carlos Satti faziam parte da
mesma bancada. Mas, enquanto Satti era um
progressista, possivelmente empolgado com a volta
gradual ao regime democrático, meu pai era um
conservador incrédulo. A colisão dessas duas trajetórias
mostraria que o Brasil sempre mudava para, no fundo,
continuar exatamente igual.
Em uma tarde de domingo daquele mesmo ano, Satti
estacionou seu Escort xr3 azul junto à calçada da praça
Horizonte. Tirou o .38 do porta-luvas e colocou-o na
cintura, escondido pela camisa xadrez. Girou o corpo e
olhou para os lados com toda a atenção, e viu uma velha
alimentando os pombos e depois duas crianças que
chafurdavam em uma caixa de areia escura e grudenta.
Atravessou a rua com o vento batendo de chapa, uma
mecha de cabelo incômoda na testa porque não tinha
colocado gel. Tocou a campainha da nossa casa.
“Satti, tá tudo bem?”
“Não, nada tá bem, Carmen, nada tá bem.”
Vieram os dois na direção da sala. Fazia pelo menos
uma hora que eu e meus irmãos estávamos sentados à
mesa de jantar brincando de Jogo da Vida, e tudo
indicava que eu ia ganhar.
Seu iate bateu num iceberg. Venda cubos de gelo e
receba $ 10 000.
Meu pai lia o Correio do Povo. Um exemplar da Zero
Hora estava no braço da poltrona. Por aqueles dias, as
manchetes só falavam do motim no Presídio Central, que
tinha resultado na fuga de conhecidos líderes do crime e
desmoralizado as forças policiais. Em 10 de agosto, um
dos amotinados, Vico, fora encontrado morto na margem
direita da br-290, em Cachoeirinha. Estava deitado de
bruços com as mãos amarradas, a apenas alguns metros
da companheira, Jussana, ambos com perfurações na
cabeça e nas costas. Jussana tinha também marcas de
queimaduras nas mãos. Em 28 de agosto, Melara, o
bandido mais famoso do Rio Grande do Sul, conseguira
escapar da Penitenciária Estadual de Charqueadas. No
mesmo dia, Fontella — que, do litoral de São Paulo,
enviara as armas usadas no motim de julho no Central —
havia liderado dois assaltos a bancos em um intervalo de
apenas uma hora e meia. Finalmente, em 6 de setembro,
o dia em que Satti entrou em nossa casa dizendo que as
coisas não andavam nada bem, Melara havia sido
recapturado pela polícia.
Meu pai largou o jornal no sofá e se levantou para
cumprimentar Satti.
“Tu já comeu? Tem uma carninha boa aí que sobrou do
almoço.”
“Brigado, Raul, eu só vim conversar mesmo.”
Ele desabou na poltrona como se as pernas tivessem
parado de funcionar de repente, e então olhou para mim
e para os meus irmãos e esticou a boca em um sorriso
apagado. Não era esse o tio João que costumava
aparecer com os bolsos cheios de balas e chicletes,
caminhando em câmera lenta enquanto pedia minha
ajuda para se livrar de todo aquele peso.
“Aconteceu alguma coisa?”, meu pai perguntou.
“Fala, Satti”, disse minha mãe.
“Se fosse só uma coisa, até que tava bom. Como é que
tu deixou teu marido virar deputado, hein, Carmen?”
Minha mãe deu uma gargalhada desproporcional. Satti
continuou sério.
“Se eu tivesse mulher, ia dizer: ‘Me proíbe, por favor,
não deixa eu fazer uma coisa dessas’. Um caos na
segurança pública, daí a polícia executa o Vico…”
“Bandido bom…”
“Ah, pelo amor de Deus, Raul. Assim não se resolve
nada.”
“Tudo bem, Satti, mas tu não é secretário de
Segurança. E pegaram o Melara hoje.”
“Eu sei. Mas eu nem vim falar disso. Vim falar de outro
pepino, os cfcs.”
“Baita pepino. Mas esse foi tu que criou.”
“Escuta só. Eu fui na Zequinha ontem. Umas 22h30,
tava entrando no carro quando vi um sujeito
atravessando a rua na minha direção. Uns trinta anos,
bem-vestido e tudo. Passou do meu lado e disse: ‘É bom
tu te cuidar, Deputado Ozônio’. Aí foi embora. Parece que
agora eu sou o Deputado Ozônio.”
“Satti, isso é grave”, disse Carmen, e então se
levantou.
Raul tirou a carteira de Minister do bolso da camisa e
acendeu um cigarro.
“Tu já parou pra pensar que ninguém nunca viu essa
camada de ozônio?”
A fumaça subiu e Satti a acompanhou com o olhar,
depois encarou meu pai, perplexo.
“Também nunca vi oxigênio entrando no meu nariz,
Raul, mas aprendi com a ciência que ele existe.”
Meu pai riu, um pouco constrangido. Não era burro,
mas Satti lhe parecia excêntrico demais, defendendo
uma pauta ambiental em um país como o nosso em
1987.
“Vou fazer um cafezinho pra gente”, disse Carmen.
“Um café eu aceito.”
No Jogo da Vida, Marco estava quase quebrado.
Vinícius tinha recém-perdido duzentos mil para mim ao
cair na casa Vingança. Já eu tinha pilhas de dinheiro e
ainda ia trocar meus cinco filhos-pinos por quarenta e
oito mil cada.
Seu bode comeu orquídeas premiadas. Pague $ 3000.
“Tem empresário que não tá gostando dessa história
aí”, continuou meu pai. “O Ernani Gazotti, por exemplo.
Ligou pessoalmente pra toda a nossa bancada.”
“Eu sei, eu já tentei tranquilizar o velho. Eu disse: ‘Seu
Gazotti, o senhor não tá entendendo, o senhor pode até
tirar vantagem disso’. Vai poder dizer que tá ajudando o
planeta. Imagina uma propaganda com uma criançada
correndo entre as árvores, daí aparece o pai, a mãe, o
avô…”
“Claro.”
“O Gazotti faz o que mesmo?”, gritou Carmen da
cozinha.
“Inseticida”, respondeu Raul.
“Aí no final, close na lata de spray e a frase: ‘Protege
você enquanto protege o planeta’.”
Marco avisou que ia arriscar tudo e tentar virar
magnata. Apostou no número 8, girou a roleta e ganhou.
Então ergueu os braços e disse “Eu não acredito”, uma
comemoração que passou em branco para os adultos da
sala. Comecei a guardar as peças do jogo, que é
precisamente o que os perdedores fazem: são os
primeiros a quererem que a prova do seu fracasso
desapareça.
Minha mãe levou as xícaras de café para a mesa de
centro.
“Teve mais alguma ameaça?”, perguntou.
“Ih, toda hora. Tão ligando pra minha casa e desligam
quando alguém atende. Com esses aí eu não me
preocupo tanto, são uns covardes, mas o problema é que
o Fred fica assustado.”
João Carlos Satti tinha quarenta e dois anos. Nunca
havia se casado. Era conhecido na cidade por despertar a
atenção das mulheres, ainda que não fosse exatamente
um homem bonito: rosto tendendo para a flacidez,
sorriso de fumante, olheiras cavadas por noites curtas
demais. O carisma fazia todo o trabalho. Elas gostavam
de seu conhecimento enciclopédico cosmopolita, que se
unia sem emendas aparentes a um certo primitivismo
gaúcho. Ouvia óperas e frequentava a Califórnia da
Canção. Podia assar em uma vala quinze espetos de
costela enquanto falava sobre Ronald Reagan, Margaret
Thatcher e o fim iminente da União Soviética. Foi em
1987 que Fred passou a viver com Satti no apartamento
da Quintino Bocaiuva. Para os amigos mais próximos, que
incluíam meu pai e minha mãe, ele havia contado que o
rapaz de vinte e um anos era fruto de um relacionamento
antigo com uma telefonista da Rádio Gaúcha. O que
aconteceu de diferente naquele ano foi que ela e o filho
começaram a ter os seus desentendimentos, momento
em que Satti resolveu então interceder, aceitando enfim
as responsabilidades de pai. Em uma entrevista para o
Serviço de Pesquisa e Documentação Histórica e Museu
da Assembleia Legislativa, o deputado diria: “Isso tudo
fez muito mal à minha vida. Procurei corrigir meu erro no
ano passado, e hoje mantenho com esse menino, com
esse moço, o melhor dos relacionamentos”.
“Satti, eu acho o seguinte”, disse minha mãe. “Fala
com a pm e bota dois brigadianos na frente da tua casa.”
“Pensei nisso.”
“E pede pra grampearem teu telefone pra ver quem tá
te ligando”, acrescentou Raul.
“Pode ser. É, eu tô tranquilo, o Fred é que se preocupa
mais. Eu sei me cuidar desde que vim pro mundo.”
Imagino então que, nesse momento, Satti puxou a
barra da camisa e mostrou o .38 que levava na cintura.
Meu pai se exaltou.
“Pelo amor de Deus, precisa trazer arma aqui pra
dentro da minha casa?”
“Não é pra dentro, Raul, pra descer do carro tem que tá
cuidando.”
“Na frente das crianças, Satti!”
“Eu não queria assustar ninguém”, disse, e então olhou
para mim e para meus irmãos. “Desculpa, gurizada.”
“Tá tudo bem”, minha mãe respondeu por nós.
Satti pegou a arma. Agora sim eu via claramente a
empunhadura de madeira e o metal brilhante do cano.
“Só pra todo mundo ficar tranquilo, eu vou tirar as
balas, tá bom?”
“Não precisa tirar”, disse meu pai.
“Vou tirar. Tu falou uma coisa chave agora, Raul. Esse
troço de filho ainda é muito novo pra mim, mas tu tem
razão. A gente tem que ter cuidado. Ainda mais com
criança.”
Satti abriu o tambor e foi colocando, uma a uma, as
seis balas douradas ao lado da xícara vazia.
Se Jesse me ligar, vou contar que meu pai sofreu um
acidente vascular cerebral. Ensaio a conversa na minha
cabeça, Jesse, aconteceu uma coisa com o meu pai, e sei
que ele não me julgaria por eu não estar aos prantos
porque é o único neste país inteiro que conhece cada
detalhe da história. Mesmo assim, sinto um incômodo,
uma culpa constrangedora, como se dizer essa frase,
meu pai sofreu um acidente vascular cerebral, implicasse
necessariamente uma linha contínua de ações: eu
deveria procurar uma passagem aérea para o dia
seguinte e pagar o preço que fosse, esperar em
aeroportos enquanto trocava com minha família
mensagens preocupadas, depois ficar comovida ao ver o
último dos meus três voos fazer uma curva sobre uma
cidade cujos limites norte e oeste são as águas marrons
— lama, sujeira e luz — de um grande e estranho lago.
Ato contínuo, eu pegaria um táxi para a casa da minha
infância, lembrando de coisas que aconteceram há muito
tempo nas esquinas por onde eu ia passar,
especialmente aquela esquina, e na casa da minha
infância encontraria meu pai fragilizado, doente, esse
homem que, segundo a crença comum, eu deveria amar
e de quem deveria cuidar.
Mas estou em um quarto de hotel, digo a mim mesma.
Bem longe de Porto Alegre. Preciso tirar proveito disso,
usar a meu favor o fato de que ainda tenho pelo menos
mais uma semana nessa cápsula genérica. Tento me
agarrar com força à ideia de repetição: um quarto igual
ao lado do outro igual ao lado do outro igual ao lado. É
como se as mesmíssimas colchas, cadeiras e luminárias,
arranjadas e rearranjadas nas mesmas posições,
fizessem eco aos padrões limitados dos dramas humanos
vividos aqui. Por um instante, isso parece diminuir o peso
da minha história.
Sou apenas mais uma hóspede que pega uma toalha
branca, guarda o cartão-chave no bolso e entra no
elevador. Mas o sol já se pôs há pelo menos uma hora.
Acabo sendo a única pessoa em toda a área da piscina.
Vou tirando a roupa e sentindo a pele ficando arrepiada,
depois me aproximo da borda. Olho para as janelas e
varandas me cercando por todos os lados, um mosaico
de claro-escuro que de repente começa a me incomodar.
Então pulo na água levemente aquecida e fico treinando
a braçada perfeita até que um funcionário do hotel se
agache para me dizer que já são dez horas e que ele
precisa fechar a piscina. Saio da água sem muita pressa
em me secar. Pego outra toalha branca para fazer um
turbante no cabelo, e é nesse momento que vejo uma
mulher de pé em uma das varandas.
Está olhando para mim, sei disso. Vejo o contorno do
roupão e os cabelos longos. Ficamos nos encarando. Por
um instante, ela se vira para trás e olha para o quarto,
talvez diga qualquer coisa para alguém lá dentro, mas
logo volta à pose original, com os dedos tocando de leve
o parapeito.
Penso em minha mãe no Caribe, quarto de frente para
o mar, taça de espumante na mão e música latina
tocando, o palco e os objetos necessários para sua
grande chance de recomeçar a vida. Então é meio sem
perceber que volto ao quarto, escolho uma roupa, seco o
cabelo e calço minhas botas Blundstone de sempre.
Procuro um bar próximo ao hotel e me sento ao balcão
exatamente como Carmen — agora de volta ao seu nome
de solteira, Bonacina — se sentou em Tampa, Nassau,
Tortola, Saint John’s, mexendo o canudo de um drinque
enquanto esperava que alguém viesse falar com ela.
Certamente aconteceram alguns encontros nesses bares
caribenhos com teto de palha e vapores do oceano
Atlântico, embora a sorte não esteja nunca com as
mulheres divorciadas de quase cinquenta anos, e menos
ainda na década de noventa. Mas foi assim que ela
encontrou um cara chamado Guillermo. Ele tocava
saxofone em um cruzeiro, o mais velho do grupo de
músicos. Quando se conheceram, havia perdido a esposa
fazia menos de um ano para alguma doença que mata
devagar. Não sei o que ele prometeu para minha mãe,
mas sei das altas expectativas que ela criou em torno
dele. Por alguns meses, em seu novo apartamento em
Porto Alegre, ela ligava para o telefone da casa da praça
Horizonte e me contava que talvez se casasse de novo,
gargalhando histericamente enquanto discorria sobre as
vagas qualidades daquele argentino a respeito do qual
não sabia quase nada. Um dia, Guillermo desapareceu.
Na companhia do cruzeiro, simplesmente informaram
minha mãe que ele não trabalhava mais lá. Podia estar
em qualquer lugar do mundo.
No bar, peço um uísque sem gelo. Há três mesas de
sinuca atrás de mim, todas ocupadas. Uma jukebox
digital está tocando alguma coisa que Jesse chamaria de
rock-de-autoestrada (Me diz se você não sente uma
comichão asfáltica com essa daí). Não preciso esperar
muito até que alguém venha sentar perto o suficiente
para puxar assunto. É um cara da minha idade,
bonitinho, com a barba falhada e um boné preto
enterrado na cabeça.
“Isso aqui é demais pra mim”, ele diz, e empurra um
cesto de batata frita para o meu lado.
Pesco uma batata. A calça dele está cheia de manchas
de quem faz tudo com as próprias mãos, e as unhas
confirmam isso, o que me parece algo atraente.
“Mora por aqui?”, ele pergunta.
“Não, Los Angeles. E você?”
“Volkswagen Westfalia. Comprei ano passado, tô
viajando desde o outono.”
“Uau. Você largou tudo?”
“Ah, não tinha muito o que largar. Meu melhor amigo
me deu um livro, sabe esses sinais divinos? Tipo, tem
gente que já viu Elvis numa batata?”
Começo a rir.
“Você acha que Elvis numa batata é um sinal divino?”
“Tá, vai lá, Jesus Cristo, sei lá eu. Esse amigo me deu
um livro chamado Walden sobre rodas. Walden parece
que é um livro de um cara que viveu numa cabana mil
séculos atrás.”
“Henry David Thoreau.”
“Então. Esse livro que eu ganhei conta a história de um
carinha que foi morar numa van. É mais tipo real que o
velho Walden, né? E não tava acontecendo nada na
minha vida ano passado, só um monte de merda, então
eu vi a coisa toda como um sinal. Comprei a van e logo
depois, quando tava dando um trato nela, meu amigo
teve uma overdose.”
“Nossa. Ele morreu?”
“Aham.”
“Sinto muito.”
Ficamos em um silêncio pesado.
“Você não acha que a gente tende a ver sinais nessas
horas?”, eu digo de repente. “A gente quer mudar a vida,
e aí fica esperando que uma coisa concreta meio que
justifique esse desejo, e se agarra a isso porque é o único
jeito de, sei lá, ter coragem?”
Ele bebe um gole de cerveja, depois larga o copo com
um baque.
“Acho que eu vou ter que pensar um pouco mais sobre
isso.”
Eu só queria sexo, mas subitamente estava impondo
uma conversa profunda. Tento corrigir o rumo.
“Então você vai parando em campings?”
“Ah, só quando precisa. Dá para fazer uns oito dias de
boondocking se você tem a manha.” Ele estava gostando
de contar aquilo, que ele tinha a manha. “E aí fico uma
ou duas noites num lugar barato, pra tomar banho, esse
tipo de coisa.”
“Boondocking?”
“Você não é americana, é?”
“Não.”
“De onde você é?”
“Brasil.”
Ele bebe mais um gole de cerveja. Eu já terminei o
uísque.
“Notei o sotaque. Basicamente, você estaciona no meio
da floresta e torce para ninguém te encontrar.”
“Parece divertido.”
“E grátis. É uísque que você tá bebendo?”
“Aham.”
Ele me olha como se estivesse tentando entender que
tipo de mulher eu sou.
“Vou pedir dois uísques, então.”
“Tá bom.”
“Traz dois desse pra gente?”, ele grita pro barman,
apontando o copo vazio.
“Então”, eu digo, agora me virando bem para ele.
“Essa noite é de boondocking ou de camping barato?”
Ele ri.
“Eu não tinha decidido ainda. Mas a gente com certeza
pode achar algum lugar tranquilo.”
Então ele levanta do banco e diz que precisa ir ao
banheiro. As bebidas chegam. É um homem mais bonito
de pé, com o porte de quem ganhou músculos pelas
circunstâncias da vida. Sorri para mim, diz que já volta e
começa a caminhar lentamente até o fundo do bar. Tomo
um gole do uísque, olho para ele de novo, e então leio o
que está escrito, em letras amarelas, nas costas do seu
moletom: Associação dos Caçadores do Oregon.
Sinto meu coração pular como a porcaria de um motor
velho. Sem tirar os olhos da porta do banheiro, alcanço
minha bolsa, puxo o zíper e tento achar, com as mãos
um pouco trêmulas, uma nota de dez dólares. Era uma
má ideia desde o começo, penso. Encontro a carteira,
puxo a nota e a deixo embaixo do copo. A tentação de
fazer merda quando as coisas parecem estar
desmoronando. Ao me levantar, vejo que o barman está
olhando para mim, provavelmente tentando entender o
que deu errado. Viro as costas e vou embora do bar.
Na minha vida adulta, encontrei muito mais caçadores
do que gostaria de ter encontrado. Isso aconteceu a
partir do momento em que comecei a frequentar as
edições bianuais do Campeonato Mundial de Taxidermia,
algo que eu precisava fazer se quisesse ter uma carreira
na área. Era um evento cheio de caçadores. Os que
tinham mais de cinquenta anos haviam aprendido a
profissão no curso por correspondência de J. W. Elwood,
que anunciara por décadas nas revistas de caça. Os mais
jovens haviam esfolado ratos e esquilos e moldado um
pedaço de espuma e feito uma cabecinha de gesso e
arame de acordo com tutoriais do YouTube. Outros
tinham juntado dinheiro para se matricular em formações
de quatro semanas em lugares como Kooskia, Idaho, ou
Springtown, Texas, e então voltavam para sua cidade
natal e abriam uma pequena oficina na garagem de casa,
onde atendiam os caçadores da região, montando três
cabeças de cervo por dia em manequins de poliuretano
comprados on-line.
Uma parte das pessoas que circulava pelo campeonato
usava bonés de ferragens locais e camisetas
engraçadinhas (Alguns avôs jogam bingo. Avôs de
verdade vão caçar). Os mais estilosos achavam que
aquele evento merecia suas melhores camisas brancas,
botas de caubói e bolo ties de prata e turquesa. O
número mais expressivo, no entanto, era o dos que
vestiam roupas camufladas, como se ainda estivessem
no meio do mato, não no centro de convenções de um
hotel, nervosos enquanto faziam os últimos retoques
antes de os juízes avaliarem a qualidade de suas
taxidermias.
E havia também o pessoal que eu chamava de
naturalistas. Eram bem poucos e não tinham um jeito
específico de se vestir. Eu queria aprender com eles. De
todas as pessoas que atuavam na taxidermia, eu os
considerava os mais obsessivos. Eram movidos pela ideia
fixa de recriar a natureza à perfeição. Nisso, se
diferenciavam dos caçadores, os quais inevitavelmente
caíam na tentação de exaltarem a si mesmos através do
animal. O que quero dizer é que acontecia com
frequência de os caçadores montarem suas taxidermias
como se aqueles animais fossem mais imponentes e
audaciosos do que de fato eram quando vivos. E eu já
estava mais do que cansada — quase enojada, eu diria —
de ver troféus de caça em reflexo flehmen: o cervo
macho com o pescoço ereto, o lábio superior curvado de
um modo quase caricato, as narinas ostensivamente
dilatadas à procura de estrogênio. Dar poder ao animal
significava dar poder a si próprio.
Os naturalistas não apenas desprezavam essa
narrativa como seguiam outro tipo de ética. Aqueles que
trabalhavam para museus lidavam com animais que
haviam sido abatidos muito tempo antes, em um mundo
quase irreconhecível onde não parecia contraditório
matar em nome do conservacionismo e da educação
ambiental. O fato de não terem dado o tiro pesava a seu
favor. Mas muitos acabavam assolados por crises de
consciência mesmo assim (Todos os museus de história
natural foram fundados sobre princípios antropocêntricos
bem questionáveis, Cecília, me disse uma vez um cara
que trabalhou comigo. Você acha que organizar animais
em uma vitrine ajudou a aproximar as pessoas da
natureza? Cara, foi o contrário, totalmente! Você
institucionaliza os animais, as plantas, você está dizendo
que aquilo não tem nada a ver com a vida das pessoas. E
nada a ver com o que está do lado de fora. Às vezes até
parece uma conspiração para destruir tudo, sabe?).
Quanto aos naturalistas que atuavam na taxidermia
comercial, a imensa maioria usava apenas a pele dos
animais que haviam morrido de forma natural ou por
acidente.
Em 2009, fui ao Campeonato Mundial de Taxidermia
pela primeira vez. Embora o nome contenha a palavra
mundial, as edições sempre acontecem nos Estados
Unidos. Peguei um avião até o Missouri. Na época, eu
ainda vivia em Oakland, no mesmo quarto que sublocava
do casal de tatuadores, mas, com o fim da minha
empresa de passeios turísticos — abatida pela crise de
2008 —, eu tinha ido parar atrás do balcão de uma loja
estilo gabinete de curiosidades. Isso logo me levou para
um curso intensivo de taxidermia em Idaho, que me
levou para um trabalho não remunerado duas vezes por
semana na Academia de Ciências da Califórnia, em San
Francisco, onde aprendi quase tudo o que sei hoje.
Comecei a vender meus animais na loja, entre pequenas
vértebras de morcego, ametistas, ilustrações científicas,
estrelas-do-mar secas, plantas carnívoras. Por algum
motivo, as pessoas andavam querendo levar o mundo
natural para dentro de casa. O tempo presente parecia
olhar com admiração — mas não sem certa ironia — para
o mundo vitoriano. Muitas vezes, eu observava aquelas
prateleiras da loja, aquele cenário de natureza
colecionável, e me lembrava do taxidermista com crise
de consciência. Será que eu deveria interpretar aquele
interesse das novas gerações como um sinal bom ou
mau?
Essa foi a Cecília Matzenbacher que embarcou para
Saint Charles, Missouri. Naquela edição, fui apenas como
observadora. Analisei, fascinada, os inúmeros
concorrentes a Mamífero de Grande Porte, Peru de Asas
Abertas, Réptil, Grupo de Patos, entre muitas outras
subdivisões. As taxidermias ficavam dispostas em um
grande centro de convenções iluminado por lâmpadas
tubulares. As pessoas circulavam e olhavam de muito
perto e logo começavam a conversar sobre anatomia e o
uso desse ou daquele material em um nível de detalhe
espantoso.
Dois anos depois, eu estava de volta, me sentindo
preparada o suficiente para me inscrever na categoria
mais desafiadora do campeonato: Escultura ao Vivo. No
dia e horário marcados no programa, os concorrentes
deviam esculpir, aos olhos de todos, o manequim de um
animal específico, único, cujas medidas anatômicas e
fotografias de referência podiam ser penduradas nas três
paredes do cubículo designado para cada competidor.
Esse era o momento em que os taxidermistas rejeitavam
os manequins pré-prontos comercializados em larga
escala desde a década de oitenta. O momento em que os
naturalistas brilhavam.
Trabalhei em um puma. Ele tinha sido atropelado em
Malibu por uma mulher que estava dirigindo para o
trabalho. Chorando, ela parou no acostamento e discou
para a Polícia Rodoviária. Um pouco mais tarde, a polícia
ligou para mim.
Aquele puma me fez ganhar uma medalha de ouro. Dar
poder ao animal significava dar poder a si próprio. Eu
estava com ela no pescoço, comendo a sobremesa do
jantar de premiação, quando um homem chegou perto
de mim. Tinha uns quarenta anos e usava terno e bolo
tie. Andrew Norton.
“Oi, meu nome é Andrew Norton.”
“Oi, Andrew.”
Era neto do velho e respeitado Joseph Norton, que
ainda estava vivo na época, mas já não tinha as mesmas
mãos firmes. Perguntou se podia se sentar comigo, e
puxou uma cadeira. Arrastando um garfo pela toalha de
mesa — ele era meio tímido —, disse que gostaria muito
que eu fosse trabalhar na Norton Taxidermia. Tentei
manter a calma e respondi que adoraria. A Norton
trabalhava com os maiores museus de história natural do
país, que nas últimas décadas tinham mandado embora
seus taxidermistas fixos e terceirizado o serviço. Eu
nunca imaginara que poderia chegar tão alto.
Para deixar claro desde o início, eu disse: “Não faço
troféus de caça”. O que queria dizer que eu só lidava
com animais inteiros.
Da primeira vez que Jesse me viu trabalhando em um
manequim de espuma de poliuretano, ele riu de nervoso
e disse: “Então você veste fantasmas?”. Achei que ele
não estava tão longe da verdade. Os manequins,
branquíssimos, substituíam toda a estrutura óssea e
muscular do animal. Eram uma essência mole, manejável
e limpa que se tornaria a base perfeita para uma
segunda vida.
Meu pai saiu do útero de Ondina Matzenbacher quase
enforcado pelo cordão umbilical no dia 12 de maio de
1946, em uma casa do distrito de Suspiro, São Gabriel.
Era uma pequena criatura azulada que incitou súplicas
para Nossa Senhora Aparecida e fez alguém correr
procurando meu avô Wagner no campo e por um milagre
viveu. O primeiro filho do casal. Os Matzenbacher se
estabeleceram como uma família de carreteiros depois
de deixar a região de São Leopoldo por volta de 1871
porque tinham fome e algo lhes dizia que a tal Jacobina
ainda ia causar um derramamento de sangue. Quando
criança, Raul ajudava a carnear as ovelhas e a cuidar dos
cavalos recém-castrados, mas gostava mesmo era das
visitas regulares de um certo dr. Telêmaco, das corridas
de galgo e do centro da cidade. Dizem que foi um
menino tímido e aplicado na escola. Em 1964, mudou-se
para Caxias do Sul para cursar medicina, orgulho da
família, isso dois meses antes do golpe militar que
derrubou Jango.
Em Caxias, Raul às vezes sentia falta do horizonte do
pampa, mas na maior parte do tempo gostava do
andamento da nova vida, pensão-faculdade, faculdade-
pensão, não tenho tempo pra mais nada, dizia aos
colegas que o convidavam para sair à noite, e então
espalhava os livros de anatomia ou bioquímica sobre a
cama e fazia anotações em um caderno com uma letra
tão intrincada e rápida que já parecia mesmo a letra de
um médico. Nas primeiras férias de verão, passou os
meses com o pai e a mãe em São Gabriel — era bonito
mesmo aquele firmamento largo —, mas voltou a tempo
de visitar o pavilhão da Festa da Uva e comprou uma
garrafa de vinho Imperial em um estande que
estranhamente exibia uma árvore de Natal em fevereiro
— a garrafa foi o único agrado que meu pai se deu
durante todo aquele ano em Caxias do Sul. Ia guardá-la
para alguma ocasião especial. No dia seguinte, juntou-se
à multidão na rua Sinimbu para assistir ao desfile da
Festa da Uva, e diria anos depois que tudo aquilo lhe
pareceu um exagero ensurdecedor, uma pavonada
desnecessária, até que bateu os olhos na menina que
vinha na lateral do carro alegórico dos cisnes. Era muito
mais bonita que a rainha. Tonto com as cornetas e
trompas e bumbos e pratos da banda marcial, teve a
impressão de que ela olhava de volta. Decidiu que se
apresentaria ao final do desfile.
Raul Matzenbacher e Carmen Bonacina começaram a
namorar. Carmen foi a São Gabriel e conheceu os pais de
Raul pouco antes de dona Ondina morrer — caída na
cozinha sem ninguém em casa para acudir —, de modo
que ainda houve tempo para que a matriarca gostasse
de Carmen e dissesse ao filho na despedida: Vou rezar
uma novena pela felicidade de vocês. Noivaram.
Casaram-se em 1970, logo depois da formatura de Raul,
e então se mudaram para São Gabriel, onde ele passava
os dias no consultório atendendo uma fila de gente
doente enquanto ela era arrastada pela monotonia da
estância. Meu irmão mais velho, Vinícius, nasceu em
julho de 1972, mas formar uma família naquele fim de
mundo — com o minuano correndo livre, o relinchar dos
cavalos, a pasmaceira dos bois — não era bem o que
minha mãe tinha imaginado. Começou a pressionar meu
pai para que ele abrisse um consultório em Porto Alegre.
Mudaram-se para a capital em 1973. Em 1980 — eu já
estava nesse mundo, minha cabecinha puxada por um
fórceps em agosto de 1978 —, meu pai voltou a atender
em São Gabriel às segundas, terças e quartas, passando
portanto a metade da semana na estância. De acordo
com minha mãe, as idas a São Gabriel não se explicavam
pelo dinheiro: “É o fantasma da dona Ondina querendo o
filho preferido de volta”.
Até ser convidado pelo futuro governador do Rio
Grande do Sul para lançar uma candidatura a deputado
estadual, Raul nunca tinha se envolvido com política.
“Olha, na faculdade, acho que ele nem sabia quem tava
no comando do país”, disse o dr. Fernando Paiva, um ex-
colega, durante uma consulta oftalmológica que eu tinha
marcado apenas porque queria saber mais sobre os anos
do meu pai em Caxias. “Uma vez até tentou enturmar o
paraquedista”, acrescentou, rindo, e então contou que,
em algum ponto do segundo ano da faculdade,
ingressara na turma um sargento da Aeronáutica que
ninguém sabia de onde havia saído, um dedo-duro do
regime sem dúvida, um tal Isaías Macário — ele nunca ia
esquecer esse nome —, e ninguém falava com aquele
sujeito que parecia ter um sotaque do Norte, não só os
que tinham razão para achar que ele poderia jogá-los
num porão do Dops, mas também os apolíticos, os que
iam apenas levando sua vidinha longe das grandes
turbulências do país, porque, afinal, quem é que poderia
simpatizar com um dedo-duro, certo? “Mas teu pai um
dia chamou o Macário pra sentar com a gente e
perguntou pra que time ele torcia.” No fim do ano, Isaías
Macário rodou em todas as disciplinas e seguiu na
faculdade para vigiar a próxima turma.
A abertura lenta, gradual e segura do país deixou meu
pai indiferente. A inflação de 239% em 1983, é claro,
tirou seu sono, mas, se perguntado sobre isso, ele jamais
culparia os militares; achava apenas que o Brasil era um
pobre coitado dado a convulsões incontroláveis. Em
1984, não participou do comício das Diretas Já. Ficou
atendendo indigentes na Santa Casa e, durante o dia, fez
troça de um tal “Samba das Diretas”, cuja letra fora
publicada nos jornais (Sozinha uma andorinha não faz
verão/ Mas se juntar às vizinhas fazem meia-estação).
Quando, no ano seguinte, foi convidado a se filiar ao
pmdb — teria uma boa base eleitoral em São Gabriel caso
fosse candidato, o povo o reverenciava —, obviamente
disse sim, mais por vaidade do que por vocação. Então
começou a gostar do poder. E minha mãe nunca foi tão
feliz.
O dia 20 novembro de 1987 foi uma sexta-feira.
Faltavam apenas duas semanas para minhas aulas
terminarem. O calor pegajoso grudava nossas coxas nas
cadeiras de fórmica enquanto ouvíamos a tia Silvana
falar coisas que não tínhamos a mínima intenção de
aprender; o fim já estava perto demais, as cigarras
soavam no pátio. Imagens de ondas e castelos de areia
flutuavam em nossa cabeça.
Naquela manhã, meus pais tinham viajado para Torres
com Satti e Fred. Nem pensaram em nos levar junto. Eu e
meus irmãos ficaríamos sozinhos em casa enquanto eles
passavam três noites no Dunas Praia Hotel, em quartos
enormes de frente para o mar.
Durante a ausência dos meus pais, Vinícius ficara
responsável pelo chaveiro da casa — o tio Werner
também tinha uma cópia —, não porque era o mais
confiável dos três filhos, mas apenas por ser o mais
velho. Havia quatro chaves comuns e duas Dobermann
no chaveiro. Com dentes quadrados e a cabeça de um
cão em alto-relevo, nossas novas chaves Dobermann
eram uma dessas coisas metálicas que simbolizavam o
progressivo aumento da violência em Porto Alegre.
Naquele tempo, eu estava louca para crescer. Da nossa
sala de aula, terceira série, turma C, no segundo andar
de um dos pavilhões da escola, eu conseguia ver um
pedaço do pátio. Desde que os dias quentes haviam
chegado, as crianças da quinta e da sexta série usavam
o bebedor sobretudo para molhar uns aos outros:
colocavam o polegar na saída da água e então
acertavam o jato em um colega que estava perto. Caíam
os dois na risada, depois trocavam de lugar. Era um
negócio bonito de ver, e logo passava a envolver umas
cinco ou seis crianças, que riam e se encharcavam, mas
nunca a ponto de chamarem a atenção dos adultos que
mantinham a escola em ordem. Sabiam se dispersar
rápido. Também ajudava o fato de não serem alunos de
uma tia Silvana ou de uma tia qualquer coisa; eram
grandes o suficiente para terem professores específicos
para matérias específicas, não aquela figura maternal
compreensiva que sempre imaginávamos que vivia só
para nós, sem marido, sem filhos, preenchida pelo afeto
de trinta e poucas crianças que mudavam de nome e de
rosto toda vez que março chegava.
Enquanto nós, da terceira série, nos moveríamos na
linha do tempo em direção à brincadeira do bebedor, os
que chegavam à oitava série ou ao segundo grau já
podiam se sentir constrangidos por terem feito aquilo,
porque agora eram os espertalhões e os bacanas.
Enchiam recipientes nas pias dos banheiros e
despejavam a água na cabeça uns dos outros, ou então
corriam com bexiguinhas atrás das meninas mais bonitas
da sala, mirando nos peitos e torcendo para que a
camiseta colasse no corpo. A coisa toda chegaria ao
ápice no último dia de aula, quando tradicionalmente
acontecia a Grande Guerra de Água. Era o dia também
de os adolescentes assinarem a camiseta uns dos outros
com pincel atômico. Apavorados, os adultos que
deveriam manter o controle e a disciplina começariam a
fechar os registros um a um, mas alguém sempre
descobria uma torneira funcionando em um lugar remoto
da escola, de maneira que a guerra continuava de algum
jeito até bem perto do fim da tarde, quando todo mundo
precisava, inevitavelmente, se despedir. Era sempre um
pouco melancólico. Mesmo que muitas daquelas pessoas
fossem se ver nas férias, o fim decretado pelo calendário
tinha um peso com o qual era difícil lidar.
De todo jeito, eu mal podia esperar pela hora da
brincadeira do bebedor e depois da Grande Guerra de
Água e da camiseta com as assinaturas. Estava
pensando nisso naquele dia 20 de novembro, embora
fingisse ouvir o que a tia Silvana dizia diante do quadro.
Tudo que eu imaginava, no entanto, sobre meus futuros
anos na escola, esses pequenos passos inesquecíveis
rumo à independência, seria absolutamente arruinado
pela minha família.
A aula terminou um pouco mais cedo naquela manhã
e, conforme o combinado, fui esperar o tio Werner diante
do portão da escola. Tia Eliane e ele vinham tentando ter
filhos havia muito tempo, mas, segundo minha mãe, um
dos dois tinha algo de errado, e as conversas sobre
adoção tampouco avançavam porque meu tio sempre
dizia coisas como: Não tem como ser filho sem nossos
genes ou que bomba que a gente poderia criar, Eliane?
Pelas discussões que eu ouvia entre meus pais, era
inevitável que o casamento deles chegasse ao fim caso
meus tios não se tornassem logo uma família de três
(mas preferencialmente de quatro ou cinco). Parecia
verdade. Todos os adultos que eu conhecia tinham filhos,
até mesmo Satti, que não era casado, e Marli e Adelino,
que haviam deixado as duas crianças em São Gabriel
porque era melhor assim. A única exceção era a tia
Silvana, sobre a qual não se sabia rigorosamente nada.
Ainda estava bem vazio, o entorno do portão da escola.
Faltavam dez minutos para tocar o sinal. O guardinha
falava com uma moça da limpeza quando passei por ele.
Sentado à sombra da grande paineira, um homem que
vendia puxa-puxa esperava as crianças aparecerem,
ajeitando os doces compridos na mão como um buquê de
flores.
“Quer puxa-puxa?”
Não respondi. A gente não devia comprar doces de
estranhos.
“Esse aqui tá uma delícia, feitinho hoje de manhã. Teu
pai te dá dinheiro pro lanche?”
“Não dá”, menti.
“Quando ele chegar, então.”
Eu não estava tão perto assim do vendedor, mas decidi
abrir uma distância maior entre mim e ele. Comecei a
caminhar de volta na direção do portão de ferro, para
mais perto dos limites da escola, e foi nesse percurso
que vi Vinícius se aproximando. Carregava a mochila em
um ombro só, como todas as pessoas do segundo grau
faziam, e a princípio não percebeu que eu estava por ali,
já esperando a carona do tio Werner. Parecia atento
demais ao movimento dos carros na rua. Ele não ia para
casa, quer dizer, não deveria, porque às quartas e sextas
tinha treino de futebol no próprio colégio. Pegaria um táxi
mais tarde com o dinheiro que meu pai havia deixado
sobre o aparador.
Tentei acenar. Ele não viu. Continuou olhando para a
avenida, a cabeça um periscópio em busca de sei lá o
quê. Os carros andavam cada vez mais devagar. Algumas
crianças começaram a aparecer antes de o sinal tocar,
de modo que o homem do puxa-puxa levantou e ficou a
postos. Vinícius, ainda olhando para a avenida, enfiou a
mão no cabelo e arrastou os dedos para cima para tentar
ganhar um pouco mais de volume, depois ajeitou a alça
da mochila. Talvez ele esteja procurando o tio Werner,
pensei, mas achava mais que não do que sim, e queria
continuar observando à distância, sem interferir em
nada. O sinal tocou.
Finalmente, o olhar do meu irmão se fixou em um
ponto. Era um Voyage bordô com a lateral meio
amassada. Vinícius acenou para o motorista e o carona,
dois guris que pareciam um pouco mais velhos que ele, e
foi avançando na direção do emaranhado de carros.
Abriu a porta de trás, jogou a mochila lá dentro, depois
entrou em um salto como se já fosse de casa. Então o
Voyage ficou quase parado por um tempo, porque a fila
de pais era imensa e as crianças demoravam a se
despedir dos amigos. Continuei olhando sem ser vista,
tentando entender quem eram aquelas pessoas.
“Ciça, que tu tá olhando, o tio tá ali.”
Era o Marco.
“Ali, ó”.
Com as duas alças da mochila bem ajustadas nos
ombros, apontou a traseira do Santana azul uns trinta
metros adiante. Eu continuei parada.
“Vem, vamos lá.”
Entramos no carro do tio Werner.
“E aí, gurizada. Calorão, hein.”
Estava de calça e camisa social, com rodelas de suor
embaixo do braço. Era três anos mais novo que meu pai,
mas tão parecido que algumas pessoas achavam que se
tratava de gêmeos muito empenhados em se diferenciar
através do que podiam, basicamente barba, cabelo e
forma física (tio Werner jogava futebol com os amigos no
ginásio da Brigada Militar, parecendo levemente mais
corpulento que o irmão). Quando os jornais publicassem
na capa um retrato falado que lembrava o meu pai, eu
chegaria a pensar por um instante que aquele homem
era, na verdade, o tio Werner ou, para ser mais precisa,
que aquele homem era Werner Matzenbacher, dono de
uma empresa de material hospitalar, que havia deixado a
barba crescer especialmente para cometer um crime e
pôr a culpa no irmão.
“O Vini ficou no futebol?”, ele perguntou, enquanto
costurava um carro na avenida. O motorista sentou a
mão na buzina.
Naquela hora, pensei em dedurar meu irmão. Tinha
sido criada para sentir medo.
“Ficou”, disse Marco. “E eu dava tudo pra tá em Torres
agora tomando banho de mar.”
“Vocês tinham aula.”
“Eu sei.”
“Vão ir nas férias. Sossega, guri”, disse meu tio, e deu
uma empurradinha no ombro do Marco, que esboçou um
sorriso desconsolado.
A viagem fora ideia de Satti. O projeto dos
clorofluorcarbonetos havia sido aprovado duas semanas
antes, em parte graças aos esforços do governador, o
mesmo que tinha convencido Satti a migrar para a vida
política. Convidou meus pais para irem com ele. Estava
cansado. Precisava se afastar, ao menos por uns dias, da
agitação da Assembleia Legislativa.
“O Satti quer andar de cavalo, tá com umas nostalgias
de velho”, disse meu tio, achando graça.
Estávamos quase chegando em casa.
“Como assim? Em Torres?”, Marco perguntou.
“Lá, antigamente, tinha um tiozinho que alugava
cavalo na beira da praia. Diz que o Fred nunca montou
num. Ele é guri de apartamento.”
Marco estava sorrindo agora, como se tivesse
entendido que aquela viagem não era para ele. Ele
sempre andava a cavalo na estância. Não era guri de
apartamento. Não precisava ir para Torres e procurar um
tiozinho puxando um pangaré pela areia dura.
Enquanto isso, eu tinha ficado furiosa.
“Eles vão andar de cavalo na praia?”, perguntei,
aparecendo entre os bancos, com a raiva desafinando a
voz.
“Duvido muito. Não tem mais isso em Torres, Ciça, tudo
mudou. Tá tudo mudando muito rápido, não só lá, aqui,
por tudo.”
Vinícius voltou umas duas horas depois do que deveria.
Passou na cozinha e foi para o quarto. Esperei um pouco
e bati na porta. Ele gritou “Entra”. Abri só uma fresta e vi
que ele estava sentado no chão, as costas apoiadas na
cama, comendo bisnaguinha direto do saco. Dos alto-
falantes, vinha uma música estranha que eu nunca tinha
ouvido.
“Tu trancou a porta lá embaixo?”, eu disse. “As portas.”
“Ainda não, quer trancar?”
Ele se levantou e foi mexer numa montoeira de coisas
sobre a escrivaninha. Me deu o chaveiro e voltou a se
sentar, mastigando.
“Isso é ópera?”, perguntei.
“Quê?”
“Isso que tá tocando.”
Ele riu.
“Claro que não.”
Continuei parada.
“Que foi, Ciça?”
“É que eu queria perguntar uma coisa.”
“Ué, pergunta.”
“Onde é que tu tava hoje de tarde?”
“No futebol, tu sabe disso.”
“Eu te vi entrar num Voyage. Tu saiu com dois guris.”
Ele me olhou surpreso, como se eu fosse mais esperta
do que ele tinha imaginado.
“Fecha a porta e vem aqui.”
Me sentei no chão também, com as pernas cruzadas.
“Pergunta o que tu quer saber de verdade”, ele disse.
Parecia um pouco nervoso. Talvez ainda achasse
possível que eu fosse deixar por isso mesmo ao ver que
estava sendo chata, que estava incomodando, porque
àquela altura meu irmão mais velho já era uma espécie
de herói pra mim, e eu costumava tratá-lo com toda a
pompa e admiração. Ao mesmo tempo, eu estava furiosa
com a história dos cavalos. Depois que Marco tinha
aceitado a ideia de que a viagem para Torres era uma
viagem de pais e de guris de apartamento, e então
começara mesmo a gostar do fato de estar sozinho em
casa, sem que ninguém lhe desse ordens, eu não queria
ter a impressão de ser a única pessoa que não estava se
divertindo.
“Queria saber de quem é o Voyage”, eu disse, só pra
começar.
“Do Luciano. Ele já fez dezoito, rodou um ano. O pai
dele é afudê e deu um carango pra ele. E o outro que
tava junto era o Thiaguinho, eles são da mesma turma.
Tá gostando dessa banda?”
Não sabia o que dizer. Prestei mais atenção.
“Parece uma fada cantando.”
Ele achou graça, até demais. Pegou a caixinha da fita
cassete e me mostrou, mas era uma fita gravada, eu não
conseguia ler aqueles garranchos.
“O pai do Luciano trouxe de Londres, ele viaja
bastante, daí o Luciano gravou pra mim. Chama Cocteau
Twins.”
“Que quer dizer?”
“Sei lá. Twins é gêmeos em inglês.”
“E aonde é que vocês foram hoje?”
“A gente foi dar uma volta no Bom Fim, só.”
“O Bom Fim não é aquele bairro que o pai detesta?”
“Esse aí mesmo”, disse, acho que com um pouco de
orgulho. Então se levantou, andou até a escrivaninha e
começou a mexer de novo na montoeira de coisas, até
finalmente pegar um negócio de couro preto com uns
espinhos de metal.
“Comprei essa pulseira aqui hoje.”
“Bem tri. Isso é de punk, né, tu quer ser punk? Foi
muito cara?”
“Ah, mais ou menos, o dinheiro do táxi ajudou. Não sei
se eu quero ser punk.”
Ele sorriu.
“Será que o pai vai te deixar usar?”
Então deu uma espécie de suspiro com risada, mas era
uma risada triste. Depois ficou em silêncio, encarando a
fita que girava. Me arrependi de ter dito aquilo, mas não
sabia por que ele de repente tinha ficado daquele jeito.
As persianas de plástico do quarto tremeram com uma
rajada de vento.
“Sabe a mulher do soe, a Ângela?”, Vini começou a
dizer. “Um dia ela me chamou na salinha porque eu tava
matando aula. Daí veio com um baita sermão, mas tipo
tentando ser amiga, sabe, eles devem aprender que isso
aí funciona. Só que eu não caio nesse papo-furado. Fiquei
meio ouvindo sem ouvir, olhando pra um Jesus que ela
tem lá, atrás dela, um quadro.”
“E daí?”
“Ouve a história até o fim, Ciça”, ele disse, bem mais
animado agora, como se lembrar da Ângela do soe — que
eu achava assustadora — tivesse injetado uma descarga
elétrica dentro dele. “Chegou uma hora que eu ouvi ela
dizendo: ‘A pessoa dessa idade’. Não, não. Ela disse: ‘o
que a pessoa faz nessa idade vale três vezes mais do
que em qualquer outra’. Exatamente isso. Aí eu parei de
olhar o Jesus e falei: ‘Sério mesmo, Ângela?’. O que ela
tava tentando dizer com aquilo é que eu devia ser mais
responsável, estudar mais, porque isso ia determinar
todo o meu futuro. Mas aí o tiro acabou saindo pela
culatra.”
“Como assim? Que tiro, o que é culatra?”
“Isso aí uma expressão, quer dizer que ela queria fazer
uma coisa, mas acabou fazendo outra. Porque aí eu
comecei a pensar: ‘Tá certo, se tudo vale três vezes
agora, eu tenho que aproveitar, não tenho? Quero fazer
um estoque dessas coisas ‘três vezes’ pra quando eu for
um velho. Daí eu larguei o futebol. O futebol é o pai e a
mãe, não sou eu. Eu sou a praia do Cachimbo, sou os
discos, sei lá o que eu vou ser depois.”
“Praia do Cachimbo?”
“É um lugar que eu conheci semana passada, lá na
Zona Sul. Não é bem praia tipo o que tu tá imaginando, é
na beira do Guaíba, então a água é poluída e a areia tem
um monte de despacho, uns meio fedidos até, mas dá
pra sentar no murinho, é afudê. Um dia tu vai lá
também.”
Na hora, não entendi muito, mas, se ele estava falando
tanto comigo, contando coisas que ele não devia contar
para qualquer um, acho que isso queria dizer que ele
gostava de mim. Então decidi falar do Voz de Jacaré, que
era como eu chamava um cantor que ele sempre ouvia,
mas que eu não sabia quem era, de que banda era, nem
como se chamava minha música favorita, a número 3 de
algum daqueles discos que ele tinha. Naquela noite,
ouvimos praticamente todos os vinis dele, e rimos para
valer quando finalmente descobrimos o Voz de Jacaré,
que se chamava na verdade Echo & the Bunnymen, e
minha música favorita era uma tal de “Do it clean”.
Botamos para tocar umas cinco vezes seguidas enquanto
o Vini dizia que, definitivamente, eu já era uma pequena
roqueira.
Meus pais voltaram no fim do domingo. Então meu pai
me mostrou cinco conchas que ele tinha trazido para
minha coleção, enquanto minha mãe dizia que era pra eu
lavar muito bem aquilo, que ela não queria sentir cheiro
de coisa apodrecendo. A mais bonita de todas era uma
que depois descobri se chamar Amiantis purpurata,
intacta e com estrias que pareciam feitas à máquina.
“Essa aí foi o Satti que achou para ti”, meu pai disse.
Lavei e guardei as cinco conchas na minha caixa de
sapato.
“Eu tenho o quê, uns trinta anos de taxidermia?”, diz
Greg, do alto da estrutura de madeira instalada em
frente ao diorama dos lobos. Está de costas para mim, o
corpo volumoso desenhado por dois spots móveis de luz,
enquanto todo o resto da Ala dos Mamíferos — eu
inclusive — permanece no escuro. “Na verdade, trinta e
quatro, se o ponto zero for a caturrita da minha tia. Trinta
e um, caso a gente considere o primeiro dólar que eu
recebi. Enfim, esse tá sendo um dos meus trabalhos
favoritos.”
“Imagino que sim. Você nem me deixou chegar perto.”
“Eu fico apegado às vezes.”
É uma paisagem nevada, a réplica de um lugar entre
Minnesota e Ontário, onde dois lobos adultos correm na
direção do vidro (o vidro que foi removido para a
restauração; não há portas de acesso nesse diorama).
Ambos os lobos têm uma única pata apoiada na
superfície branca. A ideia de movimento é sublime. Há
pegadas de um cervo na neve macia e brilhante. Ao
fundo, vemos os feixes fantasmagóricos da aurora
boreal.
“Você já trocou as lâmpadas”, eu digo.
“Aham. E aí, adivinha? Novas sombras. Trabalheira do
diabo. Mas faz tempo que eu queria fazer um luar.”
Sobre o estrado, há potes com misturas de lascas de
mica e pó de mármore. São seis cores diferentes, tons de
azul claríssimos. A neve falsa, caso não seja muito bem-
feita e muito bem aplicada, pode deixar qualquer
diorama com cara de presépio de paróquia.
“Quer ver como tá ficando?”
Greg se estica e apaga o primeiro spot de luz. Então,
tentando criar uma expectativa cerimoniosa, demora
mais um instante para desligar o outro. De repente, a
cena fica verossímil e azulada, uma noite de lua cheia
perto do lago Gunflint, em um tempo em que a vida
selvagem ainda era abundante. Um diorama de habitat
traz sempre um duplo deslocamento, espacial e
temporal, eu diria a Greg caso ele se interessasse
minimamente por minhas “ideias de maconheira” (É tudo
muito simples, Cecília. Tem o bicho real que um dia foi
vivo, e nosso trabalho deve ser chegar o mais próximo
dele. Qualquer coisa além disso é filosofia, não
taxidermia). Nos tempos áureos dos dioramas, essas
reconstruções obsessivas atuavam sobretudo como
janelas para outras partes do mundo, uma vez que
viagens eram demoradas, custavam muito dinheiro e
envolviam uma alta dose de risco. Quando as distâncias
entre lugares se estreitaram, e a natureza foi devastada
em proporções cada vez maiores, os dioramas também
viraram pequenas máquinas do tempo. Vitrines de
nostalgia.
Greg ainda não corrigiu a sombra das árvores secas.
“Faltam as sombras das árvores”, ele diz. “Meus braços
tão fodidos de desenhar com esse pozinho.”
“Tá muito bom, Greg. Muito bom mesmo.”
Continuamos olhando.
“Que puta pintor era o Molina, né? Dizem que foi
muralista e lutou na Revolução Mexicana. Levou um tiro
em Ciudad Juárez, ficou manco, mas isso porque se
apaixonou por uma mulher casada. Nos anos cinquenta,
foram buscar ele em um andaime de igreja no Novo
México, e aí mandaram ele pro norte pra pintar a aurora
boreal. Ele recriou nesse diorama exatamente o céu das
três da manhã do dia 7 de dezembro de 1954. Um ano
depois, morreu pobre e desgraçado.”
Reconheço a Estrela do Norte e a Ursa Maior, adesivos
que, décadas atrás, brilhavam no teto do meu quarto
antes de eu pegar no sono. O quarto. A casa da praça
Horizonte, que não vejo desde 2002. Meu cérebro se
apressa — não sei por quê — em construir uma imagem
inexata do meu pai velho em uma cadeira de rodas, o
rosto dele aos quarenta anos encaixado na cena
perturbadora de um videoclipe do Smashing Pumpkins a
que eu assistia nos anos noventa. Não conheço meu pai
velho, e as imagens mais claras que tenho dele, as que
olho com frequência, são as da cobertura do caso Satti.
Quando Greg liga as luzes, estou limpando as lágrimas
com o dorso da mão.
“Ei, isso não é pelo Molina, né? Acho que eu nunca vi
você chorar.”
“Desculpa. Talvez”, respondo, tentando sorrir.
“Sabia que você não tava bem, eu tinha certeza. Poxa,
Cecília. Você não acha que tá na hora de me dizer o que
tá acontecendo?”
Duas coisas estavam acontecendo, mas eu só podia
falar sobre uma delas.
“Acho que meu casamento vai acabar.”
Ando até o banco à frente do diorama dos caribus e me
sento.
“Caramba! Eu tô realmente surpreso. De verdade”,
Greg diz, se arrastando atrás de mim como se já
estivesse em luto por aquela relação. “O que houve? Não
consigo nem imaginar. Vocês são um ótimo casal!”
“Vou começar pela primeira coisa, tá bom?”
“De quantas a gente tá falando?”
“Duas, eu acho. O Jesse quer ter filhos.”
“E pra você essa ideia parece absurda.”
Ele ri e eu também, provavelmente por motivos
diferentes. Eu rio porque adoro as filhas do Greg.
“Você é uma pessoa muito, ahn, assertiva, Cecília”, ele
diz depois de um tempo. Começa a mexer no pequeno
rabo de cavalo, como se tivesse que checar que ele
continua ali. “Se nenhum de vocês ceder nessa questão,
cara, não sei mesmo. Histórias assim não terminam
muito bem. Desculpa eu dizer isso.”
“Imagina.”
“É que aí você começa a mexer com o propósito da
vida e coisa e tal. Quer dizer, pra maioria das pessoas,
né? Aconteceu comigo uns quinze anos atrás, eu tava na
mesma posição que você tá agora. Tinha uma namorada
louca pra engravidar. Ela era assim desde que a gente se
conheceu, não podia ver criança que já chegava perto,
fazia careta até na fila do supermercado, sabe? E eu
ficava achando que isso era sempre um recadinho pra
mim, mas talvez fosse só o jeito dela. Quando foi pela
primeira vez na casa dos meus pais, pediu pra ver
minhas fotos de infância. Dizia que nosso filho ia ser
lindo, e eu não era nada lindo quando criança, pode
apostar. Enfim, eu meio que deixava ela falar, achando
que, sei lá, ou ela ia parar uma hora, ou eu ia começar a
gostar da ideia de ser pai. Só que eu era esse cara que
chegava do trabalho, abria uma cerveja e ficava jogando
videogame. Pra mim, isso definia liberdade. Ingênuo pra
caralho, eu sei. Ela acabou indo embora um dia. Ainda
dói, sabe, puta merda. Nunca buscou as coisas dela,
zerou a vida. Casou com outro cara, formou uma família,
se mudou pra Flórida. Eu acabei conhecendo a Emma
mais ou menos um ano depois e, quando ela falou de
filhos, só pensei: ‘Meu, eu não quero passar por tudo
aquilo de novo, vamos nessa’.”
Fiquei olhando para ele em silêncio até ele se
recompor, abrir um sorriso e dizer que, como eu bem
sabia, eu estava agora diante do pai mais bobão e feliz
do mundo. Então Greg pareceu lembrar que falávamos
sobre o meu casamento. Ajeitou-se no banco.
“Acho que eu não tô ajudando muito... Qual é o
segundo motivo da sua crise?”
“Los Angeles.”
Voltamos para casa quatro dias depois, na manhã
seguinte ao coquetel de reabertura dos dioramas —
Família de caribus, Lobos no lago Gunflint, Búfalos de
Yellowstone e Fim de tarde no deserto de Sonora —, um
evento pequeno no qual eu e Greg fomos brevemente
apresentados e aplaudidos. O público era composto
sobretudo de doadores do museu, homens de trinta ou
quarenta anos da indústria da tecnologia que pareciam
surpresos com o fato de que ainda existiam no mundo
trabalhos estritamente manuais. Vendo-os diante dos
dioramas, tentei imaginar o que eles estavam sentindo,
se a sensação se parecia mais com olhar um quadro em
uma galeria de arte ou com encontrar um animal
selvagem em um parque nacional. “A diferença entre
meu urso-polar e uma tela do Monet”, me disse uma vez
um taxidermista muito orgulhoso de si, “é que a tela do
Monet não tem olhos.”
Na saída do aeroporto, Greg está com a cara fundida
ao celular, rindo de memes e trocando mensagens com a
esposa. Meu Uber chega primeiro, e a gente se despede
em uma coreografia atrapalhada. Digo que vou tentar
salvar meu casamento, mas as palavras saem sem muita
convicção. Quando já estou quase dentro do carro, ele
grita que eu deveria reconsiderar a ideia do filho, afinal é
só um ser humano que vai precisar de mim por uns vinte
anos ininterruptos. Rimos e acenamos um para o outro.
Vou percorrendo as freeways dentro do Uber de janelas
fechadas, os bancos lavados pela luz do meio-dia. Já
senti muita coisa a respeito de Los Angeles:
encantamento ingênuo, vertigem, desprezo por esse
espraiamento monstruoso, em seguida certo fascínio
pelo empenho das pessoas que construíram uma ilusão
semitropical na aridez brutalizante da paisagem. A raiva
veio depois. Foi surgindo à medida que Jesse parecia
cada vez mais frustrado com sua carreira; os discos não
vendiam, a gravadora rescindiu o contrato, as resenhas
eram escassas, os jovens não se interessavam por
aquelas músicas que faziam reverência ao som do
Topanga Canyon dos anos setenta, o rock tinha
agonizado e morrido, e então parecia, talvez mais a mim
do que ao próprio Jesse, que a culpa era toda de Los
Angeles. Isso porque a banalidade quase chocante desse
tecido urbano contribuía em muito para a sensação de
que a sorte, o sucesso e a fama estavam sempre a um
passo de acontecer. Filmes geniais e canções geniais
tinham germinado em lanchonetes gordurosas e
quartinhos de prédios construídos a toque de caixa. Um
dia vai ser a sua vez, a cidade parecia sussurrar. E você
podia passar a vida inteira acreditando nisso.
Em um casamento, o que você faz? Você também
sussurra um dia vai ser a sua vez?
O motorista do Uber dá sinal, sai da freeway e desce a
rampa como um típico angelino que não gosta da ideia
de ter que desacelerar. Chegamos à minha rua. Ainda
tenho quatro dias sem o Jesse. Entro em casa — o cheiro
que só percebemos quando passamos alguns dias ou
semanas fora —, guardo minhas roupas, preparo uma
omelete, depois fico fazendo exercício com o trx por uma
hora cronometrada. Minha mãe tenta me ligar e eu não
atendo, então ela deixa uma mensagem de voz avisando
que meu pai teve alta: “Até eu fui no hospital. Sei que
vocês tão brigados, Cecília, mas eu realmente acho que
tu devia vir a Porto Alegre”.
Pela janela, vejo Rebecca e o filho brincando de cabra-
cega no pátio. Rebecca está com os olhos vendados.
Acendo um beque e assisto a um filme sobre uma
octogenária que, depois de perder o marido, viaja às
Terras Altas da Escócia para subir a montanha mais alta
da região.
A ideia de família é uma ideia poderosa.
Em algum ponto da primeira metade do século xx, o
Museu Field de Chicago criou uma réplica de uma família
de brontotérios, uma espécie de rinoceronte do Eoceno.
Os fósseis deram a base anatômica para a construção
dos animais, mas não havia maneira de saber como os
brontotérios viviam, socialmente falando. Mergulhados
na visão tradicional e sexista da época, os cientistas do
Museu Field montaram o filhote deitado, esfregando o
nariz na mãe. Ambos estavam em repouso, com as
orelhas baixas e o olhar tranquilo. Para o pai, foi
escolhida uma pose ereta, protetora, o corpo todo
tensionado. Os brontotérios ficaram expostos assim por
décadas a fio.
Por volta do fim do século xx, a imprecisão científica
começou a ficar um pouco constrangedora para a
instituição. Mas os brontotérios eram populares; as
crianças, por algum motivo, sempre gostam de animais
extintos. Então, para salvá-los do triste depósito do
museu, alguém teve a ideia de adicionar uma placa
educativa. A placa dizia: As fêmeas mamíferos são boas
mães: todas amamentam os bebês e cuidam deles
enquanto eles crescem. Muitos pais mamíferos
participam também da criação dos filhotes, e por isso
estamos mostrando esses brontotérios em um grupo
familiar. Mas outros tantos nem sequer esperam para ver
os bebês nascerem.
A placa, para falar a verdade, foi até generosa. Na
natureza, os pais costumam ser no mínimo ausentes e,
em muitas espécies, verdadeiramente perigosos. É o
caso dos ursos-cinzentos: a fêmea precisa mandar o
macho embora para que ele não mate seus bebês. Um
velho diorama, no entanto, mostra o papai urso, a
mamãe urso e os pequenos ursinhos juntos bebendo
água nas Montanhas Rochosas. Felizes e contentes. Uma
linda família nuclear.
Acendo o beque de novo e ligo para Vinícius.
“Ele teve alta então?”
“Oi, Ciça. Falou com a mãe?”
“Só ouvi a mensagem.”
“Teve, hoje de manhã. Cara, tô exausto, sabe o que é
uma pessoa exausta? Cozinhei pra ele enquanto ele
ficava me olhando da cadeira de rodas, e tudo tem que
ser pastoso agora. Dei comida na boca dele. Sei lá. Foi
meio demais pra mim.”
“De onde tu tira forças pra isso?”
“Eu não tiro”, diz, bocejando. “Tô voltando pro Rio
amanhã. O Marco tá vindo ver ele de novo. Conseguiu
uma cuidadora, vai falar com ela de tarde.”
Dou uma leve tossida.
“Tu tá fumando?”
Pego o pote na mão. Parece a embalagem de um
produto de beleza.
“Wedding Cake, 60% indica, 40% sativa. thc 24%.”
“Cara, se foder com esses nomes. Eu gostava era do
Prensado Premium da Osvaldo. A gente nem sabia o que
tinha lá dentro.”
É claro que depois eu sinto vontade de comer alguma
coisa doce. Pelas sete horas, vou ao mercado. Pego duas
barras de chocolate 85%, um shake de proteína, uma
couve, algumas cenouras e uma caixa de ovos. Adiciono
um Snikers no último minuto. A garota que eu conheço,
Kristen, está atendendo hoje, então entro na fila dela.
Tem no máximo vinte e cinco anos, rosto pequeno,
cabelos ondulados cor de cobre, corpo que parece magro
e firme. Já tive um sonho meio erótico com ela — eu
encontrava Kristen depois de fugir de um mamute em
um mundo pós-apocalíptico, e então nós nos beijávamos
—, mas nunca fiquei com uma mulher na vida, e lembro
de ter acordado depois desse sonho levemente confusa e
levemente empolgada. Deixei pra lá. Há meses
conversamos um pouco toda vez que ela passa meus
produtos pelo leitor porque sempre acabo escolhendo o
caixa dela, mas o mais longe que chegamos com isso foi
inventar receitas absurdas envolvendo as coisas que eu
estava comprando. Rimos bastante. Às vezes acho que
ela está flertando comigo. Outras vezes, que essa é só
uma forma que ela tem para lidar com o tédio. Vou fazer
quarenta anos em agosto.
“Não te vi mais”, ela diz quando chega a minha vez.
“Eu tava trabalhando. Quer dizer, fora da cidade. Em
Seattle.”
As mãos ossudas cheias de anéis prateados colocam
delicadamente um elástico ao redor da minha caixa de
ovos. Ela sorri.
“Sempre tão saudável.”
“Mais ou menos”, eu digo, apontando o Snikers.
“Uau, o que aconteceu com você?”
Sim, ela está flertando.
“Acho que às vezes eu preciso sair da linha.”
Quase não acredito no que eu acabo de dizer, mas a
sensação é boa.
“Vai precisar de mais do que um Snikers pra isso.”
O sorriso ficou um pouco mais afiado. Me sinto
momentaneamente atordoada e enfio o cartão de débito
ao contrário na máquina.
“O chip.”
“Ah, sim. Sabe, você tá certa. Acho que eu vou pegar
uma garrafa de saquê. Você gosta?”
Acho que estou em um encontro com uma mulher. As
coisas parecem funcionar mais ou menos da mesma
maneira: uma pessoa tenta apresentar sua melhor
versão à outra. Desde que me sentei nesse restaurante,
sinto uma potência que há tempos não sentia. Estou
seduzindo alguém. Estou sendo seduzida por alguém e
também pela própria imagem que criei de mim mesma.
Tudo parece, ao mesmo tempo, tão calculado e tão
primitivo.
A garçonete traz mais duas doses de saquê e leva
embora os pratos manchados de shoyu e as cumbucas
com fios de macarrão.
“Saquê é a melhor bebida do mundo”, eu digo. “Pelo
menos hoje, aqui, nesse momento.”
Kristen dá uma risada e toma um gole, como se não
tivesse prestado atenção no que estava bebendo antes e
agora precisasse validar ou invalidar minha frase
hiperbólica.
“É meio docinho”, diz.
“Uma pessoa que eu namorei achava que tinha gosto
de chá de meia suja.”
Jesse, na verdade. Parece que ainda sou casada com
ele.
“Acho que eu vou ter que tomar de novo pensando em
meias.”
Mas ela não toma de imediato. Em vez disso, fica me
ouvindo falar que, no início, o que eu gostava mesmo era
dos copos cúbicos, masu, encostar os lábios no laqueado
preto ou preferencialmente no cedro sem verniz,
sentindo a aspereza da madeira antes de fazer o líquido
fermentado rodar pela boca, e só então engolir como se
fosse água com uma leve nota destoante. Eu até entendo
o conceito de “chá de meia suja”, digo, e acreditava
mesmo que o que mais me atraía era o cerimonial, masu,
pernas cruzadas, mesas baixas, mas aí todos os lugares
que passei a frequentar serviam saquê em copos de
vidro, e eu gostei mesmo assim. Como esse aqui.
Acho que estou bêbada.
“Desculpa, tô falando demais.”
Kristen tem cílios enormes. Parecem ser de verdade. O
olhar dela é uma coisa cortante que me dá um leve
tremor no meio das pernas. Quero sair desse
restaurante.
“Imagina, eu gosto de te ouvir. E você me ouviu falar
sobre ioga por milênios.”
A parte obrigatória — o que você faz da vida? — já
passou faz tempo, antes mesmo de a comida chegar. Ela
tem aquele emprego no mercado de produtos orgânicos
(não é tão ruim quanto parece, sabe?), mas está
seguindo uma formação para ser instrutora de ioga. Eu
trabalho para museus de história natural. Aprendi que
essa é a forma mais suave de contar sobre meu
emprego. Não faço menções a esfolamento, preparação
de pele, costuras. Não digo nada sobre as colônias de
besouros Dermestidae que usamos para limpar os ossos.
Agora ela bebe o saquê.
“Olha só”, diz. “Tão começando a fechar aqui. O que
você acha de ir pra minha casa? A gente pode levar a
melhor bebida do mundo. Você comprou uma garrafa pra
isso, não comprou?”
Kristen mora com outras pessoas, é claro, duas
meninas que estão vendo um filme antigo quando
entramos no apartamento. Na tela, vejo Christina Ricci
sentada na cama de um quarto de hotel barato. Uma das
meninas, a que está usando uma camiseta cortada logo
abaixo dos peitos, dá pausa e diz que não sabe por que
estão assistindo a um filme em que uma mulher é
humilhada o tempo todo. Além disso, acrescenta, depois
de mais de uma hora transcorrida, continuamos sem
saber rigorosamente nada sobre essa mulher, enquanto
a história nos revela até o nome do cachorrinho de
infância do personagem masculino. A outra menina só
pergunta o que temos na sacola. Kristen vai pegar dois
copos na cozinha enquanto eu fico de pé no meio da
sala, ciente demais da minha própria presença.
“Ela tem ótimas opiniões sobre tudo, mas às vezes não
lava a louça”, diz Kristen baixinho depois de entrarmos
no quarto. As paredes são violeta. Sentamos em
almofadas no chão. Durante algum tempo, a conversa
gira em torno de colegas de apartamento que enrolam
quando precisam limpar o banheiro ou que choram
sozinhas atrás de portas fechadas (devo ou não devo
bater?). O problema é que isso tudo já me parece tão
vago, tão distante do meu cotidiano, tão radicalmente
superado, que é como se eu tivesse trocado de pele. No
entanto, estou aqui.
Lá se foi mais uma dose de saquê.
O que ela gostaria mesmo é de ter se mudado para la
por causa de um trabalho, Kristen está dizendo, mas
acabou vindo porque se apaixonou por uma menina. “Por
que sempre trabalho ou mulher, não dá pra gente só se
mudar?”, ela continua, e então se levanta, mexe no
celular e põe uma música que não reconheço, sedosa e
sincopada. Depois se senta de novo.
Antes que seja tarde demais para frear o longo trem
das confidências, eu agarro Kristen. De joelhos no tapete,
pressiono seu corpo contra a lateral da cama enquanto
minha língua vai passeando pela boca macia, com pressa
de conhecer tudo. Ela me puxa para cima dela. Os
cabelos cobrem o rosto depois que ela tira a blusa. Eu
pego todas as mechas que posso e dou um puxão para
trás enquanto tento encontrar o botão do jeans só com o
tato. Quando me deito sobre ela na cama, tenho
convicção — uma pacífica e irrefutável clareza — de que
há muito tempo eu não ficava tão molhada só de roçar
na pele de alguém. Nesse quarto estranho, com uma
bandeira do deus Shiva presa à parede, sob a luz indireta
de uma placa de publicidade, estou toda suada e
encaixada em uma mulher uns quinze anos mais nova do
que eu e deslizando os dedos até o meio das pernas
dela. Estou procurando espaço lá dentro e arfando em
sincronia e sentindo uma pressão viscosa. Estou olhando
para ela enquanto faço isso.
Vou embora um pouco antes das quatro. Kristen parece
levemente decepcionada, mas não posso pensar em
nada pior agora do que acordar em um apartamento
estranho e ter que passar pelo constrangimento que é o
café da manhã, especialmente quando há outras pessoas
morando no lugar. Ela me leva até a porta e me dá um
beijo como se fôssemos começar tudo de novo ali na
sala. De repente, se recompõe. Dá um passo para trás.
“Olha só. Você é casada, não é?”
“Sou.”
“Com um homem?”
“Sim.”
“E o que isso quer dizer?”
“Como assim, o que quer dizer? Acho que nada.”
“Ah, esquece. Tipo, me liga, tá? Não sei onde tá seu
marido e o que tá rolando entre vocês, mas eu adoraria
te ver de novo.”
anoiteceu em porto alegre
Uma cidade sul-americana no frio é uma cidade
improvisada e encolhida, coberta por uma camada brutal
de umidade, tremendo, esperando a noite acabar. Nas
paredes geladas das casas e edifícios, se agarram
microscopicamente trilhões de fungos filamentosos,
colônias verdes e pretas que crescem e incham e fazem
descolar pouco a pouco a pintura das fachadas. Estátuas
de generais que lutaram em guerras sobre as quais mal
se ouve falar no colégio — mesmo que tenham selado o
destino de todos — são vandalizadas nas praças por
tédio e desespero. Na beira do rio, entre armazéns vazios
de janelas estilhaçadas, cambaleiam homens sozinhos
com pouca roupa, que param às vezes para olhar a
massa de água escura e misteriosa como se ela fosse a
última fronteira da miséria. Um alarme toca no centro da
cidade. Duas pessoas mascaradas pulam um muro. Nos
bairros de classe média alta, onde a sombra das árvores
projetada no pavimento é quase a única coisa que se
mexe, as portas estão trancadas, os carros nas garagens,
as crianças na cama.
É a noite de 7 de junho de 1988, uma terça-feira, em
Porto Alegre. Em certos pontos do mapa, nem tudo está
imóvel. Escaler. Ocidente. Anjo Azul. Wunderbar. Hotel
Plaza São Rafael. Alguns faróis rasgam as avenidas
Osvaldo Aranha e Protásio Alves e, pelas frestas das
janelas, abertas na tentativa de proporcionar a mínima
visibilidade para evitar acidentes, escapam compassos
de canções que falam sobre amores eternos, muros,
chucrute e rock ‘n’ roll. Punks e skinheads deixam
marcas de coturnos no chão molhado do Bar João, em
cujas famosas prateleiras se enfileiram vidros de cachaça
com tijolos, morcegos e centopeias boiando no álcool,
como um laboratório de ciências feito por uma criança. A
maioria das ruas residenciais está envolvida em um
silêncio opressivo, conservadas no frio de quatro ou cinco
graus. Na Quintino Bocaiuva, esquina com a Marquês do
Herval, um Monza cinza-escuro para diante do Edifício
Elizabeth.
São 21h10. Um episódio de Vale Tudo acaba de chegar
ao fim, e Gláucia Pereira Almeida, do apartamento 301,
se levanta da cadeira de balanço e vai até o quarto
fechar as persianas, como sempre faz após a novela das
oito. Não é incomum que carros estacionem de noite na
frente do seu prédio de quatro andares — infelizmente
nenhuma regra proíbe isso, ela dirá mais tarde —, uma
vez que o Wunderbar fica a apenas meio quarteirão dali,
na Marquês. Naquela terça-feira, Gláucia abre a cortina
do quarto e esquadrinha a rua, o que sempre faz logo
antes do hábito de puxar a correia e fechar
hermeticamente a persiana de plástico. Um carro — o
Monza — acaba de estacionar diante do edifício. Ouve o
motor pesado e vê os faróis e as lanternas ainda acesos,
borrados pelo ar da noite mais fria do ano. As luzes se
apagam, o motor desliga. O carro tem aerofólio. Ela gosta
de observar quem entra e quem sai, dirá mais tarde.
Considera o que pode ver da janela como a extensão da
sua casa, então é claro que se preocupa com o tipo de
gente circulando, em geral muitos casais bem-vestidos,
algumas famílias, gente boa com certeza, mas também
às vezes certos maus elementos que bebem demais e
mexem com as mulheres e aceleram os carros e saem
buzinando.
Quando começa a fechar a persiana, ela trava no meio
do caminho. Gláucia abre o vidro e dá um puxão, volta à
correia, dá mais um puxão. Passa talvez uns três, cinco
minutos tendo a paciência testada, e pode afirmar que,
em todo esse tempo, lutando com a persiana, sentindo o
ar gelado amortecer seu rosto, com certeza ninguém
desce daquele Monza.
Às 21h20, um guardador de carros conhecido no bairro
como Restinga recebe uma embalagem de alumínio nos
fundos do Wunderbar. Eles não gostam que os clientes o
vejam comendo, então Restinga sempre vai se sentar no
contorno de tijolos do canteiro em frente ao Edifício
Elizabeth, na Quintino Bocaiuva (uma árvore no centro
tem o tamanho de um homem alto, e os arbustos ao
redor não são aparados há alguns meses). Restinga tem
onze anos, pai desconhecido, mãe que às vezes faz um
serviço nas casas ricas de Ipanema, mais duas irmãs de
doze e catorze que ficam nos corredores do Mercado
Público olhando as gaiolas de passarinho e pedindo leite
ou Trakinas ou cruzados. Ele se aproxima do Monza. Por
um milésimo de segundo, como se Deus nosso senhor
girasse o pescoço dele para mostrar a maldade e o
pecado e talvez a salvação, Restinga olha para dentro do
carro. A primeira coisa que vê é uma espingarda no
banco de trás. A segunda coisa que vê é um homem.
João Carlos Satti, do apartamento 302, ainda não
chegou em casa.
Naquele dia, saiu da Assembleia Legislativa por volta
das sete — horário estimado por seu chefe de gabinete,
Paulo Bittencourt — e foi visitar a mãe, que morava não
muito longe dali, na rua Fernando Machado. Entrou no
apartamento do nono andar carregando uma caixa
debaixo do braço. Não tem motivo pra senhora ficar com
esses pés gelados, ela lembra o filho dizendo enquanto
ele mesmo desembrulhava o pacote. Era um aquecedor
portátil da Arno. A senhora vai gostar, não tem perigo
nenhum. Ela não disse nada, mas pensou, porque tinha
ouvido na tv sobre uma casinha de madeira em Carlos
Barbosa que fora consumida pelo fogo em um par de
horas; na manhã seguinte, diante da equipe de
filmagem, a dona da casa revolveu a pilha disforme de
cinzas com um pedaço de ferro que devia ser o resto de
alguma coisa, chorando muito, até mostrar a lateral
derretida de um aquecedor que se parecia muito com
aquele. João ligou o aparelho na tomada. Logo em
seguida, quando a senhora Maria de Lurdes Satti já
estava bem acomodada na poltrona, concentrada nas
três linhas horizontais laranja do novo aparelho, e seu
filho fumava na janela como quem via os fundos da
Catedral Metropolitana pela primeira vez, o telefone
começou a tocar.
João atendeu.
“Raul? Ah, oi, Raul! Mas como é que tu me achou aqui,
homem?”
“Era a primeira vez que Raul Matzenbacher ligava pra
sua casa?”, perguntariam para Maria de Lurdes depois,
na delegacia.
“Era. Era, sim.”
“E como é que ele tinha conseguido o número da
senhora?”
“Ele ligou antes pro Paulo. O Paulo Bittencourt, chefe
de gabinete do meu filho.”
“O que o dr. Matzenbacher queria com o seu filho na
noite de 7 de junho, dona Maria?”
“O que ele queria eu não sei. O que ele falou eu posso
contar.”
Raul Matzenbacher havia saído da Assembleia
Legislativa às seis da tarde. Por volta das 19h30, fechado
em seu escritório na casa da praça Horizonte, deu três
telefonemas: primeiro para o apartamento de Satti —
onde ninguém atendeu —, depois para Paulo Bittencourt,
depois para a dona Maria de Lurdes. A Bittencourt,
perguntou se ele fazia ideia de onde Satti estava, e o
chefe de gabinete disse que ele passaria na casa da mãe
e, pelas oito e pouco, tinha um jantar marcado com
Glória Andrade no restaurante do Hotel Plaza São Rafael.
Embora Bittencourt não gostasse muito do deputado
Matzenbacher, não acreditava, naquele momento, que
havia qualquer razão para omitir essas informações. Em
seguida, Raul pediu o número da mãe de Satti.
Alguns se perguntariam depois por que ele tinha dado
aquele terceiro telefonema.
De acordo com a senhora Maria de Lurdes, a conversa
entre os dois não durou muito tempo. Seu filho disse a
Raul que iria com Glória ao Plaza — o que aparentemente
o outro já sabia —, e então perguntou se ele gostaria de
ir junto. Diante do que ela imaginou ser, do outro lado da
linha, uma recusa com uma justificativa comprida, Maria
de Lurdes viu o filho insistir mais uma vez. Quando ele
pôs o telefone de volta no gancho, estava rindo. Ela
lembra da expressão um pouco perplexa em seu rosto,
como se ele não tivesse certeza de que havia mesmo
motivo para rir, ou ao menos foi isso que ela pensou
depois que a coisa inominável aconteceu (Não tem
palavra pra isso porque não é natural, né, seu delegado,
mas eu digo mesmo assim, “sou órfã de filho”).
“Sabe o que o Raul acabou de dizer?”, ele perguntou
para ela, ainda parado ao lado da mesinha do telefone.
“Que a Glória é uma chata de galocha. Não qualquer
chata, vê bem. Uma chata de galocha!”
Uns poucos minutos antes das oito, deu um beijo nela,
fez a mãe prometer que não desligaria o aquecedor
assim que ele cruzasse a porta, e saiu para encontrar
Glória.
Sentia um princípio de gripe, de maneira que
combinara de jantar cedo. Glória Andrade era uma amiga
dos tempos da televisão que havia trabalhado como
produtora do programa de entrevistas de Satti.
Costumavam se ver ao menos duas vezes por mês. Teria
sido um jantar comum. Iria direto pra casa depois do
Plaza São Rafael, porque era isso que Satti entendia por
tomar cuidado: a noite mais fria do ano, três taças de
vinho no Plaza, o .38 no coldre, talvez um chá com mel
antes de ir para a cama.
São 22h13 quando ele deixa Glória em casa. Ela sabe
porque logo olha o relógio digital no quarto do filho —
22:15 —, sentindo o arrepio de culpa que sempre sente
quando volta e o vê dormindo. São provavelmente 22h18
quando Satti estaciona na Garagem e Posto Estrela, na
Quintino Bocaiuva. Tranca o Escort e vai andando os
cerca de quarenta metros que o separam de sua casa.
Ninguém cruza com ele no caminho. Restinga está na
frente do Wunderbar e já se esqueceu do Monza cinza
porque uma arma é só um cano de ferro polido antes de
alguém atirar com ela. Gláucia Pereira consultou a lista
telefônica, anotou o número do serviço de reparo de
persianas e foi dormir enquanto o Monza continuava no
mesmo lugar.
22h20. O deputado João Carlos Satti para diante da
primeira fechadura do prédio. Faz oito dias que
colocaram uma cerca de ferro pontuda ao redor do
Edifício Elizabeth. Enfia a mão no bolso e procura a chave
certa. Não percebe o Monza cinza com o aerofólio parado
atrás da árvore. Abre o portão e está na área privativa do
condomínio, entre a primeira e a segunda porta, talvez
pensando: Tem aquele chá que eu posso beber e a mãe
vai se acostumar com o aquecedor, capaz que não ou
ainda vou fazer quarenta e um anos no mês que vem
mas me sinto mais jovem do que me sentia aos vinte e
cinco. Anda apenas dois passos quando algo faz com que
se vire para trás. Um barulho. Um chamado. Seu nome.
Vê o Monza de janela aberta, talvez a espingarda .12,
talvez apenas o homem. Conhece o homem, dirão,
porque alguém lembrará de ter ouvido duas vozes
exaltadas. O primeiro tiro acerta a fechadura do portão e
a estilhaça em pedaços brilhantes sobre o pavimento. O
segundo tiro atinge Satti no peito quando sua mão já
alcançava o revólver. Seus pequenos grãos de chumbo
vão furar a carne em uma dúzia de pontos, arruinando o
lobo superior do pulmão esquerdo, a veia do ventrículo
esquerdo e a artéria pulmonar.
O Monza acelera e sobe a Quintino Bocaiuva cantando
pneu, depois se mistura normalmente ao pequeno fluxo
de carros ao chegar ao próximo semáforo. João Carlos
Satti, enrodilhado no chão entre as portas do edifício,
ainda está vivo quando Restinga e dois brigadianos que
saíam do Wunderbar o colocam dentro de um táxi.
Acordei naquela madrugada com o grito da minha mãe.
Meu quarto estava completamente escuro, mas eu podia
ver um traço de luz por baixo da porta. O rádio-relógio
marcava 2:32. Eu tinha quase dez anos e uma vida
convencional e protegida. Minha infância era como um
bolo ainda quente assado de acordo com uma receita. Eu
continuaria assim por um tempo, até, talvez, chegar à
idade do Vini, e então começar a mentir para meu
próprio bem, procurar meus lugares na cidade, mais
tarde pegar o carro depois de o sol se pôr e dirigir
apenas para ter a impressão de que eu estava
escapando. Mas, no dia 7 de junho de 1988, isso tudo
estava muito longe de acontecer. Minhas expectativas
mais aventureiras ainda saíam das páginas de O
naturalista amador e do Manual do escoteiro mirim.
Se eu ficar no quarto, pensei, se eu voltar a dormir,
nada jamais terá acontecido.
Acendi o abajur, coloquei as pantufas e abri a porta.
Do alto da escada, eu podia ver a sala toda iluminada.
Em um primeiro momento, a cena me pareceu se
desenrolar sem som, como se, por uma cuidadosa
decisão neurológica, meus ouvidos estivessem sendo
poupados momentaneamente enquanto os olhos lidavam
sozinhos com aquela madrugada. Meus irmãos e meus
pais estavam de pé lá embaixo, unidos em um único
abraço esquisito. Comecei a descer os degraus e ainda
não ouvia nem um pio, e continuava surda ao pisar na
sala. Naquela altura, já estava óbvio que algo muito ruim
havia acontecido, de maneira que eu me aproximei e
fixei os olhos em um pedaço do roupão da minha mãe,
como se aquilo fosse algum tipo de boia no meio da alta
correnteza. Fiquei vidrada no tecido cor-de-rosa
atoalhado até sentir um puxão no braço, e então o tempo
voltou a andar e eu vi os rostos cortados por lágrimas e
os cabelos rebeldes e as bocas abertas. Meu pai foi o
primeiro a olhar para mim. Agora eu tinha voltado a
ouvir. O mais alto de tudo eram os soluços e os uivos da
minha mãe.
“O Satti morreu, Ciça”, ela disse, e ficou mais
desesperada ao ter que admitir aquilo em voz alta. Em
um reflexo, me puxou também para o círculo de choro.
Eu sentia minha cabeça esmagada e o cheiro de cigarro
do meu pai e o do creme grudento que minha mãe
colocava na cara, mas aí acontecia uma coisa daquelas e
ela ia envelhecer dez anos em uma única noite. Comecei
a chorar também. Naquele momento, a morte do tio João
— o amigo exótico da família, o tio das balas e chicletes,
a voz indignada no rádio — era para mim uma ideia bem
abstrata, como se ele tivesse saído da política para criar
cavalos, mas ainda vivesse em algum lugar desse mundo
com pelo menos uma estradinha de terra e um aparelho
de telefone.
Meus pais fizeram eu me sentar no sofá. Minha mãe
disse que alguém tinha matado Satti quando ele chegava
em casa. Um dos peitos dela estava quase saindo para
fora do roupão. Ela começou a chorar e gritar de novo,
enquanto Marco tentava colocar no campo de visão dela
um copo de água com açúcar, algo que provavelmente
ele tinha visto em algum programa de tv. Ela chegou a
fazer um breve gesto de agarrar o copo, mas desistiu ou
se esqueceu no meio do caminho. O copo veio a se
espatifar no chão ladrilhado. Ninguém deu bola para os
cacos. Tentando continuar a história do ponto em que
minha mãe havia parado, meu pai se ajoelhou diante do
sofá, mas então foi a vez de ele deixar as frases pela
metade, como se ainda tivesse dúvidas sobre o quanto
uma menina deveria mesmo saber. Em seguida, desistiu
também e jogou-se violentamente no sofá. Ficou estático
na exata posição em que tinha caído, mirando o vazio
com olhos que pareciam dois pequenos charcos.
Foi nesse momento que ele e minha mãe se tornaram
figuras opostas, ela numa espécie de balé psicótico,
girando de um lado para o outro e gritando de um jeito
que nem parecia humano, ele totalmente sem reação,
incapaz de oferecer qualquer conforto, fechado nas
maquinações da própria cabeça. Só despertou desse
estado quando ouviu o telefone tocar.
“Alô? Oi, Werner.”
Então agora era minha mãe quem estava parada e, de
pé ao lado dos cacos, olhava para meu pai como se
alguma notícia boa ainda pudesse sair daquele aparelho.
“Chocados, como todo mundo. Werner? Espera um
pouquinho, vou atender no escritório. Um segundo só.”
Pediu pra minha mãe desligar quando ele pegasse no
outro cômodo. Ela segurou o bocal, mas não trocou nem
uma palavra com o tio Werner. Desligou. Olhou para mim
e para os meus irmãos.
“Acho que é melhor vocês subirem.”
“A gente não pode ficar aqui na sala?”, Marco disse,
com a voz meio arranhada.
Ela fez um carinho na cabeça dele.
“Não, vocês têm que dormir.” Aquela calma repentina
me deixou mais assustada do que o surto de cinco
minutos atrás. “Tem colégio amanhã cedo.”
“Hoje. Será que não dá pra gente não ir no colégio
dessa vez, mãe? Aconteceu uma coisa excepcional”, Vini
disse.
Ela girou lentamente a cabeça e olhou para ele.
Crispou o rosto e deu um sorriso lunático antes de chegar
a uma careta que não era fácil de entender. Não
respondeu. Virou as costas e foi caminhando na direção
do escritório como se não tivesse pressa nenhuma.
Ficamos ali por um tempo, os três, entupidos, fungando,
tremendo de frio. Eram quase três da manhã. O vento
encontrava qualquer frestinha nas portas e janelas e
entrava e corria junto ao piso, balançando levemente as
franjas do sofá.
Vinícius começou a subir as escadas. Fomos atrás dele.
Eu não queria ficar sozinha, com certeza ninguém queria,
mas nenhum de nós disse nada, e calados entramos no
meu quarto e deixamos o abajur ligado e nos cobrimos
com o lençol e os três cobertores de lã sem a menor
intenção de dormir. Era apertado. Eu e Vini dividíamos o
travesseiro. Marco tinha deitado ao contrário, com a
cabeça perto dos nossos pés.
“O que foi que aconteceu?”, perguntei.
“Atiraram no tio João quando ele tava chegando em
casa”, Marco disse. “Aí dois brigadianos ouviram os tiros
e encontraram ele caído e levaram pro hospital. Só que
lá não deu pra fazer mais nada.”
“E daí, pegaram o assassino?”
“Não, ele fugiu.”
“Correndo?”
“De carro.”
Vini olhava pro teto. Uma lágrima escorreu e tocou na
ponta da orelha.
“Vocês acham que o Fred é filho dele mesmo?”, disse.
Marco levantou a cabeça.
“Como assim, meu?”
“Sei lá. Só uma coisa que eu pensei.”
“Tu acha que ele fingiu ser filho por todo esse tempo?”
“Não foi muito tempo.”
“Tá, mesmo assim. O guri tem que ser muito bom ator
pra fingir por dois, três anos que é filho de alguém, e aí a
mulher, a mãe, tava então no esquema também, a
telefonista aquela, o Fred morava antes com ela, parece
até que voltou a morar. E toda essa mentira exatamente
pra quê?”
“Pra roubar alguma coisa do apartamento?”, eu disse,
mas ninguém prestou a mínima atenção.
“Sei lá, Marco, eu já falei que eu não sei. Tô só
levantando as possibilidades.”
“Tá, tá bom, Sherlock Holmes.”
“Tua mãe tava apaixonada pelo Satti”, disse Glória
Andrade quando enfim aceitou me encontrar, em 2001.
“Tu percebeu isso na época?”, perguntou, e eu respondi
que não exatamente, mas que me lembrava muito bem
de ver um dia o âncora de um telejornal mencionar os
presentes que Carmen Matzenbacher tinha oferecido à
vítima apenas algumas semanas antes do crime: um
prato de parede, um cálice, dois burrinhos de barro. Eu
tinha nove anos, disse a Glória Andrade naquele dia,
ninguém me deixava ver nada sobre o caso Satti, e
talvez por isso aquele pedacinho de informação tenha
me parecido tão fascinante e incompreensível, um
enigma a ser desvendado: um prato de parede, um
cálice, dois burrinhos de barro. Por que esses objetos, e
não outros? O que eles queriam dizer?
Acordamos apenas algumas horas depois, eu, Marco e
Vini na minha cama estreita. Havia amanhecido. Olhei
pela janela e o orvalho cobria o pátio dos fundos e
brilhava como uma plantação de pedras preciosas. Saí do
quarto esfregando os olhos. Eu ia demorar algum tempo
até lembrar que havia algo de errado, se não tivesse
visto minha mãe toda de preto e então meu pai também
todo de preto enquanto o telefone tocava sem parar.
Disseram com uma voz calma que era hora de ir para a
escola — as campainhas estridentes dos aparelhos ainda
soando —, e foram falar a mesma coisa aos meninos, que
gemeram e depois entraram em seus respectivos
quartos, obedientes e encolhidos. Em quinze minutos,
estávamos todos de estômago vazio dentro do Monza.
Não parecia haver nada de errado com o carro naquela
manhã, eu pensaria alguns dias mais tarde, como se
bastasse apenas um amassado na lataria, uma mancha
de sangue no estofamento ou algum outro tipo de marca
muito óbvia para incluir aquele Monza na cena do crime.
Além do mais, era o mesmo carro que tínhamos ido
buscar juntos na concessionária três anos antes, que
Marco e Vini aprenderam a dirigir na estância, que
parava quase todos os dias diante da escola com o pisca-
alerta ligado. O mesmo Monza e o mesmo pai. Quando
eu fosse muito mais velha, pensaria nas micropartículas
de pólvora que provavelmente tinham grudado em
nossas roupas naquela manhã de quarta-feira.
No meio do trajeto, que vínhamos fazendo em silêncio,
sem nem mesmo o rádio ligado, minha mãe de repente
pediu que meu pai encostasse o carro. Então escancarou
a porta, deu uns passos baratinados com a mão apoiada
na lataria e parou, um pedaço dela visível pelo vidro
traseiro. Eu olhava para a nuca dele — ainda sentado no
banco do motorista — e para a metade dela, emoldurada
pelo vidro, inclinada para a frente, os cabelos meio
caídos no rosto, tentando vomitar. Um fio espesso
escorreu de sua boca, ficou pendurado e finalmente se
desfez. Meu pai desceu do carro. “Compareceu ao velório
decomposto, com as vestes em desalinho”, escreveriam
mais tarde no jornal. Ele tentou levar a mão até o ombro
da minha mãe, mas ela deu um passo para longe e
começou a chorar.
Quando retomamos o caminho alguns minutos depois,
Marco perguntou se aquilo tudo poderia ter alguma
relação com os sprays que tinham sido proibidos, e meu
pai disse que até poderia, mas era difícil dizer porque “o
Satti já incomodou muita gente para muito além disso”.
“O invejoso quer é ser adorado”, minha mãe começou
a dizer com uma voz que não parecia a sua, “mas como
não tem qualidades, expõe o que lhe resta, que é a
própria mentira de vida.”
“Que é isso?”, Marco perguntou.
Meu pai tinha parado em um semáforo.
“Foi pro Ferrari que ele escreveu isso”, disse, olhando
para minha mãe.
“Eu sei que foi.”
“Por uma besteira.”
“Besteira de qual dos dois?”
“E importa agora?”
O carro recomeçou a andar. Ela se virou para Marco.
“A crônica falada que o Satti apresenta na Rádio
Gaúcha. Esse é um trecho da de anteontem, o título era
‘O invejoso’.”
“O Ferrari ficou fulo da vida, me disse segunda à noite.
Achou infantil ele mandar recado pelo rádio.”
Desde o início daquele ano, minha mãe se tornara
funcionária do deputado Afonso Ferrari, também do pmdb,
naquela estratégia muito antiga de empregar parentes
no gabinete de um colega para suavizar a prática do
nepotismo. O gabinete de Ferrari era contíguo ao de
Satti, e a proximidade cotidiana entre Carmen e o
deputado vinha gerando todo tipo de boataria na
Assembleia. Diziam que ela estava apaixonada e que
escrevia cartas de amor endereçadas ao “Deputado
Ozônio”. Diziam que Raul andava estranho e que fora
visto gritando com Carmen em pelo menos duas
ocasiões. O falatório chegou ao ápice na roda de amigos
e colegas que, na madrugada do dia 7 de junho,
esperava notícias de Satti diante do Hospital de Pronto-
Socorro.
“Mesmo que chova e esteja úmido”, minha mãe disse,
de novo com aquela voz que não era a sua, “o
importante é viver, ver o verde, uma árvore, botar fora o
relógio.”
“Chega, Carmen.”
Aquele também era um texto de Satti.
Durante o velório e o enterro é que meu pai se
descobriria suspeito. Alguns amigos o alertariam.
Naquela manhã — o que parecia um pouco estranho —,
ele não havia ligado a televisão e o rádio e nem sequer
atendido o telefone, mas, antes mesmo de o corpo de
João Carlos Satti percorrer o trajeto entre a Assembleia
Legislativa e o Cemitério da Santa Casa, sob os aplausos
das pessoas que se amontoavam nas calçadas, a polícia
já estava encaixando as primeiras peças do caso. Quatro
testemunhas tinham visto na cena do crime um Monza
cinza-escuro com aerofólio. Paulo Bittencourt, o chefe de
gabinete de Satti, descrevera à polícia os sentimentos da
minha mãe (intensos, um pouco obsessivos, certamente
para além da amizade). Bittencourt, assim como Glória
Andrade, também declararia que Satti vira o carro de
Raul na frente de sua casa alguns dias antes do crime.
No fim daquele mesmo dia, meu pai foi aos estúdios da
Rádio Gaúcha tentar se explicar. Conversou com o
jornalista Pedro Martins. Tenho aqui comigo o arquivo
digital e a transcrição dessa conversa que acabou sendo
usada pela acusação no julgamento porque era
vergonhosamente comprometedora. A entrevista em
questão se tornaria um pesadelo para Arnaldo de Souza
Andrade, futuro advogado do meu pai (Tu nunca devia
ter ido pra frente do microfone naquele estado, Raul).
Seu nervosismo era palpável na voz, e as coisas que
disse soavam uma mistura de discurso político vazio com
a confusão mental de quem sabe que perdeu o controle
da situação.
“Nós vamos trazer ao microfone agora o deputado Raul
Matzenbacher, médico, eleito pelo pmdb, e tido como um
dos melhores amigos de João Carlos Satti, mas que
surpreendentemente aparece também como suspeito.
Boa tarde, deputado.”
“Boa tarde, Martins. Eu estou efetivamente
traumatizado, como acho que estamos todos.
Efetivamente traumatizado por aquilo que abala inclusive
as estruturas da própria cabeça da gente, que não
consegue entender um fato como esse. Ainda na terça
conversamos no telefone em torno de sete horas, sete e
meia da noite. Satti ia jantar no Hotel Plaza São Rafael. E
ainda mexi com ele, né, isso é coisa pra marajá, eu sou
um deputado pobre, não posso ir, mas como o tempo
tava ruim, e eu havia ido a um churrasco na hora do
almoço, desisti desse encontro que teríamos ainda na
terça à noite.”
“Terça à noite o jantar do Satti foi apenas com a Glória
Andrade, ou havia mais alguém?”
“Que eu tenha conhecimento, teria sido apenas com a
Glória. Mas, de tudo isso, Martins, o que deixa, além da
mágoa da perda, né, além da mágoa da separação, é
aquilo que a imprensa do Rio Grande do Sul hoje...”
“Pois é. Ao que se atribui isso, deputado?”
“Martins, eu não saberia ao que atribuir. Essa talvez
seja uma daquelas circunstâncias, talvez da própria
fatalidade, né, que dizem que a política traz mais
dissabores que alegrias, e eu saí do meu consultório,
tinha uma vida tranquila e pacífica, e me elegi não pela
legenda do meu partido, mas exatamente pelo exemplo,
pelo tipo de criatura humana, pelo tipo de pai, pelo tipo
de esposo que sou. E vejo hoje com mágoa, chateado,
essas especulações que fazem, até porque há várias
hipóteses, não há absolutamente nenhuma prova
concreta. E eu teria uma situação muito tranquila,
Martins, vou te dizer, porque na terça à noite estava não
só com minha esposa e meus filhos, mas, por aquelas
fatalidades às vezes quando, se nos preparam coisas
desagradáveis, muitas vezes a gente é beneficiado até
por Deus e até pela sorte, nessa noite, Martins, cheguei
do trabalho e, depois do jantar, saí, comprei cigarros e
voltei pra casa, e recebemos uma visita de um casal de
Caxias do Sul, aqui exatamente na minha casa, então
veja bem, eu tenho a mais absoluta tranquilidade de que
esse fato vai ser esclarecido, a gente tem família, e o
desrespeito que ocorre em afirmações como essas...”
“Agora, deputado Matzenbacher. Com toda a
franqueza, nós nos conhecemos há muito tempo, e o
deputado está na sua posição de deputado, e nós
estamos aqui na posição de jornalistas, então permita
algum aprofundamento.”
“Com todo o prazer, Martins.”
“A especulação não partiu da imprensa. Veja bem, há
dois elementos, deputado Matzenbacher, que permitiram
à imprensa ir em cima. Por exemplo, o chefe de gabinete
do deputado Satti, Paulo Bittencourt, num depoimento
ontem, fez referência ao senhor.”
“Sim.”
“E a sua própria esposa fez referência, entregou uma
arma à polícia.”
“Certo.”
“Então ao que se atribui duas pessoas prestarem
depoimento levantando suspeitas sobre o deputado
Matzenbacher?”
“Exato, Martins, eu realmente não quis atribuir ao
papel da imprensa, não quis responsabilizar em
momento nenhum, porque o papel da imprensa é
informar, sem dúvida. Eu te confesso, isso estarrece a
mim, estarrece a todos. Olha, eu realmente não conheço
o depoimento que foi prestado, e teria dificuldade de
avaliar. As circunstâncias e a soma de pequenos fatores
acarretam um tipo de raciocínio às vezes um pouco
apressado e que pode levar a injustiças sem o mínimo
indício, me ligar ao crime que tirou a vida de quem eu
considerava se não o meu melhor amigo, Martins,
alguém entre os cinco dedos da minha mão.”
“E essa arma que a dona Carmen entregou à polícia,
uma arma de cano duplo calibre .12, era sua?”
“Exato. Martins, eu sou, como é tradicional na região
da campanha, um caçador. A partir do momento que
entrei na política, deixei de caçar, até pelos
compromissos do dia a dia.”
“Muito bem, deputado, nós estamos aqui na Rádio
Gaúcha fazendo essa longa entrevista com o senhor, até
mesmo deixando de lado os espaços comerciais e
abrindo uma grande janela dentro do Gaúcha Repórter,
que foi o programa que teve como seu primeiro
apresentador o João Carlos Satti, esse foi sempre o
programa do Satti. Nosso tempo está acabando, mas eu
gostaria de fazer uma última pergunta.”
“Sim, Martins.”
“Onde foi que o senhor comprou cigarro na terça à
noite?”
“Cigarro aqui tem um, tem aqui na, conhece a, não
seria Euclides, é, perto do colégio ipa.”
“Perto do ipa.”
“Perto do ipa aqui tem um bar Figueroa, se não me
engano.”
“Fica a quantos metros da sua casa?”
“É um posto de gasolina, eu não saberia te dizer
quantos metros, fica a algumas quadras de casa.”
“Poucas quadras?”
“É, fica a seis, sete, oito quadras.”
“Seis, sete, oito quadras.”
Alberto e Estela Sartori, no dia 7 de junho, desceram a
serra porque queriam ouvir uma orquestra tocar os
réquiens de Mozart. O dia em Caxias do Sul havia
amanhecido abaixo de zero, de maneira que, às oito da
manhã, as casas ao longo da sinuosa br-116 ainda
pareciam cobertas por vidro moído. Alberto era dono de
uma pequena fábrica de móveis — passando aos trancos
pelas crises econômicas do país —, e Estela tinha parado
de lecionar matemática para cuidar das crianças. A cada
três ou quatro meses, os Sartori desciam até Porto
Alegre, comiam bacalhau no Gambrinus, compravam
presentinhos para os filhos, assistiam a um concerto,
visitavam algum amigo e, por fim, chegavam cansados
ao hotel Everest, onde sempre pediam um quarto no
andar mais alto possível. Voltavam para casa no dia
seguinte.
Naquele 7 de junho, Alberto e Estela seguiram sua
programação usual. Ao chegarem na frente do teatro da
Ospa, no entanto, foram informados de que o concerto
havia sido cancelado. “Tudo começou porque a Varig
danificou um violino”, Estela Sartori contaria por telefone
ao Correio do Povo três dias depois, “e então o violinista
convidado, que estava vindo do Rio de Janeiro, não
poderia tocar. Foi assim que acabamos fazendo uma
visita aos Matzenbacher.”
Não queriam perder a noite. Primeiro pegaram um táxi
até a nova casa de um amigo de Alberto. Tocaram a
campainha e ninguém abriu. As luzes deviam estar
acesas para disfarçar — Porto Alegre anda tão perigosa,
Estela comentou com o marido —, então os dois andaram
até a esquina, depois até a outra esquina, tentando
entender exatamente onde estavam. “Olha, isso aqui é
perto da Carmen e do Raul”, Alberto disse com
convicção, e caminharam por dois quarteirões e tocaram
em nossa campainha, não porque morriam de vontade
de visitar meus pais, mas porque se sentiam enredados
nas ruas da Bela Vista, com uma chance mínima de
encontrarem um táxi. Eram 21h15 quando entraram na
casa da praça Horizonte, e sobre isso todos concordariam
mais tarde.
Minha mãe e Estela haviam sido muito amigas durante
a adolescência, mas nas últimas décadas mantinham um
contato apenas esporádico (Lembra da tia Estela, Ciça, e
do tio Alberto? Eles vieram na minha festa de aniversário
uns anos atrás). Naquela noite, ela ficou surpresa com a
aparição repentina do casal Sartori, mas não pareceu
contrariada, exceto pelo fato de que não estava
exatamente apresentável com seu chambre rosa e suas
pantufas de pelego (ao menos ainda não tirara a
maquiagem). Sentaram-se os três na sala para conversar.
Meu pai tinha saído por volta das nove horas e eu não
sabia onde ele estava, ou melhor, onde ele teria dito
para minha mãe que estaria. Diante dos visitantes, ela se
limitou a comentar: “O Raul deu uma saída. Acho que
não demora”.
Subi logo depois de eles terem chegado. Passei diante
da porta do Vini e escutei a música, alta como todas as
vezes em que o pai não estava em casa. Entrei no meu
quarto e abri apenas uma fresta da janela, bem estreita,
deixando de fazer o que eu sempre fazia, que era
escancarar o vidro e subir na cadeira para ouvir melhor.
Aquela era uma noite tão fria quanto as páginas 100 e
101 d’O naturalista amador (um coelho branco com as
patas afundadas na neve, uma coruja branca de olhos
amarelos que parecia preparada para qualquer coisa).
Fiquei lendo uma versão infantojuvenil de Os três
mosqueteiros enquanto ouvia alguma música, mas sem
poder distinguir qual música. Ainda assim, achava aquele
som vago reconfortante, vá saber por quê.
Como ninguém tinha me colocado para dormir, li até
depois das dez, sendo esse meu horário oficial de ir para
a cama. De acordo com os depoimentos de minha mãe e
Alberto à polícia, meu pai chegou em casa às 22h15. De
acordo com o depoimento de Estela, eram 22h25. Ele
entrou, se deparou com o casal de Caxias,
cumprimentou-os, ouviu Estela contar sobre o violino
quebrado, depois, alegando extremo cansaço e uma dor
de cabeça, pediu desculpas e foi se recolher.
A polícia iria estimar o horário dos disparos como tendo
ocorrido entre 22h15 e 22h20, isso segundo o
depoimento de pelo menos oito pessoas. Nossa casa
ficava a cerca de três quilômetros do apartamento de
Satti, uma distância que poderia ser percorrida de carro
em no máximo cinco minutos em uma noite de pouco
movimento. A pequena diferença, portanto, entre o
horário estimado por Estela e o estimado por Alberto
mudava tudo: era a diferença entre ser possível ou não
ser possível colocar meu pai na cena do crime.
O problema era que eu sabia exatamente a que horas
ele tinha chegado. Não foi uma coisa muito simples de
acontecer com uma menina de nove anos. Claro que
ninguém ia me perguntar nada sobre isso, nem naquela
semana, nem depois. Eu soube por causa do toca-discos
e do motor do Monza. O carro sempre ficava estacionado
entre a casa e o muro. Toda vez que chegava, o som
ricocheteava naquele corredor de cimento e lajotas
hexagonais e então subia. Na noite de 7 de junho,
Vinícius desligou a música assim que ouviu o motor. Eu
queria saber quanto tempo havia passado da minha hora
de dormir, e lembro de estar feliz, feliz em ter ficado
acordada lendo por um tempo que me pareceu enorme,
a adrenalina da aventura de capa e espada misturada
com a da minha pequena desobediência. Olhei para o
rádio-relógio. Eram 22h27. Levantei e fui até a janela. Vi
a frente escura do carro lá embaixo. Fechei a fresta e
apaguei o abajur.
Eu quis, de propósito, desconfiar da minha própria
memória depois, mas isso não durou muito, eu tinha
certeza dos números, a trinca de dois e o sete final
pareciam impressos na minha retina, então fiquei por um
tempo achando que o casal Sartori estava simplesmente
vivendo sem prestar atenção nos relógios a sua volta,
como a maioria das pessoas vive, não tendo a mínima
ideia de que treze minutos, ou três, podem fazer toda a
diferença.
De todo modo, eu sabia o que ninguém sabia, ou talvez
o que ninguém quis contar: meu pai tinha chegado em
casa exatamente às 22h27.
Quando ele contratou o advogado criminalista mais
famoso do Rio Grande do Sul para defendê-lo, seu álibi
da noite do crime foi tão polido quanto possível: o
deputado Matzenbacher havia saído de casa para
comprar uma carteira de cigarros no Posto Figueroa e,
ato contínuo, decidira dar uma volta de carro “para
espairecer”, passando pelas principais vias da cidade e
por um terreno que adquirira não muito longe de onde
morávamos. Ao voltar para casa, encontrara na sala um
casal respeitável de Caxias do Sul, que confirmava seu
horário de chegada (22h15 segundo Alberto, 22h25
segundo Estela, mas, como era de se esperar, o
depoimento do homem teria mais valor do que o da
mulher).
Na famosa entrevista à Rádio Gaúcha, meu pai não
menciona o passeio de carro, mas apenas os cigarros
(Nessa noite, Martins, eu cheguei do trabalho e, depois
do jantar, saí, comprei cigarros e voltei pra casa).
Com o passar dos anos, eu acharia cada vez mais
risível esse detalhe dos cigarros, como se meu pai
tivesse pensado nisso como um deboche sofisticado e
proposital. Isso porque “sair para comprar cigarros” era
uma frase que, no imaginário comum, inaugurava um
desaparecimento repentino; alguém saía de casa só com
a roupa do corpo dizendo que já voltava, e então punha
em marcha um plano traçado com muito rigor, indo para
longe sem nunca mais dar nenhum sinal à família. De tão
usado em livros, filmes e possivelmente em situações
reais, esse ato de sair para comprar cigarros ficara tão
batido a ponto de ter virado uma espécie de piada sobre
o desejo muito humano de deixar a própria vida para
trás. Meu pai, no entanto, tinha invertido a ideia. Ele não
almejava um rompimento com a família. Não sentia
nenhuma vontade de desaparecer. Quem precisava sumir
na verdade era o Outro, a grande ameaça ao seu núcleo
familiar.
Naquele dia, tio Werner nos buscou no colégio
enquanto um médico amigo do meu pai ia à nossa casa e
dava à minha mãe uma mistura de Valium e Equilid
capaz de derrubar um cavalo. No Palácio da Polícia,
alguém desenhava um retrato falado do provável
assassino conforme o depoimento de Restinga, o
flanelinha. O resultado seria um homem branco de meia-
idade usando um boné, um desenho baseado em alguns
segundos da memória de um menino de doze anos que,
embora pouco conclusivo, estaria na capa da Zero Hora
do dia seguinte. Quando eu o visse, ficaria bem
impressionada, achando que aquele retrato lembrava em
muito o meu pai (não tem nada a ver com ele, Ciça, diria
Marco, arrancando o jornal da minha mão).
Meu pai ia dirigir até o número 386 da rua Tauphick
Saadi. Era a casa de Paulo Bittencourt. Ele esperaria
dentro do Monza até que Paulo voltasse de seu primeiro
depoimento à polícia, e então ia descer do carro de
supetão e dizer ao jovem assessor apavorado: Eu só
quero saber o que tu falou, só isso! Por algum motivo,
meu pai ainda estaria na Tauphick Saadi quinze minutos
depois de Paulo fechar o portão na cara dele, quando
nada menos do que seis viaturas da Brigada Militar
surgissem na rua, e um sargento tomasse a iniciativa de
ir até a janela do Monza, visivelmente constrangido com
o aparato todo: Acho melhor o senhor ir embora agora,
deputado, senão vai causar um problema aqui pra gente.
Pode ser?
Paulo Bittencourt tinha todas as razões do mundo para
ter entrado em pânico. Para ele, o Monza cinza-escuro
devia ter se transformado em um sinal malévolo, uma
espécie de prenúncio da morte. Três dias antes do crime,
o próprio Satti lhe contara que tinha visto o carro de
Matzenbacher parado na frente do edifício. O episódio
ocorrera logo depois de um jantar na Churrascaria
Barranco, no qual os dois deputados estavam com um
grupo de políticos e jornalistas. Todos diriam que Raul
Matzenbacher parecia estranho naquela noite. Aéreo,
cabisbaixo. Pouco falou. Em determinado momento,
ainda com o prato quase cheio, se levantou e pediu para
usar o telefone do restaurante. Voltou em seguida, vestiu
o casaco e saiu com pressa, alegando que um dos filhos
estava meio adoentado. E no entanto, menos de duas
horas mais tarde, Matzenbacher estava parado na
Quintino Bocaiuva dentro de seu Monza cinza. Quando
Satti o reconheceu e atravessou a rua na direção do
carro, Raul simplesmente acelerou e foi embora.
Paulo Bittencourt contara à polícia sobre esse episódio,
e também sobre o caso da bolsa da minha mãe. Àquela
altura, ele tinha convicção de que meu pai havia matado
Satti, e diria a quem quisesse ouvir, por muitos anos a
fio, que até podia entender os motivos de Raul, mas o
que lhe parecia de fato indecifrável era a atitude de
Carmen (O Raul pode ter decidido, decidido mesmo, em
alguns segundos. É rápido matar. Mas a Carmen, a cada
hora, dia, mês, decidiu continuar com esse homem. Por
quê? Quando finalmente foi embora, deixou as crianças
pra trás. Ô mulherzinha!).
O episódio da bolsa ocorrera um dia antes do jantar no
Barranco. Era uma quinta-feira, hora do almoço. Minha
mãe procurou o chefe de segurança da Assembleia
Legislativa para comunicar um furto. Sua bolsa ficara
durante toda a manhã pendurada em um cabideiro no
gabinete do deputado Ferrari. Carmen foi almoçar apenas
com a carteira. Quando voltou, a bolsa havia
desaparecido. O boato que rapidamente começou a
circular pelos corredores da Assembleia era que a tal
bolsa continha cartas de amor endereçadas ao
“Deputado Ozônio” e que Raul tinha dado um jeito de
pegá-la. Mas ninguém nunca viu essas supostas cartas, e
minha mãe sempre negou que tivessem sequer existido.
Ao sair da rua Tauphick Saadi no dia seguinte ao do
assassinato de Satti, meu pai continuou na sua rota de
más ideias que culminaria com a entrevista no rádio no
final da tarde. Não tinha se dado conta de que, diante da
gravidade da situação, o melhor que podia fazer era ficar
quieto. Dirigiu para a casa de Afonso Ferrari — Que mal-
entendido terrível, Raul, entra! — e, de lá, telefonou ao
Palácio Piratini. Naquele momento, o governador estava
conversando a portas fechadas justamente com os dois
delegados que iriam conduzir o caso Satti. Não sabia
como lidar com aquilo que parecia estar se
transformando em um escândalo fratricida; ele mesmo
tinha convencido tanto Matzenbacher quanto Satti a se
filiarem ao pmdb. Aquilo tudo era péssimo para o partido e
péssimo para o processo de redemocratização. No
telefone, o governador disse que mandaria os delegados
à casa de Ferrari colherem um depoimento informal.
Antes que os dois chegassem, meu pai ligou para o casal
Sartori e os alertou de que seriam procurados pela
polícia. É impossível saber o que discutiram. Talvez
Alberto já acreditasse que Raul chegara em casa às
22h15. Talvez tenha sido convencido disso naquela
ligação.
Marco, Vinícius e eu ficamos na casa do tio Werner
durante boa parte da tarde, assistindo aos filmes que
eles tinham alugado para a gente — De volta para o
futuro e Quero ser grande — enquanto comíamos fatias
descomunais de bolo de chocolate. Tia Eliane estava com
minha mãe na casa da praça Horizonte. Por volta das seis
da tarde, dois policiais estacionaram diante da caixa-
d’água alienígena, a torre da Rapunzel, o castelo que o
Robin Hood sempre atacava, o monumento a um general
sem importância, e então atravessaram a rua e bateram
na porta da nossa casa (Boa tarde, precisamos fazer
umas perguntas pra dona Carmen, a gente pode
entrar?). Ela se sentou na poltrona, ainda zonza de
Valium e Equilid, usando o roupão cor-de-rosa, e um dos
policiais teve que desviar o olhar para não ver mais do
que gostaria. Não, ela não sabia por que o marido tinha
passado tanto tempo fora de casa na véspera. Às vezes
ele gostava de ficar sozinho. Era um traço das pessoas
que tinham sido criadas na campanha. Sentiam falta da
vastidão, do espaço aberto, o que sem dúvida não era o
caso dela. Para ela, o campo tinha assim uma coisa de
tristeza, de mundo sem saída, porque era a mesma coisa
ir reto, ir para um lado, ir para o outro ou então voltar
para trás. Mas, em uma relação, as diferenças acabavam
se acomodando, isso desde o iniciozinho, quando eles se
conheceram, imagina só, ela tinha sido princesa da Festa
da Uva de 1965. Claro que o casamento era, é, feliz.
Claro que o Satti é, era, um grande amigo da família.
Trabalhavam os três muito próximos. Armas? O Raul tem,
sim, todas registradas, a maioria na estância em São
Gabriel, porque ele caça, já nasceu caçando. Mas hoje
cedo fui até o quartinho dos fundos e vi uma espingarda
de cano duplo. Posso ir lá pegar para vocês. Posso? Já
volto.
“Marco, teu rosto, que ...”
“Eu sei, né.”
Me levantei do banco. Era a segunda manhã na escola
depois do crime.
“Tá doendo?”
“Não toca, Cecília. Um pouco.”
A pálpebra esquerda estava inchada e mal dava para
ver o olho lá dentro. O lábio tinha duas crostas de sangue
seco, e a roupa, um monte de manchas alaranjadas que
eu podia apostar que eram do campinho de futebol.
Parecia que ele tinha sido arrastado na terra. Tocou o
lábio, como se estivesse medindo o tamanho do estrago.
Até onde eu sabia, Marco nunca tinha brigado com
ninguém.
“Eu também bati.”
Era a hora do recreio, e eu estava no pátio com a
Adriana, minha única amiga do colégio. Ela olhou bem
para ele, não assustada como eu, mas com uma
curiosidade meio mórbida.
“Deixei ele com a boca sangrando”, Marco
acrescentou.
“Ele quem?”
“O Mathias Almeida, conhece?”
“Ele faz judô com o meu irmão na Sogipa. É bem maior
que tu.”
“E daí?”
“Daí nada. Vou lá comprar um chocolate, Ciça.”
Adriana se levantou, e Marco se sentou no lugar dela.
Tocou na pálpebra esquerda, depois deu uma fungada.
Parecia meio perdido, olhando as crianças e os
adolescentes no pátio como se nunca os tivesse visto
antes. Enquanto isso, eu olhava para Marco e pensava
que era bem esquisito ele estar ali, uma vez que falar
com a irmã menor no recreio podia ser considerada uma
das maiores derrotas na grande lista das derrotas
escolares. Até agora, o saldo era brutal: naqueles quinze
minutos de intervalo, ele já tinha tomado um soco na
cara, rolado no campinho até ficar com a roupa laranja e
vá saber o que mais. Agora podia ser ainda mais
humilhado por estar conversando com a irmãzinha.
“Que foi que houve?”, perguntei.
“Briguei com o Mathias.”
“Isso eu já sei, mas por quê? Tu foi na direção?”
“Jura. Esquece, Ciça.”
“Eles devem ter uma pomada”, eu disse, chegando
mais perto do olho. “Será que vai ter que costurar?”
“Nah, nem tá sangrando mais.”
“Mas quem é que começou?”
“Quem começou a falar ou quem começou a bater? A
gente tava jogando futebol, o Mathias disse um troço pra
mim. E aí eu fui pra cima dele.”
“Era um troço sobre o pai, por acaso?”
“Como é que tu sabe?”
“Sei lá, só imaginei.”
Os jornais que os pais dos nossos colegas folhearam
durante o café da manhã naquele dia traziam dúzias de
manchetes sobre o que a imprensa e a polícia já estavam
chamando de caso Satti. Muitas delas estampavam o
nome do meu pai: Matzenbacher se defende como
suspeito: “É um engano”; Matzenbacher: “Satti me
convidou para jantar no sábado. Não fui”; Matzenbacher
procura chefe de gabinete de Satti (que se assusta e
chama polícia).
“Tu acha que as coisas vão voltar ao normal?”, Marco
perguntou.
“Não sei, tu acha?”
Ele deu de ombros.
“Eu gostava bem mais quando o pai era só médico.”
Sorrimos pela primeira vez naquele recreio.
Adriana não voltou para o nosso banco, e logo o sinal
começou a tocar e Marco se levantou como um boneco
que salta de uma caixa. “Até depois”, disse, e eu tive a
impressão de que o olho esquerdo dele parecia mais
fechado do que antes, espremido no meio de um inchaço
avermelhado que não era a coisa mais bonita de ver. Ele
virou as costas e foi embora. Eu fui andando para o outro
lado, na direção da minha sala. O pátio estava quase
vazio a essa altura, mas uma pessoa continuava sentada
no asfalto, com as costas no muro branquíssimo, os fones
de ouvido em meio a uma cabeleira que ele podia jurar
que era igual ao do tecladista do Depeche Mode. Eu
acenei. Mas Vini não estava prestando a mínima atenção.
Naquela manhã, meu pai devia estar preocupado com
as manchetes e com todo o burburinho que se espalhava
rapidamente pelas altas camadas da sociedade porto-
alegrense, mas, antes das dez, recebeu a notícia —
vazada por alguém — de que a polícia não havia
encontrado traços de pólvora na espingarda apreendida
na véspera. Foi um alívio, só que não durou quase nada.
Às 10h15, a diretora da nossa escola ligou para ele para
contar que Marco havia brigado durante o recreio. A
história não parava aí. Ao voltar para a sala, ele tentara
jogar um apagador em outro colega e avançara aos
berros em um terceiro menino. Agora estava ali na frente
dela se negando a dizer qualquer coisa. Pelo menos tinha
aceitado a bolsa de gelo.
Então uma assistente da diretora bateu na sala da
quarta série turma C e disse meu nome bem alto e pediu
que eu recolhesse as minhas coisas. Todo mundo ficou
me olhando enquanto eu colocava o lápis e a borracha
de volta no estojo, depois o estojo na mochila, depois os
cadernos. Eu, Vini e Marco fomos levados por essa
mulher mascando chiclete até o portão principal da
escola, onde meu pai já nos esperava. Aquele seria, ao
menos por algumas semanas, nosso último dia de aula.
“Tu tem medo de intimidade”, me disse uma vez uma
psicóloga, e eu não tinha dúvida de que ela estava certa,
mas eu achava que alguém me apontando o que eu fazia
de errado não ajudava em grande coisa. Isso foi ainda
em Porto Alegre. Eu tinha dezoito anos e preferia mil
vezes passar a noite fazendo desenhos científicos de
gramíneas do pampa a sair e conhecer quem quer que
fosse. A ideia de conhecer me era incômoda, assim como
a ideia de ir a algum lugar. Ou pelo menos os lugares que
as pessoas frequentavam. Eu tinha essa ideia de manter
a noite de Porto Alegre bem longe de mim.
Às vezes eu até saía com algum aluno da biologia, da
letras, da filosofia, das ciências sociais, caras aleatórios
que eu tinha conhecido nos cantos do Campus do Vale
fumando maconha. Um deles expelia fumaça na cara dos
cães sarnentos e era acometido por ataques de riso.
Outro só usava roupas pretas e andava para cima e para
baixo com um livro do Augusto dos Anjos todo
sublinhado. Ainda outro assistia às aulas de ética I com
uma faca bowie na cintura. Eram desajustados e
inseguros, mas em um aspecto se comportavam como
qualquer guri de dezoito anos: fariam qualquer coisa pela
chance de comer alguém.
Esses caras normalmente não tinham carro, então eu
pegava o Corsa vermelho que dividia com Vini naquele
tempo e ia buscá-los em apartamentos no Lindoia, em
Petrópolis, no Menino Deus. Quando estávamos quase
chegando nos bares da Cidade Baixa, eu olhava para o
lado como se não estivesse pensando nisso desde o
princípio e dizia: Acho que eu tenho uma ideia melhor.
Então pegava a direção da Zona Sul e logo ia costeando
as águas escuras do Guaíba, vendo de longe uma
fogueira de um morador de rua ou uma agitação
estranha na vegetação ribeirinha enquanto abria a calça
do guri esquisito da vez. Eles nunca se opunham aos
meus itinerários. Eu entrava nas ruazinhas circulares da
Vila Conceição, depois descia até a praia do Cachimbo.
Parava o Corsa naquilo que era uma rua sem saída — a
água era o fim — e tirava a calça do cara e subia em
cima dele com minha saia de hippie e puxava a calcinha
para o lado.
Misturado ao vazio que eu sentia ao me sentar de volta
no banco do motorista, vinha uma espécie de
compreensão do risco que corríamos só de estar ali. Era
um lugar deserto, quase sem iluminação pública, onde
havia apenas duas casas com um terreno baldio entre
elas. Então eu ligava de novo o carro, deixando para trás
aquele aglomerado de despachos na faixa mirrada de
areia, sonhos de fama, amor e dinheiro que tinham todos
cheiro de carniça. Íamos beber cerveja em um bar de
Ipanema. Eu gostava daqueles encontros invertidos.
Começavam pelo sexo, terminavam no bar. A inversão
era também geográfica: eu queria passar longe daquele
mapa da noite de 7 de junho de 1988. Em Ipanema, era
como se eu estivesse em outra cidade. Até o ar que
entrava pelas janelas do bar enquanto jogávamos sinuca
era outro, uma simulação de brisa marinha que permitia
mergulhar na fantasia de que estávamos longe, pelo
menos algumas centenas de quilômetros, em um
balneário fora de estação esquecido por todos.
Levei três meses para dizer à tal psicóloga que eu era
filha do ex-deputado Raul Matzenbacher. Meu esforço em
não contar, no entanto, mais o nome da minha mãe na
folha do cheque, deve ter deixado tudo óbvio desde o
início. Claro que isso só fez com que eu me sentisse
totalmente envergonhada e, quando enfim falei “Tu deve
lembrar do caso Satti”, ela ficou com a cara mais séria do
que já estava e emendou de pronto: “Cecília, tu precisa
trabalhar teu trauma”. Em mais duas semanas, eu disse
para minha mãe que não estava gostando de fazer
terapia. Naquela época, ela já não morava na casa da
praça Horizonte. Tinha alugado um apartamento de dois
quartos, que encheu com plantas compradas de uma só
vez. Todas as superfícies de todos os móveis estavam
tomadas de vasos. Havia outros no chão também, em
cantos onde nenhuma claridade chegava.
Aparentemente, abarrotar o apartamento de plantas era
parte do projeto da sua “nova vida”. Mas todas aquelas
azaleias, begônias, costelas-de-adão, espadas-de-são-
jorge, a despeito de empregarem suas melhores táticas
de sobrevivência na escassez de luz, água e adubação
regular, acabaram definhando em ritmos diversos (Tu
acha que essa aqui tá bem?, ela me disse em uma visita,
me mostrando uma buganvília raquítica com uma única
folha na ponta de um galho).
“Se tu quer sair da psicóloga, sai, Cecília. Não foi tu
que quis experimentar? Não adianta, as soluções tão
dentro da gente. Essas pessoas só querem o nosso
dinheiro.”
Na minha última consulta, eu disse que, quanto mais
eu me conhecia, menos gostava de mim, e ela descruzou
as pernas e inclinou o corpo para a frente e disse que era
por isso que eu tinha que ficar. Eu me levantei, bati sem
querer na mesinha com a caixa de lenço de papel e
respondi “Não, é exatamente por isso que eu tenho que
ir”. Deixei na sala de espera o cheque preenchido e
assinado pela minha mãe, bati a porta do consultório e
desci as escadas de incêndio, temporariamente aliviada
em estar de novo no bafo gosmento de dezembro.
Nada é mais difícil do que quebrar um padrão.
Em Miami, continuei saindo eventualmente com alguns
caras, mas eu sumia toda vez que chegávamos àquele
ponto em que se tornava obrigatório dividir histórias
íntimas. Preferia isso a ter que mentir. Não dizer nada
não era uma opção. As pessoas não estão interessadas
em folhas em branco. Querem saber do seu passado para
tentar prever o futuro. Eu não as condeno.
Acabei me apaixonando por um guia turístico em
Sedona. Disse para mim mesma que, daquela vez, teria
que ser diferente. Eu queria saber mais sobre ele.
Infelizmente, essa era uma via de mão dupla. Em um
sábado de outubro, fomos ver os tons dourados e
sanguíneos do cânion do riacho Oak. Eu o convidei para
jantar na minha casa depois. Talvez eu tenha feito muito
mistério — “Preciso te mostrar uma coisa lá”, disse,
enquanto pisava nas pedras certas para atravessar o
riacho —, mas é difícil contar de modo casual que seu pai
matou uma pessoa com dois tiros de espingarda quase à
queima-roupa.
Deve ter pensado que seria uma surpresa agradável.
Depois do jantar, eu disse “já volto”, entrei no meu
quarto e peguei uma das minhas caixas. Na sala, fui
colocando uma dúzia de recortes de jornal sobre a mesa,
e ele me olhava e depois olhava para os jornais
amarelados da década de oitenta, claramente sem
entender muita coisa. Não conseguia ler as manchetes
nem os textos em português, por isso foi criando uma
narrativa baseada nas fotografias. As espingardas em
uma mesa. A fachada de um edifício. Um close em
alguns cartuchos. Naquele ponto, me segurei para não rir
de nervosa, pensando que ele estava quase fechando o
enigma, que faltava apenas a pessoa para a trinca estar
completa (Coronel Mostarda na sala de jogos com o
candelabro), e foi com isso em mente que apontei para a
imagem de um homem de terno, discursando em uma
tribuna, e disse “Esse é o meu pai”. Quando tive
coragem de erguer os olhos para encarar a pessoa que
estava ali, a pessoa que eu queria tanto conhecer
melhor, eu a ouvi dizer com uma voz quase sussurrada:
“Meu deus, Cecília, o seu pai foi assassinado”.
Não era nem sequer uma pergunta.
Eu disse: “Sim, eu tinha nove anos”.
E contei toda a história com os papéis invertidos.
Não ficamos juntos o suficiente para que eu quisesse —
ou precisasse — admitir que tinha distorcido toda a
narrativa. Quando conheci o Jesse, a cena dos
fragmentos de jornal sobre a mesa foi reencenada. Mais
uma vez, lá estava a arma, o local, o carro, o caixão, um
punhado de homens de meia-idade. “Esse é meu pai”, eu
disse, apontando a mesma fotografia.
“O que ele fez?”
E, pela primeira vez, eu contei.
Dois dias antes de Jesse chegar da sua turnê pelo Meio-
Oeste e dois dias depois de eu sair com Kristen, tenho
uma tarde de folga. Faço exercícios, saio para correr,
depois me atiro no sofá da sala. Troco mensagens com
Marco, que me manda fotos da minha nova sobrinha e
conta que nosso pai começou sessões com um
fisioterapeuta e uma fonoaudióloga. Ambos disseram que
a família deve se preparar para avanços lentos, ou talvez
para nenhum avanço. Nosso assunto acaba logo. Ele não
me pede para ir ao Brasil.
Por algum motivo, depois ligo a tv e digito o nome de
Jesse no YouTube. Então fico assistindo por mais de uma
hora a entrevistas, fragmentos de shows mal gravados
com câmeras de celular e versões acústicas de suas
músicas feitas para canais independentes. Não sei
exatamente o que estou procurando, talvez a paixão que
Jesse tem pelo que faz, talvez a minha paixão pela
paixão dele, mas o fato é que aquela sequência de
vídeos me leva a um estado tranquilo e otimista. Quando
ele voltar, vamos retomar nossa conversa sobre filhos.
Talvez eu conte o que aconteceu com Kristen, e sinto
agora que ele vai entender.
Uma série de mensagens da minha mãe interrompe o
momento em que Jesse diz a um entrevistador que
“Estranged”, do Guns N’Roses, ainda é uma das coisas
mais sinceras que ele já ouviu em toda a vida. Jesse
parece visivelmente constrangido por ter saído do seu
universo de referências de 1968 a 1972.
Oi, Cecília. Tudo bem?
Tá difícil falar contigo.
Tenho notícias do teu pai pelo Marco e pelo Vinícius. Tu
não vai vir pra cá? E dizem que filha mulher é
diferente…
Comigo vai tudo bem, MUITO BEM!!!
A vida é um presente que temos que cuidar com afeto.
Ando muito otimista com o futuro do país. Ontem fui a
uma manifestação de apoio ao Bolsonaro para
presidente. Saí com a alma lavada!!!
Ela enviou duas fotos. Na primeira, há um mar de
pessoas vestidas de verde e amarelo, algumas sacudindo
bandeiras do Brasil ao redor de um carro de som que
ostenta na lateral uma faixa escrita em spray com uma
letra horrorosa: O Brasil não aceitará fraude. Na segunda,
minha mãe aparece de corpo inteiro, tênis branco de
corrida, calça jeans justa, camiseta amarela (Meu partido
é o Brasil). Usa enormes brincos de argola e tem mechas
claras em um cabelo perfeitamente liso.
Foi em uma dessas clássicas incursões masoquistas
pelo Facebook alguns meses atrás que vi as fotografias
mais recentes da minha mãe. Parecia a mesma mulher
dos nossos últimos encontros em Cancún, Miami e Los
Angeles, trabalhada por botox e ácido hialurônico até que
se tornasse um balão sorridente de carne rosada.
Rolando essas imagens recentes e uma série de
mensagens motivacionais (Dê risada de tudo, de si
mesmo, não economize alegrias), que pelo jeito ela
escrevia todas as manhãs, me deparei com uma velha
fotografia tirada na praça Horizonte. Meu primeiro
pensamento: aquela imagem não estava na minha
coleção. Meu segundo pensamento: claro que não
estaria, já que era muito anterior ao caso Satti, talvez de
1982 ou 1983, e eu nunca tinha realmente me
interessado em recuperar os pedaços da minha primeira
infância. Na foto, eu e meus irmãos aparecemos diante
de um escorregador, rodeados pelas árvores mirradas da
praça. Estou sentada na caixa de areia, olhando para um
baldinho vermelho que tenho entre as pernas (Cresceram
muito rápido… amo vocês!!! Família é tudo!). No mesmo
dia em que postou essa foto de seus três filhos, minha
mãe também compartilhou um meme. Dizia: “Todo
bandido merece uma segunda chance. Se não morreu no
primeiro disparo, atire de novo”.
Na manhã seguinte, eu e Greg deixamos para trás o
chaparral dos arredores de Los Angeles — Adenostoma
fasciculatum, Heteromeles arbutifolia e outras coisinhas
inflamáveis — e entramos no deserto de Mojave. Há
cidades aqui, cravadas arbitrariamente no meio da areia.
Palmdale. Lancaster. Rosamond. Com pizzarias e
shoppings e salões de beleza e palmeiras trazidas de
longe. A cidade acaba de uma hora para outra. O deserto
volta. Então às vezes uma cerca baixa de arame, só uma
cerca separando o vazio do vazio, corre junto à estrada
por um tempo e faz você pensar em quem comprou essa
terra e por quê. Devem saber que, qualquer dia desses, a
cidade vai acabar vencendo o deserto. Podem esperar
por isso. Vão esperar.
Estamos aqui por causa de um leão.
“Espero que o tiro não tenha pegado na cabeça”, Greg
diz.
“O Andrew devia ter perguntado.”
“Exato! Por que ele não perguntou? Eles acham que a
gente faz milagre.”
Estamos quase chegando ao abrigo. Greg dobra à
esquerda em um cruzamento sem ninguém. Os traços
esporádicos de presença humana — caixas de correio,
lixeiras, cercas — já parecem restos de civilização a
serem descobertos e catalogados por uma arqueologia
futura.
“E você e o Jesse, como tão?”
“Ah, a gente não tem se falado muito. Ele vai chegar
amanhã. Olha só, deixa eu te contar.”
“Que foi?”
“Eu transei com uma mulher.”
Começo a rir.
“Você o quê?”
“Dá pra acreditar que a caixa do Trader Joe’s flertou
comigo?”
“Desde quando você é bi, Cecília?”
“Eu não sou nada, eu... quer saber, foi bem bom.”
Pego o celular na bolsa.
“Ela quer me ver de novo.”
“Claro que quer.”
Raios de reprovação saem dos olhos dele.
Quando chegamos ao abrigo, a fundadora está nos
esperando sob o sol vigoroso das dez da manhã:
cinquenta anos, loira, boca pequena, a camiseta tem sua
imagem segurando um filhote de tigre no colo. Está
arrasada com o incidente, ela diz enquanto pegamos
nossos instrumentos de trabalho. Bishop sempre foi um
bom leão — eu quase rio da domesticidade contida na
ideia de bom leão —, ela não consegue entender o que
aconteceu, mas está certa, isso sim, de que Juan não
teve outra escolha. A mulher vira a cabeça e eu sigo o
olhar dela. A uns dez metros de nós, um homem com um
chapéu de caubói cor de baunilha anda pelas sombras de
um galpão. “Onde os tiros pegaram?”, Greg pergunta de
repente, e ela demora um pouco a se ajustar à frieza dos
fatos.
“No peito, eu acho.”
Greg está aliviado.
“O que eu gosto nos leões machos é que a juba ajuda a
disfarçar as imperfeições da pele.”
No barracão, o animal já foi posto de barriga para cima
sobre uma mesa cirúrgica. Ninguém quer ver o que
viemos fazer aqui, então ficamos sozinhos naquele
espaço que normalmente serve para atender animais
machucados ou doentes, não mortos. Greg se aproxima e
espana com a mão a área levemente mais escura e
endurecida de sangue no peito do leão, que tem pelos
quase tão longos quanto os da juba, porém mais claros.
“Vai ser tranquilo”, diz.
Os olhos do leão estão fechados, mas eu tento assim
mesmo me sentir conectada a ele e pedir desculpas pelo
que aconteceu, primeiro pelos muito anos em um tal de
Tony’s Magic Circus — uma vida de maus-tratos e
negligência que o trouxe até aqui —, agora pelos tiros
que acabaram o matando, supostamente disparos em
legítima defesa. Sinto muito, Bishop. Nós fomos horríveis
com você.
“Eles podem andar armados?”, eu digo.
“Ih, deixa isso quieto.”
“Todo mundo sabe que são os filhotes que geram
doações. Os velhos comem demais. Quanto você acha
que ia de carne por dia só nesse leão?”
Ele levanta a cabeça e me encara.
“Essas pessoas querem fazer o bem.”
Paro de falar. Só esfolei um leão uma vez, mas não há
muito segredo. O trabalho em qualquer mamífero de
grande porte começa com incisões no abdômen e nas
quatro patas. Quando mencionam essa etapa, quase
todos os professores e manuais de taxidermia usam a
mesma imagem: a pele do animal é um casaco que você
precisa tirar com cuidado. As incisões são o zíper.
Não é minha parte favorita do trabalho, o esfolamento.
Prefiro vestir o casaco em um corpo novo.
Pouco mais de uma hora mais tarde, digo a Greg que
preciso de uma pausa. Tiro as luvas de látex, pego o
celular e vou lá para fora, com as mãos latejando e a
roupa pintada de sangue. Abro de novo a mensagem de
Kristen: Oi. Não sei como tá sua vida de casada, mas eu
saio hoje às sete. Digito: Posso passar na sua casa?
Logo começo a ouvir uma pessoa chorando. Dou a
volta no prédio de estuco e vejo o tal Juan, o cara que
atirou no leão. Está de cócoras como um velho caubói, a
pele sulcada por lágrimas frescas.
É só um menino.
“Por que ele tentou pular em cima de mim?”, ele diz
quando chego perto.
“Não sei. Acontece”.
“Eu entrava na jaula todos os dias.”
Meu celular apita: Claro, pode ser às oito? Saquê é
muito bem-vindo.
“Sinto muito”, eu digo a Juan.
“Eu posso ver quando ele tiver pronto?”
“Pode. Vai demorar um pouco, mas eu te ligo.”
Estendo a mão para ajudá-lo a se levantar.
Em 1886, o taxidermista-chefe do Museu Nacional dos
Estados Unidos, William Temple Hornaday, pegou um
trem na capital do país em direção ao Oeste. Estava
desesperado atrás de búfalos, o glorioso Bison
americanus, cujas manadas haviam sido um dia as
maiores a pisarem a face da Terra. Nas gavetas do
museu, o inventário de peles era insatisfatório. Os
esqueletos caíam aos pedaços. Era preciso coletar novos
espécimes.
Naquele ponto, a população de búfalos — até 1830,
algo em torno de trinta a setenta e cinco milhões,
segundo estimativas — estava reduzida a meras
centenas de indivíduos, não mais que quinhentos,
vagando pelas Grandes Planícies em pequenos grupos
aterrorizados. O massacre do bisão-americano ocorrera
em nome da expansão agrícola, do comércio de peles e
do extermínio dos povos indígenas, cuja sobrevivência
estava irremediavelmente atrelada a esses animais
(Mate todos os búfalos que puder!, dissera a um caçador,
o coronel Richard Irving Dodge em 1867. Cada búfalo
morto é um índio morto).
Os baques trepidantes dos búfalos indo ao chão,
milhares por dia, não eram exatamente um segredo de
dimensões continentais; ao contrário, tratava-se mesmo
de um esporte nacional. Em janeiro de 1869, a revista
Harper’s Weekly publicara uma ilustração de turistas
atirando em búfalos com rifles, carabinas e pistolas, de
dentro de um trem que andava devagar. “Uma cena
americana, com certeza”, afirmava a revista.
Assim, quando Hornaday e sua expedição chegaram a
Montana, só encontraram espalhados pela paisagem
caixas torácicas e crânios e ossinhos do carpo e do tarso
de animais mortos muito tempo antes. Conheceram um
ex-caçador que agora juntava os ossos e os despachava
para Saint Louis, onde eram esmigalhados e vendidos
como fertilizante para gramados e jardins do subúrbio.
Pagavam a ele vinte e oito dólares por tonelada. Mas
Hornaday continuou obsessivamente procurando os
búfalos vivos. Precisava matar para preservar, e pediu
anos depois o perdão das futuras gerações por aquela
que seria a última caçada organizada de búfalos em
Montana (desde que Juan Cabeza de Vaca matou o
primeiro búfalo nas planícies do Texas, nenhum homem
jamais começou uma caçada com um coração tão
pesado ou tão comprimido pela dúvida).
O saldo final foi de vinte e duas peles, quarenta e
quatro crânios e onze esqueletos. O maior espécime
morto por Hornaday pesava cerca de setecentos quilos, e
mais de um caçador já tinha tentado pegá-lo, como
atestavam quatro velhas balas enterradas em sua carne.
Esse búfalo se tornou o principal animal do diorama que
Hornaday montou para o Smithsonian e ficou em
exposição por sessenta anos. Também foi usado como
modelo para estampar a nota de dez dólares produzida
em 1901.
A história de Hornaday é muito parecida com a de Carl
Akeley, o taxidermista mais famoso do mundo. Ambos
acreditavam que matar — ou coletar, na linguagem dos
museus de história natural — era uma parte incômoda do
trabalho de um taxidermista da época, mas, em seus
relatos de caça, é difícil não ter a impressão de que eles
estão encharcados de adrenalina, vasculhando as
Grandes Planícies americanas ou as florestas do Congo
Belga como se estivessem atrás de um inimigo da vida
inteira. Talvez o grau de obsessão desses dois homens
tenha feito com que os encontros com os animais que
tanto reverenciavam tivessem ares de batalhas épicas; e
o que viam diante de si, afinal, era o animal de verdade
ou sua futura recriação? O respeito parecia só existir
amalgamado com a vontade de vencer.
Carl Akeley deixou elefantes apodrecendo na savana
porque, depois de matá-los, concluiu que eles não eram
perfeitos o suficiente para seu diorama. Um parecia
pequeno demais; outro tinha apenas uma presa. Acabou
esgotando sua cota de caça naquela viagem e teve que
pedir para a esposa terminar o serviço. Mesmerizada
pela imponência daqueles animais, Mickie Akeley hesitou
diversas vezes até enfim conseguir atirar em seu
primeiro elefante.
Quando eu tinha nove anos, sentia bastante inveja de
um cara chamado Gerald Durell, que eu chamava de
Geraldo. Isso não apenas porque ele havia escrito O
naturalista amador, meu livro favorito durante muito
tempo, mas porque a página oito trazia sua foto em
preto e branco, aos dez anos, segurando com as duas
mãos um toco onde estava pousada nada menos que
uma coruja. O rosto dela era o rosto mais esquisito que
eu já tinha visto na vida. Na fotografia, Geraldo exprimia
um olhar orgulhoso (Vejam a minha coruja!), e o fato de
os dois estarem encarando a câmera, meio de lado,
parecia criar uma estranha simbiose entre o menino e a
ave. Naquela altura, eu já tinha visto algumas corujas-
buraqueiras, paradas nas cercas dos arredores de São
Gabriel depois de o sol cair, mas nunca perto o suficiente
para que aquilo pudesse ser chamado de encontro.
Quando eu tentava me aproximar, elas voavam.
Essa não era a única razão para eu invejar Geraldo.
Antes de ele se tornar adulto e começar a viajar pelo
mundo inteiro, tinha sido uma criança sortuda com uma
espécie de quarto-museu-zoológico, onde mantinha seus
aquários de cavalos-marinhos, caranguejos, sapos, a
coleção de borboletas, besouros, potes, pinças, lentes,
tubos de ensaio e seu primeiro jarro da morte (algo
usado para tirar a vida de insetos, rápido e com o mínimo
de dano). Quanto a mim, eu não tinha acesso aos
animais gloriosos que via nas páginas do livro, mas podia
me virar com os impopulares. Acho que um verdadeiro
naturalista precisa ver tudo com objetividade, escreveu o
Geraldo adulto na introdução. Nenhuma criatura é
horrível. Todas fazem parte da natureza.
Sublinhei esse trecho no dia 9 de junho de 1988,
sentada sobre o tapete persa da sala e sem ter certeza
exatamente do que queria dizer objetividade, mas
sentindo que aquelas palavras eram importantes para
uma futura naturalista. A casa estava em um silêncio
esquisito. Meu pai tinha desaparecido dentro do
quartinho de entulho que ficava perto da churrasqueira,
nos fundos do terreno. Pelo menos umas três vezes ao
ano, ele se espremia entre as pilhas periclitantes de
coisas velhas, prometendo doações generosas ao
Mensageiro da Caridade, mas, depois de meia hora, saía
de lá com apenas um bule quebrado — talvez dê para
colar a asa — ou uma única sacola com blusas
carcomidas por traças. Minha mãe havia se enclausurado
no quarto. Desde a morte de Satti, ela construíra uma
espécie de zona de privação sensorial e relaxamento
químico: persianas hermeticamente fechadas, máscara
para dormir, quatro cobertores e um copo de água
sempre a postos para a próxima ingestão de
comprimidos. Vinícius devia estar ouvindo música no
walkman enquanto imaginava tudo o que estava
perdendo do lado de fora. Marco olhava no espelho suas
crostas sanguinolentas.
Ainda no carro, naquela manhã, quando a humilhação
de ter sido tirada do meio da aula continuava fazendo
meu rosto pulsar, ouvimos meu pai dizer que não
voltaríamos para a escola até que a poeira baixasse.
“Quanto tempo vai levar pra poeira baixar?”, perguntei,
mas ele só riu pelo nariz e não falou mais nada. Pode
levar semanas, pensei, meses, talvez anos, e daí, o que
eu vou fazer? Vou ser uma naturalista mais aplicada,
decidi na mesma hora, vou me dedicar totalmente aos
experimentos no jardim.
Ao folhear o livro naquele dia, decidi que ia fazer a
experiência do caracol. Deixei a página marcada e subi
as escadas como se meus pés estivessem envoltos em
espuma e minha vida dependesse da manutenção do
silêncio. Antes de ir até o banheiro, bati de leve na porta
do Vini e abri sem esperar uma resposta.
“Entra e fecha a porta aí.”
Estava sentado na cama lendo uma revista.
“O que quer dizer objetivamente?”
“Ué, de forma objetiva.”
“E isso quer dizer o quê?”
“Qual é o contexto?”
“Um verdadeiro naturalista precisa ver tudo
objetivamente.”
“Ah, quer dizer não ser levado pelas emoções. Com
frieza.”
“Hm. Tá, brigada.”
“Pera, Ciça. Senta aqui um pouco.” Ele deu dois
tapinhas nas cobertas. Então baixou o tom de voz. “Tu
acha que o pai tá falando a verdade?”
“Sobre o quê?”
“Será que ele saiu mesmo pra comprar cigarro? Ele
disse isso na entrevista ontem de manhã, mas foi
bastante tempo que ele ficou fora, e ele tava meio
nervoso quando contou.”
“Tu ouviu a entrevista?”
“Ouvi, no colégio.”
“Tu matou aula? Não conta pra eles que tu ouviu, Vini.”
“Claro que eu não vou contar.”
“O que mais ele falou?”
Vini se deitou na cama e ficou passando a mão no
cabelo, como se estivesse fazendo cafuné em si mesmo.
Os olhos não desgrudavam do teto. Eu achava ele tão
bonito quanto um desses atores mirins da Sessão da
Tarde que sempre sabiam o que fazer nas piores
situações.
“Não foi nada de mais, na real. É só que ele ficou o
tempo todo se defendendo… e eu me senti, sei lá,
incomodado. Mas tudo vai terminar bem, né, Ciça?”
Eu tinha nove anos. Não podia ser o apoio emocional
de ninguém.
Saí do quarto do meu irmão, entrei no banheiro e enfiei
a mão na gaveta mais alta. Ouvia o clique dos vidrinhos
e ia percorrendo os ângulos gelados como em algum tipo
estranho de jogo em que se escolhia o prêmio pelo tato.
Finalmente peguei um pote pequeno com uma tampa
estriada de plástico. Colorama Cintilante Longa Duração
Rubro Metalizado. Lá embaixo, o portão de ferro estalou,
o primeiro sinal de que alguém havia acionado o controle
remoto, e então se seguiram os ruídos de metal
mastigando metal. Não fiquei me perguntando quem era.
Entrei no meu quarto e tirei da prateleira a caixa da
minha coleção. Abri, peguei o caderno que estava lá
dentro e deixei a caixa em cima da cama.
Voltei ao jardim. Era o tio Werner quem tinha chegado.
Estava escorado no Santana com os braços sobre o peito,
conversando com meu pai. Eu só ia saber muitos anos
depois que tia Eliane tivera mais um aborto espontâneo
no início de 1988 e, após as palavras desesperançosas
do terceiro médico que consultaram, tio Werner e ela
haviam enfim decidido que teriam uma criança de
qualquer jeito. Assim, começaram a ir até um casebre da
Vila Dique para colocar a mão espalmada na barriga de
uma tal Gislaine, uma mulher que tio Werner conhecera
através de uma das faxineiras de sua empresa de
produtos hospitalares. Compravam comida, produtos de
higiene, algum agrado toda semana. Levavam a mulher
ao médico. Às vezes, Gislaine chorava e dizia que estava
feliz por saber que a criança teria uma vida tão melhor
do que a vida que ela podia oferecer. Ela ganharia um
cheque graúdo logo depois do parto, ainda não sabia o
que ia fazer com o cheque. Aos sete meses de gravidez,
no entanto, desapareceu da Vila Dique e ninguém nunca
mais teve notícias dela. Para tia Eliane, aquilo foi muito
mais dolorido do que um novo aborto espontâneo. A
criança devia estar agora em algum lugar do mundo. Isso
aconteceu apenas um mês antes do assassinato de Satti,
e meus tios, diante daquilo que classificaram como uma
traição da tal Gislaine, tinham passado a se agarrar mais
do que nunca à ideia de família.
Naquela tarde, cheguei perto do meu pai e do tio
Werner e percebi que eles não eram os únicos ali. Havia
alguém sentado no Santana. Era Adelino, o marido de
Marli e o faz-tudo da nossa família. Estava de cabeça
baixa, como se esperasse havia muito tempo sua vez de
entrar em cena.
“Oi, Ciça”, disse meu tio, tentando sorrir.
“Oi.”
“Tudo bem? Que é isso que tu tem aí na mão?”
“Um vidro de esmalte.”
“Já começou a pintar as unhas, hein?”, disse,
subitamente entusiasmado pelo que parecia ser minha
primeira marca de feminilidade.
“É para um experimento científico”, respondi.
Meu pai pigarreou.
“Não vou te segurar mais, Werner, me liga quando
vocês voltarem?”
“Aonde vocês vão?”, perguntei.
“Vão dar uma chegada em São Gabriel”, disse meu pai.
“Mas por quê?”
Tio Werner, diferentemente do meu pai, não ia muito a
São Gabriel.
“O Faísca tá meio adoentado”, respondeu meu tio. “A
gente vai dar uma olhada nele, e o Adelino tem umas
coisas pra fazer lá.”
“Como assim, o que é que houve com ele? Ele tá bem?
O Faísca vai morrer?”
“Claro que não, Ciça! A gente vai cuidar dele, não te
preocupa. Te dou notícias depois.”
Meu pai acionou o portão e entrou em casa depois que
ele fechou totalmente. Fiquei no jardim procurando
caracóis nos lugares mais sombreados. Encontrei um aos
pés da pitangueira. Então abri o vidro de esmalte, passei
o pincelzinho na borda como tinha visto muitas vezes
minha mãe fazer e marquei a concha com um ponto
vermelho. Quer dizer, era mais uma mancha do que um
ponto. O caracol se retraiu um pouco, mas logo
continuou o que estava fazendo, que era se arrastar
quase imperceptivelmente perto do tronco da
pitangueira. Escrevi no caderno: Hábitos do Caracol
Colorama Rubro Metalizado.
Acompanhei o caracol por um bom tempo, só que era
chato demais. Eu não conseguia imaginar o Geraldo
conduzindo aquele tipo de experimento, e no entanto era
isso que, segundo ele, tínhamos que fazer se
quiséssemos ser naturalistas. Talvez objetividade fosse o
contrário de diversão. Quando voltei para o quarto,
depois de colocar o esmalte de volta na gaveta,
encontrei minha mãe sentada na ponta da minha cama.
Tinha no colo a caixa da minha coleção com a tampa
aberta.
“Esse negócio tá cheirando mal”, ela disse, sem tirar os
olhos da caixa.
“Mas tá tudo limpo, mãe.”
“Acho que tu tem que limpar melhor. Podem ser as
conchas, não sei.”
Me sentei ao lado dela. Ela me abraçou e começou a
chorar.
No fim daquela tarde, todos os deputados estaduais do
pmdb vieram prestar solidariedade a seu colega Raul
Matzenbacher. Eu vi pela janela quando três deles, os
primeiros a chegar, bateram a porta dos carros e
começaram a deslizar pela calçada de modo teatral
quase ao mesmo tempo. Então, exatamente diante da
nossa casa, foram cercados por um grupo compacto de
jornalistas, os jornalistas que, a partir daquele dia,
estariam sempre nos arredores da praça. Não havia
dúvida de que meu pai era inocente, disseram os
deputados em uníssono antes de entrarem na nossa
casa. Tudo será esclarecido em seu devido tempo.
A polícia só apareceu na estância de São Gabriel com
um mandado de busca e apreensão em 24 de junho, isto
é, dezessete dias depois do assassinato de João Carlos
Satti. Até aquele momento, eles haviam conduzido um
exame balístico em uma única das armas de caça do
meu pai, a que estava na casa da praça Horizonte, uma
Rossi .12 modelo Luxo, coronha de madeira lustrada, sem
bandoleira e com capa de proteção. Pelo que se podia
concluir disso, tanto meu pai quanto minha mãe tinham
omitido o fato de que havia outras espingardas
registradas no nome de Raul Matzenbacher, e a polícia
não fizera muita questão de perguntar, e menos ainda de
encontrar as armas e recolhê-las para que fossem
periciadas.
Quando finalmente estiveram em São Gabriel, com um
atraso comprometedor, tentando responder sobretudo à
pressão da opinião pública, os policiais civis encontraram
quatro armas. Três delas estavam dentro de um armário
embutido na peça que chamávamos de porão. Não era,
tecnicamente, um porão, mas assim fora batizado pelo
meu avô e assim continuou a ser referido por nós. Essas
armas estavam dispostas com o cuidado que meu pai
dedicava a elas e que tentou transmitir aos filhos
homens, como se fossem o brinquedo mais precioso da
nossa civilização. Tratava-se de uma espingarda cbc .8
mm, uma Beretta .12 e uma Rossi .12. Além das três
armas, foram apreendidos naquela tarde um
prolongamento de dois canos e diversas caixas de
munição e escovas de limpeza.
A quarta arma de caça só foi encontrada em uma
segunda rodada de busca. Também estava no porão, mas
em outro móvel, uma espécie de aparador, atrás de uma
prataria escura que não era polida provavelmente desde
a morte da minha avó. A arma fora guardada dentro de
um saco de aniagem.
Quando meu pai fosse a julgamento, os advogados de
acusação sustentariam que essa arma, a Rossi 41 237,
fora justamente a arma usada no crime. Segundo eles,
não era apenas estranho que ela não estivesse com as
outras, e ainda por cima dentro de um mero saco de
aniagem; a questão é que esse indício, esse fato fora do
comum, parecia complementar outro também
igualmente injustificável, a viagem repentina de Werner
Matzenbacher e Adelino dos Santos Cruz na tarde do dia
9 de junho (Qual era o sentido daquela viagem para São
Gabriel? Levar um cachorro ao veterinário, quando outra
pessoa podia tê-lo feito? Visitar os filhos, no caso de
Adelino, quando aquele deveria ser um dia normal de
trabalho, uma quinta-feira? Com o irmão sob os
holofotes, suspeito de um crime brutal, já onipresente
nas páginas dos diários, nas ondas do rádio, nas imagens
da televisão, por que Werner teria se afastado, fazendo
uma viagem que não parecia carregar consigo nenhuma
urgência? O lógico não teria sido ficar ao lado de Raul,
para assim oferecer seu apoio incondicional de irmão?
Pois o apoio incondicional, o amor incondicional, é o que
talvez nos explique hoje os motivos de Werner
Matzenbacher para a referida viagem).
Perguntaram à acusação, em inúmeras oportunidades,
por que Raul não teria simplesmente jogado a
espingarda no fundo do Guaíba, em vez de envolver o
irmão e um empregado da família em uma trama que
parecia cheia de falhas. Eu também me perguntei isso
muitas vezes, anos depois, lendo todos os documentos
que tinha recolhido sobre o caso Satti, mas sobretudo
revisitando minhas memórias a respeito do dia em que
pintei com esmalte a concha de um caracol. Não havia
nada de conclusivo. Algumas respostas só o assassino
pode dar. Para a acusação, o réu resolvera guardar a
espingarda porque, uma vez que aquela era uma arma
com registro, teria sido pior se ela tivesse simplesmente
desaparecido. Eu também acreditava nessa teoria, mas
acrescentaria que as decisões tomadas em situações
extremas não costumam ser as mais ponderadas e que,
além disso, meu pai parecia ter plena confiança tanto em
seu poder de parlamentar como na extrema
incompetência da polícia.
Acabou tendo razão sobre ambas as coisas. O primeiro
relatório do Instituto de Criminalística concluiu que a
Rossi 41 237 fora utilizada nos últimos trinta dias. Menos
de uma semana depois, no entanto, uma correção ao
relatório esclarecia que, sim, a presença de nitrito
confirmava o uso de ambos os canos da arma, mas,
diante de possíveis variáveis — diferenças de umidade e
oxigênio, ocasionadas pelo próprio deslocamento do
objeto —, seria imprudente tirar qualquer conclusão a
respeito da data dos últimos disparos.
No dia 10 de junho, finalmente convencido de que
precisava de um advogado, meu pai saiu cedo de casa
para se encontrar pela primeira vez com o célebre Souza
Andrade em seu palacete de colunas jônicas. Diziam que
ele era sem dúvida a pessoa certa para as horas erradas.
Um homem massivo de idade indefinida, com a careca
brilhante como uma superlua, Souza Andrade tornara-se
o maior criminalista do Rio Grande do Sul, alçado à fama
sobretudo por três casos: em 1978, tinha defendido o
chefe do Dops, Pedro Seelig, no famoso “sequestro dos
uruguaios”; em 1980 estivera ao lado de Plínio Gomes, o
pintor de renome internacional que dera um tiro fatal na
amante em seu sítio em Taquara; e, em 1981, assumira o
caso do prefeito de Capão da Canoa, Arthur Pederneiras,
réu pelo superfaturamento na construção de um estádio
de futebol. Desnecessário dizer que Souza Andrade
ganhara os três casos. O homem era um dínamo da
retórica, um modulador impecável entre a indignação e o
afago. Muitos anos mais tarde, eu o imaginaria como
uma espécie de figura simbólica, uma carta de tarô que
anuncia destinos incontornáveis assim que é posta sobre
a mesa. Outras vezes, eu o enxergava apenas como um
pobre depositário do lodo da história do Brasil.
Minha mãe ficou em casa naquela sexta-feira. O
primeiro encontro, havia dito Souza Andrade, precisava
ser uma conversa franca apenas entre cliente e
advogado. Ainda assim, ao que parecia, Carmen gostaria
de ter ido junto (dizem que ele tem um lago com carpas,
Ciça), nem que fosse para se distrair do lado de fora,
verificando com os próprios olhos o que era mito e o que
era verdade nas descrições nababescas que tinha ouvido
sobre aquele lugar. Também não podia ir à Assembleia
Legislativa, onde certamente seria assediada pela
imprensa. Restou então ficar em casa mais uma vez. De
qualquer maneira, minha mãe parecia mais ativa do que
nos dias anteriores; pelo menos estava fora do quarto,
andando de um lado para o outro enquanto dava ordens
sem sentido a Marli (tem aquela louça bonita de festa pra
lavar hoje, Marli, e queria que tu passasse as cortinas da
sala).
Desde aquele episódio no meio da rua, quando minha
mãe se afastou do meu pai com raiva, medo ou alguma
outra coisa que eu não sabia identificar, eu não tinha
mais testemunhado nenhum momento de tensão entre
os dois. Durante aqueles dias, parecia que eles tinham
dividido a casa com linhas imaginárias, e um nunca se
movimentava sem antes ter certeza de onde estava o
outro. Talvez esse fosse o único jogo de cena que eles
eram capazes de fazer.
“Ciça, que tu acha da Adri vir aqui hoje de tarde pra
brincar contigo?”
“Oba, sim! Mãe, tu pode dizer pra mãe dela...”
“Eu vou ligar agora pra Márcia.”
“... pra ela trazer o Quebra-Gelo?”
“Posso. Ué, achei que tu tinha esse.”
Ela subiu para usar o telefone do quarto. Quando
voltou, o bom humor de cinco minutos antes já não
parecia estar mais lá. Então a primeira coisa que disse foi
que precisava achar uma fita cassete do Julio Iglesias,
será que eu a tinha visto em algum lugar? Eu nem sabia
de que fita minha mãe estava falando. Tentei perguntar
se era original ou gravada, o que ajudaria bastante na
busca, mas ela não pareceu ter ouvido. Ficou parada no
meio da sala sem realmente procurar a fita.
“E a Adri, ela vem?”, perguntei.
Ela começou a tirar do lugar as almofadas dos sofás, as
grandes almofadas dos assentos e dos encostos. Deixava
uma no chão e ia para a próxima. E então para a
próxima. E a próxima.
“Essas coisas às vezes aparecem nos lugares mais
absurdos”, disse, e deu uma risadinha, mas até uma
criança de nove anos era capaz de perceber o
despropósito do que ela estava fazendo.
Devolveu uma única almofada ao sofá e se sentou
nela.
“A Adri não vem, Ciça. A Márcia disse que ela já tem
programa pra hoje.”
“E amanhã?”
“A semana toda.”
“Que programa?”
Ela não respondeu.
“Tu gosta tanto assim da Adri?”
“Ela é minha melhor amiga.”
“Olha, às vezes eu acho ela meio enjoadinha. A Márcia
também não é lá essas coisas, né?”
Naquela manhã, entre as manchetes dos principais
jornais do estado, escondidos pelos meus pais logo cedo
em algum armário da casa, estavam as seguintes:
Matzenbacher nega envolvimento; Bancada do PMDB
apoia Matzenbacher; Polícia conduz em sigilo o caso
Satti; Esse garoto viu o homem “branco e barbudo”
matar o deputado; À noite, novos depoimentos e reunião
no Piratini; Cúpula da polícia informou o governador do
rumo das investigações.
Meu pai ligou mais tarde dizendo que almoçaria com
Souza Andrade. Depois de comer, fui para o jardim
procurar o Caracol Colorama Rubro Metalizado. Minha
mãe apareceu na porta dos fundos.
“Ciça! Tu nem imagina quem tá aqui querendo te ver!”
Saí correndo na direção dela.
“Quem?”
“A tia Silvana!”
Tia Silvana e eu tínhamos criado uma conexão especial
desde o choro flagrado no banheiro da escola. Eu sempre
tinha desconfiado disso, e agora via a confirmação
inquestionável bem na minha frente, touca, sorriso
imenso, blusão de lã tricotado em casa, cada ponto
brilhando no sol.
“Te trago mais um cafezinho, Silvana? Marli!”
Nos sentamos no jardim. Ela já não era minha
professora — naquele ano, estávamos nas mãos de uma
insossa tia Cristine — e, mesmo assim, tirou de uma
pasta com elástico as cópias das matérias que eu tinha
perdido.
“Tu não quer ficar sem saber sobre o sistema solar,
né?”
“Não”, eu disse, olhando um conjunto de círculos sem
graça dispostos ao redor de um círculo maior e
igualmente sem graça.
“Eu posso vir uma vez por semana te trazer as coisas,
que tu acha? E aí tu me entrega os temas feitos e eu
passo pra tia Cris.”
“Tá, pode ser.”
“Tá tudo bem contigo, Ciça?”
“Tudo bem, sim.”
“O que tu anda fazendo?”
“Nada. Quer dizer, eu tô investigando a vida dos
caracóis. Quer dizer, de um caracol.”
“Ah, sim?”
Ela parou de olhar para mim e fixou os olhos em algum
ponto distante. Achei melhor não continuar falando.
Então ela se inclinou para a frente e segurou minha mão.
“Ciça, deve tá sendo muito difícil pra ti, e pros guris
também, mas essas coisas passam. Tu vai ver. Vocês vão
rir disso um dia. Só que, enquanto isso, tenta não dar
bola pro que as pessoas falam, tá? Promete pra mim? Teu
pai… teu pai não fez nada, querida. Ele é uma boa
pessoa, um médico que tanta gente admira, e agora
tá...”
“Como tu sabe que ele não fez o que tão dizendo que
ele fez?”
Ela se afastou de mim, assustada.
“Não pensa isso do teu próprio pai, Ciça. É feio. Ele não
fez.”
Tentei mudar de assunto porque a última coisa que eu
queria era decepcionar a tia Silvana, mas parece que eu
tinha feito exatamente isso; perguntei se ela me ajudaria
a procurar o caracol com a mancha de esmalte vermelho,
só que ela parecia tão decepcionada que nem quis saber
que história era aquela de esmalte, respondendo apenas
que não podia, não tinha tempo, o Marquinhos estava na
mãe dela — então ela tinha um filho! —, ela precisava
mesmo ir embora. Mas tia Silvana continuou parada. Não
fez nenhuma menção de se levantar.
“Teu pai é bom”, disse. “E o Satti, as pessoas não
sabem, mas ele era… diferente. Eu sei disso, querida.”
“Diferente?”
“Sabia que ele namorou a irmã de uma amiga minha?”
“Diferente como?”
“Teu pai é uma boa pessoa, Ciça.”
sinantropia
É fim de março de 1988, e o verão ainda não terminou.
O céu amanheceu aberto e ao longo do dia foi tomado
por cúmulos-nimbos até restar apenas uma estreita faixa
de luz no horizonte, mas a água não caiu. O sol se pôs e
a pequena faixa parecia a boca de uma fornalha, que
então emprestou suas cores químicas mirabolantes ao
leito quase imóvel do Guaíba, onde um navio graneleiro
deslizava na direção do porto de Rio Grande com quatro
mil toneladas de celulose. A água não caiu. No início da
noite, raios começaram a espocar para os lados de
Eldorado do Sul em intervalos cada vez menores. As
pessoas ficaram esperando que a chuva logo chegasse e
trouxesse alguma brisa e derrubasse os termômetros em
talvez cinco graus pelo preço de ruas convertidas em rios
e árvores que tombariam enroscadas em fios de luz. Mas
a chuva não caiu.
João Carlos Satti tinha chegado da Assembleia,
estacionado o carro na Garagem e Posto Estrela e
atravessado a rua até o Wunderbar, onde pegou a mesa
de sempre, encostada à janela. Comeu schnitzel com
purê de batata e chucrute e bebeu um caneco de chope
enquanto lia o jornal. Não tinha pressa de ir para casa.
Pediu uma porção de sagu. Um dos garçons ouvia no
rádio o início do returno do Campeonato Gaúcho, Grêmio
× Juventude. Satti conversava com os garçons enquanto
comia seu sagu tão devagar como se servisse uma única
bolinha de tapioca por colherada. Quando saiu do
Wunderbar, encontrou Restinga sentado na floreira do
edifício. Falaram um pouco. Restinga disse que só tinha
tirado trinta cruzados naquela noite. Satti perguntou
quanto custava o saco de feijão e o menino respondeu
que 153 cruzados no mês passado e agora não menos
que 310. Então Satti tirou do bolso uma nota de 500 e
disse Vai pra casa hoje, guri, o toró não vai demorar.
Agora está há mais de três horas sentado no sofá,
fumando um cigarro atrás do outro. O fato de suas costas
estarem coladas à camisa e a camisa colada à almofada
passou a ser um estado natural incontornável. Continua
de sapato e calça social, desenhado pela luz vaga do
abajur, e a única concessão que fez ao calor foi ter
enrolado as mangas da camisa até o cotovelo. Para de
tragar e de novo olha em volta. Há poucas coisas de Fred
ainda no apartamento: os livros do curso de turismo na
estante à sua frente, alguns cadernos na mesa ao lado,
um chapéu campeiro marrom pendurado atrás da porta
(foi um presente, mas Fred usou-o uma única vez, e
como se fosse uma grande piada). Os mesmos objetos
que eram traços de presença passaram a ser marcas de
ausência. Alguma coisa aconteceu logo antes do
Carnaval. Talvez ele não tenha percebido até o dia em
que Fred comentou em um tom esquisito que dois de
seus amigos haviam arranjado um apartamentinho na
João Pessoa. Ué, tá com inveja deles?, perguntou Satti,
rindo, e Fred fechou a cara e saiu da cozinha sem
responder. Durante o dia inteiro, um domingo, não ouviu
a voz dele. Quando finalmente no fim da tarde o guri
falou, foi apenas para dizer, muito calmo, que tinha
decidido não voltar para o curso de turismo. Aquilo já era
um pouco demais. Satti perdeu a cabeça (Não é só o
dinheiro que tu jogou no lixo!). As vozes alteradas
chegavam aos vizinhos, e havia entre eles alguns mais
devotados aos problemas dos outros, que interromperam
o que estavam fazendo e se empoleiraram na janela para
ouvir melhor (Teu futuro, Fred, é o teu futuro, porra!).
Gláucia Pereira, do apartamento 301 — a mesma que
veria o Monza suspeito na noite do crime —, achava
vergonhoso ouvir a “voz do rádio” usando palavras de
baixo calão logo acima da cabeça dela. Em algum ponto
da briga, percebeu que Satti passara a moderar o tom,
de maneira que não conseguia mais distinguir o que ele
dizia. A “voz jovem”, no entanto, seguiu na mesma toada
violenta. Guardamos as palavras mais duras pro final, sei
bem como é, diria Gláucia Pereira no seu depoimento à
polícia. O menino disse “Eu sempre consegui me virar
antes de tu aparecer”, foi exatamente isso, e aí bateu a
porta tão forte que todas as minhas janelas tremeram.
As cinzas do cigarro caem no carpete. Ele percebe e as
esfrega com o sapato até fazer um estrago maior. Fica
satisfeito. Então começa a ouvir os pingos grossos
batendo contra as persianas de plástico e as árvores que
tentam resistir aos golpes de ar. Pega o telefone, coloca o
aparelho sobre a coxa e disca.
“Oi, Paulo.”
“Satti, que horas são?”
“Não sei. Achei que o temporal tinha te acordado.”
Paulo Bittencourt não responde.
“23h40.”
“23h40? O Januário vai te buscar às seis pra te levar
pra Canguçu. Vai dormir um pouco, Satti.”
“Paulo, chama o Pierre pra esse negócio aí.”
“Mas já tá tudo combinado com o Januário.”
“Descombina então.”
“É que... Satti, tá meio em cima da hora pra isso. Se tu
tivesse avisado antes.”
“A gente paga um adicional, caralho. Porra, Paulo.”
“Vou ligar pra ele.”
Não dorme nem três horas. Primeiro abre a persiana e
o vidro para ver o temporal — a água fluindo junto ao
meio-fio, o pátio da casa vizinha inchado e escorrendo
para a calçada —, e então cai na cama ainda vestido.
Está escuro quando acorda. Levanta, toma um banho,
coloca uma roupa extra dentro de uma mala pequena.
Passa um café e come pão com margarina e chimia de
uva. O temporal acabou, a água goteja das quinas, o dia
começa a clarear. Satti desce carregando a mala e o
chapéu campeiro que estava pendurado na porta.
São cerca de quatro horas até Canguçu, e Pierre está
falando ainda menos do que normalmente. Aceita um
cigarro quando passam pela ponte do Guaíba. É um
homem baixo e corpulento, que lutou boxe na academia
de Walter Lee até ser escanteado pelo novo treinador
depois que Lee se afastou para tratar problemas de
saúde; Pierre não ia ser um Maguila peso médio e, além
disso, precisava de dinheiro para comer. Trabalhou como
leão de chácara de puteiro, carregou peixe no Mercado
Público, demoliu casas e dirigiu um caminhão de
mudança, isso tudo antes dos vinte e três anos. Quando
conheceu Satti, tinha virado motorista na Rádio Gaúcha.
Três anos depois, o jornalista se elegeu deputado e levou
Pierre para trabalhar no seu gabinete.
Agora passam por uma placa anunciando a saída para
Barra do Ribeiro. Satti quebra o silêncio.
“Não tem nada pra ouvir nesse carro?”, diz, sorrindo.
“Tem uma fita aí que a dona Carmen emprestou pro
senhor.”
Abre o porta-luvas.
“Julio Iglesias? Tu acha que eu vou gostar disso,
Pierre?”
“Dá pra tentar.”
“É, sempre dá”, responde Satti, rindo de uma piada
que parece ter feito apenas consigo mesmo.
Escutam a primeira música e também a segunda sem
falar nada. O verde do campo que veem da estrada está
brilhante por causa da chuva recente, e ainda há um
cheiro agradável de terra molhada no ar. Assim que o sol
subir um pouco, no entanto, o calor viscoso vai ter
vencido mais um dia.
“Opa, essa acho que eu conheço”, diz Satti no primeiro
minuto da terceira música.
Pierre aperta os olhos como se tentasse enxergá-la.
“Vai me dizer que isso aí não é Roberto Carlos?”
“Não é que parece mesmo?”, diz Satti, mas o tom é
condescendente demais e sincero de menos. Ouve mais
um pouco. “Igual a Roberto Carlos, igual.”
Pierre continua concentrado na estrada. Satti acende
um cigarro.
“No fundo, todas as músicas românticas são muito
parecidas, né. As pessoas querem sempre ouvir a mesma
coisa, com uma mínima diferença aqui e outra ali. Algo
que reavive aquele sentimento...”
“É.”
Agora Pierre está sorrindo.
“Sabe?”
“Sei bem. As mulheres, principalmente.”
“Principalmente”, diz Satti.
Os dois riem.
“Como tá a Neidi?”
“Tá bem, acho.”
“E as crianças?”
“Bem também. O Anderson já tá dando um direto que
bah!”
“Um direto? O guri tem o quê, seis, sete anos, Pierre?”
“Sete. Ah, aquele lá aprende rápido. Tá no sangue,
doutor.”
“Eles gostaram da tv?”
“Gostaram demais. Mandaram agradecer o senhor.”
Satti dá um sorriso. A tv não foi a única coisa que
comprou para a família de Pierre. Ajudou com a entrada
da casa, pagou o tratamento de canal de Neidi, o
material escolar das duas crianças, as bicicletas,
remédios, roupas, tirou Pierre da mão dos agiotas de
Gravataí. Neidi sempre gostou muito de Satti. Rezava por
ele e pelas outras famílias que certamente ele poderia
ajudar agora que fora eleito deputado. Em todos aqueles
anos, houve apenas um único momento que a deixou
bem cabreira, de acordo com suas próprias palavras, e
isso foi quando Satti insistiu que Pierre enfrentasse na
academia de Walter Lee um pugilista que já tinha
conquistado dois títulos estaduais. Ela sabia que o
marido não queria mais lutar boxe e, mais do que isso,
que aquele era um assunto delicado — ele não gostava
do treinador, o Cavalo Uruguaio —, mas Satti já tinha
feito todos os arranjos necessários para que a luta
acontecesse em um fim de tarde de quarta-feira. Seis
pessoas estavam assistindo. Pierre foi nocauteado no
segundo round.
“Esse Julio Iglesias aí leva a gente longe, puta merda”,
Pierre diz agora. Dá uma risadinha.
“É mesmo, né? Tá pensando em quem?”
“Tô pensando em ninguém.”
Parece subitamente um menino bobo de quinze anos.
“É na Neidi?”
“Ah, na Neidi era antes. O tempo, as crianças, a
gente...”
“Tá pensando em quem então?”, repete Satti, mas
agora não sorri mais. Coloca a mão por baixo da camisa
e encaixa a palma no cabo de madeira do .38. Então
puxa o revólver e o põe sobre o colo. Com o canto do
olho, Pierre vê a arma e tira as mãos do volante por
alguns milésimos de segundo.
“Que é isso, doutor!”
O Santana bambeia no sol já inclemente até comer a
linha amarela falhada. Uma carreta que vinha no outro
sentido dá uma guinada para a direita enquanto o
motorista senta a mão na buzina e vai se afastando com
um barulho constante infernal. Pierre retoma o controle
do carro.
“Tu tá vendo alguém, tá traindo a Neidi? Encosta aqui
um pouquinho.”
O rapaz ri de nervoso. A testa está brilhando e há
gotículas de suor acima dos lábios.
“Só pode ser brincadeira isso, né, doutor?”
Agora Satti aponta a arma.
“Encosta o carro, pô!”
Não há alternativa. Pierre pisa no freio e o carro chia e
trepida até vencer totalmente o degrau de asfalto. Então
para, meio enviesado. Ouvem o chispar dos carros indo
para o sul ou para o norte, não muitos, somado ao ruído
branco da fita que chegou ao fim.
“O que é isso, seu Satti?”, diz Pierre. Começa a chorar
baixinho.
“Vamos descer do carro.”
Os dois descem.
“Te ajoelha aí”, diz Satti, apontando a arma para a
terra.
“Me ajoelhar?”
Ele não entende. Ainda acha que Satti vai começar a rir
e admitir que é tudo brincadeira, mas, ao mesmo tempo,
acredita que vai morrer ali, nas margens da br-116 em
março de 1988 aos vinte e sete anos. Os dois
pensamentos colidem e se misturam.
“Não complica mais, Pierre, pelo amor de Deus.”
Pierre se ajoelha entre os papéis e garrafas e baganas
arremessados pelas janelas dos carros.
“Me conta, Pierre.”
“Contar o quê?”
“Quantas vezes eu já perguntei, quer que eu fale de
novo?”
Continua chorando.
“É uma copeira da Assembleia.”
“Pura que pariu.”
“A gente só se viu algumas vezes, doutor. Não é nada
não, não vai ser nada.”
“Da Assembleia? Pierre, vamos combinar uma coisa.
Quando tu tiver trabalhando pra mim, tu não fala em
mulher e tu não pensa em mulher, tá certo? E tu não
come mulher, caralho. Não quero saber disso. Vai, jura.”
Ele balança a cabeça.
“Jura”, repete Satti, mais alto.
“Eu juro.”
Satti recoloca a arma no coldre.
A partir desse ponto, alguns fatos se misturam a meras
suposições. Fato: João Carlos Satti e outros dois
deputados almoçaram com o prefeito de Canguçu em
uma churrascaria do Centro. À tarde, os parlamentares
participaram de um encontro com fumicultores da região,
que viam a entrada do capital internacional na indústria
do tabaco como uma ameaça à agricultura familiar. A
temperatura chegou aos trinta e três graus às duas da
tarde. Suposição: Satti se hospedou no Hotel Telesca, um
prédio bruto de esquina com algumas lojas no térreo. Seu
quarto ficava no terceiro andar, e da sacada ele podia
ver que a grade urbana de Canguçu acabava de repente,
logo depois da rodoviária, e dava lugar a coxilhas da cor
de erva-mate sapecada. Pierre estava no quarto ao lado.
Fato: Satti não compareceu ao jantar com vereadores e
outras figuras ilustres no Clube Harmonia, alegando ao
prefeito uma forte enxaqueca, cujos gatilhos haviam sido
provavelmente o calor e a viagem de carro. Suposição:
comeu no quarto um bife malpassado com arroz e dois
ovos, depois matou o tempo de digestão na sacada,
olhando o céu crepuscular e as primeiras estrelas da
noite sem lua. Bateu na porta de Pierre mais tarde.
Levava consigo o chapéu campeiro e uma garrafa de
uísque paraguaio. Pierre tinha ligado o ar-condicionado
do quarto no máximo, e o vento frio ia secando o ar
enquanto o barulho lembrava muito o de um velho
moedor de carne. Serviram o uísque e beberam até se
sentirem mais à vontade, tentando esquecer, cada um à
sua maneira e por motivos distintos, o episódio
tenebroso daquela manhã. O ex-pugilista normalmente já
parecia um pouco bêbado com uma dose, e bastante
bêbado com uma e meia. Tomou duas. Depois do
assassinato de Satti, contaria à polícia sobre o ataque de
fúria do deputado na br-116, mas não diria nada a
respeito do que aconteceu no hotel em Canguçu e em
outros lugares discretos, limitando-se a declarar que Satti
cultivava gostos estranhos (Ele era meu patrão, o que é
que eu ia dizer?). Em 1988, nem a polícia nem ninguém
quis saber mais detalhes.
Agora, trinta anos depois, eu só tenho como especular
que, no quarto climatizado do Hotel Telesca, Satti sentiu
o pau de Pierre por cima da calça de tergal e então abriu
a calça e começou a massageá-lo. Ficou nesse vaivém
por um tempo enquanto repetia ao motorista “relaxa” e
sentia o pau de Pierre ficando mais duro e o seu já
querendo também arrebentar a cueca. Posso passar ao
largo da verdade, mas não muito, se disser que Satti
puxou a camisa de Pierre pela cabeça e tocou os bíceps e
o peito cor de cobre não com a reverência de quem
acaricia o corpo do amante, mas com o interesse de
alguém examinando um cavalo de corrida. Então Pierre
se levantou, e, mal tendo tempo de se acostumar ao leve
balanço do uísque, girou o corpo e empurrou com
violência o patrão para cima da cama, porque era mais
tolerável se tivesse algum gosto de vingança. Ambos já
estavam completamente nus quando Satti esticou o
braço e alcançou a aba do chapéu campeiro no criado-
mudo. Pôs o chapéu em Pierre.
Em junho de 1988, a vida de João Carlos Satti foi
esmiuçada pela polícia. Se não tivesse sido morto, teria
provavelmente chegado à velhice ainda equilibrando a
rotina de homem público e suas preferências sexuais.
Apenas algumas pessoas teriam conhecido a verdade —
o primeiro parlamentar assumidamente gay do Brasil,
Clodovil Hernandes, só surgiria em 2006 — e todas elas,
ou porque eram discretas o suficiente ou porque
estariam implicadas demais, manteriam a boca fechada
até o fim dos tempos. Sempre tinha sido assim. O avanço
das investigações, no entanto, obrigou a imprensa a
expor o lado oculto de Satti. Isso aconteceu em 12 de
junho, cinco dias depois do crime.
Quase todos os porto-alegrenses ficaram pasmos. A
voz do rádio era como a voz de um amigo. Os socos que
Satti dava na mesa em seu programa de tv carregavam a
indignação de todos os gaúchos diante das injustiças e
da dureza da vida. Alguns tinham votado nele, e mesmo
quem não estava do seu lado podia admirá-lo. Falava
bem. Era combativo. Sem papas na língua. Respeitava os
adversários. Tinha umas ideias malucas de unificar a
Polícia Civil e a Militar. Tinha ideias mais loucas ainda de
proteger a natureza. Depois do choque inicial, no
entanto, as pessoas se recuperaram rápido daquele
desapontamento. Então juntaram as peças e tiraram
suas conclusões tortas: a homossexualidade de Satti
ainda não se encaixava nos detalhes do crime, mas, se
ele fazia mesmo parte desse submundo, isso, por si só,
explicava seu destino trágico. Era veado, afinal. Mais
cedo ou mais tarde, algo de muito ruim acabaria
acontecendo.
A revelação também enfraqueceu temporariamente a
tese de que meu pai matara o companheiro de bancada
por ciúmes. Por isso, naquele 12 de junho, um domingo,
ele estava de bom humor, embora eu ainda não
soubesse por quê. Sorriu para mim na mesa do café da
manhã enquanto dobrava o jornal — a seção de esportes
virada para cima — e perguntou se eu queria mais um
Nescau quente.
“Quero sim.”
“Carmen, esquenta aqui outro Nescau pra Ciça.”
De tarde, colocamos casaco, cachecol e touca e
entramos os cinco no carro rumo ao Jockey Club. Na
praça Horizonte, três repórteres estavam sob o sol
jogando conversa fora, os mesmos de todos os últimos
dias. Eu não gostava deles. Tinham me roubado a praça,
tinham me roubado a torre do castelo. Pararam de falar e
olharam para nós. Eu sabia que não era educado ficar
encarando assim as pessoas, então reagi com má-
educação também, olhando fixamente para um deles até
que nosso carro se afastasse e eu os perdesse de vista.
Foi no Jockey Club que encontrei o tal Souza Andrade
pela primeira vez. Estava sentado sozinho a uma mesa
do restaurante quase vazio, fumando um dos seus
Cohibas contrabandeados. Se eu fosse apenas um
pouquinho mais nova, teria saído correndo para me
esconder atrás de um dos pilares do salão. Isso porque
ele tinha o jeito de um vilão do Zé Colmeia, gordíssimo e
sem um único fio de cabelo, e ainda por cima fabricava
nuvens espiraladas pela boca. Fomos chegando mais
perto. Quando nos viu, largou o charuto no cinzeiro e
disse, sem se levantar, Que bom ver vocês, Raul, que
família linda a tua! Parecia que meu pai e ele eram
velhos amigos, mas na verdade só tinham se encontrado
duas vezes, uma a sós e outra com minha mãe.
Eu não entendia por que tínhamos ido ao Jockey Club.
Os alto-falantes do restaurante narravam uma corrida
que estávamos perdendo. Do meu lado, meus irmãos
pareciam tão confusos quanto eu, olhando ao redor como
se tentassem descobrir se já éramos famosos a ponto de
sermos reconhecidos. Tudo parecia estranho. Se meus
pais tinham nos tirado da escola “até a poeira baixar”,
qual era o sentido daquele programa de domingo? Souza
Andrade, pensei de repente. Foi isso que mudou. Uma
ideia dele. Quer que as pessoas nos vejam.
“Sentem, pessoal, vou pedir mais uma cadeira.
Querem sorvete?”, disse, alcançando um cardápio. “Eles
têm taças muito boas, colegial, banana split, vocês
gostam?”
Depois do sorvete, nos deu dinheiro para apostarmos
nos cavalos, quinhentos cruzados para cada um de nós.
O favorito se chamava Guapo, mas Souza Andrade tinha
certeza de que um tal Sunset ia ganhar porque correria
com um jóquei mais novo e determinado que ele
conhecia muito bem. Marco apostou tudo no Sunset. Vini
escolheu o Guapo, mas decidiu usar só duzentos
cruzados, embolsando o resto com um sorriso de quem
se achava o mais esperto de todos. Eu gastei os
quinhentos em um cavalo chamado Cometa Halley. O
jóquei era M. Duarte, e estaria vestido de branco com
suspensórios azuis e boné vermelho. Guardamos os
canhotos de aposta e fomos para o lado de fora.
Os cavalos galopavam na pista para se mostrarem ao
público. Meus pais nunca tinham me levado ao
hipódromo. Descemos até o limite da cerca para ver
melhor e era tudo tão bonito, o pelo brilhante dos
animais se fundia às roupas coloridas dos jóqueis como
se aquilo fosse uma coisa sagrada, saída de outro
mundo. Percebi então que um dos cavalos tinha a cara
quase toda branca. Fiquei meio assustada. A mancha
branca sumia um pouco embaixo dos antolhos azuis, mas
estava lá, uma pintura inacabada. O cavalo resfolegou e
o jóquei puxou as rédeas e olhou muito sério para o
público distante. Quase comentei com meus irmãos
sobre o cavalo-fantasma, mas não queria passar por
boba, então achei melhor me concentrar no Cometa
Halley, o número 8, que para mim parecia tão bom
quanto o Sunset ou o Guapo. Quando os cavalos foram
embora, procuramos lugares na primeira fila da
arquibancada. Alguém tinha deixado um jornal para trás.
Marco fez menção de afastá-lo para o lado, chegando a
encostar nele com as pontas dos dedos, mas, como se de
repente começasse a brincar de estátua, estancou no
meio do movimento. Então eu e Vini também olhamos.
Era a capa, e lá estava o rosto de Fred circulado em
branco, que eu só conhecia pelas fotografias que minha
mãe tirara naquela viagem a Torres. Vestia um desses
blusões com losangos e encarava a câmera com olhos de
pedra. À sua esquerda, estavam o deputado Ferrari e um
homem que eu não conhecia, ambos com cara de choro
apontada para o chão. Havia dezenas de cabecinhas
desfocadas atrás deles. O funeral. Na manchete: “Polícia
acha rapaz que se dizia filho de Satti”.
“A verdade apareceu!”, disse Vini.
Marco estava sem reação. Tentei chegar perto.
“Isso aqui não é coisa pra criança”, disse, puxando o
jornal para o lado oposto.
Não protestei. Ficaram os dois lendo muito
concentrados, alternando grunhidos de espanto e
grunhidos de nojo. Que ficassem com o jornal então,
porque a corrida havia começado e eu precisava
encontrar o Cometa Halley, embora isso não parecesse
nada fácil com toda aquela distância; corriam do outro
lado da enorme pista oval, e fiquei pensando que seria
interessante se a arquibancada se movesse junto com os
cavalos, mas até o fim do pensamento eles já tinham
avançado muito e o locutor mal dava conta de nos
relatar o que estava acontecendo, até que disse o nome
do Cometa Halley e então repetiu o nome porque ele
ganhara duas posições e estava agora em segundo lugar.
Terminaram a corrida bem diante de nós. Um tal Billy the
Kid foi o vencedor, com o Cometa Halley em segundo e o
Guapo em terceiro. O Sunset acabou em quinto.
“Acho que eu vou ganhar alguma coisa”, eu disse.
Meus irmãos nem tinham prestado atenção na corrida.
“O que tá escrito no jornal?”, perguntei.
Continuaram lendo por mais alguns segundos e então
Marco jogou o jornal no chão como um adulto desgostoso
com as notícias. Ao mesmo tempo, estava com um
sorriso que dizia “o pai não fez nada”, aquela mesma
convicção que eu tinha visto na cara da tia Silvana
durante nossa conversa no jardim.
“Ele era bicha”, disse Vini.
“Bicha? Que nem o Rui?”
“Que nem o Rui.”
O Rui era o único gay que eu conhecia na época. Tinha
uma galeria de arte em um sobrado amarelo e minha
mãe costumava dizer que ninguém em toda Porto Alegre
podia ganhar dele no gosto para arte e decoração, duas
coisas que na verdade ela considerava quase sinônimas.
Comprava quadros na galeria, às vezes. Para mim, o Rui
andava como uma mulher e se vestia quase como uma,
com suas echarpes brilhantes que as mãos delicadas
estavam sempre afofando, e aqueles sapatos de fivelas
que pareciam joias para alguém colocar no pescoço. Rui
ia morrer de aids em 1992.
“O tio João não parece o Rui. Não parecia.”
“É, mas tá escrito ali”, disse Marco.
“E o Fred era bicha também?”, perguntei.
Marco olhou para o jornal que estava no chão, o rosto
de Fred circulado em branco e aqueles olhos que
pareciam já antecipar o círculo. Por anos a fio, eu ia
examinar incontáveis vezes essa mesma fotografia,
como se, mais do que qualquer outra, ela contivesse uma
verdade que se revelaria na insistência.
“Melhor tu não saber mais nada”, disse Marco. “Tu tem
nove anos!”
Vini olhou para ele.
“E daí? Deixa de ser idiota, Marco, ela é mais esperta
que tu.”
“Cala a boca, mongol!”
“Sim, o Fred é veado. Eles se conheceram no Parcão.
Não tinha telefonista nenhuma na história, foi tudo
invenção do Satti, ele mentiu pra todo mundo.”
“Vai ter algum outro páreo ou foi só essa coisa aí?”,
disse Marco, se levantando da arquibancada. “Os cavalos
não dão nem uma volta completa na pista. Ou deram?”
“Não deram”, respondi. “Foi meia volta só.”
“E que bosta de apostador esse Souza Andrade! Perdi
quinhentos cruzados pra nada.”
Conheci o Jesse em uma terça-feira e, no crepúsculo do
dia seguinte, eu já estava dirigindo rápido demais pela
Pacific Coast Highway enquanto seu último álbum rodava
em um volume ostensivamente alto, o mar à minha
direita, prateado e crespo e, à minha esquerda, as
montanhas sendo postas para dormir. Eu tinha começado
a chorar quilômetros antes e aquilo parecia nunca ter fim
e meus olhos só secariam mesmo quando eu chegasse a
Point Dume. Todas as vezes que eu dirigia serpenteando
a costa, era acometida por imagens muito nítidas de
carros que despencavam das falésias como brinquedos, e
especialmente do meu carro caindo de bico até colidir
com o mar, que teria virado uma coisa bastante dura
durante minha queda de cinquenta metros. Agora havia,
além disso, um cara cantando sobre um cânion na chuva
e sobre ser selvagem e livre na companhia dele. É claro
que eu estava morrendo de medo.
Estacionei em Point Dume e ouvi o barulho explosivo
das ondas e desci as escadas até a areia pensando que
eu precisava manter o controle. Ficar obcecada depois do
primeiro encontro era suicídio emocional. Eu tinha que
voltar para a minha autossuficiência e para as minhas
expectativas próximas de zero. A maré estava baixa. Eu
me aproximei das rochas cravejadas de anêmonas,
pequenas bocas que se fechavam quando eu encostava
meu dedo nelas, e então tirei as botas e as meias e
dobrei as barras da minha calça jeans. Quando meus pés
tocaram a água do Pacífico, senti as fisgadas de frio
subirem pelo corpo como eletricidade, uma dor que
naquele momento me pareceu maravilhosa. Lá no fundo,
o céu ia se descolorindo.
Era o outono de 2011 e, no dia anterior, Jesse entrara
na Norton procurando um coiote. “Eu tive uma ideia
ontem de noite”, dissera à menina da recepção enquanto
sua cabeça formava dez pensamentos por segundo, “foi
parecido com meu sonho, um coiote e o Gram Parsons no
deserto, como é que vocês fazem todos esses animais,
hein?” Suas mãos fora de controle tamborilavam na
mesa. A menina o encarou com má vontade e disse para
ele esperar um pouquinho. Então foi até a oficina,
interrompeu meu trabalho — a nova taxidermista — e
perguntou: “A gente tem algum coiote? Um cara lá na
frente quer saber. Acho que ele não bate muito bem”.
Era músico e estava preparando a turnê de lançamento
de seu terceiro álbum. Toda a paleta de cores de suas
roupas, ocre, marrom e jeans, parecia ter saído do início
dos anos setenta. De cara, fiquei fascinada pelo
anacronismo, era preciso ter fortes convicções para não
temer o ridículo e, além de tudo, ele parecia tão ajustado
à camisa de veludo cotelê, à barba, aos cabelos
compridos oleosos, que era como se nem tivesse se dado
conta de que o mundo ao redor era outro. “Uau, você é,
como é que chama, taxidermista, isso é incrível, eu” —
ele não desmanchava o sorriso, cortante e acolhedor —
“eu queria muito comprar um coiote pra colocar no
palco, nos meus shows. Minha ideia é fazer algo tipo um
deserto minimalista, o que você acha?”
Havia um único espécime no depósito. Segundo os
registros, ele fora montado por Andrew em 1998 para
uma série de palestras educativas sobre a convivência
entre humanos e coiotes no perímetro de Los Angeles.
Não era muito comum montar esse tipo de animal. Eles
não despertavam a mesma curiosidade que animais
exóticos ou aqueles sob perigo iminente de extinção; ao
contrário, os coiotes eram seres triviais, perturbavam os
subúrbios com seus uivos, remexendo as latas de lixo,
assustando os corredores noturnos. Também acontecia
de serem agressivos com cães e gatos, o que sempre
levava a reuniões comunitárias tensas, com alguém
inevitavelmente se levantando para dizer: Se não
tomarmos uma atitude, os próximos serão os nossos
filhos!
No caminho até o depósito, Jesse me contou do tal
sonho. Andava pelo deserto e de repente via ao longe,
ondulando no calor, o espírito luminoso de Gram Parsons
no rastro de um coiote. O animal parecia guiá-lo. Eu
sabia quem era Parsons: um músico que morrera de
overdose em um quarto de motel aos vinte e seis anos.
Os fatos posteriores à sua morte eram o tipo de coisa
macabra que podia animar um passeio pelo parque de
Joshua Tree, então eu não hesitava em contá-los a meus
grupos de turistas brasileiros logo depois de despejar
informações botânicas que os deixavam indiferentes: a
família desse músico icônico tinha intenção de enterrá-lo
do outro lado do país — eu dizia —, mas os amigos
sabiam que o desejo de Parsons era ser cremado e ter as
cinzas jogadas naquele parque nacional. Então pegaram
um carro fúnebre emprestado, sequestraram o corpo no
aeroporto de Los Angeles, dirigiram até o lugar preciso
onde estávamos e atearam fogo no caixão aberto (os
turistas, agora vidrados na história, davam risadas
nervosas). Foram depois responsabilizados pelo roubo e
por terem deixado cerca de dezessseis quilos de restos
humanos em uma área de proteção ambiental. O que
sobrou do corpo de Gram Parsons acabou sendo
enterrado em um cemitério da Louisiana.
Duas ou três vezes, eu tinha tentado ouvir os discos
dele, mas eles soavam country demais para mim. De
qualquer maneira, não mencionei nada daquilo a Jesse,
me limitando a fazer um gesto de que eu sabia de quem
ele estava falando.
Acendi as luzes do depósito.
“Uau. Parece que você vai colocar a Arca de Noé num
caminhão de mudança.”
A maioria dos animais estava coberta por capas
plásticas.
“Posso?”, perguntou, pronto para puxar uma delas.
Era uma raposa-do-ártico. Ele tocou de leve no pelo
branco.
“Como você veio parar aqui nesse lugar? Que sotaque
é esse?”, perguntou.
“Do Brasil. É uma longa história.”
“Bom, eu não conheço nenhuma história que seja
curta.”
Rimos, depois fomos desembrulhar o coiote.
Andrew montara o animal na posição de trote, com a
cabeça inclinada para a esquerda como se ele estivesse
procurando o olhar do espectador. A orelha direita estava
mais baixa do que deveria; fora danificada por um
menino depois de uma palestra em uma escola de ensino
fundamental.
“Não se preocupa com a orelha, eu vou consertar.”
Jesse nem prestou atenção.
“Nunca vi um coiote de tão perto.”
“Você gostou?”
“Se eu gostei? É tão… vivo.”
Qualquer animal empalhado carrega uma dualidade
perturbadora. Aquele coiote morrera em 1998, mas,
surpreendentemente, de alguma forma esquisita, ainda
estava ali. Olhando para seus olhos de vidro, Jesse havia
escolhido, entre a vida e a morte, perceber a vida.
Na praia de Point Dume, meus pés e minhas
panturrilhas já tinham se acostumado à água fria. Andei
até um lugar seco e tirei toda a roupa. Três caras me
olhavam de longe, um corpo feminino no lusco-fusco que
caminhava com determinação em direção às ondas. Até
os surfistas já haviam saído do mar, descolando-se de
seus trajes de neoprene depois de guardar as pranchas
em vans malcuidadas com cheiro de incenso e maconha.
Dei passos largos na água e então perdi o chão e raspei o
pé em uma pedra afiada, mas meu corpo já estava
ocupado demais reagindo ao novo ambiente para se
preocupar com uma coisa daquelas. Mergulhei, voltei à
superfície, mergulhei de novo e fiquei esperando que, de
um instante a outro, essas duas coisas se tornassem
quase indissociáveis, que a noite borrasse finalmente as
diferenças entre estar submersa e flutuar. Mas o jogo
perdeu a graça depois de um tempo. Meu pé começou a
doer, eu sentia agulhadas de frio por toda a pele e as
luzes da autoestrada nunca me deixariam esquecer onde
eu estava. Andei até minhas roupas batendo o queixo.
Liguei para o número que Jesse tinha me dado.
“O sonho então era sobre você”, ele disse assim que
saí de cima dele.
O melhor sexo da minha vida. Minha vontade era correr
pela rua gritando.
“Que sonho?”
Ele olhou para mim, mesmerizado.
“No fim a mensagem não era o coiote. A mensagem
era sobre te encontrar.”
“Dá pra você escrever uma música contando isso?”
Essa tinha sido a coisa mais romântica que eu já falara
para qualquer ser humano.
“Acho que merece mais. E se fosse todo um álbum
conceitual?”, ele disse.
Riu e beijou meus peitos, depois desceu para minha
barriga.
“Já que a gente não vai sair desse quarto por dois
dias...”
“Eu preciso trabalhar amanhã.”
“... por que você não me conta sua longa história?”
“Nem pensar. Qual é a graça de contar tudo de uma
vez?”
Ele sorriu. Tinha aprovado minha resposta. As pessoas
primeiro gostavam do mistério, depois se incomodavam
com ele.
“E se eu te falar sobre coiotes? Animais sinantrópicos e
tal.”
“Sino o quê?” Ele parou de me beijar e olhou para mim.
“Você é demais, sabia?”
Naquela época, Jesse estava tomando microdoses de
psilocibina — cogumelos mágicos moídos postos dentro
de uma cápsula — e, além de experimentar após cada
ingestão um formigamento gostoso nas sinapses
neuronais, ele andava se sentindo comovido pela
natureza a ponto de fotografar e postar nas redes sociais
uma pichação que dizia: Quatro bilhões de vasectomias
já! Mais lugar para os animais e para as plantas!
Enquanto olhávamos para o teto, falei sobre o
sinantropismo, que nada mais é do que a capacidade
adaptativa de certas espécies para conviver conosco.
Ratos, racuns, pombos, corvos, esquilos, cervos, coiotes.
Nem domésticos nem selvagens.
“Ursos também?”
“Às vezes sim, quando comem nosso lixo.”
Os animais sinantrópicos tinham dado um jeito de
sobreviver em um planeta em que três quartos das terras
e dois terços das águas haviam sido destruídos ou no
mínimo severamente modificados por nós, eu disse, me
sentindo mais professoral do que gostaria. Só por isso
esses animais já mereciam todo o respeito. Mas a
maioria das pessoas não pensava assim, e a tensão era
uma constante: quando um coiote atacava uma ovelha,
quando um cervo mastigava rosas ou entrava em
trabalho de parto no meio do jardim de uma senhorinha,
a sociedade decidia que havia bichos demais. Então
começavam com o papinho-furado do equilíbrio
ambiental. O governo federal matara mais de oitenta mil
coiotes no último ano. Em cidades de todos os Estados
Unidos, pipocavam iniciativas de controle da população
de cervos, que eram caçados por empresas privadas em
ruas do subúrbio com miras de visão térmica.
Peguei a mão de Jesse institivamente. Ele a apertou.
“Não é louco?”, eu disse. “Você desequilibra toda a
porra do planeta, depois se dá a missão de reequilibrar
segundo os seus critérios.”
“Critérios que incluem não ter uma criatura parindo no
seu jardim.”
Eu estava apaixonada por aquele homem.
“Você fala sobre sinantropismo com todos?”
“É a primeira vez, eu juro.”
“Vou acreditar.”
“Eu te deixei deprimido?”
“Não é como se eu já não soubesse que o ser humano
é podre. E agora tenho uma simpatia ainda maior pelos
coiotes.”
Dei um beijo nele.
“Tá bom, alguma coisa mais animada. Gram Parsons é
seu ídolo?”
“Um deles com certeza.”
“Quem mais?”
“The Byrds. Crosby, Stills & Nash. Grateful Dead. Joni
Mitchell.”
“Você não é muito novo para essa gente toda?”
“Ah, eu fui um menino estranho. Achava tudo que meus
amigos curtiam muito barulhento, e o que me empolgava
mesmo eram, sei lá, harmonias vocais e violões. Aquela
desesperança do pós-punk não dizia nada para mim. E
você?”
“Eu lembro da primeira vez que meu irmão me mostrou
um disco inteiro do The Cure.”
“E qual foi a sensação?”
Penso um pouco.
“A de que eu estava sendo abraçada por essa tal
desesperança.”
No mesmo dia em que vou para o deserto de Mojave
esfolar um leão e guardo a pele no freezer da Norton e
tomo um banho demorado até tirar completamente o
cheiro de entranhas do meu corpo, combino de encontrar
Kristen pela segunda vez. Não tenho orgulho nenhum
disso. Jesse vai chegar no dia seguinte e eu estou fugindo
de um conflito criando outro. Vou até o apartamento
dela. As outras duas meninas saíram, o que me dá certo
alívio, mas também me deixa apreensiva, pensando que
arquitetaram tudo, que quiseram que ficássemos
sozinhas pois acham que essa coisa entre nós tem futuro.
Não tem. Eu me sento no sofá enquanto ela desaparece
na cozinha. Volta com uma garrafa de saquê e dois
copos. Não sei exatamente por quê, mas aquilo me
comove de um jeito ruim. É a única coisa que temos,
concluo um pouco mais tarde quando já estou
terminando o primeiro copo e Kristen põe uma música
para tocar que me lembra a trilha sonora esganiçada e
otimista das lojas de fast fashion. Ela começa a dançar.
Eu me levanto também — não tenho outra opção, estou
aqui agora — e danço olhando para ela. Ela ri e diz que
pareço meio dura para uma brasileira, o que faz com que
eu dê um beijo nela e a encoste na parede e pressione
meu corpo contra o seu em uma espécie de contra-
argumento instintivo. Vou embora por volta das duas,
depois de ela insistir muitas vezes para que eu fique.
“Trabalho cedo”, eu digo, e ela pergunta: “Que animal
você vai salvar amanhã?”. Respondo que não sou capaz
de salvar nada nem ninguém; o que faço é apenas
mostrar o que o ser humano destrói.
Então, no dia seguinte, Jesse chega. Fico parada na
frente da nossa casa olhando para as janelas acesas da
sala, ainda sem coragem de entrar. O azul vespertino do
céu é um azul apagado, diluído por partículas de
monóxido de carbono. Foi exatamente desse ponto da
calçada que eu e Jesse vimos a casa pela primeira vez,
nossa oitava tentativa de dizer “é essa” porque um de
nós sempre implicava com algum detalhe: a disposição
dos cômodos era ruim, a localização não parecia ideal, o
segundo quarto não comportava todos os instrumentos
musicais do Jesse, a garagem jamais poderia ser
transformada em uma oficina para mim. Éramos os
perfeccionistas da ideia de futuro, embora no fundo eu
ainda hesitasse entre ter uma vida com Jesse ou resistir à
intensidade daquela paixão e me isolar em algum lugar
ermo.
A oitava casa visitada, no entanto. Uma odisseia
imobiliária que ia acontecendo independentemente das
minhas dúvidas internas. A casa neocolonial de esquina
parecia bem promissora nas fotos, muito promissora
quando a olhamos por fora e finalmente incrível — para
Jesse — assim que o corretor abriu a porta e ativou nossa
imaginação com um gesto que abarcava aquela sala
imensa. “É essa, eu sinto”, Jesse sussurrou no meu
ouvido, ao que respondi apenas com um meio-sorriso,
tentando disfarçar que me sentia péssima por não ter
sido também acometida pelo raio cósmico da intuição,
pelo vínculo emocional instantâneo. No final da visita,
dissemos ao corretor que ficaríamos com a casa. Meu
corpo inteiro tremia. Eu andava de um lado para o outro
como se estivesse analisando as paredes, os rodapés, a
vista.
Lembrando a cena agora, seis anos depois, percebo
que sempre tive medo de não corresponder às
expectativas de Jesse. Atravesso a rua. A porta se abre
quando ainda estou a alguns metros dela.
“Achei que você não ia entrar nunca”, ele diz. Se
encosta no batente, botas de caubói, olhos apertados
como se estivesse vendo o sol de frente.
Dou um beijo nele.
“O que você tava fazendo ali na calçada?”
“Nada. Só olhando. Cansado da viagem?”
“Não muito. Fiz comida pra nós.”
Dahl de lentilha e arroz jasmim. Vou até o banheiro e
penso no que falar e quando falar enquanto jogo água no
rosto e depois me encaro no espelho. Tenho a boca dos
Matzenbacher e o nariz dos Bonacina e uma ruga entre
as sobrancelhas que não se desmancha mais. Jesse gosta
de correr o dedo por ela. Ele vai entender. Quando volto
para a cozinha, está rasgando umas folhas de couve-
chinesa e pondo os pedaços em uma cumbuca. Vejo os
pratos já na mesa e então é inevitável pensar que só
faltaram as velas para esse ser oficialmente um
casamento em crise. Sentamos para comer.
“Tava pensando que a gente podia fazer uma
caminhada no sábado”, ele diz.
“Claro, vamos.”
“Não aguento mais ver planície. E na semana que vem
eu já vou estar bem ocupado. O Aaron andou me
ligando.”
“Que Aaron?”
“Aaron da Fiddleheads. Quer que eu produza o disco
novo deles.”
“Você sempre fala mal dessa banda, Jesse!”
“Eu sei.”
“Careta, cafona, tristeza de Instagram, Xanax cristão.
Você disse ‘sim’?”
Ele sorri, como se sua versão mais intolerante o
divertisse.
“As músicas novas não são ruins. O Aaron se separou
no ano passado e fala basicamente sobre tudo o que ele
sentiu durante o processo, as demos tão bem mais
maduras, ele me mostrou. A gente já conversou. A banda
tá superaberta pra tomar outro rumo.”
“Por que você tá fazendo isso?”
“Quê? É só um trabalho, Cecília.”
Para de comer.
“Eu tenho quarenta e dois anos”, diz.
“E daí que você tem quarenta e dois anos?”
“Você não acha que tá na hora de admitir que o sonho
acabou?”
Jesse se levanta. Enche um copo com água da torneira
e bebe um gole, escorado no balcão.
“Sabe quando você se dá conta de que as coisas já não
são feitas pra você?”, diz, olhando para o nada. “Que
você não entende mais o que tá acontecendo? Que todo
mundo acha legal o que pra você parece ridículo?”
“Você não teve essa sensação desde que nasceu?”
“É muito mais intenso agora.”
Ele se senta de novo.
“Eu também me sinto assim às vezes, Jesse.”
O sorriso quebrado que ele dá me deixa a impressão
de que ele tem pena de nós dois. Mas eu não consigo
mudar o clima: devolvo um sorriso mais estropiado
ainda.
“Meus pais te mandaram lembranças.”
Paro com o garfo a meio caminho da boca.
“Como assim, você viu seus pais?”
“Tive uma folga de dois dias.”
“Você dirigiu até a Carolina do Sul?”
“É, onze, doze horas. Meu pai tá feliz, comprou um
drone, fez várias filmagens, todas iguais, da casa deles
vista de cima, e a gente assistiu tudo na tv com uma
trilha tipo As pontes de Madison. Minha mãe ficou
reclamando como sempre, do meu pai, do vizinho e do
supermercado, que mudou todas as coisas de lugar. E
perguntou quantos anos você tinha mesmo. Totalmente
do nada.”
“Ela sabe bem quantos anos eu tenho.”
“Eu sei que ela sabe.”
“Por que você tá me contando sobre esse comentário?”
Eu me levanto da mesa. Ele me segue até a sala.
“Não precisa ficar tão sensível toda vez que a gente
fala sobre isso.”
“A questão é que a gente não tava falando sobre isso,
Jesse. A gente tava falando sobre sua carreira. Qual é o
problema? Você acha que vai se sentir menos fracassado
se tiver um filho?”
Ele não responde. Talvez eu tenha exagerado um
pouco.
“Acho que preciso te contar uma coisa”, eu digo.
Ele se senta na poltrona à minha frente, esperando.
Agora não tem mais volta. Começo a contar sobre
Kristen, desde as conversinhas no caixa do mercado até
a segunda vez que fui ao apartamento dela. Em um
primeiro momento, uso todos os clichês possíveis sem
perceber, não significou nada, o problema sou eu, como
se estivesse tirando a confissão dos meus atos não de
dentro de mim, mas de uma espécie de memória coletiva
da traição. Jesse me escuta surpreso. Eu não choro.
Quando chego ao fim da história — não seria justo
machucar mais uma pessoa —, ele dá um longo suspiro e
me olha com raiva.
“É a primeira vez que você fica com uma mulher?”
“De tudo o que eu disse, é isso o que realmente
importa pra você, que a pessoa seja uma mulher? Não dá
pra acreditar.”
“E como é que não vai importar, Cecília? Significa que
eu não sei quem você é!”
A conclusão me irrita, ainda que não me surpreenda.
“Mas uma coisa que com certeza eu sei sobre você é
que você enjoa de tudo”, ele diz, se levantando de
repente da poltrona.
“Não é verdade. Desculpa, Jesse.”
Ele anda até o aparador.
“E a outra coisa que eu sei é que você sempre foge.”
Pegou as chaves do meu carro. Então joga o chaveiro
com toda a força na minha direção.
Jesse quase me acerta no rosto com minhas chaves de
casa, do carro e da Norton. O chaveiro metálico da
sequoia estilizada bate na parede e despenca. Coloco a
mão na bochecha, sentindo o impacto que não
aconteceu, depois pego as chaves e as guardo no bolso
enquanto Jesse me olha de boca aberta com um pedido
de desculpas entalado na garganta. Não dou mais tempo
de ele dizer nada. Ele gagueja ao me ver indo na direção
da porta e então eu já estou atravessando a rua quando
ele finalmente fala: “Desculpa, eu me descontrolei,
Cecília, que coisa horrível, eu… me perdoa, por favor!”.
Entro no carro com Jesse em meu encalço e ele me deixa
fechar a porta sem resistência porque agora caiu em si.
Acelero e começo a chorar assim que vejo Jesse pelo
espelho, parado no meio da rua como se eu ainda
pudesse mudar de ideia. Amanhã talvez ele pense que o
episódio foi a desculpa perfeita para eu fugir, como
sempre. Pode ser que ele tenha alguma razão.
Não sei exatamente para onde ir. Cogito os campings
dos parques estaduais em Topanga e Malibu, mas é
impossível conseguir uma vaga de última hora em um
sábado à noite. Descarto a ideia de dormir em um hotel.
Vou seguindo o fluxo intenso da freeway enquanto tento
me concentrar na minha respiração, quatro segundos
puxando o ar pelo nariz, quatro segundos soprando-o
pela boca e então repetir, repetir, repetir. Bem diante de
mim, vejo as luzes do Centro. Estou me aproximando
delas. Lembro de como isso me impressionou quando
cheguei neste país há dezesseis anos, o céu noturno e as
torres de luz sempre lá, ainda que os escritórios
estivessem todos fechados.
Pego uma saída da freeway para entrar no Centro.
Chega a ser engraçado percorrer de forma automática
esse caminho, ter criado uma rotina e ter gostado disso e
agora estar morrendo de medo porque de novo parece
um erro depositar tanto afeto em uma pessoa. Paro no
estacionamento deserto da Norton. Fico um tempo com
as mãos no volante, incapaz de me mexer. No canteiro
central da avenida, há duas barracas de moradores de
rua, e alguém revirou a lata de lixo que fica na frente da
oficina do Al. Compramos pneus usados. Fiz uma
previsão ruim. Achei que Jesse poderia entender o que
nem eu entendo. Além disso, nem sequer tive tempo de
falar que meu pai teve um avc. Checo o celular. Nenhuma
mensagem. Ele deve estar com vergonha, quer me dar
espaço, está pensando em como não piorar as coisas
entre nós. Por alguns instantes, considero ligar para
Vinícius para contar de Kristen. Ele com certeza riria da
coisa toda. Mas já passa da uma da manhã no Brasil e
não faz muito tempo que ele finalmente aprendeu a
dormir cedo. Melhor deixar para outro dia.
A lua está minguante e amarela, envolta em uma
névoa fina como renda. Ainda consigo ver seu lado
escuro. Jesse nunca foi violento comigo, e sempre é o
primeiro a chorar nas brigas. Um homem sensível, eu
acho, eu achava. Desço do carro sem vestir a jaqueta,
sentindo o vento gelado nos braços. Então abro o porta-
malas para pegar minha mochila e meu saco de dormir
como se ainda vivesse em Sedona e fosse acampar
sozinha na beira do riacho Oak. Desativo o alarme da
porta dos fundos.
No chão da oficina, estendo o saco de dormir e me
deito, mas é claro que não consigo pegar no sono. Olho o
celular de novo: nada. Não sei se sinto mais pânico de
mensagens ou da falta delas, mas, na dúvida, opto pela
decisão radical de desligar o telefone. Acho que quero
viver a fantasia de que não posso ser encontrada, como
se meu sumiço fosse também uma espécie de vingança,
o que, pensando bem, os sumiços quase sempre são.
Levanto e vou esquentar água na chaleira elétrica. Saia
imediatamente dessa cozinha se você não higienizou
suas mãos direito, diz o cartaz plastificado que Greg
escreveu há anos, e tento rir fingindo que aquilo é uma
piada nova. Abro uma gaveta, preparo um chá de
camomila e saio soprando a xícara fumegante. Então
caminho até a sala de relíquias e acendo as luzes fracas
de museu. Até o ar parece antigo aqui: amadeirado,
seco, solene. Protegidos por pesados expositores de
carvalho, cerca de cinquenta animais empalhados estão
dispostos sem nenhuma lógica geográfica ou
taxonômica. Há raridades como um tigre-do-cáspio
montado em 1952 — espécie considerada extinta em
2003 — e animais bastante comuns como doninhas e
raposas. O panda-vermelho e o pangolim são os que
mais despertam curiosidade. No centro da sala, em uma
vitrine trabalhada que o avô de Andrew comprou de um
velho museu sem dinheiro, estão expostos fósseis,
conchas e centenas de borboletas, uma gama absurda
de cores translúcidas presas a alfinetes. Há também
vidros de todos os tamanhos que contêm iguanas,
cobras-corais e cavalos-marinhos flutuando em
formaldeído.
A sala foi montada com certa mentalidade vitoriana. Há
uma ideia clara de síntese do mundo, e esse mundo é
um mundo encantado pré-extinção e pré-apocalipse,
anterior à compreensão do mal que o ser humano causa.
Talvez seja isso o que me fascina tanto: aqui começa
essencialmente a romantização da natureza, o momento
em que o homem não mais teme os animais, mas passa
a enxergá-los como uma fonte de prazer estético. É claro
que essas vitrines celebram a diversidade e a beleza do
mundo natural. Ao mesmo tempo, são uma prova
incontestável de nostalgia. Carregam com elas a ideia de
destruição. Objetos só vão parar em vitrines ou caixas
quando sentimos que é urgente nos lembrarmos deles.
Então me vem à cabeça a coleção modesta que tive
quando criança. O osso de zorrilho. O fragmento da
carapaça de um tatu. Sementes de paineira, pinhas,
conchas, flores secas, penas de perdiz, penas de pato,
um louva-a-deus que matei no jarro da morte. A coleção
crescia bem devagar, e quase não havia nela coisas
inteiras; de modo geral, eu só conseguia encontrar
pedaços. Tive aquela caixa de sapato por uns três anos.
Um dia, voltei do colégio com um zangão morto dentro
do estojo e a caixa não estava mais lá. Fui atrás da
minha mãe em desespero. Por acaso ela sabia onde
estava minha coleção de naturalista? Respondeu muito
calma, mal tirando os olhos da tv, que tinha jogado tudo
fora. Tava um nojo aquilo, Cecília, fui obrigada a colocar
no lixo. Chorei sem parar durante toda a tarde. Aquilo
aconteceu em 1990, apenas algumas semanas antes do
julgamento do meu pai. A caixa era minha maneira de
acessar um mundo que me parecia perfeito e distante.
Na sala das relíquias, fico parada diante dos animais
até que me pareça impraticável suportar tanta beleza e
tanta perda. Sinto os olhos de todos em cima de mim.
Escreveu um certo John Berger, escritor britânico:
“Nenhuma outra espécie, além da humana, reconhece
como familiar o olhar do animal. Os outros animais são
dominados por esse olhar. O homem toma consciência de
si ao devolver esse olhar”.
Para Berger, no entanto, a aproximação quase não
existe mais; os animais foram marginalizados no século
xix com o avanço do capitalismo, e a partir daí
praticamente restritos ao espaço simbólico — da pintura
romântica aos personagens da Disney — ou ao
confinamento dos zoológicos.
Sobre os zoológicos, que John Berger muito frequentou
com entusiasmo quando era pequeno (uma das poucas
lembranças felizes da minha infância), o escritor é
categórico: “Local para encontrar animais, observá-los,
vê-los, o zoológico é, na verdade, um monumento à
impossibilidade desses encontros”.
O mesmo se pode dizer sobre os animais que eu
refaço.
Acordo desorientada no chão da Norton. Abro o zíper
do saco de dormir e me sento. Acendo a lanterna e a
primeira coisa que ilumino é o manequim do leão que
mal comecei a esculpir outro dia, a boca aberta, os olhos
ainda buracos. Não faço ideia se já amanheceu, não há
janelas aqui e, como continuo sem a mínima intenção de
religar meu telefone, me arrasto até a cozinha para olhar
o relógio do fogão: 07:11, um domingo, ninguém vai
aparecer. Lavo o rosto no banheiro e examino minhas
olheiras enquanto sou tomada por aquele sentimento
matinal clássico. A vida recomeça, é preciso empilhar os
blocos, reconstruir o dia anterior, lembrar em que ponto
da história paramos.
Preparo ovos mexidos desidratados e faço um café
solúvel. Até perto das nove horas, consigo me manter
distraída trabalhando nas patas dianteiras do leão. Mas
então começo a perder a concentração e a pata direita
não parece estar ficando nada boa. Como se o leão
estivesse machucado. Pego o celular. Me sinto boba e um
pouco cruel por estar com o aparelho desligado. Jesse
pode achar que aconteceu alguma coisa, hoje em dia as
pessoas sempre pensam no pior quando não conseguem
falar umas com as outras. Sinto, de repente, que não
quero mais ir tão longe na minha vingança. Não quero
desaparecer. Quero ficar exatamente aqui. Vou até a pia
e tiro o gesso das mãos, esfregando os dedos com força
um por um. Religo o telefone.
Chamadas perdidas e muitas mensagens (Dá pra gente
conversar? Onde você tá? Você sabe que eu nunca te
machucaria. Te amo). Minha mãe também tentou me
ligar. Não falo com ela há muito tempo e ainda não sei o
que dizer para Jesse. Ligo. Ela atende quando já estou
quase desistindo.
“Oi, Cecília. Espera só um pouquinho. Só bate a porta,
André! Manda um beijo pra Isa e vê se não toma todas
nesse churrasco, hein!”
Carmen Bonacina com aquela felicidade histérica de
sempre.
“Oi, filha.”
“Quem é André?”
Ela suspira.
“Quantas vezes eu já te falei dele? Meu personal faz
sete anos.”
“Ah, sim, o que transformou tua amiga Ivone Linhares
em Ivone Linhaça.”
Ela ignora a piada.
“Tá sabendo do teu pai?”
“O que do meu pai?”
“Cecília, tu te comunica com teus irmãos de vez em
quando? Porque comigo eu sei que não muito.”
“O que houve, mãe?”
“Ah. O Marco conversou com o neuro, e parece que é
muito difícil que ele volte a falar.”
Não sei exatamente o que pensar disso.
“Mas ele entende o que tá acontecendo?”
“Entender, entende. Ele escreve num caderno.”
Não digo nada.
“Tá tudo bem, minha filha? Onde é que tu tá?”
“Viajando”, respondo.
É algo que sai sem querer. Na sequência, fico
esperando que ela faça outras perguntas — onde, com
quem, por quê —, talvez apenas para que eu tenha o
prazer de não dizer mais nada, a satisfação de manter
minha vida bem longe da dela mesmo quando ela tenta
se aproximar. Mas ela não tenta. Quer me contar de
alguém que conheceu há algumas semanas. Foi em um
jantar de formatura lindo, o filho de uma amiga, nome-e-
sobrenome, eu sei como são esses eventos (eu não sei),
as pessoas com lugares marcados baseados em algum
tipo de afinidade, e a seu lado direito estava sentado
então esse homem muito elegante que logo começou a
conversar com ela como se nunca tivesse se divertido
tanto. Claro que era viúvo. Desde que ela tinha feito
sessenta anos, eram sempre os viúvos.
“Ele é coronel da reserva, um homem muito romântico,
me mandou um buquê de lírios depois do nosso primeiro
jantar, acredita? Sabe desde quando eu não ganhava
flores? Desde o Guillermo, Cecília! Teu pai nunca me deu
flores. O cheiro que ficou nessa casa por uma semana
inteira!”
“Um coronel?”
“Da reserva.”
“Então tava na ativa na ditadura.”
“Cecília, eu não fico fazendo conta.”
“Bom, tu vai votar num capitão. Por que não namorar
um coronel, né?”
“Impressionante como tu continua a mesma.”
“São três patentes a mais.”
“Sabe o que eu acho estranho, minha filha? Tu tá
sempre procurando uma coisa ruim. Por que tu não fala
das flores?”
“Por que eu não falo das flores?”, repito, rindo. “Meu
Deus, mãe.”
Ouço os saltos no piso frio.
“Tu não entende esse país”, ela diz depois de um
tempo.
Então sou eu que demoro a responder. É verdade.
Porque entender esse país é entender a tolerância ao
horror. Entender esse país é entender que subir a
pirâmide significa pisar em escombros. Entender esse
país é entender minha mãe criança aplaudindo Getúlio,
depois dançando para o general Castelo Branco, depois
exultante com a redemocratização que elegeu meu pai,
depois sacudindo a bandeira verde e amarela em apoio a
um capitãozinho saído dos esgotos do Brasil.
“Mãe, eu tô com um monte de coisas na minha cabeça
agora, tá bom? Tu podia me ajudar em vez de ficar
defendendo fascista.”
Ela bufa.
“Lembra da viagem que tu fez antes de dar teu
depoimento pra polícia?”, pergunto. É algo em que tenho
pensado muito ultimamente.
Por um instante, tenho a impressão de que ela vai
desligar o telefone na minha cara.
“Para que falar disso agora? Era outra vida. Eu
renasci.”
“A maioria das pessoas não tem esse poder.”
“Tu já me fez tantas perguntas.”
“O que tu lembra daquela viagem, mãe?”
“Não sei! Parece que tu quer me sentar de novo
naquela cadeira do Palácio da Polícia. Eu fui até Rivera-
Livramento, choveu muito, nem lembro onde eu fiquei.
Acho que fiz compras. É, eu fiz. Encontrei aquele batom
que eu gostava.”
“Se chamava Hotel Ramona.”
Ela ri.
“Como é que tu sabe disso?”
“Eu guardo essas coisas.”
“Que desperdício.”
“Naqueles três dias no tal Hotel Ramona, alguma vez
te passou pela cabeça não voltar pra casa?”
“Não voltar?”. Ela gargalha. “E como é que eu ia fazer
isso, Cecília? Eu tinha três filhos pra criar!”
“Tudo bem, tu acha então que isso não era uma opção.
Mas o que te fez decidir?”
“Decidir o quê?”
A primeira coisa que eu penso é “mentir para a
polícia”.
“Defender meu pai”, acabo dizendo.
“Ciça. Tu tem que entender. Eu nunca soube de nada,
minha filha. E depois já era tarde, o mal tava feito, não
tava? Qual era o sentido de destruir nossa família
também?”
“A gente merecia ser destruído, mãe.”
Segunda semana depois do crime. Tia Silvana
continuava me trazendo a matéria da escola e, depois de
passar página a página para ir marcando com um
asterisco gordo todas as ordens de tarefas — como se eu
precisasse mesmo disso —, ela me olhava, erguia os
arcos perfeitos que eram suas sobrancelhas e dizia duas
vezes que tudo ia ficar bem. Eu acreditava nela. Era bom
acreditar. Ela tinha um cheiro doce, como um chiclete
guardado no bolso por tempo demais, e nunca perdia a
paciência quando eu falava sobre os gibis da Luluzinha e
as tantas coisas que eu já tinha aprendido em O
naturalista amador. Naqueles dias, tia Silvana preenchia
a grande lacuna de atenção deixada por meus pais, mas
também se comportava como uma espécie de emissária
que trazia informações cifradas sobre o caso Satti. Assim,
certa tarde ela disse: “O segredo chegou na praça
pública, Ciça”. Em outra, pegou minha mão para
declarar, quase chorando, que filhos eram algo sagrado e
que Satti brincara justamente com isso, que não se podia
jamais brincar com uma coisa daquelas. No dia 17 de
junho, uma sexta-feira, tia Silvana me fez repetir uma
série de trava-línguas, e eu ri à beça daquilo que nada
tinha a ver com a matéria da quarta série, três pratos de
trigo para três tigres tristes, o pelo do peito do pé do
Pedro é preto. Com a distância dos anos, no entanto, eu
viria a entender que todas aquelas frases engraçadinhas
eram na verdade uma mera preparação para a
mensagem enigmática do final: quem com ferro fere,
com ferro será ferido.
Foi a primeira vez que ouvi isso. No momento, não me
pareceu exatamente um trava-língua, ou decerto tinha
sido pensado para crianças de um nível bem iniciante.
Mas não dei bola. Eu só queria agradar. Pedi que ela
dissesse a frase de novo e, mal parando para tomar ar,
repeti as palavras três ou quatro vezes sem um mínimo
deslize. Tia Silvana reagiu com palmas curtas e
silenciosas. Terminou o café. Foi embora não muito
depois disso.
Nesse mesmo dia, enquanto minha ex-professora
tentava me ensinar por linhas tortas uma moral
brutalizante, meu pai estava entrando no Palácio da
Polícia. Era esperado por Apóstolo Viana e Wilson Meyer,
os dois delegados que conduziam a investigação do
homicídio de Satti. Tratava-se apenas de uma conversa
informal, e tenho motivos para acreditar que meu pai
estava confiante: Porto Alegre passara a semana inteira
discutindo a homossexualidade de João Carlos Satti; nos
jornais, Fred representava o personagem saído de um
“submundo gay”, algo que soava como a versão soturna
e perigosa de uma Porto Alegre idílica que obviamente
nunca havia existido; os presentes que minha mãe
oferecera ao deputado e seu assédio diário na
Assembleia tinham portanto se tornado notícias velhas,
pilares de uma hipótese que parecia estar ruindo.
Foi nesse contexto que meu pai chegou ao Palácio da
Polícia. A partir dos meus dezoito anos, imaginei-o muitas
vezes em uma sala com uma única janela espessa de
fuligem, por onde se podia ver, na avenida João Pessoa,
um segmento triste de uma palmeira-da-califórnia. Na
minha cabeça, ele olha para fora e pergunta se pode
fumar. Então, diante do gesto positivo de um dos
delegados — Raul era um parlamentar, afinal de contas
—, tira vagarosamente do bolso da camisa sua carteira
de Minister, branca com uma faixa superior azul (tenho
uma dessas na minha coleção). Talvez tenha tido tempo
para algumas tragadas tranquilas antes de cometer um
de seus maiores erros.
As grades do Edifício Elizabeth.
As malditas grades, o perigo iminente, a cidade se
fortificando.
Apenas alguns dias antes daquela conversa com meu
pai, a polícia ouvira mais uma vez Glória Andrade, amiga
de Satti, e Paulo Bittencourt, seu chefe de gabinete.
Segundo ambos, o deputado Matzenbacher estivera na
frente da casa do colega três noites antes do crime, isso
de acordo com o que o próprio Satti teria lhes contado. O
fato (Tudo muito esquisito, Paulo!) havia ocorrido depois
de um jantar no qual os dois deputados estavam
presentes, na Churrascaria Barranco. Ainda segundo o
que contaram Glória e Paulo, ao se aproximar do seu
edifício, caminhando desde a Garagem e Posto Estrela,
Satti tinha reconhecido o Monza cinza de Matzenbacher
parado diante do portão e, ato contínuo, viu que o
próprio deputado estava dentro do carro (Tudo
muitíssimo esquisito, Glória!). Assim que percebeu que
Satti se aproximava para falar com ele, Matzenbacher
teria acelerado e ido embora em alta velocidade. No dia
seguinte, na Assembleia Legislativa, meu pai — de
acordo com Satti, ainda segundo Glória e Paulo — negou
que aquele episódio tivesse ocorrido.
Então o deputado e ex-jornalista apareceu na calçada
três noites mais tarde cravejado de grãos de chumbo.
Quem tinha feito aquilo? No depoimento informal de 17
de junho, meu pai deve ter sugerido aos delegados que
Glória e Paulo queriam incriminá-lo, negando mais uma
vez que tivesse estado naquela esquina recentemente
(Conheço o edifício, sim, mas não vou lá há bastante
tempo, cinco, seis meses? Como é? Um edifício baixo de
esquina, quatro andares eu acho, com grades verdes e
pilotis).
O problema era que as grades tinham sido instaladas
apenas nove dias antes do crime.
Diante dessa inegável oferenda condenatória, imagino
um dos delegados, possivelmente Wilson Meyer, sorrindo
de forma constrangida, quase apologética: As grades
foram colocadas no dia 30 de maio, dr. Raul. O senhor
não deveria saber sobre isso.
E foi assim que meu pai deixou o Palácio da Polícia,
carregando consigo os olhos do delegado Meyer, talvez o
pigarro de Apóstolo Viana. Pagou um flanelinha com
cheiro de cachaça e esquentou o carro e entrou na
Ipiranga e olhou com asco para as águas opacas do
arroio Dilúvio. O céu estava branco como alguma coisa
que ainda não é ou alguma coisa que já terminou. As
árvores decepadas em V para a passagem dos fios de luz
se sucediam no para-brisa do Monza, e ele quase se
esqueceu de dobrar em uma das pontes porque no fundo
iria até Viamão em um piscar de olhos. Ou quem sabe
mais longe. Mas não podia, era tarde demais. Precisava
voltar para casa. Quando chegou, foi direto ao escritório
ligar para Souza Andrade. Também pensei muito nesse
telefonema: Andrade, fiz uma bobagem. Ou talvez,
tentando mascarar o desespero: Foi tudo bem lá, só tem
uma coisinha que eu preciso comentar contigo para ver
como a gente pode consertar.
No início daquela noite, eu estava no meu quarto
fazendo as tarefas que tia Silvana havia deixado. Ainda
era uma boa aluna. Não tinha ouvido meu pai chegar em
casa, muito menos o telefonema para Souza Andrade ou
para qualquer outra pessoa. O único ruído da casa era o
da televisão. De repente, ouvi a voz alterada do meu pai.
Estava discutindo com o Vini. Me levantei sem fazer
barulho, andei em câmera lenta pelo corredor e colei o
ouvido na porta do quarto do meu irmão. Parece que Vini
queria sair. Meu pai dizia que “não” era “não”. Vini daí
respondeu que ele podia ligar para a mãe do Luciano se
quisesse, mas meu pai não queria nem saber. “Tu não vai
sair dessa casa hoje, Vinícius”, ele falou, mais alto do que
já vinha falando e, no mesmo instante, abriu a porta com
violência. Fiz de conta que estava a caminho do
banheiro.
Vini ficou emburrado pelas horas seguintes, ouvindo
alto um disco do The Cure que pegara emprestado do
Luciano, mas, pela primeira vez, meu pai não pediu que
ele abaixasse o volume. Por volta das nove, um carro que
eu nunca tinha visto na vida parou na frente de nossa
casa. Era difícil enxergar o rosto do motorista, mas
parecia o de uma pessoa bem jovem. Antes que eu
pudesse perguntar qualquer coisa, meu pai vestiu o
casaco e disse: “Tô saindo”. Eu estava vendo televisão
com o Marco. Não foi muito depois disso que o Vini
desligou o toca-discos, como se as dezessete faixas
daquele álbum duplo não fizessem tanto sentido se
nosso pai não estivesse mais ali para ouvi-las. Vini
apareceu na sala.
“Há quanto tempo a mãe tá no quarto?”, perguntou.
“Tempo demais”, disse Marco.
“Vocês tão com fome?”
Depois de terminarmos o saco de bisnaguinha e todo o
salame da geladeira, Vini subiu em um banco e alcançou
uma lata de leite condensado que eu nem sabia que
estava lá, no fundo da prateleira mais alta do armário.
Fez um furo na tampa com uma faca pontuda. Um de nós
segurava a lata enquanto o outro ficava com a boca
aberta por todo o tempo que conseguia.
Um ou dois dias depois, Vini me contou sobre a grande
ave-do-paraíso.
“Vou te contar a história de um pássaro, tu vai gostar”,
disse.
Havia um sabiá gordo sobre o nosso muro, e eu estava
olhando para ele. Vini se sentou do meu lado, no chão.
Arrancou uma folha de grama. O sabiá voou.
“Foi bem antigamente, no século xvi, em uma ilha, acho
que é ilha, chamada Nova Guiné. Os europeus
apareceram por lá pra buscar, sei lá, cravo e canela,
esses troços que eles chamavam de especiarias e que
valiam muito dinheiro. E aí ficaram encantados com um
pássaro. Nunca tinham visto nada parecido.”
“Como ele era?”
“Tinha umas penas bem louconas no rabo, amarelas,
compridas, uma onda. O resto do corpo era meio
castanho. E talvez mais uma cor embaixo do bico.
Verde.”
“Tu viu uma foto?”
“Não tinha foto no século xvi, Ciça.”
“Um desenho?”
“Não, só me contaram a história. Ó, presta atenção,
porque agora vem a parte que interessa.”
Jogou fora o pedaço de grama e arrancou outro, que foi
então rasgando em tiras com toda a calma.
“Como os europeus tavam tão fissurados pelas penas,
os nativos começaram a matar os pássaros pra vender.”
“Não era mais legal ter o bicho vivo?”
“Eles não sobreviviam às viagens de navio. E acho que
o clima da Europa também não dava pra eles. Então os
nativos iam lá, matavam, cortavam as patas e vendiam
os pássaros.”
“Por que sem as patas?”
“As pessoas só tavam interessadas nas penas. As patas
eram patas de pássaro, só. De qualquer pássaro. E eles
pesavam menos sem elas.”
Vini parou de falar. Ficou olhando para o céu. Parecia
que não queria mais contar a história.
“Continua”, eu disse.
Ele suspirou.
“Como quase ninguém da Europa tinha visto esse
pássaro vivo e com patas, logo surgiu uma lenda.
Achavam que era um animal sem patas. Chamavam ele
de grande ave-do-paraíso. As pessoas acreditavam que
ele nunca pousava, que passava a vida inteira voando,
sem nenhum descanso.”
“Uau!”, eu disse. “Quem te contou isso?”
Então percebi que Vini estava com os olhos inchados.
Ele se levantou. Sacudiu o jeans para tirar os
pedacinhos de grama.
“Meu professor de história.”
“Tu tá chorando? Esse pássaro ainda existe?”
“Isso ele não teve tempo de contar.”
No dia 21 de junho, minha mãe subiu em um ônibus
leito da Viação Ouro e Prata cujo destino era Santana do
Livramento, na fronteira com o Uruguai. Pediu ajuda de
alguém para colocar a mala no compartimento superior e
se acomodou em uma poltrona na janela, recostada no
travesseiro enorme que tinha trazido e que depois
mandaria Marli desinfetar com um frasco inteiro de
creolina. As luzes da rodoviária a ofuscavam, explodindo
no vidro embaçado como estrelas de quatro pontas, mas
o motor do ônibus era um ronronar narcotizante, uma
máquina de sono. Dez minutos antes, ela tinha tomado
um Equilid no balcão de uma lanchonete enquanto
mordiscava com temor um bolo de batata e carne moída
envolto em um guardanapo translúcido. Era meu pai que
assinava as receitas azuis de Valium e Equilid, e ia
continuar fazendo isso até que minha mãe saísse de
casa, no verão de 1995.
O ônibus começou a dar ré. Ainda antes da ponte do
Guaíba, no corredor opressivo da avenida Castelo
Branco, Carmen já tinha pegado no sono, tendo recém-
visto, envolto na nuvem química dos calmantes, o rosto
do homem de meia-idade que se sentara na poltrona ao
lado. Mas não havia percebido seu colarinho clerical.
Continuou dormindo durante toda a noite. Então o sol
já entrava pelo vidro traseiro quando o ônibus diminuiu e
o freio guinchou e o motorista, de pé e encarando os
passageiros ainda idiotas de sono, ajeitou as calças na
cintura e disse: “Quinze minutos!”. Desceram as
cinquenta e tantas pessoas nesse lugar chamado
Paradouro da Fronteira para tomar um café, comer uma
torrada, lavar o rosto com água fria. Estavam bem perto
de Rosário do Sul, quase chegando ao destino final.
Carmen Matzenbacher entrou no banheiro e pagou uma
moeda a uma indígena por um quadrado rosa de papel
higiênico, depois retocou a maquiagem em um espelho
que deformava o rosto como nos parques de diversões.
Ao se sentar para pedir um café, viu que o homem do
ônibus estava no banco ao lado comendo um croquete, e
agora sim percebeu seu colarinho clerical. “Bom dia,
padre”, ela disse, um pouco nervosa, e ele respondeu
apenas com o sorriso típico dos que vestem a batina:
compreensivo, abissal, infinito.
Como não achar que um padre em uma lanchonete
significa alguma coisa? Como não achar que ir até a
fronteira oeste ao lado de um padre quando se está na
iminência de fazer uma escolha tão definitiva pode não
querer dizer que Deus está apontando para um dos
lados?
Mas qual dos lados?
Se o sinal é divino, a interpretação é sempre humana.
No quarto do Hotel Ramona, colocou a camisola e se
cobriu até o queixo e isso não era muito diferente de
estar na sua própria casa, exceto que ali ela podia chorar
à vontade sem assustar os filhos. Acabou dormindo mais.
Depois do meio-dia, usando óculos escuros em uma
tarde de nuvens que pareciam moldadas em cimento,
saiu para dar uma volta no Centro. Alguns poucos
quarteirões e já estava no Uruguai. Eram as mesmas
pessoas de um lado e de outro, falando uma mistura de
castelhano e português diante das mesmas lojinhas e
bares e padarias. Talvez tenha passado por sua cabeça —
um lampejo desagradável logo jogado fora — que ter
saído do Brasil, que estar agora nas ruas de Rivera
examinando manequins com casacos de inverno
configurava-se tecnicamente como crime. Ela tinha
recebido, afinal, uma convocação da Polícia Civil para
depor na manhã de 23 de junho, ou seja, o dia seguinte.
Mas ia ficar em Livramento. Era uma decisão que tomara
sozinha, e não sem resistência. Tinha ouvido o marido
gritar enquanto ele arrancava as roupas dela da mala e
as jogava no chão e a chamava de louca; tinha ouvido
Souza Andrade dizer que ela causaria um dano
irreversível à defesa de Raul caso não comparecesse ao
depoimento. Mas colocou calmamente as roupas de volta
na mala, pegou um táxi, desceu na rodoviária, comprou a
passagem.
Antes de depor, precisava de um tempo para pensar. A
solidão era uma liberdade na vida dos homens, mas
Carmen ainda não tinha certeza de como funcionava
para ela. Parou na frente de uma loja chamada Siñeriz. O
sistema de free shops era uma novidade em Rivera,
aberto em 1987. Na vitrine iluminada como um portal
para outra dimensão, ela se deparou com coisas que
nunca vira serem vendidas no Brasil. Perfumes franceses.
Panelas elétricas. Carrinhos de controle remoto. Entrou
na loja.
Enquanto isso, em Porto Alegre, o desaparecimento de
minha mãe era apenas um dos fatos novos que estavam
movimentando o caso Satti.
Depois de meu pai descrever o Edifício Elizabeth com
suas grades recém-instaladas para, logo em seguida,
declarar que não passava naquela esquina havia pelo
menos cinco meses, os delegados Viana e Meyer
decidiram deslocar imediatamente um policial à paisana
até a praça Horizonte. Não demorou para que ele visse
algo suspeito. Aconteceu na mesma noite do depoimento
informal, às 21h15: o deputado Matzenbacher saiu de
casa sem nada nas mãos e embarcou em um Chevette
branco. Rapidamente, o policial se pôs a segui-los em
outro Chevette. Dirigiram por um trecho da Casemiro de
Abreu, onde então pararam no Posto Figueroa, mas não
abasteceram o carro nem desceram para comprar nada
na loja de conveniências. Oito minutos mais tarde,
retomaram o caminho até a Goethe, pegaram o viaduto
da Silva Só, depois dobraram na Ipiranga em direção à
Viamão para daí tomarem a Salvador França, a Nilo
Peçanha, a Pedro Ivo, embrenhando-se em seguida por
ruazinhas do Mont Serrat que não levam a lugar algum.
Ali, estacionaram diante de um terreno baldio. O policial
estava perplexo. Não parecia fazer o menor sentido
deslocar-se por metade da cidade para no fim chegar a
um lote vazio que ficava a menos de um quilômetro do
ponto de partida.
Durante o tempo que ficaram parados, nem
Matzenbacher nem o motorista desceram do carro.
Então, depois de cinco minutos, deixaram o terreno para
trás, dirigindo até a 24 de Outubro e seguindo de lá rumo
ao Centro. Nesse ponto, já se contavam no relógio
cinquenta minutos de um deslocamento inútil,
geograficamente injustificável. Terminaram o passeio
junto ao meio-fio da praça Horizonte, onde Raul desceu
do Chevette branco como quem desce de um táxi.
Dois dias mais tarde, em seu depoimento oficial, Raul
Matzenbacher contaria em detalhes o que fizera na noite
do crime — comprou cigarros, dirigiu para espairecer,
visitou um terreno de sua propriedade —, e todos os
passos descritos nos mínimos detalhes espaciais e
temporais eram exatamente os mesmos que dera a
bordo do misterioso Chevette branco.
Para a polícia, ficara claro que Souza Andrade havia
arquitetado aquele passeio noturno para então
cronometrá-lo e encaixá-lo à chegada de Raul em casa
na noite de 7 de junho, onde, para sua sorte, tinha se
deparado com a inesperada visita de Alberto e Estela
Sartori.
O Chevette estava registrado no nome de certo Hugo
Morelli. O filho de Hugo, Maurício, trabalhava como office
boy no escritório de Souza Andrade.
Felipe Silveira, funcionário do Posto Figueroa, ao
examinar novamente as fotografias de Raul dispostas na
mesa de interrogatório, continuava declarando que não
se lembrava de ter visto aquele homem comprar cigarros
Minister, uma marca bastante incomum, na noite de 7 de
junho. Felipe passara a noite inteira no caixa. Para Souza
Andrade, na falta de pessoas que pudessem confirmar os
supostos movimentos de seu cliente, restava agarrar-se
ao depoimento de Alberto — Eram 22h15 quando Raul
chegou, delegado — e dar um jeito de mostrar que Satti
fora sem dúvida morto após esse horário.
Mas o teste do álibi, às vésperas do depoimento de
Raul, acabou fazendo um estrago grande.
No mesmo dia em que os delegados conduziam essa
nova rodada de depoimentos, peritos do Instituto de
Criminalística trabalhavam em uma fita microcassete
apreendida no apartamento da Quintino Bocaiuva. Na
fita, que havia sido encontrada dentro de um pequeno
gravador, podiam-se ouvir pedaços de uma conversa
entre Satti e três homens no que parecia um encontro
regado a doses de conhaque e insinuações sexuais. Quer
transar? Eu não vou transar contigo hoje!, escutava-se a
voz de Satti dizer a certa altura, mas a resposta de um
dos homens era primeiro mastigada por um chiado,
depois varrida pelo silêncio total. A conversa voltava
após alguns minutos, mas já em outro ponto, e na
verdade todo o microcassete era composto de sucessivas
passagens mal gravadas e longos retalhos de vazio,
como se alguém não muito versado em tecnologia
tivesse tentado usar a fita para outra coisa ou
simplesmente apertado o botão errado.
A questão principal, de qualquer maneira, era por que
Satti havia gravado uma conversa tão banal quanto
comprometedora. Era difícil até mesmo especular sobre
isso. Trechos da fita indicavam que ao menos dois dos
três homens eram soldados da Brigada Militar (Lá no
batalhão tu não pode fazer essas coisas), e alguns
investigadores levantaram a hipótese de que Satti
poderia estar sendo chantageado por eles. Ninguém, no
entanto, teve coragem de arregaçar as mangas e enfiar
os braços na lama, de modo que o tal microcassete
acabou figurando no inquérito apenas como uma peça
inconclusiva que apontava um caminho nunca seguido.
Em Rivera, ainda na tarde de 21 de junho, Carmen
Matzenbacher se afastou das luzes intensas da Siñeriz e
das amostras de perfume e das promoções de
Ballantine’s, caminhando de volta ao Brasil sem pressa
com duas sacolas de compras. Tinha se dado presentes,
comprado coisas para os filhos, um barbeador e uma
escova elétrica para o marido. O marido. Olhou para as
nuvens imensas estacionadas sobre a cidade e viu a
chuva fina que começava a cair sem ruído, mas nem por
isso apertou o passo. Eu sempre a imaginava em seguida
no quarto de hotel, de pé diante da janela e no entanto
sem ver muita coisa, com o cabelo úmido e as roupas
geladas. Era como eu enxergava a tomada de grandes
decisões: certa paralisia do corpo enquanto a mente
atava e desatava ideias em busca de algum sentido. Ela
deve ter pensado de novo no padre do ônibus. Pode ter
feito perguntas a Deus. O certo é que saiu do quarto um
pouco depois de o sol se pôr e entrou no restaurante do
hotel e jantou cercada de casais e algumas crianças ao
som de um piano. Quando voltou a Porto Alegre dois dias
mais tarde, já tinha certeza de que, se fosse preciso,
mentiria à polícia e à imprensa para salvar meu pai. Sua
família precisava estar acima de tudo. Cortar um bife
sozinha em um piano-bar, além disso, era a coisa mais
triste que Carmen já tinha feito.
Depois de conferir o relógio mais uma vez e ter certeza
de que Carmen Matzenbacher não compareceria ao
depoimento, o delegado Apóstolo Viana — segundo o
escrivão presente na sala, que contaria o fato por anos a
fio como uma anedota do seu tempo na polícia — se
ausentou por um instante e reapareceu segurando uma
colher de sopa e um vidro de Olina Essência de Vida.
Despejou na colher o líquido denso e escuro até que
visse o membranoso fenômeno da tensão superficial,
depois engoliu a dose de Olina, mordendo os lábios em
seguida como se não fosse admissível perder uma única
gota daquele digestivo fitoterápico. Em um canto da sala,
o delegado Wilson Meyer olhava o colega com
curiosidade. “Já tomou?”, teria dito Apóstolo Viana. O
outro balançou a cabeça, incrédulo. “Isso aqui é o que
me deixa vivo”, sentenciou Viana. Naquele preciso
instante, o escrivão soube — ou ao menos assim contaria
— que Apóstolo Viana ia acabar sendo traído por Wilson
Meyer.
“Se ela foi num enterro, quero o atestado de óbito”,
disse Apóstolo Viana enquanto andava pela sala. “Se
viajou pra visitar um familiar doente, quero o registro da
internação. É um absurdo, um desrespeito uma coisa
dessas!”
E no entanto, no dia seguinte, Souza Andrade já havia
conseguido amaciar os dois delegados com a promessa
de que Carmen iria ao Palácio da Polícia assim que
colocasse os pés em Porto Alegre. Era preciso entender
que a mulher estava em choque, disse, tendo perdido um
grande amigo e vendo agora o marido e pai de seus
filhos como suspeito de um crime tão bárbaro. Meyer
balançava a cabeça, concordando. Viana olhava para
longe, a mão às vezes pousada no baixo-ventre. E porque
eles eram homens da lógica, prosseguiu o advogado,
talvez fosse difícil de aceitar, mas o fato era que a
maioria das pessoas agia muito menos com o cérebro e
muito mais com o coração, especialmente quando se
tratava de uma mulher.
Dois dias depois, Souza Andrade cumpriu a palavra e
deixou Carmen diante do Palácio, scarpin, minissaia,
blusa de gola rulê, blazer de tweed. Ela cumprimentou os
delegados e o escrivão e se sentou com as pernas
cruzadas e apoiou sobre a mesa as mãos de unhas feitas
com esmalte incolor. Aceitou um copo de água com um
sorriso. Os gestos precisos, a coreografia da resiliência e
da tranquilidade, em nada lembravam a mulher que,
duas semanas antes, havia recebido a polícia em casa
em um estado físico e mental lastimável. Naquela
ocasião, mal coberta por um roupão cor-de-rosa, tinha
balbuciado frases sem pé nem cabeça (O importante é
viver, ver o verde, uma árvore, botar fora o relógio),
caminhado entre os móveis da sala com imensa
dificuldade, batendo-se em quinas em pelo menos dois
momentos, e finalmente conduzido os policiais a um
quartinho repleto de velharias nos fundos da casa, onde
apontara um estojo de couro que continha uma
espingarda .12 da marca Beretta (a perícia não
encontraria resíduos de pólvora na arma em questão).
Agora, em frente aos delegados, naquele que era seu
primeiro depoimento oficial, Carmen estava calma e
articulada.
“Na noite de 7 de junho, a senhora recebeu uma visita
do casal Sartori.”
“Sim. O concerto que eles assistiriam na Ospa tinha
sido cancelado.”
“A que horas eles chegaram na sua residência?”
“Por volta das 21h15.”
“Como sabe que eram 21h15?”
“Porque eu tinha recém-colocado minha filha na cama.
É a hora que eu faço isso.”
“Seu marido estava em casa?”
“Não, tinha saído.”
“E disse aonde ia?”
“Raul sente muita falta do campo, ele é de São Gabriel.
A cidade é claustrofóbica para ele. Além disso, com todas
as pressões da vida de parlamentar…”
“Dona Carmen, vou pedir que a senhora divague
menos”, disse o delegado Viana. “Por favor, responda de
forma objetiva. Seu marido disse aonde ia quando saiu
de casa na noite de 7 de junho?”
“Desculpa, delegado.” Ela sorriu e rearranjou as
pernas. “Falou que ia comprar cigarros e aproveitaria
para dar uma volta de carro.”
“Era a noite mais fria do ano”, comentou Viana em um
impulso, e Wilson Meyer rapidamente o fuzilou com os
olhos.
“O Raul não tem problema com frio. Adora.”
“A senhora lembra a que horas ele voltou para casa?”
“Eram 22h15. Vi no relógio da sala assim que escutei o
carro chegando.”
O escrivão martelava as palavras na máquina de
escrever. Tentava não olhar para a mulher, mas sentia o
perfume.
“Vamos falar um pouco de João Carlos Satti. Como a
senhora definiria sua relação com ele?”
“Amizade. Ele era um amigo muito querido.”
Wilson Meyer limpou a garganta.
“Dona Carmen, é sabido que circulavam alguns boatos
na Assembleia de que a senhora estaria, digamos,
apaixonada pela vítima.”
“Sabe o que é, delegado Meyer? As pessoas às vezes
confundem amor, no sentido romântico, com outra coisa,
um sentimento também muito bonito, de pura e simples
admiração.”
“Então a senhora admirava Satti?”
“Ah, sim, muito. Sempre admirei.”
Bem orientada por Souza Andrade, Carmen passaria
todo o depoimento negando as fofocas nascidas nos
corredores e gabinetes da Assembleia Legislativa; não,
ela nunca havia escrito cartas de amor ao “Deputado
Ozônio”; não, ao contrário do que alegava Paulo
Bittencourt, Raul jamais demonstrara o mínimo ciúme em
relação a Satti; sim, ela tinha oferecido alguns presentes
ao deputado, duas, três coisinhas, mas isso lhe parecia
um gesto normal entre amigos. Além disso, ela precisava
confessar, a decoração daquele apartamento, se é que
se podia chamar assim, precisava desesperadamente de
uma mão feminina. Ela só queria, em resumo, levar um
pouco mais de calor, de alma, àquela vida tão
desregrada de homem solteiro.
“Me dói dizer isso, pelo carinho que eu sinto e sempre
vou sentir pelo Satti, mas…”
O delegado Viana a encarava sem sequer piscar.
“A senhora deve dizer tudo o que é necessário dizer.”
Ela descruzou e recruzou as pernas, depois se inclinou
para a frente.
“Nem sempre nós concordamos com tudo o que
alguém que a gente gosta faz. O Satti tinha essa outra
vida, uma vida secreta.”
“Isso era algo do qual a senhora tinha conhecimento
antes de ele ser assassinado?”
“Não, ele nunca me falou nada, digo, nada sobre isso.
Mas agora me parece óbvio. Olhando para trás. A própria
relação com o Fred, nós chegamos a ir juntos pra praia,
os quatro. Ele enganou todo mundo.”
Parou de falar e olhou para o teto. O barulho da
máquina de escrever cessou.
“Prossiga, dona Carmen.”
“Os senhores devem concordar que alimentar essas
mentiras era conveniente para ele. Esses boatos todos
de que eu estava apaixonada. Não estou dizendo que o
Satti era uma má pessoa, jamais diria isso. Ele só queria
se proteger.”
“Se proteger do quê?”
“Esconder dos outros o homossexualismo. Numa
situação assim, quem faria diferente?”
“O Satti podia ser um homem muito galanteador”, me
disse Glória Andrade em 2001, na tarde em que
finalmente aceitou me encontrar. Ainda morava na
mesma casa onde ele a deixara minutos antes de ser
assassinado. Eu era uma garota de vinte e três anos,
alta, com ombros de nadadora e recém-formada em
biologia, minhas unhas estavam sempre sujas e meus
únicos sapatos eram um par de botas de caminhada.
Glória era uma mulher de cinquenta e dois anos, cabelos
nos ombros, olhos caninos, blusa azul-marinho com um
padrão delicado de flores, em uma casa que me parecia
patologicamente limpa e organizada. Por ironia,
trabalhava desde 1998 como diretora do Museu da
Comunicação Hipólito da Costa, uma instituição estadual
cujo acervo incluía toda a cobertura impressa, televisiva
e radiofônica do caso Satti.
Mastiguei a última garfada da torta que ela tinha me
oferecido. Glória não havia sequer tocado na fatia dela.
Depois de um começo travado e constrangedor —
“Nunca imaginei que ia ter alguém da tua família na
minha sala” —, ela parecia agora bastante à vontade,
com a disposição de sempre em falar sobre o caso,
justamente do jeito que me fora descrita, alguém que
precisava repetir e repetir a história nos mais variados
contextos sociais, talvez para que a cidade nunca se
esquecesse do que acontecera.
(Mas a cidade se esqueceria.)
“É claro que a tua mãe tava apaixonada. O Satti não
inventou nada disso, a gente podia ver no olhar, no jeito
que ela falava com ele. Tinha uma coisa intensa.
Brilhava, tu me entende? Às vezes isso até constrangia
quem tava em volta. Eu lembro inclusive de um dia ver
teu pai incomodado, um jantar, alguma coisa oficial, eu
tava lá como imprensa e vi, porque tua mãe nunca foi
uma pessoa discreta, né. Teu pai, sim, sempre com uma
cara de quem queria cavar um buraco e se enfiar lá
dentro, a não ser quando tava de jaleco ou então no
gabinete ou na tribuna. Aí o poder dava alguma
confiança. Já o Satti não podia ser mais diferente disso, o
reizinho da festa, a confiança tava dentro dele, não fora,
tu me entende? É engraçado, Cecília, mas eu sempre tive
medo de que o Satti fosse morrer jovem. Quando eu dizia
isso pra ele, ele gargalhava. Ele já mexia em muito
vespeiro quando era jornalista, às vezes eu tinha que
segurar ele, ‘Satti, não vamos falar disso ainda, o homem
tem as costas quentes’. Como deputado, é claro que ele
só ficou pior. Era vespeiro atrás de vespeiro. Não foi só a
lei dos clorofluorcarbonetos, imagina esse negócio, um
homem muito à frente do seu tempo, querendo discutir
meio ambiente nos anos oitenta!, mas teve também o
projeto de unificar a Polícia Militar e a Polícia Civil, que
acabou engavetado. Enfim, tanta vida de gente picareta
que ele conseguiu atrapalhar ao menos um pouco. Mas é
triste, viu? Esse país. Tem umas pessoas que entram na
política achando que vão poder fazer alguma coisa, ele
foi um desses, mas aí veem que o buraco é mais
embaixo. Esse poço não tem fundo, guria.”
“Mas foi algo mais simples que matou ele, tu não
acha?”
“Quê?”
“Não foi nenhuma dessas grandes tramas.”
“Grandes tramas, é… como tu chamaria o que
aconteceu?”
“Uma questão de honra.”
Glória sorriu, aérea, e então repetiu a palavra honra.
Em seguida, pegou seu prato de torta e enfiou o garfo
nas camadas de pão de ló e ovos moles. Mastigou como
se mastigasse papel. Tinha se acostumado rápido à
minha presença, mas agora parecia se lembrar de quem
eu era.
“Quer mais torta?”, perguntou.
“Não, brigada. Tava ótima.”
Ela deu mais uma garfada automática.
“Vocês eram muito amigos, tu e o Satti.”
“Muito.”
“Ele nunca te disse que era gay?”
Ela desviou os olhos e deu um meio-sorriso. Uma ideia
passou voando pela minha cabeça: Glória também havia
se apaixonado por João Carlos Satti.
“Olha, nem existia essa palavra na época, gay, tu sabe.
Não, ele nunca comentou nada comigo, mas eu prefiro
sinceramente não entrar nesse assunto. Se ele nunca
quis falar, não vou ser eu agora que vou fazer isso, né?”
“Claro, eu entendo. Desculpa.”
“Não, tudo bem. Quer ver uma coisa?”
Ela saiu da sala. Na peça ao lado, ouvi um armário
sendo aberto. A casa de Glória Andrade, pensei. Ela já
devia estar cansada de rememorar aqueles
acontecimentos em eventos sociais, jantares íntimos,
artigos para a imprensa, homenagens de caráter oficial,
a cada vez tendo de erguer um novo pedestal para João
Carlos Satti, um trabalho de Sísifo da memória cuja
função era tanto lidar com o trauma como manter seu
amigo vivo. Glória, em nenhuma dessas ocasiões,
escondia sua certeza de que meu pai havia matado Satti.
E sem dúvida só aceitara me encontrar naquela tarde
porque eu tinha me apressado em dizer ao telefone: “Eu
sei que foi ele, Glória”. Talvez tenha passado pela cabeça
dela, sobretudo depois de eu dizer essa frase, que meu
objetivo com aquele encontro era lhe revelar algo
bombástico. Uma confissão do meu pai, por exemplo. Em
2001, ainda havia tempo para isso; faltavam sete anos
para o assassinato de Satti prescrever, quando então
ninguém mais poderia ser preso por aquele crime,
fossem quais fossem as circunstâncias.
Glória voltou para a sala carregando uma pilha de
coisas: três fichários, algo que parecia um quadro, uma
peça de roupa dobrada e, por cima de tudo, um chapéu.
Então ela também tinha construído seu inventário. Dei
um sorriso cúmplice.
Ela se sentou ao meu lado, colocou a pilha à sua
esquerda e começou a mostrar os objetos um a um. O
chapéu campeiro marrom era na verdade um presente
que Satti dera a Fred (perguntei se ela sabia do paradeiro
dele e ela disse que não). A camiseta do time amador de
futebol estampava o número 11 e o patrocínio da Ughini
(A dona Maria de Lurdes me deixou ficar com ela, eu
sempre ia ver ele jogar). Em seguida, Glória me mostrou
uma fotografia emoldurada de uma comemoração do fim
do ano de 1984 na Churrascaria Zequinha. Era uma mesa
comprida com funcionários da Rádio Gaúcha, e
provavelmente fora tirada por um desses fotógrafos que
rodavam a noite de Porto Alegre e entravam nos
restaurantes e bares e se aproximavam das mesas e
diziam Com licença, vocês gostariam de eternizar esse
momento? Era fácil reconhecer o rosto de Glória,
envolvido na época em cabelos armados e fofos. Satti, no
centro da mesa, parecia mais magro do que nas minhas
lembranças.
Glória então me mostrou a foto de um cavalo. Era um
animal castanho com o rosto quase todo branco, como se
alguém tivesse esquecido de pintar um pedaço. Estava
de perfil, troteando dentro da moldura clara. Aquela
imagem me parecia estranhamente familiar.
“Acho que eu já vi esse cavalo”, eu disse.
“Deve ter visto, porque era um quadro que ficava lá no
gabinete dele. Tu ia na Assembleia de vez em quando,
não?”
“Às vezes minha mãe me levava quando não tinha com
quem me deixar.”
“É, eu te vi uma vez que eu tava lá fazendo uma
entrevista, tão bonitinha. Com teus irmãos, o Vinícius e
o…”
“Marco.”
“Cecília.”
Glória de repente pegou minha mão e a envolveu nas
dela. Estava chorando.
“Tu me disse no telefone que tinha certeza. Teu pai
confessou, falou alguma coisa pra ti durante todos esses
anos?”
Eu me sentia péssima por ter criado aquela situação.
“Eu só sei por causa dos fatos”, respondi. Queria sair
dali, ficar sozinha. As mãos suadas de Glória deslizaram
pela minha e finalmente a soltaram.
“A hora que ele chegou em casa naquela noite não foi a
hora que ele disse que chegou”, eu disse, oferecendo a
ela um prêmio de consolação. “Eu tinha nove anos, mas
sabia olhar um relógio digital.”
Glória estava visivelmente decepcionada. Esfregou as
lágrimas com um lenço de papel que surgiu na sua mão
em um passe de mágica, e então pegou um dos fichários
cuja etiqueta dizia Caso Satti — Correio do Povo.
Começou a folheá-lo como uma guia dormente de um
museu do interior.
Na manhã de 28 de junho, Apóstolo Viana saía de casa
para mais um dia de trabalho quando encontrou um
bilhete anônimo na caixa de correio. Fora escrito a lápis
em metade de uma folha de caderno, caligrafia pontuda,
uma considerável pressão sobre o papel, largo espaço
entre as palavras.
Delegado, esse é um alerta de um amigo. Encontros
estão acontecendo sem o seu conhecimento! Abra bem
os olhos! Querem inocentar Matzenbacher! São eles:
deputado Ferrari, secretário Galvani, dr. Orlando e seu
colega Wilson Meyer. Toda as quintas-feiras na avenida
Caçapava 191/302, às 20h. Delegado Apóstolo, não
permita esse complô! A justiça deve ser feita.
Confiamos no senhor para defender os princípios da
corporação.
Segurando a meia folha de caderno sob o sol, Apóstolo
Viana sentiu uma leve tontura e recostou-se no banco do
edifício. Decidiu, vendo as nuvens rodarem lá no alto,
que precisava urgentemente agir. Já estava fazendo seu
melhor como titular da Delegacia de Homicídios, mas
agora percebia com mais clareza que era preciso
também combater as forças internas que temiam a
verdade e as consequências do caso Satti. Sim, pela
justiça. Sim, pela memória do jornalista e deputado. Sim,
pela imagem da Polícia Civil perante a sociedade gaúcha.
De maneira que Viana trabalhou naquele dia e no outro e
no outro sem contar a ninguém sobre o bilhete anônimo,
apenas ficou mais atento à conduta de Wilson Meyer,
que, como ele já sabia havia muito tempo, estava longe
de ser exemplar: o delegado tinha atos ilícitos nas
costas, notadamente relacionados ao escândalo de um
ex-juiz que depositara em uma conta bancária pessoal o
dinheiro apreendido de um notório traficante do estado.
Além disso, Viana desconfiava que Meyer estivesse
vazando informações do caso Satti para a imprensa com
o objetivo de tumultuar as investigações e desacreditar o
inquérito, que logo seria remetido ao Ministério Público.
Na quinta-feira à noite, portanto, ele dirigiu até a
avenida Caçapava. Tudo isso está descrito no livro que
lançou quatro anos depois, A verdade definitiva sobre o
caso Satti, sua maneira de se defender das críticas que
sofreu. Um livro confuso e mal editado que pouco
circulou, com oitenta por cento da pequena tiragem
soterrada em um conjunto comercial da Osvaldo Aranha.
Na página 20, Apóstolo Viana estaciona na avenida
Caçapava (Aceitei o desafio de contrariar algumas das
forças mais poderosas do Rio Grande do Sul). O número
191 é um edifício de três andares e tijolos aparentes, e o
tal dr. Orlando Dutra, advogado do pmdb, mora na
cobertura. Na página seguinte do livro, Viana reconhece
o secretário de Segurança, José Eduardo Galvani,
descendo de um carro preto. Apressa-se em tirar uma
fotografia, fazendo o mesmo quando vê chegar o
deputado Ferrari e, finalmente, Wilson Meyer. Fica ali por
algumas horas, olhando as luzes acesas da cobertura
enquanto relembra certas atitudes suspeitas de Meyer:
para ele, o relatório do passeio de Raul, que coincidia
com o trajeto que ele alegaria ter feito na noite do crime,
era “um documento imprestável e sem nenhum valor
probatório”; Fred ainda figurava na lista de suspeitos
porque assim quis Meyer, embora seu álibi já tivesse sido
confirmado por mais de dez pessoas (As bichas podem
estar tudo mentindo, eu não me surpreenderia em
nada!); além disso, o secretário Galvani, quando falara
com Apóstolo Viana na semana anterior, demonstrara
saber de detalhes da investigação que, em teoria, eram
estritamente confidenciais.
Aquele encontro noturno durou cerca de uma hora e
meia.
Na página 22, já de posse das fotografias reveladas,
que saem subexpostas mas ainda assim aproveitáveis, o
delegado marca uma audiência com o governador. Conta
tudo o que sabe e vai tirando as fotos de um envelope,
que o governador rejeita com um gesto porque diz não
ter dúvidas de que o delegado está falando a verdade. O
governador olha o relógio e assegura a Apóstolo Viana
que só o que lhe interessa é descobrir quem matou Satti,
doa a quem doer, e então promete ligar imediatamente
ao chefe de polícia, a autoridade máxima da corporação,
para, se necessário for, investigar a conduta de Wilson
Meyer. O governador não diz nada a respeito do
deputado Ferrari, do secretário de Segurança ou do
advogado do seu partido.
Meyer jamais seria afastado do caso.
Em 5 de julho, passado quase um mês da noite do
crime, surge uma nova reviravolta nas investigações:
uma moradora da rua Marquês do Herval procura a
polícia. Chama-se Eulália da Silva. Diz ter visto o
assassino de Satti enquanto passeava com seu cãozinho.
Eulália é surda-muda.
Não aprendeu a ler ou escrever.
Mal sabe a linguagem de sinais.
Um intérprete é designado para acompanhar seu
depoimento.
Eulália conta — ou o intérprete assim entende — que,
na noite de 7 de junho, saiu para passear às 21h30 com
o cachorrinho, como era seu hábito. Ao subir a Quintino,
viu um Monza cinza com aerofólio estacionado diante do
Edifício Elizabeth, logo percebendo que havia um homem
dentro do carro, branco, careca, vestindo roupas escuras.
Fez a volta na quadra e, quando retornou à esquina da
Quintino com a Marquês, parou porque o cachorro queria
fazer xixi. Enquanto esperava, Eulália viu seu vizinho,
João Carlos Satti, atravessar a rua na direção do edifício
dele. Nesse momento, o homem do Monza, agora usando
uma boina, desceu do carro. Tirou do casaco uma arma
grande, que teve de segurar com as duas mãos para
efetuar os tiros, deixando Satti estatelado no chão.
Voltou ao carro e saiu em disparada.
“Uma testemunha claramente plantada pela
acusação”, declara Souza Andrade à Zero Hora no dia
seguinte, em uma edição que vende como água com a
manchete “Surda-muda viu o assassino de Satti”.
Naquela mesma semana, descobre-se que Eulália tinha
aparecido no sbt, quatro dias depois do crime: na
filmagem, ela passeia com o cãozinho diante do edifício
de Satti, e então para e cumprimenta Fred.
Em A verdade definitiva sobre o caso Satti, Viana sem
dúvida sente que precisa explicar por que Eulália só
apareceu no caso às vésperas de o crime completar um
mês, na reta finalíssima do inquérito policial. Dedica um
capítulo inteiro a isso, descrevendo-a com a minúcia de
um Balzac confuso: Eulália da Silva, a costureira de
quarenta e seis anos cuja mãe tragicamente contraíra
rubéola durante a gravidez, nascendo incapaz de ouvir,
mas que, apesar disso, acabou tendo uma vida digna e
se tornou uma das peças-chave do crime mais intrigante
que esse estado já viu.
No plenário do Tribunal de Justiça, Eulália se senta. Terá
três intérpretes à disposição. Há uma plateia atenta e
curiosa, e dez homens calvos fazem deliberadamente
parte dela; Eulália em breve deverá ser convocada a
reconhecer a pessoa que viu na noite de 7 de junho.
Membros da acusação, da defesa, assim como o principal
suspeito do crime, estão na área designada aos
magistrados. Um dos intérpretes faz a pergunta a Eulália.
Quem era o homem com a espingarda? Ela se levanta,
percorre a plateia e observa as pessoas presentes, se
detendo por alguns segundos diante de todos os carecas.
Então o relator a convida para examinar também a outra
ala do plenário. Ao se aproximar, Eulália, quase sem
deter o olhar sobre ninguém, aponta para o homem na
extremidade esquerda da mesa. A fotografia desse
instante se tornará célebre. Souza Andrade sorri. Meu
pai: olhando para longe, finge ignorar o gesto de Eulália.
Quatro dias mais tarde, Marli colocou suas roupas e as
poucas coisinhas que enfeitavam a casa-garagem dentro
de uma mala rasgada que tinha sido da minha mãe.
Primeiro não queria dizer nada, depois, com a insistência,
evitando encarar uma tia Eliane perplexa, admitiu quase
aos sussurros que ia se separar de Adelino. Uma futura
mulher desquitada. Fez o sinal da cruz, se ergueu do
mochinho — na casa-garagem ainda mais triste sem as
flores de plástico e o calendário de paisagem — e
sentenciou que, além disso, o lugar dela era perto dos
filhos. Tia Eliane engoliu em seco, incapaz de retrucar,
decerto ainda pensando no bebê de outra mulher que ela
tinha imaginado por meses como seu.
Marli foi arrastando a mala pela alça de couro no
calçamento irregular da Bela Vista e desviou de uma raiz
exposta e tocou a campainha da nossa casa. Essas
despedidas aconteciam enquanto Adelino fazia um
serviço no escritório do meu tio, mas ninguém nunca
soube se ele foi pego de surpresa pela partida da mulher
ou se simplesmente preferiu ignorar o que estava
acontecendo. Na sala, Marli deu um abraço meio arisco
na minha mãe — o que eu ia entender algum dia —,
depois se ajoelhou para me beijar e me abraçar, quase
me tirando o ar de tanto que me apertava. Logo em
seguida, Vinícius e Marco desceram para dizer tchau. Foi
a última vez que a vi.
Marli aceitou que minha mãe chamasse um táxi (É o
mínimo, deixa de ser boba!) para levá-la até a rodoviária,
onde então ia tomar o ônibus para São Gabriel e ficar
com os dois meninos e os pais na casa meio torta que
uma vez ela tinha me apontado da janela do carro.
Procuraria um novo emprego (Não, dona Carmen, não
quero voltar pra estância, imagina). Ia se ajeitar na vida,
se Deus quisesse e a Nossa Senhora permitisse. Entrou
no táxi e, no entanto, não foi direto para a rodoviária.
Com um peso no peito e a voz teimando em falhar, disse
para o taxista outra coisa. “O senhor sabe onde fica o
Palácio da Polícia?”
Pararam na frente do prédio pesado e ela deu o
dinheiro da dona Carmen para ele, que tirou a mala do
porta-malas, disse “boa tarde” e foi embora. As quatro
colunas altíssimas, duas de cada lado da porta principal,
lembravam as grades de uma prisão. Arrastou a mala
pela meia dúzia de degraus que precisava vencer antes
de entrar, a mala tombou de lado, um homem veio dar
uma ajudinha, tentou olhar para os peitos dela e logo
depois desapareceu no saguão.
Era amplo. Dois homens algemados iam sendo
conduzidos na direção de uma das muitas portas. Viu
uma mulher atrás de uma mesa falando ao telefone.
Esperou que desligasse e anunciou: “Queria falar com o
delegado, é sobre o caso Satti. Tenho informações”.
Recebiam muitos telefonemas anônimos, muitas pistas
falsas, até de gente que estava presa e dizia que
conhecia o matador e inventava histórias mirabolantes
para ter a pena reduzida. Mas raramente alguém ia até
ali. Por sorte, foi o delegado Viana que a recebeu. Pôs um
copo de água e um cafezinho adoçado diante dela e falou
que era todo ouvidos. Sempre tive uma boa intuição,
escreveria depois no livro que provavelmente imaginou
como fenômeno editorial, e por isso logo soube que
aquela mulher teria coisas de extrema importância a
contar.
Marli começou do início, e o início era ela com
dezesseis anos já trabalhando na estância dos
Matzenbacher, “isso antes do seu Walter falecer por
causa do acidente de carro lá na serra”. Quem era esse?
O pai do doutor Raul e do seu Werner. Não precisava ir
tanto para trás na história, mas queria deixar muito claro
que tinha dedicado a vida àquela família. E o que
sobrava de dedicação era do Adelino e dos filhos.
Adelino, o marido. Agora essas duas pontas se uniam no
abalo. Sentia as pernas bambas mesmo sentada.
Os dois moram sem os filhos, moravam, na garagem
do seu Werner, de onde ela tinha acabado de sair de
mala e cuia, como o delegado bem podia ver. Ela era
empregada nas duas casas, de Raul e de Werner. Adelino
começou como jardineiro, mas foi fazendo de tudo um
pouco. Sempre muito dedicado. No dia depois de
matarem o seu Satti, disse, ela tinha achado estranho o
seu Werner chamar Adelino para ir a São Gabriel. Uma
coisa assim podia acontecer, mas era sempre planejada.
Não naquele dia. E pareceu esquisito que não fosse,
ainda mais porque Adelino não deu jeito de explicar o
que diabos tinha para fazer na estância. Mas tudo bem.
Ela deixou pra lá. Ficou o dia todo lavando roupa e
chorando pelo seu Satti, de quem sempre gostara muito.
Passaram poucos dias, e todo mundo começou a dizer
que seu Raul podia ter feito aquilo. Achou uma bobagem.
Eles eram amigos! Aí logo surgiu a sem-vergonhice toda
do seu Satti, e essa foi mais uma coisa que ela teve
dificuldade em acreditar. Mas matar um homem era o
maior dos pecados, tinha certeza, e era por isso que ela
estava ali.
Apóstolo Viana esperava pacientemente pelo
desenrolar da história.
Anteontem, continuou Marli, estavam vendo tv. Ela e
Adelino. Isso depois do jantar e depois de ele ter bebido
uma cachacinha. Ela não sabia quantas doses, mas com
certeza várias. Adelino nunca tinha sido homem de
beber, e ela podia jurar por Nossa Senhora que aquilo
tinha começado depois da morte do seu Satti. Deus que
me perdoe e perdoe o pai dos meus filhos. Na tv, era o
telejornal. Apareceu, com música dramática e letras
vermelhas: caso Satti. E aí começaram a falar de coisas
que Marli já tinha ouvido no rádio ou visto ali mesmo na
televisão, só que, quando surgiu na tela o tal Paulo
Bittencourt, que era o chefe do gabinete do seu Satti,
Adelino ficou muito agitado. Mostraram a cara dele bem
de perto, os microfones quase raspando na boca, e ele
dizendo: O Deputado Matzenbacher, dias antes do crime,
esteve na frente do prédio de Satti. Então Adelino teve
um ataque de fúria. Começou a gritar. “E o que gritou
foram essas palavras, delegado: Já matamos um veado,
podemos matar outro!”
Viana se ajeitou na cadeira.
“Dona Marli, vou chamar o escrivão para registrar o
que a senhora está me contando, tudo bem? É muito
importante isso, Dona Marli. Muito importante, muito
corajoso, a senhora ter vindo até aqui.”
“Eu tô deixando meu marido, doutor.”
“Eu sei.”
“A polícia vai proteger eu e meus filhos lá em São
Gabriel?”
“Claro que vai, todos vão ficar bem. A senhora fique
tranquila com isso.”
Três dias depois, a Polícia Civil submeteria o inquérito
de mais de mil páginas ao Ministério Público, sugerindo
que meu pai fosse indiciado pelo crime.
Entro de novo na sala das relíquias. Vou para perto de
duas raposas, um urso-pardo, um órix-da-arábia, e me
deito na postura do cadáver, shavásana. O odor
amadeirado da vitrine antiga e o toque macio do carpete
na palma das minhas mãos me relaxam. Apoio o celular
sobre a barriga. Logo em seguida, sinto as vibrações de
várias mensagens, mas não olho imediatamente.
Primeiro preciso tirar minha mãe de dentro de mim.
Começo a pensar em paisagens, uma floresta de
coníferas com bolsões de neblina, uma praia rochosa, um
deserto e, embora isso pareça ingênuo, já comprovei
muitas vezes que funciona. Sempre que posso, esse é
meu pequeno ritual depois de falar com minha mãe ao
telefone. Jesse às vezes me vê assim na sala de casa e
começa a rir. Galhos balançam, um corvo sai voando, os
seixos no leito de um rio sussurram para ninguém.
Ainda deitada, sinto o telefone vibrar mais uma vez. Me
levanto e olho para a tela. Está tomada de mensagens
dele. A última diz: “Sei que te enlouqueci com esse papo
de filhos”. Escrevo: “Vem me encontrar na Norton?”.
Ele responde em segundos.
“Tô indo!”
Deve levar uma meia hora para chegar aqui.
Eu gosto da minha vida, digo a mim mesma. Apago a
luz da sala vitoriana e caminho de volta para a oficina.
Foi tão difícil achar uma coisa que eu realmente gostasse
de fazer. Quando dirigi dez anos atrás até Kooskia, Idaho,
ainda não tinha muita clareza sobre o que estava
fazendo. Uma semana antes, enviara um cheque de
cinco mil dólares para um cara chamado Troy Rogers. Era
praticamente todo o dinheiro que eu conseguira guardar
nos últimos três anos. Atravessei Nevada com a
sensação de que aquela era uma aposta alta demais.
Parei para olhar as dunas de areia em Winnemucca. O
que eu sabia afinal sobre taxidermia? Os filmes
adoravam mostrar animais empalhados para deixar claro
que certo personagem era um louco perigoso. Cabanas
com troféus de caça apareciam como cenários de crimes
lentamente arquitetados. Alguém da cidade de repente
se via em um lugar selvagem e despovoado e todos nós
sabíamos que aquela pessoa ia se dar mal. Mas eu não
era uma louca perigosa, tampouco achava que as únicas
reações possíveis diante de um animal daqueles era
sentir calafrios, ficar aterrorizada ou temer pela própria
vida. Na época, eu estava trabalhando em uma loja que
lembrava um antigo gabinete de curiosidades. Nós
vendíamos alguns animais empalhados de pequeno
porte. Eu gostava deles. Eles me deixavam intrigada.
Eram animais e eram também objetos. Além disso, e
acima de tudo, eu guardava lembranças muito nítidas
das minhas visitas ao museu de história natural de Nova
York. Nada era mais incrível que os dioramas. Eu tinha
passado muitas horas diante deles, a poucos centímetros
do vidro, completamente abismada pelos habitats
refeitos nos mínimos detalhes. Queria entender como
aquilo tudo fora construído. Parecia uma combinação
fascinante de ciência e teatro. Comecei a ler vários livros
sobre o tema.
Cheguei a Kooskia às dez da noite, os faróis da minha
van estropiada lutando para iluminar as estradinhas
rurais. Por muito pouco não atropelei um coelho. Saiu
apavorado, pulando na direção do rio que eu não
conseguia enxergar. Troy ouviu o motor do carro e veio
me receber. Ele era alto e um pouco menos rosado do
que na fotografia do site, um cara de cinquenta e poucos
anos, cem por cento anglo-saxão e que levava muito a
sério a manutenção do seu cavanhaque. Eu tinha feito
quinze horas de estrada e me sentia moída, mas queria
dar a Troy a ideia de que eu era suficientemente durona
a ponto de não achar nada de mais encarar o caminho
todo em um único dia. Eu disse que nem tinha visto o
tempo passar. Fomos até minha cabana — pequena e
honesta — e ele me mostrou o armário onde eu poderia
colocar minhas roupas, os cobertores extras de que
talvez eu precisasse, toalhas, o controle da televisão, o
aquecimento.
Na porta, Troy me desejou boa-noite, depois se virou
para mim de novo e disse que meu esquilo, meu faisão e
meu cervo já estavam no freezer. Agradeci. Por um
tempo, ouvi suas botas pisando o cascalho. Elas logo
foram levadas pelo vento.
Meu esquilo, meu faisão e meu cervo.
As janelas não mostravam o que havia do lado de fora,
mas sim o reflexo da própria cabana.
Conheci os outros alunos na manhã seguinte. Daniel
trouxe a cabeça de um cervo dentro de um cooler. Era só
a pele, como uma máscara de Halloween com espaço
para os olhos, e Troy o elogiou pelas incisões perfeitas
que fizera para descolá-la das galhadas. John era um
senhor aposentado que estava em seu segundo curso.
Queria agora aprender a montar aves mais complexas.
Robert e Carrie tinham se dado aquelas duas semanas
como presente de quinze anos de casamento (Que
romântico!, os outros disseram, e Carrie riu e fez um
carinho no dorso da mão de Robert). A turma se
completava com Alexander, um veterano do Afeganistão
e caçador entusiasmado que se revelaria o menos
habilidoso dentre nós.
A princípio, me senti um pouco intimidada em saber
que alguns dos meus colegas não eram iniciantes. Mas o
que me incomodou mesmo foi o fato de eu achá-los tão
diferentes de mim e tão parecidos uns com os outros.
Eles haviam crescido próximos aos animais que queriam
montar, moravam em lugares rurais, eram republicanos,
e todos, com exceção de John, caçavam. Para os cinco,
aquilo ia ser uma espécie de artesanato que por acaso
envolvia pele, carne e ossos, enquanto para mim a
taxidermia era também muitas outras coisas: história,
narrativa, alegoria, espetáculo, a fusão entre vida e
morte, entre civilização e mundo natural. Sim, eu me
sentia um pouco superior aos meus colegas. Ao mesmo
tempo, tinha certeza de que era eu quem estava na
Escola Artística de Taxidermia pelos motivos errados.
Perdi cinco mil dólares, pensei. Agi por impulso, fiz uma
besteira monstruosa. Estou no interior de Idaho.
Então Troy me pôs diante do esquilo morto. Todas as
reflexões e teorias, todas as coisas que eu tinha lido
desapareceram assim que segurei o bisturi. Cortei o
esquilo desde a base da cabeça até dois centímetros
antes do rabo. Fui soltando com delicadeza a pele da
carne, e às vezes precisava usar um pouco de bórax para
me ajudar com isso. Removi os testículos internos. Os
dedos eram a parte mais complicada. Depois veio a
cabeça. Desuni as pálpebras dos olhos. Segurei as
orelhas com a pontinha dos dedos. Com a pele toda
separada da carcaça — tão frágil, como o casaquinho de
uma boneca bebê —, fui tirando com a lâmina os restos
de carne, gordura e tecido conjuntivo, aplicando a
pressão certa para não causar nenhum dano à pele. Troy
disse que eu era habilidosa e muito detalhista. Eu nem
olhei para ele. Penduramos a pele do esquilo em um
varal como uma roupa recém-lavada.
No outro dia, fiz a montagem. Ele me deu um
manequim de espuma pré-moldado e eu o esculpi de
acordo com as medidas do meu esquilo. Coloquei um
pouco de argila ao redor do buraco que ia receber os
olhinhos de vidro e uma haste de chenile cujo propósito
era manter o rabo levantado. Costurei a pele sobre o
manequim e reconstruí o rosto do esquilo usando um
palito de dente e seis alfinetes. Quando olhei para o que
eu tinha feito, fui tomada por uma sensação
avassaladora de realização. Era um sentimento brutal e
primitivo, como as recompensas químicas de uma
corrida.
“Você tem um talento natural”, disse Troy.
Todos os outros sorriram para mim.
Jesse me envia uma mensagem para dizer que chegou
ao estacionamento. Vou até a recepção me sentindo
meio apreensiva com a perspectiva da nossa conversa e
o vejo através da porta de vidro: um homem bonito e
triste recortado pelo sol de Los Angeles, uma espécie de
ídolo venerado em um mundo paralelo, mãos nos bolsos
da jaqueta jeans, cabelos soltos ondulando como fogo.
Vem caminhando no ritmo imposto pelas botas de
caubói, lento e seguro, o rosto contraído pelo excesso de
luz e, naquele instante, eu sei que não quero nunca me
separar dele.
Destranco a porta.
“Oi”, ele é o primeiro a dizer.
“Oi.”
Nossas reconciliações costumam ser lentas. Às vezes
dependem de um sexo agressivo em algum lugar que
não seja nossa cama, como se, para nos reencontrarmos,
precisássemos antes fingir ser pessoas diferentes. Outras
vezes, as coisas só se resolvem depois que Jesse fala e
fala e fala e então finalmente me vence no cansaço e eu
acabo falando também. Tranco a porta atrás dele e
começo a caminhar de volta à oficina pensando que
aquela será uma reconciliação baseada em conversa.
Jesse vem atrás de mim. Ainda preciso de um pouco de
distância, então me sento em uma cadeira de escritório.
Ele fica de pé, andando de um lado para o outro.
“Eu vou dizer mais uma vez: desculpa, Cecília. Sei que
eu fiz uma coisa horrível. Mas eu...”
“Mas? Até quando você vai ficar relativizando?”
“Eu só ia dizer que não queria te machucar.”
“Você jogou o chaveiro exatamente na minha direção.”
“Eu sei, eu sei, é imperdoável. Quer dizer”, ele faz uma
pausa. “Espero que não seja imperdoável. Eu não sou só
isso, sabe. Você não pode me julgar por um único gesto.”
Prefiro não dizer nada. Jesse funga. Talvez esteja
chorando. Seu olhar percorre a oficina e então parece se
fixar em um urso-pardo ereto em processo de secagem.
“Será que a gente não pode conversar lá fora? Acho
que eu tô em desvantagem aqui.”
Ficamos de pé no estacionamento. Há uma brisa
fresca. Um cara com uma caixa de som portátil passa na
calçada ouvindo hip-hop em espanhol. Jesse se encosta
no carro e cruza os braços.
“Você gostou da menina?”
De repente ele me parece tão vulnerável. Sinto que eu
poderia quebrá-lo em mil pedaços.
“Essa não é a questão”, digo.
“A questão é por que você transou com outra pessoa.”
“Por que será que eu tenho certeza de que você acha
que foi autossabotagem?”
Ele ri.
“E não foi?”
Um flash rápido de Kristen separando minhas coxas
com as mãos, o sorrisinho sacana antes de enfiar a
língua em mim.
“As pessoas só dizem isso pra se proteger”, respondo.
Jesse parece confuso, então eu continuo.
“Alguém faz uma coisa estúpida, mas você não quer
aceitar porque gosta da pessoa. ‘Pera aí, como ela pôde
fazer uma coisa tão imbecil dessas?’ Então…” Faço um
gesto como se destacasse uma palavra escrita no ar.
“Autossabotagem.”
“Bom, isso continua sem explicar você.”
“Sei lá, Jesse. Vaidade. Desejo. As coisas humanas de
sempre.”
Ele se desencosta do carro, não consegue ficar parado.
“Eu sei que a culpa é minha também. Eu tive uma
família decente. Eu não sei o que é ser você. Meus pais
eram tão apaixonados um pelo outro que, quando eu
tinha uns dez anos, comecei a sentir vergonha daquele
amor tão explícito. ‘Parem de se tocar!’, sabe? Eles
tiveram o momento deles de ‘viver da terra’, ‘brigar com
as instituições’, mas depois correram para fazer filhos e
garantir empregos estáveis.”
“Parece meio triste.”
“Bom, eles nunca enxergaram assim. Não sentiam
nenhuma nostalgia. Não gostaram só da juventude,
gostaram do caminho inteiro. Parece que ainda gostam,
todos os dias.”
“Não sei aonde você quer chegar com isso.”
“Aonde eu quero chegar? Que é perigoso ficar presa ao
passado, não aceitar o fluxo contínuo da vida. O tempo
passa e ele vai destruir o seu barquinho se você não
começar a remar.”
“Jesse, olha só. O que é isso, um ted Talk? Em primeiro
lugar, o fluxo contínuo da vida não precisa incluir um
filho.”
“Não é o que a biologia diz.”
“Foda-se a biologia. Em segundo lugar, tô chocada que
você venha fazer esse seu discurso sobre aceitar
mudanças. Tipo, olha pra você. Que mudança você acha
que tá aceitando?”
Ele realmente chega mais perto do carro e se olha no
reflexo da janela.
“Não consigo ver nada. Esse é o jeito que você me vê.”
A discussão morre por alguns instantes. Durante esse
tempo, tudo me parece patético, revestido de uma falta
de sentido acachapante: das barracas dos moradores de
rua multiplicando-se em um dos lugares mais ricos do
mundo às nossas crenças individuais já tão cristalizadas
aos quarenta anos.
“Eu te amo”, Jesse diz de repente. “Quero ficar com
você.”
“Eu também te amo.”
“Eu não preciso de um filho.”
“É bom saber disso. Sério mesmo.”
Nós nos beijamos e eu sinto meu corpo todo se
aquecendo e o típico alívio explosivo de um fim de briga.
Ficamos abraçados ali no estacionamento vazio, exibindo
para desconhecidos nossa coreografia de reconciliação.
“Preciso te contar uma coisa. Meu pai teve um avc.”
Ele me solta.
“O quê? Quando?”
“Faz umas duas semanas.”
“Por que você não me contou? Como ele tá?”
“Ele tá bem. Quer dizer. Não vai mais conseguir falar.
Eu queria ter contado antes, mas, sei lá, você não tava
aqui, e as coisas entre a gente andavam superestranhas.
Eu não consegui, desculpa.”
“E você não pensou em ir pra lá?”
“Só pensei como algo que eu não ia fazer de jeito
nenhum.”
“Cecília.”
“Você sabe disso.”
“É diferente agora.”
“Não é diferente, nada é diferente.”
“O que o Vini acha?”
“O que ele acha? Ah, ele ficou insistindo, ele correu pra
lá, o que eu não consigo entender, depois de...”
“Amor, escuta. Você tem que ir. Esquece seu pai, tudo
bem, e vá pelo seu irmão. Por favor, você precisa. Pelo
seu irmão, só isso.”
anjo azul
Eram os anos oitenta. Hiperinflação, estagnação
econômica, as últimas braçadas da ditadura. No fim do
veraneio de 1986, em Atlântida, um menino de dezesseis
anos chamado Alex Thomas foi espancado com golpes de
caratê por filhinhos de papai integrantes da Gangue da
Matriz. Uma voadora esmagou seu coração. Alex Thomas
morreu no local. Dois dias depois, o presidente José
Sarney — com aquele bigode de taturana — anunciou
aos brasileiros e brasileiras o complicado e audacioso
Plano Cruzado, que trocava a moeda, cortava zeros e
congelava o preço das mercadorias.
A partir de amanhã, um quilo de café só poderá custar
noventa e nove cruzados.
Todos precisavam estar vigilantes. As maquininhas
remarcadoras tinham passado a ser o inimigo número
um do país. Então as donas de casa entenderam o plano
e iam aos mercados com a tabela de preços e flagravam
abusos e chamavam os fiscais da Sunab, a
Superintendência Nacional do Abastacimento. Eram
sempre insuficientes diante da demanda, os fiscais da
Sunab, rodando pelas cidades em Brasílias velhas e
surgindo como heróis na porta dos supermercados
Musamar, Nova Olinda, Real, Oceano, Jumbo, Pegue e
Leve, Manda Brasa. No Rio de Janeiro, uma multidão
invadiu uma lanchonete Bob’s ao verem um funcionário
alterando o painel de preços. Quebraram as máquinas de
sorvete e foram embora comendo hambúrguer no meio
da destruição. Em um supermercado de Curitiba, um
cidadão tentou ele próprio fechar o estabelecimento
abusivo (Em nome do nosso presidente, em nome do
povo e da Nova República!). Erguia bem alto aos olhos de
todos dois vidros de maionese como prova incontestável
das remarcações. Em São Paulo, Porto Alegre, Salvador,
Vitória, consumidores que aguardavam a polícia e os
fiscais nos corredores das lojas traidoras do país
cantavam o Hino Nacional a plenos pulmões, sentindo-se
finalmente embriagados de poder.
Mas, em apenas oito meses, o Plano Cruzado se
revelaria um fracasso. Faltavam produtos nas prateleiras,
nascia por todos os lados um mercado paralelo. A
inflação voltaria a níveis piores do que antes, e os planos
econômicos seguintes seriam igualmente desastrosos até
a criação do real.
Em 1986, Vinícius Matzenbacher tinha catorze anos. As
efígies amassadas de Rui Barbosa e Oswaldo Cruz no
bolso das suas calças ganharam carimbos do Banco
Central — dez cruzados, cinquenta cruzados —, e o
cachorro-quente prensado da escola ficou incríveis duas
semanas sendo vendido pelo mesmo preço (cachorro-
quente prensado não era um item na tabela da Sunab).
Poucas coisas além dessas mudaram em seu mundo de
adolescente. O Brasil instável era tudo o que ele
conhecia, afinal de contas, e a família Matzenbacher ia
navegando muito bem na inflação de dois dígitos ao mês.
Em março daquele ano, Vinícius queria ir para Capão
da Canoa. Até ali, os pais tinham-no levado ao litoral
pouquíssimas vezes na vida. Parecia trabalhoso demais.
Ele se lembrava de entrar com boias de braço na água
cor de Nescau, do gosto de sal da primeira onda e do
buraco na areia onde enterraram Marco até o peito (Tu
lembra disso, Ciça?). Não tinha, no entanto, nenhuma
memória sobre o pai de saco cheio de ter que ir até o
mar com as crianças e da mãe com areia nos dentes
porque ventava demais e ela só queria que pelo amor de
deus os três filhos calassem a boca. De qualquer
maneira, daquela vez, Carmen não teria incômodo
algum: Vinícius ficaria instalado na casa modesta, porém
confortável, da família de um colega, Ricardo Pereira,
com pais, irmãos e um filhote de Rottweiler. Talvez a
empregada deles fosse junto.
Mas Carmen teve taquicardia só de ouvir o filho
mencionar a praia. Havia semanas que o tal Alex Thomas
não saía da sua cabeça. Uma violência tão aleatória, o
guri estava só andando na rua com dois amigos! E a
brutalidade do episódio fora chocante. Ela pensava nos
golpes com cabo de vassoura, na voadora fatal, naquela
família agora esfacelada por rapazes que queriam aplicar
na rua o que aprendiam nas academias de artes marciais
(falava-se na imprensa em proibição, ou no mínimo em
um controle rigoroso dos alunos pelas autoridades, e ela
concordava desde que tinha ouvido um tenente da
brigada falar sobre isso no rádio). Então disse ao filho
que não o deixaria ir. A praia andava perigosa demais.
Ele chiou, pediu que ela ligasse para a mãe de Ricardo.
Ela disse não. Vinícius começou a chorar. Era um choro
esganiçado, incompatível com a idade que tinha agora
seu filho mais velho. Ficou assustada. “Teu pai teria um
troço se te visse nesse estado”, disse, talvez com um nó
no peito, talvez com um medo latente do futuro. Então
sugeriu na voz trêmula das mães pasmas que Vinícius
convidasse o Rica para ir um dia até São Gabriel com
eles. E o mandou lavar o rosto antes que Raul chegasse
em casa.
A verdade era que Vinícius — e isso ele não contou a
ninguém por muitos anos — sentia uma vergonha imensa
da estância. Caçava perdizes e marrecos apenas porque
não havia escolha, o vô caçador, o pai caçador, o filho
precisava também atirar. Tomava mate na frente da casa
e comia ovelha recém-carneada que empapava a farofa
de sangue e tinha que vestir aquela bombacha que fora
presente dos tios. Não era apenas constrangedor, mas a
fonte de um incômodo constante. Toda essa vida
campeira parecia a Vinícius desajeitada e feia.
Por isso nunca levara a São Gabriel nenhum dos
poucos amigos que tinha, e não ia fazer diferente
daquela vez. Além de tudo, a amizade com Ricardo
Pereira não durou muito mais; Rica foi se afastando como
outros haviam feito antes, de maneira que Vinícius agora
durante o recreio caminhava sozinho, durante o recreio,
até as partes mais distantes da escola, o almoxarifado, a
igreja, a sede do grupo escoteiro. Às vésperas do Plano
Cruzado ii, ele tinha ganhado um walkman. E acontecia,
quando estava com o walkman, uma espécie de mágica:
ele se sentia bem. Incrivelmente bem. Podia transformar
o entorno em qualquer coisa que quisesse.
E assim conheceu o famoso Luciano Bretas em 1987.
Estavam na fila da lanchonete da escola. “In between
days” vazava dos fones de ouvido de Vinícius.
“Tá ouvindo The Cure?”
“É.”
“Afudê.”
Luciano era repetente do terceiro ano. Tinha cheiro de
cigarro e perto de um metro e oitenta e andava com
roupas e coisas que só podiam ser compradas fora do
Brasil. Isso não chegava a ser visto, no entanto, como
motivo de admiração ou inveja, uma vez que Luciano
parecia para quase todos um guri esquisito demais para
despertar qualquer reação positiva. Um mau elemento.
Um degenerado. Corriam boatos de que torturava gatos
de rua em rituais satânicos e que tinha destruído o carro
do pai dirigindo bêbado para os lados do Lami, onde
possivelmente fora comprar um bode. Durante uma
discussão, quebrara o braço da própria irmã. Treinava
apneia na piscina do clube e chegou a ser ressuscitado
uma vez por muito pouco. Alguém da sétima série o
tinha visto desenhar um pentagrama no campinho de
futebol. Nada dessas coisas era verdade — talvez só o
pentagrama —, mas, de qualquer jeito, Vinícius gostava
de ouvir sobre elas. A fama de mau sempre lhe parecera
uma forte razão para se aproximar de Luciano, não um
motivo para temê-lo. Faltava apenas uma chance.
Começaram a ser vistos juntos, os dois punks da
escola, que não eram punks coisa nenhuma, mas
pareciam estranhos o suficiente para serem alguma coisa
com um nome. Para Vinícius, além de Luciano ser sem
dúvida a pessoa mais interessante entre toda aquela
gente sem graça, seu novo amigo ainda tinha o mérito
de ter — e isso era verdade — uma incrível coleção de
discos, fitas e revistas gringas de música, presentes que
o pai trazia de viagens a trabalho ao exterior a despeito
do vergonhoso desempenho escolar do filho (Tu não acha
que tá mimando demais esse menino, Cláudio?).
Naqueles primeiros meses de amizade, Vinícius ampliou
seu gosto para além do que ouvia na Rádio Ipanema. A
trilha sonora da sua vida era agora uma espécie de
névoa densa de guitarras sobrepostas e sintetizadores
etéreos.
Em dezembro, Luciano se formou aos trancos,
confirmando a tese de que ninguém era mesmo
reprovado no último ano da escola. Não passou no
vestibular para engenharia civil. Mesmo não tendo
cumprido nenhuma expectativa familiar até aquele
ponto, Luciano era dono de um Voyage desde que tinha
feito dezoito anos, um pouco antes da formatura.
Tratava-se de um carro usado, malcuidado e barulhento,
a única “punição” que o pai tivera coragem de aplicar ao
filho.
Dentro daquele carro, Vinícius conheceu, pela primeira
vez, a cidade.
A cidade que era o verso da cidade de seus pais.
Dirigiam bem devagar pela avenida Osvaldo Aranha. Às
vezes desciam e ficavam um tempo na frente do Bar João
vendo os punks de verdade estirados na calçada
cheirando cola e os metaleiros em um círculo com um
garrafão de vinho no meio. Atravessavam a rua e se
misturavam àquela gente de pé no Escaler e
conversavam com um ou outro ou assistiam ao pedaço
de um show mal equalizado. Mas Vinícius sempre
precisava voltar para casa antes de a noite se tornar
realmente interessante, tendo o cuidado de soterrar o
bafo do único copo de cachaça com cachorro-quente e
Halls preto, uma vez que, para todos os efeitos, tinha
passado a noite na casa dos Bretas ouvindo discos de
rock.
E havia também as vezes em que os dois iam até a
Zona Sul e paravam na praia do Cachimbo. Desligavam o
motor. De lá podiam ver, na outra margem do Guaíba, as
fumaças intensas da fábrica de celulose que, pouco mais
de uma década atrás, costumava empestar Porto Alegre
inteira com cheiro de repolho azedo. Ficavam fechados
no carro escutando música. Descer seria ter que lidar
com o silêncio. Tratava-se de uma rua sem saída, com
apenas uma casa, o resto todo era mato crescido. Era
comum que houvesse outros carros ali, não mais do que
dois ou três, quase sempre ocupados por casais que
depois de um tempo acabavam pulando para o banco
traseiro. Isso era estranho para eles. Ou parecia
estranho, de qualquer maneira, a Vinícius.
Ficava nervoso se pensava muito nisso.
Uma comichão no pau.
Ele tinha dezesseis anos e só uma vez havia dado um
beijo em uma menina durante um baile de Carnaval.
Maio de 1988. Luciano tinha brigado com a mãe e
precisava desopilar. Havia algumas semanas que
aprendera essa palavra com alguém ou em algum lugar.
Agora precisava sempre desopilar. Dirigiram até a praia
do Cachimbo. O sol tinha acabado de se pôr quando
chegaram lá e o horizonte estava cheio de manchas
avermelhadas e púrpura como um machucado velho. No
som do Voyage, tocava The Cure. Havia uma meia dúzia
de carros estacionados obliquamente à mureta de pedra
e, sobre o capô de um deles, um guri e uma guria
estavam sentados compartilhando um cigarro como se
imitassem a cena de um filme que todo mundo queria
ver.
“Essa aí é do caralho”, Luciano disse.
Mas Vinícius nem estava prestando atenção na música.
Naquela época, naquela idade, mesmo quando tinham
acesso a um disco ou a uma fita cassete, os jovens
ouviam realmente duas ou três canções de um mesmo
álbum, as que faziam sucesso porque contavam com um
refrão irresistível, uma melodia que os carregava sem
que precisassem fazer muito esforço. Mas Luciano era
diferente. Ele gostava do que ninguém conhecia, do que
era estranho e soturno demais para tocar no rádio,
gostava das ranhuras esquecidas dos discos.
Agora Vinícius estava ouvindo. Foi ficando hipnotizado
pela bateria. A mesma batida sempre. Pareciam
pequenos empurrões que o conduziam a um estado
letárgico, mas reconfortante. A fábrica de celulose cuspia
uma fumaça branca que ia subindo meio de lado no céu
já azul-cinzento e, quando o único poste da rua se
acendeu, os outros carros começaram a manobrar para ir
embora. Luciano balançava a cabeça de olhos fechados.
O cabelo castanho-claro cortado com gilete caía sobre o
rosto cheio de espinhas. De repente, começou a cantar
junto com a música, imitando as ênfases doloridas de
Robert Smith.
You never talk
Era um inglês que aprendia nas revistas importadas e
nos encartes dos vinis.
We never smile
Vinícius sabia muito menos do que ele.
I scream
Jogou a cabeça para trás e gritou para o teto.
You’re nothing
I don’t need you anymore
Mas esses versos eram fáceis e Vinícius entendia.
You’re nothing
Luciano então parou de cantar. Abriu os olhos e Vinícius
não estava rindo porque sentia uma coisa estranha. A
música logo chegou ao fim, primeiro as batidas
sincopadas, depois a voz de Smith. Parecia que tinha
engolido pedras. Tentou mudar o clima.
“Quanto é que tu tomou de conhaque?”
“Eu? Cara, não tomei nem uma gota!”
Vinícius se virou para trás e olhou para a garrafa de
Dreher deitada no banco. O líquido caramelo mal cobria a
metade do vidro. Agora sim, felizmente, os dois riram.
“Foi meu pai que tomou isso aí, eu só trouxe pra gente
dar uns goles.”
“E depois a gente enche com água do Guaíba.”
De novo Luciano caiu na risada mole da adolescência.
Vinícius relaxou o corpo. Tirou uma fita do bolso da
jaqueta jeans e disse: “Coloca essa daqui”.
Era Depeche Mode. A banda já tinha sido motivo de
longas discussões entre eles, com Luciano dizendo que
os caras se esforçavam demais para tentar ser um New
Order ruim — apenas Black celebration era um disco
aceitável — e Vinícius exaltando a maturidade sombria e
comercial de Music for the masses.
“Aí tu tá de sacanagem!”, protestou Luciano, mas
pegou a fita mesmo assim e olhou a letra arredondada
de Vinícius. Music for the masses”. Óbvio. Enfiou a fita no
deck.
“Só tem música maneira.”
“Ah, para. Preciso de conhaque.”
Ficaram passando a garrafa um para o outro e logo
Vinícius já achava difícil estimar quanto de álcool havia
ingerido; certamente mais do que o humilde copinho de
cachaça que às vezes Luciano comprava para ele no Bar
João — Vou pegar a de escorpião pra mim e a de tijolo
pra ti! — ou os vários goles de vinho que uma vez
aceitara de uns metaleiros. Mas tinha certeza absoluta,
isso sim, de que não seria mais possível recolocar a
garrafa de Dreher no bar do pai de Luciano fingindo que
ela nunca saíra do lugar. Precisariam comprar uma nova.
Quantos cruzados custava um conhaque hoje? Quantos
cruzados custaria amanhã? Um outro carro continuava
ali, apenas um, mas ele não conseguia enxergar as
pessoas lá dentro. Ouviu Luciano dizer “Tu gosta dessa
mais do que das outras, fala pra mim”, e então se virou
para ele e parecia que não era possível mexer a cabeça
e, ao mesmo tempo, ouvir a música. Tentou se
concentrar. “Strangelove.” Como podiam estar ainda na
terceira faixa do disco se o conhaque era só um fundinho
acobreado e a noite tinha caído daquele jeito sobre tudo?
Que horas mesmo o pai mandara ele voltar para casa? “E
daí que eu gosto”, ele respondeu, mas de repente
escutar a si mesmo era como escutar uma terceira
pessoa falando. Luciano riu. “Tá tudo bem, meu.” E ele ia
se lembrar dessa frase e dessa noite toda vez que
ouvisse “Strangelove” nas pistas de dança, nos táxis de
madrugada, nos corredores do supermercado — o rosto
de Luciano perdendo a nitidez com os anos até que não
conseguisse mais descrevê-lo a si mesmo —, porque foi
afinal a partir dali que entendeu que eles eram sim
alguma coisa com um nome. Pelo menos ele com certeza
era.
Mas qual seria a palavra então para Luciano, que agora
abria o botão da calça jeans e puxava o fecho e mostrava
o pau em um processo avançado de endurecimento. Se
acariciou um pouco com os olhos fechados, e ele —
Vinícius — nunca tinha se masturbado na frente dos
amigos nem feito competição de quem esporrava mais
longe, não comparava tamanho de pau com os outros e
nem sequer tirava a roupa se não fosse a portas
fechadas, mas claro que sabia que aquilo que estava
acontecendo era uma coisa bem diferente. Luciano
parou. O pau havia ficado totalmente duro. Olhou muito
sério para Vinícius. Era um rosto de gente mais velha, o
rosto de quem já tinha caído e se levantado e talvez
caído de novo. E Vinícius pensou: É tarde, puta merda, é
tarde. Pegou a garrafa de conhaque e sentiu o queimão
do maior gole da sua vida expandindo a garganta
enquanto chegava mais perto para tocar Luciano. A
palma da mão suada deslizou fácil. Luciano gemia de
forma quase imperceptível, a cabeça para trás, apoiada
no encosto do banco. E ele ia estar mentindo se dissesse
que já tinha pensado naquela cena ou em algo parecido
com ela, se dissesse que tinha gozado no chuveiro
inúmeras vezes imaginando o pau enorme de Luciano e
aqueles olhos fechados. Isso foi depois, quando já não se
falavam mais, quando Luciano mandava a mãe dizer no
telefone que estava estudando e as fitas então se
tornaram, ao menos por um tempo, uma triste lembrança
que Vinícius preferia evitar.
“Sacred.” Era essa a música que tocava no Voyage. O
vaivém ficou mais rápido. Sacred. Holy. I’m a missionary.
Luciano se contraiu em um espasmo e bateu a nuca no
encosto do banco e parecia quase a ponto de gozar. E
ele, ele também, mas como, os outros no seu lugar
sentiriam alguma coisa, qualquer coisa que fosse?
Aquela descarga elétrica que começava na ponta dos
dedos e ia até a cabeça do pau? Olhou para fora, pela
primeira vez desde que tudo ali dentro do carro tinha se
tornado tão, tão grande e incontornável, e essa distração
foi um erro grotesco. Ia pagar por isso. Viu a garota.
Estava no carro ao lado, no banco do motorista, em cima
de alguém que Vinícius não conseguia enxergar porque o
encosto estava deitado demais. Não foi a garota em si
que arruinou tudo, não foi o movimento da garota para-
cima-e-para-baixo e os cabelos no rosto e o peito
pequeno que saía para fora do sutiã. Foi porque a garota
também virou para o lado e olhou diretamente para ele.
E viu. E entendeu. Alguma coisa com um nome.
Então Vinícius não quis ver mais nada e deu um pulo
para trás e alcançou a maçaneta e de repente o silêncio
pareceu entrar no carro, não o contrário. Completamente
tonto, saiu na rua e desceu a escada até a praia e
tropeçou no último degrau. Ficou de quatro no chão,
respirando pesado, as mãos raspando na areia úmida. E
Luciano não vinha. Um céu opressivo, branco. Luciano
não vinha. Sentiu o vômito subindo. Acertou o primeiro
jato em uma oferenda para Oxum.
Ele entrou no Anjo Azul pela primeira vez alguns dias
depois. Ficava em uma ruazinha tranquila transversal à
Osvaldo, no térreo de um sobrado velho. O letreiro era
discreto e mal iluminado, como se fosse melhor que
ninguém soubesse que existia. Ao lado da porta, alguém
havia pichado Gothan City e, abaixo das duas janelas,
outra pessoa escrevera Futuro é lixo.
Ele sabia que tipo de bar era aquele.
Não tinha, naquela época, a intenção de encontrar
alguém. Isso ficaria para muito mais tarde. A noite com
Luciano na praia do Cachimbo ia alimentar suas fantasias
por algum tempo e, de qualquer maneira, não podia
apressar as coisas; precisava antes viver um processo
solitário e doloroso que estava infelizmente recém-
começando (Ciça, naqueles meses eu me olhava no
espelho e dizia: “Eu sou bicha”. Essa era a parte mais
difícil do meu dia. Meu coração acelerava, eu queria me
machucar, sentia a culpa entalada na garganta quase me
tirando todo o ar. As bichas que já nasceram orgulhosas
uma geração depois não entendem como a gente podia
sentir essa coisa que às vezes era, sim, ódio de si
mesmo. É que não tinha arco-íris, minha filha, era só
porrada. Porrada e o pânico de morrer de aids).
Então Vinícius tinha entrado no Anjo Azul pela primeira
vez só para ver como era. O salão, não muito amplo,
estava mergulhado em uma meia-luz cálida, o que
parecia diferente de todos os outros lugares que ele
conhecera com Luciano (Naquele tempo, os bares tinham
luzes demais, um jeitão de açougue mesmo). Cindy
Lauper tocava baixinho em duas caixas de som, uma em
cada ponta do balcão. Ele se lembra bem de, por um
momento, gostar de estar ali, chegando a acreditar que
pediria uma garrafa de cerveja, se sentaria a uma mesa,
ficaria olhando o movimento, e que isso seria então uma
coisa boa, uma coisa que talvez acalmasse a tormenta
que se formava em sua cabeça adolescente.
Olhou ao redor, ainda parado próximo à porta. Algumas
mesas estavam ocupadas por homens sozinhos. Pelo
menos dois deles poderiam ser pais dos seus colegas de
escola, envelopados em casacos grossos, o rosto triste,
exausto de tanto descortinar o ambiente. Um jovem de
regata puxou uma cadeira e se sentou perto de um
velho, que sorriu e bateu palmas quase sem desgrudar
as mãos. Naquela altura, a sensação de estar à vontade
já tinha se dissipado. Vinícius, mesmo assim, se
aproximou do bar.
“E pra ti, amor? Não vai me dizer que tu é maior, né,
lindinho?”
Era uma drag. Às vezes se apresentava em um palco
improvisado, às vezes ficava atrás do balcão (Uma diva
maravilhosa que um filho da puta ia esfaquear na
Redenção em 1991). Vinícius saiu correndo sem olhar
para trás.
Quando meu irmão me contou sobre a praia do
Cachimbo e sobre sua primeira e segunda ida ao Anjo
Azul, eu tinha dezoito anos. Eu sabia, desde os nove, que
meu pai havia mentido sobre o horário que chegara em
casa na noite de 7 de junho, mas isso nunca fora razão
suficiente para eu acreditar que ele era um assassino.
Nos anos seguintes, também ficou claro para mim que
minha mãe havia se apaixonado por Satti; minha própria
maturidade me fez entender o que era aquele jeito com
que ela falava dele, aquele atordoamento de estar perto.
No entanto, de novo, isso não podia ser motivo para
rasgar em pedaços minha figura paterna. Por isso, diante
de Vinícius naquela noite, ouvindo a versão completa da
história, fiquei paralisada.
“Tu podia ter me contado antes”, foi tudo o que
consegui dizer na hora.
Começaria a montar minha coleção sobre o caso Satti
algumas semanas depois. Eu ainda morava com meu pai.
Vinícius alugava um quarto e sala barulhento na Salgado
Filho. Tinha acabado de sair de uma internação de seis
semanas em uma clínica na serra. Não era a primeira vez
e não seria a última. Agora estava frequentando
rigorosamente as reuniões dos Narcóticos Anônimos.
“Até que eu podia. Mas eu queria proteger minha irmã
caçula, né. Isso tudo é muito…”
Fez uma arminha com a mão, levou-a até a têmpora
direita, puxou o gatilho.
“Enfim, eu ia amar continuar nesse papel de irmão
mais velho protetor. Só que vamos combinar que eu não
tenho mais a menor condição de fazer isso.”
Riu, mas queria chorar.
“Tu vai ficar bem, Vini. Eu sei que tu vai.”
Estávamos sentados em um sofá de dois lugares, o
único móvel da sala. Ouvíamos os guinchos dos ônibus
parando um atrás do outro para recolher as filas de
trabalhadores exaustos. Vinícius foi até a geladeira e
encheu de novo o copo de coca-cola. Deu um gole,
colocou o copo no parquê. Coca-cola e chiclete eram
seus novos vícios.
O rosto parecia inchado, talvez dos remédios. Não
dormia bem. Às vezes me ligava de madrugada e pedia
para eu contar uma história (Alguma coisa bonita que tu
aprendeu sobre animais ou plantas, uma coisa de longe
da gente). Eu não me sentia no direito de sofrer mais que
meu irmão.
“O Marco sabe? A mãe?”, perguntei.
“Sabem o quê?”
“Sobre o Anjo Azul.”
“O Marco soube por agora, eu contei um dia que ele foi
me visitar na clínica. O na deixa a gente assim, a gente
quer contar tudo!”
“O que ele disse?”
“Que preferia que eu não tivesse dito nada.”
Ele segurou minha mão, o gesto que eu não tinha
conseguido fazer até ali.
“A mãe soube na época mesmo.”
“Antes daquela viagem pra fronteira?”
“Aham. Coitada da nossa mãe.”
Ele entrou no Anjo Azul pela segunda vez no fim de
maio. O que ele sabia sobre gays até então: os
cabeleireiros eram. O tal Rui, dono da galeria de arte que
sua mãe frequentava, era. Um guri da quarta série,
delicadinho e pálido e que pulava corda com as meninas,
sem dúvida viria a ser (Com quem será que o Bruno vai
casar? Loiro, moreno/ careca, cabeludo/ Rei, ladrão/
Polícia, capitão). Ele sabia sobre aids, o “câncer gay” —
falavam assim na tv, no início —, uma doença horrorosa
que deixava a pele manchada e ia secando as pessoas
até matá-las. Ele tinha visto a mesma fotografia que o
jornal usava toda vez que queria falar sobre o vírus: um
homem deitado de bruços em uma maca no saguão de
um hospital, sendo ignorado por pessoas de pé que
tinham outros motivos para estar lá. Ele não sabia nada
sobre os outros meninos cujo coração acelerava quando
viam um guri bonito na rua ou os galãs de Armação
ilimitada, aquela confusão inocente que Vinícius também
sentia entre a vontade de ser e a vontade de ter. Não
sabia sobre os homens casados que alegavam
compromissos de trabalho, pegavam um michê da José
Bonifácio e iam ser felizes por duas horas em um quarto
de motel.
Estava bêbado. Tinha arriscado a sorte dizendo à mãe
que ia no Luciano, mas saiu a pé de casa sem que ela
visse e caminhou meia hora até o Bom Fim. No Escaler,
venderam cerveja para ele sem pedir a carteira de
identidade, depois ele tirou proveito da simpatia de uma
menina que tampouco parecia ter dezoito anos, secando
seu copo de cachaça e coca-cola enquanto ela dizia:
Calma, qualé teu nome mesmo? Muito bêbado. Agora era
só segurar o estômago.
Daquela vez, a porta do Anjo Azul estava encostada,
essas portas pesadas de casas velhas cujas fachadas se
esfarelam a cada dia — frontões otimistas guerreando
com grafites desesperados —, mas ele se sentia
estranhamente confiante. Empurrou a porta e entrou no
salão à meia-luz. Era uma sexta-feira, o que explicava o
fato de o lugar estar tão diferente se comparado àquela
outra noite: quase não se viam as mesas porque havia
gente demais de pé. Homens, todos eles. Gargalhadas se
sobrepunham à música, mantida em um volume discreto,
como se aquilo ainda não fosse a festa de verdade.
Pediu uma coca no balcão para um cara musculoso que
parecia um professor de educação física que ele ainda
poderia ter na escola. Depois imitou outros homens
sozinhos e ficou encostado na parede, aéreo ainda do
álcool, às vezes passando a mão no cabelo, meio presa,
meio caçador.
Então achou que tinha algo de errado com ele (Deu um
curto no cérebro, pegou fogo no circuito) porque, entre
toda aquela gente estranha do bar, focou um rosto que
conhecia muito bem. E nenhum rosto já familiar poderia
estar ali dentro do Anjo Azul (Eu ainda era ingênuo a esse
ponto, Ciça). Estava olhando para ele também. De
repente, começou a se aproximar, pasmo, mas
simpático. Era João Carlos Satti.
“Vinícius. Tu tá brincando.”
Ele corou, olhou para baixo. Um chão escuro coberto de
bitucas, úmido.
“Coca-cola, é?”
“Bebi antes.”
Satti riu.
“Vem comigo pegar uma cerveja, então.”
Não podia acreditar. Talvez o amigo do seu pai tivesse
entrado sem saber que tipo de lugar era aquele. Só
queria beber uma cerveja. Era sexta-feira. Trabalhava
demais. Foram essas as primeiras coisas que pensou.
O cara musculoso conhecia Satti. Deixou os outros
clientes esperando.
“Fazia tempo que tu não vinha”, disse o cara.
“Se o Fred vem, eu não venho.”
“Olha, nunca mais vi o Fred. Achei até que tinha ido
embora.”
“E pra onde é que ele podia ir?”
Os dois riram.
“Te devolveu o carro pelo menos?”
Satti fechou a cara.
“Tu sabe que eu não sou desse tipo.”
O outro não se constrangeu. Era bonito, um sorriso de
Ken, os dentes como se fossem uma única placa
brilhante.
“E esse guri aí?”, perguntou, apontando Vinícius com o
queixo.
Naquele momento ele ia dizer alguma coisa, finalmente
se integrar na conversa, estava se sentindo mais
deslocado do que nunca, mas Satti olhou para ele com
reprovação.
“Melhor não dizer teu nome aqui.”
E, virando-se para o garçom, respondeu:
“É um amigo meu.”
Quando uma mesa ficou vaga, foram se sentar. Vinícius
não sabia como agir. Não fazia sentido falar sobre nada
corriqueiro, ao mesmo tempo, não tinha coragem de
perguntar as coisas que estavam em sua cabeça. O Fred
então não era filho dele? Para onde tinha ido? Tentou se
distrair com a música, George Michael, aquela que
tocava toda hora nas rádios mais comerciais, Luciano
riria disso, ia erguer a voz, o dedo, fazer um discurso
vibrante sobre o mau gosto para quem quisesse ouvir.
“Até que eu fiquei surpreso”, Satti começou a falar,
“porque tu é muito novo pra tá aqui. Mas faz sentido.
Não vou agora dizer que eu nunca desconfiei.”
Ele se sentiu exposto, envergonhado.
“Eu só queria ver como era.”
“É o que todo mundo quer.”
Ficou com raiva.
“Tu não tem medo de ser visto?”
Satti deu um meio-sorriso e olhou ao redor.
“Ninguém se vê aqui.”
Então talvez Vinícius tenha feito cara de quem não
entendia.
“Se alguém me vir, vai ter que contar que tava aqui
também. O segredo é de mão dupla, é ou não é?”
Beberam aquela cerveja até o fim. Ele foi se soltando,
como se estivesse diante de uma pessoa que acabara de
conhecer, e de certa forma era isso mesmo, um estranho
do Bom Fim que agora escutava sua ladainha sobre a
rigidez do pai, a indiferença da mãe, os colegas da escola
com os quais não conseguia se conectar. E quase no fim
da garrafa contou sobre Luciano, tateando as palavras,
porque, mesmo se sentindo progressivamente mais
confortável, o calendário dizia 1988; havia um jeito de
falar as coisas sem falar naquela época, e ele não podia
escapar disso (A vontade era dizer “Eu penso nesse guri
toda hora, acho que tô apaixonado, me ajuda”, mas,
pensando bem, eu mal conseguia confessar essas coisas
pra mim mesmo).
Satti não comentou nada sobre a própria vida. Mas
estava ali.
Perto das dez, Vinícius se levantou para ir embora. A
música tinha ficado mais alta, e algumas pessoas haviam
afastado as mesas e cadeiras para dançar. Ele não podia
voltar muito tarde para casa. Tonteou.
“Tu vai chegar assim? E o teu pai?”
“Vou dar um jeito.”
“Tu pode ir pra minha casa. Faço um café preto pra ti.”
“Não precisa.”
“Tu toma um banho frio lá.”
“Eu tenho que ir mesmo.”
“Tá bom, tu que sabe. Aonde é que tu disse pra eles
que tu ia?”
“Na casa do Luciano.”
“Ah, o Luciano.”
“Ele tem carro, sempre me deixava em casa depois.”
Satti se levantou.
“Eu te levo então e te deixo na esquina.”
Os pneus do avião beliscam o solo. Welcome to
Panama, Bienvenidos a Panamá. Essa terra estreita da
América Central sobre a qual eu não sei rigorosamente
nada acaba de se tornar o meio caminho entre meu
presente e meu passado. Estou seguindo o conselho de
Jesse — vá ao menos pelo seu irmão, Cecília —, mas não
deixei que ele viesse comigo porque essa é uma das
tantas coisas que preciso fazer sozinha. Tiro os olhos do
meu livro, olho pela janela. Nuvens gordas, tropicais,
sempre a um instante de explodirem. Conheço bem
essas nuvens. Estou tão perto da linha do Equador agora
que consigo sentir a ansiedade como se fosse algo
rastejando dentro do meu corpo.
Enquanto o avião taxeia rumo ao terminal, agindo
enfim com a lentidão correspondente ao seu peso — voar
é que me parece a surpresa nessa história —, releio o
último trecho que sublinhei no livro. É ainda a biografia
do naturalista Alexander von Humboldt, que viajou pela
América do Sul entre 1799 e 1804; finalmente estou
avançando na leitura. “A natureza é o domínio da
liberdade”, disse Humboldt, porque seu equilíbrio foi
criado pela diversidade, que, por sua vez, poderia ser
entendida como um modelo para a verdade política e
moral. A verdade política e moral. Gostei mesmo disso.
Pego a caneta e adiciono uma estrela na margem, depois
guardo a garrafa de água e o livro na mochila.
No corredor do avião, as pessoas começaram a entalar.
Acertam os tornozelos dos outros com as malas, não
pedem desculpas, as crianças gritam porque já
vislumbram a saída. Ponho a mochila nas costas e
encontro meu espacinho também. Depois de alguns
longos minutos, finalmente a porta é aberta e toda a
energia reprimida durante quase sete horas de voo
começa a ser escoada. Vou andando devagar entre uma
menina sonolenta e um senhor bronzeado que fala em
espanhol. Por um instante, chego a imaginar que ele é
Guillermo, o homem por quem minha mãe se apaixonara
durante um cruzeiro no Caribe e que depois desapareceu
sem deixar rastro. Sinto uma atração estranha pelos
sumiços (Guillermo, mas principalmente Marli e Fred).
Quando passamos pelas poucas fileiras da classe
executiva, o sujeito que poderia ser Guillermo olha para
os lados com uma expressão que me parece de rancor ou
repulsa, como se estivesse pensando: será que essas
pessoas precisavam mesmo de pantufas descartáveis?
Será que precisavam de tanto mais espaço do que nós?
Sobre uma das poltronas, o homem vê um fone de
ouvido com cancelamento de ruído, certifica-se de que a
aeromoça não está olhando e então surpreendentemente
o agarra. Sai com o fone pendurado na mala.
Eu o perco de vista na ponte de desembarque, quando
o fato de que estou me aproximando do lugar onde cresci
me acerta com mais força. Isso porque sinto o cheiro
inconfundível do calor úmido. Mas não dura muito.
Dentro do terminal, o ar-condicionado se esforça para
deixar o Panamá do lado de fora. Algum erro de
engenharia ou defeito mecânico, no entanto, está
fazendo com que se criem bolsões de frio alternados com
bolsões de calor. Estou com fome. Escolho uma
lanchonete em uma zona fria e peço um sanduíche
bonito no cardápio que leva dez minutos para chegar
feíssimo, com o recheio translúcido e seco.
Quando decidi que iria ao Brasil, entrei na sala de
Andrew e disse que precisava de uma semana de folga
porque tinha uma emergência familiar. Ele era uma boa
pessoa. Seu rosto foi tomado por complacência e
bondade. “Meu pai teve um avc”, expliquei. “Sim, você
tem que ir”, ele disse, muito enfático e sem perguntar
mais nada, praticamente me enxotando da sala como se
eu fosse partir já naquele momento. Então se lembrou do
leão que eu estava montando e pediu que eu passasse o
trabalho a Greg, pois o cliente — um músico famoso, pelo
que eu havia apurado — tinha alguma pressa, algo a ver
com uma festa que daria no final do mês. Fiquei até o fim
do expediente e tive que explicar sobre a viagem
também a Greg, que me olhou atônito, como se eu ainda
ter um pai vivo fosse a maior das novidades. “Quando
você terminar o leão”, eu lhe disse antes de sair, “liga
pra esse número e avisa, tá?” Greg deu uma espiada no
papel. “Quem é Juan?” “O cara que teve que atirar nele.”
Tenho quase quatro horas de espera até o voo para
Porto Alegre, por isso, depois do sanduíche, eu me sento
diante de um portão qualquer e fico olhando uns
pássaros negros que brincam do outro lado do vidro. Dei
as costas às pessoas de propósito. O excesso de rostos
sempre me deixa atordoada.
Uma semana atrás, eu disse a Vinícius em uma
chamada de vídeo:
“Eu não tô indo pelo pai.”
Ele riu. Havia anos que estava mais leve.
“Eu sei. Tô feliz que tu vem. Quanto tempo faz?”
Não precisei fazer as contas.
“Dezesseis anos.”
Por um tempo, ficamos lembrando de quando eu fui
embora: levei minha mãe em uma dessas agências de
intercâmbio e a fiz pagar minha matrícula em um curso
de inglês em Miami. Eu não sabia exatamente que não
voltaria, mas o fato é que passei cinco anos guardando
dinheiro para a possibilidade de que, sim, aquele Curso
de Inglês Intensivo Nível Intermediário se transformasse
em outra coisa: eu tinha trabalhado em uma
videolocadora, depois em uma floricultura, todo esse
tempo ainda morando com meu pai — cada um no seu
quarto, o contato reduzido ao mínimo dos mínimos —
para pelo menos não ver meu dinheiro sumir em um
aluguel.
“Faz então dezesseis anos que tu tá fugindo da
despedida”, Vini disse.
“Como assim?”
“Era um curso de seis meses, Ciça.”
Não respondi.
“Oi, travou aí? Essa imagem tá ruim demais.”
“Tô te ouvindo.”
Passamos então aos detalhes práticos. Vini também ia
comprar uma passagem para Porto Alegre. Por causa do
trabalho, chegaria um dia depois de mim. Eu ia dormir
em um hotel, tinha afastado completamente do horizonte
a possibilidade de ficar na nossa velha casa. Meu pai
ainda estava morando lá. Três cuidadoras se alternavam
em plantões de quarenta e oito horas.
“Tu sabe que ele não tá falando, né.”
“Eu sei.”
“E parece que ele não vai voltar a falar.”
“Alguém te disse isso?”
“O médico e a fonoaudióloga. Ela nem tá indo mais. Ah,
sei lá. Eu perdoei ele, então isso aí tudo só me dá muita
pena, sabe?”
“Tu perdoou por causa do na.”
Vinícius riu.
“Tu acha cafona, né?”
“Se funciona pra ti, eu acho ótimo. Sério mesmo.”
No aeroporto, aviso Jesse que estou no Panamá. Ele
responde em menos de um minuto dizendo que já sabe.
Ficou acompanhando meu voo inteiro pelo mapa.
Tentei muitas vezes explicar meu pai a mim mesma.
Ele se tornara deputado quase sem querer em um
momento histórico de muitas incertezas, mas também de
alguma esperança. A esperança é insistente no Brasil.
Raul Matzenbacher foi um parlamentar medíocre. Era
mais um desses homenzinhos de ideias pequenininhas e
ambiçõezinhas rasteiras que vão fazendo um país.
Encontrou um arquirrival no próprio partido. Esse outro
homem tinha mais carisma, gana, inteligência e também
um revólver na cintura e toda a história gaúcha viril
campeira que valia a pena contar. Esse homem era
veado. Chupava o pau de brigadianos. Comia um ex-
boxeador fodido. Fingiu que o amante para quem dava
mesada e havia oferecido uma Parati zero quilômetro era
fruto de um antigo relacionamento. Esse homem não era
apenas uma ameaça a um país volátil que só podia
contar mesmo com a suposta retidão de seus valores;
para Raul Matzenbacher, ele começou também a se
tornar um grande problema de ordem íntima: primeiro
deixou sua esposa encantada, depois chegou perto
demais de seu filho esquisito. Precisava morrer. Tenho
certeza de que meu pai nunca se arrependeu de ter
emboscado o inimigo.
Em todas as vezes que tentei explicá-lo para mim
mesma, acabei só sentindo mais raiva. Colocava os
recortes de jornal e as fotografias diante de mim e cada
vez enxergava menos o indivíduo e mais uma espécie de
marionete que respondeu aos estímulos do tempo. Com
os anos, fui percebendo que não era exatamente meu
olhar que enfatizava uma coisa ou outra: era meu próprio
pai quem tinha feito isso ao decidir puxar o gatilho. Meu
próprio pai que não tinha sido indivíduo o suficiente para
resistir à barbárie.
Outra coisa que fui entendendo aos poucos: Vinícius só
o perdoou porque também precisava ser perdoado.
Depois daquele encontro por acaso no Anjo Azul, meu
irmão não pensou muito em Satti. Naqueles dias, sua
cabeça estava ocupada por Luciano. Tentou ligar para ele
mais algumas vezes, mas o outro nunca pegou o
telefone. Certa tarde, foi caminhando até a casa dele.
Não tinha um plano (A adolescência não tem planos, né,
ou pelo menos nada muito executável). O Voyage bordô
estava embicado diante da garagem. Por razões óbvias,
Vinícius se afeiçoara àquele carro (Todo estropiado, cheio
de adesivos tortos, tinha uma puta personalidade, era
totalmente Luciano). Ele chegou mais perto para olhar.
Havia uma batida nova perto do farol esquerdo, teve
certeza disso. Certeza absoluta. Em um impulso muito
bobo, deslizou a mão pela lataria afundada. A sensação
era boa. Começou então a descascar com a unha o
pedaço de pintura que já estava querendo sair. Ficou
nesse descascar lento e meticuloso enquanto fantasiava
que ele tinha algo a ver com aquela batida, que nas
últimas semanas Luciano tampouco conseguira dormir e
se concentrar e comer e fazer qualquer coisa direito até
que isso tudo certa noite veio acabar em um poste.
Era romântico acertar um poste e não morrer.
Ouviu uma voz de criança na casa. Saiu correndo.
Então havia isso, que já parecia muito na época, e
havia também, no fundo, a intenção de não pensar em
Satti. Isso porque o fato de o colega do nosso pai ser gay
não funcionou exatamente para meu irmão como um
exemplo libertador. Aquela informação não brilhou como
um sinal verde, não mostrou a ele um outro mundo
possível; pelo contrário, a vida de Satti parecia indicar
que sua própria vida seria difícil, que o mundo que existia
era esse mundo mesmo (Enxerguei o futuro todinho,
Ciça, o cenário já tava montado, eu ia ter um emprego
de terno e gravata, ia ser um cara discreto, quer dizer,
que faz piada de tudo, tipo a alegria do escritório, mas
que nunca revela absolutamente nada sobre si mesmo. O
máximo da minha liberdade seria não ter uma esposa.
Meus colegas no início iam sentir a maior inveja disso,
um cara sem amarras, que podia fazer o que quisesse,
imagina! Mas, com o tempo, todos começariam a me
achar um esquisitão. Eu ia envelhecer sozinho. Teria que
pagar por sexo, morrendo de medo de pegar doença.
Sentiria vontade de ser amado, primeiro só uma
vontadezinha, como se fosse um privilégio que eu ainda
não tinha tido a chance de agarrar ou uma coisa que eu
até poderia passar sem, mas depois essa vontade
cresceria e bagunçaria minha vida inteira. Talvez em
algum momento eu achasse um Fred pra mim, um guri
bonito precisando de dinheiro, com sonhos que
obviamente não me incluiriam).
Vinícius guardou todas as fitas de Luciano em uma
gaveta. Naquelas semanas, matou aula atrás do prédio
dos escoteiros e ouviu no walkman apenas as bandas
que conhecera sozinho. Deitava a cabeça na mochila, via
as nuvens se arrastando. Um dia, falsificou a assinatura
do pai em um aviso que dizia que o aluno Vinícius
Matzenbacher havia faltado a dois períodos de química e
três de matemática. Ele vinha treinando essa assinatura,
não apenas para salvar sua pele, mas porque gostava da
sensação de poder que isso lhe dava.
A Angêla do soe não caiu.
Conhecia Raul, um pai rígido, tradicional. Com certeza
não o tipo de homem que ia assinar um papel e pronto.
Tinham conversado pessoalmente em duas ou três
ocasiões, sempre sobre o comportamento inadequado de
Vinícius. Ângela decidiu ligar para o gabinete do
deputado.
Era 3 de junho de 1988.
Vinícius chegou em casa pelas cinco da tarde.
“E tu tava onde?”
Adaptou os olhos ao breu da sala e viu o pai sentado
na poltrona. Terno e gravata. Sapatos pretos no carpete,
perfeitamente alinhados.
“Eu tinha um trabalho em grupo. Avisei a mãe.”
Mentira. Passara a tarde caminhando a esmo até criar
bolhas nos dedos dos pés e então havia parado em uma
lanchonete, onde gastou em batata frita e sorvete todo o
dinheiro que tinha na carteira. Uma coisa idiota. Ficou
olhando o movimento da rua enquanto comia as batatas
carnudas por dentro e gordurosas por fora. Lembrou-se
de quando, aos dez anos, ganhara um cheque dos tios e
o trocara com uma moça por ovos de Páscoa só por
causa do celofane colorido que brilhava no sol. A
memória o fez gargalhar. Mentira número 2: não tinha
falado para a mãe sobre nenhum trabalho em grupo.
“Chegou mais cedo da Assembleia hoje?”
Não era como se ele quisesse conversar, mas, por
algum motivo, ainda não se sentia autorizado a deixar a
sala. A casa estava silenciosa. Havia algo de diferente,
até o cheiro parecia outro (Ele tinha fechado todas as
cortinas).
“A Ângela andou me telefonando.”
“Que Ângela?”
“A Ângela do soe.”
“E o que foi que ela disse?”
Ele riu com os dentes colados.
“Tu sabe o que ela disse, Vinícius, pra que se fazer de
imbecil?”
Quis ir pro quarto, ficar sozinho.
“Senta aí um pouco.”
Teve que se sentar no lugar para onde o pai apontou
com um gesto, bem de frente para ele. Achou que não
aguentaria muito tempo sendo olhado daquele jeito.
“Por que tu não te senta direito?”
Quando olhou para si mesmo, a posição se desfez, mas
ele sabia: estava com as pernas coladas uma na outra,
as mãos sobre os joelhos.
“Vou te levar no Inácio no sábado.”
“Eu não quero cortar o cabelo.”
“Ué, e eu perguntei se tu quer? Não sei de onde é que
tu tira que tu tem que querer alguma coisa. Tu vai ter um
cabelo direito que nem o do teu irmão, por que é que
tem que ser diferente, hein?”
“Quer dizer que a Ângela te ligou pra falar do meu
cabelo?”
Ele se levantou. Pegou a carteira de Minister e o
isqueiro no aparador, rindo consigo mesmo.
“Tu te acha muito esperto, né?” Acendeu o cigarro. “Eu
sei porque tu não quer ir na aula, e é claro que a Ângela
sabe também.”
Vinícius ficou confuso.
“E por que eu não quero?”
“Porque teus colegas falam de ti pelas costas.”
“Meus colegas? Não, não é isso, tu tá totalmente
errado. Ninguém fala de mim! Eu é que acho todo mundo
idiota, todo mundo é mangolão naquela escola! Prefiro
mil vezes ficar sozinho.”
O pai agora tinha chegado mais perto dele.
“Mas gosta mesmo é de ficar com o Luciano.”
Vinícius se levantou. Sabia que os olhos entregavam
tudo e não conseguiu escondê-los a tempo. A boca
tremeu vergonhosamente. Tentou dar as costas, mas foi
puxado pelo ombro.
“Escuta o que eu vou te dizer, Vinícius: eu não vou ter
um filho bicha.”
Ficou chocado. Mal havia descoberto o que era. Repetia
todos os dias no espelho, era uma coisa assim ainda tão
íntima, não queria de jeito nenhum conceder ao pai o
direito de classificá-lo. Claro que não pensou no que
estava fazendo.
“Qual é o problema? Tu tem até amigo bicha!”
“Quê?”
“Tu foi pra praia com teu amigo veado e o
namoradinho dele!”
Perdera a cabeça. Nunca respondera assim e nunca
tinha tomado um tapa daquele jeito. Era quente. A pele
latejou. Mexeu o maxilar para os lados, sentiu dois
estalos secos, depois tocou o lábio inferior e viu o sangue
na ponta do dedo.
“Reage, porra. Tu já tem tamanho pra reagir.”
A vontade de chorar havia passado de repente. O pai
estava a menos de um metro dele, erguendo o queixo, os
punhos fechados em posição de ataque. Vinícius sempre
narraria essa cena nas salinhas tristes dos Narcóticos
Anônimos como se ela fosse a epítome da violência a que
fora submetido pelo pai — o nascimento do previsível
trauma que explicava sua dependência química etc. —,
mas a verdade era que ele a achava completamente
patética, risível.
Ficou parado. Em uma nova tentativa desesperada de
provocar uma reação, o pai o empurrou com força.
Vinícius caiu sentado no sofá, mas só o que conseguiu e
teve vontade de fazer em seguida foi proteger o rosto
com o braço magro. Pôde ouvir o desprezo. Sentiu o calor
da respiração do pai e depois a nuvem de nicotina
expelida quase em cima dele. O cigarro havia sumido,
agora reaparecia.
Segundos depois, a porta bateu. Ele tirou o braço da
frente do rosto, abriu os olhos, viu a sala vazia. Qualquer
embate precisa de dois. O pai tinha ido atrás de Satti.
A verdade é que ninguém poderia provar o suposto
encontro entre os dois deputados na noite de 3 de junho.
Nenhum flanelinha reparou no Monza cinza estacionado
na rua, nenhum vizinho ouviu vozes exaltadas dentro do
apartamento 302. Os acontecimentos desse dia nem
sequer foram investigados, uma vez que, desde os
primeiríssimos depoimentos informais até a conclusão do
inquérito, a polícia — e digo isso pensando sobretudo na
figura bizarra do delegado Apóstolo — parecia
empenhada apenas em perseguir cegamente a tese do
triângulo amoroso.
Para mim e para meu irmão, no entanto, oito anos e
muitos estragos depois, foi ficando cada vez mais claro
que assim tinha acontecido: após a discussão com Vini,
meu pai entrou no carro sabendo exatamente aonde ia.
Não estava armado, não houvera tempo para isso. Dirigiu
com a raiva na ponta dos dedos e socou o volante
algumas vezes no caminho enquanto se formava nele a
certeza de que Satti e seu filho haviam conversado. Não
sabia onde, quando nem por quê. Não podia sequer
imaginar. Estava com a boina de feltro que usaria dali a
quatro noites, embora aquela não estivesse
especialmente fria (era uma questão de esconder a
careca, eu diria a Vinícius, não parecer vulnerável,
apresentar a versão completa da masculinidade). O
primeiro semáforo abriu. Ele pisou no acelerador durante
dois quarteirões residenciais no lusco-fusco e tirou o filho
mais velho da cabeça porque era mais fácil desse jeito.
Então buscou as memórias que tinha de Satti e Fred
juntos enquanto se aproximava rapidamente da Quintino
Bocaiuva. Foi recriando as cenas: praia, restaurante,
terraço do hotel, um passeio pelas Guaritas. Procurou
gestos. Alguma coisa nas conversas. Reviu Satti falando
sobre cavalos e Fred entendiado, bocejando. Um gurizão.
Não, ele não tinha visto nada em Torres. Carmen não
tinha visto nada (antes tivesse, para desfazer de uma
vez por todas sua idolatria imbecil). Ainda assim, ele
sabia o que algumas pessoas diziam sobre João Carlos
Satti, e agora se perguntava o que ele deveria ter feito.
Um covarde, pensou, ultrapassando um carro cheio de
gente jovem, que respondeu à manobra com gestos
obscenos. Aceitara participar daquele espetáculo
grotesco, repulsivo. E pior ainda: tinha exposto a própria
família a ele.
Teve vontade de vomitar. Girou a manivela e abriu o
vidro até a metade. Sentiu as lufadas de ar golpeando o
rosto por um quarteirão e então estava ali, na frente do
edifício. Desligou o carro. Não era certo que Satti havia
chegado em casa. Podia ter saído da Assembleia e ido
direto a algum lugar, a casa da mãe ou uma churrascaria
ou quem sabe um bar cheio de aidéticos infelizes pele e
osso dançando a marcha fúnebre. Desceu e tocou o
interfone.
Por sorte, estava em casa. Passou o portão de ferro —
novo —, a porta de vidro, depois subiu o lance de escada
porque não era homem de ficar parado esperando
elevador. Corredor escuro, a porta do 302 meio aberta,
emitindo uma luz amarela e o andamento alegre de uma
canção. A petulância do sujeito! Veado de bosta. Entrou.
No meio da sala, Satti sorria para ele, camisa dobrada
até acima dos cotovelos, manchas de suor nas axilas. O
apartamento estava um forno (se olhasse ao redor, veria
os presentes de Carmen: um prato de parede, um cálice,
dois burrinhos de barro). Satti fez um gesto largo de
abraçá-lo, a bicha do caralho, pobrezinha, não fazia a
menor ideia do que estava acontecendo. Ele respondeu
dando um passo para trás e levantou a mão em um sinal
de pare. Então vieram as ofensas em um jorro confuso.
Era a primeira vez que falavam às claras sobre a vida
secreta de Satti, e talvez ele tenha levado algum tempo
para reagir, mas é claro que reagiria, tinha um
temperamento explosivo, as pessoas da rádio se
lembram muito bem (Chegava ao estúdio de manhã,
tirava o .38 do coldre e deixava a arma em cima da
mesa).
Naquela noite, o que de fato pôs fogo na discussão foi
a menção a Vinícius. Um dedo na cara, cheiro azedo de
animal: “Fica longe do meu filho, senão eu te mato”. Mas
Satti não ia aceitar uma coisa daquelas, e ainda mais
dentro da própria casa. A raiva se apossou dele como se
apossa de alguém uma entidade muito antiga que
precisa mandar um recado: “Melhor tu ficar mais atento
ao teu filho e menos aos outros porque olha só por onde
é que ele anda”.
Ouviu as palavras: “Anjo Azul”.
Aidéticos infelizes pele e osso dançando a marcha
fúnebre.
Sentia uma dor insuportável atrás do olho direito. Mas
não podia ir mais longe. Estava dentro do apartamento
de outra pessoa e desarmado. Tudo o que fez foi jogar
ameaças para o ar e ir embora batendo a porta com
força. Desceu todo o lance de escadas escorado no
corrimão.
Durante aqueles dias, não teve outra conversa séria
com Vinícius — parecia na verdade estar evitando
qualquer contato com o filho —, apenas o proibiu
completamente de sair de casa. Comunicou a Carmen a
nova regra sem dar maiores explicações. Na noite de 4
de junho, foi obrigado a ir a um jantar na Churrascaria
Barranco. Antes de sair, entrou no quartinho dos fundos
sem que ninguém o visse e colocou a Rossi no banco de
trás do carro.
Era um encontro mensal entre políticos, jornalistas,
empresários. Chegou um pouco atrasado. Satti estava
em uma ponta da mesa, Raul se sentou na ponta oposta.
Ignoraram um ao outro durante toda a noite. E não iam
faltar testemunhas para, dias depois, declararem à
polícia que Matzenbacher tinha lhes parecido sim um
pouco estranho. Os adjetivos mais usados seriam: quieto,
distante, nervoso, preocupado.
Deixou o prato quase cheio e foi telefonar.
Carmen atendeu. Ele deve ter dito que ainda
demoraria. Talvez quisesse também se certificar de que
Vinícius estava em casa. Aos amigos no Barranco, voltou
à mesa dizendo que precisava ir pois um dos filhos
andava meio doente.
Então ficou de tocaia diante do Edifício Elizabeth.
A Rossi estava no banco do carona. O vidro aberto. Ia
apoiar a arma na janela e apertar o gatilho, mas isso só
depois que Satti o olhasse bem nos olhos.
Por algum motivo, não atirou naquela noite. Voltou três
dias depois.
Li isso recentemente: “Os ursos não suportam olhar
nos olhos dos humanos, porque veem neles o reflexo de
sua própria alma. Um urso que cruza o olhar de um
homem buscará sempre apagar aquilo que vê ali. É por
isso que, se vê seus olhos, ele inevitavelmente ataca.
Você olhou nos olhos dele, não foi?”.
Ela tentou umas três chaves. O corredor tinha cheiro da
comida de outras pessoas, e a luz que vinha das janelas
basculantes pintava a poeira de azul. Eu estava bem ao
lado dela, com uma mochila quase maior do que eu,
ouvindo seus suspiros crescentes. Até com coisas muito
pequenas minha tia ficava nervosa. Vi os dedos agitados
escolherem outra chave, talvez a última tentativa antes
de ter que procurar um orelhão no centrinho de Capão da
Canoa e ligar para sua amiga explicando o que estava
acontecendo (Tem certeza que é esse chaveiro, Dulce?
Redondo, de metal?). Aquela chave, felizmente, deslizou
até o fundo da fechadura e se deixou girar duas vezes.
Então a porta branca se abriu com um rangido lento e
agudo.
“Olha que casa mais bonita!”, tia Eliane disse, a mão
pesada no entusiasmo como se estivesse falando com
uma criança muito mais nova.
Eu, Vinícius e Marco olhamos ao redor, indiferentes. Era
uma sala grande que emanava a tristeza das casas de
praia: móveis rejeitados de outros lugares, mas ainda
sólidos e úteis o suficiente para quebrar um galho em
uma casa onde ninguém morava. Uma camada de
desuso cobria todas as superfícies, como pelos
esbranquiçados ou patas minúsculas.
“Será que ainda dá pra pegar praia hoje?”
Tia Eliane abriu a pesada porta-janela da sacada — o
mesmo céu cinza pálido de cinco minutos atrás —
enquanto nós disparávamos para ver o resto do
apartamento, mais por desespero do que por
entusiasmo. Havia um quarto com uma cama de casal,
onde Vinícius entrou para olhar como se tivesse alguma
chance, e outro um pouco menor com dois beliches. Os
beliches eram de madeira clara com nós muito escuros,
uma onça-pintada do mundo vegetal. Me sentei sobre um
dos colchões sem lençol. Tinha uma grande mancha
amarela.
“Tu é lá em cima”, disse Vini.
Marco abriu o armário e encontrou os lençóis e uma
pilha de cobertores Parahyba.
“Não quero. Vamos tirar discordar então”, eu disse,
posicionando os dedos atrás das costas.
“Jura”, respondeu Marco. “Tu não conhece a regra do
beliche?”
Ouvimos tio Werner chegando com as malas.
Aquelas seriam nossas férias de inverno, mas a própria
ideia de ter férias naquele ano me parecia esquisita
demais. Tínhamos passado exatamente um mês sem ir à
aula e até as visitas da tia Silvana foram rareando, a
ponto de eu nem saber mais o que meus colegas
estavam aprendendo. Eu lia e relia O naturalista amador
e A ilha do tesouro e desenhava insetos que encontrava
no jardim e grandes mamíferos que eu nunca tinha visto.
Um mês inteiro sem ir para a escola, e de repente um dia
a mãe nos sacudiu dizendo “Hora de levantar, hoje tem
colégio!”, assim, naturalmente, como se aquele ritual
nunca tivesse sido interrompido. Eu estava nervosa no
primeiro período, já tinha me acostumado a ficar em
casa, mas no fim das contas ninguém escreveu assassino
no quadro ou perguntou se eu sabia onde meu pai tinha
guardado a espingarda. Voltamos na manhã seguinte e
na próxima. A escola parecia diferente, ou era eu que
não cabia mais nela. Talvez já soubesse que aqueles dias
eram só um tchau muito longo, a chance de reter na
memória os detalhes porque em breve tudo terminaria:
suco de uva e pão massinha no lanche, chicletes
grudados embaixo das classes, vento encanado entre os
pavilhões nos dias frios, o musgo que crescia na sala da
quarta série C. No meio daquela semana, meus pais
anunciaram que mudaríamos de colégio logo depois das
férias de inverno.
Só pessoas com sérios problemas trocavam de escola
na metade do ano.
“Gente, vamos se arrumar pra praia, que tal?”
Achamos em um quartinho esteiras ainda cheias de
areia e brinquedos de outras crianças. Caminhamos dois
quarteirões com prédios baixos e casas hermeticamente
fechadas. Um balneário no mês errado. Diante da
sorveteria que só ia abrir em novembro, um homem
estava em cima de uma escada pintando uma casquinha
no letreiro. Bolas de chocolate e morango, meio
derretidas. Era um desenho bem ruim, eu faria melhor. Vi
o mar e o horizonte logo depois disso, aquela linha que
sempre me impressionou na infância, a única linha reta
feita pela natureza. Esticamos nossas esteiras na areia
dura. As ondas cor de nescau-com-leite faziam um
estrondo de trovão e recuavam deixando pontos na
areia, que meu tio me mostrou se abaixando: “Olha aqui
as tatuíras, Ciça. Tão com as anteninhas pra fora”.
Pegamos areia molhada com um balde e peneiramos a
areia e meu tio pôs duas tatuíras na palma da minha
mão. Eram crustáceos pequenos que lembravam tatus-
bolas. Fiquei um tempo sentindo cócegas, depois as
coloquei de volta no lugar.
Vinícius estava deitado na esteira como se estivesse
tomando sol e Marco ia cavando um buraco fundo com
uma pá pequena demais. Tia Eliane e tio Werner, nessa
hora, caminhavam junto ao mar, olhando para longe,
dizendo um para o outro coisas que nenhum de nós três
podia ouvir.
“Tu sabe por que a gente tá aqui?”, me perguntou
Vinícius.
Marco parou de cavar.
“Cala a boca, meu!”, e deu um empurrão no ombro do
Vini, que continuou imóvel, olhando para o céu. A
camiseta ficou salpicada de areia.
“Vão acusar o pai a qualquer momento.”
“Cala essa tua boca.”
“Um juiz, sei lá, tá lendo a investigação da polícia. Mais
de mil páginas.”
“Ela não quer saber!”
“Quero sim”, eu disse.
Os dois ficaram quietos. Perto do mar, meus tios
mudaram de direção, o que já tinham feito algumas
vezes, indo e vindo e pisoteando o território das
mesmíssimas tatuíras. Não queriam nos perder de vista.
“Ele vai pra cadeia?”, perguntei.
“Ele não fez nada”, Marco falou. “É absurdo, isso!”
“Ninguém sabe”, Vinícius disse, mas não ficou claro se
ele estava respondendo a mim ou ao Marco.
“A gente vai ficar em Capão da Canoa pra sempre? A
tia Eliane e o tio Werner vão virar nossos pais?”
“A gente vai voltar pra casa”, disse Marco, enfático.
Mas eu demorava a pegar no sono na cama de cima do
beliche porque o teto era tão perto e o cobertor Parahyba
cheirava a lugar fechado e eu tinha que criar histórias
muito complexas de mosqueteiros e piratas e
exploradores da selva para não pensar no meu pai. Eu
acordava todas as manhãs imaginando que aquele seria
o dia em que o tio Werner ia receber um telefonema e
então nós entenderíamos tudo só de ver a cara dele. Mas
na verdade o apartamento nem sequer tinha um
telefone. Era a década de oitenta. Havia listas de espera
de anos para conseguir um número, e as linhas eram
passadas como herança, tão preciosas quanto carros e
casas. Então meu tio ia todos os dias até a central da crt
no centrinho de Capão para ligar para Porto Alegre. Era
assim que ele saberia, sem testemunhas, tendo uma
caminhada de uns quinze minutos até o apartamento
para se recuperar do choque, amenizar as notícias,
tentar sorrir quando chegasse. Poderia pegar o caminho
mais longo, pela beira da praia, e parar para olhar uma
coisa tão pequena quanto um menino empinando uma
pipa ou tão imensa quanto o oceano Atlântico.
Enquanto meu tio estava fora, tia Eliane fazia torradas
para nós. Eu dava mordidas bem pequenas em silêncio e
ia tomando o Nescau. Sentada sem comer nada, ela
tentava puxar assunto conosco. Às vezes perguntava da
escola nova sem saber que aquele era um assunto
delicado. Era uma escola salesiana, disse. Tinha até um
bosque, disse. Não ia ser legal ter amigos novos? Quando
eu ouvia a chave na porta, parava de comer. Meu tio
entrava e perguntava se tinha café passado e se sentava
à mesa com uma revista de palavras cruzadas. Tudo
parecia exatamente igual ao dia anterior.
Mas a questão era que só precisava ser diferente uma
única vez.
Esse dia acabou chegando.
Tio Werner entrou com a cabeça baixa. Andou até perto
da mesa, olhou bem para tia Eliane, mas não perguntou
sobre o café. Fiquei esperando. Ele não tinha trazido
nenhuma revista de palavras cruzadas. Os meninos
também perceberam que havia algo diferente. Dava para
ouvir as pessoas da sala engolindo. Os copos de Nescau
batendo nos dentes. Um afiador de facas apitou em uma
rua distante.
“Gurizada”, meu tio enfim disse. “Vamos conversar um
pouco?”
Depois daquela conversa, Vini quis dar uma volta
sozinho. Meus tios disseram que tudo bem, desde que
ele estivesse em casa em no máximo uma hora e meia.
Tio Werner tirou o relógio Casio do pulso e o estendeu a
Vinícius, que ajustou a pulseira de metal e encarou os
números a um palmo do rosto como se não estivesse
entendendo nada. Eu e minha tia ficamos na sacada até
ele dobrar a esquina. Ela chorou e secou os olhos com
uma toalha de praia.
Vinícius voltou no horário determinado. Mais tarde,
quando estávamos só os três no quarto — cheiro de
banho e Caladryl nas picadas de mosquito e um silêncio
de uma tonelada —, ele disse em voz baixa que tinha
uma coisa para nos mostrar. Tirou do bolso. Era uma
página de jornal dobrada em quatro.
Matzenbacher é denunciado.
As letras grandes, uma foto do meu pai que acabava
na metade da gravata. Na fotografia, umas manchas de
luz davam a impressão de que havia uma mão pousada
em seu ombro esquerdo. Quatro dedinhos ossudos.
“Alcides Marcondes”, disse Vinícius, como se fosse
importante reter essa informação. Era o nome que
aparecia logo abaixo do nome do meu pai, o tal promotor
de Justiça que havia lido as mais de mil páginas.
“O tio falou a verdade”, continuou. “O julgamento
mesmo ainda vai demorar.”
“Shhh, deixa eu ler”, disse Marco.
“E o Souza Andrade é o melhor advogado do estado.”
“Para um pouquinho, Vini, tô lendo.”
Eu também li.
No terceiro parágrafo, o promotor Marcondes descrevia
meu pai como um homem rejeitado, que amava minha
mãe, mas que certamente não atravessava a melhor das
fases em seu casamento. “Carmen estava apaixonada
por Satti”, declarava agora o sujeito a todo o Rio Grande
do Sul, “o brilhante deputado que conquistara fama
nacional com a lei dos cfcs. Esse ambiente levou sem
dúvida Matzenbacher ao crime.”
Mais adiante, em uma parte com o título Empregado
fica livre de envolvimento, o tal Alcides Marcondes dizia
que tinha descartado a hipótese de Adelino da Silva ter
relação com o crime, isso apesar da frase que sua agora
ex-mulher escutara em certa ocasião (Já matamos um
veado, podemos matar outro).
“O Adelino disse isso daqui?”, perguntei, apontando a
frase.
“Parece que sim”, respondeu Vini.
Continuei a leitura. A questão era que Adelino não
sabia dirigir, dizia o promotor. E era verdade mesmo, eu
me lembrava disso, uma vez o vira envergonhado
falando pro meu pai que ele só andava mesmo era no
lombo de um bom crioulo ou de um quarto de milha. Em
seguida, o promotor se referia a Adelino como um
empregado com uma fidelidade canina. O texto
terminava contando que, dois dias depois do crime, uma
coisa curiosa tinha acontecido: Adelino havia feito um
depósito de dez mil cruzados na caderneta de poupança
do filho mais velho.
Para ser sincera, não acredito que, naquela noite em
Capão, a imagem de Adelino em silêncio dentro do carro
do meu tio tenha me voltado à cabeça. Eu ainda não
tinha idade para entender que podia ter visto no jardim,
algumas semanas antes, a pontinha de um fato muito
maior. As antenas das tatuíras. Um iceberg. Naquela
ocasião, tio Werner havia dito que os dois iriam a São
Gabriel porque precisavam resolver algumas coisas e,
além disso, o Faísca não andava bem. Anos depois, seria
muito fácil dar um sentido àquilo: foi o dia em que
levaram a Rossi para a estância. Eu não tinha dúvida
nenhuma. Limparam a arma com todo o cuidado do
mundo e guardaram dentro de um saco de aniagem.
Então a deixaram em um armário que não era o armário
das armas de caça. Eu nunca ia entender por que
precisaram de duas pessoas para executar essa tarefa.
Talvez fosse apenas natural que Adelino limpasse a
sujeira da família.
Quando voltamos de Capão da Canoa, todo o material
para a nova escola estava sobre nossas respectivas
camas. Eu tinha ganhado um monte de livros e o maior
estojo de lápis de cor já visto — trinta e seis cores em
uma caixa de dois andares —, mas aquilo me deixou
contente por menos tempo do que eu imaginava.
Começaram as aulas e nenhum incidente aconteceu. As
crianças não foram más, ou talvez nem soubessem
direito. Marco fez amigos que passaram um sábado
inteiro em nossa casa.
Enquanto isso, o caso Satti continuava em evidência.
Minha coleção mostra tudo o que não vi na época. O
promotor Marcondes defendia que meu pai fosse julgado
por um júri popular. As discussões sobre o assunto, no
entanto, se arrastaram por semanas. Houve recursos
jurídicos, opiniões de especialistas, discussões na
Assembleia Legislativa. Enfim, Souza Andrade venceu, e
ficou decidido que levariam meu pai ao Tribunal do Pleno.
Isso queria dizer que ele seria julgado não por pessoas
comuns, mas por um grupo de vinte e um
desembargadores.
No início de agosto, o delegado Wilson Meyer deu uma
entrevista à rádio. Nela, afirmou que certas pessoas da
Polícia Civil haviam se apressado no inquérito porque não
resistiram às pressões da imprensa. Os homicídios de
pessoas desconhecidas, segundo Meyer, eram
investigados durante meses, então por que se correra
tanto até a suposta solução do caso Satti, se não para
agradar a uns poucos setores da sociedade gaúcha?
Nessa mesma entrevista, sempre com um tom de quem
sabia mais do que estava de fato contando, pronunciou
uma frase emblemática: “O Satti, todos nós sabemos,
não morreu porque era deputado, não morreu porque era
um cidadão. Morreu porque era homossexual”.
Durante todo esse tempo, meu pai continuou com seu
mandato de deputado estadual. No mês de novembro,
seus colegas não viram problema algum em levá-lo à
presidência de uma certa Comissão Temática chamada
Defesa dos Cidadãos, Saúde e Meio Ambiente.
Foi um ano-limbo, 1989. Passou inteiro sem que
marcassem o julgamento do meu pai. Ainda no início do
ano, minha mãe pediu para ser afastada do gabinete do
deputado Ferrari, transformando-se em pouco tempo em
uma caricatura psicótica de dona de casa. Todos os dias
no mesmo horário, ela se maquiava para então ficar
sentada na frente da televisão. Isso durava a tarde toda
e grande parte da noite. Às vezes eu ia me sentar ao
lado dela, mas detestava quando de repente sentia sua
mão cheia de ouro e pedras e unhas afiadas apertar a
minha com força. Eu não sabia exatamente o que
significava aquele gesto, mas tinha certeza de que não
se parecia em nada com amor.
Mais de uma vez, durante a vinheta de abertura de
algum programa de tv, eu a flagrara de longe em um
comportamento estranho. Estava se esforçando para
deixar as costas muito retas e as mãos sobre o colo, uma
bem em cima da outra. Então abria levemente a boca
vermelha em um sorriso calculado. Era como se, em um
passe de mágica, o tubo de imagem fosse começar a
operar ao contrário e minha mãe precisasse
cuidadosamente se preparar para entrar em cena. Todas
as vezes que vi isso acontecer, percebi também que o
encantamento durava só alguns segundos, a novela
começando a se desenrolar na tv de vinte polegadas
enquanto minha mãe de repente ficava mais relaxada,
tendo retomado a privacidade confortável da sala à
meia-luz. Para seu alívio, estava bem longe dos
jornalistas, dos policiais, das más-línguas da Assembleia.
Aqueles primeiros lampejos de despersonalização —
era assim que eu chamaria mais tarde — me deixaram
impressionada e me afastaram ainda mais dela.
Também no início de 1989, minha mãe contratou uma
nova empregada. Era tão senhorinha a ponto de ser
chamada por todos nós de dona. Dona Eva. Tratava-se de
uma mulher muito pequena que usava saias abaixo do
joelho e mantinha no topo da cabeça um coque bem
apertado que dizia ser o cabelo de Deus. Devia chegar
até os calcanhares, se um dia o desenrolasse. Dona Eva
executava seu trabalho em um silêncio servil milenar, o
que, depois da traição de Marli, parecia ser exatamente o
que minha família precisava. Além disso, meus pais
gostavam da comida dela, sempre farta e com toda a
carne que ela não podia comprar em sua própria casa.
No fim da tarde, pegava duas conduções carregando um
saco plástico cheio de gordura, pelancas e ossos. Dizia
que guardava para os cachorros, mas Vinícius tinha
certeza de que nossos restos alimentavam sua família.
Se dona Eva ajudava a criar uma quietude de claustro
em nossa casa, certamente não era a única responsável
por isso: meus pais mal falavam um com o outro. Mesmo
assim, nós cinco almoçávamos juntos todos os dias —
veja esse homem inocente que na pausa do trabalho
volta correndo para o seio da família! —, uma encenação
melancólica e asquerosa que hoje eu gostaria de poder
rasgar todinha com as mãos. Durante esses almoços,
Marco começou a desempenhar um papel importante.
Empolgado com a nova escola, chegava em casa
transbordando de anedotas sobre colegas e professores,
o que ajudava a dar um senso de normalidade àquele
nosso ritual cotidiano. Todos o ouviam e todos tentavam
rir. Às vezes os risos eram sinceros. Aquela nova
configuração agradava especialmente ao meu pai. E
Marco, durante tanto tempo no segundo plano de nosso
diorama familiar, parecia agora deslumbrado com seu
protagonismo meteórico.
Enquanto isso, reforçando esse movimento, Vinícius
caía.
Achava que o pai havia matado Satti. Era o único de
nós três com razões suficientes para acreditar nessa
hipótese. Às vezes tentava se convencer do contrário —
Eu não queria, aos dezesseis anos, ser metade monstro,
Ciça! —, mas na maior parte do tempo conseguia ver
aquele rosto tão familiar obscurecido pela boina e
mirando o alvo. Um tiro fácil daqueles. Ele se lembra de
ter pensado isso deitado na cama alguns dias depois do
crime e então sentir fortes espasmos de culpa. Quando
se volta no tempo, não se pode mais parar. Vinícius
voltou muitas vezes. E se, no calor daquela discussão,
não tivesse dado a entender que sabia que Satti era gay?
E se tivesse batido quando o pai disse para ele bater? E
se nunca tivesse entrado no Anjo Azul? E se o Anjo Azul
nem sequer existisse e o sobrado fosse demolido e as
bichas se retraíssem e o vírus desaparecesse e os
homens casados fossem felizes e ele gostasse de beijar a
Camila Gonzaga da turma B? E se ele tivesse aprendido a
se sentar sempre de perna aberta como todos os guris da
sua idade se sentavam? Se não tivesse falado com
Luciano na fila da lanchonete. Se naquela manhã não
houvesse uma fita cassete do The Cure no walkman. Se
ele nunca na vida chegasse a sequer conhecer The Cure
e se um dia visse por acaso Robert Smith na tv e só
sentisse nojo de um homem daqueles que usava lápis de
olho e batom. Se gostasse da estância. Se não tivesse
pena das perdizes. Se mastigasse um pedaço de carne
com um pouco de chumbo e tirasse o grão da boca rindo
e o mostrasse aos outros.
Em 1989, Vinícius tinha se tornado mais quieto. Passou
a evitar qualquer conflito, especialmente com o pai. Era
tanto medo quanto perplexidade. Nosso pai também
vinha mantendo certa distância em relação a ele,
ignorando sucessivamente suas notas ruins ou o fato de
ele estar comendo pouco ou mesmo o volume da música
que saía de seu quarto. Por um lado, parecia estranho
que ele relaxasse seu controle justo depois de ter
cometido o ato mais bárbaro e mais radical que podia
cometer. Por outro, a tática até fazia sentido: o
assassinato havia freado por completo o processo de
autoconhecimento de Vinícius. Além disso, o segredo que
ele precisava guardar sobre o pai — e a culpa que vinha
de arrasto — ocupava agora todo o espaço da sua
cabeça já confusa. Meu irmão, em outras palavras,
estava destruído demais para ser gay.
Em uma tarde de setembro, entrei no quarto dele sem
bater. Queria mostrar um desenho que estava fazendo.
Era um tal de pato-mandarim cuja foto eu encontrara em
uma revista, e nem minha nova caixa de lápis de cor
tinha tons suficientes para aquele animal. Vinícius estava
ajoelhado perto da escrivaninha. Mexia em um dos
bolsos da mochila. Levou um susto e acelerou o
movimento, mas eu ainda tive tempo de ver os dois
pequenos retângulos metálicos reluzindo.
“Que é isso?”, eu disse.
“Pra que entrar assim no quarto?”
“Eu queria te mostrar um desenho.”
Ele se levantou.
“Me mostra.”
“O que tu guardou na mochila?”
“Olha só, não é bom ser tão curiosa.”
“É remédio, né?”
Ele suspirou.
“Tu pode não fazer tanta pergunta?”
“Tu nunca precisou de remédio. Que eu saiba.”
“Bom, talvez tu não saiba de tudo. Mostra o desenho,
vai.”
Abri o caderno e mostrei o pato. Disse que a parte mais
difícil era aquela espécie de barba cor de cobre que
começava logo abaixo do olho porque, além de ser
impossível achar aquele tom tão específico entre os
meus lápis, eu queria que ela parecesse supermacia,
mas, ao contrário, tinha a impressão de estar olhando
para um monte de espinhos afiados meio alienígenas e
isso não era nada fiel ao pato-mandarim da National
Geographic.
“O pato tá ótimo, Ciça. Olha essa asa!”
“Tu acha?”
“Ele tem tantas cores mesmo?”
“Aham, é tudo verdade.”
Vinícius riu.
“E tu nunca pensou em desenhar pessoas?”
“Não.”
Foi só quando eu já era adolescente que descobri que,
durante aquele ano-limbo, Vinícius às vezes entrava no
quarto dos meus pais enquanto minha mãe via tv no
andar de baixo. Abria a gaveta da mesa de cabeceira e
pegava algumas cartelas dos psicofármacos dela. Equilid.
Dormonid. Valium. Ela nunca desconfiou dos roubos
porque sempre perdia a conta do quanto tomava. Então
ele separava uns comprimidos e, com a desculpa de que
ia estudar para o vestibular na casa de um colega, ia
caminhando até o Bom Fim. Vendia as cartelas de
remédio para um traficante da Osvaldo que agora ele
conhecia muito bem, depois ia até a Toca do Disco e
comprava um vinil. Uma quadra depois, tirava a película
de plástico, jogava a sacola no lixo. “Meu colega me
emprestou”, era o que dizia ao chegar em casa. Fechava
a porta do quarto, tomava uns comprimidos e colocava o
disco para tocar.
Todos na mesa da cozinha tomando o café da manhã e
eu disse que ia ao banheiro. Andei até a sala. Estava
organizada, com cara de vida nova, os três cinzeiros
limpos, a manta esticadíssima no sofá. A madeira da
mesa e das cadeiras e das estantes brilhava de óleo de
peroba. Eu queria chorar. A televisão. O controle remoto
encaixado no lugar. Capturada nas dobras da cortina
branca, a luz da manhã me chamava. Era inverno de
novo. Hesitei um pouco — barulho de xícaras e pratos,
Marco perguntando “A tia vem que horas?” —, depois
finalmente me aproximei da janela. Coloquei a mão na
cortina. Abri um mínimo espaço para encaixar meu olho
direito.
Eram sete da manhã do dia 20 de julho de 1990. Os
jornalistas haviam cercado nossa casa. Seguravam
gravadores, câmeras, blocos de notas. Um deles, um
homem de barba e cabelo crespo, estava fumando e
rindo e batendo as cinzas no nosso canteiro das coroas-
de-cristo. Outro tinha as costas apoiadas na caixa do
correio. Uma mulher fez uma concha com as mãos e
ficou assoprando nelas. Eu queria abrir o vidro e gritar
bem alto que todos fossem embora, não só porque
estavam se metendo onde não tinham sido chamados,
mas também porque eu odiava ver suas ações
pequenininhas e banais. Doía que fosse um dia tão
normal para aquelas pessoas. Ou melhor, um dia até
empolgante, considerando a fileira de curiosos que se
formara na praça, dispostos a esperar meia hora ou mais
para talvez ver de relance a cara do réu. Reconheci um
dos nossos vizinhos. Era um homem sem filhos que
sempre me deixava brincar com o cachorro dele. Nunca
mais eu ia querer tocar naquele Collie. Senti uma mão
nas minhas costas e fechei a cortina em um pulo.
Era meu pai. Ele sorriu e fez um carinho rápido na
minha cabeça.
“Não fica olhando.”
“Tá.”
“Os outros não podem te abalar. Um dia tu vai
aprender.”
Não falei nada. Ele sorriu de novo e me encarou
durante algum tempo como se tentasse enxergar meu
futuro. O que eu ia e o que eu não ia aprender.
Uns dez minutos mais tarde, tia Eliane embicou o carro
na nossa garagem. O grupo de jornalistas então se
moveu com o instinto de um enxame enquanto o portão
de ferro corria devagar (sim, eu fui espiar de novo). Mas
tia Eliane ficou firme olhando apenas para a frente. No
pátio, dirigiu sobre a grama — esmigalhando uma pá de
plástico — e estacionou perto da churrasqueira, onde
ninguém mais além de nós podia ver coisa alguma.
Quando desceu do carro, abriu a porta de trás e pegou
de cima do banco duas grandes sacolas plásticas.
“Eu trouxe presentes!”, ela disse, com uma estranha
entonação musical.
Meus pais tentaram se despedir de nós de uma
maneira que não fosse dramática, como se só
estivessem muito arrumados porque precisassem ir a um
jantar. Meu pai parecia calmo e distraído, minha mãe era
o palco da luta entre o surto mental e a serenidade
química. Eu e meus irmãos acabamos chorando.
Enquanto o Monza cruzava o portão e era obviamente
envolvido pelos jornalistas — eu teria alguma dessas
imagens na minha coleção futura —, tia Eliane procurou
nos manter longe das janelas. Ouvimos vários carros
arrancando em seguida. Levaram embora todo o
burburinho. Na sala, aquele silêncio caiu como uma
pedra, fazendo com que nossa tia se apressasse a pôr
em prática seu plano de Natal antecipado. Era um plano
ruim. Naquela altura, só conseguíamos pensar mesmo no
julgamento, o primeiro em todo o Rio Grande do Sul a ser
transmitido ao vivo pela tv e que definiria o destino da
nossa família; por isso, enquanto abríamos os embrulhos,
não parávamos de lançar olhares furtivos para a tela
preta, mesmo com os patins e os jogos e os dois abrigos
de tactel agora diante de nós. Tia Eliane não se ofendeu
com nossa falta de entusiasmo pelos presentes. Estava,
isso sim, atônita e confusa. Se não conseguira distrair
seus sobrinhos nem por cinco minutos, provavelmente
nada ia sair conforme havia planejado; não nos
divertiríamos com o Cara a Cara, fazendo perguntas uns
aos outros sobre tipos de boca e cabelo e óculos até
chegar a um rosto específico, um tipo de investigação
que, por ironia, parecia demais com descobrir o autor de
um crime. Os meninos não armariam o tabuleiro de
Combate na mesa do pátio enquanto, ali perto, eu
tentaria me equilibrar nos meus novos patins. Mas como
ela poderia ter imaginado que ia ser diferente?
Vinícius vestiu a parte de cima do abrigo só para
agradar. Andou até o espelho do cabideiro e ficou na
ponta dos pés porque o espelho era alto demais. Então,
como se jogasse um comentário casual no ar, disse a tia
Eliane que nós gostaríamos de assistir ao julgamento. Ela
se levantou em um susto e começou a recolher os
pedaços rasgados de papel de presente. “Vini, eu acho
que não é uma boa ideia”, disse, mas sua escancarada
falta de firmeza deixou claro que nós venceríamos.
Fomos proibidos de ver o advogado de acusação falar.
Passamos aquele tempo no meu quarto em partidas
intermináveis de Cara a Cara. Só interrompíamos o jogo
para que um consolasse o outro, ou toda vez que Marco
queria expor alguma de suas teorias sobre o caso Satti: o
Barão dos Mata-Mosquitos — era assim que ele dizia —
contratara um assassino de aluguel, ou Satti estava
chantageando alguém da Brigada Militar, ou Fred tinha o
plano de matá-lo por dinheiro havia muito tempo e agora
estava escondido em um sítio no Uruguai.
Enquanto isso, tia Eliane acompanhava o julgamento
na tv da sala com o volume baixíssimo. Finalmente
entrou no meu quarto depois de uma hora e meia
dizendo que Souza Andrade começaria a explanação da
defesa.
Assisti às velhas fitas vhs tantas vezes que é difícil
separar as lembranças. O que sei com certeza é que,
naquela sala, em 1990, a performance de Souza Andrade
me deixou fascinada. As crianças guardam mais gestos
do que palavras. As memórias dessa época da vida são
menos lógicas e muito mais sensoriais. Eu me lembro do
corpo massivo de Souza Andrade com a toga preta, e de
como ele era enérgico, indignado, uma panela de
pressão que não para de apitar. Lembro dos gritos, do
dedo em riste. Mais tarde, já adulta, o que mais me
impressionou foi sua aposta certeira na tese de que Satti
inventara o assédio da minha mãe. Ele conseguiu
demonstrar de maneira magistral que não havia prova
alguma de tal assédio, e que todo o boato partira dos
comentários que o próprio Satti fizera ao chefe de seu
gabinete, a Glória e a um punhado de amigos próximos.
A suposta perseguição do indiciado, segundo ele,
tampouco foi testemunhada por alguém; tratava-se de
algo que de novo Satti havia reportado a terceiros, toda
essa ficção tendo sido portanto engendrada pela vítima
para assim conseguir esconder sua homossexualidade.
Com essa tese, Souza Andrade conseguiu desmantelar o
alegado motivo do crime. E, sem motivo, não havia razão
para meu pai estar no banco dos réus.
Os três primeiros votos, no entanto, foram
condenatórios (Sentindo o peso do provérbio bíblico de
que aquele que absolve o réu e o que condena o justo,
ambos são abomináveis diante de Deus, proponho a
condenação do réu por homicídio simples). As
justificativas dos magistrados seriam tão longas que
aquele julgamento se estenderia por três dias inteiros. Ao
longo desse tempo, a impressão geral de que Raul
Matzenbacher seria condenado foi se diluindo em uma
sucessão de discursos preconceituosos (Um parlamentar,
pessoa de elevado nível cultural e social, reunir-se a
soldados em jantares é evidência de convívio
promíscuo). Em conjunto, aquelas falas pareciam afirmar
que João Carlos Satti tivera exatamente o fim que
merecia (Aliás, Satti, por sua vida dúplice, não era
pessoa infensa a atentados).
Naqueles dois anos entre o crime e o julgamento, um
boato de que Satti havia assediado meu irmão se
espalhara em alguns círculos sociais. Boatos são como
esporos: instalam-se, crescem, não se sabe de onde vêm.
É muito provável que os desembargadores tenham
ouvido falar naquilo. É possível que tenham votado
pensando que julgavam um crime de honra. Meu pai
acabou absolvido por catorze votos a sete.
Estou em Porto Alegre, no banco de trás de um táxi. O
vento que cheira a tijolo e ferrugem brinca com meu
cabelo. São quase duas da manhã. Passamos por
letreiros escuros, cortinas de aço pichadas, edifícios
dormentes. Um homem sem camisa empunhando algo
que lembra uma lança revira o lixo atrás de qualquer
coisa que valha centavos. É o único ser humano que vejo
em quilômetros. Já não tenho mais nenhuma dúvida de
que fiz de propósito, penso, segurando um riso nervoso
para não parecer louca: escolhi os voos cujos horários
me levariam a reencontrar a cidade vazia. Essa malha
urbana — misteriosa, melancólica, úmida — se ajusta
perfeitamente às minhas lembranças como a pele de um
bicho se ajusta a um manequim. Agora sim dou risada
sem querer.
O motorista continua em silêncio. É um senhor que
dirige com a mão esquerda sobre a coxa. Vai avançando
os sinais vermelhos em uma espécie de jogo pela
sobrevivência, rápidos cálculos de risco sendo feitos a
cada esquina. Eu não fico com medo, conheço esses
cálculos todos. Saímos da via arterial que liga o norte ao
sul da cidade. Agora as árvores aparecem, sombreando
as ruas dos bairros nobres com seus galhos cabeludos de
erva-de-passarinho amputados de qualquer jeito pela
Secretaria do Meio Ambiente. Entre prédios residenciais,
sobrevivem ainda umas poucas casas. Têm jardins largos,
um aspecto de família desmontada, talvez piscinas de
azulejo nos fundos.
Tudo igual e tudo tão diferente.
Nessas ruas da Bela Vista, posso imaginar Satti e
Vinícius dentro do Escort xr3, o carro bambeando no
paralelepípedo escorregadio em busca da esquina certa.
Estão bêbados, recém-saíram do Anjo Azul. Recostado no
banco do carona, meu irmão fecha os olhos e sente um
entorpecimento gostoso. A vida é imprevisível, vai
conhecer outros Lucianos, vai conseguir ir até o fim, vai
gostar de si mesmo um dia. Tem só dezesseis anos. Acha
que está pronto para ouvir as fitas de novo, fazer com
que sejam só suas. Talvez sumir com a letra dele,
escrever do próprio punho. O que importa é a música.
Olha para o lado e vê Satti rindo para si mesmo.
Pergunta o que foi, também rindo, o carro chacoalha,
estão agora quase na esquina da praça. “Tu é corajoso,
hein, guri.” Satti sorri, mas não diz mais nada. Então
param junto ao meio-fio — a praça escura, a caixa-
d’água que agora lembra uma torre de vigilância — e
meu irmão já tateia a porta à procura da maçaneta. Não
é que tenha pressa de sair dali, é mais uma questão de
se sentir impelido por uma euforia que ele não sabe
quanto tempo vai durar (Se ao menos eu imaginasse que
aquilo era só uma explosão de nada). A mão erra, Satti ri
dele. “Tem certeza que tu tá bem?” Vini coloca um pé na
calçada, impulsiona o corpo, e aí sente tudo girar ao
redor. Bate as costas no carro com força. Não dói.
Quando vê, Satti está diante dele ajudando-o a se sentar
de novo. A praça fica pequena no espelho retrovisor.
“Vai pagar como, quer a maquininha?”
Estamos parados diante do hotel. Enquanto o motorista
me olha como se eu pudesse sair correndo, começo a
vasculhar minha mochila. Encontro a carteira, enfio o
cartão na máquina, digito a senha. Desço do carro. Ele
tira minha bagagem do porta-malas com as expirações
de um enfisemático. Entrar no lobby me ofusca. É um
prédio sem miolo, os dez ou mais andares muito brancos
terminando vertiginosamente em uma espécie de
claraboia de vidro fumê. Alguém já pode ter se atirado lá
de cima. Pego a chave na recepção e então arrasto a
mala até o elevador pensando no que por muitos anos
repeti a mim mesma: só volto com meu pai morto.
Não consigo pegar no sono.
Meu pai ainda vive.
Me sento na cama, ligo o abajur. Mastigo uma barra de
proteína sem vontade, só para acalmar o estômago.
Naquela noite, Satti levou Vinícius para a casa dele.
Edifício Elizabeth, apartamento 302, a família só ia
conseguir vendê-lo quando a cidade começasse a
esquecer. Deixou meu irmão no sofá e disse que ia fazer
um café forte, mas serviu alguma coisa licorosa no bar e
só depois é que foi para a cozinha levando o copo com
ele. Um corte na cena e então Vinícius lembra de estar
vomitando na pia do banheiro. A garganta arranhada e
junto uma clareza instantânea que o fez tentar limpar a
louça cor de carne e procurar um enxaguante bucal no
armário. Tomou o café depois. Não tinha bebido café
muitas vezes na vida. Comeu um sonho de creme meio
duro, isso com certeza — Consigo até ver o açúcar na
toalha de plástico na mesa da cozinha — e, a partir desse
ponto, foi se sentindo melhor. Ficaram ali os dois
conversando. Satti não parecia querer apenas curar a
bebedeira de Vinícius; também estava empenhado em
diverti-lo, falar coisas interessantes com certo ar
professoral, quem sabe se pavonear um pouco. E havia o
copo na beirinha do balcão para o qual ele voltava de
tempos em tempos, o que fez com que os assuntos
começassem a ficar meio desconexos, saídos de um
canto esquisito de sua cabeça. “Guri, vou te contar um
negócio sobre um pássaro que não tinha patas. A grande
ave-do-paraíso.”
Mais tarde, deixou Vinícius na esquina da praça.
“Te cuida”, disse, e pôs um cigarro apagado na boca.
Acelerou o Escort e saiu traçando um temeroso zigue-
zague enquanto meu irmão caminhava para casa.
“Tu conseguiu dormir pelo menos?”, ele pergunta.
Vinícius é agora um homem de quarenta e seis anos,
magro e atlético, bochechas vazias, barba castanha-
nevada. Ainda tem o cabelo cheio, em ondas que vão até
o final da nuca, mas a testa ficou mais larga com o
tempo. O escuro debaixo dos olhos é do nosso pai.
“Bem pouco. Tô com jet lag. É sempre pior do oeste pro
leste.”
Ele ri.
“Como se tu soubesse, né.”
Faço um gesto infantil, dou um tapinha no ombro dele.
É bom estar aqui caminhando com meu irmão, depois de
três anos desde a última vez que nos vimos. Por mais de
dez, fui eu quem mandou as passagens. Ele andava
sempre fodido, não dava conta dos empregos que
arrumava pela mãe — assistente em uma firma de
advocacia, cc em várias secretarias municipais —,
cheirava todo o contracheque, começava a faltar, era
mandado embora, entrava em uma clínica para
dependentes químicos na zona rural de Taquara, dizia a
todos que ia mudar, e então o ciclo recomeçava. Foi
quase beirando os quarenta que conseguiu segurar as
recaídas. Eu sou uma dessas estradas sem acidentes há
489 dias, me disse uma vez em um fim de tarde em Los
Angeles, recuperando o fôlego depois de uma caminhada
morro acima. Dava para ver que estava feliz consigo
mesmo. Alguns meses depois, a felicidade atraiu Bruno.
Foi uma paixão tão forte que de repente Vinícius
começou a falar sobre o futuro. Mudaram-se para o Rio
de Janeiro e adotaram um cachorro. Vinícius foi aprovado
em um concurso público.
Estamos ainda caminhando. Saímos do meu hotel e
agora acabamos de chegar a um dos vértices da praça
Horizonte. Digo a Vini que, antes de entrar, quero ficar
sentada por cinco minutos. Ele pergunta se estou
passando bem e respondo que sim, mentindo só um
pouquinho. Do banco, já consigo ver nossa casa coberta
pela pátina da negligência, cercada por edifícios tinindo
de novos que mal deixam o sol tocar o pátio dos fundos.
As árvores da praça cresceram de um jeito selvagem. As
copas sem forma não respondem a um ideal do
paisagismo urbano, mas apenas à luta incessante por luz
gravada em cada célula vegetal. A caixa-d’água foi
encoberta pela massa verde.
Só um tempinho aqui, digo a mim mesma.
“Conheci um cara”, escuto Vini falar.
Olho para ele.
“Tu nunca conhece um cara.”
“Pois é, conheci. Desde o Bruno.”
“Desde o Bruno o quê?”
“Que eu não me sinto assim, bem.”
Ficaram juntos por seis anos. Bruno acabou se
apaixonando por outro homem.
“Me conta mais”, digo, e estou tão feliz que quase
esqueço onde estamos.
“Ah.” Ele fica tímido, coça a barba. “Espero que tu
conheça ele um dia, Jefferson, carioquíssimo, desses de
jogar futevôlei de sunga.”
Dou uma risada.
“A gente tem a mesma idade, quer dizer, ele é dois
anos mais novo. E tá ficando bem sério o negócio.”
“Que ótimo, Vini, demais. Onde é que vocês se
conheceram?”
“No na.”
Dou um sorriso. Talvez pareça condescendente.
“Acho que isso é bom”, digo.
“É ótimo.”
Meu pai sabe que estou em Porto Alegre. Ergueu o
polegar quando Marco contou que eu viria, mas não
sorriu. O estímulo nervoso não chega aos músculos do
rosto desde o acidente vascular cerebral.
“Sabe quem eu vi outro dia?”, Vini continua. Parece
agitado, em um bom sentido.
“Nem ideia, quem?”
“O Luciano.”
“Uau. Gay ou hétero?”
“Eu chutaria gay, mas sei lá. Tá bonito. Acho que ele
não me reconheceu, foi num restaurante. Pensei em
chegar, dizer ‘oi, lembra de mim?’, mas eu ia ficar
nervoso, visivelmente. Impressionante como a gente fica
nervoso com o primeiro amor. Passam trinta anos e o
coração tá lá, tum-tum-tum-tum!”
“Vini, tu acha que o pai soube que tu foi na casa do
Satti?”
“Por mim nunca soube.”
“Mas pelo Satti.”
Ele se levanta do banco.
“A gente tem que ir.” Me estende a mão. “Vem. É só
um velho comendo papinha, Ciça.”
O pai foi interditado e Marco é o curador e agora
querem vender a casa. Eu entro pensando nisso. Vão me
mostrar mais tarde a proposta da construtora, gostariam
de saber se acho uma boa ideia, eu digo que sim. A casa
foi primeiro de outra família, isso antes de 1973.
Restaram filhos precisando de dinheiro. Minha mãe
sempre dizia que soube que era essa no momento em
que viu a lareira de pedra. Mas quase nunca colocavam
os nós de pinho para queimar. Gostavam era da
possibilidade do fogo. Vão demolir essa sala, entrar nela
com uma retroescavadeira e, depois de tudo ter caído,
talvez sobre por uns dias a lareira e a chaminé. Gosto da
imagem. O núcleo duro da sala — sofá, poltronas,
tapetes, mesa de jantar — não mudou nada desde os
anos noventa, mas os objetos periféricos desapareceram
ao longo do tempo. Foi meu pai. Começou a jogar fora
até o que estava bom. Não era mais aquele homem que
entrava no quartinho dos fundos para resgatar as coisas
quebradas.
Faço menção de subir para o segundo andar, um
movimento internalizado, mas Vinícius me avisa que
colocaram a cama de hospital no escritório. Claro.
Cruzamos então a sala, pegamos o pequeno corredor e,
antes de abrir a porta, já sinto aquele cheiro de
medicamento azedo.
Está reclinado na cama, com uma mulher sentada ao
seu lado, que ergue os olhos do celular e se levanta sem
jeito e guarda o aparelho no bolso. Diz que vai nos deixar
à vontade. Sai sem nem me dizer seu nome. Vou
chegando mais perto da cama, o corpo dele embaixo do
lençol uma coisa pequena e ossuda. Ele tem uma
expressão assustada de reencontro, paralisia, homem
perto da morte. Não digo nada. Só me aproximo do meu
pai e olho bem nos olhos dele.
Agradecimentos
Obrigada, Melissa Fornari, por mergulhar comigo nesse
universo. Obrigada, Diego Grando, por acompanhar meus
livros sempre de tão perto. Obrigada, Luara Franca, Lucia
Riff, André Araújo, Rafaela Pechansky, Michelle Fornari e
Cláudia Laitano. E um agradecimento especial aos
jornalistas e aos porto-alegrenses de boa memória que
se dispuseram a me contar histórias de uma época
distante.
marco antonio filho
carol bensimon nasceu em Porto Alegre, em 1982. Seu
primeiro romance, Sinuca embaixo d’água (2009), foi
finalista do prêmio Jabuti e do São Paulo de
Literatura. Também é autora de Todos nós
adorávamos caubóis (2013) e O clube dos jardineiros
de fumaça (2017), vencedor do prêmio Jabuti na
categoria Romance e finalista do Prêmio São Paulo de
Literatura. Os livros de Bensimon foram traduzidos
nos Estados Unidos, na França, na Itália, na Espanha
e na Argentina. É mestre em escrita criativa pela
PUC-RS. Vive em Mendocino, na Califórnia.
Copyright © 2022 by Carol Bensimon
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de
1990,
que entrou em vigor no Brasil em 2009.
Capa
Elisa von Randow
Foto de capa
Smithsonian Institution Archives. Image #mnh-045b
Preparação
Cristina Yamazaki
Revisão
Valquíria Della Pozza
Luciane H. Gomide
Versão digital
Rafael Alt
ISBN 978-65-5782-646-1
Os personagens e as situações desta obra são reais apenas no universo da
ficção; não se referem a pessoas e fatos concretos, e não emitem opinião
sobre eles.
Todos os direitos desta edição reservados à
editora schwarcz s.a.
Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32
04532-002 — São Paulo — sp
Telefone: (11) 3707-3500
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O clube dos jardineiros de
fumaça
Bensimon, Carol
9788554510404
392 páginas
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Ambientado na Califórnia e tendo como pano de
fundo a descriminalização da maconha, O clube
dos jardineiros de fumaça é um retrato magistral
da geração hippie. Vencedor do Prêmio Jabuti 2018
na categoria Romance.
Em um cenário formado por coníferas milenares,
estradas sinuosas e falésias, a região californiana do
Triângulo da Esmeralda concentra a maior produção de
maconha dos Estados Unidos. É lá que o jovem professor
brasileiro Arthur busca recomeçar a vida, depois dos
acontecimentos que o levaram a deixar Porto Alegre. Aos
poucos, ele se insere na dinâmica local e passa a fazer
parte de uma história que começa com a contracultura
dos anos 1960 e se estende até o presente.
À vida de Arthur e daqueles com quem estabelece
vínculos — o atormentado Dusk, a solitária Sylvia, a
indecisa Tamara — mistura-se a de personagens reais
que participaram do embate que levou à
descriminalização do uso da maconha, fazendo deste um
poderoso romance panorâmico. Cruzando história e
ficção, com uma linguagem original e ousada, a meio
caminho entre Brasil e Estados Unidos, Carol Bensimon
compõe em O clube dos jardineiros de fumaça um
brilhante retrato da geração hippie e de seu legado.
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A morte do gourmet
Barbery, Muriel
9788563397102
128 páginas
Compre agora e leia
No romance de estreia de Muriel Barbery, autora
do best-seller A elegância do ouriço, o maior
crítico de gastronomia da França é desenganado
pelos médicos e decide perscrutar a memória em
busca do gosto perfeito.
Em seu leito de morte, o grande crítico gastronômico
Pierre Arthens é tomado pela última obsessão: lembrar-
se do sabor que mais o enfeitiçara. A viagem aos
meandros do paladar começa na infância do
protagonista, quando as artes culinárias da avó
desabrocharam seu talento, e termina na consagração do
profissional que celebrava deliciando uma simples
sardinha frita ou um inesquecível sorbet de laranja. No
caminho, ele descreve a descoberta dos sashimis; a
sensualidade dos tomates amorosamente colhidos na
horta da casa de sua tia; o primeiro gole de uísque; o
aveludado erótico da ostra. Sabores e odores misturam-
se na memória do agonizante. Em contraponto às suas
recordações surgem as vozes das vítimas de seu cinismo
e egoísmo: a mulher e os filhos, a amante, o aluno, o
gato de estimação e até mesmo a concierge Renée, que
os leitores de Muriel Barbery conheceram em A elegância
do ouriço.
Para idealizar certos cardápios e receitas de A morte do
gourmet, romance traduzido em doze línguas, a autora
contou com a colaboração de Pierre Gagnaire, um dos
mais conceituados chefs da França, agraciado com três
estrelas no Guia Michelin.
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Poesia completa de Ricardo
Reis
Pessoa, Fernando
9786557826867
224 páginas
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Ao aliar estilo clássico, rigor formal e extrema
consciência do momento presente, Ricardo Reis se
destaca como um dos heterônimos mais
fascinantes de Fernando Pessoa.
"Tão cedo passa tudo quanto passa!/ Morre tão jovem
ante os deuses quanto/ Morre! Tudo é tão pouco!/ Nada
se sabe, tudo se imagina/ Circunda-te de rosas, ama,
bebe/ E cala. O mais é nada", discorre Ricardo Reis na
ode número 66. Marcada por referências mitológicas,
concisão verbal, dicção rebuscada e disciplina estoica,
sua poesia é capaz de engendrar profundas reflexões
sobre a efemeridade da condição humana.
A presente edição reúne todas as odes atribuídas a um
dos heterônimos mais célebres de Fernando Pessoa,
produzidas entre 1914 e 1935. O volume conta com
estabelecimento de texto da especialista Manuela
Parreira da Silva e posfácio inédito do poeta Paulo
Henriques Britto, que joga luz sobre aspectos formais e
simbólicos de uma das obras mais admiráveis do século
XX.
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O amanhã não está à venda
Krenak, Ailton
9788554517328
12 páginas
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As reflexões de um de nossos maiores pensadores
indígenas sobre a pandemia que parou o mundo.
Há vários séculos que os povos indígenas do Brasil
enfrentam bravamente ameaças que podem levá-los à
aniquilação total e, diante de condições extremamente
adversas, reinventam seu cotidiano e suas comunidades.
Quando a pandemia da Covid-19 obriga o mundo a
reconsiderar seu estilo de vida, o pensamento de Ailton
Krenak emerge com lucidez e pertinência ainda mais
impactantes.
Em páginas de impressionante força e beleza, Krenak
questiona a ideia de "volta à normalidade", uma
"normalidade" em que a humanidade quer se divorciar
da natureza, devastar o planeta e cavar um fosso
gigantesco de desigualdade entre povos e sociedades.
Depois da terrível experiência pela qual o mundo está
passando, será preciso trabalhar para que haja
mudanças profundas e significativas no modo como
vivemos.
"Tem muita gente que suspendeu projetos e atividades.
As pessoas acham que basta mudar o calendário. Quem
está apenas adiando compromisso, como se tudo fosse
voltar ao normal, está vivendo no passado […]. Temos de
parar de ser convencidos. Não sabemos se estaremos
vivos amanhã. Temos de parar de vender o amanhã."
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História do Brasil em 25 mapas
Doré, Andréa
9786557826768
464 páginas
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De um planisfério de 1502 a softwares que
acompanham via satélite o desmatamento na
Amazônia no século XXI, das organizações de
comunidades quilombolas ao Plano Piloto, História
do Brasil em 25 mapas traz um estudo inédito,
feito por pesquisadores e pesquisadoras das mais
diferentes áreas, para pensar o Brasil a partir de
sua cartografia.
Segundo Andréa Doré e Junia Furtado, organizadoras
deste livro, "os mapas não falam só sobre o que eles
representam. Por vezes, dizem mais sobre o que calam, e
seus silêncios se tornam eloquentes". Objetos de
cuidadosa investigação para revelar seus significados —
por vezes bem claros; outras, quase ocultos —, nenhum
dos componentes de um mapa é escolhido por acaso.
América portuguesa, Brasil holandês, Companhia de
Jesus, contrabando, revoltas rurais, povos originários,
imigração, epidemias e ditadura — estes são alguns dos
grandes temas abordados no volume. Embora
organizados em ordem cronológica, começando com o
clássico Planisfério de Cantino — reproduzido em cores
em um caderno de imagens com os principais mapas do
volume —, os capítulos deste livro não precisam ser lidos
em sequência, assim como a história do Brasil não deve
ser lida de forma linear. Além dos 25 mapas em destaque
— ponto de partida para cada análise aqui retratada —,
são recuperadas cartas e outros elementos que
contribuem para o diálogo e o entendimento do assunto
abordado.
Nesta incontornável coletânea sobre a cartografia do
Brasil, são apresentados atlas, cartas de afluentes,
cartazes e mapas que registram o passado do país para
contar aos leitores uma nova história a partir de detalhes
— ou da ausência destes.
Com textos de: Andréa Doré (Org.), André Reyes Novaes,
Artur Barcelos, Beatriz Piccolotto Siqueira Bueno, Camila
Loureiro Dias, Carmem M. Rodrigues, Carolina Martínez,
Daniela Marzola Fialho, Daniel de Souza Leão Vieira,
Denise Moura, Edilene Toledo, Federico Ferretti, Heloisa
Murgel Starling, Iris Kantor, Jacqueline Hermann, Jacques
Leenhardt, Jörn Seemann, Junia Furtado (Org.), Laurent
Vidal, Lorelai Kury, Maria de Fátima Costa, Maria do
Carmo Andrade Gomes, Regina Horta Duarte e Tiago
Bonato.
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Sumário
Capa
Rosto
O osso de zorrilho
Anoiteceu em porto alegre
Sinantropia
Anjo azul
Agradecimentos
Sobre a autora
Créditos