Michael Walsh
Escola de Frankfurt
O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
O CULTO DA TEORIA CRITICA E A SUBVERSÃO DO OCIDENTE
[
VIDE TIDITORIAL
MICHAEL WALSH (1949), jornalista,
autor e crítico musical americano,
colaborou com San Francisco Exa
miner, Time, Post, National Review,
PJ Media, New York Post e outros.
Em 2010, fundou junto com Andrew
Breitbart a plataforma de comentário
e crítica Big Journalism. É autor
de vários livros de crítica cultural
e política, jornalismo e roman
ces. Além de traduzida para mais de
20 línguas, sua obra de crítica musi
cal foi premiada em 1979 com o The
ASCAP Foundation Deems Taylor/
Virgil Thomson Awards e seu ro
mance And All the Saints com o
American Books Awards em 2004.
"Eis a ameaça: onda após onda do
que eu chamo de esquerdismo 'sa
tânico' (no sentido de que Satanás
não pode criar, só destruir) foi gradu
almente corroendo e minando nos
sa própria crença em nós mesmos.
Este livro, então, é explícita e impli
citamente um argumento contra o
globalismo, a mundialização, o rela
tivismo cultural e a equivalência mo
ral insensata, não apenas meu, mas
de imperadores romanos, filósofos
medievais, cavaleiros do Iluminismo,
revolucionários do século XIX, e de
mônios do século xx. Não é para os
melindrosos, os estúpidos, os apáti
cos, os ignorantes ou os que se ofen
dem facilmente".
"Este é um livro sobre como chega
mos aqui. É também um livro sobre o
bem e o mal; sobre criação e destrui
ção; sobre capitalismo e socialismo;
sobre Deus, Satanás e nosso lado
satânico; sobre mitos, lendas e as
verdades dentro deles; sobre cultura
versus política; sobre a diferença entre
história e trama".
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visite: www.videeditorial.com.br
Michael Walsh
Escola de Frankfurt
―
O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
O CULTO DA TEORIA CRÍTICA E A SUBVERSÃO DO OCIDENTE
VIDE EDITORIAL
Escola Frankfurt: o palácio de prazer do demônio - O culto da Teoria Crítica e a subversão do Ocidente
Michael Walsh
1ª edição - julho de 2020-CEDET
Título original: The Devil's Pleasure Palace: The Cult of Critical Theory and the Subversion of the West.
New York, NY: Encounter Books, 2015.
Copyright © 2015 by Michael Walsh
Publicado em acordo com Casanovas & Lynch Literary Agency S. L.
Os direitos desta edição pertencem ao
CEDET - Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico
Rua Armando Strazzacappa, 490
CEP: 13087-605- Campinas, SP
Telefone: (19) 3249-0580
e-mail:
[email protected]Editor:
Thomaz Perroni
Editor-assistente:
Ulisses Trevisan Palhavan
Tradução:
Bruno Alexander
Revisão:
Tomaz Lemos
Preparação de texto:
Natalia Ruggiero
Capa:
Vicente Pessoa
Diagramação:
Gabriela Haeitmann
Conselho editorial:
Adelice Godoy
César Kyn d'Ávila
Silvio Grimaldo de Camargo
FICHA CATALOGRÁFICA
Walsh, Michael.
Escola de Frankfurt: o palácio de prazer do demônio - O culto da Teoria Crítica e a subversão do
Ocidente / Michael Walsh; tradução de Bruno Alexander - Campinas, SP: Vide Editorial, 2020.
ISBN: 978-65-87138-03-9
Título original: The Devil's Pleasure Palace: The Cult of Critical Theory and the Subversion of the West.
1. Cultura e instituições. 2. Política cultural / ideologia. 3. História dos Estados Unidos
I. Título II. Autor.
CDD-306 / 301/973
ÍNDICE PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO
1. Cultura e instituições - 306
2. Política cultural/ ideologia - 301
3. História dos Estados Unidos - 973
VIDE Editorial - www.videeditorial.com.br
Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer
meio ou forma, seja ela eletrônica, mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução,
sem permissão expressa do editor.
Para Ann Patricia Walsh, minha mãe,
que me ensinou a amar as palavras
Sumário
9
Prefácio à edição de bolso....…...
INTRODUÇÃO
........... 13
O argumento.......
INTRODUÇÃO
.21
O palácio de prazer do demônio .........
CAPÍTULO I
.31
Paraíso de quem?
CAPÍTULO II
.47
Tese.
CAPÍTULO III
.55
Antítese
CAPÍTULO IV
O sono da razão pura produz monstros.. .71
CAPÍTULO V
A descida ao inferno.......... .83
7
CAPÍTULO VI
O eterno-feminino......
.93
CAPÍTULO VII
Luz e escuridão
113
CAPÍTULO VIII
Letra e música.
135
CAPÍTULO IX
A Venusberg da morte. 145
CAPÍTULO X
Mundo sem Deus, amém.... 157
CAPÍTULO XI
Eros e Tânatos...
169
CAPÍTULO XII
A consolação da filosofia.. 177
CAPÍTULO XIII
Mefistófeles no Ministério do Amor. 193
CAPÍTULO XIV
O diabo mora nos detalhes..... .205
CAPÍTULO XV
Oicófobos e xenófilos ..............
.213
CAPÍTULO XVI
Adeus a tudo isso 229
AGRADECIMENTOS. .245
ÍNDICE. .247
Prefácio à edição de bolso
Iscola de Frankfurt: o palácio de prazer do demônio é um livro
sobre o bem e o mal, sobre a Queda do homem e nossa longa
jornada para casa, sobre a idéia de que a arte, não a ciência,
é o meio mais adequado para nos guiar em direção àquele farol de
luz mágica que ilumina o caminho da redenção. Temas importantes,
dignos de abordagem.
Mas em vez de um único Virgílio conduzindo-nos de volta aos
princípios da civilização ocidental, a partir dos quais nossa cultura
surgiu, o leitor encontrará mais de vinte: Milton, Mozart, Schubert,
Wagner, Goethe, Joseph Campbell; os filósofos da Escola de Frankfurt,
composta de intelectuais marxistas; Marco Aurélio, Boécio, Hegel e
Marx; Francis Ford Coppola e Walt Disney. Alguns são santos, outros
diabólicos, mas todos, à sua maneira, nos ajudaram a entender as
questões centrais da existência humana: por que estamos aqui e para
onde estamos indo? Se não é o "progresso do peregrino”, é, no mínimo,
a história da jornada do herói; o herói, neste caso, sendo todos nós.
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
Por favor, não se assuste com esse desfile fantasmagórico de ícones
culturais; no fundo, trata-se de uma história de aventura, analisada por
meio da atividade humana mais antiga que existe, a própria arte de
contar histórias. Chame-a como quiser: mito, lenda, ficção narrativa, fé.
A necessidade de histórias que ajudem a explicar a condição humana
antecede a religião organizada por milênios. Contos de deuses, monstros
e heróis remontam a Homero, às lendas celtas e à mitologia nórdica.
Cada um deles conta essencialmente a mesma história, estabelece uma
estrutura moral para a vida e mostra como alcançá-la.
E, no entanto, muitas vezes ignoramos esse mecanismo primordial
de autocompreensão pela tagarelice psicológica em voga, exacerba
da por nossa perversa inclinação a acreditar que cada nova geração
abandona as superstições antediluvianas do passado e reinventa o
mundo. A verdade, portanto, deve ser exatamente o contrário do que
acreditávamos. Somente nesse caminho, segue o raciocínio, reside a
verdadeira iluminação.
Bobagem. A inovação sempre deve ser buscada e admirada, mas a
destruição arbitrária do passado em um ataque de rebeldia adolescente,
atiçada por aqueles que causariam danos irreparáveis à cultura, deve
ser rejeitada para que a longa marcha da esquerda cultural marxista
pelas instituições seja interrompida e revertida, como deve ser para
que a civilização sobreviva.
A resposta crítica a essa reflexão sobre princípios fundamentais tem
sido muito gratificante. O livro rapidamente encontrou um lugar no
cânone contemporâneo do argumento conservador, foi favoravelmente
comparado ao The Closing of the American Mind, de Allan Bloom,
permaneceu em várias listas de best-sellers da Amazon por quase dois
anos e agora aparece na edição de bolso que você tem em suas mãos.
Este é um livro político apenas no sentido mais amplo, pela minha
crença de que a cultura produz política e não vice-versa. Você não
encontrará aqui uma palavra sobre figuras políticas atuais e, portanto,
transitórias, ou mesmo sobre questões específicas. Em vez disso, minha
intenção foi questionar nossas noções de política pública e externa com
essa adaga no coração delas: Pelo que exatamente estamos lutando?
Pois, sem saber o que vale a pena preservar, nenhum país terá um
10
PREFÁCIO À EDIÇÃO DE BOLSO
senso de propósito ou identidade nacional, tornando-se inútil toda a
sua história pregressa.
Eis a ameaça: onda após onda do que eu chamo de esquerdismo
"satânico" (no sentido de que Satanás não pode criar, só destruir),
nossa própria crença em nós mesmos foi gradualmente se corroendo
e minando. Este livro, então, é explícita e implicitamente um argu
mento contra o globalismo, a mundialização, o relativismo cultural e
a equivalência moral insensata, não apenas meu, mas de imperadores
romanos, filósofos medievais, cavaleiros do Iluminismo, revolucionários
do século XIX, e demônios do século XX. Não é para os melindrosos, os
estúpidos, os apáticos, os ignorantes ou os que se ofendem facilmente.
Quero logo acrescentar que, apesar das questões teológicas tratadas
aqui, inevitáveis em qualquer discussão de Paraíso perdido e Fausto,
este não é um livro sobre religião, exceto no sentido do drama narra
tivo. Qualquer que seja sua relação com o cristianismo, não se pode
negar que a história de Jesus, um homem aprendendo primeiro para
entender e depois abraçar seu destino, é a história de quase todos os
heróis da literatura ocidental, de Odisseu e Finn McCool a Tarzan, o
filho das selvas.
Trata-se, contudo, de um apelo a uma nova contra-reforma, um
compromisso com as tendências intelectuais e culturais hostis que estão
fazendo com que alguns europeus ocidentais e americanos questionem
a razão de sua existência, ou, pelo menos, se sintam culpados. É, ao
mesmo tempo, um chamado à fé e um chamado às armas.
Em um volume complementar, The Fiery Angel, que será lançado
em breve, explicarei mais especificamente a natureza dessa restauração.
Por enquanto, curta a história da primeira desobediência humana, o
fruto daquela árvore proibida e a barganha faustiana que nos levou
diretamente ao inferno do palácio de prazer do demônio.
11
INTRODUÇÃO
O argumento
pós a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos, o novo
líder do Ocidente, eram a principal potência militar do mundo.
No entanto, sua confiança marcial se contrastava nitidamente
com seu senso de inferioridade cultural. Ainda olhando para uma
Europa derrotada e desanimada em busca de orientação intelectual e
artística, uma elite transnacional em expansão nas cidades de Nova
York e Washington D.C. acolheu não somente os refugiados de guerra,
mas também muitas de suas idéias "modernas" do século XIX.
Poucas dessas idéias se mostraram mais perniciosas do que as da
chamada Escola de Frankfurt e sua filosofia reacionária de "teoria
crítica". Ao mesmo tempo excessivamente intelectualizada e juvenil do
ponto de vista emocional, a Teoria Crítica, como a Caixa de Pandora,
liberou uma horda de demônios na psique americana. Quando tudo
pode ser questionado, nada pode ser real, e o empirismo poderoso e
confiante que acabara de vencer a guerra deu lugar, em menos de uma
geração, a um niilismo moderno na Europa central que foi celebrado
nos campi universitários de todos os Estados Unidos. Aproveitando o
alto patamar da academia e das artes, os novos niilistas começaram
a enfraquecer os alicerces do país, do patriotismo ao casamento, da
família ao serviço militar. Eles semearam (como o Cardeal Bergoglio,
13
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
agora Papa Francisco, escreveu sobre Satanás, que desempenhará um
grande papel em nossa história) "destruição, divisão, ódio e calúnia", e
tudo disfarçado de busca pela verdade que levará à felicidade humana
aqui na Terra.
Evidentemente, o resultado é algo longe disso. Se algum dos criado
res da Teoria Crítica estivesse entre nós, ele poderia muito bem dizer,
citando Sir Christopher Wren: Si monumentum requiris, circumspice.
Olhe para o seu dia-a-dia aqui nos Estados Unidos e na Europa oci
dental do início do século XXI e veja a pobreza, ouça a vulgaridade
da linguagem e dos diálogos, testemunhe a baixeza dos padrões, não
apenas do comportamento pessoal, mas também das normas culturais,
contemplando os horizontes estreitos do futuro.
O boçal da Escola de Frankfurt acertou a cultura americana bem
em seu plexo solar fraco. Os americanos sempre foram favoráveis a
um ponto de vista alternativo, sempre se mostraram solidários com os
oprimidos e estrangeiros, sobretudo refugiados de um monstro como
Hitler. Em grande parte incônscio das batalhas européias travadas sobre
as diversas formas de socialismo e amansado, em certa medida, pela
franca admiração de Mussolini por parte do governo Roosevelt, que
tentava resolver a crise econômica da Depressão, o público americano
estava aberto à autocrítica.
O problema dos estudiosos da Escola de Frankfurt é que eles che
garam com antolhos ideológicos, homens da esquerda lutando contra
outros homens da esquerda na antiga Heimat, e não conseguiram ver
que havia outro mundo diferente recebendo-os nos Estados Unidos.
Era só abrir os olhos. (Como, por exemplo, eles podiam odiar a Cali
fórnia?). Eles não parecem tão acadêmicos quanto simples, encarando
o capitalismo americano como uma vasta e deliberada conspiração
contra suas próprias idéias socialistas, quando, na verdade, suas idéias
simplesmente eram erradas, sua análise, falha, e seu ódio, inextirpável.
Eram criaturas de seu próprio tempo e lugar, sem mais acesso à verdade
absoluta do que o homem na plataforma improvisada do Speakers'
Corner [Recanto do Orador] no Hyde Park ou o lunático cambaleando
pela Market Street em São Francisco, falando sozinho. Todo mundo
tem problema com alguém.
14
O ARGUMENTO
Uma coisa eles acertaram, porém: a cultura popular reside no co
ração da vida americana. Ela foi extremamente influente, superando o
entendimento dos acadêmicos europeus. Sem nenhuma sanção oficial,
ela representou o povo de uma maneira que a arte realista socialista
patrocinada pelo Estado jamais conseguiu. Eles sabiam que a cultura
pop era poderosa, muito poderosa, mas não tinham idéia de como
promovê-la ou controlá-la. Eles estavam tão obcecados com seu mar
xismo bruto e pouco sofisticado, tão dedicados ao seu paradigma de
luta de classes, que se preocupavam com o efeito destrutivo da cultura
pop sobre o proletariado ingênuo e viam Hollywood e a mídia de
massa como, naturalmente, uma conspiração capitalista para seduzir
os indivíduos broncos. (Eles acreditavam que a sedução era um direito
de primogenitura socialista, não capitalista). Desejavam que a arte
do auto-aperfeiçoamento e da conscientização fosse uma questão do
Estado, desdenhando a motivação pelo lucro, embora não fizessem
nenhuma objeção a ganhar dinheiro. Seus sucessores, por outro lado,
não tiveram esses problemas com a cultura de massa. Eles entenderam
que a "longa marcha pelas instituições" (como os marxistas a carac
terizaram) seria o ingresso para a hegemonia ideológica e ainda mais
riqueza: evolução, não revolução.
Este é um livro sobre como chegamos aqui. É também um livro
sobre o bem e o mal; sobre criação e destruição; sobre capitalismo e
socialismo; sobre Deus, Satanás e nosso lado satânico; sobre lendas,
mitos e as verdades dentro deles; sobre cultura versus política; sobre a
diferença entre história e trama. Um livro sobre Milton versus Marx,
Estados Unidos versus Alemanha, a verdade redentora versus as ilusões
mefistofélicas e as brincadeiras do demônio. Uma obra voltada para a
inter-relação de cultura, religião, sexo e política; em outras palavras,
material suficiente para ofender quase todo mundo. E inspirar, assim
espero. Pois os tabus de nossa cultura também são seus totens, e os
argumentos políticos que os cercam são sintomas de doença e saúde,
de infecção e imunidade. Eles não são apenas os campos de batalha da
guerra cultural contemporânea: são a guerra cultural em si, uma guer
ra que está ocorrendo desde o Jardim do Éden, mas que se manifesta
hoje em dia no ataque incessante do marxismo cultural (que muda e
se disfarça sob muitos nomes, incluindo liberalismo, progressismo,
15
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
justiça social, ambientalismo, anti-racismo etc.) ao que costumava ser
chamado de Ocidente cristão.
Embora essa batalha seja simplesmente a frente mais recente de
uma guerra antiga, essa luta crítica - "a luta" ou "o combate" (ou
Der Kampf), como os esquerdistas chamam —, é a questão decisiva do
nosso tempo, que determinará não apenas que tipo de país os Estados
Unidos da América se tornarão, mas também se o mundo ocidental
manterá o domínio moral, cultural e tecnológico que compartilha
com o grande mundo anglófono ou finalmente sucumbirá diante de
um ataque implacável a seus valores e aceitará a perda de seu vigor
cultural. Em outras palavras, irá iremos repelir os invasores,
organizar incursões militares, resistir e esmagá-los ou abrir os portões
da cidadela e aguardar o inevitável massacre?
Os agressores incluem a Escola de Frankfurt de filósofos, teóricos
-
e escritores marxistas (quase todos alemães). bem como seus descen
dentes e acólitos intelectuais nos EUA, incluindo os seguidores de Saul
Alinsky, o "organizador de comunidades" marxista, cuja influência só
aumentou ao longo dos anos, desde a sua morte em 1972, chegando
até o Salão Oval. Por toda parte, refiro-me a essa "panelinha" como a
esquerda profana, um termo desbragadamente descritivo e depreciativo,
que, suspeito eu, eles adorariam adotar, mas ainda não se convenceram
disso, mesmo que por razões eleitorais.
Não estou falando dos "liberais" corriqueiros (na verdade, estatistas
de governos fortes, desde que esse governo não os repreenda), que vêem
Washington como uma espécie de supracaridade financiada pelos contri
buintes, distribuindo presentes para os pobres merecedores e assegurando
que produtos químicos não sejam despejados em água potável. Antes,
refiro-me à esquerda empedernida, os radicais, muitos agora no poder,
que refariam ("transformariam fundamentalmente") — arruinariam — os
Estados Unidos da América e, por extensão, a civilização do Ocidente.
Do outro lado não estão os conservadores em si, mas aqueles que se
vêem no papel de preservadores do legado ocidental, reconhecendo que
não devemos abandonar, assim, do nada, uma longa tradição cultural,
que, sejam quais forem suas falhas reais ou percebidas, foi o principal
motor do progresso humano moral, espiritual, social, científico e médico.
16
O ARGUMENTO
Portanto, proponho-me a olhar para a história do conflito entre
esquerda e direita (falando de maneira simples) não apenas em termos
de política, mas também em termos de arte e cultura. Se os homens das
cavernas do Paleolítico, que pintaram as paredes de Lascaux, deixaram
registros astronômicos precisos e detalhados por escrito, desconhece
mos seu paradeiro, mas seus símbolos e imagens de animais e pessoas
nas paredes de antigas cavernas da França podem muito bem conter
informações astronômicas, preservadas por meio da arte. Com suas
pinturas, eles nos deixaram uma imagem praticamente indelével de seu
mundo. Observando as vívidas ilustrações de touros, veados e cavalos,
e até outros seres humanos, podemos começar a entender quem so
mos de uma maneira que a ciência não pode nos ensinar. As pinturas
rupestres não são somente evidências: são interpretações humanas de
evidências: parte de nossa herança compartilhada. Seus artistas foram
o que ainda somos hoje. Eles estão tentando nos dizer algo.
Da mesma forma, a visão de mundo dos gregos antigos se manifesta
por meio da poesia e da narrativa oral, mais tarde preservada na forma
escrita; e este junco quebradiço da casualidade, sujeito aos caprichos
da seleção e preservação, é, junto com Jerusalém, um dos pilares sobre
os quais repousa todo o edifício da civilização ocidental. Parecem-nos
lendas, mas, como as pinturas das cavernas, são interpretações de fenô
menos, internalizadas pelos artistas e externadas novamente na forma
de narrativa: nossa narrativa original, ou mito fundador, de onde vem
tudo o que é humano em nossa sociedade. Ignoramos o significado
filosófico e moral desse patrimônio por nossa conta e risco e nunca
devemos descartá-lo como mera superstição ou contação de história,
de alguma forma inferior à filosofia de Sócrates, Platão e Aristóteles.
Os escritos são pistas coerentes para nossa essência, mensagens em
garrafas sagradas, levadas pelas ondas às areias do tempo.
São histórias de deuses, deusas e titãs, mas, acima de tudo, são his
tórias de heróis. A humanidade é inconcebível sem heróis. Não somos
membros igualitários de um formigueiro, nos deslocando do berço ao
túmulo, indistinguíveis um do outro e facilmente substituíveis. Nem
todo mundo pode ser herói, mas todos podem sonhar com heroísmo.
A bravura sempre foi uma virtude humana cardinal tão grande que
17
MICHAEL WALSH
ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
foi encarnada por ninguém menos do que Jesus Cristo, outro pilar
cultural fundamental do Ocidente.
Em seu livro Cristo: Uma crise na vida de Deus, o autor vencedor
do Prêmio Pulitzer, Jack Miles, analisa a história de Jesus de Nazaré
como a história do herói do Novo Testamento, completa com o final
feliz da Ressurreição. Como Miles escreve em seu prólogo:
Toda a humanidade é perdoada, mas o Senhor deve morrer. Essa é a im
portância revolucionária do epílogo que, 2 mil anos atrás, um grupo de
escritores judeus radicais anexou à sagrada escritura de sua religião. Por
terem feito isso, hoje milhões de indivíduos no Ocidente cultuam a imagem
de uma divindade executada como criminosa e, não menos importante,
outros milhões que nunca cultuaram nada carregam em seu DNA cultural
uma suspeita religiosa de que, de algum modo, algum dia, "os últimos serão
os primeiros e os primeiros serão os últimos" (Mt 20, 16).
O humilde herói Cristo, nascido em circunstâncias difíceis de uma
mãe virgem, professor e rabino precoce, que empreendeu um breve
ministério de três anos, tanto político quanto populista, capturado por
traição, julgado, torturado e executado injustamente, e que retornou
em triunfo sobre a morte, é o herói cristão arquetípico, suplantando
os heróis homéricos (Aquiles, Odisseu), que não deram suas vidas
por algo maior do que eles mesmos, suas famílias ou suas tribos. Mas
Cristo, o Cordeiro de Deus, o Redentor, o Messias, fracassa de bom
grado para alcançar o sucesso, concedendo uma dádiva a uma huma
nidade que ainda não tem certeza se deseja aceitá-la. Sua história, que
costumava ser chamada, sem nenhum constrangimento, de “a maior
história já contada", repercutiu por 2 mil anos de história ocidental,
influenciando quase toda grande narrativa subseqüente de heroísmo,
desde A canção de Rolando até A pequena sereia.
Pois o que nós, em um Ocidente cada vez mais secular, interpre
tamos mal como argumento político, na realidade não é nada disso.
É um argumento literário, se definirmos adequadamente a literatura
não como "ficção", mas como a expressão da alma de um povo; neste
caso, de todos os povos. A política (que para muitos substituiu o esporte
como assunto de interesse por excelência) é apenas sua manifestação
secundária, a ladainha geralmente cansativa de prescrições repetidas
sem entendimento e falsas promessas eleitorais que os habitantes das
18
O ARGUMENTO
democracias ocidentais encontram com tanta freqüência hoje em dia.
Onde outrora nossa cultura era assolada por argumentos religiosos
(cujos fundamentos morais nunca foram postos em dúvida), hoje estamos
preocupados não somente com os detalhes de um sistema de governo e
organização social, mas com a própria natureza desse sistema. De fato,
em debate está a essência da civilização ocidental e como ela pode ser
subvertida para alcançar um fim muito diferente; na verdade, oposto
ao que se pretendia originalmente. Pois um lado mudou o significado
das principais palavras do debate, incluindo "democracia", "cultura",
"civilização" e "justiça", entre outras. Os dois lados falam línguas
diferentes, mas com um vocabulário compartilhado superficialmente,
que serve como meio de engano para um e de confusão para o outro.
Sedução, subversão, sedição: essas são as ferramentas de uma
criatura que chamamos Satanás, o pai das mentiras, o perdedor da
batalha no céu. No entanto, ele continua a luta aqui na Terra com as
únicas armas que tem à sua disposição: as fraquezas e a propensão
inerentes ao homem a ser ludibriado se a causa parecer atraente o
bastante. A principal fraqueza do homem ocidental de hoje é sua falta
de autoconfiança cultural, sua inclinação a abrir os ouvidos ao canto
da sereia do niilismo, o ímpeto juvenil de pensar o pior de si mesmo e
de sua sociedade e de apreciar, em algum nível, sua própria destruição
em potencial.
Os combatentes na luta entre Deus e Satanás podem ser vistos de
modo ontológico, mítico ou literário. De qualquer maneira, Deus criou
o homem à sua própria imagem e semelhança, mas escolheu dar-lhe
livre-arbítrio: uma força tão poderosa que nem o infinito amor de
Deus é capaz de superá-lo sempre. Assim, com a chance real de arrui
nar os favoritos de Deus, o portador da luz caído, Lúcifer, junto com
seus companheiros, reergueu-se do fundo do mar ardente no qual eles
foram lançados pela espada de São Miguel e se empenha, todos os
dias, não para conquistar o homem, mas para seduzi-lo e destruí-lo.
Como Satanás observa no livro 1 de Paraíso perdido, de Milton:
19
MICHAEL WALSH
ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
A mente é seu próprio lugar e, por si só,
pode fazer do inferno o céu e do céu um inferno.
O que importa onde estarei, se serei sempre o mesmo...
Reinar, porém, vale a ambição no inferno:
Melhor reinar no inferno do que servir no céu.
O próprio Satanás, no entanto, não precisa de servos no inferno, como
Deus no céu. Ele se satisfaz com cadáveres na Terra. Como mostra a
história moderna, o demônio teve muito sucesso e grandes recompensas
nesse departamento. Mas ele não pode estar satisfeito com seu reino
infernal. Como em uma produção de Hollywood, o número de vítimas
deve ser cada vez maior, apenas para manter o antagonista interessado.
A danação consiste não na partida para o mundo subterrâneo, mas na
rejeição da narrativa original: uma separação voluntária de si mesmo
do caminho heróico indicado claramente pela história e pela literatura.
Como Milton escreve na Areopagítica, o ensaio seminal do poeta
sobre liberdade de expressão e, mais importante, liberdade de pensa
mento: "Não posso elogiar uma virtude fugidia e enclausurada, não
praticada, que nunca sai para confrontar seu adversário, mas se afasta
da raça onde essa guirlanda imortal deve ser disputada, não sem muita
poeira e calor". Para Milton, a própria ausência de conflito é em si
desprezível, indigna de um homem: inumana.
Esse eterno conflito, portanto, é a essência do meu argumento reli
gioso-cultural, que examinarei através de três prismas: 1) o marxismo
cultural ateísta que surgiu entre os detritos físicos e intelectuais da Eu
ropa após a calamidade da Primeira Guerra Mundial, e sua aplicação
prática de aríete, a Teoria Crítica; 2) o Livro do Gênesis, de onde vem
nossa autocompreensão cultural, e o grande poema épico explicativo
de Milton, no qual um Deus que reina supremo também é uma força
motora estranhamente ausente e quase sempre fora de cena; e 3) a
reformulação emblemática do homem preso entre o céu e o inferno,
entre Deus e Mefistófeles, de Johann Wolfgang von Goethe: Fausto.
É a história da jornada humana, de caminhos percorridos e não
percorridos, e sobre as escolhas que devemos fazer. Comecemos, então,
pelo inferno.
20
INTRODUÇÃO
O palácio de prazer do demônio
Im 1813, o compositor vienense de dezesseis anos, Franz Pe
E ter Schubert, começou a trabalhar em sua primeira ópera, O
palácio de prazer do demônio, com um libreto de August von
Kotzebue. A obra não foi montada até 1978, quando foi finalmente
apresentada em Potsdam, nos arredores de Berlim. Dizer que Schubert
era jovem quando compôs essa obra juvenil, mas culturalmente
seminal obscurece o fato de que ele também já era um indivíduo
de meia-idade, pois morreu em 1828, com 31 anos. Naquela época,
as pessoas envelheciam antes, cresciam mais rápido e talvez vivessem
mais plenamente. De qualquer forma, a força criativa incorporada por
Schubert tinha pressa de encontrar sua negação, ou seja, sua conclusão.
Em O palácio de prazer do demônio, Oswald, um pobre cavaleiro,
casa-se com Luitgarde, sobrinha de um aristocrata, que é logo deserdada.
No caminho para uma nova vida, eles são pegos por uma tempestade
furiosa e buscam refúgio em uma pousada próxima. Quando aldeões
supersticiosos falam de um castelo mal-assombrado nas redondezas,
Oswald e seu fiel escudeiro, Robert, partem para investigar a mansão,
que de fato se mostra cheia de terrores e tentações. Uma delas assume
a forma de uma bela amazona, que tenta seduzir Oswald, alertando
-o sobre as terríveis conseqüências de não sucumbir a seus encantos
(e ele não sucumbe). Porém, quanto mais fiel e inflexível Oswald
21
MICHAEL WALSH
ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
se mostra, mais assombrações aparecem. Ele finalmente é salvo pela
chegada oportuna de Luitgarde, que, ao ser ela mesma ameaçada de
morte, também permanece firme. E de repente o castelo desmorona.
No final, constata-se que tudo não passou de ilusão. Os espíritos
eram os aldeões disfarçados, contratados pelo tio de Luitgarde para
testar a coragem de Oswald em condições extremas e provar que ele
era digno de Luitgarde.
A sabedoria musical convencional sempre sustentou que o libre
to de Kotzebue é a principal razão do insucesso da ópera explica —
ção que se aplica a todas as óperas de Schubert, diga-se de passagem.
A causa mais provável, porém, é a falta de experiência de Schubert no
tratamento dos requisitos dramáticos inerentes à composição operística. O
que funciona tão brilhantemente para ele em canções e ciclos de canções
falhou nas formas mais amplas de composição vocal (embora, curiosamente,
não no caso de suas sinfonias, cada vez mais sofisticadas e abrangentes).
Visto sob outra luz, no entanto, o trabalho de Kotzebue está to
talmente alinhado com o pensamento filosófico europeu da época,
expresso pela arte. Lembre-se de que estamos no início do século XIX,
não no século xx. Os horrores de 1914 e 1939 ainda estão longe, no
futuro. O final feliz (uma vitória do amor sobre a morte) não é uma
escapatória, mas a prova da promessa da redenção, de que devemos
sofrer as tentações e tribulações de Cristo, enfrentando nossos piores
medos para vencer no fim. O fato de que sua conclusão (“então acor
dei e vi que foi tudo um sonho!") se tornou um clichê cansativo não é
culpa de Kotzebue, já que ele escreveu em uma era menos cínica, mas
quem já se viu tentado a atirar um sapato no final de Um retrato de
mulher, filme noir de Fritz Lang, de 1944, sabe o que quero dizer. Sem
mencionar As aventuras de Alice no País das Maravilhas.
E quem representa o poder salvador da graça divina? Quase inva
riavelmente a mulher, cujo auto-sacrifício resgata e transforma o herói
masculino limitado. Nas famosas palavras de Goethe, na segunda parte
de Fausto: "Das Ewig-Weibliche zieht uns hinan" ["O eterno-feminino
nos eleva"]. O eterno-feminino, um conceito antiigualitário em termos
de gênero, que feministas de ambos os sexos hoje considerariam ridí
culo, é um dos princípios organizadores do cosmos e um fator crucial
22
O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
na jornada do herói. Mesmo a pansexualidade de hoje, por mais que
tente, não pode substituir essa força primordial: a união dos opostos
em um todo harmonioso e fecundo.
De modo crucial, então, Oswald é salvo pelo amor de uma boa
mulher, assim como o holandês voador da ópera de Wagner, Der flie
gende Holländer, Robert le diable na ópera epônima de Meyerbeer, e
Max, o Freischütz, ou “o franco-atirador”, na obra-prima de Weber, e,
em outro trabalho de Wagner, Parsifal, cuja rejeição sexual de Kundry
(a figura de Madalena) e as sedutoras donzelas das flores finalmente
liberta Kundry da maldição de Klingsor. Sem sua tentativa de sedução,
Parsifal nunca teria encontrado a força da sublimação sexual, um
poder que lhe permite conquistar o mago do mal e recuperar a lança,
fazendo com que o palácio de prazer infernal de Klingsor virasse pó.
Em resumo, nesses contos, o cinismo do século xx da geração entre
guerras ainda não domina a cultura mais ampla. A era da ansiedade,
alienação, niilismo e anomia ainda está no futuro. Mas virá, criando
ao longo do caminho seu próprio Xanadu secular, outro Lustschloss
poético, para tentar e seduzir a civilização ocidental à autodestruição,
valendo-se da vergonha e da insegurança como seus principais ardis.
Dois anos após esse esforço ambicioso, mas inútil, Schubert escreveu
a canção que o tornou famoso, Erlkönig, com base em um texto de
Goethe. As oitavas marteladas e a linha de baixo marcante no piano
mais tarde inspirariam pianistas de filmes mudos em todo o mundo, mas
expressam perfeitamente a história aterrorizante da música, sobre um
pai desesperado, com o filho à beira da morte nos braços, cavalgando
furiosamente para salvar o menino e perseguido pelo Erlkönig, o Rei
dos Elfos, a figura da morte, que canta sedutoramente para o filho com
uma voz que só a criança consegue ouvir:
Du liebes Kind, komm, geh' mit mir!
Gar schöne Spiele, spiel ich mit dir,
Manch bunte Blumen sind an dem Strand,
Meine Mutter hat manch gulden Gewand.
[Criança querida, vem comigo!
Jogarei belos jogos contigo.
Quantas flor coloridas na praia
Mamãe tem vestes e mais vestes de cambraia].
23
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
A música cresce em intensidade à medida que o pai acelera em
busca de segurança, mas o canto sedutor da morte é mais rápido, suas
adulações, mais ricas, e o menino é muito desejável. A criança grita
que o Rei dos Elfos a agarrou, o pai angustiado chega ao seu destino,
e in seinem Armen das Kind war tot [em seus braços, a criança estava
morta]. Em um surto de genialidade juvenil, o romantismo na música
havia começado.
Des Teufels Lustschloss pode nunca ter encontrado seu lugar no
repertório operístico (nem qualquer outro trabalho de palco de Schu
bert). É importante, no entanto, pelo que nos diz sobre o estado do
pensamento teatral europeu no início do século XIX, filosoficamente
tumultuado e um divisor de águas: qual era o gosto do público e que
efeito o trabalho teve sobre as gerações posteriores de artistas criativos.
Podemos traçar uma linha reta entre a penúltima seqüência de Don
Giovanni, de Mozart, com sua inspiração diabólica, e a totalidade de
A flauta mágica, com sua batalha entre o bem e o mal, passando pelas
obras juvenis de Schubert até a superprodução parisiense de Meyer
beer, Robert le diable, e a sobrenatural Hans Heiling, de Marschner,
chegando às fantasmagóricas paisagens alemãs de Der Freischütz, de
Carl Maria von Weber, o litoral assombrado de O navio fantasma, de
Wagner, e terminando no ciclo de O anel do nibelungo, de Wagner,
que é, por assim dizer, o fim do mundo.
Em outras palavras, essas óperas transmitem o desejo inato da
humanidade de ficar cara a cara com as forças ocultas por trás de
nossas origens: bem e mal, céu e inferno, Deus e Satanás. Desse conflito
primitivo emerge nosso anseio por narrativas dramáticas e o demoní
aco na arte ("demoníaco" no sentido de misterioso ou sobrenatural),
sinalizações que apontam o caminho para um sentido da vida que a
ciência (que rejeita o demoníaco) não pode oferecer. Basta que preste
mos atenção e sigamos as indicações.
Quanto mais o herói tenta evitar seu destino, mais ele corre em
sua direção. Esse paradoxo é o dilema do homem ocidental moderno
emergindo do matadouro dos campos de batalha do século XX, com
preensivelmente traumatizado e avesso a conflitos; também é um dos
temas centrais de todos os contos, de Gilgamesh à versão animada de
24
O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
Tarzan, da Disney. Somente aceitando sua desgraça e enfrentando seus
maiores medos, medos muito mais terríveis do que o combate real, ele
pode superar sua humanidade arruinada e se tornar um deus.
Gostamos de pensar, como Aristóteles ensina em sua doutrina da mi
mese, que a arte imita a vida, que nossas criações demasiado humanas de
drama, poesia, teatro e literatura são reflexos da condição humana, cenas
vislumbradas através das lentes opacas do entendimento imperfeito. Mas
e se for o contrário? Se longe de ser meras imitações de verdades mais
profundas, a arte nascer no fundo do inconsciente e for moldada de acordo
com princípios históricos de estrutura e expressão, sendo a maneira de
Deus de levar a humanidade a uma compreensão mais profunda de sua
própria natureza e potencial essenciais, e de seu próprio destino? E se a
arte não for tanto imitação ou reflexão quanto revelação e caminho? E
se revelar verdades mais profundas sobre a essência da humanidade do
que a ciência restrita? E se a crença do século XX na primazia do materia
lismo (explicado com tanta santidade que se torna indistinguível da fé)
tiver desalinhado a ordem natural das coisas e incutido em nós uma falsa
consciência da realidade (para usar um termo marxista)?
A arte, como argumentarei nestas páginas, é a grande dádiva de Deus:
o único meio real da verdade. O biólogo alemão do século XIX, Ernst
Haeckel, declarou que “a ontogenia é a recapitulação da filogenia”,
querendo dizer que, ao passar de embrião para adulto, o organismo
individual passa por estágios que reproduzem os estágios evolutivos
da espécie. Os estágios pelos quais um indivíduo passa em sua vida,
desde o óvulo fertilizado até a maturidade (ontogenia) “recapitularão”,
teorizou Haeckel, todos os estágios pelos quais a espécie passou no
curso da evolução (filogenia). Mas talvez seja, no sentido artístico e
religioso, justamente o contrário: é a filogenia que recapitula a on
togenia. O desenvolvimento evolutivo da espécie, sua teleologia, foi
esboçado no primeiro momento de vida. Pense na arte, portanto, como
a teoria do Big Bang aplicada à alma em vez de ao corpo. Imaginando
o processo criativo ao revés, podemos nos aproximar do instante de
nossas origens e, então, ir além.
O segredo da viagem no tempo é se deslocar mais rápido do que
a luz, pois a partir do movimento da luz (que viaja a uma velocidade
25
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
de 300 mil quilômetros por segundo) vem a nossa noção de tempo.
Viajar mais rápido do que a luz nos desloca não no espaço, mas no
tempo. Se revertêssemos o Big Bang, nos depararíamos, pelo menos
temporariamente, com uma centelha e, depois, o nada: o vazio infinito e
eterno, sem espaço, nem tempo, nem existência. Mas se isso é verdade,
de onde veio a centelha? Ou o universo, como as teorias atuais estão
começando a sugerir, existiu eternamente, aumentando a possibilidade
de que o universo seja, em essência, Deus?
É uma pergunta que os artistas tentam responder há mais tempo do
que os cientistas. "Ich schreite kaum, doch wähn'ich mich schon weit"
["Mal dei um passo, mas parece que já viajei bastante"], observa o
"tolo perfeito" Parsifal ao personagem Gurnemanz, no primeiro ato
da ópera epônima de Wagner. "Du siehst, mein Sohn, zum Raum wird
ier. die Zeit", responde Gurnemanz [“Veja, meu filho, aqui o tempo se
torna espaço”]. O contexto é a busca de Parsifal pelo Santo Graal, o
símbolo persistente da busca do homem pela verdade e algo que ele só
pode alcançar em uma dimensão transcendental, onde tempo e espaço
são a mesma coisa.
A busca pela centelha originária da criação está no centro da
experiência humana em quase todas as facetas do estudo, sejam elas
denominadas religião, filosofia, ciência ou arte. Está no centro de toda
cultura humana, não importa quão primitiva ou sofisticada ela seja.
Aliás, as culturas, em cada um de seus extremos, se assemelham umas
às outras em pelo menos um ponto: rejeitam outras formas de conhe
cimento na tentativa de acreditar em alguma coisa. O culto à carga
em uma ilha remota do Pacífico se assemelha muito, digamos, ao culto
ao aquecimento global dos sofisticados ocidentais. Ambos acreditam
piamente em causas simplistas e efeitos aparentes, e nenhum deles quer
ouvir evidências contrárias, mesmo as mais simples.
Não é por acaso também que o mito da busca seja algo básico
em toda sociedade, presente tanto em histórias contadas ao redor da
fogueira de antigas tribos quanto nos filmes de Hollywood. Em O
herói de mil faces, Joseph Campbell retrata o "monomito" universal
(o que estou chamando de narrativa original) da seguinte maneira:
"Um herói abandona o mundo cotidiano e se aventura numa região de
26
O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
maravilhas sobrenaturais; forças fabulosas são ali encontradas e uma
vitória decisiva é conquistada: o herói retorna dessa misteriosa aventura
com o poder de conceder benefícios a seus semelhantes". A missão tem
muitos objetivos aparentemente diferentes, mas, na realidade, existe
apenas um: a salvação.
A busca pelo Graal, o cálice que continha o sangue santo de Cristo,
a manifestação física do sacrifício na cruz e a redenção da promessa
de Deus, é o tema de uma das narrativas mais veneráveis da civili
zação ocidental, essencial para toda fantasia de redenção. Seja um
objeto físico ou uma idéia abstrata, uma coisa ou uma pessoa não
é por acaso que Parsifal pergunta a Gurnemanz: "Wer ist der Gral?"
["Quem (não o que) é o Graal?"] , o Graal é aquilo que pode ser
buscado, mas nunca totalmente compreendido um objetivo que se
-
-
afasta a uma velocidade mais rápida do que a da luz à medida que nos
aproximamos dele; um conhecimento secreto que só pode ser revelado
mais tarde, muitas vezes ao preço do sacrifício do próprio herói, em
imitação de Cristo.
Mas há outro aspecto importante na busca do herói de Campbell:
os obstáculos que as "forças fabulosas" das trevas devem lançar sobre
o herói para amedrontá-lo e fazê-lo desistir de sua missão. Desde a
época de Aristóteles, a busca é expressa no que Hollywood chama hoje
de "estrutura de três atos", que eu poderia resumir assim: o herói é
afastado de sua existência normal, geralmente contra sua vontade ou
apesar de não ser digno; ele encontra todos os tipos de contratempos,
ameaças e tentações, que o colocam em situações de tanto perigo que
parece ao público que ele nunca conseguirá escapar; e, finalmente, ele
supera, cumpre a missão e retorna da melhor maneira possível para
o status quo anterior, mas irrevogavelmente mudado. (Vale observar
que o relato da Paixão de Cristo segue exatamente essa estrutura: a
entrada em Jerusalém para enfrentar seu destino; a Agonia no jardim
e a Crucificação; e, por fim, o triunfo da Ressurreição.)
Uma das condições aristotélicas da narrativa é que a história deve
ter um começo, um meio e um fim. Esse arco é tão fundamental para
o modo ocidental de criar que toda a história do drama e da literatura
é impensável sem ele. Evidentemente, esse não é o caso da luta atual
27
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
entre direita e esquerda, mas é somente porque estamos vivenciando a
história enquanto ela está ocorrendo, tendo nascido dentro dela, com
grandes chances de a deixarmos antes que o resultado seja claro. Somos
apenas os Rosencrantzes e Guildensterns da trama. Mas certamente
haverá resultado.
Um bom exemplo dessa estrutura da era homérica é a figura de
Ulisses. Apaixonado por sua esposa, Penélope, ele (nas versões não
-homéricas da história) finge loucura para escapar de seu chamado
ao dever na Guerra de Tróia (Ato 1). Quando essa estratégia falha,
ele luta bravamente e vence, ao lado de seus companheiros lendários,
quebrando o impasse com a invenção do Cavalo de Tróia (Ato II,
Parte 1); ele, então, precisa enfrentar uma década de peregrinação e
muitos perigos (Ato II, Parte II). Por fim, ele consegue voltar para casa
Ítacae expulsar os pretendentes que, como gafanhotos, cercavam
em
sua esposa, ambicionando seus bens em sua ausência (Ato III). É uma
história rara, que não segue essa estrutura narrativa intuitiva.
O que o Ocidente experimentou desde o final da Segunda Guerra
Mundial foi a construção de um moderno palácio de prazer do demô
nio, uma "aldeia de Potemkin" construída com promessas de "justiça
social" e igualdade para todos, com visões de um mundo finalmente
livre do trabalho e do suor, onde todos os homens e mulheres têm o
sustento garantido, um mundo sem fome, sem faltas, sem frio, sem
medo, sem racismo, sem sexismo (ou qualquer um dos muitos outros
"ismos" que a esquerda vive inventando - Lineu não tinha nada de
esquerda no departamento de taxonomia). Em outras palavras, um
mundo que se parece muito com o céu. É o mundo prometido pela
Teoria Crítica e pelas principais figuras da Escola de Frankfurt: o
crítico musical Theodor Adorno; o teórico sexologista Wilhelm Reich
(cujas teorias e escritos examinarei em detalhes); bem como os pais
fundadores Antonio Gramsci e Georg Lukács.
Em vez disso, como demonstram as evidências empíricas, este mundo
se tornou um inferno. O mundo buscado pela Escola de Frankfurt e
seus discípulos da Teoria Crítica é todo ilusão, assim como o Teufels
Lustschloss. É o que testemunham os cadáveres dos incontáveis mi
lhões de indivíduos que morreram nas tentativas da esquerda profana
28
O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
de fundar o Reino do céu aqui na Terra, um reino afastado de Deus.
Nossos palácios de prazer são muitos e variados, desde as comodidades
da civilização moderna e suas oportunidades quase infinitas de entre
tenimento auto-abnegado até nossa alegre e libertadora abjuração da
religião formal e nosso falso senso de segurança cultural, parcialmente
afetado pelos eventos de Onze de Setembro de 2001. E, no entanto,
nossos palácios de prazer podem cair, e cairão, como os de todas as
civilizações anteriores à nossa. E, diferentemente da ópera de Schubert,
desta vez não há final feliz garantido.
Surgiu, assim, algo perverso, e estamos lutando por nossas vidas.
Como lutaremos, ou mesmo se queremos lutar, não é o assunto deste
livro. O assunto é por que devemos.
29
CAPÍTULO I
Paraíso de quem?
E rápido, por corrente de ouro,
este mundo pende, em grandeza como astro
de menor magnitude, perto da Lua.
De lá, repleto de vingança maligna,
da maldição em detestável hora, ele se precipita.
Paraíso perdido, livro II
ira é a característica marcante de Satanás e do satânico nos
homens. Existem outras, como a malícia, o engano e a ten
tação, mas no cerne da missão de Satanás encontramos uma
animosidade avassaladora contra Deus e os devotos. No segundo livro
do poema épico de Milton, Satanás tem uma conferência com seus
companheiros demônios, determinado a se desprender dos laços do
inferno, onde ele foi acorrentado, e travar guerra contra o “inimigo
principal" (nome, lembremos, que os soviéticos comunistas deram aos
Estados Unidos capitalistas durante a Guerra Fria) no único campo de
batalha que permanece aberto para ele: a Terra.
Milagrosamente, Deus o deixa fazer isso. Passando pelos guardiões
gêmeos do portão do inferno, descendentes de Satanás, o Pecado e a
Morte, ele se lança para cima "como uma pirâmide de fogo". Dirigido
31
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
pelo Caos, Lúcifer atravessa o vazio, deixando em seu rastro uma ponte
do inferno à Terra, de modo a fornecer um caminho para os demônios
que certamente seguirão atrás dele.
Desde esse momento poético, derivado da mais antiga e fundamental
narrativa ocidental de todas, o Gênesis, travou-se a guerra, a luta, o
combate, o Kampf, de modo praticamente ininterrupto. É o Gênesis
que expõe pela primeira vez o Urkampf, o conflito original, com o
qual estamos lidando até hoje. É possível negar as especificidades do
Gênesis, devido ao culto generalizado da "ciência", mas não há como
negar sua poesia, que repercute profundamente em nossas almas. E
visto que a poesia, evidentemente, precede a ciência, o que será mais
verdadeiro para a alma humana?
Observe que não estou apresentando um argumento "anticientífico"
aqui, mas apenas questionando a noção moderna da supremacia da
ciência sobre seus antecedentes, a poesia e o teatro. A ciência tem muito
a nos ensinar, mas sua função principal é incremental, não universal
(nenhum cientista sério afirmará o contrário). Não existe uma "ciência
estabelecida", mas existe uma narrativa original estabelecida, não im
porta quanto ou com que freqüência a esquerda possa invectivar contra
ela e tentar substitui-la por outras normas. Antes de percebermos os
movimentos do Sol, da Lua e das estrelas, percebemos os movimentos
de nossos corações.
O conflito é a essência da história, mas também do drama. Sem
conflito não pode haver progresso; sem progresso não pode haver
história; sem história não pode haver cultura; sem cultura não pode
haver civilização. E como nada neste mundo, ou em qualquer outro
mundo possível no universo, é ou pode ser estático, sem o artefato cul
tural do drama não pode haver civilização. O lugar menos dramático
da Terra era o Jardim do Éden. Então Eva conheceu a serpente, e o
resto é história:
Mas a serpente era o mais astuto de todos os animais da Terra que o
Senhor Deus tinha feito. E ela disse à mulher: por que vos mandou Deus
que não comêsseis de toda árvore do paraíso? Respondeu-lhe a mulher:
nós comemos do fruto das árvores, que estão no paraíso, mas do fru
to da árvore, que está no meio do paraíso, Deus nos mandou que não
comêssemos, e nem a tocássemos, para que não suceda que morramos.
32
PARAÍSO DE QUEM?
Porém a serpente disse à mulher: vós de nenhum modo morrereis; mas Deus
sabe que, em qualquer dia que comerdes dele, se abrirão os vossos olhos, e
sereis como deuses, conhecendo o bem e o mal. Viu, pois, a mulher que (o
fruto) da árvore era bom para comer, formoso aos olhos e desejável para
alcançar a sabedoria, e tirou do fruto dela, e comeu; e deu a seu marido,
que também comeu (Gn 3, 1-6).
Em outras palavras, à pergunta de Eva, "por quê?", a serpente
respondeu, ao melhor estilo da Escola de Frankfurt/Teoria Crítica:
"Por que não?". Todos os nossos problemas decorrem desse mo
mento crucial, dessa escolha fundamental, desse "ponto de virada"
primordial, quando o protagonista (neste caso, Eva) deve tomar uma
decisão, mas sem informações e antecedentes suficientes (quem é essa
serpente? Como é que ela fala igual a um ser humano?) para tomar
uma decisão fundamentada. Então ela dá uma mordida. Por que não?
"E sereis como deuses, conhecendo o bem e o mal". Uma afirmação do
diabo, apresentada logo no início de nossa história registrada. Satanás
promete a Eva, a mãe original, que ela pode transcender sua perfeição
humana (sem pecado, imortal) e tornar-se divina, conhecendo o bem
e o mal. Pode-se observar que Satanás deveria saber, já que o mal vem
ao mundo através de sua rebelião. E, no entanto, paradoxalmente, é a
transgressão de Eva, seu pecado original ao querer alcançar Deus, que
a torna, e a nós, totalmente humanos. Desejaríamos de outra maneira?
Como Milton nos lembra na Areopagítica:
O bem e o mal que conhecemos no contexto deste mundo crescem juntos,
de modo quase inseparável, e o conhecimento do bem está tão entrelaçado
no conhecimento do mal, havendo tantas semelhanças, quase indiscerní
veis, entre eles, que as sementes de confusão impostas à psique como um
trabalho incessante de separação e seleção não estavam mais misturadas.
Foi da casca de uma maçã mordida que o conhecimento do bem e do mal,
como dois irmãos gêmeos se fundindo, escapou ao mundo. E talvez essa
tenha sido a ruína de Adão de conhecer o bem e o mal, ou seja, de conhecer
o bem pelo mal.
Afinal, o que havia de errado com o Jardim? O Jardim era perfeito,
mas sua própria perfeição o tornava imperfeito. Você, como ser humano,
prefere ser humano ou angelical? Certamente, os anjos não poderiam
ter inveja de uma subespécie como a Homo sapiens se os humanos
não fossem potencialmente superiores aos anjos, precisamente por
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MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
causa de seu livre-arbítrio o que lhes confere a capacidade de viver
uma narrativa heróica. (São Miguel é um herói ou apenas o instrumento
da vontade divina? E, nesse caso, isso o torna menos heróico, digamos,
do que Cincinato ou Horácio?). A adoração a Deus aos pés de seu trono,
como fazem os anjos, é o verdadeiro destino dos homens? Ou o Satanás de
Milton faz uma observação válida quando diz que é melhor, mais humano,
reinar no inferno do que servir no céu? A afirmação de Satanás não é uma
das declarações mais humanas já escritas? (O irresistível Satanás heróico
da ópera Mefistofele, de Arrigo Boito, não poderia ter dito melhor).
O demônio tem seu mérito: ele ganhou um reino, tem um propósito
e até parece heróico, com uma exceção crucial: ele não morrerá lutando.
Ele não tem interesse de verdade no jogo. Sua guerra contra Deus (que,
por definição, ele não pode vencer) é uma ilusão. Trata-se, então, de
um teste? Em caso afirmativo, de quem? De Deus? De Satanás? Nosso?
O anseio por um estado de graça anterior à Queda está presente
em todas as culturas. A Queda do homem é uma de nossas histórias
mais poderosas. É ao mesmo tempo retroativamente atraente (uma
restauração do status quo), religiosa (Jesus salva) e convenientemente
infantil (o Jardim do Éden estava realmente cheio de árvores frutí
feras sempre maduras?). Por meio de Eva e da maçã, trouxemos a
Queda sobre nós mesmos ou ela foi projetada por forças satânicas?
Nesse caso, por que Deus não a impediu? A resposta simples para a
última pergunta é: porque, então, não haveria liberdade, nem drama.
Não haveria escolha (para usar uma palavra de esquerda da moda).
Assim, esse drama primordial se torna a marca da autoconsciência
civilizacional. Lembre-se de que é somente depois de comer o fruto
da árvore do conhecimento que Adão e Eva percebem que estão nus e
são, portanto, seres sexuais. E a autoconsciência é muito mais essencial
para o progresso humano do que as comodidades da ciência. Conside
ramos a civilização dos gregos antigos grandiosa, fundamental, aliás,
por causa de Homero, Platão, Eurípides e Aristóteles, não por causa
de seus meios de transporte ou seu sistema de saúde, nem por causa de
seu sistema político, do qual as democracias ocidentais tiram grande
parte de sua inspiração. O sistema político grego foi uma conseqüência
da cultura grega, com seu sofisticado senso do eu, e não o contrário.
34
PARAÍSO DE QUEM?
As sociedades não podem criar um sistema político de cima para baixo
(em oposição a um que cresça organicamente), assim como não podem
criar uma linguagem realmente viva de cima para baixo, como compro
vam o esperanto e o volapük, idiomas que os lingüistas construíram,
mas que não vingaram. Os idiomas são plásticos e evolutivos, mas
nunca aleatórios, assim como as culturas que eles originam.
Esta não é uma questão trivial. Como sabem os bilíngües, pensamos
de maneira um pouco diferente, dependendo do idioma que estamos
usando, não só em termos de vocabulário, mas também de estrutura
de orações e até de conceituação de idéias, tanto abstratas quanto
concretas. A palavra evening ou twilight, por exemplo, evoca uma
determinada imagem em inglês (o enfraquecimento da luz), enquanto
a mesma palavra em alemão, Abendrot, evoca algo mais rico, colorido
e até comovente, mas próximo do termo em inglês gloaming. Richard
Strauss escolheu "Im Abendrot", com base no poema de Eichendorff,
como uma de suas inefáveis Quatro últimas canções, e não há na lite
ratura evocação mais tocante do dia virando noite.
A situação se torna ainda mais complexa quando os dois idiomas não
fazem parte da mesma família de línguas. Obviamente, é possível alternar
entre, digamos, inglês e chinês, mas isso não significa que seja fácil, e mui
tas imagens serão inevitavelmente perdidas na tradução. Por mais que a
esquerda igualitária tente argumentar em favor de sua ideologia genérica,
as evidências e a experiência empíricas nos dizem que isso não passa de
ilusão, promovida por fins políticos. Nem todos os idiomas ou culturas
são iguais, nem têm o mesmo valor. Mas, apesar da clara evidência dos
sentidos, a esquerda sabe como fazer o in víduo seguir suas normas.
"Quem é o Tolstói dos zulus? O Proust dos papuásios? Ficaria feliz
em lê-lo", soltou o escritor vencedor do Prêmio Nobel, Saul Bellow,
em 1988, desencadeando uma tempestade de indignação dissimulada
entre os sensatos leitores do New Yorker, uma violação precoce das
restrições repressivas que viemos a conhecer depois com o nome de
linguagem politicamente correta.
"O escândalo é de origem inteiramente jornalística”, explicou
Bellow posteriormente em uma matéria de 1994 para o New York
Times, defendendo-se:
35
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
Sempre tentando estupidamente explicar e edificar todos os que chegavam,
eu estava falando da distinção entre sociedades alfabetizadas e pré-alfa
betizadas. Pois já fui estudante de antropologia, veja você! Meus críticos,
muitos dos quais não sabem onde fica Papua-Nova Guiné no mapa, querem
me condenar por desprezo pelo multiculturalismo e difamação do terceiro
mundo. Sou um homem branco idoso, ainda por cima judeu. Ideal para
seus propósitos.
Bellow concluiu com estas palavras, incrivelmente visionárias:
Justiça e raiva ameaçam a independência de nossas almas. A raiva agora
é brilhantemente prestigiosa. A raiva se distingue, é uma paixão patrícia.
A raiva dos rappers e manifestantes toma como premissa a admissão de
culpa da maioria por injustiças do passado e do presente, e conta com a
admiração dos reprimidos pelo poder emocional dos desinibidos e zanga
dos "com razão". A raiva também pode ser manipuladora; pode ser um
instrumento de censura e despotismo. Como já fui antropólogo, reconheço
um tabu quando o vejo. A discussão aberta de muitas questões públicas
importantes já é um tabu há algum tempo. Não podemos abrir a boca
sem ser acusados de racistas, misóginos, supremacistas, imperialistas ou
fascistas. Quanto à mídia, eles estão prontos para esculhambar qualquer
pessoa assim designada.
Em outras palavras, a celebração da diversidade termina onde
qualquer possível superioridade ou inferioridade cultural começa. Mas,
para usar o jargão esquerdista, a diversidade não é a nossa força? E se
sim, onde começou essa diversidade?
Visto sob essa luz, o incidente no Jardim assume um novo signifi
cado: Eva não é a causa da Queda do homem, mas sua facilitadora.
A tentação de Eva pela serpente não é apenas o primeiro grande cri
me satânico, embora Adão e Eva tivessem livre-arbítrio antes de que
a mãe de todos os viventes encontrasse a serpente: é também o ato
libertador, a felix culpa, ou "bendita Queda”, que libertou o homem
para cumprir seu destino como algo diferente de servo humilde e obe
diente de Deus. Como Santo Agostinho escreveu na obra Enquirídio:
"Porque Deus julgou melhor criar o bem do mal do que não permitir
que exista qualquer mal".
O paraíso pode ter sido perdido, mas o que se ganhou talvez seja algo
muito mais valioso, algo que, quando paramos para pensar, está mais de
acordo com o plano declarado de Deus para a humanidade: criaturas
36
PARAÍSO DE QUEM?
dotadas de livre-arbítrio e, portanto, potencialmente superiores aos
anjos. A primeira mordida de Eva na maçã, então, não é simplesmente
o pecado original: é o incidente que desencadeou o próprio drama da
humanidade. Algo se perdeu com certeza, mas também ganhamos algo,
um bem implantado dentro de nós desde o início: o senso de direção e
propósito. O mal, o pecado, a mudança, o fluxo, o drama e a própria
morte são os meios para chegarmos lá.
Como os poetas e escritores sabem desde a época dos antigos gre
gos, um mundo sem conflito não tem como existir. E, de acordo com
nossos padrões, acostumados que estamos com este mundo, se tivesse,
seria um lugar muito monótono. Pois aqui, fora do Jardim, sem Deus
disponível para uma consulta direta, é somente no choque de idéias
conflitantes que a verdade, furtiva, hesitante, surge, por mais indesejável
que a verdade possa ser. A busca de Édipo pelo assassino de seu pai
primeiro o leva aos braços de sua mãe e depois, quando a verdade é
revelada, ao fatídico ato de cegar a si mesmo e exilar-se.
Por conseguinte, a tendência americana moderna de considerar a
paz como o estado natural do homem e a guerra como sua aberração é
uma inversão total. Intuímos isso em relação à natureza do homem, e a
história valida esse insight de forma recorrente e sangrenta. Ser humano
significa ser falho. Mas ser satânico, ou seja, aceitar acriticamente a
legitimidade do argumento anti-humano da Teoria Crítica, é não ter
nenhuma chance de redenção. Pois como o niilismo pode ser redentor?
Um mundo em paz, sem a Segunda Vinda, certamente seria um lugar
muito monótono e improdutivo, talvez possível somente através de
uma tirania universal. Embora ninguém deseje a guerra, às vezes ela é
inevitável, e a paz é o resultado de sua resolução, ainda que temporária.
Hobbes estava certo, apesar de não ter levado em conta a natureza
do homem, tanto humana quanto divina. Embora caracterizada por
competição e brutalidade, a natureza ocasionalmente exige, e às vezes
alcança, um estado de equilíbrio momentâneo, em torno do qual o
mundo gira, iniciando o ciclo novamente. Isso não é pessimismo, é
realismo. Livres, nós discordamos, discutimos, brigamos e às vezes
matamos. A paz forçada termina em escravidão e morte, como uma
das principais religiões do mundo promete e, em seu Dar al-Islam
37
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
[casa do islã], tenta praticar. Tentar, testar, questionar, pressionar: esses
são os verdadeiros atributos naturais do homem, e os problemas, seu
estado natural.
Um mundo sem conflito, ou pós-conflito, no entanto, é exatamente
o que vários sistemas políticos abrangentes prometeram. Mas o ca
minho para essa utopia foi pavimentado com muita miséria e morte.
Em nossa época, o principal defensor desse mito é o socialismo, de
duas formas: o nacional-socialismo alemão e o marxismo soviético,
especialmente o último.
Os dois principais proponentes da Escola de Frankfurt, Antonio
Gramsci e Georg Lukács, procuraram derrubar a ordem existente,
primeiro a ordem moral e depois a ordem política, como radicais do
século XIX. (Exceto por sua influência fora do comum, não há nada
de "moderno" em nenhum dos dois pensadores.) Mais parecidos com
anarquistas como Proudhon, Bakunin, Kropotkin e Luigi Lucheni (que
assassinou a Imperatriz Elisabeth da Áustria, em 1898), Gramsci e
Lukács não tinham interesse em qualquer contemporização que pudesse
ser o resultado da fórmula hegeliana de tese, antítese e síntese. Para
eles, havia apenas vencedores e perdedores, e nisso, devemos admitir,
mesmo a contragosto, eles estavam certos. Contemporizar é negar a
validade da própria posição e sucumbir à tentação de ver a razão em
ação, quando o verdadeiro radical sabe que a razão é só uma ferramen
ta, usada como base. No Urkampf, o conflito original, os dois lados
buscam um paraíso perdido, e é evidente, tanto pela tradição cultural
quanto religiosa, de que lado cada um está. As forças do bem buscam
uma espécie de restauração edênica, com o homem desta vez ocupando
seu lugar ao lado e acima dos anjos no trono de Deus, enquanto os
revolucionários vingativos sonham com um novo paraíso, um lugar
melhor que eles mesmos controlam, sem a presença de Deus.
Isso nos leva a uma questão importante: O paraíso de quem se
perdeu? A interpretação convencional de nosso mito fundamental ba
seado no Livro do Gênesis é que é o nosso paraíso, o Jardim do Éden,
que se perdeu. Mas a busca heróica depois da Queda do homem não
é retornar ao Éden, mas chegar ao céu -algo explicitamente negado
-
para sempre a Satanás e seus servos. Eles fizeram a sua escolha quando
38
PARAÍSO DE QUEM?
se aliaram ao belo e sedutor anjo Lúcifer, e agora eles (exceto Abdiel,
o anjo que foi tentado por Satanás, mas no final retornou a Deus)
devem sofrer eternamente no reino do hediondo Satanás, em quem o
anjo Lúcifer foi transformado.
O paraíso que se perdeu irrevogavelmente não é o nosso, mas o de
Satanás. Não é de admirar que aqueles que defendem a posição satâ
nica lutem por ela com tanta força. Não é o Éden que eles procuram
restaurar, mas o próprio céu, ainda que sob nova direção. Empenhado
em se vingar, é Satanás que, na forma da serpente, tenta Eva a provar
o fruto da árvore do conhecimento. (Note-se que Satanás é atraído
sexualmente pela linda Eva). No poema de Milton, a jornada que acom
panhamos é a de Satanás. Por alguma razão divina, ele recebeu uma
chance real de vingança e, por Deus ou por alguém, ele a aproveitará.
As raízes do intratável conflito político que atualmente atormenta
as sociedades ocidentais residem quase que inteiramente em nossa
rejeição ao mito, à lenda e à religião como algo "não-científico" e no
fato de recorrermos a um "processo" estéril para oferecer soluções
para os males do mundo. Seja com o nome de “aquecimento global”,
"mudança climática" ou "ciência social", essa visão de mundo afirma
ser abrangente, eterna e fundamentada na “ciência estabelecida", que
ostenta notáveis sucessos em empreendimentos empíricos e experimen
tais. Com essas realizações tecnológicas como cobertura e camuflagem,
essa ideologia não admite rivais no monopólio do conhecimento,
excomungando dogmaticamente todas as reivindicações de verdade
concorrentes. Nulla salus extra scientiam, troveja. Fora da ciência,
não há salvação.
Vamos chamar isso de "efeito boneco de cera de Lenin". Durante
a Guerra Fria, críticos no Ocidente observaram que a União Soviética
e sua doutrina de marxismo-leninismo se assemelhavam a uma nova
religião, completa, com escrituras (os escritos de Marx e Engels), profe
tas carismáticos (Lenin e Stalin) com aura de semideuses, um militante
eclesiástico (o Partido), uma igreja central (o Kremlin) e uma casta
clerical (o Politburo e os apologistas soviéticos no oeste). A religião
também tinha, declaradamente, um templo funerário para o cadáver
mumificado de seu fundador, jazendo em estado eterno, do lado de
39
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
fora dos muros do Kremlin, onde turistas e cidadãos soviéticos espe
ram no frio do inverno russo para passar pelo esquife e olhar o corpo
embalsamado do líder, professor, farol, timoneiro, o guia imortal, V. I.
Lenin (cujas relíquias foram reunidas no Instituto Lenin e no Museu
Lenin logo após a sua morte).
Tendo oficialmente proibido a religião em nome do ateísmo estatal,
ou, melhor, exigido a substituição de Deus pelo Estado, os soviéticos,
no entanto, precisavam criar um falso cristianismo, um boneco de
cera grotesco e paródico, a fim de fazer uma transição bem-sucedida
da Igreja (o ópio do povo) para o materialismo dialético. Na dialética
hegeliana de tese, antítese e síntese, a tese era a Igreja, a antítese era o
boneco de cera de Lenin e a síntese deveria ser o materialismo triun
fante de Marx. Mas se eles realmente acreditavam nos princípios do
marxismo-leninismo (uma variação do comunismo alemão com matizes
russos), por que eles precisavam do boneco de cera, da religião falsa?
Embuste. Com um desejo maligno de vingança, o fantasma de
Karl Marx, através de seu vigário na Terra, Lenin, exigia que suas
prescrições profundamente anti-humanas para a felicidade humana
fossem obscurecidas com as ciladas da cultura tradicional da velha mãe
Rússia. Mas essa era uma visão exatamente inversa: uma tentativa de
criar o mito fundacional do marxismo tanto ex nihilo quanto como
uma operação de bandeira falsa. O fato de o comunismo soviético ter
desmoronado menos de setenta anos após a sua fundação não deveria
surpreender ninguém, já que ele não tinha onde se apoiar, mas o fato
de seu fim ter surpreendido tantos no Ocidente nos diz muito sobre o
estado enfraquecido da cultura ocidental também.
É verdade que "embuste” é uma palavra capciosa. Remete a cons
pirações, espreitadores, tramas urdidas na calada da noite em escon
derijos clandestinos, transações escusas em plantações de abóboras. O
embuste tem dois objetivos. O primeiro é confundir e induzir o inimigo
ao erro, enquanto o segundo é se comunicar secretamente, passando
informações com segurança para não levantar suspeitas e não trazer
atenção e conseqüências indesejadas.
O embuste, porém, pode funcionar para o mal e para o bem. Muitas
de nossas narrativas culturais apresentam um herói disfarçado: o policial
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PARAÍSO DE QUEM?
à paisana, infiltrando-se bravamente em uma organização criminosa;
o espião atrás das linhas inimigas; os codificadores e especialistas em
criptografia, sinalizando para os agentes locais e desencadeando atos
de sabotagem. Na ópera Turandot, de Puccini, o herói Calaf chega a
Pequim como o "príncipe desconhecido", a fim de enfrentar os enigmas
de vida ou morte apresentados pela fria princesa Turandot e assim ganhar
sua mão. Os enigmas recônditos de Turandot colidem com a identidade
oculta de Calaf: na reviravolta geralmente não percebida no centro da
ópera, Calaf deve transformar seu próprio coração em gelo e rejeitar o
amor de sua fiel escrava Liù para aquecer o coração de Turandot e con
quistar seu amor e seu reino: o herói retratado como um bastardo frio.
Pois os heróis podem ser moralmente comprometidos. Pense nos
espiões de John le Carré, cansados do mundo, transformando-se nos
próprios monstros que eles combatiam. Considere a conclusão de Sob
o domínio do medo, de Sam Peckinpah, quando um matemático nerd
e pacífico (Dustin Hoffman) finalmente se transforma, entrando num
surto homicida. Lembre-se de Shane, de Os brutos também amam, que
relutantemente retoma sua atividade de pistoleiro para salvar a família
que ama, apenas para desaparecer na escuridão montado a cavalo no
final, sabendo que quebrou seu pacto consigo mesmo. Nem os gritos
comoventes do garoto que o adotou como pai substituto, dizendo
"volte, Shane", são capazes de fazê-lo mudar de idéia.
Todos esses heróis incorporam o que poderíamos chamar de satâ
nico nos homens, o flerte com o lado sombrio, pelo qual muitos de
nós somos tentados. Por si só, não há nada de errado nisso. A Queda
original libertou o homem das algemas de um paraíso imortal e per
mitiu que ele contribuísse para sua própria salvação enfrentando o
mal, não evitando-o. Eva, sem saber, inocentemente, enfrentou o mal
pela primeira vez na história humana, um mal que Deus permitiu que
existisse, e aceitou seu convite implícito para começar de novo a luta,
desta vez no território das almas humanas.
Mas talvez o primeiro herói real da narrativa original fictícia não
seja Eva, mas o Anjo Abdiel, que enfrenta o rebelde Lúcifer no livro
v de Paraíso perdido e alerta a sua legião angelical sobre a destruição
que se avizinha:
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MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
Inabalável, sem se deixar seduzir ou atemorizar,
sua lealdade ele manteve, seu amor, seu zelo...
E com desprezo, de retaliação, virou as costas
às imponentes torres à destruição condenadas.
O "anjo intrépido", como Milton chama Abdiel, é um dos persona
gens secundários mais fascinantes do poema, e, se fosse uma série de
televisão, ele, sem dúvida, acabaria tendo seu próprio spin-off. Pois é
Abdiel, um serafim da legião de Lúcifer no céu, que primeiro pondera
a revolução de Lúcifer, provocada pelo anúncio de Deus de que ele ha
via gerado um Filho, e depois a rejeita, retornando ao rebanho divino,
mesmo diante das ameaças e do desprezo de seus antigos companheiros
por sua fidelidade. Ele representa todos os membros pensantes da hu
manidade, que devem encarar o mal para reconhecê-lo, ouvir seu canto
de sereia para resistir a ele e, pelo menos por um instante, contemplá-lo
ou até mesmo acolhê-lo antes de rechaçá-lo e destruí-lo. "Inabalável,
sem se deixar seduzir ou atemorizar". Que melhor descrição de um
verdadeiro herói pode haver?
Como os leitores costumam observar, o Deus de Milton, "terrível
monarca celestial", é um personagem moralmente complexo, mais
próximo do severo Deus dos israelitas do Antigo Testamento do que
do amoroso Deus do Novo Testamento. "Messias", seu filho, é o herói
que está por vir. O amor não parece ser um dos principais atributos do
Deus de Milton. Aliás, uma maneira de interpretar suas ações durante
a Queda do homem, devido à sua onipotência e onipresença, é que
ele previu e desejou o destino de Adão e Eva, criou (ou permitiu) o
teste em que ele pelo menos sabia que eles poderiam fracassar e exigiu
obediência com o absoluto conhecimento de que eles fracassariam por
causa do infausto dom do livre-arbítrio.
"A razão pela qual o poema é tão bom é que Deus, ali, é muito
mau", escreve o crítico literário inglês William Empson em Milton's
God [O Deus de Milton]:
[Milton] luta para fazer com que seu Deus pareça menos perverso, como
ele nos diz que fará no início, e, de fato, consegue torná-lo visivelmente
menos perverso do que o Deus cristão tradicional, apesar de que, devido
à sua lealdade ao texto sagrado e à profundidade da escrita, que torna
sua história bastante real para nós, seus críticos modernos ainda sentem,
42
PARAÍSO DE QUEM?
intrigados, que existe alguma coisa muito errada nisso tudo. O fato de sua
busca continuar em Paraíso perdido, a meu ver, é a principal fonte de seu
fascínio e pungência.
Para Abdiel, não há paraíso a ser perdido, pois, no fim, ele volta para
o lado de Deus. Ele tinha uma escolha a fazer e a fez. Mas a escolha
da humanidade nunca termina. Em vários momentos de nossa vida,
somos obrigados a escolher entre o bem e o mal. Na verdade, somos
obrigados a definir, ou redefinir provisoriamente, ambos os termos e
depois escolher. Mas o que devemos fazer com um exemplo como Deus?
Deus liberta Satanás de suas correntes do fundo do mar de fogo, Deus
permite o surgimento da descendência profana de Satanás, Pecado e
Morte, e então dá ao Pecado a chave dos portões do inferno. Deus
não faz nada quando Satanás se lança em direção à Terra, decidido a
seduzir e destruir a humanidade. Será que Deus precisa do mal para
executar seu plano? Não é de admirar que um terço dos anjos de Deus,
como a história começa, já o odeie e estejam dispostos a atender ao
chamado de Lúcifer de insurgir-se contra ele.
Em Milton, Deus parece negar sua própria cumplicidade. Da deso
bediência do primeiro casal, Deus diz no livro III:
Eles que, portanto, por serem corretos,
assim foram criados, não podem acusar
seu Criador, ou sua criação, ou seu destino,
como se a predestinação anulasse
sua vontade, disposta por decreto absoluto
ou elevada presciência. Eles mesmos decretaram
sua própria revolta, não eu. Se previ,
a presciência não teve influência sobre seu pecado,
que, mesmo sem presciência, ocorreria.
É fácil para ele dizer, podemos observar, já que ele é Deus, abrindo
a terrível possibilidade de ninguém assumir a responsabilidade pelo
ocorrido.
Passei algum tempo nos primeiros livros do grande poema de Milton,
livros focados em Satanás e sua trama de vingança, por várias razões.
A primeira é pela influência cultural da obra. Por mais difícil que seja
acreditar, em nossa era pós-letrada, Paraíso perdido já foi um elemento
da família americana, não apenas uma obra de arte, mas também um
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MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
livro de instrução moral, guardado ao lado da Bíblia para esclareci
mento, explicação e inspiração. Muitos eram capazes de citá-lo de cor,
assim como as escrituras e as obras de Shakespeare.
A segunda razão é pela intenção de estruturar o argumento moral
para o argumento político que está por vir. Não peço desculpas pelo
contexto explicitamente cristão da minha análise; como católico, eu
seria tolo em tentar abordar o assunto de qualquer outra perspectiva.
No entanto, não estou recorrendo aos pormenores do dogma, nem a
qualquer conjunto particular de ensinamentos (além de certo = bom,
errado = ruim). Os princípios morais em que me baseio são encontrados
em todos os contextos culturais. Sem dúvida, a crise na qual os Estados
Unidos da América se encontram atualmente é uma crise moral, que
gerou uma crise de confiança cultural, que, por sua vez, gerou uma
crise fiscal que ameaça, aliás, garante a destruição da nação se não a
abordarmos.
Terceiro, concentro-me em Milton porque os personagens bíblicos
arquetípicos descritos primeiro no Gênesis e expandidos por Milton,
"Deus", "Satanás", "Adão", "Eva" e o "Filho" (Jesus), são fundamentais
para a narrativa original e serviram como referência e modelo para
inúmeros personagens subseqüentes da literatura e do teatro. Chame-os
como quiser: o pai severo, o filho rebelde e o filho bom, os espectado
res infelizes, mas estranhamente fortalecidos, apanhados no conflito
primordial da primeira família. Afinal, o que é o ciclo de O anel do
nibelungo, de Wagner, senão (como o finado Dietrich Fischer-Dieskau
descreveu) uma "tragédia familiar”, na qual a ganância e arrogância
de Wotan o obrigam a gerar um filho moralmente descomprometido
(Siegfried) para lavar os pecados de Wotan e de todo o antigo regime,
redimindo a humanidade em troca.
Espero que esta seja uma maneira útil e até inovadora de encarar a
política. Deixadas à mercê dos supostos experts, as discussões políticas
são quase inteiramente programa-e-processo o reino dos advogados,
-
MBAS e a classe de jornalistas parasitas que se alimenta de ambos. É a
razão pela qual os projetos de lei do Congresso e seus regulamentos
correspondentes agora chegam a milhares de páginas, em oposição à
Constituição concisa de 4.543 palavras dos EUA, cujo significado era
44
PARAÍSO DE QUEM?
evidente para qualquer cidadão alfabetizado do final do século XVIII.
Compare isso com a Lei de Proteção e Cuidado ao Paciente, batizada de
maneira inadequada, cuja contagem de palavras, com os regulamentos, é
de quase 12 milhões, fora os novos regulamentos adicionados ao longo
do caminho. Quando se trata de legislar, a brevidade pode ser a alma
do engenho, mas a complexidade é a própria essência da "trapaça”.
Quem pode dizer o que contribui para a melhor análise política?
Em vez de se embrenhar nas complexidades das escolas cada vez mais
especializadas de governo (cuja missão é efetivamente produzir mais
vitórias políticas), talvez seja melhor recuar e olhar nossa história polí
tica como ela realmente é: uma narrativa, com um começo, um meio e
um fim que ainda está por vir. Às vezes, pode ser uma história contada
por um idiota; à medida que as paixões aniquilam a razão, leis ruins
são promulgadas, e as conseqüências são terríveis. Outras vezes, pode
ser uma história contada por um mestre artesão, com reviravoltas que
surpreendem, encantam, cativam e chocam.
Acima de tudo, é uma história com heróis e vilões. E isso nos traz de
volta ao ponto de partida, ao mito fundamental de nossa sociedade: a
rebelião de Satanás, que levou à Queda do homem, e à construção do
palácio de prazer do demônio para seduzir e distrair a humanidade,
enquanto a guerra contra Deus continua, como sempre, e sem ajuda
material dele, pelo menos aparentemente.
45
CAPÍTULO II
Tese
o que trata o filme O poderoso chefão? Pergunte a quase
qualquer um e ele ou ela lhe dirá que é a história de um
chefão da máfia, Don Vito Corleone, e seus três filhos, em
disputa com outras famílias criminosas italianas pelo controle dos
negócios desonestos na Nova York do pós-Segunda Guerra Mundial.
O poderoso chefão, porém, não é sobre isso. E é aí que está a distinção
essencial entre trama e aquilo que os roteiristas chamam de história. A
trama é a superfície; já a história, a realidade. A trama é a ordenação
dos acontecimentos: primeiro acontece isso, depois aquilo e aquilo
outro, e assim sucessivamente até o final. É o que contamos a alguém
ao descrever um filme ou um romance. A trama é o que paira sobre a
estrutura da narrativa. A trama... não importa.
O que importa é a história, o significado mais profundo que em
basa os acontecimentos da trama. Algo acontece e, então, por causa
disso, alguma outra coisa acontece, e por causa disso, acontece mais
uma coisa: é a força do destino. Assim, O poderoso chefão é sobre um
homem que ama tanto sua família, e tenta de tal forma protegê-la, que
acaba por destruí-la.
Muitas são as tramas, mas poucas as histórias. Referi-me anterior
mente ao que Joseph Campbell descreveu como "a jornada do herói",
47
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
mas devo aqui observar que a jornada não precisa ser concluída com
sucesso nem ter um final feliz. O conto americanizado de Don Cor
leone é a ascensão de um monstro cujo verdadeiro rosto permanece
oculto até seus derradeiros momentos, quando ele enche a boca com
um pedaço de laranja (símbolo da morte iminente) e faz uma careta
para o neto, aterrorizando o menino com a revelação repentina da
verdadeira natureza do avô.
Podemos, ainda, contar a mesma história -- a do homem que ama
tanto a família que a destrói - de muitas formas diferentes, em outras
épocas e lugares diferentes. Em Rastros de ódio, Ethan Edwards, o per
sonagem interpretado por John Wayne, parte em uma missão obcecada
para resgatar a sobrinha, seqüestrada por comanches e transformada
em mulher de um deles. Ele não pretendia trazê-la de volta para casa
(a maior parte de sua família fora trucidada pelos índios), e sim matá-la,
embora no final não a mate, trazendo-a de volta para os parentes
sobreviventes. A última cena do filme, quando a porta lentamente se
fecha sobre Ethan, condenando-o a uma vida de solidão amargurada,
é mais tarde tomada por empréstimo por Coppola para a cena final de
O poderoso chefão. Nela, a porta "santuário" de Michael é fechada
na cara de sua mulher, Kay, quando na verdade é Michael que está
sendo confinado na vida criminosa a que seu pai o condenou, e Kay
fica do lado de fora. As histórias sobre famílias figuram entre as nossas
histórias mais primitivas, daí possuírem esse poder descomunal.
Portanto, não é por acaso que um dos principais alvos da esquerda
profana é a família, assim como a família que se originava com Adão e
Eva era o alvo de Satanás. A família, no sentido biológico mais básico,
representa tudo o que aqueles desejosos de uma "mudança funda
mental" (para usar uma expressão famosa e paralisante) na sociedade
precisam abominar em primeiro lugar. É a pedra angular da sociedade,
a garantidora das gerações futuras (assim obedecendo ao primeiro
princípio da natureza, o da autopreservação pela procriação), o tijolo
do Estado, embora superior a ele, porque a família é naturalmente
organizada e o Estado não é. Contrariando a evidência de milênios,
em todas as culturas, a esquerda desfere o argumento de que a família
não passa de um "constructo social" passível de uma reformulação se
assim o desejarmos.
48
TESE
A semelhança de Satanás, o moderno Estado esquerdista inveja as
prerrogativas da família, enfurece-se com seu poder e procura subs
tituí-lo com sua própria autoridade. A condição satânica da "raiva",
na verdade, é uma das palavras favoritas da esquerda (tal como os
"Dias de Fúria", em Chicago, outubro de 1969), assim como um de
seus principais atributos. A redefinição continuada e cada vez mais
ampla do que constitui uma família faz parte do ataque da esquerda.
Se qualquer grupo de duas ou mais pessoas, por mais distantes que
sejam em sua relação biológica, ou até se não tiverem nenhuma rela
ção, pode ser chamado de "família", então ela não existe. Veja, porém,
como isso foi conseguido: assim como o lascivo Satanás ("envolto em
névoa crescente") aproxima-se da Eva de Milton incorporado numa
serpente, a fim de provocar sua vaidade e curiosidade, ao mesmo tempo
acalmando seus temores por aquela aparição repentina no Jardim do
paraíso, a "mudança" se disfarça com eufemismos, encobrindo suas
verdadeiras intenções, apelando para o impulso transgressivo que quase
todos temos e prometendo um amanhã melhor se apenas cedermos a
essa única e ínfima restrição.
O comunismo soviético (junto a seu gêmeo do mal, o nacional-socialismo
ou nazismo, como a expressão mais pura que se possa imaginar do
que há de satânico no homem) compreendeu isso muito bem: destruir
a família, apoderar-se das crianças e conceder à noção insuportável
de um paraíso substituto pós-Éden marxista uma aquisição de poder,
ao menos, por mais uma geração. A juventude americana que cresceu
na década de 1950, como eu, ouviu inúmeras histórias horrorosas de
crianças russas que delatavam os próprios pais, pequenas víboras no
seio das famílias que as acolhiam. Talvez a mais famosa seja a de Pavlik
Morozov, de treze anos, um jovem pioneiro soviético transformado
imediatamente em mito, que denunciou o pai à polícia secreta e foi, por
sua vez, assassinado por membros "reacionários" da própria família,
que mais tarde foram capturados e executados. Seja a história verda
deira ou não, e o mundo acadêmico pós-soviético sugere que tenha
sido forjada, o mito soviético exigia justamente uma lição objetiva e
um mártir como aquele para a causa comunista.
A importância decisiva da narrativa para o projeto esquerdista é
indiscutível. O ato de contar histórias, ou alguma forma semelhante em
49
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
que velhos temas são explorados e distorcidos, está no centro de tudo
o que a esquerda faz. Os esquerdistas são estimulados por uma crença
de que no mundo moderno não importam tanto os fatos, contanto
que a história seja bem contada. Vivendo num mundo malevolente e
de fantasia às avessas, eles prefeririam privilegiar o coração em vez da
mente seus impulsos em vez dos sentidos. O hiato entre a realidade
empírica e seus devaneios imersos em ideologia sempre os choca e
surpreende, mesmo quando prejudica ou mata milhões que sofrem as
conseqüências de suas ilusões.
E qual é, precisamente, a questão de sua narrativa distorcida? Ape
nas a seguinte: ela, como um cânone, contém todos os temas e clichês
considerados necessários para vender uma filosofia governante que
ninguém, em seu perfeito juízo, elegeria para acabar com o engodo e
a ilusão. Não importa quão má seja, a história de esquerda deve pa
recer ter um resultado positivo. Ela precisa invocar os melhores anjos
de nossa natureza, precisa prometer um bem maior, uma moralidade
mais elevada, um amanhã novo e melhorado. Em suma, precisa fazer
o que o Tentador de Milton ("com demonstração de zelo e amor ao
homem, e indignação pelo seu erro") faz no Jardim do Éden: mentir.
Assim disse Lúcifer a Eva, com as mesmas palavras proferidas pela
boca marxista cultural de todo esquerdista bajulador. Caberia aqui
nos referirmos a essa passagem no livro IX de Paraíso perdido como o
próprio mito fundador da esquerda:
Rainha deste Universo! Não creias
em tão rígidas ameaças de morte, pois não morrerás.
[...]
[...] será que Deus inflamaria sua ira
por tão pequena transgressão, em vez de elogiar
tua virtude destemida, cujo medo
da morte denunciava, o que quer que seja a morte? [...]
Por que, então, essa proibição? Por que senão para assombrar,
senão para manter-te submissa e ignorante...
[...]
[...] tu serás como os deuses,
conhecedora do Bem e do Mal, assim como eles.
50
TESE
Esse discurso de Satanás talvez seja a personificação mais perfeita
do esquerdismo sedutor já escrita, combinando quase todas as táticas
ainda em uso hoje. O Tentador, em poucas palavras, pergunta: "Por que
não? Além disso, qual é o problema? Deus está mentindo para você".
Ele quer mantê-la nua e ignorante. "Olhe para mim: comi a maçã e
agora eu, uma mera serpente, posso falar a língua dos humanos com
sabedoria e compaixão. E você, com apenas uma pequena 'transgres
são' contra um decreto imbecil e arbitrário, também será como Deus”.
Eva dá a mordida. Naquele instante, é verdade, o paraíso está
perdido para a humanidade (a anuência de Adão, a essa altura, é um
fato consumado), mas também naquele instante, Eva não se torna
semelhante a Deus, mas inteiramente humana. A Queda é o paradoxo
central da existência humana e a raiz de toda a miséria e oportunidade
da humanidade. A forma como reagimos a ela (ou até se reagirmos
contra a própria noção que fazemos dela, considerando-a um mero
conto de fadas criado por uma cultura hegemônica) determina pratica
mente tudo a nosso respeito. Será que somos os heróis independentes
de nossas histórias pessoais, lutando para conquistar nosso lugar no
mundo? Ou somos meros bonecos sendo empurrados ao longo de
uma trama? Somos fortes ou fracos? Estamos destinados à glória ou
já estamos caídos e certos de uma condenação? A liberdade é uma
dádiva ou uma ilusão?
Para Milton, assim como deveria ser para nós, o conhecimento do
bem e do mal é um aspecto fundamental de nossa natureza humana. É
a base do livre-arbítrio, e nossa capacidade (concedida por Deus) para
escolher livremente entre um e outro. Ele pode nos tornar melhores ou
piores, e conduzir-nos à salvação ou à danação.
Esse é o argumento para a felix culpa, a bendita Queda louvada na
proclamação da Páscoa católica: “Ó, felix culpa. […] Ó, bendita Queda
que nos trouxe tão glorioso Salvador”. Sob esse prisma, a Queda é
a melhor coisa que já aconteceu para a humanidade. É claro que as
discussões a respeito são infindáveis e há argumentos convincentes de
ambos os lados: uma vez que Deus é o Criador de tudo, ele, então,
maquinou a Queda? (O Deus de Milton o nega). Se Deus criou Lúcifer,
e o Lúcifer caído (Satanás) então gerou, direta ou indiretamente, tanto
51
MICHAEL WALSH
ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
o pecado quanto a morte, Deus, portanto, é responsável pelo mal?
Será que, de alguma forma, Deus necessita do pecado, como Calvino?
Será que algum dia poderá haver uma verdadeira síntese hegeliana
-marxista entre o bem e o mal, e se puder, qual seria ela? Conforme o
ex-presidente Herbert Hoover, até hoje um dos vilões mais úteis nas
charges da esquerda profana, escreveu sobre o New Deal, num livro
de memórias publicado após sua morte: "O mundo está às voltas com
uma guerra mortal entre a filosofia de Cristo e a de Hegel e Marx".
Nas histórias dos heróis, nunca há uma síntese e, na verdade, não
pode haver. A esquerda satânica sabe disso muitíssimo bem, por mais
que falem, da boca para fora, sobre "síntese". O herói não deve e, no
final das contas, nem pode cooperar com o vilão. Mesmo que pareça
que ele o está fazendo, ele o engana, permitindo que a arma do vilão
seja empunhada contra ele. (Muitas vezes, o herói precisa mesmo do
pecado, e em alguns casos, ele sai vitorioso apenas à custa de sua alma).
De forma semelhante, o antagonista (que, lembre-se, é o herói de sua
própria história) não pode fazer concessões com o herói em nenhum
sentido real. Se o fizesse, perderia.
E aqui retomamos o argumento político central deste livro. É comum
ouvirmos termos como "bipartidarismo" e "concessão" pelas salas do
Congresso, especialmente vindos da esquerda profana, sempre que ela se
vê nas etapas finais de uma decisão eleitoral. Mas, segundo os ditames
da narrativa, tal "concessão" não se sustenta, exceto no curto prazo, e
nem mesmo então, eu diria, já que a concessão, mesmo em relação às
menores coisas, leva à síntese, e não é possível haver síntese entre o bem
e o mal. Conforme a metáfora grosseira, uma parte de sorvete misturada
com uma parte de cocô de cachorro é cocô de cachorro, não é sorvete.
Surgirá agora a objeção de que a minha visão de mundo é mani
queísta: preto e branco, sem tons de cinza pelo meio, muito menos
cinqüenta. Os críticos rotularão minha idéia de "simplista", um termo
muito querido dos adeptos da esquerda, e gritarão que ela deixa de
reconhecer as sutilezas e as nuances da condição humana.
Mas e daí? Isso é semelhante a observar que armas de fogo são ruins
porque são concebidas para matar pessoas, quando ninguém discordaria
que matar é precisamente o seu objetivo, que é, geralmente, uma força
52
TESE
para o bem. Não há nuance numa pistola. Ou ela está carregada ou não.
Sua trava de segurança, caso tenha alguma, está ativada ou não. Ou
1 ela está apontada para o alvo ou não está. O tiro é disparado ou não.
Um herói que é dado à inação enquanto estuda as sutilezas e as
nuances de uma situação crítica não é bem um herói. Lembramo-nos
de Hamlet não pelo seu heroísmo, mas por sua incapacidade para
agir. Seu famoso solilóquio é uma ode à contemplação do umbigo. E,
ainda assim, podemos até colocá-la, "ser ou não ser", num contexto
maniqueísta, porque a incapacidade de Hamlet de optar por um lado
ou por outro até que seja tarde demais acaba matando muitas pessoas.
Longe de ser admirável, Hamlet é um arquétipo do indefectível "em
cima do muro", e ele vive aparecendo nas narrativas populares. Veja
por exemplo, o personagem do cartógrafo, o cabo Upham, no filme
O resgate do soldado Ryan, de Steven Spielberg. Designado de última
hora para a operação de resgate do Capitão Miller, após a carnificina
do desembarque na Normandia, Upham primeiro defende a soltura de
um soldado alemão capturado (conhecido como "Steamboat Willie").
Mais adiante, sua hesitação é fatal num vão de escada, enquanto um
de seus companheiros, o Soldado Mellish, é dominado e golpeado no
coração com o próprio punhal, um suvenir da Juventude Hitlerista, no
andar de cima. Próximo ao final do filme, Steamboat Willie volta para
matar o capitão Miller na batalha sobre a ponte e, depois que ele se
rende, é morto a sangue frio por Upham. Assim, finalmente libertado
de suas nuances, Upham comete um crime de guerra como ato de
compensação pela tolice e covardia de antes.
E, mesmo assim, quantas vezes falhamos na vida real, inclusive os
líderes respeitados entre nós. Neville Chamberlain fez um estrago em
Munique quando falhou em avaliar a estatura de Hitler. George W. Bush
falhou com Vladimir Putin: "Olhei o homem, olho no olho... Pude ter
uma noção de sua alma". Conjuntamente, o Ocidente é confundido
pelo islã porque não dá crédito às simples palavras do rancor islâmico
contra o Ocidente. Afinal, será que o slogan “morte à América" exige
realmente muita interpretação?
Sabemos disso graças à nossa narrativa original, nossa história
primeva: a centelha divina em nosso mais profundo ser, que confere
53
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
sentido à nossa vida. A Teoria Crítica procura minar esse autoconhe
cimento em suas raízes, insistindo que tudo é uma "construção", uma
conspiração dos "privilegiados".
Uma vez mais, a filogenia recapitula a ontogenia em vez do inverso:
a história das espécies como um todo, primordial e universal (filogenia)
jaz nas profundezas de cada organismo (ontogenia), dentro do coração,
da alma e da psique de cada ser humano. A história não é um reflexo
do mundo, mas, antes, seu motor e essência. A história por si só não
alcançará o triunfo final do bem sobre o mal, mas ela abre o caminho.
54
CAPÍTULO III
Antítese
a Alemanha, a crítica da religião chegou ao fim, e a crítica
Na da religião é a premissa de toda crítica", escreveu Marx em
Crítica da filosofia do direito de Hegel, publicado em 1844:
O sofrimento religioso é, ao mesmo tempo, a expressão do verdadeiro
sofrimento e um protesto contra o verdadeiro sofrimento. A religião é o
suspiro dos oprimidos, o coração de um mundo sem coração, a alma de uma
realidade desalmada. É o ópio do povo. A abolição da religião enquanto
felicidade ilusória do povo é imperativa para sua verdadeira felicidade. O
apelo para que abandonem suas ilusões sobre sua condição é o apelo para
que abandonem uma condição que requer ilusões. A crítica da religião é,
portanto, o germe da crítica daquele vale de lágrimas do qual a religião é
a auréola. [As ênfases são de Marx].
Esses são os delírios dementes de um idiota perigoso, dada a pre
tensão de legitimidade pelas fáceis distorções da frase, a insistência
em expressá-la nos dois sentidos (para a esquerda profana, algo pode
ser ele mesmo e seu exato oposto ao mesmo tempo) e a raiva contra
a realidade, neste caso o "vale de lágrimas". Mefistófeles, de Goethe,
uma crítica literária de Marx, por assim dizer, não poderia ter dito
melhor, pois é necessário um Pai da Mentira para convencer os outros
a se rebelarem contra a evidência de seus corações e sentidos, além
de seu próprio interesse. Se simplesmente analisarmos as palavras da
55
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
famosa declaração de Marx sobre o ópio do povo, o que obtemos?
Referências a "protesto", claro, que se tornariam um elemento básico
da agitação esquerdista por mais de um século, e também a "ilusão".
Isso lembra a cena em Fausto, Parte I, do lado de fora do venerável
Auerbachs Keller, em Leipzig, em que Mefistófeles liberta um grupo de
estudantes de um feitiço com estas palavras: “Irrtum, laß los der Augen
Band! Und merkt euch, wie der Teufel spaße” [“Ó Erro, solte-lhes a
venda dos olhos! E observem como o diabo brinca"].
A mentira é a peça central tanto dos projetos satânicos quanto dos
esquerdistas. Como poucas pessoas se entregariam voluntariamente ao
inferno, os rebeldes (pois assim eles sempre pensam de si mesmos) devem
mascarar suas verdadeiras intenções. Em resenha sobre o livro de 2014
de François Furet, Lies, Passions, and Illusions, Brian Anderson, editor
do City Journal do Manhattan Institute, escreveu na National Review:
O poder de sedução do comunismo, começa Furet, baseava-se, em parte,
na mentira dos regimes marxistas e de seus seguidores. "O comunismo foi
certamente o objeto de uma mentira sistemática", escreve ele, "como tes
temunhado, por exemplo, pelas viagens organizadas para turistas ingênuos
e, de maneira mais geral, pela extrema atenção que o regime soviético e
os partidos comunistas davam à propaganda e à lavagem cerebral". No
entanto, essas mentiras foram logo expostas, a partir de outubro de 1917.
Eles não teriam sido eficazes por tanto tempo sem a atração emocional
das grandes ilusões que criaram: que os bolcheviques eram os portadores
do verdadeiro significado da história e que o comunismo no poder traria a
verdadeira emancipação humana. [...] Descrever o comunismo como uma
religião secular não é um exagero.
A famosa barganha de Fausto com o demônio (feita na Páscoa,
lembremos) não foi simplesmente pela sabedoria perfeita (ele expressa
sua frustração com os modos de estudo imperfeitos e terrenos na fa
mosa abertura do poema), mas também por um breve momento de
felicidade perfeita, um momento a que ele possa dizer: "Demora-te,
és formoso", algo que ele acredita ser impossível. Para Fausto, isso
parece uma boa aposta:
56
ANTÍTESE
FAUSTO
Se eu me deitar, tranqüilo, na cama,
à toa, que nesse instante eu morra!
Se puderes mentir para mim, bajulando-me
até que eu esteja satisfeito comigo mesmo,
se puderes me enganar com a alegria,
que este seja meu último dia!
Queres apostar?
MEFISTÓFELES
Fechado!
FAUSTO
Fechado!
E se chegar um momento a que eu diga:
"Demora-te, és formoso",
podes algemar-me depressa,
que já caí em perdição!
Fausto, tão alemão, é também o exemplo perfeito do homem mo
derno: nascido no século XIX, causando estragos no século XX e ainda
lutando contra Deus e o demônio no século XXI, geralmente negando
a existência de ambos. Ele é a essência do demoníaco ou até mesmo
do próprio Satanás. Afinal, nas falas de Goethe, Fausto é finalmente
salvo, em parte, pelo sacrifício de Margarida ou seja, salvo pelo
eterno-feminino, a força de vida sexual maior que o poder do inferno,
que atrai os homens cada vez mais para frente e para perto da divin
dade e também pela infinita graça de Deus, que pode até superar
uma barganha com o demônio, se o homem se esforçar o suficiente.
O que faria a esquerda profana sem ilusão? A ilusão é a pedra angular
de seus princípios filosóficos e de governo, um desejo desesperado de
olhar para fatos básicos e significados simples e vê-los de outra forma;
vê-los, na verdade, exatamente ao contrário. Desse ponto de vista,
nada é o que parece (a menos que condiga com o dogma esquerdista
cotidiano) e tudo está sujeito à contestação. Ao mesmo tempo, a pre
dileção da esquerda por complexidade em detrimento da simplicidade
revela sua afeição por ofuscamento e desorientação. A razão pela qual
o programa de esquerda não ousa mostrar sua verdadeira face nas
eleições americanas é que ele seria totalmente rejeitado (ainda hoje,
após um século de proselitismo constante a partir de seus redutos na
57
MICHAEL WALSH
ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
academia e na mídia). Mas em uma época em que o credencialismo
é disfarçado de conhecimento supremo, praticamente faustiano, e em
que minúcias são elevadas ao status de princípios universais atemporais
(mesmo que a existência de tais princípios seja negada), o esquerdismo
se mascara de sofisticação e experiência. Mas a máscara esconde apenas
a delinqüência juvenil intelectual embonecada em fantasia hegeliana.
O sobretudo pode ser muito pequeno e os sapatos muito grandes,
mas se não olharmos tão de perto e quisermos realmente acreditar,
como em Quanto mais quente melhor, de Billy Wilder, a ilusão pode
se passar por verdade.
O que nos leva de volta à Teoria Crítica e à Escola de Frankfurt, a
personificação da antitética, cujos adeptos elevaram esse delinqüente
discurso duplo a uma forma de arte, trouxeram-no aos Estados Unidos
via Suíça, depois de fugir dos nazistas e, consciente ou inconsciente
mente, injetaram na sociedade intelectual americana uma filosofia
derrotista ferrenha, alheia às tradições anglo-americanas e iluministas.
Os pensadores da Escola de Frankfurt eram a nata da sociedade filo
sófica alemã, ou seja, a nata da inquieta sociedade intelectual européia
da época, com reputação internacional na Universidade de Frankfurt,
sendo muito bem recebidos, depois, na Ivy League americana.
O trabalho dos estudiosos de Frankfurt, entre eles Theodor Adorno,
Walter Benjamin, Erich Fromm, Max Horkheimer, Herbert Marcuse e
Wilhelm Reich, foi fundamentado em uma ideologia que exigia (como
diria Marx), por razões filosóficas, um incessante ataque a valores e
instituições ocidentais, incluindo o cristianismo, a família, a morali
dade sexual convencional, o patriotismo nacionalista e a adesão geral
a qualquer instituição ou conjunto de crenças que bloqueasse o cami
nho da revolução. Literalmente, nada era sagrado. Alguns exemplos
representativos:
HERBERT MARCUSE:
Desde o início, a liberdade de empreender não foi de todo uma bênção. Como
a liberdade de trabalhar ou passar fome, significou labuta, insegurança e
medo para a grande maioria da população. Se o indivíduo não fosse mais
obrigado a se provar a si mesmo no mercado, como sujeito econômico livre,
o desaparecimento dessa liberdade seria uma das maiores conquistas da
civilização (A ideologia da sociedade industrial, 1964).
58
ANTÍTESE
MAX HORKHEIMER:
Embora a maioria das pessoas nunca supere o hábito de repreender o mun
do por suas dificuldades, aqueles que são fracos demais para se posicionar
contra a realidade não têm escolha a não ser obliterar-se, identificando-se
com ela. Eles jamais se reconciliam racionalmente com a civilização. Em
vez disso, se curvam, aceitando secretamente a identidade da razão e
da dominação, da civilização e do ideal, por mais que encolham os om
bros. O cinismo bem informado é apenas outro modo de conformismo
(Eclipse da razão, 1947).
THEODOR ADORNO:
Um alemão é alguém que não consegue contar uma mentira sem acreditar
em si mesmo (Minima Moralia, 1951).
Quem eram essas pessoas? Todos marxistas, acima de tudo, expulsos
de sua posição privilegiada no laboratório de idéias do Institut für So
zialforschung (Instituto de Pesquisa Social) da Goethe-Universität, em
Frankfurt (onde mais?). O Terceiro Reich os perseguiu em parte porque
eram judeus e em parte porque eram comunistas. Ambivalentes em
relação às realizações do Iluminismo (em outras palavras, a sociedade
em que eles nasceram e foram criados, dando-lhes abrigo e prestígio),
eles rejeitaram a noção do indivíduo como essencial, preferindo ver
a história como Marx a via, ou seja, como uma batalha dialética de
forças históricas antagônicas, da qual uma perfeição não-teleológica
acabaria por surgir. Adorno e Horkheimer gostavam de imaginar seus
trabalhos como "uma espécie de mensagem na garrafa" para o futuro.
Infelizmente para a posteridade, várias dessas garrafas foram parar na
margem oriental do Rio Hudson, perto da Columbia University, em
Nova York, mudando o curso da história americana.
Entre os membros da Escola de Frankfurt estava o meio russo
Richard Sorge, que se tornou espião da União Soviética. Embora ele
tenha contribuído pouco para a teoria cultural do comunismo, vale a
pena mencionar seu trabalho como traidor e agente duplo. Depois de
servir na Primeira Guerra Mundial, Sorge (o nome significa "preocu
pação" em alemão) tornou-se comunista em 1919, mas ingressou no
Partido Nazista em 1933 para lustrar sua boa-fé alemã. Sob cobertu
ra jornalística, ele foi o primeiro a relatar a Stalin que Hitler estava
planejando a Operação Barbarossa, a invasão da União Soviética em
59
P
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALACIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
junho de 1940, mas Stalin não acreditou. Disfarçado de repórter no
Japão, Sorge informou aos soviéticos que os japoneses não abririam
uma frente oriental com a União Soviética, permitindo, assim, que
Stalin transferisse bens militares para o Leste a fim de combater Hitler.
Sorge foi descoberto pelos japoneses no final de 1941 e enforcado três
anos depois. Em homenagem ao seu serviço à pátria, ele foi declarado
herói da União Soviética em 1964.
A Escola de Frankfurt incluía tanto marxistas quanto freudianos,
o que foi crucial para seu sucesso posterior nos Estados Unidos (e é
difícil imaginar uma combinação mais tóxica de vodu no século XIX).
Como o site marxists.org orgulhosamente coloca:
Em 1931-32, vários psicanalistas do Instituto de Psicanálise de
Frankfurt e outros familiarizados com membros do Institut [für
Sozialforschung] começaram a trabalhar sistematicamente com o
Institut [...]. Unindo-se ao que era predominantemente uma corrente
"materialista-hegeliana" de marxistas, esses psicólogos deram ao
desenvolvimento da teoria marxista uma direção inteiramente nova,
que deixou sua marca na teoria social desde então [...]. Os intelectuais
que fundaram o Instituto de Frankfurt recortaram deliberadamente
um espaço para o desenvolvimento da teoria marxista, dentro da
"academia", independentemente de todos os tipos de partido político
[sic]. O resultado foi um processo no qual o marxismo se fundiu
com a ideologia burguesa. Um processo paralelo ocorreu na França
após a Segunda Guerra Mundial, envolvendo também uma fusão
com as idéias freudianas. Um dos resultados foi, sem dúvida, um
enriquecimento da ideologia burguesa.
Muito obrigado. Até hoje podemos descrever os efeitos sinistros
do Institut através dos prismas da narrativa artística (incluindo lite
ratura, poesia, música e ópera) e da dialética hegeliana-marxista, sem
a síntese ilusória.
De todos eles, Marcuse, nascido em Berlim e lecionando em Colum
bia, Harvard, Brandeis e na Universidade da Califórnia, em San Diego,
foi o que teve maior influência política, devido à sua popularidade
entre os estudantes universitários na década de 1960 (ele foi o outro
lado de Eric Hoffer, o "filósofo-estivador", que teve uma influência
quase tão grande nos jovens conservadores da época). Marcuse surgiu
com o conceito particularmente indecoroso de "tolerância repressiva",
60
ANTÍTESE
uma idéia que guia a esquerda profana desde a publicação de seu
ensaio homônimo em 1965, em A crítica da tolerância pura, de Mar
cuse, Robert Paul Wolff e Barrington Moore Jr. O conceito pode ser
descrito como "tolerância para mim, mas não para você". Mas deixe
Marcuse explicar:
A realização do objetivo da tolerância exige intolerância em relação às
políticas, atitudes e opiniões predominantes e a extensão da tolerância às
políticas, atitudes e opiniões que são proibidas ou suprimidas [...]. Certa
mente, não se pode esperar que um governo promova sua própria subversão,
mas, numa democracia, esse direito é conferido ao povo (isto é, à maioria
do povo). Isso significa que os caminhos pelos quais uma maioria subversiva
pode se desenvolver não devem ser bloqueados, e, se forem bloqueados
pela repressão e doutrinação organizadas, sua reabertura poderá exigir
meios aparentemente não democráticos, incluindo o fim da tolerância em
relação a discursos e encontros de grupos e movimentos que promovam
políticas agressivas, armamento, chauvinismo, discriminação com base
em raça e religião, ou que se oponham à extensão de serviços públicos,
previdência social, assistência médica, etc. [...] A tolerância libertadora,
então, significa intolerância contra movimentos de direita e tolerância em
relação a movimentos de esquerda.
Essa casuística é um embuste em sua forma mais pura. No meio
século desde o ensaio de Marcuse, a "tolerância" assumiu o status de
virtude, embora falsa, um verniz protetor para a esquerda quando ela
está fraca e algo a ser dispensado quando não é mais necessário. É outro
exemplo da minuciosa estratégia da esquerda de usar as instituições do
governo como meio para sua derrubada. Saul Alinsky articulou isso
com precisão como regra nº 4, em seu famoso trabalho Regras para
radicais: "Faça o inimigo viver de acordo com seu próprio livro de re
gras. Você pode matá-los com isso, pois eles não podem obedecer a suas
próprias regras mais do que a igreja cristã pode viver de acordo com
o cristianismo". Ao considerar a fragilidade humana como hipocrisia,
Alinsky e seus colegas “organizadores de comunidades" executaram
um engenhoso golpe de jiu-jítsu contra a cultura maior, fazendo com
que ela hesitasse quando deveria estar se defendendo. E o golpe no
cristianismo (não existe uma "igreja cristã" unificada) também é um
toque característico.
61
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMONIO
Hoje, podemos ver os danos desses sofismas baratos ao nosso redor:
em nossas instituições sociais enfraquecidas, na ascensão do Estado
leviatã e no declínio da educação primária, secundária e universitária.
Mas a destruição sempre foi o fim, não apenas os meios. Como Marcuse
observou em "Reflexões sobre a Revolução Francesa", uma palestra
que ele deu em 1968 sobre os protestos estudantis em Paris: "Pode-se
até falar de uma revolução cultural, no sentido de que o protesto é
direcionado a todo o establishment cultural, incluindo a moralidade
da sociedade existente".
No mesmo ano, em uma palestra intitulada "Sobre a nova esquer
da", ele entrou em mais detalhes:
Estamos diante de uma novidade na história, a saber, a perspectiva ou a
necessidade de mudanças radicais, uma revolução dentro e contra uma
sociedade industrial tecnicamente avançada e altamente desenvolvida.
Essa novidade histórica exige um reexame de um de nossos conceitos
mais estimados. [...] Primeiro, a noção da tomada do poder. Aqui, o anti
go modelo não funcionaria mais. A idéia de que, por exemplo, num país
como os Estados Unidos, sob a liderança de um partido centralizado e
autoritário, grandes massas se concentrarão em Washington, ocuparão o
Pentágono e estabelecerão um novo governo parece ser um retrato pouco
realista e utópico (risos). Veremos que o que temos de imaginar é um tipo
de desintegração gradativa e geral do sistema.
Marcuse, em razão de sua longevidade e residência nos EUA, abordou
diretamente a contracultura do final da década de 1960 e suas palavras
caíram em terreno fértil, brotando como os dentes do dragão semeados
por Cadmo para criar uma raça de superguerreiros, os espartos. Eles
ainda habitam entre nós.
Ainda mais importante, porém, é o papel literário da Escola de
Frankfurt como antagonista do que poderíamos caracterizar como a
heróica cultura ocidental judaico-cristã, formada a partir da civilização
greco-romana, o impulso conservador da Idade Média tomística, do Re
nascimento e do Iluminismo (cuja expressão máxima foi a Constituição
dos Estados Unidos), assim como a alta cultura vitoriana e eduardiana
(talvez o apogeu da civilização ocidental). Essa civilização, ao melhor
estilo literário do herói que busca subconscientemente sua própria
destruição, deu origem à filosofia ressentida do marxismo-leninismo,
62
ANTÍTESE
à devastadora Primeira Guerra Mundial, às várias revoluções socialistas
(algumas, como a russa, bem-sucedida, e outras, como na Baviera, sem
sucesso), à Guerra Fria e ao breve interregno do "fim da história” antes
do ataque muçulmano ao Ocidente, que estava há muito adormecido,
retomado em 11 de setembro de 2001. Evidentemente, essa lista de even
tos históricos mundiais é tão completa quanto uma sinopse, digamos, de
Ulisses, de James Joyce, ou de A montanha mágica, de Thomas Mann.
No entanto, estabelece a estrutura para uma discussão na qual
pretendo demonstrar que, longe de ser uma conseqüência natural de
uma corrente da filosofia política ocidental que culminou no marxis
mo e, pior, no marxismo-leninismo, a filosofia cultural da Escola de
Frankfurt era uma aberração por ser profundamente anti-religiosa e
também anti-humana. Ao substituir a religião por seus próprios rituais
e despejar sua ira assassina na noção de indivíduo, ela se disfarçou de
força libertadora e revolucionária, quando na verdade sua gênese é
tão antiga quanto a batalha no céu.
Considere apenas o número de mortos. Sim, as guerras religiosas
européias, incluindo a Guerra dos Trinta Anos, entre 1618 e 1648, e
a invasão da Irlanda católica por Cromwell em 1649, infligiram uma
perda horrível à população, e não podemos subestimar os danos da
Grande Guerra na confiança cultural da civilização européia. Além
disso, com a conivência alemã, a Primeira Guerra Mundial abriu a
Rússia aos revolucionários comunistas. Mas as guerras do século xx
desencadeadas pelo marxismo-leninismo levaram a mortandade de
guerra a um nível mecanicista, tanto no âmbito doméstico -
a fome
forçada de ucranianos por Stalin, a revolução maoísta na China, os
expurgos stalinistas, o Camboja de Pol Pot, a sociedade repressiva da
Coréia do Norte e o massacre generalizado que se seguiu ao colapso
americano no sudeste da Ásia - quanto internacional, desde a Segunda
Guerra Mundial, passando pela Coréia, Vietnã, Angola e Afeganistão.
Se Satanás precisa de cadáveres, os marxistas-leninistas ficaram mui
tíssimo felizes em fornecê-los.
Além disso, a dissolução da União Soviética, provocada por suas
próprias contradições internas (como diriam os marxistas) abriu o
flanco sul da URSS às forças do extremismo islâmico, em parte uma
63
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
reação à infeliz invasão do Afeganistão por parte dos soviéticos e à
tentativa malfadada de subverter o Irã (após a queda do Xá em 1979)
através do Partido Tudeh, um partido comunista pró-soviético. Osa
ma bin Laden lutou contra os soviéticos no Afeganistão e concluiu
erroneamente que ele e seus "guerreiros santos" haviam derrotado o
Exército Vermelho. Na verdade, a derrota soviética no Afeganistão
pode ser atribuída mais à perda de autoconfiança cultural dos russos
provocada pelo marxismo-leninismo decadente e desacreditado da era
Brejnev do que às perdas infligidas por um bando desorganizado de
mujahidin armados com mísseis Stinger. O exército que pressionara
Hitler de Stalingrado a Berlim não tinha nada para apoiá-lo depois
que os soviéticos esvaziaram a sociedade e a moral russas com sua
filosofia importada. Depois disso, é claro, Bin Laden voltou seus olhos
para os Estados Unidos, vendo a América como outro "cavalo fraco".
Uma ilustração maravilhosa para Fausto, de Eugène Delacroix,
mostra Mefistófeles em vôo alado sobre Wittenberg, uma das várias
Lutherstädte [cidades de Lutero] na Alemanha, em associação aos
eventos da Reforma Protestante. Com uma representação do sagrado
(as torres da igreja) e do profano (o anjo caído, suas asas ainda in
tactas, voando impudentemente nuas acima dos símbolos do inimigo
principal), ele expressa vividamente a batalha em curso entre o bem e
o mal. Ele também une muitas das imagens - imagens inatas, como
argumentei, da narrativa original que todos compartilhamos - sobre as
quais falamos, incluindo o divino, o demoníaco e o satânico, a batalha
no céu, a Queda do homem e a barganha faustiana.
Para Satanás, assim como para Marx, a religião era um impedi
mento ao grande projeto de transformar a humanidade, um conjunto
de indivíduos autônomos e dotados de livre-arbítrio, em uma massa
de escravos encurralados, que confundem segurança com liberdade
e tentam reduzir a dissonância cognitiva ao máximo para funcionar.
A visão marxista de religião passou por uma evolução, a ponto de
alguns defensores da Escola de Frankfurt afirmarem que o marxismo
cultural, na verdade, criou um lugar para a “religião" (ou pelo menos a
transcendência) em sua Weltanschauung, ou "cosmovisão”. Eles "evo
luíram", dizem eles, além do ateísmo oficial do marxismo-leninismo
64
ANTÍTESE
praticado por uma sociedade atrasada como a União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas.
Vale a pena refletir um pouco sobre o uso dessa palavra. O termo
"evolução" está mais intimamente associado a Darwin, dando-lhe
um tom "científico" no que diz respeito aos marxistas, mas sempre
que a palavra é usada pela esquerda, ela assume um significado extra,
quase teleológico: estamos evoluindo em direção a algo, um "Estado
superior". Assim, dizem que os juízes do Supremo Tribunal "cresceram
no cargo" ou "evoluíram" quando mudam da direita para a esquerda
durante o curso de suas vidas. Dizem também que os políticos "evo
luíram" sempre que eles trocam de posição, de algo mais conservador
para algo mais liberal (como no casamento gay). Como Rob Clements
observou no blog The Other Journal (cujo slogan é “uma interseção
de teologia e cultura"):
Em sua fase mais prolífica, das décadas de 1930 a 1950, a [Escola de Frank
furt] consistia, sobretudo, em marxistas dissidentes que acreditavam que a
teoria marxista ortodoxa não explicava adequadamente o desenvolvimento
turbulento das sociedades capitalistas no século XX, particularmente no que
diz respeito à ascensão do fascismo como um movimento da classe traba
lhadora. Isso fez com que muitos desses marxistas dissidentes assumissem
a missão de remodelar o marxismo à luz de condições que o próprio Karl
Marx nunca havia considerado. A escola possui uma genealogia clara,
adotando elementos do materialismo marxista, da filosofia hegeliana, do
idealismo alemão, da psicologia da Gestalt e do messianismo judeu ateísta.
Essa análise sintetizada deu origem a uma tradição intelectual transdisci
plinar e anticapitalista, com temas imanentes (materiais) e transcendentes
(metafísicos ou espirituais).
Em poucas palavras, aqui vemos o problema da teoria e do dogma
não-tradicionais: eles devem mudar constantemente os termos do debate
para acomodar, mesmo com relutância, a realidade, por mais que os
marxistas queiram ignorá-la. T. H. Huxley (a citação foi atribuída a
outros) falou sobre o "assassinato de uma bela teoria por uma gangue
brutal de fatos". A teoria cultural marxista está sempre se acostumando
com esses fatos brutais e distorcendo sua teoria para acomodá-los. Daí
a necessidade de "evolução" como parte de sua escatologia profana.
Chamar "revisão" de "evolução" também dá um aspecto de "ciên
cia" à teoria marxista, algo que ela procura desesperadamente, tendo
65
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
desistido de se autodenominar "ciência econômica" após um século
de fracasso. Tendo cooptado, se não de fato inventado, as "ciências
sociais" (o oxímoro aqui geralmente não é observado), o marxismo
cultural e a Teoria Crítica procuram legitimar sua tentativa de assas
sinato de belos fatos com uma gangue de teoremas brutais, cada um
mais caviloso do que o outro, punhos de ferro em luvas de veludo,
esgares de caveiras sob peles sedutoras.
Algo que "evoluiu" é melhor do que algo que não "evoluiu". O
novo e aperfeiçoado é melhor e mais apto do que o antigo e reduzi
do. Se isso é verdade, pelo menos no âmbito sociopolítico, é bastante
discutível. Retoricamente, o objetivo é estabelecer a inevitável teleologia
do "progressivismo" sempre "avançando" rumo a um futuro brilhante
e próspero e rejeitando os vestígios dos atributos físicos e morais do
passado.
Assim nasce a Teoria Crítica, a marca registrada do ataque "progres
sista" (na realidade, ultrarregressivo) da Escola de Frankfurt à cultura
ocidental e americana - Teoria Crítica, que, em essência, sustenta que
não há princípio da civilização que não deva ser questionado ou atacado
(o slogan "questione a autoridade" se originou na Escola de Frankfurt).
Nossos totens culturais, palavras de ordem e tabus são declarados
completamente arbitrários ou o resultado de uma "conspiração” há
muito tempo mantida, enquanto o feminismo moderno degenerado
culpa o "privilégio" masculino e outras formas de opressão imaginária.
Se as feministas têm alguma queixa, devem reclamar com Deus, não
com os homens, mas como poucas delas acreditam em Deus, é sobre
os homens que elas descarregam sua ira de harpia.
Na sua forma mais pura, ou seja, na sua forma mais malévola, a
Teoria Crítica é a própria essência do satanismo: a rebelião pela rebe
lião contra uma ordem estabelecida por eras e sem promessas maiores
para o futuro do que a destruição.
"Satanismo" é uma palavra forte, mas vital para os propósitos
de nossa discussão. Sem nenhuma síntese hegeliana artificial à nossa
disposição (como não havia para Milton, Goethe ou qualquer outro
narrador de nível que perfurou o véu da escuridão), vemo-nos diante
de um impasse elementar. Se o mito da Queda está correto, ou é uma
66
ANTÍTESE
alucinação coletiva que, de alguma forma, contra todas as probabili
dades, surgiu e perseverou, então só pode haver o bem e o mal, sem
possibilidade de harmonia entre eles.
Além disso, Deus não procura harmonia com Satanás. Não existe
um princípio divino que valha a pena comprometer, nenhum pedido
do lado celestial do conflito para encontrar um consenso com Hades
em questões de fé e moral. Não, todos os pedidos de contemporização
vêm exclusivamente de Satanás. Como diz Antônio em O mercador
de Veneza, de Shakespeare:
Bassânio, observa como o demônio
sabe usar as Escrituras a seu favor.
Uma alma vil produzindo testemunho santo
é como o patife sorridente,
uma bela maçã podre por dentro.
Como é belo o exterior da falsidade!
Belo mesmo. Em toda a literatura, o demônio é freqüentemente re
tratado como sincero, tranqüilizador e sedutor, demorando a revelar sua
face aterrorizante. O embuste é sua especialidade, e o indivíduo que lhe
dá o menor voto de confiança acaba infeliz, e pior. Duvidar da precisão
desses retratos, não importa de onde eles vêm, seja da tradição popular
ou (diria eu) de uma profunda fonte junguiana de memória primordial e
inconsciente coletivo, é duvidar de quase todo o curso da história humana
(embora a Teoria Crítica faça exatamente isso). É acreditar que apenas
nos últimos cento e cinqüenta anos fomos capazes de penetrar o véu de
ilusão da religião e ver a realidade como ela é: vazia.
Isso é niilismo, que muitas vezes se apresenta como sofisticado
"realismo", e eu afirmo que se trata apenas de outra forma de satanis
mo. A negação do eterno torna-se um modo de vida temporal, e, por
extensão, a morte é adotada como um modo de vida. A propósito, é
divertido notar que os praticantes do niilismo são freqüentemente os
mesmos indivíduos
quedenunciam a "negação" em outros aspectos da
vida cotidiana (várias condições psicológicas, “mudanças climáticas"
etc.), assim como aqueles que se descrevem como "pró-escolha” em
relação ao aborto são "antiescolha" em quase todas as outras facetas
da vida política, incluindo saúde, educação e assim por diante.
67
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
No filme Independence Day, o cientista interpretado por Jeff
Goldblum percebe, logo após aparecerem espaçonaves alienígenas nas
grandes cidades do mundo, que suas intenções estão longe de serem
boas; que, na verdade, os alienígenas estão coordenando um ataque
maciço usando a tecnologia terrestre. "Eles estão usando nossos pró
prios satélites contra nós", explica ele, fazendo um desenho apressado
para ilustrar seu argumento. O mesmo acontece com Satanás (ou as
forças satânicas, ou as leis de ferro da história, ou la forza del destino,
como você quiser chamar): ele usa nossas melhores qualidades e nobres
intenções contra nós, pervertendo-as para seus próprios fins, a fim de
realizar sua única missão, que é a destruição moral da humanidade.
A famosa aposta de Pascal - Qual é a desvantagem de apostar na
existência de Deus? -
entra em jogo aqui em sua forma mais básica.
Suponhamos que não exista nem Deus nem Satanás, nem céu nem
inferno, que a tradição oral, religiosa e literária humana seja uma
longa e primitiva compreensão errônea da realidade, que tenhamos
surgido acidentalmente, ex nihilo, e para o eterno nihil voltaremos.
(Observe a crença implícita na eternidade, não importa qual lado do
argumento você adote). Mas por que, então, qualquer indivíduo que se
preze desejaria se associar ao lado sombrio da proposição? O "nada"
é mais atraente do que a "existência"? O “nada” é um objetivo a ser
buscado com devoção, um prêmio a ser conquistado com afinco e
alegria? Novamente, voltamos às histórias.
Além de alguns filmes niilistas do final da década de 1960 e início
da década de 1970, poucos são os filmes que apresentam um herói
que não se importa com a vida ou a morte e que não luta contra a
morte com toda a sua força para vencer a batalha em particular que
o vemos travando durante o curso de sua história. (Até os heróis do
cinema noir fazem isso, embora geralmente percam). Um que vem à
mente pode (talvez) ser uma exceção: Viver e morrer em Los Angeles,
escrito pelo Ex-agente do Serviço Secreto Gerald Petievich e dirigido por
William Friedkin. O herói do filme, Chance (William Petersen), que se
comporta de maneira bastante irresponsável na vida (na primeira vez
que o vemos, ele está fazendo bungee jumping numa ponte altíssima),
inadvertidamente leva seu parceiro à morte pelas mãos do falsificador
Rick Masters (Willem Dafoe) e promete pegar Masters custe o que
68
ANTITESE
custar: o que significa que ele acaba matando um agente federal. Perto
do final do filme, num tiroteio dentro de um vestiário, Chance é morto
com um tiro de escopeta no rosto, sem cumprir a missão de sua vida.
Ou talvez não: sua obsessão de pegar Masters é passada a seu novo
parceiro, um sujeito honesto, que mata o vilão em um confronto final
eletrizante, ficando com a informante e amante de Chance. "Agora você
trabalha para mim”, ele lhe informa friamente. A vitória temporária
foi alcançada e o ciclo continua.
Os progressistas gostam de usar as frases "o arco da história" e
"o lado errado da história". Martin Luther King Jr., citando o aboli
cionista Theodore Parker, formulou a idéia da seguinte maneira: "O
arco do universo moral é longo, mas se curva para a justiça”. Mas
quando paramos para pensar nisso, chegamos à conclusão de que se
trata só de uma afirmação positiva, sem nenhuma evidência histórica
específica de respaldo. Esse uso vazio de slogans surge naturalmente da
concepção hegeliana-marxista da História com H maiúsculo. A única
teleologia que eles permitem está relacionada a pronunciamentos abs
tratos, ostensivamente “morais", de um horizonte quimérico, sempre
inalcançável, de "justiça" perfeita. O universo moral nunca admitirá
melhoria no curso de nossa vida, ou mesmo em qualquer outra vida,
insistem eles. É uma busca faustiana, ao mesmo tempo admirável e vã.
Nenhum meio será suficiente para alcançar o fim.
Que evidência há de que existe um arco na história e que ele se curva
em alguma direção específica? Ao que tudo indica, a esquerda profana
seria a última a afirmar um padrão tão grandioso, dada sua descrença
em Deus. De onde vem esse "arco"? Quem o criou? De onde vem seu
impulso moral em direção à "justiça”? O que é “justiça”, afinal, e
quem decide isso? E se a palavra “justiça” vier acompanhada de um
adjetivo de pensamento convencional (como em "justiça ambiental”),
a única "justiça" provavelmente será a “justiça” da vingança. A pala
vra "justiça", nas mãos da esquerda, passou a significar praticamente
qualquer objetivo político que eles desejam.
Nada disso importa, no entanto, quando o objetivo da afirmação
não é apresentar um argumento, mas conter a oposição por meio do
emprego oportuno de jargões incontestáveis e promover uma agenda
69
MICHAEL WALSH
ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMONIO
política que não tem nenhuma relação com os termos empregados para
seu avanço. Aliás, metáforas marciais, não frases de efeito moralistas,
são a chave para entender a esquerda moderna e seu dogma "científico"
da Teoria Crítica: a guerra deles é uma guerra hobbesiana de todos
contra todos (bellum omnum contra omnes), da mão de todo homem
contra todo homem. Como Orwell, que sabia uma coisa ou outra sobre
o fascismo intelectual da esquerda, escreveu em 1984: “Guerra é paz,
liberdade é escravidão, ignorância é força". Esses três aforismos são
os slogans oficiais do Ministério da Verdade de 1984, e a verdade é o
que o Ministério diz que é verdade. A verdade é maleável e fungível,
de acordo com o momento. O demônio dirá o que tem a dizer e citará
as Escrituras como lhe aprouver para alcançar o único objetivo que
lhe resta: arruinar o homem e enviá-lo ao inferno.
70
CAPÍTULO IV
O sono da razão pura produz monstros
To final do século XVIII, o pintor espanhol Francisco Goya
Nproduziu uma série de gravuras chamadas "Los Caprichos",
sendo a mais conhecida a intitulada El sueño de la razón
produce monstruos. A era do Iluminismo ficava para trás enquanto o
romantismo assumia o controle, Kant publicava a sua Crítica da razão
pura, e a publicação do Fausto de Goethe tinha menos de dez anos. Por
volta da terceira década do século XIX, os monstros românticos haviam
rompido o aço das faculdades racionais do Iluminismo, desencadeadas
primeiramente por Goethe com Os sofrimentos do jovem Werther (1774),
Weber em Der Freischütz (1821), Berlioz com a Symphonie Fantastique
(1830), e, pouco tempo depois, na música de Liszt e Wagner.
Em algumas cópias, Goya ampliou o título das gravuras para
"A fantasia abandonada pela razão produz monstros impossíveis: uni
da a ela, torna-se a mãe das artes e a origem de suas maravilhas". O
título é, ao mesmo tempo, uma afirmativa e uma advertência: o espírito
romântico, num tipo de ação-reação newtoniana, impulsionaria agora
os homens a investigar as profundezas de seus pensamentos e corações,
a ir mais a fundo do que a ciência do Iluminismo (ou a ciência de hoje,
aliás) esperaria chegar. Entretanto, o que poderia ser revelado não
tinha beleza garantida, e, na verdade, era quase certo de que não teria.
71
MICHAEL WALSH
ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
O romantismo deu origem a muita arte grandiosa, mas, conforme
Peter Viereck argumenta em Metapolitics: The Roots of the Nazi Mind
(1941), deu também origem a Hitler, por meio de Friedrich Jahn, Jo
ahann Fichte, Hegel e Wagner, cujas produções inspiraram o título de
Viereck. "Como devemos classificar as idéias de Wagner e o desenvol
vimento psicológico dele?", indaga Viereck. "Nessa classificação, seus
biógrafos e críticos de todas as escolas são unânimes pela primeira vez.
Seu inimigo mais ferrenho, Nordau, o chama de ‘o último cogumelo
do estrume do romantismo'. Seu admirador mais competente, Thomas
Mann, acha que o conceito de romântico ainda é o melhor rótulo para
ele"". Viereck prossegue: "Sendo bastante correto, o próprio Wagner
enfatiza sua afinidade com a escola romântica alemã pela terminologia
que emprega, pelos temas de suas óperas, pelas referências literárias e
pelos postulados básicos. Deve-se observar que ele enaltece os primeiros
românticos, por 'provocarem o espírito Volk [do povo, popular] na
Guerra da Libertação".
"O espírito Volk na Guerra da Libertação” são palavras que, ligeira
mente atualizadas, se aplicam aos dias de hoje. Agora, entretanto, elas
são cumpridas com a força total de um partido político e a devoção de
muitos milhões de pessoas que compraram a idéia da Teoria Crítica,
especialmente quando aplicada à lei uma nova atrocidade chamada
Teoria Crítica do Direito.
Em um texto sobre os acontecimentos em Ferguson, no Missouri, que
geraram protestos e tumultos triviais por toda a nação, no outono de
2014, o estudioso e historiador militar Victor Davis Hanson escreveu:
Ferguson ilustrou muitos dos problemas do liberalismo pós-moderno:
a insistência antiempírica de que os fatos envolvendo o extermínio de
Michael Brown não importavam muito; a Teoria Crítica do Direito, que
ignorava o papel consagrado pelo tempo de um grande júri imparcial; a
tolerância da ilegalidade como uma espécie aceitável de protesto contra o
sistema, e a mídia liberal incitando uma crise no entendimento de que as
ramificações da violência estariam a uma distância segura de suas próprias
escolas, bairros e restaurantes.
A Teoria Crítica, aplicada à lei, é pouco mais do que a anarquia e a
lei das ruas. Assim como tudo o que ela toca, é a negação daquilo que
tem em vista examinar. Ninguém mais finge que seja algo diferente.
72
O SONO DA RAZÃO PURA PRODUZ MONSTROS
"Sentença primeiro, veredito depois" não é mais considerado uma
perversão do ideal da justiça cega, mas, na verdade, é entendido como
a justiça em si. De fato, é uma forma "mais elevada" de justiça, que
pretende corrigir uma extensa ladainha de erros passados: a justiça
como recompensa, uma pena capital que não só é merecida como
também é acolhida pela vítima.
Tal é o lado sombrio do impulso romântico, aquela inclinação
para corrigir os erros (sejam percebidos ou reais), golpear o inimigo
odiado e, se necessário (se possível?), morrer na tentativa. Eis por
que um Byron quixotesco escolheu morrer lutando contra os turcos
otomanos na Grécia. Os últimos versos de seu poema "22 de janeiro,
Missolonghi", escrito no dia de seu trigésimo-sexto e último aniver
sário, são reveladores:
Se lamentas tua Juventude, por que viver?
A terra da Morte honrada
É aqui: prossegue para o campo
E entrega teu alento!
Procura, mais buscando do que encontrando,
um túmulo de soldado, o melhor que puderes;
Então, olha em volta e escolhe o chão
em que hás de repousar.
Tal é a visão que os românticos tinham de si mesmos. Os acadêmi
cos e os teóricos da Escola de Frankfurt podem não ter tido grande
semelhança com Lorde Byron, mas sentiam como Lorde Byron em sua
noção de missão. Para eles, o mundo ocidental, que lhes outorgara suas
linguagens complexas, poéticas e científicas como direito de nascença,
era o equivalente moral do império otomano. Ele representava tudo
a que se opunham. Ele era opressor, dogmático, agressivo, arbitrário,
injusto e tinha de ser destruído por qualquer meio necessário, para
usar uma expressão favorita atual da esquerda. Não havia tempo, nem
sentido para a "moralidade". Para corrigir os erros monstruosos do
Ocidente, sua razão tem de estar adormecida. Os monstros (do Id!)
precisam ser libertados.
Apenas uma combinação profana de artista com sádico faria isso.
Conforme Viereck observa em Metapolitics: "A ferida de Hitler como
73
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
artista rejeitado jamais cicatrizou. [...] O militar disciplinado e o artista
boêmio coexistiam em Hitler. A mistura acentuou sua brutalidade sá
dica. E acentuou também o ar de mistério necessário ao seu carisma”.
A Escola de Frankfurt, alguns deles também artistas frustrados, cer
tamente conhecia a aparência dos monstros. Em casa, na Alemanha, um
dos maiores monstros da história, Hitler, caminhava de modo negligente
na direção deles, decidido a ter sua própria forma de recompensa. Par
cialmente disfarçado por suas próprias obsessões anticapitalistas, duas
correntes de pensamento socialista, nacional e internacional, estavam
prestes a colidir. Numa extensa digressão sobre o anti-semitismo de
Wagner, na introdução à edição de 2003 de seu livro, agora com novo
título Metapolitics: From Wagner and the German Romantics to Hitler,
Viereck observa: "No final, Wagner conservou uma espécie de idealismo
socialista, e ele era em parte um anti-semita anticapitalista esquerdista”.
(O anti-semitismo era obviamente um fator decisivo para a Escola de
Frankfurt e suas antenas logo se ligaram). “Já na edição de 1941 citei
a afirmativa de Hitler de que qualquer um que deseje compreender a
Alemanha nacional-socialista precisa conhecer Wagner"".
Stalin também foi capturado pelas ilusões de Satanás ao forjar o
pacto nazi-soviético de curta duração. Ele não podia acreditar que um
homem que admirava, no caso, Hitler, fosse capaz de tamanha traição
como a Operação Barbarossa. “Durante os primeiros dias, Stalin re
cusou-se a defender a Rússia contra os invasores, acreditando que, de
alguma forma, tratava-se de uma provocação arquitetada pelos ingleses
para destruir seu companheirismo com Hitler, com quem ele dividira
a Polônia", escreve Viereck. "Apenas recentemente Stalin enviara a
Hitler, via Ribbentrop, a mensagem reconfortante de que ele, também,
estava, aos poucos, expurgando o governo de judeus. E, por intermédio
de Molotov, em Berlim, Stalin tinha prometido a Hitler juntar-se ao
eixo Roma-Berlim contra o Ocidente, em troca de concessões territo
riais nos Bálcãs". O inferno não conhece fúria como a de um amante
desprezado, e foi terrível a vingança russa contra seus antigos aliados,
com a exceção de "nenhum inimigo à esquerda!".
Evidentemente, até os dias de hoje, os "antifascistas prematuros"
da esquerda recusam-se a admitir a familiaridade de seus ancestrais
74
O SONO DA RAZÃO PURA PRODUZ MONSTROS
com os nacionais-socialistas. Eles têm uma definição escorregadia,
bem conveniente, em que "socialismo" significa o que quer que eles
desejem, assim como as palavras funcionaram para Humpty Dumpty
em Alice através do espelho:
"Quando uso uma palavra", disse Humpty Dumpty, num tom bem des
denhoso, "ela significa exatamente o que decido que signifique, nem mais,
nem menos". "A questão é", disse Alice, "se é possível fazer as palavras
significarem tantas coisas diferentes". "A questão é", disse Humpty Dumpty,
"quem é que manda: isso é tudo".
Um jeito de considerar, de forma correta, os teóricos críticos da
Escola de Frankfurt é vê-los como os bastardos românticos de Rous
seau, que herdaram seu sentido de missão do século XIX. Eram, em sua
essência, homens do fin-de-siècle, mas que, ao mesmo tempo, ficaram
obcecados pelo "cientificismo" artificial da nova era. Por que o coração
e a mente dos homens não estavam sujeitos às mesmas leis "científicas"
que governavam o resto do mundo? Marx não tinha demonstrado que
as próprias "leis" da história têm de ser científicas? Freud não tinha
provado que a mente humana podia ser "curada" da doença mental,
da mesma forma como as doenças físicas podem ser curadas com a
aplicação da medicação adequada em tempo hábil? Remova o código
moral antiquado do homem e o animal é todo seu.
Seus seguidores adotaram esses princípios equivocados e seguiram
em frente. Qual era, na verdade, a diferença entre homens e macacos?
Afinal, não compartilhamos a grande maioria dos genes? Quem pode
ria provar qualquer diferença científica entre “raças", um constructo
social? Além disso, quais eram, de verdade, as diferenças entre homens
e mulheres? Quem poderia afirmar, exceto por detalhes maliciosos, que
havia alguma? Contra a evidência de seus sentidos, eles insistiram no
princípio igualitário, personificado por Adorno no método de Scho
enberg, de compor com doze tons. Era um sistema que requeria que
todas as doze notas da escala cromática soassem isoladamente numa
seqüência chamada "fileira de tons" antes que qualquer uma delas fosse
repetida, atribuindo assim importância igual a todas as notas. Para os
teóricos cíticos, o dodecafonismo (também conhecido como "sistema
dos doze tons") era a metáfora perfeita para o mundo igualitário que
eles queriam criar.
75
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
Só que não era, é claro. Shakespeare sabia mais sobre ciência do
que Adorno e uma pessoa racional consegue detectar de imediato o
fracasso da argumentação de Adorno. A maior diferença no universo
não é a distância entre a Terra e a estrela mais distante, ou entre 96%
(o fundo genético comum entre chimpanzés e humanos) e 100%, mas
entre 0,00000000000001% e 0%. É a diferença entre nada e algo,
entre a escuridão infinita e um único ponto de luz. É a diferença entre
o vazio e o Gênesis, e até um ateu convicto tem de acreditar que o
universo começou em algum lugar, ou então admitir que é atemporal.
É a diferença entre o ateísmo e Deus.
Então estamos de volta a essa palavra, “realmente", e ao conceito de
ilusão. A razão pode adormecer com a mesma profundidade quando está
sobrecarregada, exausta, olhando fixo para as palavras e os números
de uma página até que as linhas começam a se embaralhar e surgem
alucinações. Fausto era uma criatura de razão pura, e ainda assim não
foi suficiente. Os teóricos críticos pensavam ser criaturas de razão, e,
ainda assim, se entregavam a um bacanal de destruição cultural. Eles
puseram tanto a filosofia quanto as artes no chão, despiram-nas de
todo o significado, distorceram a história para adaptá-la aos desvarios
de um obsessivo pelo século XIX no British Museum, ou seja, uma au
têntica criança de sua época, um homem sem utilidade social alguma,
um aproveitador, um sanguessuga, parasita, um estranho numa terra
estranha que ele não poderia ou não se daria o trabalho de entender,
a não ser de forma superficial. Um homem cujas teorias econômicas
eram tão fora da curva que eram ridículas, e, ainda assim, Marx foi e
continua sendo admirado e copiado porque ele parece sério.
Para a esquerda, qualquer idéia "revolucionária" pode ser cogitada
porque, afinal, não há conseqüências para essa cogitação. É como a
mosca convidando a aranha para a sala de visita, com o chá fervendo no
bule. O que pode acontecer de pior? Criados num país no auge de sua
influência, poder e riqueza internacional, os esquerdistas não poderiam
conceber nenhuma diminuição (mesmo a “mudança fundamental” que
reivindicam) que pudesse afetar seu padrão de vida pessoal, ou qualquer
coisa fora dele (tudo dentro do Padrão de Vida; nada fora do Padrão
de Vida). Nada poderia perturbar sua longa marcha pelas instituições
76
O SONO DA RAZÃO PURA PRODUZ MONSTROS
ou afetar fundos de pensão obtidos do cadáver coberto de moscas do
estado social que estavam, mesmo inconscientemente, dilacerando.
Surge, então, a pergunta: ao avaliarmos os resultados da ascendência
filosófica esquerdista desde 1964, será que eles sabiam o que estavam
fazendo? Nenhum animal, a não ser o bicho homem, ataca a própria
região onde vive. Nenhum destrói deliberadamente o próprio ninho
ou convida predadores para sua casa. De fato, existe um impulso
humano ao suicídio. (Qualquer outro animal se mata intencional
mente?). As pessoas se suicidam por perdas financeiras, por amor, por
frustração ou desespero, depois da derrota numa batalha. No entanto,
pautar-se deliberadamente por um programa que só pode resultar em
autodestruição em massa é algo relativamente novo. Não me refiro
ao suicídio em massa dos judeus em Massada, em 74 a.C., quando os
romanos estavam prestes a derrubar as muralhas de sua fortaleza, ou
os integrantes desesperados da Sétima Cavalaria do General Custer
que, ao se verem cercados e bem conscientes da sina inenarrável que
teriam de encarar nas mãos, sob os tacapes e as facas dos índios, se
suicidaram em vez de se tornarem vítimas dos guerreiros enfurecidos
das tribos Sioux, Cheyenne e Arapaho. Essas mortes foram nobres e
compreensíveis, como um último gesto de resistência diante de um
inimigo implacável e cruel. Melhor morrer pela própria mão do que
como um cão nas mãos de seu inimigo mortal.
No entanto, quando a razão adormece, os monstros aparecem,
mesmo quando ela não sabe que cochilou. Em nossos momentos mais
sombrios, os morcegos pousam nos nossos ombros e o corvo bate à
porta, enquanto meditamos sobre amores perdidos. Instintivamente,
Edgard Allan Poe acertou, introduzindo um narrador que pondera,
como Fausto, "[...] quando eu lia, lento e triste, vagos curiosos tomos
de ciências ancestrais". Compare a situação dele com a de Fausto,
reclamando de sua ignorância, apesar de todo o seu saber:
Da steh ich nun, ich armer Tor!
Und bin so Klug als wie zuvor...
[Agora aqui estou, que tolo sou!
Tão inteligente quanto antes...]
77
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
Fausto, esgotado, em busca de respostas que só os céus proporcio
nam, torna-se presa fácil do inferno. Mefistófeles oferece-lhe a liberdade
do claustro de seu gabinete particular e mostra-lhe um mundo que ele
nunca sonhou existir, a verdadeira árvore do conhecimento. Esse mundo
prometia amor, prazer sexual e o fruto proibido, embora terminasse
com as mortes de Margarida, o irmão dela, a mãe e seu bebê, por obra
de Fausto. Da mesma forma, o mundo moderno proposto pela Teoria
Crítica prometia o céu, mas trazia apenas o inferno para milhões de
pessoas, vítimas de ambas as correntes do socialismo totalitário, o
nazismo e o comunismo, e que continuam a sofrer de alguma forma
até os dias de hoje.
Desde a queda da União Soviética, uma grande comunidade russa
encontrou acolhida nos Estados Unidos. Nela, quase todo homem e
mulher nada desejavam da visão dos socialistas para a América, pois
haviam justamente fugido dela. Tinham visto esse filme antes e sabiam
como terminava, de uma forma que a maioria dos americanos não
consegue avaliar. Eles tinham sido assaltados tanto pela bela teoria
quanto pela gangue brutal dos fatos, e preferiram lidar com os fatos,
obrigado. Os americanos, até então um povo empírico, fundamentado
em fatos, foram expostos, nas décadas recentes, ao canto da sereia da
teoria européia, com suas calibragens "científicas", nuances de inter
pretação e projeções confiantes. O fato de que quase nada daquilo
que esses teóricos dizem jamais se concretiza está, por enquanto, fora
de questão. As elites acadêmicas e o governo, acompanhados de seus
confiáveis estenógrafos na imprensa, já se pronunciaram.
Entretanto, um registro implacável do fracasso começa a dar sinal.
O que a princípio parecia impressionante gráficos! quadros!
torna-se cômico e, logo a seguir, digno de chacota. Por fim, o povo
se dá conta de estar sendo manipulado. Percebe que todo o sistema
de "porta-giratória" do mundo acadêmico, do governo e da mídia –
reunidos mediante milhares de laços incestuosos, somados aos seus
desdobramentos, como os think tanks [catalisadores de idéias] de
esquerda e as ONGs que canalizam centenas de milhares de dólares
para o "aquecimento global" e outras causas questionáveis - é um
úni e gigantesco esquema fraudulento financiado pelos pagadores de
78
O SONO DA RAZÃO PURA PRODUZ MONSTROS
impostos, destinado a enriquecer o "clero" (pessoas cultas ou letradas
consideradas como grupo ou classe social) e empobrecer o proletariado.
A verdade surgirá: o povo está sendo governado por uma organização
criminosa fantasiada de partido político.
Em sua raiz, e assim como em qualquer organização criminosa, o
objetivo primordial da Escola de Frankfurt, seus acólitos e adeptos de
sua Teoria Crítica, por mais que seja camuflado pela tinta do altruísmo,
da ideologia e por fantasias filosóficas, era o de conquistar e manter o
poder a fim de acumular riqueza. Ninguém que tenha vivido ou passado
algum tempo na antiga União Soviética deixou de perceber esse fato
notório sobre aquele país. A nomenklatura dirigia limusines pelas ruas
de tráfego escasso de Moscou, veraneava em suas dachas, patrocinava
beryozkas [lojas de varejo de produtos refinados] estatais, onde usa
vam valuta [moeda estrangeira] para adquirir itens de luxo ocidentais,
indisponíveis nas lojas comuns onde os proletários compravam. Todos
os demais roubavam caviar das cozinhas, vendiam ilegalmente pelas
ruas cigarros trazidos na mala dos carros, ou simplesmente se vendiam.
No final do período soviético, a Rússia era um país de uns poucos
abastados, todos ligados politicamente, e as massas remanescentes.
Da mesma forma, a base do Partido Democrata consiste, numa das
pontas do espectro, de ricos bem conectados e muitas vezes obscena
mente endinheirados, que se aproveitam de suas relações pessoais e
de negócios com o governo e, na outra ponta, dos muito pobres, que
dependem desse mesmo governo.
Mas aí, aos olhos da esquerda, uma nação de cidadãos livres, iguais
perante a lei e não necessariamente iguais em relação a qualquer outra
coisa a não ser a oportunidade, não parece muito com a América que
a "transformação fundamental" pretende produzir. Pela sua ótica,
eles são patriotas, apenas não patriotas "americanos". São patriotas
da América do futuro. O país que eles esperam conceber ainda será
chamado de "América", só não será a América.
É o que acontece num país criado pelo Iluminismo quando a razão
adormece. O pessoal da Escola de Frankfurt fingiu que estava aplicando
o raciocínio germânico típico a uma porção de desafios: a destruição da
música tonal, no caso de Adorno e Schoenberg; a destruição da família,
79
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
no caso de Gramsci e Lukács; a destruição da moralidade convencional,
no caso de Marcuse e Reich. No entanto, eles são mais intelectuais do
que Fausto depois de seu trato com Mefistófeles, embora a barganha
deles em particular fosse com outro demônio. Eles detinham a ilusão
da razão, com certeza; ainda assim, em nenhum outro país da Terra
essa ilusão causou tanto prejuízo quanto na Alemanha -
o país que
deu ao mundo Marx e Hitler. O fato de um país de filósofos de peso,
cientistas brilhantes, poetas românticos e compositores monumentais
produzir tal monstruosidade não deve ser uma grande surpresa.
A mistura sádica está no sangue. Como Fausto mostra, o problema
da realização não é o domínio, é a monotonia demoníaca que sucede
ao domínio.
Em termos simbólicos, Wagner desestabilizou a tonalidade con
vencional com o hoje famoso "acorde de Tristão" na abertura de sua
ópera Tristão e Isolda. Ele anuncia, no segundo compasso, não só o
cerne emocional da obra como também a desintegração da cultura
musical européia que logo se seguiria na esteira da estréia da ópera
em 1865. As quatro notas do acorde (Fá-Si-Ré#-Sol#, uma 4ª perfeita
sobre um trítono) aparecem por toda a história da música, de Machaut
e Gesualdo a Mozart, Beethoven e Chopin, embora a função harmô
nica do acorde difira amplamente. No entanto, o prelúdio de Tristão
fragmentou as expectativas harmônicas ao longo dos cromatismos
flutuantes da linha de abertura, estabelecendo o clima de desejo sexual
e frustração sexual que, até hoje, desarma platéias durante o notável
dueto romântico "Liebesnacht" no segundo ato (coito interrompido,
na música), apenas para ser eroticamente resolvido pela morte no "Lie
bestod" final, quando o acorde finalmente se estabiliza em Si maior,
numa retrospectiva não muito longe de onde a ópera começou, mas a
um mundo de distância.
Depois de tamanha maestria, mais o quê? Os compositores euro
peus que sucederam Wagner tomaram diversas direções, mas todos os
caminhos levaram de volta à anarquia implícita no acorde de Tristão,
com seu trítono harmonicamente instável, o "intervalo do demônio",
no baixo. Debussy, tentando rejeitar Wagner, atirou-se diretamente
em seus braços, com Pelléas et Mélinsande; Schoenberg, afastando-se
80
O SONO DA RAZÃO PURA PRODUZ MONSTROS
da tonalidade o mais rápido possível, escreveu Verklärte Nacht, ser
vindo-se não só da linguagem wagneriana, mas de uma das palavras e
conceitos preferidos do compositor, Verklärung [transfiguração]. Um
dos primeiros poemas tonais de Richard Strauss, Tod und Verklärung
[Morte e Transfiguração] não poderia ser mais wagneriano.
Em termos sinfônicos, Anton Bruckner redirecionou a magnífica
orquestra de Wagner para trás, na direção do explicitamente sagrado,
erguendo gigantescas "catedrais de som com suas sinfonias, e dedi
""
cando sua derradeira e inacabada Nona Sinfonia a Deus. Talvez não
exista um momento de triunfo espiritual maior na música sinfônica do
que os compassos de encerramento da Oitava Sinfonia de Bruckner,
quando a grandiosa orquestra do compositor dispersa todas as dúvidas
e nuvens de ilusão numa gigantesca fanfarra de metais que proclama
a unidade temática essencial da obra: a espada vitoriosa flamejante de
São Miguel, na música.
No romance Doutor Fausto, Thomas Mann vinculou, de modo ex
plícito, o sistema de doze tons à inspiração demoníaca do compositor
Leverkühn, fruto de uma infecção sifilítica contraída de uma prostituta.
O grande romancista sentiu que havia algo de profano em relação ao
igualitarismo do método, que, parecendo ser um produto da razão
pura, era monstruoso. Schoenberg tinha feito uma progressão musical
cautelosa do romantismo para a atonalidade (sem nota central fixa,
inevitável depois de Tristão), via Pierrot Lunaire, até a dodecafonia
declarada, criando uma música ainda mais "racional" que se tornou
gradualmente mais feia e desagradável. O sistema de raciocínio che
gara para desbancar o propósito da música, ou melhor, o propósito
da música tinha passado a servir ao sistema.
Não é surpresa alguma que Mann tenha sentido necessidade de
abordar a questão. Um grande traço musical wagneriano percorre sua
obra, desde os contos, dentre eles "Tristão” e “O sangue dos Wälsungs",
até o uso de leitmotivs de estilo wagneriano em A montanha mágica.
A montanha mágica, que se desenrola num sanatório para tubercu
losos na Suíça, foi concebido por volta da época da Primeira Guerra
Mundial e publicado em 1924. É um romance de idéias, mas também
sobre doença. (Doutor Fausto também é sobre doença, dessa vez
81
MICHAEL WALSH
ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
venérea, a maldição do Ewig-Weibliche, ou do eterno-feminino).
Castorp, o louco sagrado do romance, chega a Davos pretendendo
ali ficar por sete semanas mágicas. Em vez disso, ele fica por sete anos
encantados e paralisantes. Dentre as composições de Leverkühn, estão
Apocalipse e sua obra-prima, As lamentações do Doutor Fausto. No
afã de tocá-la pela primeira vez ao piano para alguns amigos seletos,
Leverkühn teve um ataque de loucura.
Em síntese, as obras de Mann abarcam todos os elementos proe
minentes e os acontecimentos da história da Europa central, desde o
Kaiser até o berço do pós-guerra alemão, muito pouco escapando à
sua atenção. Os membros da Escola de Frankfurt talvez tenham pen
sado que eram modernistas, indo além da cultura, mas, de fato, eram
pouco mais do que perfeitos wagnerianos, com sua razão encoberta
pelas ilusões de Klingsor. “Kinder, schafft Neues!” [“Crianças, façam
algo novo!"], escreveu Wagner, numa carta de 1852 para Franz Liszt
(dezenove meses mais velho do que ele e que ainda não era seu sogro). O
fato de que não podiam fazê-lo refere-se ao trato faustiano que tinham
realizado: Tânatos sem Eros, morte sem vida, um mundo sem amor e
nada de novo para mostrar para suas obras nas grutas de Nibelheim.
82
CAPÍTULO V
A descida ao inferno
To Credo dos Apóstolos, que data de cerca de 700 d.C., há
N uma passagem surpreendente:
Jesus Cristo [...] padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e
sepultado; desceu aos infernos. Ressuscitou ao terceiro dia; subiu ao céu.
Jesum Christum [...] passus sub Pontio Pilato, crucifixus, mortuus, et sepul
tus; descendit ad inferna; tertia die resurrexit a mortuis; ascendit ad coelos.
O quê?
A frase "desceu ao inferno" se tornou tão controversa dentro do
cristianismo que agora muitas vezes é retirada da oração. Foi interpre
tada como significando que Cristo não desceu literalmente ao inferno
no sábado após a crucificação, isto é, à morada de Satanás, mas antes
habitou entre os mortos, privados da Luz, para testemunhar as boas
novas da ressurreição iminente. Agostinho afirmou que Cristo foi re
almente ao inferno, mas se mostrou perplexo com as implicações de
sua crença; Tomás de Aquino escreveu que Cristo visitou o purgatório
(as almas confinadas ali seriam eventualmente salvas) e o inferno em
si, para envergonhar os incrédulos (o que parece uma volta de honra
não muito típica de Cristo).
83
MICHAEL WALSH
ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMONIO
Na história cultural mais recente, temos um paralelo na obra de
arte mais influente do século XIX: O anel do nibelungo, de Wagner,
com a descida do próprio deus principal ao inferno, ou, neste caso,
Nibelheim, o reino dos anões. Wotan deve ir até lá para roubar o anel
mágico e o resto do tesouro que o anão malvado, Alberich, formou
com o ouro roubado do Reno. (Isso ocorre no prólogo da tetralogia,
Das Rheingold, ou "O ouro do Reno").
Em O anel do nibelungo - -que emprega a saga nórdica como ale
-
goria semicristã; no final de sua vida, Wagner abraçou explicitamente
o cristianismo em Parsifal e parece que ele estava anunciando uma
ópera sobre o próprio Cristo quando morreu em Veneza, em 1883—,
Wotan provoca sua própria crise divina, primeiro por seu descarado
roubo do ouro do Reno e depois por sua concupiscência. Como os
deuses priápicos dos mitos grego e romano, ele se meteu em problemas
ao gerar, como Wälsung, os gêmeos, Siegmund e Sieglinde. Quando,
em Die Walküre [A Valquíria], a segunda ópera do ciclo, Siegmund
chega, numa noite escura e tempestuosa, na casa de Sieglinde e seu
marido brutal, Hunding, os irmãos (que foram separados ao nascer) se
apaixonam na hora e entram num relacionamento incestuoso, que gera
o herói Siegfried. E é Siegfried, o inocente, que deve expiar o pecado
original de Wotan. Como Cristo, ele deve restaurar a ordem natural, um
projeto que é interrompido quando ele morre nas mãos do traiçoeiro
Hagen. Assim, a Walküre, a Valquíria, Brunilde, e as três donzelas do
Reno ficam com a responsabilidade de cumprir a missão de Siegfried:
destruir Valhalla e limpar o mundo com as águas curativas do Reno.
Mas Cristo é um herói maior do que Siegfried e um Deus maior do
que Wotan. Além de enfrentar a mais horrível e agonizante das mortes,
ele se aventura no covil da própria morte e (ao contrário de Wotan)
a destrói. A erradicação da morte pode demorar um pouco (daqui à
eternidade), mas já ocorreu: imagina a consternação dos demônios
ao observar o inimigo principal adentrar seu próprio reino e matar a
própria morte. "Ele disse-lhes: Eu via Satanás cair do céu como um
raio", diz Jesus aos discípulos. "Eis que vos dei poder de caminhar
impunemente sobre serpentes e escorpiões, e de vencer toda a força
do inimigo" (Lc 10, 18-19).
84
A DESCIDA AO INFERNO
Mas a narrativa original não se resume a isso, incluindo também a
figura da Mulher vestida de Sol, esmagando a serpente sob seus pés.
Não é para Cristo derrotar Satanás. Seu trabalho é matar a prole de
Satanás, Pecado e Morte, e resgatar a humanidade do flagelo desenca
deado antes mesmo da Queda. Essa tarefa é conferida a uma mulher,
a Mulher: Maria, a Mãe de Cristo.
Curiosamente, as duas pinturas famosas de Blake sobre esse assunto,
ambas baseadas no Apocalipse, mostram não a figura familiar de Ma
ria esmagando a serpente, mas o Grande Dragão Vermelho, Satanás,
atacando a Virgem grávida pouco antes de dar à luz o Salvador. Essa
é a Mulher em seu momento mais vulnerável. Nesses dois quadros (O
grande dragão vermelho e a Mulher vestida de Sol), Maria trabalhadora
parece desamparada diante do ataque da Besta. O Apocalipse descreve
Satanás: "Era um grande Dragão, cor de fogo, que tinha sete cabeças
e dez pontas, e nas suas cabeças, sete diademas. A sua cauda arrastou
a terça parte das estrelas do céu, e precipitou-as na Terra” (12, 3–4).
Ainda assim, sabemos o resultado: que no mito cristão profundo
e essencialmente feminista é Eva quem cai, seduzida pela bajulação
da serpente (em Paraíso perdido, Adão se dirige a Eva como "a beleza
máxima da Criação, a obra definitiva de Deus"), mas é Maria quem
confronta o demônio e, mesmo em seu confinamento, o vence.
O empoderamento feminino é um tema que, apesar do que afirmam
as "feministas" modernas antifemininas, entrou há muito tempo na
narrativa ocidental. No final de Atração fatal, não é o personagem de
Michael Douglas que acaba com a perseguidora psicopata interpreta
da por Glenn Close, mas sua esposa resignada, que atira no monstro
enquanto tenta ressuscitar de um quase afogamento na banheira.
Inúmeras outras histórias, remontando, inclusive, a Beowulf, na qual
o monstro verdadeiramente terrível não é Grendel, mas a mãe irada de
Grendel, apresentam mulheres impiedosas, refutando assim uma das
críticas mais persistentes da Teoria Crítica à cultura ocidental a de
que as mulheres são humilhadas ou preteridas em relação aos homens.
Isso nos leva ao mais pernicioso e profano fruto da Teoria Crí
tica, o conceito de politicamente correto: uma espécie de inferno
em si mesmo, lembrando a observação melancólica de Satanás em
85
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
Paraíso perdido: "A mente é seu próprio lugar e, por si só, pode fazer do
inferno o céu e do céu um inferno". O politicamente correto faz com
que nossos pensamentos mais íntimos se tornem infernais e promete
punir a humanidade pelo crime de liberdade de pensamento. O que
poderia ser mais satânico?
Lembremos que em Milton, Satanás criou sua filha, Pecado, que
nasceu diretamente dele (parodiando grotescamente o nascimento de
Atena da cabeça de Zeus); então Satanás gerou seu único filho, Morte,¹
no corpo metade sereia, metade mulher de sua filha. Mas Pecado recebe
a maldição do trabalho de parto eterno (o oposto da gravidez única,
transformadora e virgem de Maria sem pecado), dando à luz uma
sucessão interminável de criaturas caninas que perseguem a humani
dade. A filha Pecado, portanto, é quase uma paródia das “feministas”
contemporâneas, que fantasiam sobre um mundo sem homens - quem
pode se queixar mais de homens do que Pecado, constantemente fecun
dada, sem recurso? —, mas não conseguem entender as conseqüências
práticas desse mundo.
O politicamente correto não é simplesmente um bando de Cães
de Tindalos (embora seja tudo isso), mas o ataque mais descarado à
cultura ocidental que se pode imaginar: uma força voraz e selvagem
que nunca pode ser satisfeita. Na memorável contribuição de Frank
Belknap Long aos mitos de Cthulhu, de H. P. Lovecraft, os epôni
mos Cães de Tindalos são claramente os filhos de Pecado: "Eles são
magros e têm sede!', gritou ele. [...] Todo o mal do universo estava
concentrado em seus corpos macilentos e famintos. Tinham eles cor
pos?". Chamados de "asquerosos", os Cães aterrorizantes e cheios de
icor² perseguem suas vítimas com ferocidade implacável através das
dimensões do espaço e do tempo. Tais criaturas, descritas com tanta
riqueza, lembram o poema de Milton e, portanto, se enquadram no
esquema geral de narrativa original que venho traçando: a recorrência
(ou surgimento) de personagens a partir dos mitos primordiais das
origens humanas.
1
Em Paraíso perdido, o Pecado é personificado como feminino, e a Morte, como masculino
- NT.
2
Líquido purulento e fétido que sai de certas feridas ou abscessos; na mitologia grega, o
sangue dos deuses.
86
A DESCIDA AO INFERNO
O termo "politicamente correto" parece ter se originado com Trot
sky, para descrever os primeiros bolcheviques, forçados a se adaptar
às constantes mudanças dos modos "corretos" de pensamento políti
co soviético, e, mais tarde, adotado por Mao, entre outros. Hoje é a
contranarrativa da esquerda profana, um fascismo mental destinado a
desencorajar o pensamento independente e incentivar o uso preguiçoso
de slogans baratos; em outras palavras, uma ferramenta política que
nada tem a ver com "moralidade", "tolerância", "diversidade" ou "o
arco da história". É simplesmente o mal. Mas dizer que se trata de um
mal muito grande é subestimá-lo. Ele contraria a liberdade em todas
as suas formas, o que é justamente seu objetivo, embora se esconda
por trás de outra virtude falsa: a compaixão.
"Sem liberdade de pensamento não pode haver sabedoria, e sem
liberdade de expressão não pode haver liberdade pública", escreveu
Cato (pseudônimo dos ensaístas britânicos John Trenchard e Thomas
Gordon), em 1720. "Quem quiser derrubar a liberdade da nação deve
começar subjugando a liberdade de expressão". Há uma razão pela
qual os revolucionários visam jornais e estações de rádio primeiro.
Subjugar a liberdade de expressão é precisamente o objetivo dos
jacobinos da esquerda profana, que não podem sustentar qualquer
pensamento desvinculado de prescrições políticas ou objetivos sociais.
Nas últimas décadas, eles travaram uma guerra, inicialmente secreta
e agora aberta, contra a Primeira Emenda, atropelando-a sempre
que podem: nos “códigos de linguagem" de campi universitários, por
exemplo, ou no ostracismo social, pelo risco de um renegado infeliz
deixar a reserva de lado e, sem querer, falar o que pensa.
O politicamente correto, apesar de toda a sua notoriedade, não
recebeu o escrutínio que merece, em parte porque, como tudo aquilo
em que os marxistas tocam, usa um Tarnhelm, um elmo mágico, neste
caso, de bondade, polidez e pura retidão. Formulando novas listas do
que pode e não pode ser dito (para não ofender alguém, em algum lugar,
agora ou no futuro), e sempre à luz do imperativo da Teoria Crítica
de estar perpetuamente no ataque, os representantes do politicamente
correto não se assemelham a ninguém mais do que à implacável Ma
dame Defarge, de Dickens, em Um conto de duas cidades, manuseando
87
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
habilmente suas agulhas de tricô enquanto cabeças rolavam. Palavras
comuns, termos comuns, até mesmo os nomes de veneráveis franquias
esportivas são criticados à medida que eles avançam em direção às
terras ensolaradas da utopia totalitária perfeita.
Tudo isso surgiu do estrume da Teoria Crítica, um gás miasmático
que acaba com a vida do discurso racional livre. Em caso de dúvida,
o politicamente correto fornece a seus adeptos um suprimento pronto
de rubricas e clichês, a maioria dos quais reforça a idéia central de
que existem algumas coisas que simplesmente não podem ser ditas
ou pensadas.
Pensemos no politicamente correto como as famosas "cartas de
trânsito" de Ugarte em Casablanca, que não podem ser rescindidas, ou
mesmo questionadas. As cartas são o pretexto central do grande filme,
o "cacife" que o público concede aos cineastas para investir totalmente
na história. Sem as cartas não há história. Ugarte não pode entregá-las
para que Rick Blaine as guardasse; Ferrari não pode tentar comprá-las
de Rick; Rick não pode dá-las a Ilsa e Victor Laszlo para garantir sua
fuga; nem Ilsa e Victor podem fugir. Todos as aceitam sem questionar,
inclusive os nazistas, apesar do fato de serem assinadas pelo General
Weygand, um oficial de Vichy, cuja ordem poderia facilmente ter sido
contrariada pelo Major Strasser, o oficial alemão. (Elas não são assi
nadas por De Gaulle, como às vezes se ouve por engano; o sotaque
húngaro de Peter Lorre confunde as coisas. E, de qualquer forma, isso
não faria nenhum sentido).
Assim, no politicame
mente correto, a esquerda tem suas "cartas de
trânsito", seu trunfo no grande jogo que ela propõe incessantemente
a seus inimigos. Mas essas cartas são falsas e não merecem atenção.
De qualquer maneira, ao declarar inválidas amostras inteiras de ar
gumentação, a esquerda profana procura erguer um palácio de prazer
demoníaco em torno de si mesma, um mundo de ilusão povoado de
monstros falsos e aparições alucinatórias, uma casa de horrores cujo
único objetivo, diretamente antitético à Constituição dos Estados
Unidos, é o de sufocar a oposição e o debate.
Os pensadores mais responsáveis pela ascensão do politicamente
correto foram Antonio Gramsci e Georg Lukács, que foram os pri
88
A DESCIDA AO INFERNO
meiros a compreender que, embora o marxismo econômico pudesse
não funcionar, o marxismo cultural poderia. Se em vez de confiscar os
meios da produção para (algum dia) entregá-los ao proletariado eles
ocupassem a cultura, a revolução não teria muito mais chance de dar
certo? Eles haviam sido decepcionados pelos trabalhadores sujos do
mundo, que rejeitaram o grande presente que eles lhes haviam oferecido.
Agora eles se dirigiriam a seus semelhantes na elite intelectual — um
público muito mais receptivo e persuadível. Como qualquer vigarista
sabe, a pessoa mais ingênua é aquela que quer acreditar.
Gramsci, portanto, visou os meios de comunicação de massa,
como jornais, revistas, rádio, cinema (à maneira de Hitler e Lenin),
e a educação, a fim de, como Brecht sugeriu mais tarde, dissolver o
povo e eleger outro. Para Gramsci, o proletariado estava cego pelas
ilusões faustianas e precisava se libertar do Ocidente cristão, algo que
a esquerda almejava há muito tempo. Lukács, um aristocrata húngaro
judeu de uma importante família bancária chamada Löwinger, deu um
passo adiante, afirmando que a antiga ordem tinha de ser erradicada
para que um novo tipo de cidadão pudesse surgir.
Lukács sonhava em criar um vazio na alma da humanidade, em um
mundo que supostamente havia sido abandonado por Deus, um mundo
coletivista no qual não haveria espaço para o indivíduo, ou seja, um
formigueiro que não admitiria Siegfrieds heróicos ou super-homens.
Ele escreveu sobre a necessidade de uma Aufhebung der Kultur, uma
“abolição da cultura”, especificamente da cultura ocidental judaico
-cristã, embora a palavra Aufhebung possa ser melhor traduzida, neste
caso, como "desenraizamento”.
Escrevendo em 1962, no prefácio de sua obra A teoria do romance,
e refletindo sobre sua experiência na Primeira Guerra Mundial, Lukács
sublinhou seus sentimentos antiocidentais:
Minha atitude profundamente pessoal foi de rejeição veemente, global
e, principalmente no início, mal articulada da guerra e, sobretudo, do
entusiasmo pela guerra. [...] Havia também alguma probabilidade de que
o Ocidente derrotasse a Alemanha; se isso levasse à derrocada dos Hohen
zollerns e dos Habsburgos, eu estaria novamente a favor. Mas então surgiu
a pergunta: quem nos salvaria da civilização ocidental?
89
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
Boa pergunta! Uma resposta desagradável veio rápida o suficiente
na forma do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães,
de Hitler, que saiu vitorioso de suas batalhas campais com o outro
partido de esquerda, os comunistas, e logo começou a eliminar judeus
e comunistas, que eles viam, em essência, como intercambiáveis. Hi
tler tinha pouco ou nenhum amor pela civilização ocidental, que ele
considerava um empreendimento antiariano liderado, seqüencialmen
te, pelos romanos, pela Igreja e pelos judeus. Ele idealizou o Volk, o
povo alemão não corrompido pelo judeu internacional manipulador
do mundo, exemplificado, a seu ver, por Lukács e o resto da Escola de
Frankfurt, entre outros. Ainda assim, Lukács viveu o suficiente para dar
a última risada. Ele sobreviveu à guerra em sua amada União Soviética
e retornou à Hungria para ajudar a formar o governo comunista do
pós-guerra, que, até sua morte em 1971, ele julgou capaz de competir
com o Ocidente, mantendo seus próprios termos socialistas.
Hoje, após a queda do Muro de Berlim em 1989 e a dissolução da
URSS em 1991, essas fantasias parecem absurdas. Para quem viajou
extensivamente atrás da Cortina de Ferro nos anos anteriores ao seu
colapso e viu as lojas vazias, as filas intermináveis, o conformismo
-
rígido, os alto-falantes estridentes convocando a população para esta
ou aquela celebração partidária, destacada por discursos prolixos de
uma série de funcionários resignados a idéia de que alguém acei
taria de bom grado um inferno desses é ridícula. Somente aqueles sem
experiência em comunismo admiram o comunismo. Buscando uma
vitória para o marxismo cultural nos países do Pacto de Varsóvia,
Lukács e seu grupo fracassaram; tendo experimentado a ditadura do
proletariado, os povos repentinamente livres do que costumávamos
chamar de "nações cativas" optaram por bananas frescas e pornografia
e ficaram entusiasmados com o comércio.
Por que alguém desejaria viver no mundo que Lukács e seus com
panheiros idealizaram continua sendo uma questão em aberto. E, no
entanto, cada vez mais pessoas o desejam. Acredito que a atração reside,
pelo menos em parte, em sua própria impossibilidade. A geração que
cresceu nos Estados Unidos e na Europa ocidental após a dissolução da
União Soviética teve dificuldade em imaginar quaisquer conseqüências
90
A DESCIDA AO INFERNO
adversas que poderiam surgir de suas crenças aparentemente nobres
e benevolentes. Eles vivem "no contexto de nenhum contexto", apro
veitando o título de um ensaio da New Yorker, escrito por George W.
S. Trow, em 1980. Eles não têm consciência das conseqüências de não
temer as conseqüências. Em terra de fantasia marxista, o cego é rei.
No entanto, muitos parecem dispostos a trocar a liberdade por
alguma forma de segurança, e em uma sociedade abastada parece não
haver fim para as riquezas que podem ser desperdiçadas em nome
da "compaixão", da "tolerância" ou da "diversidade". Dizia-se de
Tammany Hall, a máquina política de gângsteres democratas que di
rigiu a cidade de Nova York na maior parte do século, que eles eram
sensatos o suficiente para nunca roubar todo o dinheiro que entrava
no tesouro da cidade. Deixavam apenas o necessário para uma admi
nistração cuidadosa, de modo que os camponeses não percebessem que
estavam sendo depenados, mesmo quando os dirigentes apareciam em
seus casamentos, funerais e bar mitzvahs.
O que salvou a Escola de Frankfurt foi sua transferência forçada
para os Estados Unidos. A eficiência brutal do regime nazista abriu
seus olhos para as conseqüências do que eles imaginavam que não
teria conseqüências. Se eles proclamassem abertamente suas intenções
destrutivas antiamericanas e antiocidentais, tornando essas as carac
terísticas mais evidentes de seus ensinamentos, poderiam ser conside
rados espiões, sapadores e sabotadores, e ser enforcados. Mas unidos
a outro conceito intelectual da Europa central, a análise freudiana
(cujos princípios, em grande parte, estavam sincronizados com a teoria
do Institut), eles pareciam ser relativamente inofensivos, professores
aloprados refugiados, com sotaques estrangeiros engraçados, buscando
abrigo na América, solicitando tolerância para ideais elevados. O que
passou despercebido foi que os ideais para os quais eles buscavam
tolerância eram, em si mesmos, tudo menos tolerantes. Na verdade,
eles eram fundamentalmente antitéticos ao éthos americano e à sua
experiência. Os Estados Unidos não precisaram descer ao inferno:
o inferno havia chegado aos Estados Unidos, disfarçado, é claro, de
céu; aguardando, à espreita, pelos incautos.
91
CAPÍTULO VI
O eterno-feminino
ataque aos baluartes da cultura ocidental teve muitas frentes,
porém a mais destacada foi o sexo: o motor mais poderoso
da existência humana - aquele que nos deixa mais próxi
mos da Divindade, uma força de um poder tão avaşsalador que pode
mudar o curso de nossa vida, trazendo a morte ou a transcendência
em seu rastro. Os filhos são sua questão primordial, mas também o
insight transformador, a bravura, a coragem, o altruísmo, o sacrifício
pessoal. Grandes obras de arte nascem da união, vidas são sacrificadas
e poupadas, tudo é arriscado, mundos são conquistados.
Assim, não admira que a relação entre os sexos e a moralidade,
duramente conquistada em relação a essa associação, fosse um dos
pontos capitais do ataque desferido pela Escola de Frankfurt e de seus
companheiros de viagem na política, no meio acadêmico e na mídia.
O ataque "transgressor" à cultura ocidental tinha de começar em algum
lugar, e iniciou-se com a idéia da família nuclear.
O primeiro passo foi fazer troça dela (nas décadas de 1960 e 1970,
os mundos idealizados dos seriados de TV Papai sabe tudo e Leave It
to Beaver, da época anterior aos hippies, eram motivo de escárnio es
pecial), e em seguida acusá-la de diversos crimes contra a humanidade
(em particular com a recém-descoberta acusação de "patriarcado"),
93
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
e então mostrando que havia "realmente" outros tipos de família, tão
bons, amorosos e válidos quanto o tradicional, o ninho do casal de pais
de sexo oposto. Por fim, a família nuclear foi simplesmente descartada
por completo, à medida que o comportamento considerado aceitável
na classe baixa, na qual a liberdade sexual quase sempre era suprimida,
se infiltrava no meio cultural mais elevado. A moralidade dos que nada
têm a perder e tudo a ganhar de um sistema disfuncional de bem-estar
social efervesceu das classes inferiores, de brancos e negros, para as
classes médias, que tinham sido induzidas a se sentirem culpadas em
nome dos "destituídos". E aqueles considerados "marginalizados" ou
"prejudicados" não assumiram mais nenhuma responsabilidade por
suas escolhas e comportamento pessoal destrutivo. Não é por acaso
que a nova aceitação de casos de gravidez fora do casamento coincidiu
com a elevação da bastardia e a cultura do aborto, o crescimento da
demanda por métodos contraceptivos e, mais tarde, os direitos dos
homossexuais. Uma vez aberta a caixa de Pandora, todo tipo de coisa
saiu dali; algumas, a princípio, aparentemente contraditórias, mas to
das relacionadas com o próprio fato de estarem confinadas na caixa.
A caixa permanecera fechada por uma razão, mas sob a pressão da
Teoria Crítica, ela teve de ser aberta.
Muitos já observaram, dentre eles o proeminente historiador Ar
nold Toynbee, que a sociedade começa a ruir quando a moralidade
da classe baixa passa a predominar. Toynbee observou que, quando a
expressão pessoal começa a tomar o lugar da criatividade disciplinada,
a civilização está com problemas. A compulsão obsessiva da Teoria
Crítica com a genitália não é sinal de uma cultura amadurecida, mas
sim infantilizada. Analisando o capítulo Schism in the Soul [Uma dis
sidência na alma] do livro de Toynbee, Um estudo da história, Charles
Murray escreveu no Wall Street Jounal, em 2001:
Ele observa que um dos sintomas consistentes da desintegração é que as
elites, para Toynbee, a "minoria dominante", começam a imitar os que
estão na parte inferior da sociedade. Assim ele argumenta:
94
O ETERNO-FEMININO
A fase de crescimento de uma civilização é conduzida por uma minoria
criativa com um senso de estilo confiante e forte, com virtude e propósito.
A maioria sem criatividade acompanha a minoria por mimetismo, "uma
imitação mecânica e superficial dos notáveis e inspirados originais". Numa
civilização que se desintegra, a minoria criativa degenerou em elites que
não são mais confiantes, que não servem mais de exemplo. Dentre outras
reações, "um desvio a favor da vadiagem" (uma rejeição, na verdade, às
obrigações da cidadania) e “uma rendição a uma noção de promiscuidade"
(vulgarizações nos modos, nas artes e na linguagem) que "estão destinadas
a aparecer primeiro nas classes de proletariados e de se espalhar dali para
as classes da minoria dominante, que, em geral, sucumbe à doença da
'proletarização"". Isso se parece muito com o que vem acontecendo nos
Estados Unidos. A vadiagem e a promiscuidade, segundo Toynbee, não são
novas na América. No entanto, até algumas décadas atrás, eram publica
mente desprezadas e confinadas, em grande escala, ao estrato inferior do
proletariado de Toynbee, o grupo que costumávamos chamar de "classe
baixa" ou "escória" e que agora chamamos de classe inferior. Hoje, esses
comportamentos se transmutaram num código que as elites às vezes imitam,
às vezes abrandam e temem desafiar. Por enquanto, elas não possuem um
código próprio no qual confiem.
Em sua ópera Der junge Lord, de 1964, o compositor alemão Hans
Werner Henze parodiou com precisão esse fenômeno, e nesse contexto,
a "macaqueação" é uma adaptação. Um cavalheiro inglês, abastado e
excêntrico, chega numa cidadezinha alemã com um séquito de escravos
e animais selvagens e consegue fazer um macaco passar por um sobri
nho seu, Lorde Barrett, cujos comportamentos simiescos encantam a
gente crédula do lugar até que sua fantasia cai por terra e todos podem
vê-lo, em sua grandiosidade de chimpanzé amestrado, o que ele é de
fato. (É interessante que Henze era um comunista convicto, embora
"liberal de limusine" ou "socialista com champanhe" fossem descrições
mais apropriadas para ele. Tendo fugido da Alemanha, da ocidental,
e não da nazista, por seu reconhecido conservadorismo e intolerância
à homossexualidade, ele viveu a dolce vita na Itália).
No final, porém, o comportamento sexual de culturas mais antigas
(os gregos) ou de outros primatas (os bonobos ou chimpanzés-anões)
não é relevante para os problemas que encaramos hoje. Nenhuma
cultura até a nossa repudiou de modo tão intencional a procriação,
praticou o aborto de forma tão entusiasmada, demonizou (uma pala
vra apropriada) tanto aqueles que resistem a isto e se recusou tanto a
95
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
compreender as "conseqüências das inconseqüências" demográficas.
Se a procriação é apenas algo secundário ou uma opção de estilo de
vida, nossos programas sociais à base de esquemas fraudulentos, tal
como a previdência social, que dependem das gerações futuras para
funcionar, sucumbirão. De fato, poderíamos estar assistindo à demolição
de toda a "rede da segurança social", embora se pudesse pensar que
os radicais desejariam salvá-la, se acreditarmos neles ao manifestarem
uma profunda preocupação com a humanidade.
"Quem nos salvará da cultura ocidental?". A boa notícia para os
esquerdistas é que eles foram salvos pela própria cultura ocidental,
que os amamentou no seio dos meios acadêmicos e os alimentou
naquilo que o falecido Andrew Breitbart descreveu admiravelmente
como "complexo da mídia democrata”. Tal é a rede firme e giratória
de "bicos" universitários, dos empregos na mídia e do “serviço” pres
tado pelo governo que premia o conformismo intelectual em relação
à narrativa esquerdista, mesmo quando muitos de seus adeptos levam
uma vida privada de acordo com princípios conservadores, formando
pequenas famílias nucleares dentro da estrutura do casal com pai e
mãe, e garantindo a segurança dos filhos morando economicamente
isolados, às vezes, em condomínios fechados.
Nesse ínterim, para além dos limites de Potomac em Maryland, Bel
Air em Los Angeles, ou do Upper West Side de Manhattan, a coletividade
de cidadãos está sujeita às leis que seus expoentes decidem criar, e quanto
mais leis, melhor; de modo que, nas palavras de Harvey Silverglate,
quase todo mundo comete, sem saber, "três delitos por dia" (título de
seu livro de 2009), enquanto cumpre normalmente sua rotina diária
de trabalho. E para impedir que gerações futuras se insurjam contra o
que eles venham a perceber como tirania, os contrários à procriação
e “fomentadores" do aborto estão ocupados em apagar a próxima
geração em nome dos "direitos das mulheres". Poucas culturas, se é
que há alguma, têm sido tão veementemente hipócritas em relação
à virtude moral, à transcendência, de seu suicídio como a ocidental.
Portanto, assim como o bebê de Rosemary, no filme icônico com
esse título, a cultura da morte nasceu num país onde outrora bebês e
filhos eram bem-vindos. Até as décadas de 1960 e 1970, e antes do caso
96
O ETERNO-FEMININO
Roe versus Wade,' a cultura americana valorizava os bebês como uma
necessidade numa república em crescimento, robusta e culturalmente
confiante. De modo bem conveniente, no filme de terror de Roman
Polansky de 1968, a morte, sob a forma do bebê de Rosemary, chegou
nos arredores intelectuais da maior cidade da nação, Nova York. Para
fazer funcionar seu argumento contrário à vida e à procriação, a lula
marxista teve de lançar grandes quantidades de tinta para encobrir seu
verdadeiro propósito, sendo que a maior parte foi parar nas páginas
do porta-voz do esquerdismo, o New York Times. O mito malthusiano
da superpopulação se fez notar mais uma vez. Os esquerdistas ado
ram jogos de soma zero e profecias "científicas" carregadas de certa
maldição: “mudança climática", "escassez progressiva de recursos”,
"pico do petróleo" etc. Seria um crime trazer uma criança a esse
mundo aterrorizante, advertem, e submetê-la a um futuro constrito.
Até os filmes entraram em ação, como Fuga no século XXIII (1976) e
No mundo de 2020 (1973). Em breve, o mundo estaria se arrastando,
com gente choramingando, morrendo de fome, e o gesto mais miseri
cordioso seria matá-las ou até talvez comê-las. E assim nasceu o culto
ao suicídio esquerdista.
É essencial lembrar aqui a rapidez com que essa transformação foi
alcançada. A revolução cultural do final da década de 1960 aconteceu
durante um período marcado por uma perturbação generalizada. A
Ofensiva do Tet (durante a Guerra do Vietnã), a renúncia de L. B. J.,
o assassinato de Martin Luther King e de Bobby Kennedy, tudo isso
no decorrer dos primeiros seis meses de 1968. Ainda estavam para
acontecer naquele ano a invasão soviética da Tchecoslováquia, os
tumultos na convenção do Partido Democrata em agosto, e o lança
mento da Apolo 8. Em meados da década de 1970, não havia como
voltar atrás. Depois de Garganta profunda (1972) e diabo na carne
de Miss Jones (1973), sex shops e peep shows proliferaram pelo país,
a "filosofia da Playboy" de Hugh Hefner deu início à sua supremacia
cultural: a revolução sexual tinha começado.
Mas qual era, exatamente, o problema que a esquerda, em desespero,
tentava resolver? O que exigia a destruição do sistema cultural e dos
3 Caso judicial pelo qual a Suprema Corte dos Estados Unidos reconheceu o direito ao
aborto ou interrupção voluntária da gravidez.
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MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
costumes sociais preexistentes? A resposta, a despeito dos massivos
ataques anteriores pelos socialistas fabianos na Inglaterra de 1880,
pelo grupo Bloomsbury de Virgínia Woolf e seus compatriotas, pelo
movimento "progressista" da eugenia de Margaret Sanger, na década
de 1920, era: nenhum.
Quando perguntaram ao vilão/empresário Gordon Gekko, no filme
Wall Street, de 1987, por que ele desejava destruir uma empresa da
qual pretendia se apoderar, ele respondeu irritado: "Porque é destru
tível, tudo bem?". O filme de sucesso foi uma co-autoria com outro
homem da esquerda que também o dirigiu, Oliver Stone, e a observação
de Gekko vinha ilustrar a avareza mal-intencionada dos homens de
negócios partidários da idéia "ambição é bom”, da era Reagan. E, no
entanto, visto de outra forma, ele fala mais sobre o éthos da esquerda
eliminadora do que sobre a suposta avareza da direita.
Até mesmo antes disso, em O selvagem (1953), quando uma moça
da localidade pergunta ao charmoso líder de uma gangue de motoci
clistas, Johnny Strabler (Marlon Brando): "Ei, Johnny, contra o que
você se rebela?", a resposta dele, "Quais as opções?", é uma das mais
famosas falas da história do cinema e uma síntese perfeita da noção
de que para os novos românticos niilistas, a civilização, em resumo,
não tinha valor. É significativo que o primeiro rascunho completo do
script tenha sido escrito por Ben Maddow, que entrara na lista negra
em 1952, sendo excluído do projeto e impedido de dar continuidade
a seu primeiro rascunho de High Noon. Madow era um esquerdista
formado em Columbia que, sob o pseudônimo de David Wolff, foi
um poeta de renome considerável nos círculos de pensamento conven
cional. Allen Ginsberg chegou a citar The City, de Wolff (1940), um
relato prolixo sobre terror urbano e alienação, como inspiração para
seu próprio e mais conhecido "Uivo", do livro Uivo e outros poemas.
Tal como muitos artistas que alcançaram a maioridade no interregno,
Maddow e o resto do rebanho de mentes independentes tinham passado
a acreditar que uma vassoura apocalíptica precisaria faxinar o lixo do
mundo destruído e reconstruí-lo.
O sistema tinha de seguir adiante porque estava bloqueando o arco
da história do marxismo, esse arco-íris que acabaria em algum lugar,
98
O ETERNO-FEMININO
de alguma forma, num pote de ouro, num humilde campo proletário. E
quem representaria melhor "o sistema" do que a moderna encarnação
de Adão e Eva, um homem e uma mulher, seus corpos designados a
funcionar reciprocamente em termos de procriação e prazer, as criatu
ras que o próprio Deus tinha interposto entre o céu e o inferno, livres
para serem fortes ou fracos conforme lhes aprouvesse, e assim, um
alvo perfeito para o impulso satânico, seja literária ou literalmente?
A família foi o primeiro alvo, mas mesmo esse foi um ataque simu
lado e paralelo ao alvo principal: a natureza da relação sexual em si.
E para isso, temos de evocar novamente o lado sombrio primitivo do
homem, o Fausto de Goethe.
Quando Fausto vê Margarida pela primeira vez (num espelho mágico,
rejuvenescido pela poção mágica de uma bruxa), ele é imediatamente
arrebatado, e logo é ridicularizado pelo demônio, que observa: "Com
essa poção, verás Helena de Tróia em toda mulher". (Conforme acon
tece, Helena terá um papel importante na Parte II). Eis como Fausto
descreve Margarida para Mefistófeles, depois de encontrá-la em pessoa
na rua e de ter seus avanços rechaçados:
Pelos céus, que bela é essa criança!
Jamais vi alguém assim.
Tão rica em pureza e virtude,
e só um tanto atrevida, também.
Seus lábios vermelhos, o rosto claro,
até o último dos dias, jamais esquecerei!
O modo como baixa os olhos
impressionou profundamente meu coração;
Quão seca ela foi comigo,
agora é puro encantamento!
Fausto está abalado, exatamente como Mefistófeles previra. Mas,
repare ao que ele reage: seu oposto, o "outro". Fausto é velho; Marga
rida é jovem. Fausto viu de tudo ao longo de seus estudos; Margarida
é uma moça simples, mas ele jamais viu algo parecido, nem ela em
relação a ele. Fausto é frio e duro; Margarida é presunçosa, com um
ar de malícia sedutora nos olhos cintilantes. Fausto é grosseiro, mas,
baixando os olhos timidamente uma única vez, Margarida conquista
o coração dele para sempre.
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MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
Fausto, em suma, foi enfeitiçado, encantado, arrebatado. Em outras
palavras, ele passa pela mesma situação que vivencia com Mefistófeles,
só que na esfera física. Entretanto, o Ewig-Weibliche, o eterno-feminino,
aqui representado pela fantasia de Fausto da pura e inocente Margarida
(que logo será aviltada) e que termina como o ponto final de todo o
poema em duas partes, mostra-se como uma força muito superior às
tentações satânicas de Mefistófeles. O sexo é para Goethe e inúmeros
outros artistas a única e maior força na criação, tão poderosa que, em
Milton, no livro IX de Paraíso perdido, a primeira coisa que Adão e
Eva fazem depois de provarem do fruto proibido é amor, numa das
primeiras cenas de sexo da literatura ocidental:
Assim disse ele, e não se conteve em olhares ou
em intenções amorosas, que Eva bem entendeu,
com lampejo fogoso no olhar.
A mão dela pegou, e foram para um local sombreado,
encoberto por espessa rama verdejante.
Ele a levou, sem que ela resistisse, a um colchão florido:
com jasmins, lírios e jacintos, na terra mais fofa e fresca.
Ali se fartaram de amor e em ondas de deleite sem medida,
selando então a culpa mútua,
A consolação de seu pecado, até que o sono orvalhado
os abateu, exauridos pelo jogo amoroso.
Depois de desobedecer ao único mandamento fixado por Deus, o
que mais se tem a fazer senão sexo?
E assim temos uma geminação no mito cultural do fruto proibido e
Eros/Tânatos, porque Adão e Eva agora compreendem que certamente
vão morrer, agora que provaram tanto do conhecimento celestial quanto
do amor humano em sua forma mais pura, e vivenciaram pela primei
ra vez la petite mort do orgasmo. E o pareamento é essencial para a
formação da humanidade, outro benefício da Queda. O sexo humano
heterossexual é diferente do da maioria dos mamíferos, já que pode
acontecer a qualquer hora, não apenas quando o animal homem está
no cio (nossa espécie está sempre no cio, para o bem ou para o mal).
Os animais reagem ao poder do impulso sexual, e seguem seu cheiro
e seu chamado. Entregam-se a ele com sofreguidão feroz, às vezes letal.
Os humanos (e não apenas nos meses férteis das fêmeas) estão sempre
100
O ETERNO FEMININO
de olho no arsenal completo da experiência sexual humana: a melhor
oportunidade, a "rapidinha", o caso proibido, o amor eterno, o SEXO
casual de uma noite, e o relacionamento duradouro que sobrevive até
à morte. Ao mesmo tempo indizível e o tema de incontáveis obras de
literatura, poesia, teatro, filme e das artes musicais, tanto a elevada
quanto a inferior, esse aspecto proeminente da Queda é permanente
mente valorizado pela humanidade mesmo que seu poder primitivo
nos cause tanta dor e aflição.
Ao ver Margarida pela primeira vez, o apetite de Fausto pelo conheci
mento é transformado no seu desejo por ela. Personificação do eterno-fe
minino, ela é o que o move do ponto onde está no poema para a frente,
porém não necessariamente para cima. Seduzida e grávida, Margarida
(atrevida, mas pura) é a Eva inocente que se tornou uma assassina. Ao
aguardar Fausto na alcova virginal, ela inadvertidamente mata a mãe, ao
dar a ela uma dose letal da poção do sono. Mais tarde, ela afoga o filho
bastardo e é condenada à morte. Ao ver Mefistófeles aparecer ao lado de
Fausto em sua masmorra, ela chama Satanás de "semente das trevas":
"Was steigt aus dem Boden herauf?" ["O que emerge da terra?"].
Esse é o poder primordial do sexo que, com toda sua complexidade
e dificuldade, ainda assim mostra o caminho para a transcendência.
Quase todos os cultos religiosos são baseados em torno dele (com o
guru temporário tendo acesso ilimitado às fêmeas mais desejáveis e
casadoiras). Os que não o são, como por exemplo o culto dos Shakers
(a sociedade unida dos que acreditam na segunda aparição de Cristo),
rejeitavam-no como poderoso demais, mas ainda se lançam em transes
de êxtase religioso quase sexual, sublimando o impulso erótico enquanto
prestam homenagem religiosa a ele.
A Teoria Crítica combatia tudo isso, principalmente a idéia de
transcendência. Nem todo ato sexual tem um significado mais amplo,
é claro, mas a meta da Teoria Crítica era reduzir os seres humanos ao
nível dos animais ("Se se sente bem, faça-o”) e negar o componente
transcendente que impulsionara os artistas criativos por séculos.
De forma reveladora, a palavra "sexo" passou a significar o mesmo que
gênero, um termo gramatical impessoal que inclui masculino, feminino
e neutro. As noções primárias de masculinidade e feminilidade foram
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MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
redefinidas e "matizadas", o que na prática significou “fragmentadas" e
tornadas insignificantes. Herbert Marcuse, o autor de Eros e civilização,
valorizou a "perversidade polimorfa", defendendo o poder liberador
do sexo, mas apenas no sentido mais estreito: liberação das restrições
(segundo ele) imprevisíveis e arbitrárias estabelecidas pela cultura e
pela civilização. Ao seguir a diretiva “faça amor, não faça a guerra”,
o indivíduo ingênuo pode muito bem ter sentido que ele estava gol
peando a hierarquia. Na realidade, porém, talvez ele estivesse apenas
desperdiçando sua energia sexual de maneira inútil e improdutiva. No
entanto, Marcuse sabia que o povão envolvido com relações sexuais
sem sentido era um povão desinteressado em relação a qualquer outra
coisa. Assim, a "perversidade polimorfa" enfraquecia os pilares da
sociedade que ele buscava minar.
Novamente, devemos usar a palavra "satânico", que, corretamente
definida, significa o desejo de destruir uma ordem básica, de longa data,
e substituí-la por... nada. A Teoria Crítica domina o ressentimento
com muita eficiência, transmutando-o em ira, e explica a indolência
solipsista, apresentando-a como "autorrealização”. A Escola de Frank
furt rejeitou o inconsciente coletivo de Jung (a única coisa realmente
coletiva sobre a humanidade), descrevendo-o como "pseudomitologia
obscurantista", preferindo, de longe, o freudismo. O psicanalista Erich
Fromm, em particular, fundador do "humanismo socialista", dedicou
muito de sua atenção à teoria freudiana e, embora nela encontrasse
"contradições", descreveu Freud como um dos "arquitetos da era
moderna", colocando-o no panteão ao lado de Marx e Einstein.
Em sua obra mais relevante, O medo à liberdade (1941), Fromm,
de modo explícito, rejeita as noções ocidentais de liberdade pessoal,
dando preferência à sociedade ordenada da Europa feudal. (Não há
progressista melhor do que um regressista). "Ao ter um lugar distinto,
imutável e inquestionável no mundo social desde o nascimento, o ho
mem foi enraizado num todo estruturado, e, assim, a vida tinha um
significado que não abria espaço para a dúvida, nem precisava dela".
("Estrutural" é uma palavra dileta dos marxistas, já que eles acreditam
numa base "científica" para o que é pouco mais do que uma fantasia
de vingança ressentida do século XIX).
102
O ETERNO-FEMININO
Ao nos distanciarmos um pouco da Escola de Frankfurt e suas
curiosas obsessões específicas em relação à cultura, percebemos o
mundo absurdamente limitado e autocentrado em que esses intelectuais
viviam. Eles formavam um grupo de intelectuais incansáveis, falastrões,
pedantes, alemães ou austríacos em sua maioria, num reprocessamen
to infindável das teorias e dos méritos de uma geração anterior de
intelectuais incansáveis, falastrões, pedantes, alemães ou austríacos
em sua maioria, acrescido de uma camada de judaísmo amplamente
compartilhado (ou rejeitado).
Recordo-me aqui do capítulo memorável do historiador Paul Johnson
sobre Marx em Os intelectuais, cujo título lembra o próprio Satanás:
"Uivando Maldições Gigantescas". Nele, Johnson descreve o demônio
político de nossa narrativa ao declarar sua guerra contra Deus:
Ele nunca recebeu uma formação judaica ou tentou adquirir alguma,
ou demonstrou algum interesse pelas causas judaicas. No entanto,
é preciso dizer que ele desenvolveu traços característicos de certo
tipo de estudioso, especialmente os talmúdicos: uma tendência a
acumular massas enormes de matérias assimiladas pela metade e a
planejar obras enciclopédicas que nunca foram concluídas, um des
prezo devastador por todos os não-estudiosos, e uma assertividade e
irascibilidade extremas ao lidar com outros estudiosos. Praticamente
toda a sua obra, de fato, carrega o marco do estudo talmúdico: é,
em essência, um comentário, uma crítica da obra de outros na área.
Talvez isso seja atribuir demais às raízes judaicas de Marx, que
incluíam rabinos proeminentes dos dois lados da família. Conforme
Johnson registra, o pai de Marx foi batizado na seqüência de um decreto
prussiano de 1816, que bania os judeus das áreas jurídica e médica,
e ele batizou também os seis filhos. Atribuir traços inatos "raciais"
ou culturais é um negócio perigoso na esteira do Holocausto. E mais,
resta o fato de que a maioria avassaladora dos membros da Escola de
Frankfurt era judia, assim como muitos dos primeiros bolcheviques,
incluindo Trotsky, Sverdlov e Zinoviev. Como todos os bolcheviques,
eles foram ferrenhamente anti-semitas, banindo o ensino de hebraico
e religioso (o que não os livrou de Stalin, cujo próprio anti-semitismo
georgiano comparava-se ao de Hitler). Mesmo assim, embora os judeus
constituíssem uma elevada porcentagem dos intelectuais alemães da
103
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
época, bem desproporcionais à sua pequena parcela da população, os
termos filosóficos do debate eram alemães, não judaicos.
Outro traço de Marx se destacou na juventude: sua paixão por
destruição, manifesta na poesia escrita quando rapaz, incluindo
"Canções Selvagens", em que um dos versos dizia: "Somos acorrenta
dos, despedaçados, vazios, amedrontados, acorrentados eternamente
a esse bloco de mármore do ser. [...] Somos os macacos de um Deus
frio". Fausto foi um de seus poemas favoritos, claro, mas ele adotou
o lado de Mefistófeles, citando o aforisma do demônio, “tudo o que
existe merece morrer", em seu artigo "O dezoito brumário de Louis
Bonaparte". Johnson encerra seu estudo observando: "Marx é um
escritor escatológico do começo ao fim".
Em outras palavras, para ser direto e honesto: um louco, pois Marx
parece nada mais do que aqueles obcecados convencidos da veraci
dade de sua causa (ou, nesse caso, uma anticausa vestida de causa),
rabiscando desesperadamente imensas quantidades de papel ofício
e impingindo a quase todos que encontram um discurso ou arenga
sempre na ponta da língua. Como alguém pode ter caído nessa história
semicientífica, pseudo-intelectual e anti-humana continua sendo um
mistério. Entretanto, num mundo onde até Charles Mason encontra
amor por trás das grades, tudo é possível. Um monstro enraivecido e
egoísta na vida pessoal, Marx é o arquétipo do esquerdista moderno,
uma apoteose de hipocrisia que faz os outros sofrerem e morrerem
pelos pecados que ele cometeu.
Além disso, perceba a alegoria cristã. Muitas vezes, o marxismo é
comparado a um culto religioso por seus adornos ostensivos e rituais
externos, mas um olhar mais detido em seu fundador e nos praticantes
revela semelhanças ainda maiores. A própria identificação pessoal de
Marx com Mefistófeles poderia ser prova suficiente, mas vejamos mais
adiante. O sentimento de terem sido injustiçados (pelo destino, pelo
universo?) permeia a lista de queixas da esquerda contra um Deus no
qual declaram não acreditar. A própria vida deles não resiste ao me
nor exame, pois muitas vezes se revelam “duas caras", enganadores e
traidores até mesmo em relação àqueles que eles dizem amar. A mídia
de hoje vibra de alegria sempre que um conservador “de carteirinha”
104
O ETERNO-FEMININO
é pego com a boca na botija, ainda que façam constantemente vista
grossa em situações semelhantes do seu lado. Sua justificativa capen
ga é sempre a mesma: a hipocrisia conservadora (ou melhor ainda,
religiosa fundamentalista) é novidade. Além de tudo, é uma violação
da regra nº 4 de Alinsky: "Faça o inimigo viver de acordo com seu
próprio livro de regras". Uma vez que a esquerda não possui regras,
apenas objetivos e, uma vez que "por quaisquer meios necessários" é
um código moral perfeitamente aceitável, não pode existir hipocrisia
entre os esquerdistas, assim como não pode haver inimigos.
Considere que muito do entusiasmo dos esquerdistas pela liberdade
sexual provém de sua, digamos, vida irregular. Para eles, o amor que não
ousa dizer seu nome é proclamado aos quatro ventos. E, por extensão,
supuseram que o que vale para aqueles que costumam se envolver em
iniciativas criativas e artísticas (que tendem a ser altamente sexualiza
dos) deveria valer para todos os demais, mesmo para aqueles que eles
consideram simplórios. O Círculo de Bloomsbury foi um viveiro de
camas quentes, tanto hétero quanto homossexuais. A bissexual voraz
Simone de Beauvoir foi uma das primeiras defensoras da adoção por
parte das mulheres de uma visão masculina quanto a conquistas sexuais
em série, repassando suas freqüentes conquistas femininas precoces ao
seu parceiro de toda uma vida, Jean-Paul Sartre. Num caso famoso, a
libidinosa Nadezhda Krupskaya, mulher de Lenin, tornou-se alvo de
piada na União Soviética, sendo o mais notório o que se segue:
Um cineasta soviético faz um filme intitulado "Lenin em Varsóvia".
Todos comparecem à estréia. O filme começa, foco em Krupskaya,
nua, num sexo selvagem com outro homem. E, em seguida, com outro.
E outro. E assim por diante. O filme continua, na mesma batida por
noventa minutos. Finalmente, as luzes são acesas e o diretor abre para
perguntas da platéia. Primeira pergunta: "Filme muito interessante,
camarada, mas... onde estava Lenin?". O diretor responde: "Em
Varsóvia”. (A própria vida sexual de Marx, tal como a de Rousseau,
também não resiste a um olhar mais apurado).
E ainda assim o exemplo judaico-cristão se apresenta sempre acusa
toriamente diante dos esquerdistas "transgressores", algo que eles não
têm como evitar, nem se tentarem. Em 1898, Debussy tentou rebelar-se
105
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
contra o wagnerismo musical puritano delineado no influente artigo
de Wagner, de 1849, Das Kunstwerk der Zukunft [A obra de arte do
futuro], mas que Wagner expressou mais completamente em Das Rhein
gold (com a falta de árias, coros etc.). Conforme mencionei no capítulo
anterior, o compositor francês acabou escrevendo o inenarrável Pelléas
et Mélisande, em conformidade precisa com as restrições teóricas de
Wagner, de uma forma nem mesmo encontrada em Rheingold. Em si,
as idéias de Wagner eram uma reação direta ao “judaísmo francês" das
obras de Giacomo Meyerbeer, o então queridinho da Ópera de Paris
e um homem cujo sucesso Wagner desejava imitar com veemência e,
por não conseguir, resolveu indignar-se.
Um dos maiores sucessos de Meyerbeer foi a ópera satânica Robert
le diable, cujos temas inspiraram Liszt na criação de um de seus mais
populares exemplos refinados de concerto. O próprio Wagner aprovei
tou o fio meyerbeeriano em uma de suas óperas iniciais, Der fliegende
Holländer [O navio fantasma] (1840), completando o círculo do res
sentimento e da imitação. A arte imitando a vida, ou a vida imitando
a arte? Ou algo ainda mais básico, a união das duas?
Robert le diable, de uma forma chocante para a época, exibiu um
coro de freiras mortas saindo do túmulo, que se despiam de seus há
bitos, retorcendo-se em nudez tentadora diante do herói. Em O navio
fantasma, por outro lado, a tentação é em relação à bondade e à luz,
conforme exemplificado por Senta, a moça do vilarejo que acaba li
bertando o holandês do poder de sua terrível maldição, levando seu
navio às profundezas e tanto ele quanto ela aos céus, quando Senta se
suicida (Selbstmord). Em ambas as óperas, porém, figura o Ewig-Wei
bliche para voltar ao ponto básico: Eros e Tânatos, juntos novamente,
com Eros triunfante.
As heroínas de Wagner formam um arsenal de feminilidade reden
tora: Senta, Elizabeth (Tannhäuser), Elsa (Lohengrin), Isolda (Tristan
und Isolde), Eva (Die Meistersinger), Brunilde: todas elas mulheres
fortes que muitas vezes sobrevivem aos homens que amam. Elas são as
idealizações musicais e dramáticas de Margarida, a um tempo tentação
e redenção, a centelha divina encarnada que leva seus heróis, muitas
vezes pobres e fracos, a seus feitos gloriosos. Todos têm um dever de
gratidão em relação à heroína feminista operística arquetípica, a Leono
106
O ETERNO-FEMININO
re, de Beethoven, em Fidelio, que resgata o marido Florestan da prisão,
disfarçando-se de homem e mantendo o cruel governador da prisão,
Don Pizarro, sob a mira da arma até que, finalmente, chega a cavalaria.
E ainda assim essa força mais básica da vida humana, o Ewig
- Weibliche, é constantemente ridicularizada e denegrida pelos rebentos
da esquerda profana, as harpias "feministas" cada vez mais desenrai
zadas, cuja retórica antimachista não evidencia tanto ira impotente,
mas inveja sexual.
O ataque à heterossexualidade convencional (liderado pelos ho
mossexuais masculinos e pelas lésbicas, e invariavelmente disfarçado
de movimento pelos "direitos", pegando carona no movimento pelos
direitos civis da década de 1960) é fundamental para o sucesso da
Teoria Crítica, que foi direto no alvo mais difícil (embora, em diversos
aspectos, o mais brando) primeiro. A razão era simples: se pudesse
haver uma separação entre homens e mulheres, se a família nuclear
pudesse ser cindida, se as mulheres pudessem ser convencidas a temer
e odiar os homens, a vê-los como desnecessários para sua felicidade e
sobrevivência, ou seja, se os homens pudessem se tornar biologicamente
supérfluos, então o partido político que havia adotado a Teoria Crítica
poderia ter nas mulheres solteiras seu grupo de eleitores mais forte.
E assim, a maçã foi oferecida a Eva: em troca da rejeição a um
papel sexual "tradicional" de suposta subserviência e dependência (de
escravidão, na realidade), ela se tornaria mais como um homem com
seus apetites e práticas sexuais (a isso se chamou "liberdade"), e ela
seria liberada dos pesos da maternidade por meio da contracepção
generalizada, da facilidade do aborto e da anulação do "estigma" de
mãe solteira (se chegasse a esse ponto) ou de solteirona. Amparada pela
força do punho governamental, ela competiria com os homens pelos
empregos, por salários elevados e status social, conservando sempre
todos os seus direitos de mulher. Só o que tinha a fazer era ajudar a
destruir a velha ordem.
O resultado foi totalmente previsível: mulheres masculinizadas,
homens afeminados, quedas nos índices de natalidade no mundo oci
dental, e a criação de uma classe político-tecnocrata capaz de digitar,
mas de pouco trabalho verdadeiro, no sentido tradicional. Campi
universitários mistos rapidamente passaram de blocos residenciais
107
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
separados por sexo para dormitórios mistos, para a "cultura da pe
gação", descrita pelo romancista Tom Wolfe em Eu sou Charlotte
Simmons, para uma recente histeria da "cultura do estupro" puritana
e explicitamente antimachista, na qual autoridades sexuais estabelecem
regras detalhadas para os encontros sexuais e muitas vezes prescindem
por completo do procedimento legal previsto ao decidir judicialmente
as queixas feitas por alunas.
De forma decisiva, em cada passo do caminho, a “mudança” das
velhas normas foi sendo apresentada como "melhoria" ou "liberação",
ou seja, mais realização, mais prazer, mais experiência. E, mesmo
assim, a cada passo, as coisas pioraram para as mulheres. A mordida
que Eva deu na maçã baniu a humanidade do Jardim o que é triste,
mas sensato. A mulher transgressora ocidental da atualidade é apenas
mais triste e muitas vezes chega ao final da vida completamente só:
um resultado, de fato, satânico. Relembro a parábola da cerca de G.
K. Chesterton, em "The Drift from Domesticity", em A coisa (1929):
Existe um princípio puro e simples na forma de reformar as coisas, diferen
temente de deformá-las; um princípio que provavelmente será chamado de
paradoxo. Há nesse caso certa instituição ou uma lei, digamos, em nome
da simplicidade, uma cerca, ou portão, atravessada na estrada. O tipo mais
moderno de reformador aproxima-se alegremente dela e diz: "Não vejo a
utilidade disso, vamos retirá-la". Ao que o tipo mais inteligente de refor
mador estará correto ao responder: "Se não vê utilidade nela, com certeza
não vou deixar que a retire. Vá embora e pense. Então, quando puder voltar
e me dizer que percebe de fato a utilidade dela, eu permito que a destrua".
Um exemplo esplêndido da cerca de Chesterton foi a Immigration
and Nationality Act [Lei de Imigração e Nacionalidade] de 1965,
defendida pelo senador Edward Kennedy de Massachusetts. "Contra
riando as acusações de alguns grupos, [a lei] não inundará a América
com imigrantes de qualquer país ou área", disse o senador por Mas
sachussetts. "Em última análise, não se espera que o padrão étnico da
imigração, segundo a medida proposta, mude tão rapidamente quanto
os críticos parecem achar. [...] A lei não irá inundar nossas cidades
com imigrantes. Ela não relaxará os padrões de admissão. Não fará
com que os trabalhadores americanos percam seu emprego". Meio
século depois, essas previsões mostraram-se falhas em sua totalidade.
108
O ETERNO-FEMININO
A questão é se Kennedy e seus companheiros esquerdistas sabiam
muito bem na época que suas previsões eram furadas, embora (como
já disseram) que diferença faz, a essa altura?
Da mesma forma, grande parte da "reforma" contemporânea é
marcada pela impaciência, pelo ridículo e pela pressa, encoberta por
"compaixão" ou "compreensibilidade”, disfarçada de “direitos" ar
rancados da Constituição com um pé-de-cabra e um quebra-gelo, e
apresentada com um riso convencido de escárnio contra qualquer um
que se oponha.
As últimas palavras de Fausto, Parte I, não são de Fausto nem mes
mo de Mefistófeles, mas de Margarida, conforme sua alma se eleva
no céu, gritando pelo amante perdido: "Henrique! Henrique!". Ele
fracassou no resgate da pobre e enlouquecida Margarida. Agora, cabe
a ela resgatá-lo, nem que seja no além, na outra vida. Mas o drama
prossegue, apesar de tudo.
A princípio, os leitores de língua inglesa podem não avaliar a rela
ção de proximidade e intimidade contida nesse último verso. Goethe
não usa o nome de batismo de Fausto até a cena XVI, logo depois
dos famosos versos "Gretchen am Spinnrad” (famosos também pela
música de Schubert). Fausto e Margarida trocaram o primeiro beijo;
seu mundo virginal foi revirado, e seu corpo agora deseja o dele, con
forme sugerido pelo uso que Margarida faz de seu nome de batismo,
Henrique, na cena seguinte. É um momento de extrema intimidade,
pois os alemães daquela época e, ainda no século XX, não deixaram
facilmente de usar o tratamento formal pelo mais íntimo duzen, usando
a segunda pessoa, familiar, "você". Mesmo amigos próximos e casais
levavam anos para adotar o tratamento íntimo, se viessem a fazê-lo
algum dia. O problema de Fausto é que ele não consegue ver a luz até
que seja tarde demais para o seu amor e quase tarde demais para ele.
O que nos acordará do longo sono da razão que marcou a cultura
americana desde o fim da Segunda Guerra Mundial? Os intelectuais
da Escola de Frankfurt encontraram o momento perfeito para atacar
o país que os acolhera não quando estava fraco, mas quando estava
forte. Nos tempos difíceis, as sociedades sempre se agrupam em torno
de seus valores essenciais, mas quando os tempos são de abundância,
109
MICHAEL WALSH
ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
as pessoas ficam mais propensas a um pequeno experimento social,
especialmente se houver nele um cesto de frutos proibidos. Antes da
vitória americana na Segunda Guerra Mundial, é provável que homens
como Adorno, Horkheimer, Gramsci, Lukács, Reich e Marcuse tivessem
sido evitados, sendo sua filosofia acertadamente considerada como os
desvarios de descontentes amargos e perigosos. No entanto, o próprio
fato de os Estados Unidos terem surgido com um padrão moral elevado
depois de derrotar a Alemanha nazista e o Japão imperial, cujos crimes
foram inafiançáveis, deixou seu território livre para as serpentes que se
insinuaram enquanto ninguém olhava, sussurrando: "Por que não?".
"Por que não questionar a autoridade? Por que não derrubar seu
código moral? Por que não fazer, se nos sentimos bem?". As crianças
seguras da década de 1950 tinham se tornado os universitários mimados
das décadas de 1960 e 1970, e sua inclinação natural como jovens era
considerar os pais como tolos e idiotas. A inquietação civil da década
de 1960 acrescentou o racismo à mistura, e o Vietnã contribuiu com a
inutilidade e, paradoxalmente (como se constatou), com a suspeita do
governo. (Será que o governo pode nos salvar do governo?).
Os Estados Unidos podem ter esmagado o fascismo, mas o que
fizeram por nós ultimamente? Determinados e ambiciosos, os esquer
distas partiram para suas atividades, moldando a longa marcha pelas
instituições da mesma forma como Mao, um de seus ícones, realizara
a longa marcha para escapar do Kuomintang na China e acabou assu
mindo o controle do país. Levaria tempo, mas o jogo valia o sacrifício.
Fora isso, conforme Mefistófeles observa para um Fausto zangado:
"Não há nada mais ridículo no mundo inteiro do que um demônio
em desespero". Eles esbanjavam confiança em sua moralidade e na
missão de "liberação" cultural.
O grito de Margarida, "Henrique! Henrique!", para Fausto é um
grito de desespero, mas contém uma semente de esperança. Ele é seu
marido e ela, o Ewig-Weibliche, a melhor metade dele. O propósito da
Teoria Crítica era remover qualquer vestígio dessa emoção, e a falta de
propósito tornou-se uma finalidade em si. O menor fio de esperança (no
caso, a dúvida quanto à propriedade da causa esquerdista) seria uma
vela na escuridão, iluminando o universo. Isso não podia acontecer.
110
O ETERNO-FEMININO
Quando Margarida, em extrema aflição, grita o nome do amado,
é a última tentativa de romper a escuridão de Mefistófeles e de enviar
um raio de luz celeste que atinja o vazio da alma de Fausto. Há muito
tempo que ela suspeitava daquele parceiro estranho, e Mefistófeles
lhe dá calafrios. Suas aparições nunca levavam a nada de bom. Quan
do raia a madrugada no dia de sua morte, apenas Margarida força
Fausto a ver o demônio como ele é: um vampiro, a semente da mais
profunda escuridão. "O que ele deseja neste lugar sagrado?", ela grita
para Fausto. "Ele quer a mim!". Exatamente, caberia observar, como
a serpente queria Eva no Jardim.
Então, é isso. No final, o demônio não está interessado em Fausto, mas
na mulher, o eterno-feminino, ela que, no final, acabará esmagando-o
sob os pés. Mefistófeles acredita já possuir a alma de Fausto. Entretanto,
é a inocente e corruptível Margarida que ele realmente quer. Em certo
sentido, o poema inteiro (como Paraíso perdido) foi uma gigantesca
desorientação, e as verdadeiras intenções de Mefistófeles (e do poeta)
só são reveladas no final. Mas, então, Fausto dá um passo à frente e
diz a Margarida: "Viverás". Ela dedica a alma a Deus, confiante na
vingança de Eva contra o Dragão Vermelho.
MEFISTÓFELES
Sie ist gerichtet!
[Ela é amaldiçoada!]
UMA VOZ VINDA DO ALTO
Ist gerettet!
[Está salva!]
Derrotado, Mefistófeles reclama o único prêmio restante. Volta-se
para Fausto e,, acenando, diz: “Aqui, comigo!". E enquanto ambos de
saparecem em meio ao enxofre, ouvimos os últimos versos da primeira
parte da obra-prima de Goethe, ditos por Margarida, em ascensão:
"Henrique! Henrique!". A voz dela é a voz da esperança no deserto, a
luz na escuridão que, sem ela, seria uma noite eterna, e a promessa de
que, quaisquer que sejam nossos pecados, se apenas tivermos fé, isto
também passará. Mesmo na morte, o eterno-feminino nos impulsiona
ainda mais à frente, para a luz. E assim, é para a luz que precisamos
nos voltar agora.
111
CAPÍTULO VII
Luz e escuridão
s primeiras palavras de Deus no Gênesis são: "Haja luz". Elas
A são, em um sentido muito real, o começo da nossa narrativa
original, tanto na história quanto na realidade física. Seja Deus
e sua existência um artigo de fé ou somente um personagem na história
mais antiga já contada, até o ateu mais convicto há de concordar que
o universo teve algum tipo de começo. Sabemos que o universo está
se expandindo (expandindo para onde?). A teoria geralmente aceita
do Big Bang, quando aplicada ao contrário, deve ter um ponto de
origem, o momento em que a luz irradiou da escuridão e fez girar sóis
e planetas ardentes em sua alegre jornada celestial para algum lugar.
Usamos a palavra como metáfora: a "luz" do conhecimento, a "luz"
da razão, "ver a luz". As coisas clareiam. Temos momentos de clareza.
A descoberta do fogo trouxe calor aos nossos ancestrais nas cavernas,
mas também gerou luz. A vida é impossível sem ela. Por que, então, a
pressa em voltar para a escuridão?
A luta entre luz e escuridão é, como apontou o comentarista conser
vador Bill Whittle, desigual. Para que a escuridão (o reino de Satanás)
triunfe, ela deve ser completa, uma escuridão infinita. E, no entanto,
a luz de uma única vela, em algum lugar do universo, a derrota:
agora há luz onde antigamente não havia. Ou há luz, ou não há luz.
113
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
Não pode haver síntese. O elemento mais importante para nossa
sobrevivência é poderosíssimo, apesar de simples. Não é de admirar
que Gênesis comece com ele, pois a criação do céu e da Terra por Deus
não pode de fato existir até que possa ser vista.
Não é por acaso, portanto, que o caminho para a destruição e a
escuridão deva ser imposto por meios totalitários, e, pela mesma razão,
os estados totalitários inevitavelmente cairão, pois é impossível para
eles manter o controle absoluto sobre 100% da população o tempo
todo. Como o colapso da União Soviética provou, a luz de um único
refusenik¹ foi suficiente para manter a chama da liberdade acesa até
que, depois de um tempo, incendiou as estruturas apodrecidas do
governo corrupto e o derrubou.
A noção de luz e escuridão permeia toda a narrativa humana, na
turalmente. Portador da luz, o dom do fogo: o titã Prometeu roubou
o próprio fogo do Olimpo para entregá-lo à humanidade e foi punido
pela eternidade, sendo acorrentado a uma rocha, onde seu fígado era
bicado diariamente por uma águia. Histórias semelhantes aparecem
em todas as culturas, incluindo a indiana, a polinésia e a ameríndia.
O medo da escuridão e das criaturas satânicas que nela se escondem
é um elemento básico dos contos de terror e suspense, sem falar dos
filmes. Na verdade, o que assusta e atrai no gênero terror é a rejeição
parcial da premissa de que a luz vencerá a escuridão; o simples acionar
de um isqueiro pode revelar horrores pavorosos que é melhor não ver,
mesmo à custa da vida.
Esta é a premissa subjacente dos trabalhos de H. P. Lovecraft e seus
mitos de Cthulhu. Antes menosprezado como os pesadelos de ficção
científica de um excêntrico da Nova Inglaterra, o mundo sombrio dos
Grandes Antigos (deuses antigos agora presos em sono mortal, que
não devem ser despertados) encontrou identificação no inconsciente
adormecido do Oeste pós-cristão. "Ph'nglui mglw'nafh Cthulhu R'lyeh
wgah'nagl fhtagn" ["Em sua casa em R'lyeh, Cthulhu, morto, espera
sonhando"] é uma frase familiar para qualquer um que conhece um
pouco desse mito. Os trabalhos de Lovecraft apresentam um arsenal
1
Termo não-oficial para aqueles, não exclusivamente judeus, aos quais se negava a permissão
de abandonar a União Soviética - NT.
114
LUZ E ESCURIDÃO
de monstros. Eles não são do Id, como as criaturas de Planeta proi
bido, o filme de ficção científica de 1956 que apresentou a um amplo
público não apenas partes da psiquiatria freudiana, mas também Ro
bby, o Robô, com uma trama subjacente inspirada em A tempestade,
de Shakespeare. As bestas de Lovecraft são criaturas que estão além
do espaço e do tempo (que, como Wagner postula em Parsifal, são a
mesma coisa).
"A coisa mais misericordiosa do mundo, creio eu, é a incapacidade
da mente humana de correlacionar todo o seu conteúdo", diz a famosa
linha de abertura do conto de Lovecraft "O chamado de Cthulhu",
de 1926, publicado pela primeira vez dois anos depois, nas páginas
da Weird Tales. Mas é melhor citar o primeiro parágrafo na íntegra,
que continua:
Vivemos em uma plácida ilha de ignorância em meio a mares negros de
infinitude, e não era para que viajássemos para longe. As ciências, cada
uma avançando em sua própria direção, até agora nos prejudicaram pouco,
mas algum dia a junção de conhecimentos dissociados criará visões tão
aterrorizantes da realidade e de nossa situação assustadora, que enlouque
ceremos com a revelação ou fugiremos da luz mortal para a paz e segurança
de uma nova Idade das Trevas.
Assim fala a voz do niilismo sedutor. Para os três "Faustos" ator
mentados de Lovecraft (Francis Wayland Thurston, George Gammell
Angell, Charles Dexter Ward, et al.), o niilismo é a única reação possível
aos terrores avassaladores de uma criação profana. Em Lovecraft, que
ambientou grande parte de suas histórias mais famosas nos arredores
assombrados de Massachusetts (geralmente a cidade fictícia de Arkham,
onde fica a igualmente fictícia Universidade Miskatonic), os que buscam
a luz do conhecimento se arrependem amargamente de suas buscas,
implorando por uma morte misericordiosa, à medida que a loucura
de suas descobertas (o conhecimento proibido) os acomete e domina.
Suas buscas científicas, como a de Fausto, levam direto ao inferno,
este inferno em particular que consiste em toda a extensão do cosmos,
exceto a pobre e lamentável Terra, onde seres humanos, como insetos,
habitam um paraíso dos tolos, a ser perdido a qualquer momento.
Esse niilismo, indiscutivelmente, exerce uma forte influência sobre a
imaginação humana, sobretudo entre os jovens. Para aqueles que vêem
115
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
as doenças físicas e morais da idade num futuro distante e inimaginá
vel, um flerte com o pecado e a morte geralmente parece irresistível.
Há certo frisson em perceber, como num caso de mistério de Hercule
Poirot, de Agatha Christie, que o assassino deve ser um de nós, que a
culpa é coletiva, não pessoal. Após o colapso do sistema de estúdios
de Hollywood no final da década de 1960 e início da década de 1970,
uma geração de jovens roteiristas e diretores apareceu com uma série
de filmes de tendência niilista, muitas vezes terminando com o herói
incapaz de romper o véu do mal, enquanto os bandidos fogem.
Um dos principais retratos disso provavelmente é Chinatown, de
Robert Towne (1974), dirigido por Roman Polanski, cuja esposa, a
atriz Sharon Tate, havia sido a vítima mais famosa do massacre da
família Manson em 1969, em Los Angeles. Situada na Cidade dos
Anjos, Chinatown abordou o próprio mito da criação de Los Ange
les, o transporte das águas do Vale Owens para a incipiente e sedenta
metrópole, aqui representada como o pecado original de Tinseltown
(Hollywood). Preso em uma trama cujas maquinações ele nem suspeita,
o detetive particular J. J. Gittes não é páreo para o monstruoso Noah
Cross, que, no final, escapa não apenas com o dinheiro e a garota,
mas também impune em relação ao assassinato. A famosa última
frase do roteiro ("Esqueça, Jake: é Chinatown", dita no clima noir de
uma noite em Los Angeles) simboliza a incapacidade do homem de
compreender totalmente o mal e sua impotência absoluta diante de
sua força implacável e inigualável. O mal não admite argumentação
ou lógica, e, às vezes, nem pode ser derrotado.
O niilismo, no entanto, vem com sua solução: o impulso heróico, a
ação. Satanás pode ser capaz de destruir, mas ele não é capaz de criar.
Por trás do flerte da juventude com a morte, sua tendência a testar os
limites, seu puro prazer de viver em perigo, jaz o desejo de vencer, não
de perder. É por isso que os soldados são recrutados entre os jovens:
não somente porque eles estão no auge da aptidão física, mas porque,
para eles, a morte é meramente teórica, até fascinante, e seu idealismo
ainda não foi totalmente arrancado. A questão da civilização é como
aproveitar essa bravura (pois, na guerra, ela aparece) e torná-la útil. Na
atual batalha contra os guerreiros suicidas do islã, o soldado ocidental
116
LUZ E ESCURIDÃO
pode parecer, a princípio, em desvantagem. Ele deseja sobreviver ao
contato com o inimigo. Ele não sonha com "martírio", uma palavra
cujo significado principal (uma morte de princípios e altruísta nas
mãos do inimigo, ilustrando a qualidade moral superior de sua fé)
foi terrivelmente corrompido e transmitido, sem cuidado, por uma
mídia desvinculada das raízes cristãs da nossa cultura. Se o soldado
ocidental não deseja ser um mártir de Deus, ele se mostrou disposto
a sacrificar-se para salvar seus colegas soldados, e isso pode inspirar
feitos ainda maiores de heroísmo. Por outro lado, os combatentes
niilistas do islã, como eles nos lembram o tempo todo, amam a morte
mais do que a vida.
À medida que os gostos e os tempos mudam, o mesmo acontece
com os finais das histórias. Em A canção de Rolando, Rolando morre,
mas não em vão: sua morte leva os francos cristãos de Carlos Magno
à vitória contra os muçulmanos invasores. Seria fácil reformular a
vitória como o triunfo do niilismo, concluir que Rolando, conduzido
a uma armadilha e orgulhoso demais para pedir reforços em tempo
hábil, acaba morrendo por nada. Observando o ritmo acelerado da
atual Reconquista muçulmana - desta vez, de todo o Dar al-Harb
(mundo de guerra não-islâmico), que deve ser subjugado para que a paz
de Alá possa reinar, através da infiltração disfarçada de "imigração" da
pátria dos cruzados (o islã tem uma memória longa) —, alguém poderia
facilmente prever esse final, dependendo do resultado da luta atual.
Será esse o destino do Ocidente? Ou ainda há Rolandos suficientes
para lutar, moral e fisicamente, pelo que costumava ser considerado
um modo de vida superior?
Um dos aparentes paradoxos da vida política americana moderna
é a aliança entre a esquerda profana e o recrudescente islã militante.
Não parece importar que um califado muçulmano mundial, sob a lei
bárbara da sharia, signifique execuções de homossexuais, afastamento
de mulheres da esfera pública, extinção da arte e da cultura musical,
coisas que a esquerda professa defender com convicção. E, no entanto,
eles ficaram em silêncio quando o Talibã, depois de tomar o poder no
Afeganistão em 2001, destruiu os budas de Bamiyan do século vi, ale
gando idolatria. Tampouco a destruição de artefatos mesopotâmicos de
117
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
valor inestimável no Iraque ou de ruínas romanas na Síria incomodou
muito os "progressistas".
E, no entanto, não há mistério real. Como o imperador combaten
te, Marco Aurélio, escreveu em sua coleção de reflexões do campo de
batalha conhecidas como Meditações: "Pergunte a si mesmo: o que é
isso em essência, por sua própria constituição especial? O que é isso
em substância, em forma e matéria? Qual a sua função no mundo? Por
quanto tempo subsiste? Assim, você deve examinar todas as coisas que se
apresentam a você". O que a esquerda e o islã têm em comum é a única
coisa que importa para eles: vontade de poder e desejo de submissão
de seus inimigos. As diferenças doutrinárias (e existem muitas) entre
dois movimentos totalitários inatos podem ser resolvidas mais tarde.
O que importa é que o inimigo principal primeiro seja derrotado, pois
ele (nós) representa uma ameaça moral e mortal imediata. O caminho
mais rápido para a vitória de ambos não está no confronto, mas em
nosso desarmamento cultural unilateral.
Os teóricos da Escola de Frankfurt não podiam oferecer nada além
de doces palavras utópicas e vazias, em vez de algo construtivo; eles
pregavam a liberdade, mas criaram apenas escravidão (“liberdade é
escravidão", como em 1984); eles prometeram a auto-realização de
todos os homens, mas reduziram a população de nações inteiras ao
status de colaboradores e funcionários; eles prometiam a paz, mas
trouxeram apenas a guerra sem fim, originada quando o que é demais
nunca é (e nunca pode ser) o bastante. A busca da perfeição terrena,
como Fausto descobriu, termina em miséria, assassinato e morte. Por
mais que haja floreios em seu impenetrável estilo alemão, na raiz de
sua filosofia enganosa estão o incitamento e a raiva a serviço de uma
busca pelo poder sobre seus semelhantes. O demônio veste sempre a
mesma máscara e, no entanto, cada geração deve penetrar no disfarce
por si mesma ou perecer.
Mas só recentemente o niilismo cultural ultrapassou os limites da
literatura e, em menor grau, da filosofia, para encontrar sua expressão
como sistema político democraticamente instalado e completo, em vez
de uma tirania selvagem de potentados ambiciosos. O veneno injetado
da Teoria Crítica mina a cada passo a força da autoconfiança cultural
118
LUZ E ESCURIDÃO
que distinguia os guerreiros e líderes ocidentais até o final da Segunda
Guerra Mundial. Um general como George S. Patton Jr. seria quase
inconcebível hoje. A escuridão desceu sobre a Europa oriental após o
impasse político do pós-guerra e, sem ninguém para detê-la, foi apenas
parcialmente dispersa pela queda do comunismo no bloco oriental. A
ética da União Soviética foi infelizmente transmitida, como um vírus
aéreo, para o filho do Iluminismo, o Novo Mundo.
Não foi à toa que a era da descoberta artística, científica, filosófica
e geográfica européia foi chamada de Iluminismo, que se seguiu à re
descoberta renascentista da cultura greco-romana após um século de
feudalismo europeu (período idealizado por Erich Fromm, quando os
servos e camponeses conheciam seu lugar). Os estudiosos geralmente
datam o início desse extraordinário florescimento do conhecimento
por volta de 1685, que é o ano do nascimento de Johann Sebastian
Bach. Embora grande parte dos estudos modernos tenha sido dedicada
a dissipar a noção de “Idade das Trevas" da Europa (uma cunhagem
chauvinista do Renascimento), não há dúvida de que a influência
libertadora do Renascimento italiano, abrindo caminho para as des
cobertas do Iluminismo, levou os europeus a uma era de descobertas
sem precedentes.
A maioria dos comentários sobre o Iluminismo aborda os avan
ços científicos e filosóficos da cultura da Europa ocidental, mas não
devemos ignorar o papel da música e da ópera, particularmente uma
das últimas obras de Mozart, um Singspiel (brincadeira cantada) em
alemão, conhecido como A flauta mágica. Não existe representação
mais clara do conflito entre as forças da luz e da escuridão no cânone
operístico, e vale a pena dedicar algum tempo a essa obra.
Em Milton, luz e escuridão simbolizam as forças opostas de Deus
e Satanás. O poeta abre o livro III com esta invocação:
[...] como Deus é luz,
e em luz inacessível
habitou desde a eternidade, e habitou, então, em ti,
emanação brilhante de brilhante essência incriada...
[...]
119
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
[...] tu, luz celeste,
brilhas adentro, e a mente, com todos os seus poderes,
irradia, cria olhos, toda a névoa dali
expurga e dispersa, para que eu possa ver e contar
coisas invisíveis à vista mortal.
Essas imagens foram e são particularmente poderosas no norte da
Europa, com seus curtos dias de inverno e longas noites. Lá, o retor
no da luz no Natal, tanto literal quanto simbolicamente, é visível de
uma maneira que não se vê nos climas mais meridionais dos Estados
Unidos. A ascensão diária do Sol pode ser medida em minutos, não
em segundos, e a progressão da esfera solar pelos céus do sudoeste e
oeste oferece um lembrete diário da marcha das estações, totalmente
ausente no equador.
A luz e a escuridão são temas de destaque em muitas obras de
arte, tanto visuais quanto teatrais, mas A flauta mágica de Mozart
é paradigmática. A penúltima ou até última ópera do compositor,
dependendo de como contamos (La Clemenza di Tito foi quase toda
escrita após a maior parte de A flauta mágica, mas chegou aos palcos
algumas semanas antes), foi composta para o Theater auf der Wieden,
de Emanuel Schickaneder, em Viena, sobre um libreto maçônico do
próprio empresário. Schickaneder também atuou como Papageno nas
primeiras apresentações, no outono de 1791, apenas alguns meses antes
da morte de Mozart, em dezembro daquele ano.
Regida pelo compositor enfermo e cantada em alemão, com diálogo
falado no mesmo idioma, a obra era mais parecida com o que pode
ríamos considerar como comédia musical, em oposição a Tito, mais
"operística", cantada em italiano. Tornou-se logo popular, combinando
elementos folclóricos (o "homem pássaro", Papageno, e sua companheira,
Papagena), com a história principal, mais etérea, do amor do príncipe
Tamino por Pamina, filha da Rainha da Noite, e das provações que os
amantes devem superar para encontrar sua felicidade no final da ópera.
Até aqui, bastante convencional. Mas o que distingue A flauta má
gica como a ópera do Iluminismo por excelência é a questão moral que
estávamos discutindo: o ato de mascarar o mal como bem, as morta
lhas da ilusão que as forças da escuridão lançam sobre os inocentes
120
LUZ E ESCURIDÃO
e incautos. No início da ópera, Tamino (um "príncipe japonês") está
perdido em uma terra estranha, sendo perseguido por uma serpente
gigante, que o faz desmaiar de medo. O homem inconsciente é res
gatado por três damas, que lhe mostram uma foto da linda Pamina e
contam-lhe que ela foi seqüestrada pelo malvado feiticeiro Sarastro.
Tamino imediatamente promete salvá-la, em gratidão por ter sido
salvo e também porque, como Fausto e Margarida, ele se apaixonara
na hora pela imagem dela.
A realidade acaba sendo exatamente o contrário. Diante dos três
templos, o da Sabedoria, o da Razão e o da Natureza, Tamino encontra
Papageno e a adorável Pamina, mas ele é rapidamente separado dela
por Sarastro e sua seita de sumos sacerdotes, que, na verdade, são
servos da Luz. (Na linguagem das histórias, isso é conhecido como "a
reversão"). Ele descobre que a mãe de Pamina, a ambiciosa Rainha
da Noite (tanto dramática quanto musicalmente) e companhia são
criaturas das trevas, e que ele e Pamina devem passar por provações
bíblicas de fogo e água para serem purificados e merecerem um ao
outro antes de se unir.
As provações simbolizam o caminho para a iluminação que somente
os mais fortes e dignos podem empreender. Embora tenha desmaiado
diante das adversidades no início da história, Tamino finalmente se torna
homem, enquanto Pamina é purificada de quaisquer pecados que ela
possa ter herdado de sua mãe, que é vencida e derrubada pelo poder
do Sol: "Die Strahlen der Sonne vertreiben die Nacht" ["Os raios de
Sol afugentam a noite"], proclama Sarastro perto do final da ópera, ao
derrotar a Rainha da Noite, "Zernichten der Heuchler erschlichende
Macht" ["Destruindo o poder conivente dos hipócritas”]. Quando a
Rainha e suas damas afundam na terra, exclamam: “Caímos na Noite
Eterna!". Além daquilo que a personagem canta, em uma das árias de
coloratura mais desafiadora da ópera: “A vingança do inferno ferve
em meu coração".
Lembre-se, A flauta mágica era um entretenimento popular. Talvez
tenha sido popular por causa, e apesar, de sua natureza elementar. A
ópera Tito, escrita quase simultaneamente, foi um regresso à opera
seria, da juventude de Mozart: histórias quase sempre ambientadas
121
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
na Grécia ou Roma antigas. A música de Tito é maravilhosa, mas a
ópera é menos executada do que A flauta mágica hoje. As óperas de
Mozart que constituem a pedra angular do repertório operístico con
temporâneo, tratam de seres humanos e emoções humanas; ao lado
deles, a opera seria de deuses e monstros de Handel é extremamente
ultrapassada e (devido às temidas árias da capo) muito demorada. Po
demos praticamente datar o florescimento do Iluminismo de As bodas
de Fígaro, Così fan tutte, Don Giovanni e A flauta mágica, de Mozart.
Ainda assim, se A flauta mágica fosse meramente uma obra didática ou
alguma forma de defesa especial dos valores maçônicos da vida de Mozart
e Schickaneder (e várias outras figuras envolvidas na composição e pro
dução da ópera), provavelmente a veríamos hoje como uma curiosidade,
um artefato de uma civilização desaparecida. É claro que o trabalho foi
atacado por esquerdistas politicamente corretos, que vêem a descrição do
mouro solitário e traiçoeiro, Monostatos, como “racista”, sobretudo por
causa dos versos, geralmente censurados hoje em dia, do libreto: "Weil
ein Schwarzer haesslich ist... Weiss ist schön, ich muss sie küssen. Mond,
verstecke dich dazu” [“Porque um homem negro é feio... O branco é lindo!
Devo beijá-la. Lua, esconde-te, para que eu possa fazê-lo"]. Na década de
1970, as casas de ópera já estavam alterando esses versos para proteger a
sensibilidade de pessoas delicadas. Vi uma produção naquela época que
caracterizou Monostatos mais gordo do que preto, o que, obviamente,
seria também politicamente incorreto hoje em dia.
Essa "sensibilidade" é apenas mais uma característica do ataque à
cultura ocidental e, em particular, o aspecto do ataque que emprega o
absinto da culpa como arma. Não importa que a figura dos mouros no
final do século XVIII fosse bem reconhecida como de vilões: a personi
ficação de uma ameaça literalmente existencial à cristandade. Uma das
óperas anteriores de Mozart, O rapto do serralho (1782), abordava o
problema, tópico na época, de muçulmanos turcos que empregavam
mulheres européias capturadas como concubinas de harém. (A ópera
termina com um notável ato de misericórdia do Paxá Selim, sem dúvida,
confundindo as expectativas modernas). Mas num mundo que filtra
tudo através das lentes da Teoria Crítica, nenhum pecado do passado
pode passar despercebido ou impune.
122
LUZ E ESCURIDÃO
Se você pode atacar Mozart, um dos maiores gênios da Europa
ocidental, pode atacar qualquer pessoa. Mas esse é precisamente o
ponto da Teoria Crítica. Não há necessidade de considerar o conjunto
total da vida e obra do artista. Basta encontrar uma única observação,
atitude ou letra politicamente incorreta para desacreditá-lo, e pronto.
A esquerda totalitária (e seu impulso é, e sempre deve ser, em direção
ao totalitarismo em nome da "compaixão") não tolera o menor des
vio de suas normas autoproclamadas. Como nas trevas satânicas, não
pode haver um único ponto de luz para perturbar a manta sufocante
da ortodoxia, pelo risco de que alguém, em algum lugar, veja a luz.
Nossos antepassados sabiam que a escuridão estava sempre lá fora,
além do alcance da vela, da tocha, do holofote, que a noite continha
terrores com os quais temíamos até sonhar. Quando o escritor irlandês,
Bram Stoker, começou a escrever seu romance epistolar especulativo,
inspirado no folclore da Europa central e em Vlad, o Empalador da
Valáquia (1431-1476), ele explorou um dos medos mais primitivos
da Europa central. (Na Bulgária, foi descoberto, em 2014, um túmulo
de sete mil anos, em que havia esqueletos com estacas no coração). O
romance era Drácula, cuja reverberação sombria continuamos a sentir
até hoje. Aliás, como mostra a saga do filme Crepúsculo e os livros
e séries de TV True Blood, os vampiros nunca foram tão populares.
Personificado no filme de 1931 de Béla Lugosi, um dos primeiros fil
mes falados de terror, o vampiro é suave, sedutor e sexy (bem vestido
também). Ele promete a vida eterna em troca da morte eterna, sendo
muitas vezes irresistível, especialmente para as mulheres. Como entre
gou sua alma a Satanás, ele vagueia pela escuridão eterna, procurando
almas frescas, sem necessidade de luz. Ele é, aliás, mortalmente alérgico
à luz. Reza a lenda que os raios do Sol, "die Strahlen der Sonne", o
destruirão, tão certamente quanto destruíram a Rainha da Noite e
companhia em A flauta mágica.
De um modo geral, no mito dos vampiros, é a mulher, o principal
alvo do monstro, que o confunde e o derrota. No elegante, expressivo e
seminal Nosferatu (1922), de F. W. Murnau, estrelado por Max Schreck
no papel de Conde Orlok (por motivos de direitos autorais), a heroína
Ellen se sacrifica voluntariamente ao conde, abrindo seu quarto para
123
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
ele e mantendo-o ocupado com seu sangue, até que, distraído pela
luxúria, ele é transformado em pó pelo Sol da manhã enquanto o galo
canta. (As imagens sexuais e religiosas do filme são rápidas e em grande
quantidade, incluindo uma agonia erotizada no Jardim).
No começo, isso pode parecer contraditório: a mulher (exceto
Pamina, libertada do pecado de sua mãe) é má em A flauta mágica,
enquanto é vencedora em relação ao vampiro em Drácula. Mas é tudo
a mesma coisa. A mulher está mais próxima da escuridão sangrenta
e ctônia do que o homem; ela conhece o mal mais intimamente. Feita
a partir da costela de Adão, ela é a última e melhor parte da Criação
de Deus, o ponto final. Embora seja a primeira a cair, ela também é a
Redemptoris Mater, a Mãe do Redentor, a Mulher Vestida de Sol, cuja
vitória final e transcendentemente vingativa sobre o Grande Dragão
Vermelho, a serpente que maculou seu sexo e a humanidade, forma o
clímax da grande narrativa original implantada em nossos corações e
nos lábios de nossos poetas e contadores de histórias.
Como o relato mais heróico da história da humanidade se trans
formou em um antimito de escravidão feminina é um mistério para
a posteridade. Mas a menos que a esquerda possa extinguir a luz da
mulher e seus poderes divinos da criação humana, ela não tem como
vencer. E, assim, ela espera convencer a mulher de que ela não é mais
do que um homem inferior, plantar a semente do ressentimento, regá
-la com bile e esperar que daí germine o sono da razão: um monstro.
O lado sombrio é um aspecto essencial do caráter e da psique huma
na, todos concordam. A religião reconhece esse fato primordial, assim
como a literatura. Não pode haver drama, conflito, sem bem e mal,
luz e escuridão, protagonista e antagonista. Mas as histórias também
nos lembram de embora a escuridão possa vencer de tempos em
que,
tempos (como acontece em Chinatown), trata-se de uma vitória tem
porária. Todo mundo tem a chance de ver a luz.
Em 2007, a falecida romancista Doris Lessing publicou um ensaio no
New York Times após ganhar o Prêmio Nobel de literatura. Nascida no
Irã de pais britânicos e educada na Rodésia, Lessing abraçou o comu
nismo quando jovem (seu segundo marido, Gottfried Lessing, tornou-se
embaixador da Alemanha oriental em Uganda, onde foi assassinado
124
LUZ E ESCURIDÃO
em 1979). Ela finalmente se estabeleceu em Londres, rompendo com
o comunismo após a invasão soviética da Hungria em 1956, quando a
verdadeira natureza da besta comunista não podia mais ser disfarçada
por trás de sua fachada humanitária. No ensaio, uma adaptação de
um artigo opinativo do New York Times publicado originalmente em
1992, ela descreve seu desencanto com o comunismo:
A expressão "politicamente correto" nasceu quando o comunismo estava
entrando em colapso. Não acho que tenha sido por acaso. Não estou dizendo
que a tocha do comunismo foi entregue aos defensores do politicamente
correto. Estou dizendo que os hábitos da mente foram absorvidos, muitas
vezes sem consciência. Obviamente, é muito atraente dizer a outras pessoas
o que fazer. [...] O que me preocupa é que o politicamente correto parece
não saber quais são seus exemplos e predecessores. Preocupa-me mais ainda
que talvez ele saiba, mas não se importe. [...] Estou certa de que milhões de
pessoas, como o tapete do comunismo foi arrancado delas, estão procurando
freneticamente por outro dogma, talvez sem nem perceber.
A busca por "outro dogma" para substituir a mensagem judaico
-cristã de luz e escuridão, de pecado e salvação, é tão antiga quanto
a própria religião. E, no entanto, mesmo nos contos populares que
surgiram muito depois de Jesus de Nazaré, os mesmos elementos
continuam em cena. E é incrível, ao ler as Meditações de Marco
Aurélio, ver como elas prenunciam vários dogmas cristãos, que só
viriam mais de cem anos após a morte do imperador. A coerência
moral contida na sabedoria popular do mundo revela uma fonte
primordial que nenhuma pseudociência vienense de meados do
século XIX pode explicar.
Em 1988, Joseph Campbell sentou-se com Bill Moyers,
da PBS, ex-secretário de imprensa da Casa Branca na adminis
tração do Presidente Lyndon Johnson, para discutir seu livro
O herói de mil faces. O tópico era o poder do mito e da lenda, e
sua contínua importância em nossa vida moderna. Referindo-se a
Prometeu e Jesus, os Portadores da Luz prototípicos que liberta
ram o mundo das trevas, Moyers apresentou uma análise solipsista:
"Nesse sentido, à diferença de heróis como Prometeu ou Jesus, não
estamos em nossa jornada para salvar o mundo, mas para salvar a
nós mesmos".
125
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
Ao que Campbell respondeu:
Mas, ao fazer isso, salvamos o mundo. A influência de uma pessoa vital
vitaliza, não há dúvida sobre isso. O mundo sem espírito é um terreno baldio.
As pessoas têm a noção de salvar o mundo mudando as coisas, mudando
as regras. [...] Não, não! Qualquer mundo é um mundo válido se estiver
vivo. A única coisa a fazer é trazer vida a ele, e a única maneira de fazer
isso é encontrar, no seu próprio caso, onde a vida está e se tornar vivo.
Como vimos, vida é luz, escuridão é morte e o mundo dos mortos
-vivos: os vampiros de Stoker; as freiras nuas de Meyerbeer; as "fadas"
da primeira ópera de Puccini, Le Villi (ambientada apropriadamente na
Floresta Negra da Alemanha durante a Idade Média), espíritos femininos
vingativos e injuriados que obrigam o infeliz herói da ópera a dançar
até a morte para expiar sua infidelidade com uma sedutora sereia e o
abandono de seu amor, que morreu de desgosto em sua ausência. A
escuridão envolve o palácio de prazer do demônio, abriga o caçador
negro de Weber e o holandês voador de Wagner, persegue Londres na
forma profana de Drácula e namora sua filha em Crepúsculo. Ela só
pode ser derrotada pela luz, que é o amor.
A palavra "vitalidade" significa a qualidade ou condição daquilo
que está cheio de vigor, e é o espírito heróico que infunde amor e luz no
mundo e lhe renova a vida. Você não precisa ser cristão para entender
o impacto que Jesus teve no mundo, criando, por meio de um cisma
com o judaísmo (que espera o Mashiach, o Redentor, o Messias), a
maior religião do mundo, o cristianismo. Cerca de um terço dos sete
bilhões de pessoas do mundo são cristãos professos ou batizados,
superando em muito os muçulmanos (que representam cerca de 23%
da população mundial) e todas as outras religiões.
Então, naturalmente, os cristãos se tornaram o alvo, não apenas
de um islã renovado e agressivo, mas de não-cristãos e anticristãos
no Ocidente, que consideram a fé como algo semelhante à cerca de
Chesterton, algo a ser derrubado por sua aparente inutilidade (ou
malignidade real), em vez de estudado e apreciado por sua função. A
regra nº 4 de Alinsky, "faça o inimigo viver de acordo com seu próprio
livro de regras", foi aplicada com força bruta sobre as seitas cristãs.
Para os esquerdistas, o bom será sempre o inimigo do ótimo. "Bom"
indica imperfeição, e essa é a arma deles.
126
LUZ E ESCURIDÃO
Eles acreditam que uma única falha torna um sistema inteiro falso
e convenceram uma mídia culpada e crédula, em grande parte irreli
giosa, a se juntar a eles nessa crença. Nenhuma concessão é feita para
meros mortais, muito menos (nas palavras de C. S. Lewis) para o "mero
cristianismo". Eles, que celebram a fraqueza humana e a deformidade
moral em todas as suas formas, não demonstram nenhuma tolerância
(uma de suas palavras favoritas e um de seus princípios "morais" mais
importantes) em relação à falibilidade no que diz respeito ao Ocidente
e ao cristianismo. Tolerância zero é a ordem do dia, mas somente em
relação às coisas que a esquerda profana não tolera.
Em batalha, o terreno mais alto é sempre preferível ao mais baixo.
A Carga da Brigada Ligeira, em 1854, e a Campanha de Galípoli, em
1915, fracassaram justamente porque os atacantes (sempre em desvan
tagem contra um inimigo bem entrincheirado) avançaram de qualquer
maneira, a despeito do fogo pesado, sacrificando desnecessariamente
seus jovens por nenhuma vantagem estratégica. E, no entanto, houve
heroísmo nesses avanços arriscados, heroísmo que atravessou o tempo
e chegou ao desembarque dos Aliados nas praias da Normandia du
rante a Operação Overlord. Sem os exemplos anteriores, será que os
soldados americanos, britânicos e canadenses que chegaram às praias
em 6 de junho de 1944 teriam se precipitado em direção ao que certa
mente significaria, para muitos deles, uma morte certa? E, no entanto,
mesmo diante do fogo pesado das unidades da Wehrmacht no alto
dos penhascos, eles estabeleceram uma cabeça de ponte e seguiram em
frente, atravessando o Reno e acabando com qualquer esperança que o
enfraquecido Terceiro Reich tinha de conter os russos que avançavam
e atingir uma paz isolada com os Aliados.
Curiosamente, desde aquele dia de junho de 1944, os Estados Unidos
não conseguiram vencer uma única campanha militar. As batalhas da
Guerra da Coréia marcaram uma série de momentos memoráveis para
o Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos, em Pusan, Inchon,
Seul e no Reservatório de Chosin, mas sem nenhuma vitória americana
clara. O Vietnã terminou ignominiosamente com o abandono americano
de seus antigos aliados no Vietnã do Sul e o espetáculo humilhante
de helicópteros americanos fugindo dos vietnamitas do norte que
avançavam. As campanhas no Iraque (uma guerra tola empreendida
127
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
por um presidente fracassado, filho de outro presidente fracassado) e
o constrangimento do Afeganistão (uma guerra facilmente vencida e
depois, com grande dificuldade, perdida sob a administração de um
presidente democrata) apontam não para o fracasso de proezas ou
táticas militares americanas, mas para a falta de vontade política de
terminar o trabalho. Após a vitória clara e indiscutível na Segunda
Guerra Mundial, essa vontade foi envenenada, estragada em parte
pelo éthos da Escola de Frankfurt, que choramingava "por que não?”,
quando a pergunta deve ser sempre "por quê?".
Em discurso no funeral de seu irmão assassinado, Robert, o finado
senador de Massachusetts, Edward Kennedy, disse: "Alguns homens
vêem as coisas como são e se perguntam ‘por quê’? Eu sonho com coisas
que nunca existiram e me pergunto por que não?"". Palavras marcantes,
que revelam em que lado da cerca de Chesterton esses dois Kennedys
estavam e quantos danos culturais eles causaram. Os conservadores
acreditam que há uma razão, uma razão muito boa, por que as coisas
que nunca existiram nunca existiram.
E de onde veio essa frase, sem créditos? Desta passagem da peça
de George Bernard Shaw, de 1921, Volta a Matusalém: “Ouço você
perguntar por quê?', sempre 'por quê?'. Você vê as coisas e se per
gunta 'por quê?', mas eu sonho com coisas que nunca existiram e me
pergunto por que não?"".
Quem fala é a serpente.
Uma vez em segurança nos Estados Unidos, os sapadores da
Escola de Frankfurt tinham um único objetivo filosófico: remover a
superioridade moral do estilo de vida americano e substituí-lo pela
dúvida. Tendo perdido a Alemanha para uma ideologia de esquerda
igualmente assassina, o nazismo, os comunistas da Escola de Frank
furt estavam perfeitamente satisfeitos em deixar de lado a guerra por
idéias na segurança de Morningside Heights. Lá, eles continuaram
descaradamente a minar a civilização ocidental que haviam come
çado na Goethe-Universität, em Frankfurt. Avatares insignificantes
de Mefistófeles, eles determinaram, por razões grandes e pequenas,
transformar Siegfried em Fausto, fazer descê-lo do pedestal e enviá-lo
para o inferno.
128
LUZ E ESCURIDÃO
Perto do final de O Crepúsculo dos Deuses, a ópera final do ci
clo de O anel do nibelungo, de Wagner, Siegfried tem um surto de
clareza em que, livre de seu feitiço, ele se lembra com carinho do
momento em que atravessou as chamas no topo da montanha para
libertar Brunilde do seu sono induzido pelo fogo mágico. Naquele
momento, dois corvos voam grasnando de um arbusto, circulando
Siegfried e desaparecendo no ar. Hagen, o filho vingativo do anão
Alberich, pergunta ao herói: "Você consegue entender o choro da
queles corvos?". Siegfried está acompanhando o vôo dos corvos, e
ele consegue entender o discurso deles. Antes que ele possa responder,
Hagen grita: "Rache rieten sie mir!” [“Vingança, eles disseram para
mim!"], e enfia sua lança nas costas do herói. Já no final, Siegfried
se vira contra Hagen e tenta esmagá-lo com seu escudo agora inútil,
mas sua grande força o desaponta, à medida que sua vida se esvai, e
ele tomba para trás sobre seu escudo, morto.
A palavra-chave nesta passagem é Rache [vingança]. A palavra serviu
para batizar um gênero específico de filmes de Hollywood (pense em
Busca Implacável, junto com vários filmes de faroeste de Clint Eas
twood, incluindo o memorável Os imperdoáveis). "Rache" também
é a pista rabiscada com sangue nas paredes do apartamento londrino
de Enoch Drebber, no primeiro romance de Sherlock Holmes, Um es
tudo em vermelho, de Sir Arthur Conan Doyle. (O inspetor Lestrade,
da Scotland Yard, confunde a palavra com uma tentativa incompleta
de dizer Rache).
A vingança é uma das emoções humanas mais primitivas (depois
do desejo sexual, talvez o mais elementar), ao mesmo tempo desesta
bilizadora e estabilizadora, restaurando um equilíbrio temporário para
danos cometidos à força. É o ponto de apoio da gangorra das batalhas
humanas, da maré interminável de guerra entre dois adversários pra
ticamente iguais. Ela estimulou os ataques de Onze de Setembro na
cidade de Nova York e Washington D.C., a rápida derrota do Talibã
no Afeganistão e a destruição do Iraque baathista de Saddam Hussein
(embora, no último caso, a vingança tenha sido em nome da família
Bush, não dos Estados Unidos da América). E será a fonte de muitas
outras atrocidades e retaliações no futuro.
129
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
Mas qual foi exatamente o alvo da vingança da Escola de Frank
furt? Sua guerra contra Deus está bem documentada, assim como a
guerra contra as instituições ocidentais. Antonio Gramsci, protestante
italiano que morreu em 1937 após uma década de permanência numa
prisão fascista ("devemos impedir que esse cérebro funcione", disse o
promotor), defendeu um esgotamento do sistema a partir de dentro,
a bem-sucedida "longa marcha pelas instituições", para alcançar a
"hegemonia cultural".
Para Gramsci, sempre pensando a longo prazo, o incrementalismo
era um exemplo. Como Satanás, os marxistas da Escola de Frankfurt
perceberam que não podiam atacar e conquistar o Ocidente de fora,
tanto militar quanto economicamente. Ao contrário, o esvaziamento
deveria começar de dentro, realizando seu trabalho ao longo das
décadas. O sapo fervendo lentamente vem à mente.
E assim, se a superioridade moral era privilégio do Ocidente ainda
cristão após sua espetacular vitória sobre a Alemanha nacional-socia
lista “ariana” neopagã e o culto tribal fanático ao imperador do Japão
imperial, a tarefa não era vencer frontalmente o Ocidente, mas apri
sionar seus cidadãos com ilusões, fazendo-os pensar que, na verdade,
"guerra é paz, liberdade é escravidão e ignorância é força”.
Em outras palavras, a missão era tornar a realidade negociável:
sujeita a análise, reinterpretação, nuances. Fora isso, pessoas racionais
poderiam ser levadas a duvidar da evidência empírica de seus próprios
sentidos, fitando a evidência por tanto tempo que ela se inverte. Todo
mundo já teve essa experiência: observe uma palavra por tempo sufi
ciente e logo você duvidará exatidão da ortografia, da pronúncia
e até de seu significado.
Mesmo depois de mais meio século, o assassinato de Kennedy em
Dallas é prova dessa teoria. Foi um simples assassinato texano: Lee
Harvey Oswald, atirador de elite da Marinha e autoproclamado simpa
tizante de Marx e Castro, com todos os motivos do mundo para atacar
um presidente anti-Castro, viu a rota da carreata de Kennedy publicada
nos jornais naquele dia, levou seu rifle para o trabalho (escondido
numa caixa de varão de cortina), subiu para o sexto andar do Texas
School Book Depository e atirou em John F. Kennedy a uma distância
130
LUZ E ESCURIDÃO
relativamente curta com uma carabina de precisão, num tiro clássico
do Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos: erre, acerte, mate.
Ainda assim, os defensores de uma teoria da conspiração no caso
J. F. K. examinam todos os detalhes de antigas fotografias, numa
busca incessante de pistas, e vêem coisas que os deixam literalmente
loucos. (O livro de James Pierson sobre o assassinato, Camelot and
the Cultural Revolution: How the Assassination of John F. Kennedy
Shattered Liberalism, de 2013, é indispensável sobre o assunto. Para
um tratamento mais literário do assassinato, veja meu romance Ex
change Alley, baseado, em grande parte, nos arquivos da CIA e do FBI
nos Arquivos Nacionais). Para muitos, é inconcebível que o presidente
dos Estados Unidos possa ter sido assassinado por um zé-mané como
Oswald, embora a maioria dos assassinatos seja cometida por zés-ma
nés com um rancor que só pode ser resolvido com o que eles vêem
como vingança. Stephen Sondheim escreveu um musical inteiro sobre
o assunto, Assassins (1990). A esquerda tende a acreditar na teoria his
tórica do grande homem somente quando os grandes homens estão do
seu lado. Do contrário, as forças impessoais do materialismo dialético
prosseguirão com seu trabalho impessoal de trituração.
Se pudermos negociar o assassinato de J. F. K, apesar de ser um
dos eventos mais fotografados da história americana, qualquer coisa
é negociável. Quando começamos a questionar a evidência de nossos
próprios sentidos, em outras palavras, quando nos tornarmos um eterno
estudante de graduação, um Fausto "sub-20" perpetuamente dedicado
ao estudo de tudo e, portanto, de nada, nada é fora de cogitação. Nada
é tão ridículo que um dia não possamos acreditar naquilo. Como Pôn
cio Pilatos disse antes de condenar Jesus à morte: “Quid est veritas?"
["O que é a verdade?"]. Para uma possível resposta, vamos ao texto
fundamental do mundo cristão:
Pilatos disse-lhe então: "Logo, tu és rei?". Jesus respondeu:
"Tu o dizes, sou rei. Nasci, vim ao mundo para dar testemunho da
verdade; todo o que está pela verdade ouve a minha voz". Pilatos
disse-lhe: "O que é a verdade?". Dito isto, tornou a sair, para ir ter
com os judeus, e disse-lhes: “Não encontro nele motivo algum de
condenação" (Jo 18, 37-38).
131
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
E como o maestro austríaco Herbert von Karajan acrescentou séculos
depois, talvez atento à sua própria participação no Partido Nazista,
que lhe foi útil depois com as autoridades alemãs: “A verdade não está
em lugar nenhum".
Mas nem tudo deve ser negociável. A esquerda profana gostaria que
fosse assim, uma vez que a negociabilidade é crucial para a Teoria Crítica:
o que é a verdade? A verdade não está em lugar nenhum, respondem
os nacional-socialistas. E, no entanto, para os esquerdistas, sua própria
filosofia não é muito discutível. Ao longo da via de mão única que é o
marxismo-leninismo, seja da variedade política ou cultural, o que é meu
é meu e o que é seu é negociável. É uma rotina estilo "três patetas" que
durou o suficiente para alcançar algum tipo de autenticidade. Como
Noah Cross diz a Jake Gittes em Chinatown: "Políticos, prédios feios
e prostitutas se tornam respeitáveis se durarem o suficiente".
Num patamar alto, não há negociação. Somente os que estão em
baixo buscam uma vantagem através de palavreado, tréguas tempo
rárias e bandeiras falsas. Os alemães, enganados pela desinformação
dos Aliados, não estavam totalmente preparados para as operações
do Dia D. Outros ataques a redutos inexpugnáveis foram repelidos,
fora um cerco que finalmente matou os defensores de inanição. Os
alemães sitiaram Leningrado por quase novecentos dias e ainda não
conseguiram tomar a cidade.
A proporção clássica entre atacantes e defensores é de três para
um, e se os defensores tiverem as probabilidades a seu lado e abrirem
linhas de suprimentos, eles podem subsistir indefinidamente. Supera
do em número pelas forças do Mahdi, o General Gordon ficou em
Cartum por dez meses, entre 1884 e 1885, esperando o Primeiro-ministro
Gladstone enviar uma coluna de socorro, que chegou com dois dias
de atraso. A cabeça de Gordon foi cortada pelos dervixes do Mahdi e
presa em uma árvore, seu corpo foi jogado no Nilo como alimento
para os crocodilos. Em um ato de vingança ocidental característico
da época, logo após a morte do Mahdi (provavelmente por varíola),
o General Kitchener aniquilou as forças muçulmanas em Omdurman,
nos arredores de Cartum, destruiu a tumba do Mahdi, cortou a cabeça
do cadáver e jogou os ossos no rio, ficando com o crânio ou, segundo
alguns relatos, enviando-o à Rainha Vitória como lembrança.
132
LUZ E ESCURIDÃO
Hoje, o Ocidente aceita numa boa as notícias do mais recente vídeo
de decapitação islâmica - isso é o que os muçulmanos fazem, parece
ser a opinião geral -, mas jamais pensaria em retribuir em espécie, se
necessário. Na verdade, o estilo americano de guerra é não fazer nada
para "insultar" o inimigo, exceto, talvez, em circunstâncias específicas,
matá-lo. As guerras não são mais conduzidas por generais no campo
de batalha, mas por advogados. No Afeganistão, a decisão de matar
até mesmo um comandante intermediário do Talibã teve de ser apro
vada em várias instâncias antes de que um drone ou atirador de elite
pudesse dar um tiro. É de se perguntar o que Kitchener, que matou
os homens do Mahdi sem nenhum remorso, teria feito dessa covardia
moral disfarçada de moralidade. Como diz o famoso dístico de Hilaire
Belloc: "Aconteça o que acontecer, nós temos a metralhadora, e eles
não”. Mas agora não a usaremos, para que nosso ato não seja consi
derado "desproporcional”, “desmedido" ou simplesmente “injusto”.
A perda de confiança cultural foi justamente o que a Escola de
Frankfurt e seus descendentes procuraram e ainda procuram gerar.
É seu único caminho para a vitória, e é por isso que, mesmo tendo
conquistado o alto patamar da academia e da mídia, eles continuam
rolando no chão e mostrando a barriga como cachorros vira-latas
quando são diretamente confrontados. Os pedidos de "tolerância",
uma fraqueza disfarçada de virtude, ainda lhes são úteis. Já passou da
hora de lhes dar uma provinha de sua própria "tolerância repressiva",
à la Marcuse, para marcar claramente a fronteira entre dissidência e
sedição, entre defesa e traição. Ao afirmar consistentemente que algumas
soluções estão "fora de cogitação" para os povos "civilizados", eles
minam os próprios fundamentos da civilização que fingem defender,
sendo o primeiro deles o direito à autodefesa civilizacional e pessoal.
Uma seita suicida instigando-nos a nos juntarmos a eles.
Mas a superioridade moral ainda não é deles, por mais que eles
desejem. Constantemente forçados a adotar uma estratégia de subter
fúgio, dissimulação, desorientação e engodo, que batizei de "taqiyya
americana", uma contrapartida do conceito muçulmano de dissimula
ção religiosa aceitável, não há mentira que a esquerda não seja capaz
de contar para promover seus objetivos sociopolíticos. Para manter a
metáfora marcial, eles são, em essência, agentes duplos, operando atrás
133
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
das linhas da civilização ocidental. O fato de eles não serem chamados
e tratados agressivamente no tribunal de opinião pública e, quando
necessário, nos tribunais de justiça é uma das vergonhas de nossa era.
A única arma que eles têm são as palavras, mas conseguimos ouvir a
música por trás da letra.
134
k
CAPÍTULO VIII
Letra e música
ma sociedade livre é marcada pelo que podemos dizer, que é e
U deve ser praticamente tudo. Pensamos que havíamos consagrado
esse princípio na Primeira Emenda, que se aplica, sobretudo, à
censura governamental ao discurso, tanto no governo federal quanto,
posteriormente, via doutrina da incorporação, entre os vários estados.
Em uma sociedade livre de cidadãos livres, a expressão é o meio e a
prova da própria liberdade.
Uma sociedade sem liberdade, por outro lado, é marcada pelo que
não podemos dizer, que é praticamente qualquer coisa que possa per
turbar a narrativa esquerdista em geral ou que esteja em desacordo
com uma série de normas politicamente convenientes e em constante
mudança. Em uma sociedade sem liberdade, as pessoas andam de ca
beça baixa e boca fechada, com medo de se expor, de alguma forma,
a tratamentos como os do Quarto 101,¹ do Ministério do Amor, do
livro 1984 de Orwell.
Este é o enigma central do nosso tempo. Vivemos em uma sociedade
livre que não pode expressar sua opinião e criamos uma sociedade
sem liberdade que não consegue admitir esse fato para si mesma.
1 Local onde determinados elementos indesejáveis ao Estado totalitário da narrativa são
torturados, sendo expostos ao seu maior pesadelo, medo ou fobia, com tudo aquilo a que
têm maior aversão - NT.
135
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
Podemos falar em dissonância cognitiva. E, no entanto, como em uma
ópera, o que é dito e o que é cantado pode, muitas vezes, ser coisas
bem diferentes.
Considerar uma ópera como se fosse uma peça de teatro está erra
do, porque há um nível de significado adicional e muito importante
acontecendo sob a superfície das palavras, que pode reforçá-la ou con
tradizê-la completamente. Damos primazia criativa ao compositor da
ópera e não ao libretista, porque é apenas essa camada de significado
agregado que distingue a ópera de quase todas as outras formas de
arte, exceto, talvez, o cinema em seus níveis mais altos. Os leitmotivs
de Wagner em O anel do nibelungo frases curtas que representam
elementos particulares (a espada de Siegfried, a lança de Wotan) ou
conceitos (o leitmotiv da redenção pelo amor) - são talvez o exemplo
mais evidente disso, e, mesmo assim, compositores como Mozart em
pregam técnicas semelhantes, de modos diferentes.
No final da cena do convidado de pedra, em Don Giovanni, de
Mozart, em que o libertino é finalmente arrastado para a perdição, a
orquestra triunfante faz retumbar os acordes finais no tom “lumino
so" de Ré maior, e não no assustador e "obscuro" tom de ré menor
que acompanhou Don durante toda a ópera, desde a abertura. Assim,
musicalmente, o triunfo é da sociedade, não do anti-herói. Para os
românticos posteriores, Don Giovanni foi a ópera mais importante
do século XVIII e o ponto de partida para seus esforços nesse gênero
de outro mundo. Da mesma forma, a Sinfonia n° 40 de Mozart em sol
menor foi muito apreciada como uma excursão apaixonada ao lado
sombrio da tonalidade.
Em uma cena inicial da ópera relativamente mais ensolarada, Così
fan tutte, os dois homens, Ferrando e Guglielmo, declaram seu amor por
suas belas namoradas, e a orquestração vibra positivamente com paixão
sexual, tornando a traição posterior das irmãs Fiordiligi e Dorabella
muito mais dolorosa e irônica. O libreto perfeito de Lorenzo da Ponte
exala o cinismo amoroso obsceno que esperamos do final do século
XVIII, mas a música de Mozart o transforma, valendo-se da calorosa
humanidade do Iluminismo. Così, concebida como um jogo inofensivo
por seu libretista, é transformada pela música do compositor em algo
136
LETRA E MÚSICA
profundamente humano, tanto que até hoje os diretores discutem se
os pares iniciais de amantes devem voltar um para outro ou ficar com
as pessoas pelas quais eles se apaixonam durante o espetáculo.
Às vezes, nenhuma palavra é necessária, como no famoso intermezzo
de Cavalleria rusticana, de Mascagni — um fortíssimo candidato para
a melhor composição instrumental dramática de três minutos já escrita
-, a calmaria antes da tempestade fatal de paixão que custará a vida
de Turridu em um duelo por uma mulher. A música é tão poderosa
que foi usada com grande efeito dramático pelos cineastas: Martin
Scorsese a escolheu para acompanhar os títulos de abertura de Touro
indomável, e Francis Ford Coppola a usou para destacara morte soli
tária de Michael Corleone no final da trilogia de O poderoso chefão.
É a música que guia o herói condenado de cada uma dessas sagas até
o fim que ele não apenas sabia que estava por vir, mas que, em certo
sentido, também desejou como único resultado possível.
Em outras palavras, o que não é dito é comunicado de qualquer
maneira na música e é muito mais importante do que aquilo que é
dito. O contexto e o subtexto contêm a mensagem real. Isso vale para
os dois lados das batalhas políticas de hoje. De um lado, temos os re
manescentes (com arranhões e feridas, mas ainda parcialmente coesos)
da antiga cultura cristã americana, em grande parte protestante, mas
com uma forte mistura de católicos. Do outro lado, temos a esquerda
profana, muito menos numerosa, mas culturalmente poderosa, ade
rindo à sua própria religião secular, embora professe ateísmo. Como
na batalha entre o islã radical e o Ocidente, um lado declarou guerra
explicitamente ao outro, enquanto o outro, mais poderoso, se recusa
a reconhecê-lo ou até mesmo a concebê-la. Qual lado, nessas circuns
tâncias, tem mais chance de vencer?
Em retrospecto, é esclarecedor, ao revisar os trabalhos dos acadêmicos
da Escola de Frankfurt, ver o quanto eles argumentam mal, mesmo nas
áreas de suas supostas especialidades. A retórica direcionada contra
seus inimigos pode igualmente ser aplicada a eles. Quando Adorno
denuncia "uma humanidade para a qual a morte se tornou algo tão
banal quanto seus membros", ele pensa que está falando sobre a Alema
nha nazista, mas poderia tranqüilamente estar falando sobre a Rússia
137
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
soviética, governada por quase um século pela influência extremamente
opressiva de Karl Marx e o discípulo do demônio, Lenin. Ou poderia
estar falando da atual cultura do aborto nos Estados Unidos, com
seu terrível número de mortes e uma população que se acostumou a
equiparar "escolha" à morte.
Theodor Adorno (originalmente Theodor Ludwig Wiesengrund,
tendo adotado, mais tarde, o sobrenome de sua mãe católica corsa)
apresenta um caso especialmente interessante. Dizem nos jornais que
o leitor tende a acreditar na maior parte do que lê até chegar a uma
história que diz respeito à sua própria área de experiência profissional
ou pessoal, e então ele ri e joga o jornal no lixo. Passei um quarto de
século trabalhando como crítico musical de três publicações americanas,
Rochester Democrat & Chronicle, San Francisco Examiner e Time, e
dizer que meu próprio trabalho nunca foi minimamente influenciado
por Adorno seria um eufemismo. Ele também não influenciou nenhum
dos meus colegas, até onde eu sabia. Quem poderia ficar impressio
nado com uma observação tão prosaica e cotidiana como esse desfile
de clichês e jogos de palavras banais, do ensaio de Adorno "Música e
linguagem: um fragmento" (1992)?
A música se assemelha a um idioma. Expressões como linguagem musical e
entonação musical não são simples metáforas. Mas a música não é idêntica a
um idioma. A semelhança aponta para algo essencial, mas vago. Qualquer um
que a considerar no sentido literal será invariavelmente conduzido ao erro.
No mundo da crítica musical prática, em oposição à crítica teórica,
Adorno é uma não-entidade, uma figura bem menor do que, digamos,
o inimigo de Wagner, Eduard Hanslick; os americanos eruditos James
Huneker, Harold C. Schonberg e Joseph Kerman; e um dos primeiros
e melhores críticos de música, o grande compositor Robert Schumann.
Como todos os outros membros da Escola de Frankfurt, Adorno jaz
em seu túmulo em grande parte não lido.
Meu próprio mentor, Schonberg (por muitos anos o principal crítico
musical do New York Times), costumava dizer que os críticos deveriam
ser lembrados por seus sucessos, não por suas falhas, pelos talentos que
descobriram, não pelos talentos que superestimaram. No meu caso,
tenho orgulho de ter defendido as obras de Steve Reich, Philip Glass
138
LETRA E MÚSICA
e John Adams numa época em que eles eram desprezados por outras
pessoas como minimalistas repetitivos ("parece um disco arranhado!").
O famoso elogio de Schumann ao jovem Chopin, "tirem o chapéu,
senhores, um gênio!", continua sendo o clássico do gênero, escrito na
primeira resenha publicada por Schumann:
Além disso, parece-me que todo compositor tem sua maneira parti
cular de organizar as notas no papel; Beethoven parece diferente de
Mozart, assim como a prosa de Jean-Paul difere da de Goethe. Mas
agora eu me sentia observado por olhos estranhos, curiosos, olhos
de flores, de basiliscos, olhos de pavão, olhos de meninas. Em alguns
lugares, a luz ficou mais clara. Julguei poder discernir o dueto Là ci
darem la mano, de Mozart, envolto em cem acordes. Vi Leporello
piscando para mim e Don Giovanni voando com uma capa branca.
A peça em questão eram as Variações sobre Là ci darem la mano,
de Don Giovanni, para piano e orquestra, Op. 2, de Chopin, com as
quais o jovem compositor franco-polonês anunciava sua chegada ao
cenário musical europeu em 1831. Chopin e Schumann nasceram em
1810, com alguns meses de diferença, sendo Schumann mais jovem. E,
no entanto, como crítico musical do Allgemeine Musikalische Zeitung
e compositor em ascensão, ele era profundamente sensível às tendên
cias musicais contemporâneas, as quais apreciava muito. Schumann e
Chopin tinham pouco em comum em termos de estilo, sobretudo no
piano, mas Schumann reconhecia um gênio quando o ouvia, talvez
porque também fosse um.
Comparemos a descrição poética de Schumann do esplendor de
Chopin executando Mozart com essas observações longas e totalmente
equivocadas de Adorno (um dos alunos de composição de Alban Berg
e devoto de Arnold Schoenberg, é preciso lembrar) ao discutir a músi
ca contemporânea em sua época. Peço perdão antecipadamente pela
prosa entorpecente (habilmente traduzida por Robert Hullot-Kentor)
de Filosofia da nova música, de Adorno (1949):
As melhores obras de Béla Bartók, que em muitos aspectos procuraram
conciliar Schoenberg e Stravinsky, provavelmente são superiores às de
Stravinsky em densidade e amplitude. E a segunda geração neoclássica
nomes como Paul Hindemith e Darius Milhaud - adaptou-se à tendência
geral da época com menos escrúpulos, refletindo-a, portanto, pelo menos
139
MICHAEL WALSH
ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
em aparência, com maior fidelidade do que o próprio líder do movimento,
com seu conformismo encoberto e, logo, absurdamente exagerado. Isso não
se dá, no entanto, por uma questão de prioridade histórica, fazendo com
que os outros sejam derivados deles, mas porque eles sozinhos, em virtude
de seu rigor intransigente, levaram os impulsos presentes em suas obras
tão longe que essas obras se tornam legíveis como idéias da coisa em si.
É difícil levar essa ladainha a sério (como a frase marxista sem
sentido, mas enfática “falsa consciência musical"), seja como crítica
musical ou filosofia, apesar da inspiração kantiana. Bartók tem pouco
ou nada a ver com Schoenberg ou Stravinsky, os dois grandes rivais
expatriados no sul da Califórnia quando Adorno também morava em
Los Angeles. O alemão Schoenberg, pai do sistema dodecafônico (e
modelo infeliz para o compositor serialista louco e sifilítico Adrian
Leverkühn do último romance de Mann, Doutor Fausto), e o russo
Stravinsky eram líderes rivais de dois campos: um aderente ao novo
sistema "abrangente" de composição igualitária de doze tons, e o outro
representando uma ala mais antiga da vanguarda, agora domada e
metamorfoseada em neoclassicismo. O próprio Stravinsky se voltaria
mais tarde para o sistema de doze tons em obras posteriores, como
Agon, sinalizando uma rendição ao "arco da história".
Bartók, por outro lado, era um compositor e pesquisador musical
tipicamente húngaro, fazendo uso liberal de elementos folclóricos
magiares, não ciganos, em suas composições. Fora da Hungria, ele não
estabeleceu nenhuma "escola de" acólitos e também não era formalmente
tão inovador quanto Schoenberg ou Stravinsky, embora sua música
seja igual à deles tecnicamente e muito superior à de Schoenberg, em
termos de expressividade. A única relação entre Bartók e Stravinsky
pode ser o interesse comum em música folclórica (muito maior por parte
de Bartók) e o fato de ambos escreverem balés inicialmente. Também
é difícil ver como Milhaud ou Hindemith entram na discussão, já que
esses dois compositores têm pouco ou nada a ver um com o outro.
Mas Adorno não estava muito interessado no lado musical da crítica
musical. Ao contrário, eram as questões filosóficas gerais que o obce
cavam. A música era apenas o veículo de suas reflexões, em particular
a "nova música" (especificamente a chamada Segunda Escola Vienen
se de Schoenberg, Berg e Webern). Provar a um mundo totalmente
140
LETRA E MÚSICA
desinteressado o valor do método de composição dodecafônico (doze
tons) tornou-se a missão particular de Adorno, e ele conclui seu ensaio
sobre "Schoenberg e o Progresso" desta maneira:
O mundo é a Esfinge, o artista é o Édipo cego e as obras de arte se asseme
lham à sua resposta sábia, que derruba a Esfinge no abismo. Assim, toda
arte se contrapõe à mitologia. Seu "material" natural contém a "resposta",
a única resposta possível e correta, sempre ali, embora de modo indistinto.
[...] A nova música se sacrifica a isso, assumindo toda a escuridão e a culpa
do mundo. Toda a sua felicidade está no conhecimento da infelicidade; toda
a sua beleza está na negação do que parece belo. Ninguém, nem indivíduos
nem grupos, quer ter alguma relação com isso. Ela desaparece sem ser ouvida,
sem eco. Em torno da música, quando ouvida, o tempo forma um cristal
radiante, mas, ignorada, ela tropeça perniciosamente no tempo vazio. A
essa última experiência, que a música mecânica realiza permanentemente,
a nova música tende espontaneamente: ao esquecimento absoluto. É a
verdadeira mensagem encerrada na garrafa.
E no "esquecimento absoluto" foi onde a "nova música” acabou.
Teoricamente dominantes nos meus dias de estudante na Eastman
School of Music, em Rochester, Nova York, as obras da Segunda Escola
Vienense raramente são executadas hoje em dia. Berg, o professor de
Adorno, permanece no repertório, sobretudo por suas óperas Wozzeck
(não dodecafônica, exceto em uma seção) e Lulu, mas a influência de
Schoenberg como professor diminuiu até quase desaparecer, e seu mé
todo "abrangente" de compor com todos os doze tons foi praticamente
abandonado pelos compositores do século XXI.
À distância, ouvem-se os ecos de um wagnerismo degenerado nos
escritos ao mesmo tempo adulterados e estupefacientes de Adorno,
um wagnerismo evidente na única grande obra de Schoenberg que
ainda é executada com alguma regularidade hoje em dia, o poema
tonal do início de sua carreira, Verklärte Nacht [Noite transfigu
rada]. O "esquecimento absoluto” não é nada senão wagneriano.
O desejo de morte nunca está muito longe do mesmo éthos da
Europa central que nos deu a Escola de Frankfurt e o Reich de Hi
tler, por mais que pareçam se opor um ao outro. O moderno culto
suicida da esquerda deve muito a esses movimentos esquerdistas:
um desejo de afundar lentamente, sem vida, no chão, à maneira de
uma heroína wagneriana.
141
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
Mas quando olhamos atentamente para os escritos de Adorno, como
nesses trechos tão representativos, vemos um vazio em essência: algo
que não vale nada. A influência de Adorno na vida musical de sua época
foi insignificante: a defesa de um "sistema" interessante só em teoria,
e agora nem isso. Com suas pretensões de “abrangência” destruídas,
podemos ver esse “sistema” agora como uma forma de charlatanismo
intelectual, um fascínio estudado com processos e minúcias que revela
a verdadeira alma do burocrata inato, o homem que não faz nada em
particular e não traz nenhum benefício à sociedade, mas que, a seu
ver, o faz muito bem.
Na crítica musical de Adorno, há muitas críticas, mas muito pouco
sobre música, tudo sobre Fausto e nada sobre Henrique. É como se a
arte existisse puramente para seu prazer exegético, uma oportunida
de de atormentar a "terrível língua alemã" (de acordo com a famosa
expressão de Mark Twain) da maneira como Mefistófeles atormentou
o pobre Fausto. (Sr. Morgan, em Connecticut Yankee in King Arthur's
Court, de Twain: “Quando um literato alemão mergulha em uma fra
se, só o veremos no momento em que ele aparecer do outro lado do
Atlântico, com o verbo em sua boca").
A complexidade vem com a linguagem, o território e a mentalidade.
A Alemanha é uma terra em que um pianista não pode sondar adequa
damente as profundezas das sonatas para piano de Beethoven até que
tenha uma década ou mais além da idade que Beethoven tinha quando
morreu (cinqüenta e sete); Liszt, de alguma forma, conseguiu tocar a
mais espinhosa de todas, a Hammerklavier, em Paris, no ano de 1836,
quando tinha cerca de vinte e cinco anos, e executou a maior parte do
resto do ciclo na década de 1840. Hoje, um maestro de oitenta anos
dificilmente conseguirá penetrar nas profundezas de A flauta mágica,
escrita quando Mozart tinha trinta e cinco anos.
Adorno é uma cria de seu tempo e de sua língua nativa, suas fra
ses cruzando o Atlântico de um lado para o outro, como navio sem
ter onde atracar. O jogo de palavras barato, que ele aprendeu com
Marx, é uma de suas especialidades, como se ele fosse um audacioso
colunista do New York Times: "Toda sátira é cega às forças liberadas
pela decadência. É por isso que a decadência absorveu as forças da
142
LETRA E MÚSICA
sátira", diz em Minima Moralia. Defendendo sua nova música amada,
ele está tão envolvido com a grandiosidade de sua própria análise que
acaba, inadvertidamente, defendendo a opinião da oposição: "Entre
as censuras que eles repetem obstinadamente, a mais prevalente é a
acusação de intelectualismo, a alegação de que a nova música brota
da cabeça, não do coração ou do ouvido, ou, igualmente, que a música
não é imaginada de acordo com os sons, mas apenas elaborada no
papel. A pobreza desses clichês é manifesta". Eis uma descrição quase
perfeita da maior parte das obras de Schoenberg e de quase tudo o que
as seguiu: música elaborada no papel.
Adorno parece não ter aprendido nada com seu professor, Berg, que
mostrou em obras como sua Suíte lírica e Concerto para violino o uso
magnífico de algumas das teorias e métodos de Schoenberg nas mãos
de um bom músico: "Eles são apresentados como se o idioma tonal dos
últimos trezentos e cinqüenta anos fosse algo da natureza", queixou-se
Adorno em Filosofia da nova música, "e como se fosse um ataque à
natureza ir além do que foi estabelecido, quando, na verdade, o que
se estabeleceu é uma comprovação da pressão social". Pelo contrário!
Preto é branco, em cima é embaixo, guerra paz. O que é, não é;
e o que não é, é. Em quem vamos acreditar? Em Adorno ou em seus
ouvidos mentirosos? Como Fausto, rejeitamos o familiar pelo desco
nhecido e depois descobrimos, tarde demais, que não estávamos muito
preocupados com isso. Mas, como na época em que eu era estudante
de música, o que era bom para nós tinha de ser claramente melhor
do que aquilo de que gostávamos e aquilo que sentíamos em nossos
corações. Um sistema havia chegado, entrega expressa de Darmstadt
(um dos centros de "nova música" do pós-guerra). Como todos os
sistemas, visava solucionar todos os problemas dos sistemas anteriores,
suplantando-os. Como o islã, seria o selo da revelação, após o qual
nada mais seria necessário. Depois, seria apenas uma questão de estudo
e domínio, com um mundo infinito de expressividade logo além do
horizonte, assim que todos tivessem rejeitado completamente a velha
maneira de pensar e compor e adotado a nova.
A ironia foi, como muitos de nós percebemos na época, que havia
pouca diferença sonora entre a música rigorosamente serializada (na
143
MICHAEL WALSH
ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
qual nenhuma nota podia ser repetida antes que as outras onze na "li
nha do tom" fossem ouvidas) e o que era chamado de música aleatória
ou "casual" (na qual muitas das linhas melódicas eram improvisadas
de maneira geralmente aleatória e fortuita). Ou seja, o controle total
do material e uma falta quase completa de controle curiosamente
produziam mais ou menos os mesmos resultados sonoros. O público
não percebia a diferença, então por que se preocupar?
A resposta dos serialistas foi: porque sim. Porque muito trabalho
intelectual havia sido dedicado à estrutura da peça dodecafônica, elabo
rada no papel. A música dodecafônica não poderia ser comparada com
a música casual, mesmo que houvesse uma semelhança no resultado.
Uma era "profunda", a outra não. E ambas eram superiores ao idioma
tonal dos últimos trezentos e cinqüenta anos, porque... eram novas.
Esse raciocínio circular é, a meu ver, um dos atrativos da Teoria
Crítica e do progressismo em geral. Parece exigir reflexão, mas, na ver
dade, tudo o que exige é fé: fé no ritual e no dogma e nas armadilhas do
pensamento, mas sempre a serviço da novidade por si mesma, disfarçada
de "dissidência" ou "revolução". Como Orwell previu em 1984, o uso
de slogans eventualmente deve substituir a livre indagação para que o
sistema possa sobreviver e prosperar. Não pode haver sequer um raio
de luz na escuridão, senão as pessoas entreverão a verdade.
144
CAPÍTULO IX
A Venusberg da morte
tese deste livro é que a narrativa heróica não é simplesmente
um jeito que temos de nos contar histórias da carochinha re
confortantes sobre o triunfo final do bem sobre o mal, mas sim
uma bússola moral internalizada que orienta até os menos religiosos.
Perceba que, de modo constante, a esquerda invoca a moralidade, de
fato, muitas vezes citando as Escrituras, enquanto se recusa a identifi
car a fonte de sua moralidade. Se a "justiça social" exige moralmente
uma igualdade de resultado, obtida com o roubo de propriedade, que,
então, é vendida a um terceiro em troca do seu voto, o que impedirá
que os proponentes da “justiça social" anunciem, no futuro, que ela
também exige moralmente a morte de seus adversários? Qual é, afinal,
a diferença concreta entre "não roubarás" e "não matarás"?
Para a esquerda, não existe diferença concreta, ou seja, para eles, na
verdade, ambos os mandamentos foram revogados, um pelo processo
legislativo (o Estado de bem-estar) e o outro por um decreto legal (Roe
versus Wade).
Nenhuma outra questão os motiva mais do que a autodestruição
populacional conhecida como aborto. Como já foi muitas vezes ob
servado, "o direito de escolha da mulher" (seu eufemismo favorito) é,
para eles, um sacramento secular, e quanto mais bebês forem mortos
145
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
no útero, melhor. Não importa que uma pessoa racional ache que o
direito da mulher de escolher poderia ser exercido de forma melhor e
menos letal no momento em que ela considera fazer sexo desprotegi
do com um homem qualquer. Se deseja impedir a concepção, por que
não começar do início? Não é que os preservativos ou outros recursos
profiláticos não estão disponíveis. Na verdade, não há lógica para sua
perversidade. Segundo o esquema esquerdista, não basta ter todo o
sexo que se deseje. Não: é preciso que seja sexo livre de conseqüên
cias. A recompensa da libertinagem poderia ser a morte, mas a morte
apenas do subproduto indesejado da própria libertinagem. De acordo
com a visão deles, nenhuma mulher envolvida num ato sexual jamais
deveria ser responsabilizada por nada. Ela deve ter direito absoluto
à pílula, a um abortífero, a um aborto e até a um aborto tardio. Ou
ainda, caso ela, por fim, reivindicasse seu "direito de escolha" depois
do nascimento, optando pela vida, deveria ter o direito inquestionável
ao apoio financeiro do pai, qualquer que fosse. O cântico de Tânatos
como prescrição para Eros nunca está muito longe de seus lábios.
No entanto, num sentido mais amplo, isso seria morte para ti, mas
não para mim. Apesar de seu fascínio fanático pela morte de outros,
sejam de fetos no útero ou dos milhões que morreram sob o nacional
-socialismo e o comunismo internacional, os próprios esquerdistas, em
geral, tentam viver o máximo possível. Covardes, sem exceção, não existe
literalmente nada por que morreriam, nem mesmo seus tão alegados
princípios. Deficientíssimos no gene do sacrifício pessoal, e sendo a
palavra "altruísmo" basicamente estranha a eles, são obcecados por
sua saúde, com assistência médica e esquemas coercitivos do governo
para "prover" tais serviços à custa de terceiros. Sempre encobrindo
sua exigência por um governo mais amplo, mais intrusivo e punitivo
à guisa de "compaixão”, só estão dispostos a lutar (além da “luta" em
si) pela própria sobrevivência, mesmo ao declararem que ela não tem
a mínima importância.
E, ainda assim, a morte os fascina. Seja a morte da sociedade (pense
nas constantes invocações de Lukács à "destruição" e à "aniquilação")
ou nas mortes de milhões de inocentes nos expurgos e atrocidades do
nacional-socialismo e do comunismo ao estilo soviético (não se faz um
146
A VENUSBERG DA MORTE
omelete sem quebrar alguns ovos), a morte é um elemento constante
tanto em sua filosofia quanto em suas prescrições políticas, que, além
do aborto, incluem, cada vez mais, a eutanásia. Usando a máscara
costumeira da compaixão prestimosa, assim que alguém morre, eles
roubam seus pertences.
Há uma passagem notável no segundo ato de Siegfried de Wagner,
criou
em que Mime, o irmão do malvado anão-mor Alberich, que
o órfão abandonado Siegfried até ser um jovem adulto, tenta dizer
a Siegfried o quanto se importa com ele e o ama. Siegfried, porém,
acaba de matar o dragão Fafner e de provar do seu sangue, o que
lhe confere o poder de compreender a voz dos animais e acessar as
mentiras e as ilusões humanas. Assim, ele entende perfeitamente que
Mime deseja apenas matá-lo e apoderar-se da reserva de ouro, assim
como o Tarnhelm [o elmo mágico] e o poderoso anel. Depois de ouvir
o padrasto, Siegfried o elimina com um golpe de sua lâmina vorpal,
Nothung (a espada de seu pai Siegmund, passada para ele por seu
pai, Wotan). Em seguida, ele esconde o corpo de Mime na caverna
do tesouro e bloqueia a entrada do refúgio de Fafner com o próprio
cadáver do dragão. É um momento de um simbolismo poderoso em
O anel do nibelungo menos notado, mas já bastante analisado em
-
outros contextos. Siegfried não viera à caverna de Fafner em busca
do tesouro, mas para saber o significado do medo. Entretanto, ele não
consegue encontrar o antigo gigante (e um dos criadores de Valhalla)
que se transformou no dragão, um Wurm que, embora aterrorizante,
passa a maior parte dos dias dormindo, enquanto protege o ouro do
Reno Alberich roubou das donzelas do Reno, o pecado original
que
que desencadeia todo o ciclo em ação.
Embora a ópera se intitule Siegfried, durante os primeiros dois atos,
deveria se chamar “Fafner", já que é a presença sufocante do dragão
que permeia a linguagem musical desde a abertura do primeiro ato:
metais e cordas, em tom baixo, colorem a orquestração, e sentimos a
proximidade da confrontação entre Siegfried a cada tempo e a cada
compasso. É apenas no terceiro ato, que o herói, afinal, encontra a
única coisa que ele sempre temerá: a mulher, sob a forma da Brunilde
encantada, levando ao verso mais inesperadamente cômico do ciclo,
147
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
"Das ist kein Mann!" ["Não é um homem!"], que Siegfried exclama
ao remover o escudo peitoral da valquíria adormecida e, de repente,
defronta-se com o que havia por baixo.
E, no entanto, não é nada engraçado, por mais rechonchuda que
seja a soprano no papel de Brunilde. Siegfried conheceu de tudo em sua
pouca vida: anões, monstros, até mesmo o próprio avô, Wotan, disfar
çado de andarilho, que ele derrota em combate, quebrando a espada
(símbolo visível e auditivo da autoridade de Wotan), assim selando o
seu destino, o de Brunilde e o de todos os deuses. Contudo, ele ainda
não conheceu o Outro, o Ewig-Weibliche, o eterno-feminino. Apenas
Brunilde é capaz de incutir o medo em seu peito destemido, apenas ela
pode enfeitiçá-lo. É preciso aquele artifício wagneriano favorito, uma
poção mágica, para fazê-lo trair Brunilde. Somente ela pode resgatá-lo
e consumar sua busca para devolver o anel aos seus donos por direito,
as donzelas do Reno (que, com seus corpos voluptuosos tentam, em
vão, seduzi-lo) e causar o fim dos deuses, uma maldição que, ao final
da tetralogia, é algo que o próprio Wotan derrotado, içado por sua
própria lança, deseja com ardor.
Wagner começou como um homem de esquerda: um agitador durante
as revoluções republicanas, por todo o continente, contrárias à monar
quia, em 1848; um fugitivo por anos consecutivos e um anti-semita
ferrenho (exceto em termos musicais, pois sua primeira grande ópera,
Rienzi, foi conscientemente copiada de Meyerbeer, e quando chegou o
momento da estréia de seu épico cristão, Parsifal, ele escolheu um judeu,
Hermann Levi como regente). Ele foi também um sedutor incansável
de esposas alheias e apropriador de dinheiro alheio, incluindo o caso
mais famoso, o do rei Ludwig II da Bavária, que construiu parcialmente
Bayeruth para ele. O mais notório é que Wagner foi um ídolo de Adolf
Hitler. Nascido seis anos após a morte de Wagner, Hitler, no cargo de
Reichskanzler, tentou encenar Die Meistersinger von Nürnberg com
toda a Alemanha como cenário e, em vez disso, acabou produzindo
Götterdämmerung.
(É uma esquisitice da história que Wagner intimamente temesse ser
parte judeu, assim como o nazista de alta patente Reinhard Heydrich,
o principal arquiteto da Solução Final, e o próprio Hitler. A incerteza
148
A VENUSBERG DA MORTE
de Wagner quanto à sua paternidade foi fonte de profunda preocupa
ção para ele, sendo que seu padrasto, o ator Ludwig Geyer, que pode
ou não ter sido judeu, talvez tenha sido o pai biológico de Wagner).
Musical e dramaticamente, porém, a história é outra. Nesses que
sitos, Wagner não foi nenhum patife. Ele é, fora de questão, a figura
dominante na música do século XIX, talvez em qualquer arte do perí
odo romântico. Sim, “Wagner tem seus grandes momentos e longas
meias-horas", como diz um ditado de origem duvidosa. (Ele tem
sido atribuído a vários nomes conhecidos, dentre eles, Mark Twain e
Rossini, que morreu em 1868, pouco antes da estréia de Das Rhein
gold, a primeira das óperas de O anel do nibelungo, e muito antes da
maior parte das obras maduras de Wagner). E, contudo, a influência
de Wagner foi tão profunda que, quase que desde o início, ele criou
um culto à sua personalidade (como “o mestre”) que durou bem mais
do que um século.
Na verdade, alguns seguidores, como Friedrich Nietzsche, em Niet
zsche contra Wagner e em Der Fall Wagner: Ein Musikanten-Problem
[O caso de Wagner: o problema de um músico] romperam com ele,
criticando-o tanto em termos pessoais quanto musicais. Liberto das
ilusões de Mefistófeles, ou, no caso de Wagner, das de Klingsor (como
é irônico que no poema de Goethe, o aluno de Fausto se chame Wag
ner), tais seguidores passaram a vê-lo como um impostor barato, um
manipulador de clichês musicais convencionais, vinho novo em velhas
garrafas, e um fornecedor de idéias filosóficas simplórias, retiradas de
gente melhor do que ele, tal como Fichte e Hegel. Nietzsche escreveu
sobre a técnica musical de Wagner:
Se quisermos admirá-lo, devemos observá-lo no trabalho: como separa e
destaca, como chega a pequenas unidades, e como as estimula, como as
enfatiza e lhes dá proeminência. Mas, dessa forma, ele exaure suas forças, e
o resto de nada vale. Quão insignificante, estranha e amadora é sua forma
de "desenvolver" uma tentativa de combinar partes incompatíveis.
Há muita verdade nessa afirmativa. O controle que Wagner tinha
sobre formas musicais herdadas era, no máximo, duvidoso. Suas pri
meiras sonatas para piano são olvidáveis e a Marcha Centenária (1876),
escrita para o aniversário da América, parece algo mercenário, visando
149
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
o ganho financeiro. (Pois é: Wagner tinha problemas financeiros eternos
e 1876 foi o ano da primeira apresentação do ciclo de O anel do nibe
lungo em Bayreuth, época especialmente desesperadora). O contraponto
falso na abertura do Meistersinger é talvez o ponto baixo da técnica
madura de Wagner. É, na realidade, apenas ornamentação, feita para
parecer estrutural, mas ficamos encantados de qualquer forma. Fora a
música cênica, Wagner tem pouco a oferecer, e não fosse por ela e sua
garra avassaladora para conseguir atravessar todas as frentes culturais,
talvez hoje ele fosse uma figura menor ou até esquecida.
David Goldman (que muitas vezes escreve como "Spengler") comen
ta Der Fall Wagner com uma perspicácia e eloqüência características
num longo artigo escrito para a revista First Things em dezembro de
2010. Ele vê Wagner como um falso redentor, o esquerdista quintes
sencial, um mágico que perde sua atratividade tão logo seus truques
são descobertos. Goldman enquadra Wagner num contexto faustiano:
Wagner tinha um dom, assim como um propósito ideológico, para a in
tensificação do momento. Se o Fausto de Goethe aposta com o demônio
que ele consegue resistir ao impulso de se apegar ao momento passageiro
("E se chegar um momento a que eu diga: 'Demora-te, és formoso', podes
algemar-me depressa, que já caí em perdição!"), Wagner mergulha de ca
beça em seu poço escuro. E se Fausto argumenta que a vida em si depende
da transcendência do momento, o abraço sensual de Wagner do momento
musical evoca uma trajetória dramática em direção à morte [...].
Wagner foi mais do que um músico. Ele foi o profeta de um novo culto
artístico, um poeta e dramaturgo de estilo próprio que acreditava que sua
Gesamtkunstwerk [obra de arte total] tomaria o lugar da religião debilitada
da Europa. Sua nova estética temporal atendia a um objetivo mais amplo:
a liberação do impulso das amarras da convenção.
Em outras palavras, um esquerdista clássico: anti-religioso, anti-semi
ta e obcecado pela morte. Quase todas as heroínas de Wagner encaram
seu fim. Conforme ironiza Goldman: "A ópera não termina enquanto
a gorducha não morre". Os heróis se saem um pouquinho melhor.
Wagner chega a nos oferecer a própria versão do palácio de prazer do
demônio, o sedutor cativeiro erótico de Venusberg, em Tannhäuser.
Portanto, existe uma contradição em elogiar Wagner no contexto
de nossa narrativa original? Acho que não. A solução está em separar
o homem da obra. A maioria de nós consideraria o homem Wagner
150
A VENUSBERG DA MORTE
repreensível, e não o desejaríamos como amigo, aliado ou genro. No
entanto, ele possuía o que denomino "o egoísmo necessário do artista",
o elã que impulsiona tudo o que está à sua frente, incorporando todas as
tragédias, os triunfos e as experiências da vida como combustível para
a missão maior: a criação da arte, que é o que nos aproxima de Deus.
É perfeitamente possível pensar que Wagner foi, "como os nazistas,
um neopagão", conforme colocado por Goldman, que acrescentou:
Wagner foi o provedor de grande parte do fundo musical do Terceiro Reich, e
não sem uma afinidade latente. [...] Muito pouca diferença há entre Siegfried,
impulsivo demais para prestar atenção a regras, e Parsifal, o protagonista da
última ópera de Wagner, que é inocente demais para compreendê-las. [...]
Se os alemães, segundo as palavras de Franz Rosenzweig, não distinguiam
Cristo de Siegfried, é porque Wagner deliberadamente fundiu os dois.
Siegfried, entretanto, não parece Cristo. Seu sacrifício é patético e
não emociona. Ele morre por ter cometido um erro fundamental: ao
temer apenas o magnetismo sexual de Brunilde, ele rejeita o bastardo do
nibelungo, um inimigo mortal que ele não pode deixar de reconhecer.
Enquanto Cristo, em seu sacrifício na cruz, conscientemente escolhe a
provação de Satanás e aceita o desafio mortal proposto na batalha no
céu, depois da procriação do Pecado e da Morte. Ao visitar o inferno,
Cristo não só derrota Satanás como vence o Pecado e a Morte, para
todos aqueles que acreditam (na teologia cristã).
Por ora, contrastemos o romantismo heróico de Wagner, que, assim
como Beethoven, brandiu punhos cerrados aos céus, com o de um ver
dadeiro fiel, J. S. Bach, e especificamente com as Variações Goldberg
(1741). À primeira vista, duas obras não poderiam ser mais díspares
do que esse conjunto de variações que, de acordo com a lenda, foram
escritas para curar a insônia de um certo Conde Kaiserling, o embai
xador russo na corte saxônica, que trouxe com ele seu acompanhante
e talentoso cravista, Goldberg, para que tocasse cravo para ele durante
as horas insones e encomendou uma peça musical ao grande compo
sitor da corte.
Nada poderia ter preparado Kaiserling ou Goldberg ou a posteri
dade para o que se seguiu. De um só golpe, Bach estabeleceu a forma
das variações, desafiando todos os compositores que o sucederam
151
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
(incluindo Beethoven, que tentou com as Variações Diabelli e Brahms,
nas Variações Handel). E mais: colocando o pequeno tema com seus
ritmos naquilo que é, em essência, uma chacona prolongada, Bach
pinta uma tela de proporções sobrenaturais, cada variação passando
inevitavelmente para a próxima, até a grandiosa trigésima variação, que,
por fim, revela as verdadeiras possibilidades harmônicas e melódicas
inerentes à melodia. A última variação é um truque mágico digno do
próprio Klingsor, uma revelação da imanência em todas as obras de
Deus. A um tempo sagrada e profana, essa combinação da estrutura
harmônica do tema inicial com várias canções folclóricas alemães
proclama, de forma atordoante, a maestria musical de Bach: "Vejam
o que eu forjei!". Em seguida, se anula imediatamente com uma suave
recapitulação da melodia, que poderia exatamente ser a maior falsa
modéstia de todos os tempos.
(O dramaturgo Peter Shaffer pode muito bem ter intencionalmente
usado esse efeito ao escrever a cena em Amadeus, em que Mozart trans
forma a simples Marcha de boas-vindas de Salieri na marcha Non più
andarai do final do Primeiro Ato de As bodas de Fígaro, humilhando
o rival na frente do imperador e angariando sua inimizade para todo
o sempre).
Tanto Bach quanto Wagner defendem a natureza singular do ho
mem. Ambos alcançam o estrelato, embora caiba a Wagner sucumbir
junto aos canais de Veneza enquanto Bach ornamenta a Thomaskirche
[Igreja de São Tomás] em Leipzig, onde está enterrado. Ainda assim, a
missão não politizada de ambos (pois precisamos perceber a música e a
arte em sep e distantes da política, sejam quais forem as circuns
tâncias cotidianas que lhes deram origem) é a mesma: fazer o homem
transcender e aproximar-se de Deus. (Felizmente, o gênio musical de
Wagner superou sua política rudimentar). Rejeitar a transcendência
da arte é rejeitar Deus. A arte barata ou vulgar não está mais próxima
da divindade, ou aborda aquela narrativa original, do que o algodão
doce está da condição de algodão ou de doce.
E essa é a distinção que precisamos fazer ao analisar o cânone
cultural. Assim como Marco Aurélio em suas Meditações, temos de
perguntar: "O que é a coisa em si? Qual é a sua função no mundo?”.
152
A VENUSBERG DA MORTE
A resposta é a mesma dada por Milton em Paraíso perdido: justificar
os caminhos de Deus para os homens.
A questão do texto, portanto, torna-se subordinada à questão do
significado. O texto das Variações Goldberg, a "ária" que abre e fecha
a magnífica obra no teclado, é trivial, como é, quanto a essa questão,
o tema das Variações Diabelli. Os poemas do ciclo das quatro óperas
de O anel do nibelungo não se sustentariam sozinhos como poesia,
embora Wagner tivesse suposto que sim. Na verdade, ele as escreveu
em ordem inversa enquanto martelava sua obra-prima volumosa im
ponente, esperando que sua maestria musical atendesse às exigências
do terceiro ato de Siegfried e Götterdämmerung. (Nesse meio-tempo,
num intervalo que durou mais de uma década, ele escreveu Tristão e
Meistersinger).
A falha ocorre ao se colocar o texto antes do subtexto, o que signi
fica fazer uma leitura errada do propósito tanto da música dramática
quanto da música "absoluta" (música sem um texto ou conteúdo
programático). A música integrava o quadrivium medieval, os quatro
assuntos, derivados dos gregos, junto com a aritmética, a geometria
e a astronomia, o que quer dizer que ela era considerada como tendo
um significado independente. Combinada com o trivium (gramática,
lógica e retórica), era um dos pilares da educação de um rapaz.
Tanto Salieri quanto Richard Strauss escreveram óperas que exa
minam a relação entre as palavras e a música, Salieri em sua Prima
la musica, e poi le parole [Primeiro a música, depois as palavras], e
Strauss em sua última ópera, Capriccio, na qual sua heroína, a condessa,
tem de escolher entre dois seguidores: o Poeta Olivier e o Compositor
Flamand. "Existe algum final que não seja trivial?”, ela se pergunta
no fim, deixando-nos em suspenso. É uma piada de Strauss: para o
homem que se proclamou o herói do próprio poema sonoro, Ein
Heldenleben, a questão nunca esteve seriamente em dúvida. É uma
brincadeira também para todo compositor que já tenha composto
uma ópera. O lugar de destaque sempre vai para a música, tradição
mantida até hoje nos créditos das canções populares, que registram o
nome do compositor primeiro e o do letrista em segundo, assim como
em Rodgers e Hart. A ópera pode ser cantada numa tradução, que não
153
MICHAEL WALSH
ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
modifica seu sentido essencial, mas Carmen não pode ser "produzida"
com uma nova partitura e continuar a mesma. As palavras nos colocam
na situação dramática e delineiam sua evolução geral, mas é a música
o coração da obra.
O que a Teoria Crítica e o "politicamente correto" procuram é
remover a música de nossa vida; é despi-la, nos moldes soviéticos, de
todo significado secundário, de todas as suas camadas, de sua poesia e
(surpreendentemente, por ser uma das palavras favoritas da esquerda
profana) de sua nuance. Nada vale mais do que aquilo que podemos
aceitar como verdadeiro sem precisar averiguar ou examinar, a não ser
as evidências empíricas, que precisam ser submetidas à análise incessante
numa tentativa de transformar um significado puro e simples em algo
incompreensível. Para a esquerda, a música funciona em termos didáticos,
com sua capacidade para provocar e inspirar direcionada para servir ao
Estado, e não ao coração humano. Felizmente, uma proposta fracassada.
Os palácios de prazer da esquerda estão todos à nossa volta, com
suas utopias prometidas de justiça social, igualitarismo, liberdade se
xual, desconfiança da autoridade por reflexo e niilismo generalizado.
O que eles produziram em vez disso é morte, destruição e desespero,
assim como todos os palácios de prazer o fazem.
Em 1966, Michelangelo Antonioni lançou uma granada explosiva
sobre um público ingênuo, com um filme chamado Blow-Up, Depois
Daquele Beijo. O Código Hays estava em franca retirada, e Blow-up
excitou as platéias americanas com suas modelos nuas se contorcendo
sobre papel roxo, com um fotógrafo apático interpretado por David
Hemmings. Era ao mesmo tempo um documentário de uma Londres
descolada, produto do cinema italiano no auge de sua forma e um
exame da incognoscibilidade do conhecimento. Lançado exatamente
três anos depois do assassinato de Kennedy, ele também mexeu com as
obsessões mais obscuras do país, que especulava sobre sua morte, com
diversas teorias da conspiração. Mas, acima de tudo, ele expressava
com precisão o que estava para deixar os Estados Unidos da América
enlouquecidos: a insegurança.
O roteiro baseou-se muito apropriadamente num conto, "Las babas
del Diablo", pois abriu a porta para o demoníaco que logo inundaria os
154
A VENUSBERG DA MORTE
cinemas americanos, com destaque para a alienação quintessencial de
Bonnie e Clyde (1967) de Walter Penn e o show de terror psicossexual
de Polanski, O bebê de Rosemary (1968), que transformou Satanás
em um dos protagonistas e o pai do bebê do título.
A nudez de Jane Birkin e Gillian Hills em Blow-Up atraiu um bo
cado de atenção crítica e lasciva, bem como a causada por uma rápida
cena de topless de Vanessa Redgrave. O apelo central do filme, porém,
recai sobre o desempenho hipnotizante de Hemming (muito apropria
damente, mais tarde na vida, ele se tornou um mágico) como Thomas,
o fotógrafo de moda que já viu de tudo e cuja vida não tem sentido,
ilustrada por uma vida sexual mais sem sentido ainda. De repente sua
vida adquire foco quando, sem mais nem menos, ele fotografa Redgrave
e um homem misterioso no Maryon Park, em Greenwich. Mais tarde,
as fotos granuladas reveladas mostraram o que poderia ser um homem
com uma arma. Ao retornar ao parque, ele encontra um cadáver, mas
esqueceu a câmera. Num conveniente retrato instantâneo da época,
Thomas pára numa boate onde Jeff Beck, Jimmy Page e os Yardbirds
estão tocando. Enfurecido com um problema em seu amplificador, Beck
quebra a guitarra no palco (à la Pete Townshend, do The Who, na época),
e atira o braço quebrado da guitarra na platéia, onde Thomas sai no
braço por ele. Do lado de fora, na calçada, Thomas o joga fora: inútil.
Com algo de demoníaco, diabólico, e até um toque do Listzomania
(o exagerado título do filme de Ken Russell, de 1975, estrelado por
Roger Daltrey, vocalista do The Who no papel principal), Blow-Up
tinha de tudo. Mas foi a partida de tênis da pantomima assombrada no
final do filme, jogada com espontaneidade por um grupo de mímicos
que passava num jipe aberto, que sintetizou a futilidade niilista em
voga da busca de Thomas pela verdade. Quando até o cadáver que
julgava ter encontrado desaparece, Thomas se limita a recuperar uma
bola de tênis imaginária e a devolvê-la para a quadra, enquanto tudo
desaparece, menos a grama.
Julgado em termos políticos, Blow-Up poderia parecer um exemplar
ultrapassado do tédio cultural do pós-guerra: “O que é a verdade?
O que importa? Vamos pra cama!". Mas não é assim que acontece.
O fotógrafo impassível adquire vida plena na presença da morte,
155
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
quando, ao revelar as fotos, ele se dá conta de que inadvertidamente
terá testemunhado e registrado um crime, cometido pela femme fatale
Redgrave. A beleza provocante e aristocrática da atriz nunca foi tão
bem usada, e seu momento de tentativa de sedução, com o sexo em
troca das fotos que talvez a incriminassem, permanece na lembrança
muito tempo depois que outros filmes da época desapareceram. Na
cena final, Hemmings se desfaz das ilusões (o que ele assumia como
realidade era na realidade apenas uma série de gestos fúteis, como o
sexo com as jovens modelos ou o ato de descartar displicentemente o
braço quebrado da guitarra de Beck depois de lutar furiosamente por
ele). Apenas quando, transformado por uma mulher, aceita a realidade
do jogo de tênis encenado, ele, finalmente, se torna um ser humano
reconhecível, em suma, redimido.
No final, toda arte obedece aos mesmos princípios, seja ela criação
da esquerda ou da direita. Quase todo filme da Disney já lançado per
corre a jornada do herói traçada por Joseph Campbell, mesmo quando
o herói é uma heroína. O filme mais "conservador" já realizado é
provavelmente High Noon (1952), escrito por um comunista fichado,
Carl Foreman, a partir de um rascunho parcial de outro fichado, Ben
Maddow. Enquanto alguns enxergam um subtexto evocativo do ma
cartismo, o texto é a história do corajoso marechal Will Kane (Gary
Cooper) que, abandonado pela gente fracote da cidade de Hadleyville
e até por certo tempo pela esposa quaker pacifista, é forçado a ficar
sozinho para enfrentar os marginais vingativos que chegarão no trem
noturno. No final, ele é salvo pela nova noiva, papel desempenhado
por Grace Kelly, que atira num dos criminosos e empurra o bandido
principal pelo rosto, deixando o campo livre para o marido dar o tiro
final no homem que jurara matá-lo.
A "fórmula" hollywoodiana de contar histórias é muitas vezes
ridicularizada pelos que não têm experiência com produção cinema
tográfica, ou com pouco entendimento quanto ao que exatamente
essa "fórmula" envolve. A narrativa original, porém, habita o nosso
âmago, desde Finn MacCool até Rolando e Will Kane, e suas histórias
são sempre as mesmas, mesmo quando, na aparência, não o são. A arte
tem suas próprias peças para pregar no demônio.
156
CAPÍTULO X
Mundo sem Deus, amém
m seu livro final, Arrogância fatal, o filósofo econômico Friedrich
E Hayek escreveu que "um anseio atávico pela vida do bom selvagem
lé a principal fonte da tradição coletivista". Embora suas críticas se
apliquem perfeitamente a todos de esquerda que criticam a organização
social ocidental, o alvo principal de Hayek era Rousseau, o arauto do pós
-modernismo e talvez o homem mais responsável, ainda mais do que Marx,
Gramsci ou Alinsky, pelo estado do mundo moderno. Se a caneta é mais
poderosa do que a espada, Rousseau é o melhor exemplo, influenciando a
Revolução Francesa, as revoltas de 1848 (nas quais Wagner participou) e seu
bis: as "revoluções" estudantis da Europa e dos Estados Unidos em 1968.
Esse ano, 1968, continua sendo um dos mais significativos da his
tória americana moderna: foi o ano em que tudo se partiu e o centro
1
não sustentou.¹ Durante os distúrbios estudantis na França, em maio,
que fizeram com que De Gaulle dissolvesse a Assembléia Nacional e
convocasse novas eleições (que ele venceu), meu professor de francês
da faculdade virou para nós e disse, numa observação que não entendi
totalmente na época: "Vocês todos são apenas filhos de Rousseau".
Até hoje, devido ao calor do momento, não tenho certeza se ele quis
dizer isso como crítica ou elogio.
1 Referência ao poema "A segunda vinda", de W. B. Yeats - NT.
157
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
Para o historiador Paul Johnson, Rousseau, nascido na Suíça, é
"o primeiro dos intelectuais modernos, seu arquétipo e, em muitos
aspectos, o mais influente de todos", como ele escreve em seu livro de
1988, Intelectuais. Ele continua:
Rousseau foi o primeiro a combinar todas as características marcantes do
Prometeu moderno: a afirmação de seu direito de rejeitar a ordem existente
em sua totalidade; confiança em sua capacidade de remodelá-la de baixo,
de acordo com os princípios de sua própria criação; crença de que isso
poderia ser alcançado pelo processo político; e, não menos importante, o
reconhecimento do imenso papel que o instinto, a intuição e o impulso
desempenham na conduta humana. Ele acreditava ter um amor único pela
humanidade e haver sido dotado de dons e idéias sem precedentes para
aumentar sua felicidade. Um número surpreendente de pessoas, em seus
dias e desde então, concorda com ele.
Em outras palavras, Rousseau poderia muito bem ser a segunda
vinda de Cristo ou até mesmo a segunda vinda do próprio Deus. Pois o
que é o poder de refazer a humanidade senão um poder divino? Quanto
mais militante o ateu, ao que parece, mais divino ele deseja se tornar.
Seu "ateísmo" revela-se não como descrença num poder superior, mas
crença em si mesmo como esse poder superior. Costuma-se dizer que o
ateísmo é simplesmente uma religião com outro nome (como a União
Soviética, declaradamente atéia e agora extinta, demonstrou). Senão,
por que os ateus seriam tão inflexíveis e agressivos em suas crenças?
Eles não apenas resolveram não acreditar em Deus, nem mesmo em
um deus, mas exigem que seus concidadãos se submetam essa pa
lavra novamente -
- à sua ideologia e expurguem todas as evidências
da religião (cristã) da praça. Não importa que os fundadores fossem
cristãos (mesmo que alguns deles só nominalmente) e esperassem
plenamente que sua fé sustentasse seu novo país. Embora a Primeira
Emenda proibisse o Congresso de estabelecer uma religião nacional, não
havia tal proscrição contra os estados, e Massachusetts e Connecticut
estabeleceram igrejas (congregacionalismo) no século XIX.
Uma Igreja do ateísmo agora parece o provável destino de um
país cujo lema oficial, "em Deus confiamos", foi transformado em
lei em 1956; as palavras "sob Deus" foram acrescentadas ao Ju
ramento de Lealdade à bandeira e república norte-americana ape
nas dois anos antes, ambos os casos durante o governo Eisenhower.
158
MUNDO SEM DEUS, AMÉM
Como sempre, os esquerdistas empregam os escudos de seus inimigos
como espadas contra eles, realizando um lawfare² contra instituições
americanas com audácia e impunidade quase total. Assim, em seu zelo,
eles demonstram a necessidade de algum tipo de fé, mesmo que seja
antifé. Afinal, existe uma hierarquia no inferno.
Rousseau, um homem do Iluminismo, é identificado com o culto do
"bom selvagem", mas o escopo de sua acusação da civilização é muito
mais amplo. Rejeitando o materialismo nascente, ele adotou uma visão
da natureza que tomou de assalto os românticos (onde a Alemanha do
século XIX estaria sem Rousseau?) e criou uma nova versão da Queda
do homem, dessa vez derrubado não pela serpente no Jardim, mas
pelo avanço material da Revolução Industrial. A humanidade havia se
separado do estado natural, seduzida pela aquisição de propriedades,
disse Rousseau. A humanidade, a seu ver, havia se tornado competitiva,
arrogante, prepotente e vaidosa, ou seja, alienada. Nascido calvinista em
Genebra, tornando-se, posteriormente, um "convertido de conveniên
cia" ao catolicismo na Itália, Rousseau era o arquétipo do esquerdista
moderno insatisfeito, um insolente fracasso em praticamente tudo o
que tentou, dependendo da bondade de estranhos, sobretudo de mu
lheres, para sobreviver. Finalmente, encontrando seu ofício, deparou-se
com seu verdadeiro chamado: dizer aos outros o que fazer por meio
de ensaios e de sua autobiografia, sendo ele mesmo seu próprio herói.
Como no caso de Wagner, um culto de personalidade formou-se
em torno de Rousseau, sempre rabugento, paranóico e hipocondríaco
("um dos maiores ranzinzas da história”, observa Johnson). Ele pre
gava a verdade e a virtude, embora tivesse muito pouco de cada uma
(da última, quase nada). Deixou os filhos bastardos que teve com sua
amante de toda a vida, Thérèse Levasseur (sobre quem escreveu: “as
necessidades sexuais que eu satisfazia com ela eram puramente físicas
e não tinham nada a ver com ela como indivíduo"), nos degraus do
orfanato mais próximo (cinco, no total, um após o outro), e nunca se
deu ao trabalho de batizá-los. Como tantos outros depois dele, Rou
sseau foi um daqueles liberais que amavam a humanidade, mas não
suportavam as pessoas.
2 Uso indevido de recursos jurídicos para fins de perseguição política - NT.
159
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
Muitas vezes contraditório em seus pontos de vista sobre ateísmo
e religião, Rousseau, no entanto, tinha certeza de uma coisa: de que o
Estado deveria ser o árbitro final da condição humana, em nome de
algo que ele chamou de "vontade geral". Somente o Estado, dizia ele,
poderia tornar o homem pós-Queda bom novamente. Podemos prati
camente sentir o cheiro de fascismo que sai de suas páginas — tudo em
nome da compaixão, é claro. Não admira que seus contemporâneos
mais observadores, incluindo Voltaire, o considerassem um monstro.
Muitos outros, no entanto, foram fortemente influenciados por ele,
incluindo a maioria dos grandes monstros do século XX. Sem Rousse
au, Marx é inconcebível; sem Marx, Lenin é inconcebível; sem Lenin,
Stalin é inconcebível; sem Stalin, Mao é inconcebível; sem Mao, Ho
Chi Minh e Pol Pot são inconcebíveis. No Manifesto comunista, Marx
e Engels apontaram como inimigo principal a burguesia: "Não restou
outro vínculo entre os homens a não ser o interesse próprio, o insensível
'pagamento em dinheiro'. A burguesia afogou os êxtases mais celestiais
de fervor religioso, de entusiasmo cavalheiresco, de sentimentalismo
filisteu, nas águas geladas do cálculo egoísta".
E assim por diante. A parte que fala sobre "fervor religioso", como
se algum deles desse alguma bola para isso, é agradável, embora a
observação sobre o "sentimentalismo filisteu" seja mais fiel ao seu
verdadeiro éthos. La Rochefoucauld definiu a hipocrisia como a ho
menagem que o vício presta à virtude, mas e se a própria virtude for
uma farsa? E se tudo for uma impostura, uma ilusão satânica, o rato
saindo da boca da bruxa graciosa na cena Walpurgisnacht, de Fausto?
Nessa famosa cena, Fausto e Mefistófeles voaram magicamente para
Brocken, no topo das montanhas de Harz, o ponto mais assombrado
da Alemanha, para participar do sabá das bruxas. Mefistófeles está se
sentindo velho e identifica sua própria fraqueza com o fim do mundo:
MEFISTÓFELES
Sinto que se aproxima o Dia do Julgamento,
pois escalo esta montanha pela última vez.
Como meu barril se turva,
do mundo também só restarão as borras.
160
MUNDO SEM DEUS, AMÉM
Aí começa a farra. Fausto conta à jovem bruxa sobre um sonho que
ele teve, um sonho com maçãs: "Tive um sonho maravilhoso, no qual
vi uma linda macieira com duas maçãs tão atraentes, que lhes saltei
logo em cima". Ao que a jovem bruxa responde: “As pequenas maçãs
te agradaram tanto, porque vieram do paraíso. Sinto-me igualmente
alegre, pois elas crescem no meu Jardim também”.
Esse pequeno diálogo (o sagrado) é imediatamente seguido pelas
profanas declarações de Mefistófeles, que está dançando com a velha
bruxa e faz uma observação grosseira sobre uma "árvore cortada",
com um buraco no meio: "So es war, gefiel mir's doch" ["Assim era,
mas eu gostei"]. A velha bruxa, então, responde indecentemente, desa
fiando Mefistófeles a encontrar algo grande o suficiente para preencher
o buraco.
Um fruto proibido e um fruto totalmente à mão. Vimos em Paraíso
perdido que a ingestão de um levou ao consumo do outro. Desde que
se provou da Árvore do Conhecimento até o primeiro ato sexual (po
eticamente interpolado) registrado da história (não somente, note-se,
um ato de amor, mas um ato de súbita humanidade, ao mesmo tempo
apaixonado, temeroso, desesperado e desafiador) passou-se apenas um
instante. Ou seja, desde o pecado original até o nascimento do primei
ro filho, Caim, o primeiro assassino da história. Condenado desde o
início? Ou livre para escolher? Eros e Tânatos eram inseparáveis desde
o princípio? E quem veio primeiro?
Devemos observar que há um duplo subtexto sexual no relato de
Milton sobre o que aconteceu no Jardim durante aquele encontro
fatídico: o desejo de Eva pela maçã é palpavelmente sexual, mas tam
bém o desejo da serpente por Eva: “Ela, em aparência, resume todo
o prazer, o prazer que levou a serpente a contemplá-la... Bajuladora,
lambeu o chão que ela pisava". A serpente olha para o corpo nu dela
com admiração altamente erotizada e, apelando para sua vaidade, diz
que ela é bonita demais para não ser admirada por todos.
O que a serpente lhe oferece, lembre-se, é que Deus seja retirado do
paraíso, para que ela própria se torne um deus. Assim, praticamente
desde a Criação, a noção de um mundo sem Deus já existia. E, no
entanto, como a história mostra de modo inequívoco, o homem não
161
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
conseguiu substituir Deus. A vida e a obra de Rousseau são a prova de
que o vício e a virtude podem, quando combinados no mesmo homem,
não ser hipocrisia, mas o próprio mal. O fato de que a vida de Rou
sseau, como a de Marx, foi inteiramente dedicada à auto-exaltação,
disfarçada de empatia por seus semelhantes, é indiscutível (Rousseau
fundiu a si mesmo e suas próprias necessidades, vontades, desejos e
esperanças com os de toda a humanidade, algo totalmente característico
de muitos esquerdistas), assim como o fato de tantos terem caído (e
caírem até hoje) por suas profissões de benevolência.
Observamos anteriormente, no caso de Wagner, por exemplo, que
é preciso separar o homem de sua arte para obter uma imagem mais
clara de cada um e poder realizar uma avaliação mais fiel da arte. É
fácil, nesta era do politicamente correto, forjar acusações contra quase
qualquer indivíduo morto, exumar seu cadáver e, como um sínodo
cadavérico conduzido por um tribunal de Nuremberg realizado numa
escola de pós-graduação, como ocorreu com Cromwell ou o Mahdi
(os dois têm muito em comum, além da profanação póstuma), cortar
sua cabeça, atravessá-lo com uma lança e jogar seu corpo numa vala.
Avaliemos, então, a arte: o que vemos nas obras de Rousseau é algo
arquetipicamente contra a civilização ocidental, o verme sem Deus no
interior da maçã de Eva. Rousseau era a víbora no peito, "sussurros na
escuridão" (título de outro memorável conto de Lovecraft), o tentador
sibilando nos juncos.
Existem poucas imagens mais impressionantes em toda a literatura
do que a abertura de Paraíso perdido, em que Satanás e seus comparsas
estão acorrentados ao mar de fogo, perguntando-se como diabos eles
chegaram lá. O bardo ousa abrir seu longo poema in medias res [no
meio da narrativa]: a batalha no céu já se desenrolou antes de a cortina
subir. Qual é o primeiro desejo de Satanás? Vingança. Sem esperança
de reentrar no céu, o arcanjo caído, que já ocupou o trono do paraíso,
agora só pode conspirar contra o novo brinquedo de Deus, a huma
nidade. No segundo livro do poema, durante a conferência infernal
entre Satanás e seus capangas, Moloch argumenta:
162
MUNDO SEM DEUS, AMÉM
Ou se nossa substância é realmente divina,
e não pode deixar de existir, na pior das hipóteses,
somos, deste lado, nada; e por prova sentimos
nosso poder suficiente para perturbar seu céu,
e com perpétuas invasões alarmar,
embora inacessível, seu trono fatal,
que, se não vitória, ainda é vingança.
Satanás e seus servos têm uma pequena vantagem. Deus deu à
humanidade um lugar de destaque em relação aos anjos, porque, ao
contrário deles, o homem tem livre-arbítrio. (O que levanta a questão:
Por que Lúcifer foi repentinamente acometido pelos pecados humanos
do orgulho e da inveja, que ocasionaram a rebelião no céu? Não eram
essas características humanas?). Mas os anjos não podem proteger o
homem das bajulações de Satanás. A humanidade é um alvo fácil.
Pecado e morte vêm antes do amor humano. O ato sexual, o que
mais aproxima os humanos de Deus, só é possível após a Queda. O
primeiro filho humano, Caim, mata seu irmão, Abel, e depois recebe
de Deus, em troca, a marca de Caim, não como sinal de maldição, mas
de proteção, e de que Deus, e somente Deus, pode punir Caim por sua
transgressão.
Portanto, a natureza do homem não é divina, mas selvagem: sua
mão se volta contra seu semelhante, e a mão de seu semelhante se volta
contra ele. (Como a voluptuosa e tentadora Jessica Rabbit diz ao detetive
humano Eddie Valiant, em Uma cilada para Roger Rabbit: "Não sou
má, fui apenas desenhada assim"). Isso parece ser uma evidência de que
o mito do bom selvagem não é fundamental, uma vez que a história da
Queda precede Rousseau. Adão e Eva não começaram como selvagens,
mas seus filhos se tornaram selvagens, e eles dificilmente eram bons.
Pois "selvagem" é a palavra-chave, não “bom". A esquerda profana
tem pouco uso para a bondade, exceto se ela estiver a serviço de suas
fantasias morais. Mas o selvagem, ah, como eles o admiram! O filho da
natureza, sem necessidade de superstição religiosa e desligado da civili
zação, correndo solto, vivendo da terra, com um tacape ou uma lança
na mão, matando a torto e a direito. O próprio pensamento já os atiça.
A destruição os fascina. Eles encontram satisfação e até plenitude
na destruição, não na construção. A criação é um tédio; a aniquilação,
163
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
uma alegria. Eles têm um prazer infantil no extermínio, e a retórica
eliminacionista mais extrema (ou seja, puramente retórica, é claro!)
nunca se afasta de seus lábios. Grande parte da arte esquerdista do século
passado e deste são cansativos salpicos de lama daqueles cujo mantra
é épater le bourgeois [chocar a burguesia], enquanto manuseiam seus
punhais imaginários, sonhando em ter a coragem de enfiá-los no peito
de seus patrões. Como não acreditam no céu, eles não apenas desejam
o seu próprio céu aqui na Terra, mas também sua vingança terrena.
Mas é para isso que serve o Estado ateu. Esse seria o Estado ateu
armado, cujos agentes estão legalmente equipados com meios letais
para forçar o cumprimento de seus desejos e ditames. Nos distritos do
Estado, a pessoa é livre apenas na medida em que suas ações, predile
ções e até pensamentos estejam em conformidade com os do Estado:
a vontade geral de Rousseau.
Qualquer um que mora numa grande cidade americana controlada
por esquerdistas conhece um aviso publicado em frente a muitas das
melhores casas dos bairros mais chiques (e geralmente, portanto, os
mais segregados racialmente): RESPOSTA ARMADA. Isso não significa
que os habitantes desse lugar sejam a favor da Segunda Emenda, que
garante o direito do indivíduo (o direito, não a permissão opcional do
Estado) a "portar armas". Longe disso. Significa que o proprietário se
reserva o direito de que um funcionário contratado chegue a seu ter
ritório em resposta a um alarme eletrônico e possivelmente empregue
força letal contra qualquer infrator que esteja no processo de violar
as leis de roubo, sobretudo se a violação ocorrer quando o proprietá
rio (que, na verdade, não acredita na Segunda Emenda e, por razões
morais, nunca teria uma arma em casa) está em casa.
Essa é a essência do ditado de La Rochefoucauld, de que a hipo
crisia é a homenagem que o vício (anticonstitucionalismo) presta à
virtude (autodefesa). É também o sinal de uma cultura degenerada
que se apresenta como virtuosa: é como se Will Kane, de Gary Cooper,
diante de seu fim iminente, largasse o revólver, abraçasse a passivida
de quaker de sua esposa e se entregasse de bom grado à morte pelas
mãos dos patifes que vieram matá-lo, mas sabendo que seu próprio
grupo de pistoleiros contratados apareceria na estação bem a tempo
164
MUNDO SEM DEUS, AMÉM
de salvá-lo das conseqüências de sua retidão pouco viril. Onde está o
heroísmo nisso?
Aí é que está o problema. Estive discutindo a narrativa original inata
que é implantada no seio de todos os humanos, mas não observei que
existem duas versões diferentes de heroísmo e da jornada arquetípica do
herói. Até agora, não comentei nada, porque uma versão é o anti-heroísmo,
o heroísmo de imitação, o heroísmo do culto ao suicídio, que decreta que
é melhor morrer "nobremente”, ou seja, passivamente, “Como um cão!",
segundo exclamação de Josef K. logo antes de ser executado no final de
Der Prozess (O processo), de Franz Kafka, do que revidar. Isso não é
heroísmo, mas o comportamento de um peixe dourado sendo jogado no
vaso sanitário, e com a mesma repercussão e persuasão moral.
Kafka, o maior escritor judeu do fin-de-siècle e um dos maiores escri
tores da era moderna, é uma testemunha especialmente persuasiva em
relação a esse ponto. O poeta de Praga e seus descontentamentos não
poderiam ter sido mais proféticos sobre nosso rançoso século passado.
Difícil imaginar um intelectual mais anti-selvagem (anti-Rousseau em
quase todos os aspectos). Eis um homem que previu os horrores que se
avizinhavam, olhou-os sem se deixar abalar e registrou seus pesadelos
num alemão lúcido e bonito.
"Alguém deve ter caluniado Josef K., pois, uma manhã, sem ter feito
nada de errado, ele foi preso", começa O processo, e provavelmente não
há uma frase de abertura mais impressionante na literatura moderna.
Como Gregor Samsa em A metamorfose, Josef K. desperta de sonhos
provavelmente inquietantes e encontra sua vida transformada, e não
no bom sentido. Segue-se, então, uma "investigação sobre um cidadão
acima de qualquer suspeita" (para citar o título do filme italiano de
1970, dirigido por Elio Petri), e Josef K. se vê cada vez mais envolvido
no funcionamento insano de um sistema de “justiça" que não tem
nenhuma semelhança com qualquer justiça que ele possa conceber.
Qual o seu crime? O que ele fez? Qual a verdade? Quem sabe? Quem
se importa? O Estado, como Deus, tem suas razões, e elas não são para
os mortais saberem. "A compreensão adequada de qualquer assunto
e a má interpretação do mesmo assunto não se excluem totalmente",
instrui o padre a Josef K. Três crimes por dia etc.
165
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
Josef K. entrou no palácio de prazer do demônio, casa bagunçada
não tão divertida, em que "em cima é embaixo, preto é branco",
como diz Eddie Dane na obra-prima dos irmãos Coen, Ajuste Final.
Nesse filme, Tom Reagan (Gabriel Byrne) leva Bernie Bernbaum
(John Turturro) para Miller's Crossing com o intuito de bater nele.
Bernie exclama: "Não posso morrer aqui na floresta, como um ani
mal idiota", lembrando as últimas palavras de Josef K.; e Tom (como
Upham em O Resgate do Soldado Ryan) o deixa ir, para seu eterno
arrependimento. O que foi feito não pode ser desfeito: "O que foi
feito é passado! O que é passado está feito!", exclama Mefistófeles
durante a Walpurgisnacht, mas o que não foi feito no passado certa
mente deve ser desfeito no presente para que o futuro tenha algum
significado. Assim, eventualmente, Upham deve matar Steamboat
Willie; Tom deve matar Bernie. Embora ambos os assassinatos sejam
realizados a sangue-frio e ambos certamente sejam crimes, nenhum
deles parece errado. O universo foi corrigido, qualquer que seja o
custo para a alma imortal do assassino.
O próprio Kafka morreu em 1924, seis meses antes de Adolf Hitler
ser libertado da prisão de Landsberg. E, no entanto, Kafka previra tudo
antes de acontecer: a força contundente do Estado, em O processo e
O castelo; a selvageria da ocupação soviética da Alemanha, em "Uma
folha antiga"; até o macaco treinado e falante de Henze, em "Um re
latório para a academia". Sem mencionar as descrições dos horrores
dos campos de concentração nazistas e suas pavorosas experiências
"médicas", e o Gulag soviético, em Na colônia penal, com sua repre
sentação nítida de uma máquina que tatua a sentença no prisioneiro
condenado quando ele morre.
No mundo de Kafka, um mundo em que Deus está conspicuamente
ausente, o homem é um joguete: ele pode ser transformado em um
macaco ou em um inseto gigante num piscar de olhos, condenado e
executado por nada. Até os gregos tinham mais chance do que isso.
Não há nada do bom selvagem em Kafka. Pelo contrário, o homem é o
que se interpõe entre o Estado e a anarquia absoluta, e não o contrário
(lembrando o melhor filme de Terry Gilliam, Brazil, nesse contexto,
que também tem como inspiração 1984).
166
MUNDO SEM DEUS, AMÉM
Se houvesse, de fato, um bom selvagem, não como previsto por
Rousseau, mas como um autêntico herói, como ele seria? Em um
contexto moderno, ele poderia ser Winston Smith em 1984; ou um
dos muitos heróis de Hollywood que lutam contra o poder em nome
da liberdade individual. Seria Will Kane em High Noon, Hawkeye em
O Último dos moicanos, Neo em Matrix, combatendo um exército
interminável de Mr. Smiths. Ele é o homem contra a máquina.
Em suma, ele somos nós. Ele não precisa do Estado. Ele só precisa
de companheiros com idéias semelhantes para apoiá-lo em sua busca
e continuar o trabalho depois que ele se for. Ele é Jesus, a crise na vida
de Deus. A história, infinitamente refratada e recorrente, continua.
Continuamos dizendo isso porque precisamos, para manter as forças
do inferno afastadas. O inferno não precisa de heróis; Deus, sim. O
fato de continuarmos fornecendo-os é uma das provas mais seguras
de sua existência.
167
CAPÍTULO XI
Eros e Tânatos
m 1931, duas correntes de pensamento do século XX combinaram
E forças no Institut für Sozialforschung: a psiquiatria freudiana
e o marxismo social. Entre os analistas estava Wilhelm Reich,
que mais tarde fugiu dos nazistas, estabelecendo-se na América, onde
(citando o website marxists.org) "desenvolveu a própria doutrina de
liberalismo sexual como um antídoto para o conformismo político e a
psicose social". Depois de Marcuse, nenhum outro membro da Escola
de Frankfurt teve um impacto tão negativo sobre a cultura.
Doida demais até para os freudianos e os marxistas sociais, toda
a obra de Reich até 1932 (ele morreu em 1957) foi, a princípio, pu
blicada por ele mesmo. Louco por sexo de uma forma que embara
çava tanto os companheiros freudianos quanto os colegas marxistas
amorais (ele cunhou o termo "a revolução sexual"), Reich acreditava
que os problemas do marxismo econômico eram causados pela frus
tração sexual, que bloqueava a consciência política do proletariado.
Ele despia os pacientes, para melhor quebrar sua “couraça muscular”
e adotava a "vegetoterapia" enquanto perseguia o orgasmo perfeito.
A função do orgasmo é sua obra mais famosa. Reich inventou tam
bém algo que chamou de "orgônio", um tipo de "energia cósmica"
sexual, e construiu "acumuladores de orgônio" para armazená-la.
169
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
A Food and Drug Administration (FDA) americana denominou-o de
"fraude de primeira magnitude". Ele morreu, com crises psicóticas
intermitentes, na penitenciária federal de Lewisburg, na Pensilvânia,
prisão onde estivera Al Capone.
"Na confusão ideológica do pós-guerra, quando o mundo tentava
entender o Holocausto, e os intelectuais decepcionados com o comu
nismo abandonaram a segurança de suas posições políticas anteriores,
as idéias de Reich encontraram terreno fértil", escreveu Christopher
Turner, num artigo de 2011 para o Guardian. Reportando-se à influ
ência de Reich, continuou:
Após o pacto entre Hitler e Stalin e os processos de Moscou, a teoria da
repressão sexual de Reich parecia oferecer à esquerda em desencanto uma
explicação convincente tanto para o grande número de pessoas que se
havia submetido ao fascismo quanto para o fracasso do comunismo como
alternativa viável para ele. Reich, capturando o clima desse momento con
turbado, apresentou a ex-stalinistas e antigos adeptos de Trotsky culpados
um programa alternativo de liberdade sexual para combater aquelas ame
aças totalitárias. [...] Ao criar uma moralidade derivada do prazer, Reich
permitiu que os radicais do pós-guerra percebessem sua promiscuidade
como ativismo político e justificassem sua retirada da política tradicional.
Reich fez com que se sentissem parte da elite sexual, superior ao consenso
corporativo cinzento e "congelado".
Reich defendeu a legitimidade científica de suas idéias excêntricas
(Woody Allen parodiou o “acumulador de energia orgônica" com o "or
gasmatron", em O dorminhoco) no prefácio da segunda de edição de A
função do orgasmo, com o seguinte exemplo clássico da tolice teutônica:
A economia sexual é uma disciplina científico-natural. Ela não se envergonha
do assunto da sexualidade, e rejeita como seu representante todo aquele
que não tiver superado o medo social inculcado da difamação sexual. O
termo vegetoterapia, usado para descrever a técnica terapêutica da eco
nomia sexual, é na verdade uma concessão à sensibilidade do mundo nos
assuntos sexuais. Orgasmoterapia teria sido um termo bem melhor, e sem
dúvida mais correto, para essa técnica médica, que é precisamente o que
a vegetoterapia é, em essência. Deve-se levar em consideração, porém, que
esse termo teria acarretado uma tensão forte demais nos jovens economistas
sexuais em sua prática. Bem, não há como evitá-lo. Fale às pessoas sobre o
cerne de seus anseios naturais e sentimentos religiosos, e elas o zombarão
gargalhando ou abafarão o riso de desprezo.
170
EROS E TANATOS
Sintetizando algo que todo menino adolescente sabe depois de seu
primeiro contato com a pornografia, Reich prossegue ilustrando os
princípios "científicos" por trás de sua nova e revolucionária teoria: "A
fórmula do orgasmo que comanda a pesquisa da economia sexual é a
seguinte: CARGA MECÂNICA CARGA ELÉTRICA DESCARGA ELÉTRICA
→ RELAXAMENTO MECÂNICO. [...] A causa imediata de muitas doenças
devastadoras pode ser atribuída ao fato de que o homem é a única
espécie que não cumpre a lei natural da sexualidade”.
Se você se sente bem, faça-o. Muitos artistas e intelectuais, e nem
todos meninos adolescentes, acharam as teorias de Reich convincentes.
Dentre os entusiastas de Reich mais maduros figuraram Saul Bellow,
Norman Mailer, Arthur Koestler e William S. Burroughs. Conforme
Christopher Hitchens escreveu em sua resenha para o New York Ti
mes, Adventures in the Orgasmatron [As aventuras no Orgasmatron],
o livro que o supracitado Christopher Turner escreveu sobre Reich:
"Será que é fácil demais simplesmente especular que os homens farão
qualquer estupidez em nome do sexo?".
De forma bem característica, Hitchens finaliza a resenha do livro
de Turner com essa imagem impressionante e desdenhosa:
Aventuras no Orgasmatron contém diversas passagens refinadas e cativantes,
mas acho que a minha favorita é essa, em que Alfred Kazin descreve sua
confiança patética em Reich, conforme demonstrou o escritor Isaac Ro
senfeld. Será que já houve uma descrição melhor da ingenuidade confusa
de tantos "intelectuais nova-iorquinos"?:
"A caixa de orgônio de Isaac ficava no meio de uma imensa confusão
de lençóis, exemplares de revistas, manuscritos, crianças e de várias pessoas
que entravam e saíam do quarto como se fosse um banheiro. Sentado, em
atitude hostil, dentro de sua caixa orgônica, desafiando o riso dos filisteus,
Isaac, porém, parecia perdido, como se estivesse ao telefone, esperando por
uma chamada que não se completava".
Para a esquerda profana, não existe uma idéia idiota demais para
não ser experimentada, nenhuma instituição que não seja digna de
ataque, nenhuma teoria que não mereça ser aplicada sem o cuidado
com os resultados, seja qual for o custo prático. Intenções são tudo;
resultados, nada. Os resultados são ilusões, o que conta é a teoria,
porque pode ser debatida infinitamente dentro do porto seguro do
171
MICHAEL WALSH
ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
contexto acadêmico. A chave está em examinar quais são de fato essas
intenções. A resposta está na própria noção de narrativa da esquerda,
ou melhor, da antinarrativa.
As obras da Escola de Frankfurt constituem um manifesto contes
tatário, expresso como um programa político. Palavras isoladas não
têm mais significados específicos, mas permanecem como imperativos
categóricos. Mulheres, negros, homossexuais, o meio-ambiente, a
"escolha" e governo forte são do bem, mas seus oponentes, não. Usar a
palavra é evocar a emoção associada a ela, não o nome. (Recentemente
"estupro" passou por uma transformação lingüística semelhante,
migrando de ato sexual forçado para atos de agressão verbal ou “mi
cro-agressão", ou qualquer coisa que a “vítima” não goste). Assim, a
linguagem é usada para calar a discussão e a crítica; ela é “anti”, com
o "anti" tratado agora como um bem absoluto. Ser “anti" em relação
a quase tudo é estar do lado certo da história, surfando no arco que
se curva em direção à justiça. Ela não requer pensamento, apenas
emoções. Não requer reflexão sobre o enigma da cerca de Chesterton,
apenas reflexos. Deveria constituir um embaraço para qualquer um
que seja incapaz de defendê-la intelectualmente, e, ainda assim, não
é, porque é dogma.
O dogma cria a própria realidade. Não é preciso pensar a respeito,
já que ele fornece todas as respostas. É fácil fazer troça dos protestantes
evangélicos ou dos judeus ortodoxos que citam o Livro de Levítico
como a fonte da sabedoria e de instruções em relação à comida, saúde,
moralidade sexual. Fazer uma afirmativa fundamentada citando as
Escrituras não serve de argumento. O mesmo vale para o catecismo
esquerdista que evoluiu na esteira da Teoria Crítica e do politicamente
correto e que conta com as vantagens adicionais de ser novidade e
amplamente disseminado por uma mídia entusiasmada. Ele merece
ser questionado e alvo de chacota em cada pormenor com a mesma
vivacidade dos ateus que atacam os pregadores batistas do sul.
O que, afinal, a "liberação sexual" conquistou? Que bem, de fato,
ela alcançou? A não ser dar aos homens acesso maior e mais fácil às
mulheres, no que ela melhorou a vida de alguém? Ela nos prometeu
a liberação da "repressão sexual” (o que os meninos adolescentes
172
EROS E TANATOS
costumavam chamar, contendo o riso, de "dor no saco"), liberdade
de uma moralidade sexual retrógrada e desgastada. Prometeu pôs
abaixo a cerca de Chesterton, interposta entre nossa libido e nossas
responsabilidades. É fácil perceber por que era popular, uma vez que
nivelou em parte o campo de ação sexual para os machos beta, cujas
chances de "conquista" sexual melhoraram enormemente, uma vez que
a "conquista" foi retirada da equação e a resistência natural da mulher
ao sexo indiscriminado (ou sexo menos discriminado) foi derrubada.
Sob o disfarce de prazer cooperativo, ela ergueu um novo igualitaris
mo entre os sexos, dizendo às mulheres que seu impulso sexual e suas
responsabilidades sexuais eram exatamente os mesmos dos homens.
(Por que nenhuma feminista da época reclamou disso é um mistério.
De fato, a nova doutrina ainda retratava as mulheres como criaturas
menores que precisavam elevar, ou baixar, sua visão sexual ao nível
da visão de um homem). A "liberação" recém-descoberta levou a um
rápido crescimento nos índices de aborto, do HIV e de filhos ilegítimos.
Finalmente, usando a máscara do "progresso", ela fez com que os
ocidentais retrocedessem a níveis primitivos de sexualidade, chutando
os alicerces morais da cultura (mesmo que a moral fosse muitas vezes
observada mais pela fresta do que na prática). Quem diria que o slogan
"todo homem, um garanhão; toda mulher, uma vagabunda" poderia
ser um sucesso? Não cabe à humanidade derrotar o pecado, mas sim
estarmos alertas e conscientes nas interações com ele. E, de qualquer
forma, o Ewig-Weibliche jamais se inclinará para a prostituição.
Qualquer um que tenha achado uma boa idéia transformar mulheres
em homens carece de um exame mental. E transformar homens em
mulheres (o corolário necessário, conforme se observou, embora essa
pequena parte fosse menos anunciada) foi ainda pior. Acima de tudo,
seu puro charlatanismo assombra por quase um século. Que diabos
estávamos pensando? Como foi possível que a elite intelectual dos Es
tados Unidos, tendo recém-participado da vitória notável na Segunda
Guerra Mundial, acolhesse uma filosofia tão obviamente absurda? A
teoria médica greco-romana dos humores corporais, o comércio das
indulgências na Idade Média e a frenologia tiveram mais base científica
do que o disparate de Reich.
173
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
E qual foi o efeito disso? A "guerra entre os sexos", em raras ocasi
ões, foi mais hostil. A incidência de doenças sexualmente transmissíveis
proliferou, e vírus antes contraídos apenas num bordel podem estar
no bar da esquina. Aquilo que começou como licenciosidade sexual
ilimitada, com orgias, múltiplos parceiros sexuais etc., transformou-se
numa afirmativa do tipo "sim significa sim" até para o sexo de uma
noite. Nos campi, moças e rapazes agora se olham nos olhos com sus
peita: aquela pessoa atraente que você vê pode não só ser um parceiro
sexual em potencial como também um futuro reclamante numa ação
judicial. Ao que parece, quanto mais sexo, mais desilusão e mágoa;
quanto menos "repressão", menos romance. Outdoors em Los Angeles
incentivam o uso de preservativos e linhas diretas de apoio ao combate
à AIDS. A Venusberg prometida tornou-se venérea.
Curiosamente, foi justo por volta da mesma época em que o movi
mento da liberação sexual estava em franco andamento, na década de
1970, que seu lado mórbido ganhou destaque na cultura popular, nos
filmes. Foi também o auge dos filmes de terror e filmes sangüinários,
películas sobre serial killers enfurecidos, muitas vezes imortais (Hallowe
en, Sexta-feira 13, O massacre da serra elétrica, A hora do pesadelo)
que se aproveitavam de ninfetas, quase sempre adolescentes nuas em
vários tipos de ato sexual. Quase todas as nossas joviais protagonistas
acabavam do lado errado da arma cortante da vez, exceto uma: uma
jovem conhecida no ramo como Final Girl.
É como se a Terceira Lei do Movimento de Newton fosse aplicada,
estabelecendo uma reação igual e oposta às prescrições e panacéias de
Reich: quanto mais sexo temos, menos satisfatório ele se torna, e mais
destrutivo em termos culturais. No Japão, cada vez mais os rapazes
estão adiando o casamento e até mesmo os encontros, preferindo ficar
em casa, assistindo pornografia e jogando videogames. Como resultado,
o país está agora numa espiral populacional descendente, com a venda
de fraldas geriátricas superando a das fraldas de bebês. Em alguma
outra parte, a nudez prolifera como exemplo do "empoderamento"
feminino, e ainda assim feministas furiosas vêem estupradores não só
por trás de cada moita, mas brilhando no pódio. Um tipo de insani
dade apoderou-se do Ocidente, uma histeria sexual bem pior do que
174
EROS E TANATOS
qualquer coisa que Reich tenha diagnosticado, de modo conveniente,
em sua tentativa de fazer o máximo de sexo possível.
Sexo certamente todo rapaz faz, mas qual tem sido o resultado? As
inclinações sexuais de uma paxá em seu harém ou de um gangster com
suas "gostosas", no entanto, exercem exatamente o mesmo efeito na
cultura ocidental que tiveram entre os maometanos ou a classe inferior
negra. O que Reich e os outros da Escola de Frankfurt esqueceram
foi que a "repressão” é algo bom quando é chamada pelo seu nome
correto: "tradição".
Entretanto, para eles, aceitar a tradição, justo aquilo que eles com
batem, seria o seu fim. Então, teriam finalmente de encarar o pior tipo
de morte: o Tânatos de sua filosofia, o único pertence, além da raiva,
que de fato já tiveram. Seu palácio de prazer, como o de Schubert, rui
ria, virando poeira, e eles, junto com ela, seriam soprados para longe.
175
CAPÍTULO XII
A consolação da filosofia
iante da iminente execução por ter ofendido o imperador,
D Boécio, filósofo romano do século VI, escreveu A consolação
da filosofia, um diálogo imaginário entre um condenado e
uma bela mulher representando o espírito da filosofia, que, de repente,
surge diante dele na prisão:
"Poderia eu abandonar-te, criança", disse ela, "e não aliviar o peso que
carregas pelo ódio ao meu nome, compartilhando essa perturbação? [...]
Pensas que agora, numa era maligna, é a primeira vez que a sabedoria é
atacada pelo perigo? [...].
Assim, não deves assombrar-te se, nos mares da vida, formos sacudidos
por temporais furiosos [...]. E se, por vezes, eles se organizarem contra nós,
e sobre nós recaírem com força devastadora, nosso líder as enfraquecerá
dentro da fortaleza enquanto se ocupam pilhando a bagagem inútil. Mas
nós, do nosso posto privilegiado, a salvo desse ataque selvagem, riremos ao
vê-los valorizar as coisas mais insignificantes, protegidos por um baluarte
que a loucura jamais alcançará.
Falando de maneira clara: "Acha que só agora, numa era malig
na, a sabedoria está sob ataque? E se, por vezes, as forças do mal
recaírem sobre nós de modo devastador, nós nos refugiaremos em
nossa fortaleza, enquanto elas pilham bagagem inútil. E nós riremos
delas".
177
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
Embora não poupasse o nobre romano da lâmina nas mãos do
imperador ostrogótico, Teodorico, o Grande, A consolação da filoso
fia veio a ser um dos grandes best-sellers do período medieval, farta
mente copiado e distribuído, sendo fonte constante de conforto para
os aflitos com a injustiça do mundo. Profundamente cristã sem o ser
de forma explícita, A consolação da filosofia confortou leitores por
quase um milênio antes de que a tipografia a divulgasse ainda mais.
Em essência, a obra aborda a antiga questão do papel desempenhado
pelo mal no mundo e de qual seria nossa reação apropriada a ele: não
pela supressão (dado que isso é impossível), mas pela aceitação do
mal tanto como instrutivo quanto como uma oportunidade de obter
graça com o sofrimento.
O espírito da filosofia de Boécio acrescenta um elemento fundamental:
a gozação. Como disse Martinho Lutero: "A melhor forma de banir
o demônio, se ele não ceder aos textos das Escrituras, é zombando
dele e desprezando-o, pois ele não suporta o escárnio". A arma mais
poderosa que a direita tem contra a esquerda, a saber, a zombaria em
relação à sua simples imbecilidade pretensiosa, é a menos empregada.
Não existe consolação na filosofia esquerdista, apenas raiva e ódio.
Ela é a expressão da impotência, e não apenas da espécie intelectual.
Lembre-se de que os "intelectuais", de Rousseau a Marx, Brecht, Sartre
e Lillian Hellman (cujo nome não podia ser mais apropriado) foram
animalescos na vida privada e a maioria deles, em algum nível, sabia
disso. Talvez o comportamento anti-social, amoral e até imoral fosse
um reflexo de sua ideologia detestável, pois tentar salvar a humanidade
enquanto despreza as pessoas é a verdadeira essência da dissonância
cognitiva. Assim, a filosofia deles, naturalmente, tinha de falar mais
alto do que sua personalidade.
No entanto, chamar-lhes a atenção sobre isso, mostrar que o impe
rador está tão nu quanto uma das malfadadas adolescentes prestes a
serem esquartejadas por Michael Myers, Jason Voorhees, Leatherface
ou Freddy Krueger e, além disso, que ele é um exemplar único de viri
lidade inexpressiva, é deixá-los de cabelo em pé. Em retaliação, como
prova de seu intelecto superior, eles atirarão suas credenciais acadêmicas
sobre nós, fruto de sua longa marcha pelas instituições, qualificações
178
A CONSOLAÇÃO DA FILOSOFIA
que provam, mais do que qualquer outra coisa, a inutilidade de grande
parte de nossa educação superior de hoje.
O escárnio deixa a esquerda profana louca. Eles não suportam ter
suas teorias questionadas, ou os resultados fracassados dessas teorias
ridicularizados. A dignidade é uma das virtudes imaginárias uma
das últimas virtudes, ponto que eles possuem, e que ela seja atacada
-
junto com todo o seu "sistema de crenças" (o termo jocoso que usam
para religião organizada) já é demais. A zombaria é o que os leva mais
rapidamente à fúria descontrolada, de tão apegados que eles são à
idéia da própria bondade e infalibilidade quando se trata de questões
de descrença e imoralidade.
O objetivo da Teoria Crítica era impossibilitar a dissidência em
relação à ortodoxia marxista. Ao estabelecer que não poderia haver
nada além da crítica exceto a própria Teoria Crítica em si, a Escola de
Frankfurt deu o veredito de que a sociedade é culpada antes mesmo
de haver um julgamento. Mas isso é simplesmente uma insanidade.
"Sentença primeiro, veredito depois", como a Rainha de Copas diz a
Alice, quase no final de Alice no país das maravilhas:
"Deixe que o júri considere seu veredito", disse o Rei, talvez pela vigésima
vez naquele dia.
"Não, não!", disse a Rainha. "Sentença primeiro, veredito depois".
"Que coisa boba e sem sentido!", disse Alice em voz alta, "essa idéia de
dar a sentença primeiro!".
"Segure a língua!", disse a Rainha, ficando roxa.
"Não vou segurar!", disse Alice.
"Cortem a cabeça dela!", gritou a Rainha a plenos pulmões.
Aquilo que um dia foi sátira é hoje sabedoria convencional, assim
como a reação colérica da Rainha ante a petulância de Alice. A repres
são do debate e a anulação dos conceitos básicos de certo e errado,
e da adequação social, é o propósito do “politicamente correto”. E a
dissidência, antes a forma mais elevada de patriotismo, não deve mais
ser tolerada. Assim como "tolerância", "dissidência” só foi uma virtude
quando foi útil para a esquerda.
Examinemos a expressão, "a forma mais elevada de patriotismo".
Dissidência não significa impedimento, nem mesmo objeção extrema
da. Aqui, significa uma objeção fundamental, radical, irreconciliável a
179
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
todas as verdades desde sempre respeitadas, que, então, é seguida de
um ataque frontal: a Teoria Crítica em ação. A tolerância, conforme
vimos pela redefinição de Marcuse como "tolerância repressiva", signi
fica intolerância. Suspeita-se, por exemplo, de que a "diversidade" não
mais será considerada necessária, uma vez que o homem branco foi
derrubado de sua posição "privilegiada" e deserdado, de modo eficaz,
do próprio patrimônio cultural. Apenas aos brancos "não-brancos",
os defensores das massas "diversificadas", será permitido o poder, e
eles serão selecionados segundo um critério político simplista, bem
semelhante ao verbalizado pelo prefeito vienense Karl Lueger, ao ser
solicitado a justificar sua amizade com muitos judeus, apesar da ideo
logia anti-semítica que ele defendia para obter votos: "Wer a Jud ist,
bestimm'i" ["Eu decido quem é judeu"]. No verdadeiro Ministério da
Verdade do próximo regime progressista, leremos as seguintes palavras,
esculpidas na fachada: DISSIDÊNCIA - TOLERÂNCIA - DIVERSIDADE. -
Quanto à "forma mais elevada de patriotismo", tudo o que ela sempre
significou foi que a esquerda não desejava ter seu patriotismo ques
tionado enquanto estava ocupada com o processo de minar a ordem
existente (para criar uma melhor, é claro). Seu patriotismo não só era
questionável, como era inexistente. O patriotismo que os radicais da
década de 1960 valorizavam não era o patriotismo do passado (agora
considerado "jingoísmo"),¹ mas o patriotismo da América do futuro, o
novo Estado que passaria a existir assim que o antigo fosse destruído e
substituído pelo admirável mundo novo que eles estavam preparando
nos tubos de ensaio de ciência política nos campi espalhados pelo país.
Qualquer esquerdista lhe dirá, em geral de forma indireta, pois
talvez não o admita pessoalmente, que ele não admira o mundo como
ele é, mas que aprecia o mundo conforme ele deseja que o seja. O fato
de serem poucos os que concordam com os esquerdistas quando essa
proposta é colocada de forma tão grosseira simplesmente significa que
precisam escondê-la por algum tempo, até que ela possa ser imposta
sobre um público relutante, porém petulante. Eles se vêem como her
deiros de uma tradição nobre, talvez mais bem sintetizada pelo com
positor Gustav Mahler ao declarar: "Meu tempo está por vir". Eles
1 Nacionalismo exacerbado na forma de uma política externa agressiva - NT.
180
A CONSOLAÇÃO DA FILOSOFIA
consideram o julgamento da posteridade, não da história. O próprio
fato de serem contra algo, sem importar realmente o quê, contribui
para sua noção de superioridade moral, sem a qual nada são.
Esse último ponto é essencial para a compreensão da esquerda
profana: que eles se consideram, como os puritanos que normalmente
execram, o partido dos eleitos, dos abençoados. De forma análoga, eles
consideram os conservadores resistentes aqueles que gostam das
-
coisas mais ou menos do jeito que são, que confiam nas opiniões de
seus antepassados e honram sua sabedoria e experiência como os
-
amaldiçoados que precisam ser trazidos para a luz, quer dizer, para a
escuridão. (A semelhança com a Rainha da Noite de Mozart é óbvia).
O problema de sua ideologia, porém, é que, depois de algumas vi
tórias (o movimento dos direitos civis, por exemplo, embora até isso
fosse ferrenhamente contestado por muitos de seus colegas democratas),
ela não tem para onde ir. Uma vez corrigidos os erros detectados, a
revolução entra novamente em ação, mirando sua cauda de escorpião
nos mínimos alvos e picando-os cada vez com mais crueldade até
atingir apenas fantasmas. Um bom exemplo é a estranha obsessão em
relação ao "privilégio branco" (o racismo sempre está à espreita, sob
a superfície do projeto esquerdista, sendo seu eterno bicho-papão) e
a terrível brancura do ser, que agora elegeu a escravidão do passado
como o pecado original da América. Fanáticos por teorias da conspi
ração como são, o "privilégio branco" oferece à esquerda profana a
melhor conspiração possível, uma conspiração tão vasta que foram
necessários os esforços orquestrados de múltiplos países europeus para
cruzarem o Atlântico, descobrirem a América sozinhos, fundarem as
colônias e povoarem o Novo Mundo, tudo num esforço para negar
às pessoas de cor o que, por direito, deveria ser delas, caso tivessem
simplesmente podido cruzar o Atlântico, vindos da África ou da Ásia,
e chegado lá primeiro. Em outras palavras, os Estados Unidos não
foram fundados, mais ou menos por acaso, numa tentativa de fugir
de restrições religiosas e econômicas do mundo civilizado da época, a
Europa (podemos culpar o Iluminismo por tais restrições), mas para
deliberadamente ofender as "populações indígenas", criando, de fato,
uma entidade política sem elas. Não importa que houvesse pouca gente
181
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
de cor na Europa daquela época, e que o contexto das viagens dos
descobrimentos tenha sido puramente "branco". Deve ter havido um
complô. Ou, no mínimo, foi injusto, por presumir a "superioridade"
tecnológica européia.
O sentimento seguinte, infelizmente, é típico: “Sou tão branco quan
to os brancos que entram neste país". Assim escreve Robert Jensen,
professor de jornalismo, na Universidade do Texas, no Baltimore Sun,
em 1998. A confissão continua:
Sou originário do norte da Europa, e fui criado em Dakota do Norte, um
dos estados mais brancos do país. Cresci num mundo praticamente de
brancos, cercado pelo racismo, tanto pessoal quanto institucional. Por não
residir perto de uma reserva, nem cheguei a ter contato com a população
do estado pouco significativa em termos numéricos, os índios americanos.
Tenho lutado para combater esse treinamento racista e o racismo permanente
da minha cultura. Agrada-me pensar que mudei, embora costume sentir os
efeitos prolongados desse racismo internalizado e do racismo institucional
à minha volta. No entanto, não importa o quanto eu me "conserte", algo
nunca muda: eu caminho pelo mundo com o privilégio dos brancos. Não
há espaço aqui para listar todas as formas de agir do privilégio branco,
mas fica claro que carregarei esse privilégio comigo até o dia em que a
supremacia branca for apagada desta sociedade.
Substitua "pecado" pelas diversas palavras do jargão racial, e
fica evidente que Jensen está atrás de redenção. Ele dá um testemu
nho numa revitalização capenga daquela religião do Novo Tempo, o
progressivismo.
Há algo que a esquerda tem como aliado na guerra à “brancura”
americana em termos populacionais. Em algum ponto, por volta de
meados do século, a população de brancos (seja lá como forem definidos,
já que a esquerda usa um critério de definição bem conveniente) cairá
para menos da metade do total da população, e os Estados Unidos
serão um país onde a maioria é da minoria. A Lei de Imigração de Ted
Kennedy de 1965 cuidou disso. (Na minha infância em San Diego,
perto da fronteira mexicana, absolutamente ninguém considerava os
mexicanos como "não-brancos", e era raro ouvir as palavras "latino"
e "hispânico". Os mexicanos eram, bem, mexicanos; diferentes não
pela cor da pele, mas pelo fato de falarem espanhol e virem do México,
aquele país estrangeiro a cerca de 32km dali, na direção sul).
182
A CONSOLAÇÃO DA FILOSOFIA
Entre as últimas grandes ondas imigratórias da Europa, nas pri
meiras duas décadas do século XX e em 1965, a nação fez uma longa
pausa, absorvendo irlandeses, italianos e judeus, muitas vezes ingover
náveis, e fundindo-os com os americanos. Não foi fácil. Para muitos
americanos da época, os recém-chegados eram pouco mais do que
criminosos fugindo da miséria. O historiador marxista Noel Ignatiev,
filho de imigrantes judeus-russos, chegou a escrever um livro sobre o
processo transformador, muitas vezes doloroso, How the Irish Became
White [Como os irlandeses se tornaram brancos]. Passaram-se décadas
ou mais ainda. No caso da Grande Fome na Irlanda católica, levou
quase um século inteiro para que fossem aceitos integralmente pela
sociedade americana a ponto de um deles, John F. Kennedy, vir a ser
eleito presidente. O fato de ele pertencer à família criminosa de Joseph
P. Kennedy foi educadamente ignorado, em particular pelos próprios
irlandeses. Só alguns anos após a eleição de J. F. K. é que os irlandeses
começaram a votar, como um bloco imigrante monolítico e alienado.
Ainda não houve uma pausa semelhante com as novas ondas
imigratórias vindas da América Latina, da África, do subcontinente
indiano e do leste asiático, e isso é de propósito. Os democratas, hoje
quase que explicitamente o partido "anti-americano” (“americano”
aqui, conforme o termo era entendido a princípio), precisam manter
os imigrantes fragmentados, dependentes e votando todos no Par
tido Democrata pelo máximo de tempo possível, alienados não do
bicho-papão anglo-saxão protestante de antigamente, mas do novo
demônio global, o homem branco. O "privilégio branco" é o pecado
original de hoje, meme transmitido jovialmente pelos veículos de
divulgação de estimação da esquerda. (O assassino é um de nós! Mas
essencialmente, não nós-nós. Nós-eles. Nós-meninos brancos). O meme
durará apenas enquanto for útil, como um porrete, e nem um segundo
a mais. Além disso, quem entre nós supõe, com o exemplo vivo da
nomenklatura soviética em nossa mente, que algum tipo de "privilégio
branco” não sobreviva até mesmo à “transformação fundamental”?
A transformação é direcionada para o público votante, não para a
classe governante esquerdista. Eles apenas se intitularão não-brancos.
Wer a Jud'ist, bestimm'i e tudo o mais.
183
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
O segredo para compreender o politicamente correto é sua constante
redefinição quanto ao que é aceitável em relação ao uso da língua; é
Sísifo na esteira ergométrica do eufemismo. A forma de lutar é pela
recusa em aceitá-lo. Eles têm sua Teoria Crítica, nós, a consolação
de nossa filosofia. Eles têm o martelo; nós, a bigorna. Eles procuram
forjar um novo Nothung a partir dos resíduos industriais da civilização
ocidental; nossa meta é evitar que eles nos atinjam com algo profano e
obsceno. Eles são fracos, mas estão se fortalecendo; nós somos fortes,
porém estamos enfraquecendo. Eles esbanjam autoconfiança; nós nos
acovardamos na insegurança.
Contudo, assim como a filosofia consola o amaldiçoado Boécio, não
há, realmente, nada a temer. A única arma que eles têm é a nossa própria
fraqueza. Sem ela, conforme a Escola de Frankfurt logo entendeu, eles
são inúteis. Um espião cercado por soldados armados é um espião mor
to, logo levará um tiro ou será enforcado. É nosso desejo sermos vistos
como razoáveis, proporcionais, criteriosos e moderados (todos termos
esquerdistas), incapazes de agir decididamente contra eles. Encarando
nossas fraquezas como resultado direto de nossos pecados, e não de
nossas reações erradas às suas acusações e provocações, eles ativaram
a regra nº 22 de Alinsky: "Escolha o alvo, personalize-o e polarize-o”.
Um alvo polarizado, que para a esquerda profana seria o judaico
-cristianismo, é um alvo congelado, e um alvo congelado é presa fácil.
Sempre no ataque, é difícil demais para a esquerda jogar na defensiva.
Seu recurso habitual é o simples insulto pessoal grosseiro, não tanto
como numa argumentação contrária, mas como uma acusação do tipo
"como ousa?". Suas moedas de troca são na verdade as duas formas
mais baixas de argumentação, a assertiva tu quoque ("Ah, sim? Você
também!") e a ofensiva ad hominem ("Sua mãe era um hamster e seu
pai cheirava a frutos de sabugueiro", citando um insulto selecionado
do filme Monty Python, em busca do cálice sagrado). Argumentos
racionais, eles não têm nenhum, já que sua filosofia se fundamenta
exclusivamente na emoção e apela para o que “deveria" ou "não deve
ria" ser feito. Argumentam com base em autoridade, sem a autoridade.
Conforme os conservadores sabem muito bem, a maior parte das
discussões com verdadeiros adeptos da esquerda acaba em insultos,
184
A CONSOLAÇÃO DA FILOSOFIA
comparações aos nazistas, lágrimas e com os esquerdistas batendo
rapidamente em retirada, deixando os conservadores frustrados e
zangados ante a incapacidade de seus adversários (ou sua recusa) de
se envolver. Entretanto, segundo a visão dos esquerdistas, eles vivem
para lutar, entregando a alma mais um dia, que é exatamente a razão
pela qual eles não se envolvem. Envolver-se seria abrir mão do jogo
todo e revelar o grande engodo por trás de suas declarações confiantes.
Em sua forma mais dura, a visão de mundo marxista baseia-se em
uma mentira demonstrável (ou, para dizê-lo de uma forma mais edu
cada e em termos hollywoodianos, uma aceitação): que as forças da
história são científicas, tão previsíveis quanto os movimentos do Sol,
da Lua e das estrelas. Mas isso nada mais é do que um conto de fadas
muito deprimente, traduzido de um alemão opaco e pseudocientífico,
e que recebeu, como o Espantalho em O mágico de Oz, um diploma
falso da Goethe-Universität de Frankfurt. A verdade é que, como
todos sabem a partir dos gregos, a sorte é uma amante inconstante,
que dispersa sua atenção primeiro ali, depois acolá, sem considerar as
conseqüências de suas ações. Não há nada de científico em relação ao
destino, como Boécio escreveu:
A MALÍCIA DA FORTUNA
A louca fortuna vai passando com orgulho desumano,
incerta como a maré ondulante de Euripo;
Ora espezinha poderosos reis sob seus pés,
Ora instala o conquistado no pódio do vitorioso.
Ela não dá importância ao lamento do miserável infortúnio,
mas zomba das aflições causadas por sua maldade.
Ταὶ sua diversão; assim prova o seu poder
E grande é o assombro, quando em apenas uma hora,
ela exibe o amado, elevado em êxtase, e
em seguida, mergulhado num abismo de aflição.
Para a esquerda, há algo de errado nesse estado de coisas. Não deveria
haver. Não é justo que, às vezes, você seja a tela e noutras o mosquito.
Que isso seja assim é indiscutível e, portanto, deveria ser burlado ou,
de alguma forma, compensado. (É curiosa a freqüência com que as
soluções esquerdistas se reduzem à simples extorsão financeira cujo
propósito é atenuar o problema em questão). Esse raciocínio é parte da
guerra da esquerda contra Deus e sua guerra contra o universo, que,
185
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
quando paramos para pensar no assunto, são completamente contra
ditórias. Se Deus não existe, então o universo precisa ser irracional e
arbitrário, que é o que os esquerdistas pregam na metafísica, porém
se insurgem raivosos em sociedade. Se Deus existe, e ainda assim esse
ainda é o resultado, então qual é o problema? Que Deus não é tão
arbitrário quanto um universo aleatório? Que o universo é racional
demais, divino demais?
A simplicidade reducionista do pensamento direitista é, então, seu
maior atributo. Ela não requer nenhum ato especial de fé além da
adesão inicial (a Aposta de Pascal também faz a adesão racional). Ela
presume haver uma crença, mas não necessariamente um conhecimento
ou prova, um poder maior do que nós. Permite que cada indivíduo
ouça seu coração e siga a história heróica que ele tem profundamente
implantada em seu interior. Ela liberta todo homem para ser um herói,
o ator principal de seu próprio filme, completo, com diálogos e trilha
sonora. Reúne todos os homens na narrativa original da estase, do
pecado, da perda, da mudança, do conflito, da redenção e da vitória
final, mesmo além da morte. É a canção de cada um. A razão para
alguém desejar rejeitá-la é um mistério permanente.
Por outro lado, a filosofia da esquerda profana, embora de uma
visível simplicidade a Teoria Crítica, ou seja, nós versus eles exi -
ge contorções mentais repetidas, que talvez expliquem por que eles
se cumprimentam o tempo todo por se acharem muito espertos, por
saberem apreciar a complexidade, quando comparados aos conser
vadores grosseiros, simplistas e reducionistas. Assim como a Rainha
Branca vangloria-se com Alice em Alice através do espelho: "Ora,
algumas vezes cheguei a acreditar em até seis coisas impossíveis antes
do café-da-manhã”. No capítulo seguinte dessa seqüência ao País das
maravilhas, Alice encontra Humpty Dumpty que, de forma altiva, infor
ma à menina como ele age: "Quando eu uso uma palavra, ela significa
exatamente o que eu decido que signifique nem mais nem menos".
-
A Rainha Branca e Humpty devem ser dois dos personagens literários
favoritos da esquerda. Certamente são modelos de comportamento.
É fácil para eles ficar do outro lado do espelho, o espelho da casa
en ada através do qual eles vêem, confiantes, a forma das coisas
186
A CONSOLAÇÃO DA FILOSOFIA
que estão por vir, enquanto a direita continua a espiar do melhor jeito
possível através do espelho da fé, às escuras. Quando é possível ma
nipular a linguagem e convencer um mundo então sadio de que sua
versão enlouquecida dos acontecimentos é a verdadeira, você possui
uma arma satânica, descomunal.
Isso nos remete ao Jardim e a Milton. Tomando certa distância por
um momento das particularidades do poema, é equilibrado e alentador
tomar consciência, especialmente numa primeira leitura, do otimismo
de Milton quanto ao futuro da humanidade, que, mesmo tendo caído,
é banhada pela luz do amor de Deus. E os portões do inferno não serão
mais poderosos do que nós. Até mesmo ao abrirmos o livro, sabemos
o que acontecerá: que Satanás, aparentemente derrotado, se livrará de
suas correntes no mar de fogo, escapará das amarras do inferno, dará
uma olhada no então perdido Reino dos céus e fixará seu olhar vipe
rino nos mais novos joguetes de Deus, Adão e Eva. Sabemos que Eva
fracassará no teste, não por força de uma fraqueza feminina inata, mas
devido ao seu coração compassivo e à curiosidade insaciável, ambos
traços da essência humana, e ela é, de verdade, a mãe da humanidade.
Sabemos que Adão, seu esposo devotado, se unirá a ela no primeiro
ato bíblico de sacrifício pessoal (ele não pode imaginar a vida sem ela),
imediatamente seguido pelo primeiro ato bíblico de amor físico, criando,
assim, a humanidade. Sabemos que o primogênito de Eva matará seu
irmão e que Deus o marcará com o sinal da divina proteção. Sabemos
que a humanidade dará início à sua longa, lenta e tortuosa jornada
de volta à Luz. Sabemos que nós, também, somos parte dessa jornada.
Sabemos, acima de tudo, que ela é a nossa história.
E sabemos ainda que, no final, venceremos. Que o sacrifício que
Deus fez de seu Filho o ato notável da divindade dignando-se a
continuar e a sofrer os piores males herdados pela carne, assim vi
venciando o significado de ser totalmente humano —, nos aproximou
dele. Sabemos que há um círculo perfeito aí: de Lúcifer para Satanás,
para a morte, para a tentação no Jardim, para a Queda do homem eo
pecado original. Do instante em que a humanidade realmente nasceu
e a longa luta para voltar, não para o Éden, mas para o céu, dessa vez
como criaturas humanas que superaram os anjos e que voltam para
187
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
casa como exemplos vivos da falibilidade de um Deus infalível. Temos
uma ou duas coisas para ensinar a Deus e é bom que ele se acostume
com a idéia quando todos chegarmos em casa. É a união dos opostos,
o resultado do Boy Meets Girl. É a completude.
Assim se desenrola a narrativa original, na qual todas as nossas
histórias apontam para uma, e apenas uma, conclusão. Por vezes, os
teólogos retratam Deus como um espectador, o sujeito que dá a partida
na corrida de bigas, mas que não aposta nem determina o resultado.
C. S. Lewis diverge da visão convencional da onisciência de Deus e o
problema da predestinação, descrevendo Deus como uma Presença,
não num círculo fechado, mas sobre uma reta infinita do tempo, na
qual Ele existe em qualquer ponto marcado, negando assim o tempo
como conceito. ("Aqui, tempo e espaço são unos"). Portanto, não
pode haver presciência quando Deus diz a Moisés, ao ter seu nome
indagado: "Eu sou quem eu sou". Existe apenas o tempo presente,
não há futuro nem passado. Há uma razão para o verbo "ser" ser
a pedra angular de todos os idiomas humanos, pois sem ele, somos,
literalmente, nada. Não é que Deus não se importe. É que, num certo
sentido, ele não pode se importar.
Ele é um Deus dos opostos, não um ser, mas o próprio Ser ("Eu sou
quem eu sou"), o que pode explicar as imagens e as semelhanças que
estão no cerne de nossa narrativa original. Onisciente, embora igno
rante. Onipotente, embora incapaz. Onipresente, embora eternamente
ausente para nós, que habitamos numa dimensão temporal.
Na épica refilmagem de Michael Mann de O último dos moicanos,
com Daniel Day-Lewis como Hawkeye (também conhecido como Natty
Bumppo), um oficial britânico desprezível (que deseja "fazer do mundo
a Inglaterra") repreende o colono, exímio atirador, por não se juntar
à milícia paramilitar do rei: "Você se declara patriota e um súdito leal
à coroa?". Ao que Hawkeye responde: "Eu não me declaro sujeito a
muita coisa". Essa é a voz do verdadeiro patriota, a diferença entre o
autoritário representante da Europa central e o americano.
No fundo, o objetivo da Escola de Frankfurt era transformar
americanos em europeus centrais, minar a autopercepção essencial da
América, a saber, os indivíduos livres diante de Deus, e substituí-la por
188
A CONSOLAÇÃO DA FILOSOFIA
uma dependência da Europa central e pela adoração do Estado-Deus
como personificação da vontade geral, da história, da justiça social,
da diversidade ou de qualquer quimera divinizada que represente a
utopia no momento. Para um homem que jamais costumou se decla
rar sujeito a muita coisa, transformar-se num representante do estado
e, em outras palavras, tornar-se menos do que um homem, seria um
salto grande demais. Abandonar a idéia de heroísmo, da própria busca
pessoal e, em vez disso, aceitar a nova condição, se tiver sorte, como
escriturário seria uma atrocidade.
Hawkeye ou escriturário? Exímio atirador ou burocrata? A que
narrativa deseja pertencer? Herói ou otário? Um homem de bem ou um
funcionário do Ministério do Amor? Apesar do que tanto os calvinistas
quando os ateus da esquerda afirmam, somos todos livres para escolher.
Não existe predestinação. Existe apenas o livre-arbítrio a essência
-
da humanidade. No final, quando tudo parece perdido e o mundo fica
em seu momento mais sombrio, o herói está sozinho. Assim como ele
precisa estar, é disso que também precisamos.
Cada um de nós tem de fazer uma escolha. Nossa narrativa interior
nos leva por um caminho, e aquilo que testemunhamos todos os dias
na televisão e em outros meios de comunicação nos leva por outro.
Ousar ou não ousar? Buscar a liberdade ou (na expressão detestável)
refugiar-se em nome da segurança? O que as sereias sussurram e cantam
para Ulisses, amarrado ao mastro de seu navio (tão curioso quanto
Eva) para poder ouvir as melodias proibidas? Apenas o seguinte, na
tradução de Samuel Butler:
"Vem aqui", cantavam elas, "famoso Ulisses, honra o nome aqueu, e escuta
nossas duas vozes. Nunca ninguém, em seu veleiro, passou por nós sem
ficar para ouvir a doçura encantadora da nossa canção - e aquele que
a escuta seguirá seu caminho não apenas encantado como também mais
sábio, pois sabemos de todos os males que os deuses lançaram sobre os
argivos e os troianos diante de Tróia, e podemos contar-te tudo o que vai
acontecer no mundo inteiro".
O conhecimento do futuro. Isso (o que Eva anteviu depois de pro
var o fruto da árvore do conhecimento) é o que Ulisses rejeitou com a
ligeira prova auditiva das deliciosas maçãs musicais das sereias. Valia
a pena? Para ele, voltar para casa e para Penélope, claro que valia.
189
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
E, ainda assim, o que teria acontecido caso ele tivesse ficado e sobrevi
vido? O slogan do lendário Special Air Service (SAS) britânico é: "Quem
ousa, vence". Não ousar é, por definição, a filosofia do fracassado, pois
como diz o ditado, quem não arrisca não petisca.
Contudo, "não jogar" é a expressão moderna, antes seguro do que
arrependido. Melhor dependente do que independente. Antes vermelho
do que morto. Dizer que isso é um espírito efeminado é afirmar o que
antes era óbvio, mas que é menos numa época em que um metrossexual
tomando chocolate quente de pijama é tido como o ideal masculino
pelo governo dos Estados Unidos. É, no entanto, o que devemos esperar
de uma cultura de “elite” que valoriza a agilidade mental desarvorada
e a falação sarcástica em vez de princípios e propósitos. O comentário
sagaz, a observação "transgressiva", o soco verbal nos olhos: eis o
que arranca aplausos da classe dos "soldados de elite" ultimamente.
Além e acima de tudo, precisamos ter paz. Contudo, um mundo sem
conflito... é a estase... é a tirania... é a morte.
Por séculos, os covardes, os desertores, os que se fingem de doentes,
e os que fogem foram ridicularizados, desprezados e abatidos. Há algo
maior, mais nobre do que a preservação da própria pele: essa é a con
solação da nossa filosofia. A Teoria Crítica, porém, não terá nada disso.
A filosofia perniciosa da Escola de Frankfurt corrompeu um seg
mento da elite instruída dos Estados Unidos, essa é a má notícia. A
boa notícia é que, dada uma escolha nua e crua entre seu derrotismo
sedutor, fraudado por uma pretensão intelectual (o surgimento do eterno
aluno da graduação, seguido à risca na esteira faustiana da Escola de
Frankfurt) e o duplo discurso neo-hegeliano praticamente ininteligível,
ela exerce pouco atrativo popular, a menos que recoberta por apelos
enganadores aos "melhores anjos de nossa natureza", nas palavras de
Lincoln. O que ela tem, na verdade, são simpatizantes modernos, que
se alimentam como insetos do esterco de seu ressentimento cultural
e de uma noção presunçosa de merecimento. Na verdade, os simpati
zantes elegeram um presidente, por duas vezes, baseados inteiramente
no ressentimento disfarçado de progresso.
O disfarce é a chave. O fato de às vezes sermos enganados por ele
fala bem de nós, não mal. No Jardim, a serpente pilhou a curiosidade
190
A CONSOLAÇÃO DA FILOSOFIA
de Eva, sua bondade e sua vaidade para poder trazê-la para baixo,
para o nível dela, e fez isso disfarçada de um animal que Adão tinha
nomeado, sem qualquer estigma ainda associado a ele. Se Lucífer caído
se aproximasse dela todo paramentado de demônio, cuspindo fogo e
soltando gases sulfurosos, ela teria fugido, coberta de razão. Satanás,
então, não teria sido inimigo de Deus, mas seu reforço, desestimulando
Eva de cometer o pecado. O mal só pode ter êxito imitando o bem.
Em Milton, a serpente só se abaixa para rastejar sobre o ventre como
um réptil depois de sua transgressão, não antes. Ao estilo de Príapo,
uma ereção ambulante, ele se aproxima de Eva na posição vertical.
Como a história poderia ter sido diferente caso ela tivesse rido daquela
inadequação.
191
CAPÍTULO XIII
Mefistófeles no Ministério do Amor
alando do demônio, em seu influente livro Regras para radicais,
F o teórico crítico Saul Alinsky invocou Satanás, de forma memo
rável, sem, porém, dedicar o livro a ele, conforme os conserva
dores costumam afirmar de forma equivocada, mas mostrando-o como
alguém a ser admirado e copiado:
quenão nos esqueçamos de apresentar pelo menos um reconhecimento
Para
indireto ao primeiríssimo radical: de todas as nossas lendas, da mitologia
e da história (e quem é que sabe onde a mitologia acaba e a história come
ça, ou vice-versa), o primeiro radical de que o homem tem notícia que se
rebelou contra o establishment e o fez de forma tão eficaz que, ao menos,
conquistou o próprio reino: Lúcifer.
Grandes coisas. Com a devida vênia de Alinsky, o inferno não era
o reino que Lúcifer buscava. Ele queria o céu. Ele nem suportaria ficar
ali por mais um minuto além do que Deus decretara.
A razão para Alinsky ter sido tão influente, e tão perigoso, é que,
ao menos em alguns aspectos, ele está absolutamente correto. Ele está
certo quando reconhece a relação entre mito e história, e acerta de
novo quando afirma que Lúcifer foi o primeiro radical. O que ele não
menciona, naturalmente, é que o “establishment" contra o qual o pri
meiro dos rebeldes se insurgia era Deus. (Um Partido Revolucionário
193
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
permanente sempre mira o establishment, na intenção de se tornar
"o establishment", embora sem jamais sofrer quaisquer das próprias
conseqüências). E, a não ser que se defina "Deus" como "mal", algo
forçado até para o ateu mais empenhado, fica-se paralisado ante a
possibilidade de que a primeira rebelião possa não ter sido idéia de
Lúcifer, mas de Deus.
Eis como conhecemos Satanás, pela primeira vez, no início do livro
I do poema de Milton:
E assim, alonga-se o arqui-inimigo enorme,
acorrentado no lago ardente,
de onde nunca teria erguido a fronte
se dos céus não obtivesse a permissão suprema
e lhe fossem permitidos infernais desígnios
para que, à força de crimes continuados,
toda a condenação angariasse,
enquanto o mal para os outros busca [...].
Que rebelde bem-sucedido, aquele que nem a cabeça mexe sem a
permissão de Deus. Mas Deus não faculta ao anjo caído apenas a li
berdade de falar e se locomover, ele até o livra das correntes no lago de
fogo, permite que ele atravesse as portas do inferno e vá fazer maldades
na Terra. Que tipo de reino, então, Satanás tem de fato, a não ser com
o consentimento de Deus? Só um demente uiva para a Lua e, ao nascer
do Sol, se congratula pela proeza indômita que pode afetar os céus.
Além disso, para dar mão às duas palmatórias, há algo de heróico em
nossa imagem corriqueira de Satanás, e é o que, de imediato, o torna tão
atraente para alguns e uma figura dramática irresistível para outros. Sata
nás, ou seu representante, não só aparece em dois dos maiores poemas do
cânone ocidental, Paraíso perdido e Fausto, como também numa imensa
quantidade de outras obras, como ele próprio e com diversos disfarces.
O demônio pipoca nas obras dos russos, incluindo Dostoievski, Tolstói e
Bulgákov. A figura satânica de Nafta se materializa para tentar a alma do
jovem Hans Castorp em A montanha mágica, de Mann. (Nafta, o jesuíta
judeu que virou marxista hegeliano, foi inspirado em Lukács, conforme o
próprio Mann reconheceu, e o papel do "tolo puro" wagneriano, Parsifal,
é aqui assumido pelo protagonista fraco do romance, Hans Castorp, com
Clawdia Chauchat, a gatinha sexy de olhos puxados, como sua Kundry).
194
MEFISTÓFELES NO MINISTÉRIO DO AMOR
Operisticamente, a lenda de Fausto foi levada aos palcos em múltiplas
encarnações, inclusive por Gounod em Fausto (que os alemães às vezes
encenam com desdém como Margarete), em Mefistofele de Arrigo Boito
e em Doktor Faust de Ferrucio Busoni. Por muitos anos, a ópera de
Gounod foi a única mais encenada da história da Metropolitan Opera
de Nova York. Boito, o grande libretista de Verdi em Otello e Falstaff,
pegou o demônio pelos chifres e fez dele o personagem principal de
sua única ópera, que teve de esperar até 1969, na produção do Met
estrelada pelo baixo Norman Treigle (e, depois, Samuel Ramey), para
receber os justos louros.
Se Mefistófeles, um tema também de Liszt, em diversas valsas para
piano, indo do virtuosístico ao enigmático, ganha a aposta infernal com
Fausto, assim como acontece no final de ambas as versões de Marlowe
e Busoni, ou perde para Deus, ele é sempre um antagonista de peso. O
que não o torna um herói. Pelo contrário, segundo a máxima da nar
rativa, um herói só alcança a grandiosidade ao confrontar uma figura
igual ou maior e mais forte do que ele. Os hobbits inferiores em O
senhor dos anéis precisam derrotar o satânico Sauron; Siegfried tem de
abater um dragão aterrorizante e, em seguida, confrontar o verdadeiro
anti-herói em O anel do nibelungo, Wotan, seu próprio avô.
Os aspirantes a assassinos-de-avôs da Escola de Frankfurt, unanime
mente insatisfeitos, sentiram como um dever sagrado derrubar a antiga
ordem. Heróis na própria imaginação, para tal eles precisavam criar a
doutrina satânica do "politicamente correto", sem ceifar o inimigo, mas
desarmando-o preventivamente. Como o autor sobre assuntos militares
William S. Lind escreveu num artigo baseado em sua monografia Poli
tical Correctness: A Short Story of an Ideology [Politicamente correto:
um conto sobre uma ideologia]: "O politicamente correto é o uso da
cultura como uma arma afiada para impor novas normas e estigmatizar
aqueles que discordam da nova disposição; estigmatizar aqueles que
insistem em valores que impedirão o novo regime 'PC' (politicamente
correto): a liberdade de expressão e a investigação intelectual objetiva".
Ao abandonar a quimera do marxismo econômico, a Escola de
Frankfurt foi forçada a adotar o paradigma da "longa marcha” de
Gramsci-Lukács, o qual, de modo lógico, terminou num ataque neces
sário, porém furtivo, à Primeira Emenda. Assim como a "tolerância",
195
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
a liberdade de expressão deveria ser pleiteada apenas até que não
fosse mais necessário um respaldo constitucional, quando, então, ele
poderia ser dispensado. A adoção por parte de Satanás da forma de
serpente ainda não amaldiçoada, seduzindo Eva no Jardim a dar só
uma mordidinha, é toda uma situação com o colorido protecional
do politicamente correto como discurso protegido, o simbolismo da
narrativa original em ação.
A popularização da pornografia, vivificada pelas teorias de Reich
na cultura americana, começou com Garganta profunda e O diabo
na carne de Miss Jones, dois filmes pornográficos que venceram ba
talhas judiciais essenciais em meados da década de 1970 no terreno
da liberdade de expressão. Logo, rapidamente surgiram os sex shops
e peep shows por toda a parte. Travis Bickle chega a levar a garota
que está inabilmente cortejando para um deles em Taxi Driver. Sob
ataque persistente da Teoria Crítica, o que no passado fora criminoso
tornou-se chique de repente, passando a ser tão aceito que se tornou
banal. Hoje, a pornografia hardcore está disponível na internet, e até
a nudez pública é legal em alguns lugares.
Será isso algo bom ou ruim? Trata-se de liberação ou libertinagem?
O argumento central do estudo influente de Camille Paglia, Sexual
Personae é que, quando a sexualidade ou outro tabu qualquer é
duramente reprimido, ele não desaparece, mas se esconde debaixo dos
panos. Com certeza, os costumes mudam de uma época para outra.
A sensualidade atrevida do século XVIII, do Iluminismo, mas também
de Tom Jones e Memoirs of a Woman of Pleasure (Fanny Hill), abriu
passagem para o vestido bem mais apertado e as maneiras da era
vitoriana (que, de acordo com a teoria de Paglia, também produziu
muitos livros de pornografia seleta, como A Man with a Maid, e
que também foi a época de Jack, o Estripador). Essa dualidade, tão
humana, não é nem boa nem má, em termos morais. É simplesmente
um reconhecimento do lado sombrio com o qual a humanidade está
sempre flertando, com o qual, conforme venho argumentando, ela
precisa flertar para ser inteiramente humana. Santos, temos poucos,
mas muitos são os pecadores. O resto de nós fica entre eles, home
nagem viva que o vício presta à virtude.
196
MEFISTÓFELES NO MINISTÉRIO DO AMOR
O erro que Reich e outros cometeram foi pensar que a repressão
era algo ruim em si. Por que deveria ser? Qualquer artista ou arqui
teto sabe que ter regras é melhor do que não ter e que a criatividade
acontece quando trabalhamos dentro de seus limites e não fora. Há
pouquíssima criatividade na pornografia, apenas um tema com varia
ções, como diz a canção Kansas City no musical Oklahoma!: "já foi
até onde poderia ter ido".
As campanhas para permitir a publicação desses clássicos literários
como Ulisses, de Joyce, Lolita, de Nabokov, e Trópico de câncer, de
Henry Miller, foram plenamente justificadas em termos artísticos, e
o fato de que esses livros talvez tenham também recorrido ao inte
resse por sexo desenfreado (mas como, imagina-se) é parte de seu
atrativo. Numerosas obras notáveis, incluindo Shakespeare, foram
denunciadas, em diferentes épocas, por Pecksniffs e Bowdlers como
imorais e obscenas. God's Little Acre, de Erskine Caldwell, foi parar
nos tribunais da cidade de Nova York em 1933 por obscenidade. E
a lista de obras banidas em Boston incluía Folhas de relva, Elmer
Grantry, Manhattan Transfer, O amante de Lady Chatterley e Al
moço nu, entre outros. É discutível se qualquer uma dessas obras
brutalizava a sociedade (provavelmente sim), mas, seja como for,
eram criações de autores eméritos de uma forma que, digamos, a
pornografia não é. A questão para uma sociedade moral é qual é o
limite. A alegação de uma sociedade imoral ou amoral é que não
há limite a ser definido.
A moralidade, porém, não é lei. Há muitas coisas que são imorais e
perfeitamente legais. Num certo sentido, é verdade que não legislamos
a moralidade. Não que não possamos. Podemos e o fazemos, retirando
muitos aspectos de nosso código legal dos Dez Mandamentos, tal como
"Não matarás", enquanto ignoramos, por motivos legais, proibições
morais do Decálogo contra a cobiça. Isso pode ser hipocrisia ou mera
acomodação às simples realidades. Convivemos com isso.
O homem é uma criatura complexa, muito mais do que os anjos.
Ele é o único ser que combina o bem e o mal, dentro da mesma caixa,
misturados de todas as formas possíveis, um não existindo sem o outro.
Já conhecemos o inimigo, e ele, de fato, está em nós.
197
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
Eminent Victorians [Vitorianos ilustres] (1918) de Lytton Strachey,
obra que reúne esboços biográficos breves e maliciosos sobre o Cardeal
Manning, Florence Nightingale, Thomas Arnold e o General George
"Chinês" Gordon, contém uma discussão sobre esse mesmo fenômeno
no capítulo sobre Gordon em Cartum. Não se trata de Gordon, cuja
religiosidade fervorosa contribui para uma boa parte da irritação des
denhosa de Strachey, mas de seu inimigo figadal, o primeiro-ministro
britânico, William Gladstone:
O velho estadista entrava agora no penúltimo período de sua extensa
carreira. [...] Entretanto (esse era o caráter peculiar do homem, e tal a
intensidade dos sentimentos que ele evocava), nesse exato momento, no
auge de sua popularidade, ele foi desacreditado e detestado; uma animo
sidade sem paralelo já reunia forças contra ele. [...] "os elementos" eram
"tão misturados" no Sr. Gladstone que seus inimigos mais amargos (e seus
inimigos nunca eram brandos) e seus amigos mais calorosos (e seus amigos
nunca eram mornos) poderiam justificar, com a mesma plausibilidade, suas
condenações ou seus elogios. Qual, então, era a verdade?
Qual, de fato? É difícil para nós, hoje, com as paixões da finada era
vitoriana há muito esfriadas, pensarmos minimamente que seja sobre
Gladstone. Ele é apenas mais uma figura empoeirada na parada dos
estadistas que um dia se empertigaram no palco, tomando decisões de
vida ou morte e que hoje só têm, no máximo, apenas um efeito eva
nescente. No caso de Gordon, os descendentes do Mahdi controlam
o Sudão com mais firmeza ainda do que o faziam em 1885, quando
finalmente invadiram as fortificações de Gordon. Terá sido em vão esse
sacrifício? Strachey continua:
No universo físico não existem quimeras. O homem, porém, é mais diver
sificado do que a natureza. Terá sido o Sr. Gladstone, talvez, uma quimera
do espírito? Terá sua própria essência repousado na confusão das incom
patibilidades? [...] Seu egoísmo era simplório, e por todo o labirinto de
suas paixões corria um único fio. Mas, e o centro do labirinto? Ah! O fio
poderia conduzir até lá, finalmente, por todas as andanças confusas. Apenas
depois da última esquina dobrada, do último passo dado, o explorador
talvez descubra que estava olhando dentro do abismo de uma cratera. As
labaredas cuspiam para todo lado, abrasantes e brilhantes, mas no meio,
a escuridão.
198
MEFISTÓFELES NO MINISTÉRIO DO AMOR
Essa é uma descrição apropriada do problema da humanidade em
geral. Para toda a arrogância, para todo o som e fúria, não há nada
em nosso âmago a não ser a escuridão? Somos seres de uma complexi
dade infinita na superfície, mas com o interior vazio? Serão as chamas
de nossa existência apenas uma ilusão, outra das peças do demônio?
Somos nada mais do que buracos negros no tecido do universo?
Nossa fé nos diz que não. Nossa literatura nos diz que não. Nossas
ações nos dizem que não. Acreditar na ausência de humanidade no
cerne da humanidade ainda é acreditar num deus, mas num deus mau e
injusto que criou o homem por diversão, em outras palavras, um Deus
satânico. O próprio Gordon refletiu sobre isso, já perto do fim, numa
carta para a irmã, Augusta. Encontrava-se cercado em Cartum, com a
esperança da vinda de uma coluna britânica de apoio rapidamente se
esgotando, e muito consciente de que selara a própria sorte ao recusar-se
a evacuar a guarnição egípcia a tempo, assim condenando a população
de Cartum à morte certa. Numa pausa da luta, escreveu a ela:
Recuso-me a concordar que a expedição vai chegar para o meu alívio; ela
chegará para o alívio das guarnições, que eu falhei em conseguir. Imagino
que o governo de Sua Majestade esteja bastante irado comigo por retê-las e
forçar a situação. [...] Esta será talvez a última carta que receberá de mim,
porque estamos nas últimas, dada a demora da expedição. Entretanto,
Deus tudo comanda, e assim o fará para Sua glória e nosso bem-estar. Seja
feita a Sua vontade.
Para Strachey, que atirava pedras em Gordon resguardado por sua
benesse como membro autorizado do Bloomsbury Group (em certo
sentido, uma Escola de Frankfurt britânica de sapadores culturais e
crianças mimadas), o sacrifício de Gordon era quixotesco e inconcebível.
Eminent Victorians foi lançado no mesmo ano em que a Primeira Guerra
Mundial acabou, com o cinismo em relação ao propósito nacional na
ordem do dia, na seqüência do massacre aterrorizante nas trincheiras
sem um motivo aparente. A nata da bravura viril britânica sucumbiu
nos campos de Flanders, enquanto aqueles inadequados para o servi
ço militar acabaram herdando o país. Muito em breve, conseguiriam
cambalear na Segunda Guerra Mundial, acabando assim com o império
britânico que tanto abominavam. Numa visão retrospectiva, Churchill
foi a aberração (e Thatcher, a regressão), Chamberlain, Atlee e Bevan,
199
MICHAEL WALSH
ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
as formas do que estava por vir. Não poderia haver mais heróis, por
não existir mais um futuro pelo qual lutar.
Enquanto Gordon agonizava, com uma lança trespassada no pei
to, por dervixes empunhando cimitarras e prestes a esquartejá-lo, o
que passou por sua cabeça? Será que Deus o abandonara? Teria ele
cumprido seu destino e função na terra, e se tivesse, qual teria sido?
Seria o céu a sua recompensa ou será que encontraria a escuridão de
Gladstone aguardando-o do outro lado? Obviamente não temos como
sabê-lo. Até hoje, porém, frente a um islã recrudescente e uma maré
alta esquerdista, alguns ainda honram sua memória e seu sacrifício,
e sua estátua ainda permanece no Embankment, em Londres. A um
nível mais profundo, sabemos que honrá-lo é o certo a se fazer, e essa
é a marca de uma sociedade sadia.
No entanto, Mefistófeles, o recepcionista-chefe do Ministério do
Amor, continua também a exigir o que lhe é devido. As mesmas forças
que destruiriam a estátua de Gordon com a crítica marxista (imperia
lismo, hegemonia etc.) não desejam apagar sua lembrança, mas sim
transformá-lo num anti-herói, um tipo de demônio branco, qual pirata
procurando pilhar países de cor. Não conseguem vê-lo de nenhuma
outra forma, e mesmo assim ainda o tratam como um anti-herói, por
que a causa deles requer vilões para ser levada a sério por qualquer
um. Portanto, eles não têm como escapar do enigma central da batalha
no céu e seus desdobramentos: talvez Deus queira simplesmente um
adversário. Talvez Satanás, com todo o seu poder de sedução, seja
apenas um lutador fake, um perfeito idiota que ainda não entendeu
que se espera que ele entregue a luta.
Com certeza, Satanás exige tanto amor quanto Deus e é ferido quan
do não o consegue. Seu brado corajoso no início de Paraíso perdido:
"antes reinar no inferno do que servir no céu", é a vanglória de um
perdedor. Ele se põe de pé e sai do lago de fogo, passa pela porta do
inferno, e pronto: está preparado para começar sua longa guerrilha
contra o homem e contra Deus. E eis que aparece no livro IV, ríspido
e petulante, esbanjando uma falsa confiança ao confrontar o antes
amigo, e agora inimigo, Arcanjo Gabriel:
200
MEFISTÓFELES NO MINISTÉRIO DO AMOR
Gabriel, no céu tinhas fama de sábio,
e assim eu te supunha; mas a pergunta que me fazes
deixa-me perplexo.
Gostará de sofrer quem vive ali?
Quem não recusaria, tendo a ocasião,
fugir do inferno, embora para ali estivesse destinado?
Sem dúvida, tu mesmo arriscarias
procurar outro lugar qualquer, bem distante da dor,
onde esperasses trocar a perturbação pelo sossego,
e logo recompensar a dor com o deleite,
que neste lugar vim procurar.
[...]
Deixa-o, por certo, cerrar
seus Portões de Ferro, se é seu desejo
que fiquemos nessa prisão escura...
Chame-a como quiser, palácio de prazer do demônio, Xanadu, Venus
berg, a terra das sereias, o Ministério do Amor, seu próprio reino: a residên
cia de Satanás é um lugar infeliz e ele a trocaria pela nossa, de bom grado.
Por maior que seja o seu prazer em atormentar-nos, no final não haverá
final feliz para ele, pois como o resto de nós, ele é apenas um joguete nas
mãos de Deus, exceto por seu livre-arbítrio, diferente do nosso, ser apenas
outra ilusão. Até o demônio falha em "ver como o demônio prega peças".
Um dos mais desprezíveis seres humanos é aquele que tenta cons
tantemente enganá-lo, pregar-lhe peças e trapaceá-lo em relação àquilo
que é seu por direito. O charlatão é, com razão, desprezado pela socie
dade e evitado sempre que possível, quando não é preso. Os membros
da Escola de Frankfurt gastaram um bocado de tinta defendendo o
indefensável. Eles eram orgulhosos incitadores culturais, atuando na
terra de ninguém entre a cultura e a lei, defendendo a destruição e a
anarquia, sem quase nunca o declarar. Grandes egoístas, eles persegui
ram os carros da caravana americana. E agora, que os alcançaram?
"Sob a regra de um todo repressivo, a liberdade pode ser transfor
mada num instrumento poderoso de dominação", escreveu Marcuse
em O homem unidimensional. "As pessoas se reconhecem nas suas
comodidades. Sua alma está no automóvel, no aparelho de som, na
casa em meio-andar, nos eletrodomésticos da cozinha. O próprio me
canismo que amarra o indivíduo à sociedade em que vive mudou, e o
controle social se ancora nas novas necessidades que ela produziu".
201
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
Isso foi publicado em 1964, numa década que começou, cultural
mente, depois da morte de John F. Kennedy. Foi uma época em que
a retórica de Marcuse pôde pode ter soado plausível para os
-
baby boomers (minha geração) que tinham crescido na segurança
da administração Eisenhower, para serem rudemente atirados à era
da ansiedade: quase três anos da atitude temerária da administração
Kennedy, incluindo o desastre da Baía dos Porcos, a situação em Berlim,
a reunião de cúpula de Viena com Kruschev e a crise dos mísseis de
Cuba. Aprendemos a nos proteger de ataques, e as imagens dos testes
nucleares no atol de Bikini eram assunto comum nas salas de aula. O
centro, que um dia parecera seguro, estava desmoronando.
Mas, observe mais de perto o argumento de Marcuse e verá, de
imediato, o quanto ele é falho e simplista. Por uma coisa: ele só poderia
ter sido escrito por um estrangeiro ressentido; pior ainda, um alemão.
As noções alemãs, especialmente as noções alemãs do pós-guerra, em
relação a confortos humanos eram, digamos, restritas ao extremo.
Bombardeados de volta à Idade da Pedra pelos russos, ingleses e ame
ricanos, e tendo uma desconfiança intestina dos ambientes urbanos em
geral, os comunistas alemães, como os adeptos da Escola de Frankfurt,
odiavam e se ressentiam tanto da hegemonia quanto da tecnologia
americanas, que viam como desalmadas e vulgares. Eles não podiam
fazer concessões à inclinação de seu próprio background: que o povo,
que eles teoricamente defendiam, gostava, na verdade, de seus carros,
invencionices e casas; que os americanos, vivendo num país muito
mais vasto do que a Alemanha, não queriam ser limitados a bondes e
trens, espremidos em apartamentos em cidades confinadas e forçados a
viver segundo uma mentalidade de escassez da guerra e do pós-guerra.
Para eles, filosoficamente, era "tartarugas até lá embaixo": eles não
compreendiam as premissas que embasavam suas teorias.
Além do mais, não existe palestrante melhor do que o alemão, e esse
é um dos traços nacionais que eles mais valorizam. Viver na Alema
nha é ser submetido a um discurso intimidante não-solicitado e quase
constante sobre a situação mundial, incluindo o meio-ambiente (Die
Umwelt), a política, a hegemonia cultural americana e sobre por que
desrespeitar o sinal vermelho deveria ser punido com a morte. Perme
202
MEFISTÓFELES NO MINISTÉRIO DO AMOR
ando todos os escritos da Escola de Frankfurt, há uma incompreensão
arrogante do mundo americano, um ressentimento por ter sido forçada
a engajar-se nele, e um desejo inflamado de se livrar dele, de uma vez
por todas. Ingratos, sem dúvida.
Marcuse encontrou presa fácil por estas bandas. Muitos de seus
camaradas voltaram para casa, na Alemanha, depois que o exército
americano tinha feito todo o trabalho sanguinolento por eles, mas
Marcuse ficou, alegremente, instilando veneno no reservatório de água
intelectual americano. Em 1972, ele escreveu em Contra-revolução e
revolta:
No nível mais alto do capitalismo, a revolução mais necessária aparece
como a mais improvável. Mais necessária porque o sistema estabelecido
se preserva apenas pela destruição global dos recursos, da natureza, da
vida humana e das condições objetivas [belo toque de jargão marxista
aí] para fazer prevalecer determinado fim. Essas condições são: uma
riqueza social suficiente para acabar com a pobreza; o know-how técnico
para desenvolver sistematicamente os recursos disponíveis [jargão mais
"científico"] na direção desse objetivo; uma classe dominante [mais um
clichê marxista] desperdiça, interrompe e aniquila as forças produtivas;
o crescimento de forças anticapitalistas no Terceiro Mundo, que reduz
o reservatório da exploração; e uma imensa classe trabalhadora que,
separada do controle dos meios de produção, confronta uma classe
dominante pequena e parasitária.
Está estipulado: isso parece uma paródia de todo clichê comunista,
não tanto de 1972, mas de hoje. Mas não é, e indica como a esquerda
profana foi bem-sucedida em transferir suas obsessões absurdas para a
política pública dos dias atuais. É insana, porém extraordinariamente
poderosa, beirando a verdadeira loucura.
A reação adequada a esse disparate intelectualizado em exagero
é uma gargalhada. E aí está a provocação, pois a gargalhada, ou,
melhor dizendo, a descrença de que alguém pudesse levar isso a sé
rio, é aquilo com o que eles contam. Com certeza, ninguém poderia
levar a sério a idéia do politicamente correto (PC), pois ela contraria
cada mínimo traço do caráter americano Como ousa me dizer o
que não posso falar? Em suas primeiras encarnações, o código do
PC era considerado tão ridículo que chegava a ser alvo de chacota
da esquerda libertária, sob a forma do programa de televisão de
203
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
Bill Maher, Politicamente incorreto, e em livros vendidos na famosa
livraria beat City Lights em São Francisco, como Drinking, Smoking,
and Screwing: Great Writers on Good Times [Beber, fumar e transar:
grandes escritores sobre os bons tempos] (1994). Segue uma descrição
do livro, fornecida pela editora:
Antes que a noção do "politicamente correto" invadisse as formas como
as pessoas falam, escrevem e se portam em público e na vida privada, al
guns dos melhores escritores americanos eram adeptos do sexo inseguro,
do excesso de bebida e de um bom charuto. Do classicamente libidinoso
Henry Miller à hilária contemporânea Fran Lebowitz, Drinking, Smoking,
and Screwing inclui trechos de romances, artigos, poemas e contos, em uma
antologia humoristicamente indecente e muito divertida, sem advertências,
e sem desculpas.
Hahaha. Uma profusão de desculpas surge agora da esquerda.
Assim como os azarados chineses e cambojanos nos campos de reedu
cação, eles caem sobre si mesmos para repudiar seu comportamento
anterior; envolvidos pela escuridão da noite, eles agora viram a luz e
compreenderam, numa retrospectiva, que suas ações passadas, cujo
propósito seria apoiar a Revolução, eram desviadas e provavelmente
corrompidas pelo chiqueiro capitalista. Eles se entregam à misericórdia
do povo. "Alertas disparadores" agora devem ser afixados nos campi
das faculdades, para evitar que alguém tropece sem ter noção de estar
cometendo algum tipo de delito. O consentimento repetido deve ser dado
antes e durante qualquer encontro sexual, de preferência por escrito.
E, em Hollywood, ninguém mais bebe na hora do almoço, muito menos
fuma, o que agora é ilegal, embora o produto em si permaneça legal
o suficiente, por ter uma taxação muito lucrativa. Com que rapidez
o paradigma esquerdista muda de forma, assim como Mefistófeles
deixando a pele de cordeiro para assumir seu self diabólico em Fausto.
No palácio de prazer do demônio, embora repleto de freiras nuas
se contorcendo e tentações carnais de todo tipo, não há espaço para
a diversão. Seus prazeres, como os dos cenobitas no filme Hellraiser,
Renascido do inferno, de 1987, consistem em causar dor. A carne a
ser cortada é a nossa. Jesus chorou.
204
CAPÍTULO XIV
O diabo mora nos detalhes
luta atual entre direita e esquerda, como o conflito entre a civi
lização ocidental e o islã oriental, é, em parte, uma batalha por
termos. Os dois lados não falam a mesma língua, nem, como
vimos no capítulo x, as mesmas palavras que eles usam têm o mesmo
significado. "Paz" para um jihadista islâmico significa a ausência ou
submissão de cristãos, judeus e todos os outros infiéis. É, literalmente,
a ausência de conflito entre o Dar al-Islam e o Dar al-Harb, entre o
mundo da perfeita paz islâmica e o mundo de caos e guerra, uma vez
que este último tenha sido conquistado. Da mesma forma, as idéias da
esquerda moderna sobre “justiça” não têm nada a ver com justiça como
a maioria dos americanos tradicionalmente a entende (cega, imparcial,
processual) e tudo a ver com retorno (social, econômico, orientado a
resultados). Tanto muçulmanos quanto esquerdistas, para promover
seus objetivos, recorrem à má interpretação bem-intencionada de seu
inimigo comum.
Ambos, como observado, também procedem de uma posição de
fraqueza, esperando, como no judô, derrubar seu oponente mais for
te usando suas forças contra ele, outra característica do satanismo,
pois Satanás é sempre o combatente mais fraco contra Deus. Para
dar apenas um exemplo político: em quase todas as eleições recentes,
205
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
o "complexo da mídia democrata" insistiu, independentemente dos
resultados eleitorais, que o que o povo americano "realmente" (essa
palavra novamente) está dizendo é que eles querem que os dois partidos
políticos "trabalhem juntos". Aparentemente, isso parece bastante ra
zoável: quem poderia se opor à cooperação “bipartidária” em questões
urgentes de segurança nacional? Mas, como a ladainha de Marcuse
sobre o capitalismo, nada nesse clichê faz sentido.
Eu cunhei as expressões "o governo permanente de fusão bipartidá
ria" e "o partido permanente de fusão bipartidária" para descrever esse
fenômeno. Mas o que é "bipartidarismo"? "Bipartidarismo" é apenas
mais uma palavra para governo monocromático. Além disso, “traba
lhar juntos", atualmente, significa apenas uma coisa: que o partido
de direita deve abandonar alguns de seus princípios fundamentais de
modo a "chegar a um acordo" com o partido de esquerda na promoção
de algum programa social estimado, e o único "acordo" será sobre os
detalhes do programa, não sobre a idéia em si. Daí a recente batalha
sobre o "sistema de saúde" nacional. Na realidade, trata-se de um
aumento de impostos a serviço de um programa de assistência social
para beneficiários amplamente subsidiados que beneficia somente uma
pequena parte da população à custa de muitos, um exemplo clássico
do ditado marxista: "De cada um segundo sua capacidade, para cada
um segundo suas necessidades". Dito assim, ele nunca teria passado
sequer em um congresso democrata, mas disfarçado de "compaixão",
"seguro" e "assistência médica", ele acabou conseguindo sobreviver
por meio de manipulação e engano, do nível presidencial para baixo.
O que as gerações anteriores entenderam é que não pode haver
acordo com o mal, apenas sua rendição incondicional (e temporária).
Os melhores elementos da sociedade alemã tentaram repetidamente
negociar termos de rendição com os aliados ocidentais, sem sucesso.
Os americanos sob o governo do Presidente Truman entenderam que
não poderia haver paz isolada com os fanáticos do Bushido do Japão
imperial. De fato, uma vez que o imperador aceitou os termos da ren
dição da Declaração de Potsdam, houve uma breve rebelião de alguns
de seus oficiais, o chamado Incidente de Kyūjō, em meados de agosto de
1945. Mas devido à promessa dos Aliados de que o Japão enfrentaria
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O DIABO MORA NOS DETALHES
destruição imediata e total caso se opusesse, o império japonês mandou
seus representantes se renderem duas semanas depois.
A falta de sucesso americano nas guerras subseqüentes (em grande
parte guerras voluntárias, não necessárias) é esclarecedora, porque não
há princípios fundamentais em jogo. A Coréia foi e continua sendo um
impasse, um fracasso da eterna "diplomacia" que não busca um fim real,
apenas uma continuidade do processo. O Vietnã não era uma ameaça
natural para os territórios dos Estados Unidos. No entanto, perdemos
cinqüenta mil homens lá de qualquer maneira a serviço de uma teoria
da Ivy League sobre o "efeito dominó" de uma vitória comunista no
sudeste da Ásia. A Guerra Fria, por outro lado, foi disputada com
seriedade mortal, mas principalmente nas sombras, no ar e no fundo
do mar. Foi um grande jogo entre um lado que jogava xadrez e outro
lado que jogava pôquer: o último venceu. Diante do que parecia ser
uma certa derrota econômica (inteiramente atribuível à inadequação
inerente da teoria econômica marxista) e não acostumados ao conceito
de blefar, os soviéticos simplesmente deitaram seu rei e desistiram.
As guerras islâmicas desde então também explicam muita coisa,
no estilo do Gabinete de Circunlocução de Dickens, em A pequena
Dorrit: "Em relação a tudo o que era necessário ser feito, o Gabinete
de Circunlocução se reunia de antemão com todos os departamentos
públicos para determinar COMO NÃO FAZÊ-LO". Assim, a quase esquecida
Primeira Guerra do Golfo, que terminou com a expulsão do iraquiano
Saddam Hussein do Kuwait, não conseguiu mudar o equilíbrio de
poder no Oriente Médio, porque a missão era COMO NÃO MUDAR AS
COISAS. Na esteira do dia Onze de Setembro, veio a rápida derrota do
Talibã no Afeganistão, de onde os ataques haviam sido planejados,
mas não o esmagamento da Arábia Saudita, de onde vinha a maioria
dos seqüestradores. Em vez disso, os EUA ficaram atolados em uma
guerra infrutífera no Iraque e em um pântano semelhante ao Vietnã
no Afeganistão.
Os princípios por trás dessas guerras no Oriente Médio devem ter
sido simples: infligir uma derrota do tipo Omdurman ao islã após Onze
de Setembro da qual eles levariam um século ou mais para se recuperar,
se conseguissem. Mas o próprio Gabinete de Circunlocução dos EUA
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MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
(também conhecido como Departamento de Estado) interveio. Para
eles, diplomacia é guerra por outros meios, o que significa excesso de
atenção ao protocolo, com o qual sempre se pode contar para encon
trar outra razão PARA NÃO MUDAR AS COISAS. A única vitória ocorreu
na Guerra Fria contra os soviéticos. Quando perguntado sobre sua
estratégia para vencer a Guerra Fria, Ronald Reagan respondeu: "Nós
vencemos, eles perdem". Patton não poderia ter dito melhor.
Mas um princípio, uma vez restrito, não pode andar livre por muito
tempo. A esquerda aproveita cada reversão para exigir uma acomo
dação mais nova e atualizada, tudo em nome da razão, compaixão,
tolerância e diversidade, qualquer que seja a palavra da moda. Eles
nunca param, nunca dormem, nunca desistem. Constantemente no
ataque (como deve ser, já que eles não têm nada para defender), vivem
procurando fraquezas. Frustre-os aqui e eles aparecerão ali. Qualquer
centímetro à frente é uma vitória e amanhã é outro dia.
Diante dessa constante provocação, a direita quase não teve o que
contestar. Por que não? Em parte, porque a esquerda acusa a direita do
que ela mesma está de fato fazendo ou planejando fazer. Para usar um
de seus termos favoritos, eles "projetam". Uma tela em branco, como a
mente de um jovem, é uma de suas predileções: tudo a aprender e nada
a desaprender. Basta minar o senso inato de moralidade, a narrativa
original, e já estamos mais do que na metade do caminho. Enquanto
isso, eles lançam acusações de racismo, sexismo, preconceito de idade,
homofobia, islamofobia, o que quer que seja. A lista é interminável,
sendo constantemente atualizada pela indignação do momento. Seria
cômico se os resultados não fossem tão trágicos.
Ainda assim, a regra não-escrita (imposta por uma mídia cúmplice)
é que nenhuma provocação esquerdista, por mais violenta que seja,
pode ser contestada ou respondida em espécie, enquanto qualquer
oposição da direita é considerada a segunda vinda do nazismo. A es
querda tem a necessidade de se sentir oprimida, ameaçada, não-amada.
Os esquerdistas têm certeza de que uma teocracia cristã está logo ali, à
espreita, esperando uma oportunidade, e estão totalmente convencidos
de que podem ler os pensamentos dos conservadores e dizer o que eles
planejam fazer.
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O DIABO MORA NOS DETALHES
Como escreveu o romancista e jornalista Tom Wolfe em Mauve Glo
ves and Madmen, Clutter and Vine (1976): "Ele parecia Jean-François
Revel, um escritor socialista francês que fala sobre um dos grandes
fenômenos inexplicáveis da astronomia moderna, a saber, que a noite
escura do fascismo está sempre descendo nos Estados Unidos e, no
entanto, aterrissa apenas na Europa". Wolfe também cita o romancista
alemão Günter Grass: "Vocês, intelectuais americanos, querem tanto
se sentir sitiados e perseguidos!".
Descendentes de Rousseau, netos de Gramsci e Lukács, filhos de
Marcuse: como crianças em um filme de terror, eles vivem pela ameaça
imaginária, pelo frisson do perigo, seguros de que nada de ruim lhes
acontecerá. Eles querem ser os heróis de seus próprios filmes, mesmo
quando são apenas os figurantes de uma refilmagem ruim de Satyricon,
de Fellini.
Mas, então, todos queremos ser heróis (essa é a condição natural
do homem e a fantasia de todos os meninos), mas apenas um lado o
admitirá, porque apenas um lado admitirá a existência do heroísmo
como um conceito que existe fora da literatura, da poesia ou dos filmes.
É um mistério por que alguns escritores e cineastas esquerdistas passam
tanto tempo negando a existência do heroísmo e depois ganham a vida
criando-o, na ficção. Certamente eles não podem ter tanto desprezo
pelo seu público, porque muitos deles são muito, muito bons nisso; o
trabalho deles tem a repercussão da autenticidade, mesmo que seja só
fantasia. Em algum nível, eles devem acreditar no que fazem.
Fantasia, no entanto, é o que colocamos na página e na tela. Fan
tasia, sim, mas uma fantasia que se baseia nos anseios mais profundos
do coração humano, anseios por amor, glória, honra, família, amigos,
posteridade. Por mais que a esquerda profana despreze essas virtudes,
elas continuam a existir; por mais que a esquerda as negue, elas voltam
a aparecer; por mais que tente matá-las, elas continuam vivas, mexendo
com a imaginação de toda uma nova geração que, sem a influência
nociva dos teóricos críticos, cresce acreditando. Se não fosse assim, a
Disney teria falido há décadas. De fato, no centro de quase todas as
fábulas da Disney está a lição de que precisamos acreditar, contra todas
as evidências externas em contrário, na retidão do caminho escolhido.
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MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
Princípios elementares: esses são os elementos básicos da cultura,
e não o contrário. Esses são os temas essenciais, as crenças inatas de
todos, e a esquerda não pode acabar com eles. Eles estão profundamente
arraigados. E devem vir de algum lugar.
Assim, os princípios são importantes. Eles são fundamentais, não
arbitrários, como a Teoria Crítica gostaria que acreditássemos. O diabo,
o advogado do inferno, pode morar nos detalhes, mas Deus estabelece
princípios. Se você não acredita, pergunte a qualquer astrônomo ou
cientista, mesmo com seu entendimento necessariamente imperfeito
do homem e do universo, se ele não vê uma ordem subjacente ou o
chamado de Cthulhu na música das esferas. Muitos rejeitam a religião,
mas poucos defendem o caos e o pandemônio. Defender um princípio
fundamental não é arbitrário, é obrigatório.
Portanto, sem piedade. A partir das evidências acima, deve estar
claro agora que ambos os lados são maniqueístas em suas perspectivas.
A esta altura, nenhum dos dois cede um centímetro, embora um lado
sempre o exija, em termos de "compaixão”, “transigência”, “justiça”,
"tolerância" ou "Alá", conforme o espírito os move. Os detalhes podem
ser negociados sem afetar os princípios de cada lado, mas os detalhes
nunca devem ser o principal. Aí reside a morte pela burocracia, algo
que, ironicamente, ajudou a matar a União Soviética e que promete
ser a morte dos Estados Unidos, a menos que ela seja podada a tempo.
Jesus não prometeu que os escriturários herdariam a terra.
Portanto, não pode haver essa história de "progressismo", o rótulo
definitivo sob o qual os sapadores da sociedade escolheram se refugiar.
Em vez disso, há apenas regressão para um futuro feio e sórdido que,
satanicamente, espreme a humanidade do humano, às vezes literalmente.
Como Mary McCarthy disse sobre a escritora comunista americana
Lillian Hellman: “Todas as palavras que ela escreve são mentiras,
incluindo 'e' e 'o"". (A observação espirituosa provocou um processo
por difamação de 2,5 milhões de dólares, um "momento Oscar Wilde"
para Hellman, fatalmente prejudicial para sua reputação exagerada).
Por que a esquerda profana está tentando recriar o Jardim do Éden,
algo cuja existência eles negam com tanta convicção, literal e simbo
licamente? Bem-vindo à distopia de vários futuros imperfeitos, não
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O DIABO MORA NOS DETALHES
apenas 1984, mas Admirável mundo novo, Fahrenheit 451, A revolta
de Atlas, "Harrison Bergeron", de Kurt Vonnegut, et al., sem mencionar
inúmeros filmes, entre eles Brazil, Matrix e Cidade misteriosa. Futuros
facilmente imagináveis e naturalmente temidos, como cobras.
Essa regressão é realizada pela morte através de mil detalhes, regula
mentos e estereótipos burocráticos, administrados por drones cuja única
função é a administração do processo: tudo dentro do Departamento
de Circunlocução, nada fora do Departamento de Circunlocução, e
com uma aplicação liberal de melaço de modo a entupir a engrenagem
e garantir que nada funcione. Eles não se importam com a humanidade,
e, nesse sentido, compartilham do espírito de Mefistófeles: amoral,
insensível, falaz. Como Fausto grita quando finalmente percebe, tarde
demais, com Margarida condenada à morte e definhando na prisão, a
profundidade da depravação do demônio:
FAUSTO
Cachorro! Monstro abominável! Transforma-o, ó Espírito Infinito! Con
verte novamente esse réptil em cão, que por mim passava agradado todas
as noites, rosnando aos pés do viajante inofensivo e saltando-lhe em cima
quando ele caía. Dá-lhe de volta sua forma favorita, que ele rasteje na terra
diante de mim, para que eu possa pisotear o marginal!
MEFISTÓFELES
Agora já estamos de novo no final de nossa brincadeira, onde a mente
humana enlouquece. Por que assumiste essa causa comum comigo se não
consegues entender? Queres voar, mas não tens certeza porque estás tonto?
Eu te busquei ou tu me buscaste?
As escamas são difíceis de cair, até as das serpentes, mas elas caem.
É esse o futuro que queremos para nossos filhos, se pudermos es
colher? É este o presente que queremos para nós mesmos? É melhor
rejeitar não apenas as prescrições da esquerda para uma América
"melhor", fundamentalmente transformada, mas também os próprios
termos de seu argumento. Em cima é embaixo. Preto é branco. Liberdade
é escravidão. Guerra é paz. E a ignorância é sua base. Nada é o que
parece ser no palácio de prazer do demônio, especialmente o prazer.
"Eu te busquei ou tu me buscaste?". Que pergunta!
211
CAPÍTULO XV
Oicófobos e xenófilos
m sua primeira homilia como papa, Francisco invocou a máxima
de Léon Bloy: "Aquele que não ora para o Senhor ora para o
demônio". Logo adiante, foi ainda mais incisivo: "Quando não
professamos Jesus Cristo, professamos o materialismo do demônio, um
materialismo diabólico". O primeiro papa jesuíta estava proclamando
seu desinteresse profundo pelas divisões políticas dos nossos dias para
concentrar-se na dicotomia essencial da existência humana num mundo
que crê ou não crê em Deus.
Pode alguém não crer em nada, como alguns ateus? Conforme o que
G. K. Chesterton, ao que parece, nunca chegou a dizer exatamente (o
aforismo parece ser extraído de vários escritos diferentes, inclusive
suas histórias do Padre Brown): "O homem que não acredita mais em
Deus não acredita em nada, ou melhor, acreditará em qualquer coisa".
O Satanás de Paraíso perdido acredita, mesmo, muito, numa coisa: na
necessidade de vingança --
um desejo tão forte que supera até sua lu
xúria em relação ao corpo feminino perfeito de Eva. Como as chamas
do inferno, essa necessidade o consome sem matá-lo e literalmente o
inflama para realizar seu grande plano contra a humanidade. Muito da
esquerda profana de hoje parece estar motivada pela mesma emoção:
a vingança contra o país que lhes ofereceu berço ou abrigo. São, ao
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MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
mesmo tempo, oicófobos (temerosos pelo que é de dentro, familiar) e
xenófilos (amam o que é de fora, estranho), ou seja, exemplares não
confiáveis da humanidade, em particular.
A vingança da esquerda não é uma vingança clássica de Terceiro
Mundo, colocada da melhor forma por Inigo Montoya em A princesa
prometida: "Você matou meu pai. Prepare-se para morrer". Em vez
disso, ela procura um alvo maior, ousemos dizer, mais "abrangente":
uma vingança contra uma sociedade que permanece o que é, sem se
perturbar, e que de forma determinada recusa-se a se tornar o que de
veria ser, segundo a visão dos esquerdistas. No fundo, a queixa deles
não é contra o homem, mas contra Deus, e mesmo que se recusem a
admitir Sua existência, ainda assim querem combatê-lo, seja como for.
Como refugiados, ao mesmo tempo deleitando-se e ressentindo-se de
seu status de estrangeiros, os sábios da Escola de Frankfurt se enfurece
ram com o controle não-estatal de Hollywood e com a mídia nacional
e local que encontraram em Nova York, Nova Jersey e Califórnia. Eles
desprezavam aquilo que apelidaram de "indústria da cultura" e ardiam
de raiva de uma terra que se importava muito pouco com o que eles
pensavam, excetuando-se aqui, claro, o meio acadêmico.
A maior parte das “baixarias variadas" de hoje (na expressão de J.
P. Donleavy, extraída de The Unexpurgated Code [O código não-cen
surado] advém desse ressentimento profundo. A famosa caracteriza
ção da esquerda por P. J. O'Rourke, "filosofia de pirralhos chorões",
é absolutamente correta. Conforme Mefistófeles observa em Doutor
Fausto, de Marlowe: "Solamen miseris, socios habuisse doloris" ["É
um consolo para os desgraçados ter companheiros de miséria"]. Para
aqueles de nós que chegaram à maioridade durante a tumultuada dé
cada de 1960, que viram os ditos pirralhos chorões trocarem as calças
curtas por jeans desbotados e ponchos de Woodstock, aqueles de nós
que nunca aderiram a eles em sua anarquia dissimulada e cultos desne
cessários ao self, a esquerda tem sido um mistério permanente, talvez
mais especificamente por seu sucesso notável, vivendo qual parasita de
um sociedade que diz desprezar. À semelhança do ladrão de bancos,
Willie Sutton, os esquerdistas modernos foram para onde o dinheiro
estava: sob o comando de Gramsci, no meio acadêmico; estimulados
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OICÓFOBOS E XENÓFILOS
pela ira de Adorno, na "indústria da cultura" e ante a insistência de
Marx, na máquina do Estado.
E lá ficaram desde então, há mais de cinqüenta anos. A ironia é
notória: um grupo de revolucionários de estilo próprio, revivendo cons
tantemente os dias gloriosos de sua juventude e professando fidelidade
a idéias cem anos mais velhas do que eles. Os programas do governo
que eles acalentam datam da era Roosevelt. Não interessa que esque
mas como a previdência social e a saúde pública, concebidos de forma
fraudulenta desde o início, estejam resvalando para a autodestruição.
Não interessa que o Estado leviatã adotado pelas alas "progressistas"
de ambos os partidos políticos norte-americanos seja fundamentalmente
regressista em todos os sentidos: esclerótico, impraticável, inviável e
(algo que eles jamais admitirão) imoral. São Dorian Gray às avessas e
figurinha fácil na geração baby boomer: por dentro, ainda jovem (na
verdade, adolescente) no pensamento e na aparência, mas por fora,
enrugado, decrépito, corrupto, amaldiçoado. Até que essa ala dos boo
mers se arraste para fora de cena e para dentro dessa nulidade sombria
que tão desesperadamente alega adotar (mas contra a qual lutará até
o fim, com os melhores médicos e tecnologias médicas que o dinheiro
deles e o seu puderem comprar), o país continuará a ser incomodado
por sua filosofia marxista tacanha, insípida e enxovalhada.
O que será preciso para corrigir o resto dos Estados Unidos? Temos
uma resposta parcial diante de nós, da história recente. Coincidente
mente, passei grande parte do período entre fevereiro de 1985 e o verão
de 1991 por trás da Cortina de Ferro, o que era então a União Sovié
tica e as nações do Pacto de Varsóvia. Desde o momento da chegada,
ficou evidente para mim que o sistema socialista não podia durar. Suas
"contradições internas" não eram apenas teóricas, como as ocidentais,
pois eram visíveis e grotescas. Suas mulheres "liberadas" tinham sido
reduzidas a pouco mais do que prostitutas, disponíveis sexualmente
por um jantar ou um vestido novo. Na União Soviética, se você fosse
um homem necessitado de companhia feminina, ela vinha até você:
tudo o que tinha a fazer era esperar que uma mulher no elevador se
oferecesse para ir até o seu quarto ou, ainda mais fácil, esperar que as
camareiras batessem à sua porta, com iguarias surrupiadas da cozinha
215
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
e elas mesmas como a sobremesa. A antiga União Soviética foi, para
Reich, o paraíso sexualmente liberado em funcionamento, e todas as
cicatrizes que as mulheres traziam no corpo pelos múltiplos abortos
falavam de suas mutilações e do número de mortos.
Nesse entretempo, os homens eram membros aparentemente de
sinteressados do proletariado jurídico-econômico, mas era impossível
achar um motorista de táxi em Moscou, pois as tarifas oficiais sobre os
"salários" não compensavam a partida no motor. Muito mais fácil era
você erguer um ou dois dedos (significando quantos maços de Marlboro
contrabandeado, e de fato a moeda corrente, você estava disposto a
pagar por uma corrida) e conseguir uma carona imediatamente, para
qualquer lugar que desejasse, sem perguntas. Acrescido de um bônus:
era comum o cidadão motorista levar um carregamento de contraban
do de produtos roubados, incluindo caviar, vodca e, às vezes, armas.
Esses homens e mulheres não foram exemplos do fracasso do sis
tema soviético. Foram exemplares da superioridade do capitalismo e
do anseio cristão ocidental pela liberdade individual (contrariando
a afirmação de George W. Bush, ela, infelizmente, não é universal).
No espelho deformante que era a antiga União Soviética, os cidadãos
aprenderam uma lição demoníaca: vício é virtude. E fizeram bom uso
da lição, o melhor que puderam, até que, por fim, o edifício inteiro,
apodrecido, veio abaixo.
A razão para o colapso tão repentino da União Soviética no final de
1991 é um quebra-cabeça que tem ocupado estudiosos e apologistas
desde então. Entretanto, não é mistério para ninguém o que houve ali.
"Uma casa divididapordentro não fica de pé", disse Lincoln. Muito
mais do que os EUA, a URSS estava abalada pela dissonância cognitiva
resultante do conflito entre seus ideais proclamados e a força bruta com
que eram concretizados. Todo mundo sabia disso, exceto os intelectuais
e os jornalistas mais destacados do Ocidente, que insistiram, até o fim,
que a União Soviética era o “o outro superpoder", a alternativa ideali
zada (se não ideal, na verdade) ao experimento americano. A evidência
estava bem diante do nariz: a União Soviética era uma sociedade que
mal podia construir um vaso sanitário que funcionasse a contento;
que sofria graves problemas com a escassez de moradia (era costume
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OICÓFOBOS E XENÓFILOS
os pais de filhos em idade de se casar recolherem-se discretamente
para o quarto do seu quarto-e-sala para deixar a sala para o sexo dos
"meninos"; fora isso, casais tinham relações sexuais no banco de trás
do carro ou no cemitério local); que testou a potência marítima de
seus submarinos de águas profundas submergindo alguns para medir a
profundidade em que os cascos se rompiam e as tripulações morriam.
O sinal de que o fim estava próximo aconteceu no verão de 1989,
quando os húngaros, frente a uma pressão dos alemães orientais
tentando fugir para um de seus poucos locais de férias permitidos
legalmente, decidiram abrir a fronteira com a Áustria no dia 19 de
agosto. Alguns meses antes, verificara-se um gesto naquela direção,
quando o ministro do exterior austríaco e sua contrapartida húngara
cortaram, de forma simbólica, um trecho de arame farpado que dividira
as duas províncias do antigo império austro-húngaro, antes unidas
formalmente. Entretanto, naquele dia, conforme os “Ossies” (assim
eram chamados os habitantes da Alemanha oriental) forçaram, pela
primeira vez, sua entrada pelo que quer que tivesse sobrado das antigas
fortificações impostas pelos soviéticos, algo que não tinha acontecido
desde a instauração do Muro de Berlim aconteceu de fato: nada. Nin
guém os interceptou. Ninguém atirou neles. Ninguém os matou. Com
a liberdade à frente, e sua disposição para arriscar a vida por ela, o
culto à morte do comunismo calara-se, impotente. De novo, por quê?
Por uma coisa: o sistema comunista agonizava de tal forma em
termos econômicos que não tinha mais como manter nem mesmo o
cercamento das prisões em boas condições. Era preciso dinheiro, ou
eja, dinheiro de verdade, "moeda quente", valuta, para comprar ma
teriais que o Estado não podia fornecer. Para os húngaros e as outras
nações-satélite da fronteira fortificada com o Ocidente, aquela despesa
tinha sido cada vez mais repassada para eles durante o lento e extenso
crepúsculo da nação-mãe. Por fim, chegara a hora do basta. Conforme
Margaret Thatcher, de forma memorável, disse mais ou menos: “O pro
blema do socialismo é que, um dia, o dinheiro dos outros acaba". (Na
verdade, ela disse: "Por tradição, os governos socialistas promovem uma
bagunça financeira. Eles sempre acabam com o dinheiro dos outros").
Muitas daquelas que costumávamos chamar de “nações cativas" esta
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MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
vam dentro do alcance do sinal de televisão do Ocidente. Na Alemanha
oriental, apenas a cidade saxônica de Dresden estava fora da influência
direta da cultura ocidental, e sua população era ridicularizada pelos
companheiros "Ossies" como palhaços ignorantes. Por toda a Europa
oriental e até em Moscou, um comércio ilegal frenético por jeans e ál
buns de rock acontecia há muito tempo, mas as populações irrequietas
queriam o que havia de melhor, acrescido (conforme soubemos depois
da queda do Muro) de frutas frescas, bananas e pornografia. A temida
"indústria da cultura" de Adorno tinha cumprido bem a sua tarefa.
Quem foram esses heróis? Os nomes dos guardas de fronteira da
quele dia se perderam, há muito, na história. Eles, porém, foram os
"homens que não atiraram", que não contribuíram para o número de
mortes que endureceu a divisão pós-guerra da Europa, que finalmente
disseram não a Satanás. Ao contrário de Michael Corleone, eles foram
coerentes com seu discurso.
Estar ao pé do Muro de Berlim, perto do Portão de Brandemburgo
antes do Mauerfall, a queda do Muro, era ver, do lado ocidental, fileiras
de inscrições; cada uma delas em memória de algum corajoso alemão
oriental que tentara e fracassara em burlar a "barreira de proteção an
tifascista". Não muito longe dali, conforme o Muro o contornava por
trás, jazia o casco morto do Reichstag, tão simbólico da força quanto da
selvageria alemãs, abandonado junto com o "Dem Deutschen Volke"
celebrado na famosa dedicatória por cima dos portões: ao povo alemão.
E quem poderia esquecer a imagem definidora do final de guerra na
Europa: o Soldado Russo em cima do Reichstag, agitando a bandeira
soviética sobre as ruínas de uma Berlim bombardeada?
Poucos esperariam que os cruéis soviéticos simplesmente desistissem,
permitissem a queda do Muro e removessem suas tropas por livre e
espontânea vontade. Além de tudo, eles estavam determinados a se
vingar daquilo que tinham assumido como uma traição dos alemães,
ao deflagrarem a Operação Barbarossa, em 1941, quando a Alemanha
invadiu a União Soviética, desafiando o Pacto Molotov-Ribbentrop, de
1939, que fracionava a Polônia, passando os estados bálticos para os
russos. Mas desistir foi o que os soviéticos fizeram, de fato. Chegou um
determinado momento, até mesmo para eles, os vencedores daquilo que
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OICÓFOBOS E XENÓFILOS
Stalin chamou de Grande Guerra Patriótica (eles estavam lutando pelo
país, e não pelo comunismo), em que matar mais não pagava o preço
cobrado às suas almas. O demônio pode nunca enjoar de gargalhar,
mas os humanos, sim.
Lembro-me de certa tarde de verão escaldante, na Potsdamer Platz:
21 de julho de 1990. O evento era uma apresentação ao vivo de The
Wall, de Pink Floyd, uma ópera-rock de uma atualidade propícia
novamente. Meu comentário sobre o show, publicado na edição da
Entertainment Weekly de 3 de agosto de 1990, começava assim:
Não se podia ir a parte alguma em Berlim no 21 de julho sem topar com
The Wall. [...] Nessa tarde quente de sábado, a Potsdamer Platz, por 28
anos uma desoladora terra de ninguém conhecida como Death Strip [Faixa
da morte] que separava as duas Berlins, foi transformada num Woods
tock alemão de 35 acres. Por toda a manhã, uma multidão estimada em
mais de 200 mil se reunira por fora das cercas de metal temporárias e, às
14h30, os portões se abriram e as pessoas começaram a entrar em quan
tidade. Rapidamente, formaram uma massa que se estendia desde a velha
Wilhelmstrasse e atravessava a praça até a sala de concertos da Filarmônica
de Berlim, a Philharmonie.
É possível acessar o comentário sobre o espetáculo na íntegra
dele participaram também os Hooters, membros do The Band, Sinéad
O'Connor, Joni Mitchell e muitos outros on-line no site da revista,
-
mas talvez a conclusão deva ser citada:
No dia seguinte ao show, os curiosos bisbilhotavam os entulhos do espe
táculo. Algumas tendas, ainda armadas, abrigavam hippies adormecidos.
Alguns jovens sentados à beira da calçada, maravilhavam-se com seu esforço
na noite anterior quando, depois da apresentação, toda a cidade de Berlim
era uma grande festa. Um garotinho com um carrinho de supermercado
carregava, todo contente, um suvenir: um dos tijolos de isopor, quase tão
grande quanto ele.
Por toda uma vida, a geração Woodstock pensou que podia mudar o
mundo com uma flor e uma canção de três acordes, um sonho que morreu
numa rajada de tiros no Vietnã, em Kent State, em Memphis e em Los
Angeles. Agora, 21 anos depois, seus filhos tinham se reunido, 200 mil em
peso, e com sua presença deixaram claro que talvez o pessoal de Woodstock
estivesse certo desde sempre.
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MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
É interessante observar que, enquanto os operários escavavam o
local, não apenas para a realização do espetáculo, mas para a nova
Potzdamer Platz, cuja construção tinha sido condenada, eles descobriram
um bunker da ss, uma bomba soviética por explodir e pequenas armas
e munição, alguns dos últimos resquícios da guerra. E, em seguida,
esses também se foram, e os músicos tomaram conta.
Passei grande parte daquele dia vagando pelo lugar onde Hitler vivera
suas últimas horas no Führerbunker, consciente de que os soviéticos,
que avançavam, estavam cada vez mais perto, e finalmente suicidou-se
com um tiro: como Brunilde atirando-se sobre o esquife de Siegfried
em chamas, dramática até o final. À minha volta, soldados soviéticos,
cuja presença era inútil, sua missão uma vez cumprida, agora fracas
sava. Juntei-me a um "jornalista" russo e um alemão oriental, que
eu conhecera pela primeira vez em circunstâncias oficiais em Berlim
oriental, nos idos de 1985, e que agora é um velho e querido amigo.
Fomos até um barzinho próximo para tomar uma cerveja gelada e fiz
com que pagassem. Brindamos ao fim da Guerra Fria e ao que quer
que viesse depois.
Assim como os soviéticos e os alemães orientais, a longa marcha de
Gramsci deve e finalmente irá fracassar quando os filhos de Alinsky
forem inevitavelmente cooptados pela "indústria da cultura" quanto
à qual Adorno os alertou, quando eles desistirem e cederem. difícil
reter o fervor revolucionário e a cólera exacerbada por muito tempo.
Os bebês de fraldinha vermelha os oicófobos e xenófilos (certamente
russófilos) quintessenciais importados — da década de 1930 consegui
ram fazê-lo até ficarem velhos e gordos à custa do sistema capitalista,
que ainda criticavam até o último de seus dias. Uma coisa podia-se dizer
sobre eles: se a dissonância cognitiva entre suas vidas e crenças algum
dia os incomodou, eles não o demonstraram. Conservaram o rancor
contra os Estados Unidos até o amargo fim, assim como a paixão por
um sistema político sob o qual sabiam que nunca sofreriam. Mas seus
filhos e netos são outra história.
Há um velho ditado: "Avô rico, filho nobre, neto pobre". É o tempo
de duração de qualquer instituição americana (três gerações), entre a
fundação por um homem de visão (Joseph P. Kennedy, Carlo Gambino,
220
OICÓFOBOS E XENÓFILOS
Henry Luce, para nomear ao acaso três empresas familiares, sendo
apenas duas delas criminosas) e sua destruição por herdeiros inadequa
dos e incapazes, que acabam com ela com suas decisões de negócios
imbecis. A esquerda profana e suas instituições não estão imunes a
essas forças históricas deterministas e blindadas (puro marxismo em
ação, quando se pára para pensar).
Seu ataque prolongado à política e à cultura americana que, para
efeito da discussão, dataríamos a partir da administração anticonstitu
cional de Woodrow Wilson, tem sido constante e resoluto. Nenhuma
vitória militar é perpétua, também. A supremacia da esquerda nos
Estados Unidos culminou com a eleição de um candidato abertamente
socialista, porém dois mandatos de exposição pessoal e dos seus ideais
esquerdistas resultaram numa ampla repulsa contra "a transformação
fundamental" dos Estados Unidos que ele prometera realizar. Pelo fato
de a nata do meio acadêmico, a mídia e a cultura pop estarem ainda
ocupadas pelos companheiros de viagem (e suas esposas, vizinhos,
amigos íntimos e conhecidos), as perdas recentes da esquerda têm sido
parcialmente encobertas. Os conservadores podem não gostar de ouvir
isso, mas até o dia em que o New York Times, a publicação oficial
obstinada do progressismo americano, admitir na primeira página que
sempre esteve errado por mais de meio século, o complexo midiático
-acadêmico não terá suas ilusões demoníacas de longa data corrigidas.
Vimos anteriormente como a maior parte dessas ilusões se baseia no
que "deveria" ser, e não na realidade de fato. Sem dúvida, uma recusa
em aceitar a realidade é, para os esquerdistas, uma forma de heroísmo.
No entanto, não é. Talvez com a possível exceção de Dom Quixote, nada
há de heróico na deficiência mental, na imaturidade emocional e numa
covardia que se esconde nas saias da linguagem obscura e ambígua.
Mas isso é o que a esquerda oferece a um aparentemente inesgotável
reservatório de gente jovem, impressionáveis, quase sempre com boas
condições materiais, precisados de uma causa. O Partido Democrata,
que foi tomado por radicais entre 1968 e 1972, evoluiu para um par
tido montado inteiramente por segmentos: os jovens votam, os negros
votam, os hispanos votam, as solteiras votam. Ele não tem um centro
e está hoje confinado às duas costas e a uma faixa no centro-oeste
221
MICHAEL WALSH
ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
superior. Historicamente inclinados ao bom-mocismo, essa última só
agora está se dando conta das conseqüências do seu protestantismo
de tamanho único, algo que se tornou aparente, por exemplo, pela
população somaliana em franco crescimento em Minnesota, com sua
concomitante subcultura jihadista. Para os democratas, não importa
se o centro não sustenta, já que não existe centro, apenas uma busca
incessante por mais “minorias” prejudicadas que sirvam para abanar
as chamas do ressentimento e oferecer a recompensa que a esquerda
tanto deseja.
Numa visão militar, os conservadores deveriam estar aniquilando
os progressistas com bastante facilidade. Eles estão basicamente con
finados às pátrias tribais, onde deveriam ser segregados até passar o
efeito do veneno destruidor de sua filosofia governante: os orçamentos
inchados; a enorme dependência do setor público; a internalização
política do crime organizado (um marco das grandes cidades desde
Tammany); tributação extorsiva; cada vez mais programas sociais por
cima de erros cometidos no passado; habitação cara e escassa e uma
segregação social e econômica real em suas principais cidades.
Mas é claro que eles não podem ser confinados, o que os torna
parecidos com os alienígenas predadores e parasitas de Independence
Day (um filme tão conservador quanto High Noon) que passam de um
planeta para outro, destruindo tudo o que vêem pela frente até a orbe
hospitaleira entregar os pontos, e, então, é hora de partirem em busca
de novas vítimas. Quando o presidente dos Estados Unidos, numa
transmissão temporária de pensamento com um dos monstros, per
gunta, em autêntico estilo liberal: “O que deseja de nós?", esperançoso
de poderem todos apenas se dar bem, a fera exclama: "Que morram".
Será a morte realmente uma opção, mesmo para a esquerda? O que
acontece quando não existe mais uma causa pela qual "lutar"? (Como
Satanás, a esquerda sempre precisa de algo contra o que "lutar", para
que não se torne impotente, porque sua força motriz, como vimos, não
provém da filosofia, mas de emoções, como ódio, ressentimento, inveja
e descontentamento). Houve quem pensasse que a desintegração da
União Soviética sinalizara "o fim da história", e, na verdade, a esquerda
ficou paralisada depois do auto-sacrifício da URSS e das nações do Pac
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OICÓFOBOS E XENÓFILOS
to de Varsóvia. Mesmo os esquerdistas, encrenqueiros como são, não
tinham como reverter a revolução econômica e moral iniciada com a
queda do Muro, que continuou até os acontecimentos do dia Onze de
Setembro, quando um novo e talvez ainda mais poderoso mal antigo
se reapresentou sob a forma de quatro aviões americanos seqüestrados.
E, aí, a esquerda encontrou um novo inimigo para amar.
Estamos envolvidos, conforme Lincoln registrou, numa enorme
guerra civil, essa de agora ainda não travada com armas, mas com
idéias. Na tentativa da esquerda de “transformar fundamentalmente"
os Estados Unidos da América, ela tem usado todo o tipo de arma
do seu arsenal, desde a doutrinação à fabricação, desde a persuasão
"moral" baseada em moral nenhuma até um culto nada laudatório
ao hedonismo e ao sibaritismo personificado por Reich e Marcuse,
Leary e Hefner. Para sua vergonha eterna, ela convenceu as mulheres
a assassinarem seus bebês em nome de "direitos": Adam Gopnik, um
outrora excelente escritor do New Yorker, chamou o aborto de "uma
das maiores conquistas morais da história humana, ou seja, a total
emancipação das mulheres". A esquerda convenceu os negros ameri
canos, com base na teoria de Orwell de que liberdade é escravidão, a
se unirem sob a bandeira do partido da escravidão, da segregação, do
secularismo e da sublevação na busca da liberdade à escravidão. Ela
convenceu gerações de universitários de que seu país tinha por base o
pecado original (que a esquerda normalmente rejeita). Além disso, ela
ensinou que o pecado original nunca é erradicado ou expiado, pois
não pode haver um redentor, sendo o único recurso a abnegação ou
o aniquilamento total do inimigo principal, que calha de sermos nós
(conforme Pogo observou de forma memorável). Ao abraçar a causa,
eles estão a salvo, sem dúvida, erguidos acima das limitações morais,
pois seus objetivos são justos, e eles são liberados para fazer guerra
santa contra os sujeitos pecadores, perversos e malditos lá de Dubuque
ou Topeka.
Nada disso acontecerá, pelo menos enquanto um homem livre ainda
respirar, pois a liberdade está relacionada à luz na escuridão: um único
exemplar representa a derrota total para o outro lado. A escuridão
nunca pode ser completa até a erradicação da última luz, uma tarefa
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MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
aquém até da capacidade sobre-humana de Satanás. Os marxistas
como Lukács estavam inflexíveis em sua crença de que a civilização
ocidental precisava ser destruída antes de que a verdadeira "justiça"
chegasse. E enquanto a esquerda conta com o "liberalismo" inato da
juventude, os conservadores precisam apelar para outras características
típicas da juventude, inclusive seu ceticismo em relação a dogmas, sua
crença no próprio heroísmo e imortalidade e sua profunda noção de
interesse pessoal.
Em outras palavras, os conservadores deveriam se concentrar em
vender o velho vinho das virtudes, aquelas que alimentaram todos os
mitos desde os tempos de Homero, em novas garrafas, aperfeiçoadas
e “revolucionárias”. Um fato “científico” do qual a esquerda sempre
revolucionária não escapa é que, no final, os rebeldes se tornam o
establishment, e a teoria revolucionária requer revolução constante
para poder seguir adiante. É uma serpente que, sem poder "comer" a
Eva, come o próprio rabo.
Alguns partidos "revolucionários", como o mexicano, apropria
damente chamado de Partido Revolucionário Institucional, membro
da Internacional Socialista, acredita na antinarrativa marxista para
manter seus eleitores num estado de medo econômico permanente
enquanto os submete à miséria econômica, com base na teoria de que
tudo poderia sempre ser pior. Outros, como os democratas, continuam a
reforçar a própria narrativa recorrendo à mídia popular. A maior parte
dos esquerdistas e jornalistas de maior destaque (uma redundância)
adotam, seja consciente ou inconscientemente, as seguintes crenças,
que orientam como eles escolhem ou ignoram histórias: os Estados
Unidos são incrivelmente racistas; o racismo, muitas vezes, é difícil de
ser detectado, mas está sempre presente; o racismo desempenha um
papel em quase toda história noticiada, especialmente quando não está
nem um pouco claro que ele o faz. Chame-a de teoria de racismo do
Espírito Santo, explicada segundo a versão secular do pecado original.
Os jornalistas também adotam, de forma mecânica, as noções
culturais marxistas de classe, pois já as internalizaram de maneira tão
profunda que nem sequer pensam sobre elas. Da mesma forma como
qualquer história pode ser enquadrada segundo o critério de raça ou
224
OICÓFOBOS E XENÓFILOS
classe, especialmente aquele elemento básico dos noticiários de TV, as
manchetes criminais. A idéia de que o crime é uma função da pobreza
ou o legado da escravidão (que acabou em 1865) ou que ele resulta de
uma combinação entre outras mazelas sociais é indiscutível. Está fora
de sua compreensão o fato de que o resíduo do mal é mal também,
uma vez que o único mal que admitirão será o de seus adversários
ideológicos. É impossível que o mal seja externo, já que não há outra
explicação além da "científica" para qualquer fenômeno humano.
A terceira perna da excrecência do marxismo cultural do final do
século xx é o "gênero": concebido, em sua origem, para liberar as
mulheres do proletariado oprimido de seus opressores masculinos
(para o nirvana do carreirismo e do lesbianismo, como francamente
admitido). Quando as compensações para as mulheres como masco
tes começaram a diminuir, os gays se tornaram a causa do momento,
e com pouca coisa a mais além do casamento entre indivíduos do
mesmo sexo a favor dos gays, as pessoas "trans" tornaram-se hoje o
novo objeto de pena que a sociedade precisa ser pressionada a amar.
E logo que tenham tido a sua vez, algum outro grupo ainda menor,
mais fora do comum quem sabe polígamos, pedófilos, aficionados
por animais? - será destacado, e seus sentimentos feridos em relação
-
à sociedade como um todo, que considera seus desejos bizarros, serão
gravados no bastão com que a instituição da família continuará a ser
brutalmente espancada.
A audácia extraordinária dessa filosofia merece ser ridicularizada
mais amplamente do que é, sendo os comentários maldosos a arma da
esquerda e não da direita. Considere, porém: para que a filosofia da
esquerda profana esteja correta, temos de rejeitar a experiência e as
evidências empíricas de milhares de anos da história humana em favor
de uma construção "intelectual" relativamente recente que, de modo
arrogante, atribui todas as virtudes a si, demonizando seus opositores,
e que seguiu em frente criando um novo Jardim do Éden aqui na Terra,
com homens e mulheres em seu centro, desde que estivessem fazendo
sexo. De preferência, o "seguro”, não-reprodutivo.
Portanto, devemos não apenas aparentemente rejeitar os principais
pressupostos da religião organizada, a maioria dos quais compartilha
225
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
os mesmos conceitos básicos, compreendidos de diversas formas.
Precisamos rejeitar também uma tradição popular no ato de contar
histórias que é ainda mais antiga do que as principais fés. Temos de,
em resumo, rejeitar tudo aquilo em que acreditávamos antes sobre
nós, e que nos foi ensinado por nossos antepassados. A tradição é a
democracia dos mortos, como diz a máxima, e essa democracia pre
cisa ser destituída em favor de nossos caprichos momentâneos, com
uma Ermächtigungsgesetz ["lei viabilizadora"] que criminalize até a
lembrança de fazer coisas de modo diferente. Temos de descartar pe
remptoriamente a experiência das gerações anteriores, todas elas de
idiotas supersticiosos, sob o domínio contínuo de algum tipo de doença
mental ou superstição primitiva, com umas poucas luzes brilhantes
apenas (dentro do contexto invertido do mundo bizarro da esquerda)
como Rousseau e Marx para dissipar a escuridão de mitos machistas
e a moralidade judaico-cristã da repressão sexual. Tão logo libertos,
eles cantam como as sereias para Ulisses/Odisseu, como Mefistófeles,
prometendo conhecimento infinito a Fausto e felicidade eterna aos
sexualmente reprimidos, mas oferecendo apenas escravidão, doença e
morte. Sereis como deuses, prometem aos cadáveres putrefatos.
Como pode o conservadorismo não vender um programa político de
"Liberdade, Liberalidade e Me Deixa em Paz" para a juventude ameri
cana ou de outro lugar qualquer? Essas têm sido as verdades heróicas
que sustentaram a República desde a sua fundação, e precisamente as
verdades que sofreram os ataques mais ferrenhos da Teoria Crítica. A
Liberdade é “realmente" escravidão. A Liberalidade é ilusória, já que
estamos todos sujeitos às forças político-históricas marxistas contra
as quais o indivíduo nada pode. E o Me Deixa em Paz, o princípio
essencial da Revolução Americana, não passa de egoísmo anti-social. É
bem mais seguro estar subjugado a uma dominação, livre dos horrores
para além da zona de fogo, e servindo seus companheiros.
O que eles vendem é o medo, o medo do desconhecido. Não importa
o quanto tentem recompor os heróis dos mitos e das lendas, é impossí
vel para eles enfiar os heróis, de Ulisses a Dirty Harry, dentro de uma
cosmologia marxista. Nossos heróis são muito individualistas, muito
contestatários e não se importam com o que o mundo pensa deles,
226
OICÓFOBOS E XENÓFILOS
querem apenas fazer o que é certo. Se, mais uma vez, soltássemos nossas
noções inatas e compartilhadas de heroísmo sobre a esquerda profana
e não-heróica, nós os esmagaríamos, os veríamos sendo conduzidos
até nós e ouviríamos as lamúrias de suas mulheres (parafraseando
as palavras imortais do fictício Conan, o Bárbaro, elas mesmas uma
paráfrase de John Milius de um suposto aforismo de Gengis Khan).
A crueldade é a sua força, mas a covardia será sua ruína.
227
CAPÍTULO XVI
Adeus a tudo isso
ntelectualmente, chegamos ao beco sem saída da Teoria Crítica.
I Ela pode perambular por aí, trôpega, qual Frankenstein, buscando
-vingança num mundo que sente ter prejudicado, mas as teorias
estabelecidas pela Escola de Frankfurt se esgotaram intelectualmen
te; agora elas são meramente dogmas. Embora a luta entre Deus e o
demônio pela alma da humanidade ainda não tenha terminado (nem
pode, até a última trombeta), a maré alta de sedição cultural repre
sentada pelo Instituto de Pesquisa Social já baixou. Os fatos brutais
já exerceram seu efeito e, agora, é apenas uma questão de expurgar
a Teoria Crítica das instituições pelas quais ela marchou por tantos
anos e que hoje representam (como sua redefinição de patriotismo) o
último refúgio de patifes.
Que nada de bom proveio do ataque implacável da esquerda à
cultura ocidental é algo indiscutível. Nenhuma instituição americana
se beneficiou da "análise" progressiva. A resposta mais comum é que
eles apontem para o movimento dos direitos civis da década de 1960,
que continua sendo, para muitos esquerdistas modernos já envelheci
dos, a lembrança de sua juventude. Que a participação deles seja, em
grande parte, uma fantasia, como a participação em Woodstock, não
importa; sua necessidade de estar no lado certo da história" permite
229
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
que eles sejam os heróis de sua própria história. Mesmo um esquerdista
ou comunista precisa sentir que fez a diferença para melhor, quando o
melhor geralmente é a última coisa que eles visam, exceto no sentido
teórico mais amplo. O movimento dos direitos civis, o único triunfo
que eles ostentam, era, em grande parte, uma história do centro da
política americana: os velhos liberais, pelos quais a nova esquerda
não sentia nada além de desprezo, uniram-se aos chatos republicanos
para desafiar os democratas racistas do sul. Mas isso não importa
para eles. Se foi bom, foi realizado pela esquerda; se foi realizado pela
esquerda, foi bom.
A idéia de "progresso", uma versão da inevitabilidade histórica de
Marx, é central nos mitos da esquerda. Tendo importado o conceito
junto com um saco-surpresa de políticas estatistas da Alemanha de
Bismarck na primeira década do século xx, a esquerda adotou o
rótulo de "progressismo", efetivamente, anticonstitucionalismo, que
sustentava que o documento fundador dos Estados Unidos era o rigor
antiquado que impedia que os funcionários científicos esclarecidos da
época levassem a sociedade em direção ao progresso.
Woodrow Wilson foi o grande defensor do progressivismo do início
do século xx, embora ele o tenha deslegitimado com o público quando
assumiu o socialismo de guerra ditatorial. De fato, sua duplicidade em
trazer os EUA para a Primeira Guerra Mundial desacreditou o progres
sivismo (ou pelo menos seu nome) perante um grupo de intelectuais, na
maioria literários, que adotaram, demonstrando certo analfabetismo
histórico, o apelido de "liberais" na década de 1920. Quando esses "li
berais" ganharam poder na década de 1930, imediatamente começaram
a reciclar seus aspectos favoritos do progressivismo wilsoniano e do
estatismo de bem-estar social bismarckiano, acrescentando as novas
e sedutoras doutrinas do fascismo italiano e do nacional-socialismo
(que ainda não haviam retirado sua máscara e revelado o Moloch
devorador de judeus por trás).
Esses adeptos do New Deal, como seus antecessores progressistas
(aliás, muitos eram os mesmos indivíduos), não gostavam da sociedade
civil formada por nosso sistema constitucional (o famoso Babbitt de
Sinclair Lewis continua sendo a clássica polêmica contra a classe mé
230
ADEUS A TUDO ISSO
dia). Eles tentaram revogar seus mecanismos limitadores sempre que
possível, como fez F. D. R. quando ameaçou lotar a Suprema Corte.
Mais tarde, nas décadas de 1960, 1970 e 1980, eles buscaram refúgio
nos aspectos da Constituição que se adequavam a seus propósitos
"revolucionários", especialmente as emendas da Bill of Rights [Carta
dos Direitos] que lhes davam um porto seguro para desenvolver seu
programa de "tolerância" da "dissidência". Postulando por decreto,
sem explicar muito por que, um conjunto de novos "valores", que eram,
em grande parte, antivalores, eles exigiam que a sociedade como um
todo se adequasse a seus desejos minoritários, além de condenar cada
vez mais essa sociedade, atacando sua história ("racista"), sua cultura
religiosa ("cristianista”), sua própria existência (“colonialista"). Mas
chame-os de "marxistas", e eles darão um chilique. A seu ver, qualquer
ataque direcionado a eles é ilegítimo. Foi um debate desigual entre la
dos desiguais, intelectual e moralmente, em que a minoria discute com
sua própria autoridade, nega arbitrariamente legitimidade à maioria e
conta com a credulidade do público americano e seu senso de lisura e
empatia para que o oprimido não note a diferença. Mas mesmo o mal,
felizmente, acaba, especialmente quando seu único objetivo é afirmar,
com orgulho, sua superioridade intelectual.
No início da década de 1960, uma organização comunista (trotskista)
de fachada dos EUA, chamada Fair Play for Cuba Committee [Comitê
Jogo Limpo com Cuba], foi apoiada por uma série de esquerdistas,
incluindo os escritores Norman Mailer e James Baldwin, e os poetas
beat Allen Ginsberg e Lawrence Ferlinghetti. Seu membro mais notório
foi um desertor da União Soviética nascido em Nova Orleans, chama
do Lee Harvey Oswald, que havia retornado de uma curta estadia em
Minsk com sua esposa russa.
Quem poderia ser contra o "jogo limpo"? Isso não é americano!
A convenção jornalística ajudou, pois era axiomático que houvesse
dois lados em cada história (se uma era verdadeira era uma questão
de "julgamento", que não cabia ao repórter). Vivendo na “terra sem
conseqüências" que eram os Estados Unidos antes do assassinato de
Kennedy e antes das novas ondas de imigração de países não-europeus,
a maioria dos americanos na época não conseguia imaginar que algo
231
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
essencial sobre a nação pudesse ser mudado. Portanto, um pouco de boa
vontade em relação ao ilusório seria tolerada em nome do jogo limpo.
Mas os jovens são perigosos, porque são jovens. São soldados e
criminosos, artistas inventivos e monstros morais, capazes de espan
toso heroísmo e brutalidade absoluta. Não é por acaso que os jovens
que Mefistófeles enfeitiça em Fausto no Auerbachs Keller (o segundo
restaurante mais antigo de Leipzig) são estudantes, os futuros líderes da
sociedade alemã, os "intelectuais". Mefistófeles, no entanto, não apela
à sua vaidade intelectual. Antes, ele os prova com prazeres grosseiros
e bestiais e os pune com fogo por sua credulidade.
Lee Oswald, com apenas 24 anos quando morreu, era um jovem
perigoso que mudou o curso da história americana com três tiros de
uma espingarda Mannlicher-Carcano recebida por correio. Pouco
antes de morrer, ele traduziu a ária do príncipe Yeletsky, da ópera de
Tchaikovsky A dama de espadas, e a deixou para sua esposa russa,
Marina, encontrar:
Eu te amo,
te amo imensamente.
Não consigo imaginar a vida sem ti.
Estou pronto agora para realizar uma ação heróica
de inédita proeza em teu nome.
ó querida, confia em mim!
Nem mesmo um esquerdista como Oswald poderia negar o poder da
ilusão, ou seus efeitos geralmente benéficos. A ilusão era uma força tão
poderosa agindo sobre ele que colocou em sua cabeça confusa a idéia
de que uma ação heróica tinha de ser realizada, e atirar no presidente
dos Estados Unidos seria essa ação. (Muitos assassinos são movidos
pelo amor, como John Hinckley, que atirou no presidente Reagan para
impressionar uma atriz que ele nem conhecia). A ilusão é o próprio
material de Hollywood, embora Hollywood em si seja uma ilusão,
como qualquer um que já trabalhou lá entende logo. A ilusão faz parte
da arte de contar histórias, e a arte de contar histórias, como vimos,
é algo inato. Mas a ilusão é somente a superfície da narrativa, não o
cerne. Seu cerne é a verdade.
232
ADEUS A TUDO ISSO
Observe que foi Pilatos, o governador romano da Judéia, quem in
troduziu a noção de incerteza da verdade. (Ele, não os judeus, é também
o homem fraco que condena passivamente Jesus à morte). Se podemos
questionar o que é a verdade, podemos questionar qualquer coisa. É
com isso que a esquerda conta desde Rousseau. Essa é a essência do
programa da Escola de Frankfurt. Quando qualquer coisa está sujeita
a debate, tudo está; e quando essa coisa é algo tão essencial quanto a
verdade, nada é sagrado.
Mas esse é justamente o ponto. As verdades sagradas da civilização
ocidental não sobreviveram às trincheiras infernais da Primeira Guerra
Mundial. O período de 1914 a 1918 foi o período em que a cultura se
fragmentou, quando as verdades eternas que construíram uma civili
zação do Sacro Império Romano até a era eduardiana desmoronaram,
devido a uma disputa familiar entre três membros da família da Rai
nha Vitória. No final, foi uma guerra destrutiva e interna de primos
contra primos, uma tragédia familiar, muito parecida com O anel do
nibelungo, de Wagner. A filogenia recapitula a ontogenia.
Em nenhum lugar essa tragédia familiar foi ilustrada de forma tão
nítida do que nas memórias do poeta Robert von Ranke Graves sobre
a Grande Guerra, Good-Bye to All That [Adeus a tudo isso], escritas
após seu retorno das trincheiras e publicadas em 1929. Graves era
anglo-irlandês por parte de pai e da pequena nobreza alemã por parte
de mãe. No entanto, como a nata dos jovens britânicos, ele foi para
a guerra contra seus primos hunos voluntariamente, alistando-se no
corpo de fuzileiros Royal Welch e combatendo no Somme, onde foi
gravemente ferido.
A Primeira Guerra Mundial não recebeu a atenção que merece na
cultura popular americana. Isso se deve, em parte, ao fato de a guerra
ter sido muito controversa entre os americanos na frente interna: na
época da guerra, a principal minoria étnica nos Estados Unidos era alemã
(como continua sendo, dependendo de como consideramos as pessoas
das Ilhas Britânicas), e a súbita possibilidade de que a maior “minoria”
do país pudesse ser subversiva teve um profundo efeito na América
wilsoniana. O medo dos alemães levou a esquisitices como "Liberty
cabbage" ["repolho da liberdade"] e “French toast” [no sentido literal,
233
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
"torrada francesa”, i.e. “rabanada"], os novos nomes de Sauerkraut
[chucrute] e o que até então era conhecido como "German toast" [no
sentido literal, "torrada alemã”, i.e. “rabanada”]. Uma conseqüência
mais séria foi a lei seca, a vingança da América protestante sobre os
recém-chegados católicos alemães e irlandeses (a “classe que bebe”,
do famoso aforismo de Oscar Wilde) e seus comerciantes de bebidas
judeus. Enquanto a Segunda Guerra Mundial oferece um programa
conveniente de vilões nazistas e japoneses e heróis britânicos e ame
ricanos, a Primeira Guerra Mundial tem origens obscuras, familiares,
wagnerianas e até mesmo bíblicas: quem, exatamente, gerou quem? E
quem buscou a quem?
Graves, compreensivelmente, reagiu aos horrores desilusionantes
da Grande Guerra, com sua carnificina profana e inútil, o ossuário do
demônio disfarçado de palácio de prazer do arco da história. Houve
pouco heroísmo individual precioso na Primeira Guerra Mundial
(para os americanos, foi o rapaz do Tennessee, o sargento Alvin York,
objetor consciencioso que ganhou a Medalha de Honra), apenas des
truição sem fim de trincheiras, morte aleatória, acusações inúteis. (É
tentador acrescentar, impiedosamente, a grande frase da temporada
final de Blackadder: "Poesia sem fim!"). Qualquer nobreza que havia
morreu cravada por baionetas em terra de ninguém. Mas deixemos
que Graves conte a história:
Havia uma guerra de baionetas na floresta. Havia um homem do South
Wales Borderers e um da Divisão Lehr que conseguiram abaionetar um ao
outro ao mesmo tempo. Um sobrevivente dessa guerra me disse mais tarde
que ele viu um jovem soldado da Fourteenth Royal Welch abaionetando
um alemão como se estivesse em um desfile, exclamando automaticamente
como havia aprendido: "Para dentro, para fora, em guarda". Ele disse que
foi a coisa mais estranha que ele ouviu na França.
De acordo com as regras. E, no entanto, era assim que se fazia no
mundo dickensiano de COMO NÃO FAZÊ-LO. Para colocá-lo em termos
um pouco mais modernos, esses passos seriam: para dentro, para cima,
para os lados (para o coração), para fora. E então observe-o morrer
enquanto você se prepara para matar o próximo bastardo da fila. A
menos que ele o mate primeiro. Alguém estava sempre morrendo pelo
rei ou pelo Kaiser.
234
ADEUS A TUDO ISSO
Essas palavras parecem cruéis, e o são. A morte é sempre cruel. Para
matar, é preciso ter muita coragem. Nossos inimigos hoje não vacilam
diante da crueldade (eles decapitam garotinhas), mas nós vacilamos.
Os americanos não são naturalmente cruéis. Ao contrário das forças
alemãs na frente oriental na Segunda Guerra Mundial, não enviamos
esquadrões de assassinos móveis à frente para eliminar elementos
"indesejados". Como questão de política nacional, à diferença dos
russos na Segunda Guerra Mundial ou dos muçulmanos hoje em dia,
não mandamos tropas para estuprar e saquear como instrumentos do
Estado, para corromper o sangue dos povos dominados e transformar
seus filhos em nós. Não alinhamos as cabeças decepadas de nossos
inimigos no chão para uma sessão de fotos.
Em outras palavras, temos padrões cuja quebra honra mais do que
a observância, talvez, mas padrões. A história dos Estados Unidos, ao
contrário da história da Europa e de outros lugares, é, de fato, uma
história de magnanimidade, embora atrelada à raiva justa quando
necessário, quando atacada, quando contestada por razões morais.
Padrões, e não impulsos comportamentais, são o que nos diferencia
dos chimpanzés, que possuem apenas o último, não importa quanta
projeção e pensamento positivo antropomórfico direcionemos a eles.
Chame isso de casualidade. Ou chame de sopro divino, que deu vida
ao Urvater [o pai original], Adão, e trouxe Eva, a Urmutter [mãe ori
ginal] para nos tornar totalmente humanos. Então, em qual mito você
prefere acreditar?
Mas a raiva justa é proibida agora como a relíquia de um tempo
anterior, como se apenas a raiva estivesse em questão, não a justiça.
No mundo da Teoria Crítica, não há justiça, exceto a justiça irada de
Lúcifer; não há enormidade que precisamos abordar, exceto indignações
imaginárias. E essas indignações são infinitas. Como disse Ted Kenne
dy: "O trabalho continua, a causa perdura, a esperança ainda vive e
o sonho nunca morre" - o manifesto esquerdista, em poucas frases.
As palavras mais arrepiantes da história americana moderna. "A
causa perdura"? Que causa? Certamente não a causa constitucional
da fidelidade aos documentos fundadores dos Estados Unidos. Falan
do num código que ele tinha certeza de que seu público entenderia
235
MICHAEL WALSH
ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
(um "apito de cachorro"), Kennedy telegrafou para o público do cen
tro de convenções em Nova York em 1980 que a esquerda profana
não estava pensando em desistir, que la causa (que os comunistas que
lutavam na Guerra Civil Espanhola tão orgulhosamente proclamavam
nos dias que antecederam a Segunda Guerra Mundial) continuaria até
que o conflito maniqueísta fosse finalmente resolvido. Foi um grito de
guerra que poucos da direita ouviram, abafado pela derrota esmaga
dora de Reagan sobre Jimmy Carter pouco depois.
É hora de dizer adeus a tudo isso, aos detritos filosóficos dos Estados
Unidos pós-Segunda Guerra Mundial, à segunda era da ansiedade, ao
medo de sinais, presságios, sombras e apitos de cachorros, às ilusões,
à negação de todo o nosso patrimônio cultural. Pela bondade de seu
coração, a América acolheu víboras em seu ventre, criando, a partir de
então, uma segunda geração de cobras próprias. Abraçou os cortadores
desatentos da cerca de Chesterton, empenhados na destruição irracional.
O Éden, como em Paraíso perdido, deu lugar ao caos.
Em Milton, o arrebatamento de Eva ao provar o fruto proibido
("avidamente ela engoliu sem restrições, e não sabia comer a morte")
prenuncia o chamado de Brunilde à Luz no ato III de Siegfried, de
Wagner: "Heil dir, Sonne! Heil dir, Licht!", exclama ela, depois que o
herói a desperta com um beijo profundamente sexual. Wagner cercou
sua heroína com fogo mágico criado por Loge, aliado dos deuses;
Deus enviou Rafael e Gabriel para proteger Adão e Eva, um trabalho
no qual, evidentemente, eles falharam. Depois de provar o fruto da
Árvore do Conhecimento, a Eva de Milton afirma:
[...] doravante, meu cuidado precoce,
não sem cânticos, todas as manhãs e com o devido louvor,
será dedicado a ti, e o fardo fértil de teus ramos fartos,
oferecidos gratuitamente a todos, aliviar será meu dom,
até que, por ti nutrida, eu possa crescer
em conhecimento, como os Deuses, que todas as coisas conhecem.
O despertar de Brunilde também sinaliza sua descida de semideusa
para mulher humana; ela consuma tal descida fazendo sexo com Sieg
fried (é a primeira vez dele também); o conhecimento que eles têm um
do outro é carnal. A revelação de Eva é, a princípio, espiritual, mas
236
wate
ADEUS A TUDO ISSO
quando Adão se junta a ela (porque ele não suporta ficar sem ela),
o primeiro ato deles é fazer amor. Sexo, na obra desses dois grandes
artistas, é o que nos torna totalmente humanos.
Mas o sexo vem em segundo lugar: em Paraíso perdido, ele é a
transcendência do espírito, não a concupiscência da carne. O que
vem primeiro é a violência, a prolongada batalha no céu, os vários
roubos e assassinatos que marcam a primeira metade de O anel do
nibelungo. Os anjos e os deuses germânicos são um grupo violento,
mas a humanidade não mata até depois da expulsão do Jardim. Sexo
e violência, Eros e Tânatos.
Não é por acaso, então, que o ataque à cultura americana tenha
ocorrido precisamente nessas duas áreas: o rebaixamento do sexo (sua
"libertação") e, por assim dizer, a violenta guerra contra a violência.
Para a esquerda, não há nada mais repugnante do que a violência, e
a mera insinuação de violência, a seu ver, deve ser punida. A menos
que sejam eles os que atacam, a violência é sempre inaceitável, sobre
tudo quando dirigida a eles. Seus corpos são seus próprios templos
particulares.
Como Lukács esperava, o resultado dessa reversão sexual foi emascular
e feminizar os homens e transformar as mulheres em homens fajutos.
Com a masculinização das mulheres, evidentemente, as taxas de nata
lidade caíram; e a entrada de mulheres na força de trabalho resultou,
praticamente, na redução à metade da renda dos homens, uma vez que
agora são necessárias duas rendas para fornecer um padrão de vida
equivalente ao que a classe média desfrutava nas desprezadas décadas
de 1950 e 1960, e que geralmente bancava famílias muito maiores.
A inovação, outrora a marca registrada da sociedade americana,
diminuiu drasticamente, exceto nas áreas da medicina e produtos ele
trônicos. Computadores pessoais e outros dispositivos mudaram nossa
maneira de trabalhar, e os avanços na ciência médica prolongaram
vidas e reduziram o sofrimento. Ao mesmo tempo, porém, doenças
infecciosas, erradicadas gerações atrás, voltaram, em parte devido a um
medo supersticioso e primitivo de vacinas, um medo que os americanos
durante grande parte do século XX considerariam insano, já que seus
filhos foram salvos da poliomielite graças a Jonas Salk.
237
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
Os Estados Unidos levaram um homem à Lua em 1969. Hoje, eles
não são capazes de repetir a façanha. Nem de reconstruir a Represa
Hoover ou o Sistema Rodoviário Interestadual. Gulliver está imóvel,
amarrado ao chão. O avião supersônico chegou e se foi, e as viagens
aéreas são visivelmente piores. Os primeiros setenta anos do século
xx levaram o país da carroça ao projeto Apollo. O que foi alcançado,
comparativamente, desde então?
A inovação é prima em primeiro grau de seu parente mais feio,
a belicosidade. Do impulso bélico vem a necessidade "primitiva" de
triunfo, o desejo de impressionar as mulheres nas batalhas, a neces
sidade de criar filhos fortes e proteger as filhas. Outrora, víamos os
filhos como parte do tesouro da família, uma proteção contra a velhice
e um investimento no futuro da linhagem e das espécies, e não fardos
ou inconvenientes biológicos a serem evitados. Hoje, essas noções são
descartadas com escárnio, e, para grande parte da classe média alta
(o tipo de pessoa que lê as seções sobre estilo de vida do New York
Times), filhos são simples ornamentos, uma “escolha”, não uma ne
cessidade. Para a esquerda do futuro, a existência de alguém depende
inteiramente dos caprichos dos pais. Matando seus nascituros, eles se
tornam como deuses.
Alterar a natureza do relacionamento sexual (e, posteriormente, adi
cionar novas variações a ele) e destruir nos machos seu instinto natural
de lutar, que inclui seu instinto natural de vencer, construir, ter sucesso,
criar (inclusive artisticamente), é a receita para uma "transformação
fundamental", e não no bom sentido. Seus proponentes se baseiam na
tendência natural dos jovens de ver a "mudança” como algo sempre
positivo, de ver a "dissidência" como algo sempre moral e correto, e
de sempre torcer pelos rebeldes contra o império.
Assim, como vimos, a esquerda profana, com facilidade satânica,
manipula a linguagem para promover seus objetivos. Começando com
a proposição de que "liberal" ou "progressivo" é bom e "conserva
dor" é ruim, eles aplicam alegremente o rótulo "conservador" a seus
próprios movimentos quando eles não dão certo. Observe, por exem
plo, sua relutância dogmática em usar o nome completo do Partido
Nazista: o Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães.
238
ADEUS A TUDO ISSO
Os nazistas empregaram entusiasticamente tantas imagens heróicas
do proletariado trabalhador (martelos cruzados, rodas de fábrica,
camponesas peitudas saudando o Sol nascente) quanto os comunistas
soviéticos. Mas, insiste a esquerda, elas não tinham nada a ver umas
com as outras, exceto no que se refere à iconografia, ao anticapitalis
mo, à afinidade filosófica, à aliança política e ao desejo de empregar a
violência em nome do Estado.
A burocracia esclerótica de velhos eslavos gordos em sobretudos e
sapatos de plástico em cima do mausoléu de Lenin, acenando, desa
nimados, no desfile militar da Praça Vermelha (uma imagem que per
sonificou o fim da União Soviética) era invariavelmente chamada pela
mídia esquerdista de "linha-dura" ou "conservadora". (O substantivo
que faltava para esses adjetivos flutuantes era "comunistas", mas isso
estragaria a história). Os mulás teocráticos no Irã, que derrubaram o
governo secular do Xá e hoje matam mulheres e homossexuais com
impunidade, são igualmente caracterizados pela mídia indolente. O
mesmo acontece com os talibãs, vândalos culturais selvagens com
pouco interesse em preservar qualquer vestígio do passado pré-islâmico
daquele país, que são chamados de "conservadores". E os herdeiros
de Mao na China também.
Gramsci e Lukács estavam certos: melhor cavar sob os muros do
sonho americano e detoná-lo por baixo do que tentar invadir o céu. Eles
aprenderam isso com o próprio Satanás, que fracassou na última tarefa,
como Marx, mas teve sucesso, em certa medida, na primeira. Apesar
da minha formação católica-irlandesa, me diverte pensar que, no Juízo
Final, o inferno será esvaziado das almas humanas, não importando
quais sejam seus crimes terrestres, e essas almas também ascenderão
ao céu, tendo cumprido seu tempo. Chame-o de vôo final do pássaro
divino para Lúcifer, o único criminoso de verdade em toda a narrativa
original. Afinal, por que Deus concederia uma única alma a seu único
rival, especialmente depois da descida do Filho ao inferno? Seria o
mais viril, para não dizer humano, a se fazer. E que final emocionante
para a história mais longa já contada.
Ainda assim, como Teddy disse, o trabalho continua. O ape
lo final, desesperado e moribundo de Kennedy ao Papa Bento XVI
239
MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
("Estou escrevendo com profunda humildade para pedir que ore por
mim... Sempre tentei ser um católico fiel") talvez tenha sido educada
mente encaminhado à lata de lixo. Nossa tarefa na Terra nunca está
completa. O único que podemos fazer é passá-la à próxima geração.
Adão e Eva cuidaram disso, e temos em relação a eles uma dívida de
gratidão. “Ils ne passeront pas" ["Eles não passarão"], disse o general
francês Robert Nivelle, em Verdun, na experiência mais próxima do
inferno na Terra que a humanidade já teve. (J. R. R. Tolkien, um vete
rano desse inferno, colocou uma paráfrase próxima dessa declaração
na boca de seu angelical Gandalf, quando o mago proibiu a passagem
do arquidemônio Balrog pela ponte de Khazad-dûm).
Enfrentando reveses esmagadores em Termópilas, os gregos, sob o
governo do espartano Rei Leônidas, responderam às ordens persas de
que entregassem suas armas com estas palavras para a posteridade:
"Molōn labe" ["Venham pegá-las"]. Confrontando as ordens islâmicas
de "submeter-se" a uma barbárie satânica disfarçada de “fé abraâmica”,
Rolando e outros guerreiros cristãos se recusaram a isso. Recebendo
ordens alemãs de rendição no Cerco de Bastogne, o general Anthony
McAuliffe deu uma resposta que virou um clássico: "Uma ova!".
Ele poderia ter dito algo mais terreno, mas "uma ova" é bastante
terreno. "Ova" remete a bolas, testículos. McAuliffe e seus soldados
cercados no Bulge lutavam sem saber que o Terceiro Exército de
Patton, liderado pela 4ª Divisão Blindada, avançava ao seu encontro,
com destino e glória. A raiz da palavra “testificar” não poderia ter
sido mais apropriada.
Ou politicamente incorreta. Os guerreiros não procuram entender
as motivações de seus inimigos ou tratá-los com "respeito". Eles os
matam e continuam matando-os até que esses inimigos estejam todos
mortos ou não possam mais lutar. O progresso da guerra moderna,
cuja lógica ficou evidente no bombardeio da Alemanha e do Japão, e
no uso de armas atômicas para acabar com a guerra, tornou inevitável
a cruel destruição de civis. Era a ameaça iminente por trás da Guerra
Fria, o remate de Dr. Fantástico, na discussão de uma taxa "aceitá
vel" de baixas numa guerra nuclear com a União Soviética, caso isso
acontecesse. "Dez a vinte milhões de mortos, no máximo", exclama o
240
ADEUS A TUDO ISSO
General Buck Turgidson, de George C. Scott, na famosa cena da sala
de guerra de Dr. Fantástico, "dependendo dos intervalos".
O personagem de Scott foi escrito e interpretado como um bufão
belicoso, uma representação segura no ambiente dos Estados Unidos
de 1964. O personagem razoável, por outro lado, deveria ser a figura
ineficaz, estilo Adlai Stevenson, do Presidente Merkin Muffley, embora
os duplos sentidos em seu nome¹ dessem indicações claras sobre sua
virilidade. Não havia colhão, e a Guerra do Vietnã estava prestes a
começar, embora nunca tenhamos buscado a vitória plenamente. Foi
a primeira guerra deliberadamente travada primeiro para empatar e
depois para perder. Houve outras desde então.
À medida que a sociedade americana se tornava cada vez mais solip
sista e amedrontada (cada vez mais protetora de suas "ovas", por assim
dizer, e, portanto, cada vez menos viril e sem capacidade de regeneração),
entraram na pilha belicosa dos filósofos da Escola de Frankfurt, que
de guerra não entendiam nada e para quem (nas palavras do falecido
técnico do Washington Redskins, George Allen) o futuro era sempre
agora. Ainda assim, os filósofos fugiram da Europa em vez de ficar e
lutar. Somente Walter Benjamin se suicidou na cidade fronteiriça de
Portbou, na Espanha, em vez de cair nas mãos dos alemães enquanto
tentava escapar pela ferrovia subterrânea de Varian Fry que atravessava
os Pirineus em 1940. No entanto, mesmo seu epitáfio diz: "Não há
registro de civilização que não seja ao mesmo tempo um registro de
barbárie", um sentimento típico da Escola de Frankfurt, combinado
com um jogo de palavras barato, mais digno do Dr. Frank N. Furter, de
The Rocky Horror Show, do que de um intelectual alemão da Escola
de Frankfurt, mas fazer o quê?
Dom Quixotes da mente, sua filosofia gerando profanamente os "pir
ralhos chorões" da esquerda desagradável e zombeteira da atualidade,
debochando das virtudes e aparências tradicionalmente masculinas e
femininas, tentando desesperadamente relegar a narrativa original à
esfera de mito secundário e lenda, histórias de ninar para os “bonzos
gonzos" da América do pós-guerra: essa era a Escola de Frankfurt. Ten
do conquistado a academia, eles deixaram um legado no crescimento
1 Merkin significa "peruca pubiana" e muff é uma palavra em gíria para “vagina” - NT.
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MICHAEL WALSH ESCOLA DE FRANKFURT: O PALÁCIO DE PRAZER DO DEMÔNIO
canceroso dos departamentos de "estudos" (gênero, raça, boiola etc.)
que infestam a universidade moderna à custa do aprendizado clássico.
Eles transformaram instituições proeminentes do que costumava ser
chamado de "ensino superior" em campos de reeducação de ensino
inferior, povoando-os com representantes e oficiais políticos da "di
versidade", punhos cerrados em jaquetas de tweed, sugando dinheiro
dos contribuintes para alimentar seu próprio emprego, forçando a
população como um todo a subsidiar sua própria teoria da destruição.
Batizei essa guerra política atual entre esquerda e direita de "Guer
ra Fria Civil", embora, até pouco tempo atrás, apenas um dos lados
entendesse que estava numa guerra civil. Nisso, ela se assemelha mais
à guerra declarada do islã no Ocidente e à guerra não-declarada e
irresoluta que o Ocidente está interminavelmente, e sem propósito,
travando contra o islã na Mesopotâmia e no Afeganistão. As guerras
não podem ser vencidas sem uma compreensão clara do que significa
a vitória, como o General Gordon e o Marechal Kitchener teriam
entendido. "Só pode haver um”, dizem os espadachins imortais em
Highlander, enquanto empreendem o sombrio negócio de decapitar
um ao outro. Até os personagens de um filme B sabem disso.
E assim os Estados Unidos, já com o século XXI engrenado, encon
tram-se na posição dos dois combatentes na vívida imagem da Grande
Guerra de Robert Graves: os dois soldados de infantaria, presos em
morte mútua e rigor mortis [rigidez cadavérica], literalmente imobiliza
dos, um pela baioneta do outro, unidos eternamente na camaradagem
do ódio. Apenas um campo, no entanto, tem os elementos adicionais
de dever, honra e pátria do seu lado. Apenas um lado defende suas
mulheres e crianças. Apenas um lado luta para preservar em vez de
destruir, honrar em vez de zombar, melhorar em vez de derrubar: manter
a barreira entre civilização e barbárie e perguntar "por que" em vez
de "por que não". Esse conhecimento, conquistado a duras penas, é
antigo e contínuo:
242
ADEUS A TUDO ISSO
[...] O anjo respondeu pela última vez:
"Tendo aprendido isso, alcançaste a sabedoria
total; não esperes mais.
[...] Apenas adiciona ações adequadas ao teu conhecimento, adiciona fé,
adiciona virtude, paciência, temperança, adiciona amor,
pelo nome que virá chamado caridade, a alma
de todo o resto: então não te incomodará
deixar este Paraíso, pois possuirás
um Paraíso dentro de ti, mais feliz agora".
- Paraíso perdido, livro XII
Assim, a esquerda profana retorna a seu Teufels Lustschloss de
cadente e se instala ali dentro, como Wotan em Valhalla, assistindo
impotentemente as chamas lamberem tudo e as paredes desmoronarem,
em vigília silenciosa pelo fim há tanto tempo esperado, há tanto tempo
temido, tão devotamente desejado. Uma filosofia do niilismo, de acor
do com a narrativa original, deve terminar, e terminará, niilistamente.
O restante de nós, embora expulsos do Jardim, ainda acompanha os
textos sagrados e presta atenção às histórias de nossos corações. Tendo
testemunhado o Arcanjo Miguel que, com espada de fogo, baniu o Pai
original e a Mãe original do Éden, ainda podemos ver os querubins
eternos guardando os portões, divertindo-se em meio ao fogo mágico
de São Miguel, com a certeza e a esperança de nosso retorno.
O mundo estava à sua frente, para escolher
seu lugar de descanso, e a Providência, seu guia:
Eles, de mãos dadas, com passos errantes e lentos,
através do Éden seguiram seu caminho solitário.
E, naquele momento de dor e perda, nasceu a humanidade, dando
início à sua longa jornada de volta para casa.
243
Agradecimentos
autor gostaria de agradecer às seguintes pessoas por sua
O inestimável ajuda, incentivo e sugestões durante a criação e
redação deste livro: Roger Kimball, Molly Powell, Jack Fowler,
Tracy Scoggins, o pessoal da Holy Family Chapel, Elena Kurtz, e o
Sr. e a Sra. Robert Maxhimer. Agradecimentos especiais a Bill Walsh.
245
●● ●
Esta obra busca mostrar qual foi e ainda é - -
a influência exercida pela Escola de Frankfurt sobre
a cultura ocidental, em geral, e a cultura americana,
em particular. O livro, entretanto, não se limita
a esquadrinhar a "teoria crítica" frankfurtiana, mas
discorre sobre o bem e o mal, sobre a Queda do
homem, sobre a vida cotidiana, sobre a idéia de que é
a arte - e não a ciência - o farol para o caminho da
-
redenção.
O autor mostra como a "teoria crítica" liberou os
demônios da Caixa de Pandora na psique americana,
traçando uma jornada do herói, uma odisseia literária:
descida ao inferno da degradação atual, causada pelo
niilismo moderno, para apontar aos poucos para o alto,
indicando uma salvação.
A analogia traçada entre o presente e a ópera O
palácio de prazer do demônio, composta pelo jovem
Schubert, evidencia o imutável desejo da humanidade de
arrostar as forças ocultas: bem e mal, Céu e Inferno,
Deus e Satanás. Após a Segunda Guerra, o Ocidente
se entregou a um moderno palácio do prazer feito de
promessas de "justiça social" e igualdade: um mundo
que aparenta ser - mas não é o Céu. O livro não
-
trata de como, mas por que lutar contra esse mundo
de ilusões infernais prometido pela Escola de Frankfurt.
【 9786587 138039
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