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Corpo - Cotidiano

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Fabio Gavila
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INSTITUTO LATINO-AMERICANO DE ARTE,

CULTURA E HISTÓRIA (ILAACH)

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
INTERDISCIPLINAR EM ESTUDOS LATINO-
AMERICANOS (PPG IELA)

ENTRE O CORPO COTIDIANO E O CORPO CÊNICO:


UMA PERSPECTIVA PÓS-COLONIAL

MARINA FAZZIO SIMÃO

Foz do Iguaçu

2017
INSTITUTO LATINO-AMERICANO DE ARTE,
CULTURA E HISTÓRIA (ILAACH)

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
INTERDISCIPLINAR EM ESTUDOS LATINO-
AMERICANOS (PPG IELA)

ENTRE O CORPO COTIDIANO E O CORPO CÊNICO:


UMA PERSPECTIVA PÓS-COLONIAL

MARINA FAZZIO SIMÃO

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos
Latino-Americanos da Universidade Federal
da Integração Latino-Americana, como
requisito parcial à obtenção do título de
Mestra em Estudos Latino-Americanos.

Orientador: Prof.ª Dr.ª Barbara Maisonnave


Arisi

Co-orientador: Prof. Dr. Juliano Casimiro de


Camargo Sampaio

Foz do Iguaçu

2017
MARINA FAZZIO SIMÃO

ENTRE O CORPO COTIDIANO E O CORPO CÊNICO:


UMA PERSPECTIVA PÓS-COLONIAL

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos
Latino-Americanos da Universidade Federal
da Integração Latino-Americana, como
requisito parcial à obtenção do título de
Mestra em Estudos Latino-Americanos.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________

Orientador: Prof.ª Dr.ª Barbara Maisonnave Arisi


UNILA

________________________________________

Co-orientador: Prof. Dr. Juliano Casimiro de Camargo Sampaio


UFT

________________________________________

Prof. Dr. Estevão Rafael Fernandes


UNIR

______________________________________

Prof. Dr. Marcos de Jesus Oliveira


UNILA

Foz do Iguaçu, 18 de abril de 2017.


Catalogação elaborada pela Divisão de Apoio ao Usuário da Biblioteca Latino-Americana
Catalogação de Publicação na Fonte. UNILA - BIBLIOTECA LATINO-AMERICANA

Simão, Marina Fazzio.


Entre o corpo cotidiano e o corpo cênico: uma perspectiva
pós-colonial / Marina Fazzio Simão. - Foz do Iguaçu, 2017.
133 f.

Orientador: Barbara Maisonnave Arisi.


Coorientador: Juliano Casimiro de Camargo Sampaio.

Universidade Federal da Integração Latino-Americana.


Institituto Latino-Americano de Arte Cultura e História.
Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos Latino-
Americanos (PPG IELA).

1. Artes cênicas - representação corporal. 2. Artes cênicas


- filosofia. 3. Artes cênicas - antropologia. 4. Prática
Pedagógica. I. Arisi, Barbara Maisonnave, Orient. II. Sampaio,
Juliano Casimiro de Camargo, Coorient. III. Título.
CDU 792.01:37.013
A Pedro pelo carinho e motivação nos
momentos de incertezas. E a Paula,
minha irmã, que na distância se fez
presente tantas vezes.
AGRADECIMENTOS

Agradeço aos meus alunos que me ensinaram a cada aula, me


fizeram pensar e redescobrir a prática teatral a cada encontro, antes dos nossos
encontros jamais havia imaginado aprender tanto com esses pequenos jogadores.
Aos tantos professores de teatro que sensibilizaram meu olhar a
cada troca, que puderam despertar em mim tantas inquietações e motivações que
somente o palco me permitiu.
À Prof.ª Dr.ª Barbara Arisi que me possibilitou novas perspectivas
nesta pesquisa.
Ao Prof. Dr. Juliano Casimiro de Camargo Sampaio que prontamente
assumiu o compromisso com este trabalho e que em outros tempos compartilhou
seu conhecimento. Obrigada pelos ensinamentos, pela paciência e generosidade em
minha caminhada.
Aos amigos que surgiram juntamente com o Eu-Outro Núcleo de
Pesquisa Cênica, nossas trocas e vivências me permitiram refletir sobre o teatro em
que hoje acredito. As descobertas com as quais me presentearam muito e me
ensinaram sobre a generosidade do nosso ofício, seja como atriz, professora ou
pesquisadora.
Aos profissionais do PPG IELA. Ao coordenador Prof. Dr. Andrea
Ciacchi. Ao secretário Newton Camargo que sanou e se prontificou diante de todas
as dúvidas e etapas da minha pesquisa, sem saber me fez acreditar novamente no
serviço público.
Às companheiras de estudos, cafés e inquietações, Rafaela e
Saionara. Aprendemos e compartilhamos em meio a risadas, doces e livros.
Ao meu companheiro de jornada Pedro, a cada dia me surpreendeu
com sua imensa compreensão e motivação.
À minha tia Alda Simiana do Nascimento (in memoriam), pelo afeto
em vida que me manteve acolhida na construção desse caminho.
Às minhas irmãs Paula e Marília e irmãos Daniel e Tiago, que muito
compreenderam meu retiro em meio aos livros e cadernos. Aos meus sobrinhos que
tornam a vida mais gostosa. A meu pai que me apresentou ao mundo e me tornou
mais forte.
A duas amigas que na distância me deram força, risadas e afeto.
Janaína e Carol, muito obrigada.
Aos que direta ou indiretamente atravessaram meu caminho e de
algum modo me motivaram e desestabilizaram, me estimulando a buscar novos
horizontes nessa jornada.
SIMÃO, Marina Fazzio. Entre o corpo cotidiano e o corpo cênico: uma
perspectiva pós-colonial. 2017. p. 134. Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos Latino-Americanos. Universidade
Federal da Integração Latino-Americana, Foz do Iguaçu, 2017.

RESUMO

Esta pesquisa se desenvolve por meio do diálogo entre as artes cênicas,


antropologia e filosofia e pretende responder à questão: o processo artístico pode
ser entendido como meio de descolonização ou descolonialidade do corpo
cotidiano? O debate proposto aborda os estados de corpo cotidiano e de corpo
cênico. Os aspectos ligados ao corpo e suas convenções são pensados a partir das
perspectivas de Greiner e Katz (2005) e Foucalt (1987). Procuro mostrar como
podemos compreender o corpo como um corpo colonizado, em diálogo com a
produção dos autores pós-coloniais Mignolo (2005) e Quijano (2005) e seus
respectivos conceitos de descolonialidade e descolonização. Realizo uma
aproximação desses conceitos com as teorias das artes cênicas com foco no corpo
cênico. A discussão proposta se dá entre as teorias pós-coloniais e as do teatro de
Barba (2012) e de Casimiro (2011) em relação ao corpo em estado de
representação. Deste modo, busco compreender como os processos conduzidos
pelos diretores citados podem (ou não) auxiliar na percepção de um corpo
colonizado e descobrir se seus processos levam (ou não) à descolonização ou
descolonialidade dos corpos cotidianos. Partindo da minha experiência como
docente em teatro, reflito sobre os conceitos propostos por esses autores pós-
coloniais na prática artistico-pedagógica, a fim de pensar sobre minha prática como
uma abordagem (des)colonial/colonizadora e sobre a possibilidade de um corpo
mais consciente de seus automatismos.

Palavras-chave: 1. Teatro 2. Corpo 3. Descolonização 4. Descolonialidade 5. Prática


Pedagógica
SIMÃO, Marina Fazzio. Entre o corpo cotidiano e o corpo cênico: uma
perspectiva pós-colonial. 2017. p. 134. Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos Latino-Americanos. Universidade
Federal da Integração Latino-Americana, Foz do Iguaçu, 2017.

RESUMEN

La presente investigación se desarrolla por medio del diálogo entre las artes
escénicas, la antropología y la filosofía, con el objetivo de responder el siguiente
cuestionamientos: ¿el proceso artístico puede ser entendido como medio de
descolonización o descolonialidad del cuerpo cotidiano? El debate propuesto aborda
los estados del cuerpo cotidiano y del cuerpo escénico. Los aspectos relacionados al
cuerpo y sus convenciones son pensados desde las perspectivas de Greiner e
Katz (2005), y Foucalt (1987). Busco mostrar cómo podemos comprender el cuerpo
como un cuerpo colonizado, teniendo como base la producción de los autores
poscoloniales Mignolo (2005) y Quijano (2005) y sus respectivos conceptos de
descolonialidad y descolonización. Realizo una aproximación de dichos conceptos
con las teorías de las artes escénicas en referencia al cuerpo escénico. La discusión
propuesta ocurre entre las teorías poscoloniales y las del teatro de Barba (2012) y
de Casimiro (2011), en relación al cuerpo en estado de representación. De esta
manera, busco comprender cómo los procesos llevados a cabo por los directores
citados pueden (o no) auxiliar en la percepción de un cuerpo colonizado y descubrir
si sus procesos llevan (o no) a la descolonización o descolonialidad de los cuerpos
cotidianos. Partiendo de mi experiencia como docente en teatro, reflexiono sobre los
conceptos propuestos por estos autores poscoloniales en la práctica artístico-
pedagógica, con la finalidad de pensar sobre mi práctica como un abordaje
(des)colonial/colonizadora y sobre la posibilidad de un cuerpo más consciente de
sus automatismos.

Palabras claves: 1. Teatro 2. Cuerpo. 3. Descolonización 4. Descolonialidad. 5.


Práctica pedagógica
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 09
1. A COLONIALIDADE DO CORPO ................................................................................ 18
1.1. CULTURA, BIOPODER E CORPO ........................................................................... 20
1.2. CORPOMÍDIA ........................................................................................................... 26
1.3. CORPO COLONIZADO E TÉCNICA ........................................................................ 29
2. A DESCOLONIZAÇÃO DO CORPO ............................................................................. 37
2.1. A CONSTRUÇÃO DO CORPO CÊNICO E A DECOLONIZAÇÃO DO CORPO
COTIDIANO ...................................................................................................................... 37
2.2. CORPO CÊNICO E DESCOLONIZAÇÃO...................................................................45

3. A DESCOLONIALIDADEDO CORPO........................................................................... 57
3.1. UMA BUSCA PELO CORPO ATENSO ....................................................................... 65
4. O CORPO COLONIZADO NOS PROCESSOS ARTÍSTICO-PEDAGÓGICOS – A
COLONIALIDADE NA RELAÇÃO PROFESSOR-ALUNO............................................... 75
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................... 90
REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 92
ANEXOS ........................................................................................................................... 95
ANEXO A – DIÁRIO DE BORDO ...................................................................................... 96
INTRODUÇÃO

O debate que se apresenta nesta pesquisa busca contribuir com


discussões a respeito de processos artísticos e pedagógicos que podem
proporcionar (ou não) a descolonização e a descolonialidade do corpo cotidiano. É
resultante da aproximação entre as teorias pós-coloniais e as artes cênicas. A
justaposição do debate das ciências sociais com o existente nas artes cênicas se dá
na forma de revisão bibliográfica e também no campo metodológico, que inclui,
como se verá adiante, análise de experiências desde o recorte da perspectiva pós-
colonial. Esse diálogo, ainda que anterior a esta pesquisa, não conta com produção
acadêmica em número relevante para embasar as discussões que se seguem. Por
isso, o trabalho se insere em um campo ainda incipiente de pesquisa.
A discussão aqui traçada almeja colaborar com atores, professores e
diretores de teatro, mostrando abordagens de diferentes profissionais por meio de
seus trabalhos em diálogo com teorias pós-coloniais. Pretendo mostrar e enfatizar
um possível caminho para a compreensão do corpo para além de suas práticas
coloniais, para que ele possa ser trabalhado em iniciativas futuras com o
reconhecimento do seu contexto de pertencimento.
Para tanto, esta pesquisa se caracteriza como sendo de natureza
teórico-qualitativa. As etapas da pesquisa foram: revisão bibliográfica, recorte
temático, análise de dados de experiências do Eu-Outro Núcleo de Pesquisa Cênica
(NPC), entrevistas semi-estruturadas com atores que atuam e atuaram no núcleo e
reflexão sobre minha própria experiência como professora de teatro em escolas. Os
dados de experiências vivenciadas provêm das propostas do diretor Juliano
Casimiro1 realizadas durante os ensaios do espetáculo “Favores da lua – O
Prólogo”, do Eu-Outro NPC durante o ano de 2011. Ao longo do trabalho, o diretor
organizou seus registros no chamado “Diário de Bordo”2, no qual realizou
apontamentos sobre seu trabalho e os resultados das práticas artísticas
desenvolvidas no período. No que diz respeito às entrevistas, o material coletado

1
O diretor/pesquisador, Juliano Casimiro de Camargo Sampaio, cujo trabalho é analisado, também é
co-orientador desta dissertação.
2
O material a ser analisado segue em anexo ao trabalho.
9
provém de atores que participaram da montagem do espetáculo em questão. Ao
todo, quatro participaram da coleta de dados, sendo dois ainda participantes e
outros dois ex-participantes do Eu-Outro NPC.
Para fundamentar a pesquisa no que tange questões pedagógicas
referentes à aula de teatro, trago minha experiência enquanto docente. A partir de
reflexões geradas durante minha atuação como professora no ensino de teatro de
jovens e crianças, dialogo com as perspectivas pós-coloniais que apresento aqui.
No encontro entre as artes cênicas, antropologia e filosofia, busco
debater sobre as questões referentes ao corpo cênico, por meio das proposições de
Greiner e Katz (2005), Ingold (2000) e Foucalt (1987) sobre a disciplina e as amarras
sofridas pelo corpo na vida cotidiana. Considerarei os aspectos físico-biológicos do
corpo, mas enfatizarei o contexto sociocultural no qual o corpo está inserido,
tomando-se como referência os autores citados. Nesse sentido, a proposta desta
pesquisa é compreender de que modo o corpo pode passar por um processo
descolonial ou descolonizador durante um processo de criação artística.
Como a investigação abrange aspectos diretamente relacionados à
colonização, vejo a necessidade de informar que a noção de cultura da qual irei
trabalhar será a partir da concepção trabalhada por Wagner (2002). A discussão
avança apoiando-se em Mignolo (2005) e Quijano (2005). Os autores ajudarão a
refletir sobre a ideia de um corpo colonizado. Finalmente, através das perspectivas
propostas por Eugênio Barba (2012) e Juliano Casimiro (2011), busco compreender
de que modo os processos cênicos guiados por esses diretores podem trazer maior
percepção sobre a existência de um corpo colonizado durante o trabalho de ator.
Nesse sentido, analiso, a partir do prisma das artes cênicas, o corpo colonizado,
como proposto pelos cientistas sociais e filósofos citados acima. O objetivo dessa
análise é discorrer sobre o corpo cênico e refletir se estes processos podem ou não
levar à descolonização ou à descolonialidade dos corpos cotidianos.
Esta pesquisa emergiu da minha inquietude em investigar o corpo
inserido na prática teatral. Em especial, ao perceber a importância de se estudar e
treinar o corpo para a cena durante minha experiência artística, principalmente como
também participante do Eu-Outro Núcleo de Pesquisa Cênica. Sob a direção de

10
Juliano Casimiro, no grupo o corpo tem espaço fundamental nas práticas
promovidas pelo diretor e será um dos pontos tratados mais adiante.
Além dos meus estudos nas práticas da cena, me aproximei da
antropologia a partir de meu ingresso no curso de Antropologia, na Universidade
Federal da Integração Latino-americana, UNILA, onde me deparei com os debates
sobre pós-colonialismo. A aproximação com as teorias sobre o pós-colonialismo, tais
como as de Quijano (2005) e Mignolo (2005), fez com que eu percebesse o quanto
este diálogo ainda está tecendo espaço dentro das artes cênicas, principalmente no
que tange pesquisas sobre o corpo em estado de representação.
A partir deste diálogo surge a seguinte questão: O processo artístico
pode ser entendido como meio de descolonização ou descolonialidade do corpo
cotidiano? A resposta pode nos levar ao debate sobre quais caminhos e práticas
podem auxiliar num processo cênico que compreende a passagem do corpo
cotidiano ao corpo cênico como forma de descolonialização ou descolonialidade.
Essas práticas serão aqui consideradas no âmbito artístico e pedagógico do teatro.
Em resumo, reflito sobre a necessidade de compreender o corpo colonizado e
entender os desdobramentos num processo artístico/pedagógico para pensar o
corpo cotidiano a partir de minha prática como atriz e minha atuação no ensino de
teatro.
Nesse sentido, proponho explicitar a articulação teórica em que o
corpo apresenta papel fundamental na compreensão dos processos de construção
cênica, para, a partir deste ponto, desenvolver uma reflexão sobre o corpo
colonizado inserido nesses processos. Não proponho confrontar diferentes teorias
que tenham o corpo como eixo e não pretendo abordar sua biologia. A pesquisa vai
em direção ao que se refere ao corpo dentro dos processos de interação eu-outro,
mas não exclui, evidentemente, a ideia de que esses processos de interação se
pautam na existência de uma dimensão biológica do corpo. As escolhas que
norteiam este trabalho se dão a partir de autores que pensam o corpo ou a
colonização como eixo de suas pesquisas. Busco analisar o corpo cultural, político e
artístico, criando um diálogo entre teorias das artes cênicas com as teorias pós-
coloniais.

11
Ao debater sobre o corpo cotidiano, é importante esclarecer que o
corpo sobre o qual me interessa discutir abrange seus aspectos culturais. Segundo
Foucault (1987), esse corpo está disciplinado pelo biopoder ao qual responde. Dada
as dimensões e debates que surgirão, acredito que o corpo-em-contexto, como
trazido por Greiner e Katz (2005), tem de ser percebido antes de ir para a cena. Este
corpo cotidiano que antecede o corpo cênico transita de um estado ao outro de que
maneira?
Compartilho a ideia de Foucault (1987) de um corpo disciplinado,
isto é, submetido a um poder exercido sobre ele. Respeitando ou resistindo à
realidade normatizadora da qual faz parte, esse corpo é construído sob tal realidade
normatizadora. Tal construção se relaciona ao conceito de colonização definido por
Bosi (1992), que o designa como um processo de dominação e exploração forçosa
que muitas vezes conduziu a ideia de descobrimento e povoamento, camuflando a
violência desse processo, que coagiu povos e explorou territórios. Fundamento
minha reflexão baseada nas ideias sobre biopoder, conforme sugeridas por Foucault
(1987). Nessa esteira, me apoiarei em seus discursos para fortalecer o debate
proposto no que remete à cultura e à colonização do corpo.
Para discutir questões sobre o pós-colonialismo a fim de responder à
questão norteadora dessa pesquisa, apoio-me em dois conceitos bastante
explorados nos debates sobre pós-colonialismo. Primeiro, a proposta de
descolonização elaborada por Quijano (2005), enfocando de modo mais preciso em
seu tópico sobre a colonização do corpo. Ainda que por uma perspectiva social e
política, essa noção possibilita diálogo direto com Focault (1987) e Greiner e Katz
(2005) no que se refere ao corpo como instrumento e construção cultural. Essa
primeira parte da discussão sustentará a ideia de um corpo socialmente construído
para que através do debate com as artes cênicas possamos refletir sobre uma
possível descolonização ou descolonialidade do corpo.
Nesse sentido, busco, através dos apontamentos de Quijano (2005),
compreender melhor o corpo cotidiano, considerando os aspectos políticos e
culturais em que está inserido. Como apontado pelo autor, é necessário reconhecer
o contexto no qual o corpo é colonizado, para discutir o processo da passagem para
o corpo cênico. Greiner e Katz (2005) dão suporte para se pensar que o corpo, além

12
de biológico, é também simbólico e consideram suas dimensões culturais e seus
contextos socioculturais. Barba (2012) servirá de modelo para refletir sobre o corpo
cênico, através dos conceitos criados por ele, como pré-expressividade e corpo
extracotidiano.
Abordo também o conceito de desconialidade, como proposto por
Mignolo (2005), para debater sobre o processo artístico desenvolvido no Eu-Outro
NPC, que segue um trajeto diferente daquele traçado por Eugenio Barba (2012),
mas que também tem o corpo como eixo central de suas práticas teatrais. A
descolonialidade, como abordada por Mignolo (2005), remete à tomada de
consciência das raízes que ainda existem como frutos de colonização. Para construir
um discurso coerente no que tange às questões sobre o corpo, farei uso das
perspectivas da antropologia e do teatro, com o apoio de Ingold (2011) sobre
técnicas e habilidades do corpo em relação às questões abordadas.
A partir de Quijano (2000), podemos compreender que a construção
imagética do corpo que hoje conhecemos tem origem e caráter colonial, e provou
ser mais durável e estável que o colonialismo em cuja matriz foi estabelecida. Trata-
se de um elemento do colonialismo no padrão de poder hegemônico no mundo de
hoje. Com a colonização, a concepção de corpo cindido ocupou a perspectiva nativa
de um corpo integrado. O corpo deixou de ser compreendido a partir da integração
entre corpo e mente e após a colonização, eles passaram a ser percebidos de forma
dividida.
Nos próximos capítulos, o principal objetivo é tratar algumas das
questões teoricamente necessárias sobre as implicações da colonialidade sobre
como pensamos e construímos o nosso corpo. Por essa razão, proponho o diálogo
com Quijano (2000) no que se refere ao corpo e colonização, pois é a partir desta
colonização que começamos a compreender o corpo como hoje percebemos. A
descolonização como proposta pelo autor permite que se desvencilhe de um
colonizador, a priori, mas reconhece que ela não consegue ainda extrair todos os
seus vestígios.
Nesse segundo eixo temático, articulado com o primeiro, o que se
pretende é estabelecer um diálogo entre teatro e antropologia, pensar a relação de
um corpo construído e, se possível, desconstruído para o espaço cênico para que

13
seja facilitada sua desconstrução ou o reconhecimento do corpo cotidiano. Busco
refletir sobre certos imaginários de corpo que construímos em nossa sociedade e me
aproximar das influências que sofremos, seja ela advinda do contexto e/ou do
biopoder, para pensar o corpo que conhecemos através das definições até então
apresentadas e em uma possível desconstrução, para que possa ocupar uma
função cênica, mas que não seja o objetivo do corpo cênico. O corpo cotidiano não
tem sua desconstrução como ponto imprescindível, apresento apenas um caminho
para desvelar suas facetas deste corpo cotidiano.
O corpo integrado, indissociável do natural e social, pode ter seu
processo de colonização evidenciado no treinamento técnico de ator, entre práticas
cênicas que possuam o corpo como centro de suas propostas artísticas. Da mesma
forma, corpo cotidiano e corpo cênico são também indissociáveis. Por essa razão,
escolhi colocar em debate com os autores pós-coloniais das ciências sociais as
propostas do diretor e pesquisador Eugênio Barba (2012), cujo eixo de suas práticas
e investigações3 é o corpo. Assim, sua pesquisa pode nos auxiliar a perceber o
quanto as artes cênicas podem contribuir na percepção e reconhecimento do corpo
cotidiano como um corpo colonizado. Corpo cotidiano e corpo cênico são
indissociáveis um do outro, entretanto, no processo artístico cênico, a percepção
desse estado colonizado pode ser evidenciada.
A opção por Barba (2012) se dá pela aproximação com as teorias da
descolonização dentro das práticas descritas em seus registros. Por falta de acesso
a estudos que abordem o diálogo entre autores das artes cênicas e da pós-
colonialidade, proponho uma ponte entre Barba (2012) e Quijano (2005) para
desenvolver este trabalho. Durante a pesquisa, percebi a escassez de material no
que tange os debates entre teatro, corpo e pós-colonialidade. Considero que se trata
de um debate atual e relevante para as artes cênicas.
Barba (2012) apresenta uma pesquisa teórico-prática sobre o
trabalho do ator bastante intensa e difundida entre diversos grupos teatrais. O autor
que centra sua investigação no corpo, busca suas técnicas de diversos outros

3
Eugênio Barba é fundador do ISTA (International School of Theatre Antropology). Seu campo de
pesquisa e atuação é nos estudos dos princípios da utilização extracotidiana do corpo e para a
aplicação e compreensão de suas técnicas no trabalho criativo do ator e bailarino.

14
grupos artísticos. Com o OdinTheatre4 e o ISTA, Barba e os demais integrantes dos
grupos viajaram por países ocidentais e orientais, pesquisando a cena e as danças
locais. Seu trabalho possibilita o debate sobre descolonização, seja nos critérios
técnicos de ator e/ou no processo de construção da personagem5. Ou seja, o
processo pode se dar durante o treinamento técnico 6de atores e na elaboração da
personagem.
Ao pensar em um corpo extracotidiano, Barba aborda elementos que
poderiam pertencer ao cotidiano, mas que para ele são exigidos na cena em outro
estado, como o equilíbrio, as ações e a energia condicionada para o palco.
Trabalhar com e sobre o corpo cênico traz o olhar do ator e diretor para o corpo
cotidiano, em um processo de (co)regulação dos corpos. Explorar as possibilidades
do corpo cênico poderá trazer maior consciência e percepção para pensarmos sobre
o corpo colonizado, seja na cena ou no cotidiano, no palco ou na sala de aula.
Compreender o corpo que somos pode auxiliar as práticas artísticas e os processos
pedagógicos.
O autor ainda utiliza as técnicas de inculturação e aculturação,
aplicadas e desenvolvidas pelo corpo cotidiano para o corpo em estado de
representação. O autor refere-se à aculturação como técnica incorporada
artificialmente no trabalho dos atores e bailarinos, que durante o processo artístico
apropriam-se de um comportamento cênico, possibilitando desarticular
automatismos que condicionam seus corpos. Quando retoma o conceito de
inculturação, Barba alude a princípios que são aprendidos por atores e bailarinos,
mas que fogem a sua vontade incorporando-se de modo espontâneo, ou seja,
qualidades que os atores acabam por adquirir ao longo de seu trabalho. Tais
conceitos podem sustentar a ideia de um modelo descolonizador (QUIJANO, 2005)
do trabalho de ator.
4
OdinTheatre é um laboratório teatral fundado por Eugênio Barba no ano de 1964. Atualmente, o
grupo criou 75 espetáculos, dos quais viajou por aproximadamente 63 países, criando uma cultura de
troca das técnicas extracotidianas com os grupos locais. Hoje é considerado um dos grupos com
maior diversidade técnica do mundo.
5
Construção da personagem no âmbito das artes cênicas remete ao seu processo criativo e estético,
utilizando técnicas de criação extracotidiana.
6
Como treinamento técnico, entendo uma série de exercícios que buscam aprimorar a consciência e
controle corporal para que os atores possam usar as diversas qualidades de seu corpo de forma
intencional e organizada.
15
Sobre o corpo artístico, sustentarei a pesquisa a partir dos registros
das práticas teatrais exercidas pelo Eu-Outro Núcleo de Pesquisa Cênica, dirigido
por Juliano Casimiro (2011), do qual participei. A presente dissertação explicita o
embasamento teórico sobre o qual o diretor do Eu-Outro NPC conduziu o espetáculo
“Favores da Lua – O Prólogo” (2011) e busca, ainda, adicionar à articulação teórica,
noções e discussões acerca do corpo cênico, sugeridas por Casimiro. Tais
discussões aparecem nos registros do encenador, chamado Diário de Bordo (2011).
Como já explicado acima, trata-se de um espaço no qual o pesquisador relata e
reflete sobre sua prática enquanto propositor de um processo artístico.
O Eu-Outro NPC é um grupo que visa o corpo como eixo de suas
pesquisas cênicas, no qual Casimiro, como diretor e coordenador, traz propostas
conceituais sobre corpo. A escolha de aproximar tais reflexões das teorias que
remetem à descolonialidade, serve para estabelecer relações possíveis entre a
noção de corpo colonizado e de sua descolonialidade. Reconhecendo-o com base
nas influências sofridas pelo contexto em que está imerso, por meio da prática
teatral o corpo colonizado pode se conscientizar ou intuir tais influências para levá-
las à cena. Se é possível estar consciente das amarras sofridas para a cena, seria
possível estar consciente delas na vida cotidiana?
Para responder a esta questão e dialogar com outra perspectiva
pós-colonial, trago Mignolo (2005) e sua proposta em torno do conceito descolonial.
Para o autor, ainda que o Brasil não seja mais colônia, ainda carrega a colonialidade
em suas relações, porque nossa cultura também foi reinventada em contato com a
colonização, e criada por colonizadores e colonizados. A partir desta primeira
aproximação com o autor, interessa-me refletir sobre o corpo que carrega em si
aspectos coloniais adquiridos pelo seu contexto e repensar nosso corpo em estado
cotidiano a partir deste olhar, para que possa considerar ou não o processo artístico
proposto pelo Eu-Outro NPC como um procedimento que pode revelar os aspectos
coloniais embutidos em nós.
Com base nas noções como corpo atenso e corpo cor-primária
criados por Juliano Casimiro, estabelecerei um debate com os conceitos de Foucault
(1987) e Mignolo (2005), buscando articular as proposições de cênico, corpo
cotidiano, colonização e descolonialidade do corpo. Compreender o corpo

16
interligado à mente e vice-versa faz com que vejamos um corpo não mais
desprezível e irrelevante, ele agora é participativo e imprescindível.
Nossa vida é demarcada por diversos limites, que estão no espaço e
na vida, assim como na esfera social, política e econômica, entre os limites
habitáveis e inabitáveis, perceptíveis e imperceptíveis. Os limites aparecem como
fronteiras que delimitam e disciplinam o corpo, através da cultura, do Estado ou das
instituições. Os limites não são apenas o espaço de atuação ou do teatro, mas
também o espaço da vida em sociedade. Necessariamente a vida se desenrola em
redes mistas, onde proliferam forças e poderes. Há uma política de vida. Ela
determina fronteiras diferentes de vida (biopolítica) operados pelo Estado e suas
instituições ciência e educação, todos os sistemas ou dispositivos de normalização
(FOUCAULT, 1987).
Dessa forma, descobrir as possibilidades ou técnicas que podem
ajudar o corpo a extrapolar a colonização, faz com que conheçamos outro estado
talvez ainda desconhecido do corpo. Neste sentido, me propus a pensar os
processos pós-coloniais no ensino de teatro para jovens e crianças. Através de
minha experiência como docente, meus questionamentos como atriz e
pesquisadora, me instigam a debater como seria o papel do professor/diretor
conduzindo um corpo colonizado por um processo de descolonização ou de
descolonialidade. Para que serviria abrir caminhos aos alunos/atores que possam
revelar aspectos sobre as amarras de uma colonização?

17
1. A COLONIALIDADE DO CORPO

Este capítulo tem por objetivo levantar os principais conceitos que


serão abordados no trabalho. Neste momento a proposta é traçar um panorama
teórico sobre conceitos como cultura, poder, corpo e colonização, a fim de
estabelecer um diálogo com o leitor e proporcionar maior compreensão da
investigação e assim contribuir para quem possa interessar.
Nos subitens que seguem, abordarei inicialmente o conceito de
cultura proposto por Roy Wagner (2002), a fim de compreender de que modo o
corpo está imerso nela, como ela pode afetar o corpo e a sua influência sobre o
contexto em que o corpo está inserido. Depois, pretendo relacionar o conceito de
biopoder, proposto por Foucault (1987), à sua atuação sobre os corpos, buscando
traçar as influências prováveis e percebidas sobre a construção simbólica dos
corpos.
Posteriormente, relacionando as influências do biopoder e tendo
como objetivo o estudo dos corpos cotidianos e cênicos em processos pós-coloniais,
envolvendo descolonização e descolonialidade, refletirei sobre o processo de
colonização que, como veremos, não é somente econômico e político, mas também
envolve distintas etnias e processos de aculturação7, como apresentado por Bosi
(1992).
Como dito anteriormente, o objeto central desta pesquisa é o corpo.
É importante que se compreenda de que corpo que estou tratando para que se
possa vincular de forma clara com os demais pontos abordados. Para tal, nos
apoiaremos em Greiner e Katz (2005) e seu conceito de corpomídia, para construir a
proposta de um corpo colonizado.
As autoras auxiliam na compreensão das relações que o corpo
estabelece com o outro e de que modo interage com o meio. Para as autoras, o
corpo enquanto um corpomídia, seria (co)participativo e (co)regulador do contexto

7
O termo aculturação, ainda que instigue uma série de debates, é abordado por Bosi (1992) como
um processo de sujeição social a depender do contato entre culturas distintas, onde a partir de
elementos externos uma cultura pode sofrer mudanças. O autor defende que aculturação é um
fenômeno de controle social de um povo sobre outro, como o processo de colonização.
18
em que se insere. Para prosseguir com a ideia de um corpo cotidiano como um
corpo também colonizado, cabe expor o entendimento de Ingold (2000) no que
concerne a discussão em torno das técnicas corporais e como corpo, técnica e
mundo se relacionam. Ou seja, a partir da noção de comrpomídia entender de que
modo nos relacionamos com o mundo e com participação mútua aprendemos
técnicas e nos relacionamos com o mundo.
Reitero que neste texto, trabalho sobre os processos pós-coloniais,
mas antes de dar prosseguimento à reflexão a respeito do corpo colonizado e de
seus processos de descolonização e/ou descolonialidade, é necessário delimitar o
que compreendo como colonização. Trarei a perspectiva de Bosi (1992) sobre ciclos
coloniais e o objetivo é mostrar como o processo colonial pode atuar sobre os
corpos, para que ao longo da pesquisa fique evidente como os corpos cotidianos
são também corpos colonizados. Segundo o autor,

[...] a colonização não pode ser tratada como uma simples corrente
migratória: ela e a resolução de carências e conflitos da matriz e uma
tentativa de retomar, sob novas condições, o domínio sobre a natureza e o
semelhante que tem acompanhado universalmente o chamado processo
civilizatório. (BOSI, 1992, p. 13).

O autor se preocupa em esclarecer que a colonização difere de


forma intensa dos processos migratórios. Quando se trata de um processo colonial,
o domínio e a imposição de novas condições políticas e econômicas dão espaço
para a conquista. A ideia de conquista é forte o suficiente para que a Europa
substituísse o termo por descobrimento durante o século XVI, evidenciando a
coação que os corpos e o meio sofreram. Para Bosi (1992), as relações de poder
das sociedades num ciclo de colonização são potencializadas dentro das esferas
política e econômica.

O traço grosso da dominação é inerente às diversas formas de colonizar e,


quase sempre, as sobre determina. Tomar conta de, sentido básico de colo,
importa não só em cuidar, mas também em mandar. Nem sempre, é
verdade, o colonizador se verá a si mesmo como a um simples
conquistador; então buscará passar aos descendentes a imagem do
descobridor e do povoador, títulos a que, enquanto pioneiro, faria jus.
(BOSI, 1992, p. 12).

19
As forças envolvidas estão além do ato de ocupar e explorar os
territórios e bens, “são também crentes que trouxeram nas arcas da memória e da
linguagem aqueles mortos que não devem morrer” (BOSI, 1992, p.15). A partir desta
ideia, se nota o quanto o processo de colonização está atrelado a um processo
cultural. O corpo está imerso em determinado contexto e, portanto, em determinada
cultura. Sendo assim, a corporeidade que está dentro do processo de colonização,
por sua vez, acaba por receber as influências do contexto instaurado, e passa a ser
colonizada pelo poder, reproduzindo “[...] sempre o mesmo, corpo e feições, e
obedece aqui a uma necessidade interna de percepção social” (BOSI, 1992, p. 54).

Uma certa ótica, que tende ao reducionismo, julga de modo estrito o vínculo
que as superestruturas mantêm com a esfera econômico-política. É preciso
lembrar, porém, que alguns traços formadores da cultura moderna (traços
mais evidentes a partir da Ilustração) conferem à ciência, às artes e à
filosofia um caráter de resistência, ou a possibilidade de resistência, às
pressões estruturais dominantes em cada contexto. (BOSI, 1992, p. 17).

Nesse sentido, e em diálogo com Foucault (1987), como se verá


adiante, a resistência está ligada ao poder, o ato de resistir mostra outra forma de
reagir a determinado contexto ou força, seja econômica, política ou culturalmente.

1.1. CULTURA, BIOPODER E CORPO

Minha proposta é dissertar sobre a perspectiva de um corpo


simbolicamente construído, pois, além do caráter biológico, a cultura afeta
intensamente sua construção simbólica. Entretanto, se trata também de um aspecto
colonizador, ou seja: a cultura constrói o corpo no qual está nela inserido. Para dar
inicio à discussão proposta e tendo em vista que o uso da palavra cultura está
sempre transformação e carrega múltiplas definições, esclareço antes de tudo o
modo como "cultura" está compreendida neste trabalho.
Roy Wagner (2002) propõe pensarmos a cultura como invenção.
Para ele, o termo se aplica tanto como mediação quanto como criatividade. As
experiências culturais são mediadas pelo pensamento, que é construído em
conjunto com as experiências anteriormente vividas. A compreensão de mundo

20
ocorre por meio de uma cultura, da qual o sujeito não pode se desprender. No
entanto, quando há uma relação entre sujeitos de culturas distintas, para que
possam interagir, cada um deve atentar-se para a sua própria cultura e mediá-la
para que consiga compreender a cultura do outro. Isto é, é necessário encontrar
símbolos na sua própria cultura que tragam a equivalência do que procura entender
sobre a cultura do outro. Para que isso ocorra, Wagner aponta que a criatividade
precisa atuar como mecanismo para compreensão e comunicação, embora estes
conceitos sejam variáveis a cada cultura. A criatividade, portanto, auxilia no
processo de analogia, criando paralelos correspondentes entre os símbolos de uma
cultura para os símbolos da cultura do outro.
De acordo com Wagner, o termo “cultura também reduz as ações e
propósitos humanos ao nível de significância mais básico, a fim de examiná-lo em
termos universais para tentar compreendê-los” (2002, p.29). A criatividade e
mediação atuam como facilitadoras para a leitura de outras culturas. Entender uma
cultura específica, ou mesmo explicá-la, requer mediação, isto é, acessar a minha e
encontrar possíveis co-relações com a do outro. A mediação é um processo
individual ou coletivo de criatividade que permite o entendimento do outro, ou dos
outros, e viabiliza a alteridade. Entretanto, a mediação somente é possível através
dos símbolos reconhecidos dentro de seus contextos.
Quando trata sobre mediação cultural, Wagner (2002) entende por
símbolos o sentido conotativo e metafórico que cada cultura estabelece para a
realidade. Sobre a compreensão de cultura, o autor apresenta o discurso da
simbolização. Os símbolos se relacionam entre si, o que significa que o
entendimento de uma cultura se dá através de analogias feitas por alguém de outra
cultura, a mediação entre culturas ocorre por meio de alegorias possíveis em
determinados contextos. Para Wagner (2002), os símbolos podem ser interpretados
somente quando contextualizados. Caso fossem retirados de seu contexto, isto é,
do espaço onde é permitido que se crie infinitas combinações, a compreensão seria
aleatória e desconexa, perdendo a alteridade das relações e o sentido para quem
tenta compreender. A implicação desse fato para a cultura é que, para o autor, a
cultura é a todo tempo inventada, a combinação dos símbolos discorre de uma
mediação criativa e contextualizada.

21
Portanto, os símbolos quando descontextualizados não carregam
sentido, e é na sua relação com seus contextos que podemos interpretá-los. Nossa
necessidade de entendê-los se dá porque precisamos interagir com o outro, e para
isso temos que intuir que compreendemos e estamos em diálogo, caso contrário não
estabeleceríamos estado intencional de comunicação. Nesse aspecto, os símbolos
possuem também, segundo Wagner (2002), um papel fundamental na interpretação
das culturas. Assim, por símbolos correspondentes, o autor entende as metáforas
que encontramos em nossa cultura para compreender os símbolos e as metáforas
de outra cultura.

A crença do pesquisador de que a nova situação com a qual está lidando é


uma entidade concreta – uma ‘coisa’ que tem regra, ‘funciona’ de uma certa
maneira e pode ser aprendida – o ajudará e encorajará em seus esforços
para enfrentá-la. Mas num sentido não está aprendendo a cultura do modo
como faria uma criança, pois aborda a situação já como um adulto que
efetivamente internalizou sua própria cultura. Seus esforços para
compreender aqueles que está estudando, para tornar essas pessoas e
suas condutas plenas de significado e para comunicar esse conhecimento a
outros irão brotar de suas habilidades para produzir significado no âmbito de
sua própria cultura [...]. (WAGNER, 2002, p.36).

Wagner aponta para a construção simbólica do indivíduo em relação


ao coletivo, assim como para a invenção e transformação cultural. Para o autor,
essa construção permite a mediação entre culturas, seja para compreender ou
comunicar a outra ou a própria. Por outro lado, “é incidental questionar se as
culturas existem. Elas existem em razão do fato de terem sido inventadas e em
razão da efetividade dessa invenção” (WAGNER, 2002, p.39). O processo de
mediação de uma cultura em relação à outra se faz importante na medida em que a
troca de experiências e comunicação se faz necessária.
Pode-se entender a invenção cultural como uma dinâmica de
formação pessoal, coletiva e transpessoal, baseada em metáforas, associações e
extensões simbólicas, que atuam na leitura dos símbolos da própria cultura ou de
outra. Nesse processo, a cultura acaba por objetificar a realidade por meio de suas
convenções, assim como, segundo o autor, ela inventa convenções a partir do
simbolizar.
A cultura enquanto ideia é uma invenção, assim como em sua
existência as culturas são, segundo Wagner, inventadas dentro de seus contextos.
22
Para o autor, a cultura deve ser pensada como elementos heterogêneos que servem
para a improvisação inventiva dela mesma e como base para uma cultura
imaginativa. O autor aponta como reflexo histórico e normativo decorrente de um
coletivo contextualizado: “[...] a ‘cultura’ no sentido mais restrito consiste em um
precedente histórico e normativo para a cultura como um todo: ela encarna um ideal
de refinamento humano” (WAGNER, 2002, p.81). A cultura pensada como ideal se
associa ao contexto que a inventa, assim como o corpo enquanto caráter simbólico.
A proposta de Wagner (2002) aponta para uma construção simbólica
do indivíduo em relação ao coletivo, mas se tratamos o indivíduo como corpo, o que
nos interessa é saber como podemos aplicar as mesmas noções de cultura sobre o
corpo simbólico, para compreender os possíveis processos de descolonização e
descolonialidade do corpo cotidiano.
Nesse sentido, com base em Wagner (2002) e na relação entre
corpo e cultura, sustento a ideia de que nosso corpo não pode ser pensado
descontextualizado de sua cultura. Somos socialmente construídos e o corpo não
existe separado de símbolos e significados culturais nos quais está inserido e aos
quais ajuda a construir e transformar.
No entanto, a construção simbólica de uma cultura não é individual,
precisa dos indivíduos enquanto coletivo. O mesmo se aplica à disciplina dos corpos
pela prática do biopoder (FOUCAULT, 1987). Pensar a cultura em relação ao corpo
inclui a ideia de entraves culturais que este corpo pode sofrer em seu
desenvolvimento.
Por essa razão, trago o debate sobre biopoder (FOUCAULT, 1987),
entendo que a invenção da cultura e o biopoder influenciam e atuam sobre nossos
corpos. Por biopoder, compreendo, a partir de Foucault (1987), como a prática do
poder aplicada à vida dos indivíduos, enquanto coletivo, para o controle da espécie.
Trata-se de um conceito aplicado ao coletivo para designar o controle naquilo que os
indivíduos têm em comum, a vida. Assim, os objetos de saber são criados a fim de
servir o poder, controlar os corpos.O biopoder atua através da força disciplinar,
controlando e formatando os corpos, e a resistência, embora por oposição, não
exclui o corpo das consequências das relações de poder. As redes sociais
apresentam técnicas que, dentro dos processos disciplinares, tornam o corpo mais

23
útil conforme se torna mais obediente e vice-versa. Entre as discussões
desenvolvidas nas artes cênicas, encontramos Artaud (s.d.) que, em paralelo à
proposta de Foucault sobre um corpo dócil e disciplinado, propõe o “corpo sem
órgãos”, corpo que não está amarrado pelos órgãos impostos pelo biopoder.
Foucault (1987) escreve sobre poder e biopoder a partir de um
contexto europeu específico, o que faz com que, como aprendemos de Wagner
(2002), o autor francês não possa estar livre dos símbolos presentes em sua cultura.
Entretanto, Foucault apresenta uma teoria que acredita ser válida para todas as
sociedades. Desse modo, seria possível se distanciar desta teoria que já tem
influenciado a tantos teóricos? E nós que ainda sentimos os resquícios de uma
colonização europeia? Ainda que a influência européia não nos faça europeus, e
evidencie muitas vezes certos abismos que nos separam, ainda sim nos
transformamos ao tentar nos aproximar de nossos colonizadores. E não apenas
devido ao tempo, mas também pela colonização e exploração assimétrica e
permanente em nosso território.
Desta forma, as teorias de Foucalt serão úteis à esta pesquisa,
embora eurocentradas como a minha própria concepção. Parece-me que não
podemos nos desvencilhar tão facilmente de um olhar que contribuiu para sustentar
muitos de nossos discursos. No entanto, espero conseguir latino-americanizar
algumas de suas propostas ao dialogar com conceitos propostos pelos autores
Mignolo (2005) e Quijano (2000) que, apesar de serem latino-americanos, trabalham
a partir dos Estados Unidos.
Então, segundo Foucault (1987), o poder é construído
historicamente como prática, não como objeto, e se instaura nas redes de relações e
nas microrrelações das pessoas, e não exclusivamente nas do Estado com os
indivíduos. De acordo com o autor, o poder atravessa toda a sociedade e é
onipresente nas relações do mundo. Sua rede atua para além do Estado,
comunidade, família ou tecnologia e está em toda parte, porque provém de todos os
lugares. Ele engloba tudo e todos, está presente nas relações estabelecidas em
diferentes lugares, mesmo quando há resistência.
Compreende-se que o Estado é a superestrutura em relação a uma
série de pequenas estruturas que o integram. Isso significa dizer que ele atua de

24
modo macro nas relações, verticalizando sua prática. A partir do debate foucaultiano
considero essas pequenas estruturas como uma série de redes de poder, que estão
interligadas dentro do corpo social, que, por sua vez, o autor compreende como a
rede de relacionamentos sociais, um coletivo que pode ou não pertencer a
instituições, mas que juntos representam uma sociedade. As práticas do poder, que
segundo o autor operam em qualquer sociedade, amarrando, impondo limites e
obrigações ao corpo, funcionam através de mecanismos e dispositivos normativos.
Um dos mecanismos do biopoder, de acordo com Foucalt, é a disciplina dos corpos.
Para ele:

O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o


desarticula e o recompõe. Uma “anatomia política”, que é também
igualmente uma “mecânica do poder”, está nascendo; ela define como se
pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que
façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas,
segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim
corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. A disciplina aumenta as
forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas
mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela
dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma “aptidão”, uma
“capacidade” que ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a
potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição
estrita. Se a exploração econômica separa a força e o produto do trabalho,
digamos que a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre
uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada. (FOUCAULT, 1987,
p. 164).

A disciplina age como tecnologia do biopoder, atua sobre o indivíduo


diretamente, dominando-o, controlando suas aptidões e domesticando os corpos, ela
corrige e hierarquiza de acordo com suas necessidades. Para o biopoder interessa
um corpo dócil, que seja flexível à disciplina, que responda à sua domesticação sem
resistência e que pode ser utilizado, aperfeiçoado e transformado por ela. O
biopoder é o elemento regulamentador da multiplicidade biológica e o disciplinar é o
elemento regulamentador do corpo individual, atuando ambos sobre os corpos. Por
um lado o biopoder atravessa instituições e órgãos do Estado, atua sobre o corpo
coletivo, por outro a disciplina atua no âmbito individual punindo e vigiando para o
adestramento. Ela não é mecanismo exclusivo do Estado, sua atuação transpassa
as instituições. O biopoder, segundo Foucault (1987) traz uma série de mecanismos

25
que, através das características biológicas da espécie humana, cria estratégias de
poder para o controle das massas.
Os prejuízos da força do disciplinar sobre a formação do indivíduo e
da sociedade são difíceis de serem percebidos, o que me leva a refletir se o corpo
repleto de automatismos pode ter autonomia em meio há tantas amarras. Quantas
possibilidades ainda não descobrimos pelo nosso corpo? Será que conhecemos
nosso corpo se estamos a sofrer com amarras?
Mas como o corpo age e reage a essas relações de poder? Uma das
perspectivas teóricas que nos permite compreender esse fato é a proposição de
corpomídia de Greiner e Katz (2005), na qual podemos compreender como o
processo disciplinar é assimilado pelo indivíduo. Pensando historicamente as
questões de poder, biopoder e nossa incursão pelo corpomídia em uma sociedade
como a brasileira, em que o contexto da colonização é explícito, precisamos
compreender como somos afetados pelas amarras e imposições da colonização,
reconhecê-las e talvez desatar algumas delas, possibilitando uma identidade própria,
o contrário do que nos sujeita à colonização.

1.2. CORPOMÍDIA

Em Greiner (2005), encontro a etimologia para o substantivo corpo:


“corpo vem do latim corpus e corporis, que são da mesma família de corpulência e
incorporar” (p. 17). Esse primeiro aspecto se refere à materialidade do corpo. No
dicionário indo-iraniano o termo tem procedência em krp, que sugere "forma" e a
origem grega é soma e demas, sendo a primeira denominação para corpo morto e a
segunda para corpo vivo. Discutir as origens do substantivo é importante para
compreendermos como hoje ele é percebido e construído.
A partir da sua etimologia e de sua aplicação no campo das
pesquisas histórico-filosóficas, nota-se que há determinada convergência para a
concepção de um corpo cindido, já que, segundo Greiner, durante muito tempo é
aquela usada para compreender o substantivo. O corpo cindido marca a separação
da mente de sua materialidade e do corpo de seu contexto. Os prejuízos desse tipo
de cisão deslocam o corpo de sua cultura e de seu modo de atuar no mundo. Nesse
26
sentido, deve ser pensado a partir da interdependência entre suas dimensões
biológica, social e cultural. Nas palavras de Greiner (2005, p. 37), “[...] a relação
entre o corpo biológico e o corpo cultural é um aspecto para começarmos a mapear
o corpo como um sistema e não mais como um instrumento ou produto”.
Se o corpo é um sistema e não um instrumento ou produto, seu
modo de operar acaba por refletir e modificar o outro e o seu meio. Trata-se de um
sistema que, ao interagir com outros sistemas, gera mudanças em si e no outro.
Assim, o corpo afeta e é afetado pelo outro e o mesmo ocorre com o meio em que
está inserido, o individuo permanece em interação com o seu contexto
(co)regulando-o. Katz (2010), a partir da concepção de Sebeok, aborda o contexto
na sua compreensão de corpo, em que contexto é o reconhecimento, no qual o
organismo percebe e faz uso das condições e modos de lidar com as informações.

O contexto não é um recipiente povoado por coisas que o conformam; o


contexto está sempre mudando porque o conjunto de coisas que o forma
também se transforma. As atualizações são contínuas, articulatórias e
descentradas, uma vez que o trânsito permanente instabiliza as noções de
dentro e fora. Assim, o contexto e tudo que o forma passam a ser lidos
como estados transitórios em um fluxo permanente de mudanças. (KATZ,
2010, p. 124).

Entender que o ambiente movimenta o corpo, conduz à suposição


de que o corpo, por sua vez, movimenta/regula o ambiente. Para Greiner e Katz
(2005) essa bidirecionalidade gera um processo de co-evolução, em que toda
informação não chega a um corpo sem sofrer alterações. Todas as vivências estão
interiorizadas e, portanto, são como que reutilizadas, dentro de novos contextos
afetivo-cognitivos.

O ambiente no qual uma informação é produzida, transmitida e interpretada,


nunca é estático, mas uma espécie de contexto-sensitivo – por isso, as
trocas entre os corpos e ambientes são possíveis, e o corpo, que está
sempre transitando por vários ambientes/contextos, vai trocando
informações que tanto o modificam como modificam os ambientes.
Evidentemente, há um a taxa de preservação que garante a unidade e a
sobrevivência de cada ser vivo, nesse processo de co-transformações que
não estanca entre corpo e ambiente. (GREINER, 2010, p. 123).

27
As experiências anteriores de um corpo, portanto, fazem parte dele e
compõem uma bagagem de significação que transita em um fluxo contínuo dentro
da corporeidade. Desta forma, cada corpo possui um teor próprio e, por isso, recebe
de maneira específica as influências externas. Assim, percebe-se um corpo
(co)construtor com o ambiente das experiências e interações entre o sujeito e o
mundo, bem como de conhecimentos e de significações afetivo-cognitivas.
Nesse sentido, as relações de biopoder de que fala Foucault seriam
também (co)construídas pelos sujeitos. Ao passo que o biopoder disciplina os
corpos, ele enquanto prática é também resultado do sujeito. Entretanto, o poder
como prática e força atua de forma mais presente e eficaz sobre o sujeito do que o
sujeito sobre o poder. Um sujeito sozinho não representa a força do coletivo, por
isso a relação é díspar. Se os corpos resultam de suas interações com outros corpos
e com o meio, eles afetam as práticas de poder às quais estão submetidos. Ainda
que afetados pelo meio, também o (co)regulam. Por esse ângulo, os corpos
(co)regulam a colonização, logo, podem encontrar caminhos que enfatizem ou
minimizem tal influência.
Para Greiner e Katz (2005) a noção de contexto abrange tudo que
transita em um espaço-tempo, que afeta e é afetado por tudo que o perpassa,
diferente de Wagner (2002), que define o termo como um espaço sociocultural
delimitado. De acordo com as autoras, o corpomídia é o corpo que se movimenta,
digere a informação e comunica, está em constante (co)regulação com o espaço,
com o outro e consigo mesmo através de suas vivências interiorizadas. Sua
importância para as discussões desta dissertação está no fato de que possamos
compreender como o corpo é (co)regulado pelo seu contexto e como, em vista
disso, sofre com os desdobramentos da colonização.
Se pensarmos as noções de cultura de Wagner (2002), biopoder em
Foucault (1987) e de corpomídia em Greiner e Katz (2005), podemos sugerir que o
corpo é recondicionado e se recondiciona a todo momento, logo corrobora para que
o mesmo transcorra em seu contexto, (co)regulando a cultura e o biopoder.

O corpo não é um meio por onde a informação simplesmente passa, pois


toda informação que chega entra em negociação com as que já estão. O
corpo é o resultado desses cruzamentos, e não um lugar onde as
informações são apenas abrigadas. A mídia a qual o corpo-mídia se refere
28
diz respeito ao processo evolutivo de selecionar informações que vão
constituindo o corpo. A informação se transmite em processo de
contaminação. (GREINER; KATZ, 2005, p.131).

Katz apresenta outro aspecto fundamental para a pesquisa no que


se refere à compreensão do corpo, ela recorda que “os gregos falavam da vida com
duas palavras distintas: zoé (a vida natural que os homens compartilham com tudo
que é vivo) e bíos (a vida socialmente formalizada de um indivíduo ou um grupo)”
(KATZ, 2010, p.130, grifo da autora). Tanto a vida como o corpo aparecem na
análise etimológica como oposições que podem se complementar, nomeá-los por
duas perspectivas faz com que a compreensão aponte a discussão para um corpo
cindido, e aqui acredita-se que um extremo está diretamente relacionado ao outro,
sendo ambos interdependentes. Enquanto zoé (vida nua) foi destinado ao espaço
político, onde os corpos são disciplinados, para Foucault (1987) por instituições,
para Greiner e Katz (2005), por nós, enquanto agentes das instituições. Bíos, então,
seria a forma desencadeada pelo poder. “Juntas, zoé e bíos desenham a biopolítica
da qual somos agora corpos-mídia” (KATZ, 2010, p. 132, grifo da autora). O corpo é
então ajustado pelo meio assim como o ajusta, modificando e sendo modificado.

Todo corpo é sempre um corpo-mídia, isto é, um estado transitório das


trocas que faz com os ambientes. Assim, a vida nua, essa força produtora
das formas de vida que podem surgir, age nesse trânsito de trocas que
promove mestiçagens entre natureza e cultura. (KATZ, 2010, p. 132).

1.3 . CORPO COLONIZADO E TÉCNICA

Assim como Greiner e Katz (2005), Ingold (2000) compreende o


corpo como corpo-em-interação, seja com outros organismos ou com o meio. É
importante ressaltar que, para Ingold (2000), a experiência se dá através de formas
multissenssoriais, existindo por meio da disciplina que pode ser codificada pela
experiência sensorial e social de cada organismo.

A antropologia dos sentidos [...] não está preocupada com as variedades da


experiência sensorial, gerada no curso da participação corporal e da prática
29
das pessoas com o mundo a seu redor, mas como que a experiência é
ordenada e feita significativa dentro de conceitos e categorias de suas
8
culturas. (INGOLD , 2000, p.283) .

O autor ainda compreende, como Wagner (2002), a cultura como


fator de influência para a leitura do mundo e através da percepção que construímos
com nosso organismo. Podemos ler e interpretar o mundo ao nosso redor.
Entretanto, Ingold afirma que

[...] as convenções verbais de uma sociedade não vêm preconizadas ou


simplesmente superimpostas sobre a experiência de seus membros [...].
Mas são forjadas e reforçadas continuamente no decorrer dos esforços das
pessoas de se fazer entender [...]. Eles fazem isso estabelecendo
comparações entre as suas próprias práticas e experiências sensoriais e
aquelas atribuíveis aos seus colegas [...]. Em vez de abandonar a
experiência vivida pelos indivíduos pela consciência coletiva sensorial da
sociedade, é certamente este entrelaçamento criativo da experiência no
discurso, e as maneiras em que essas construções discursivas resultantes,
por sua vez, afetam as percepções das pessoas sobre o mundo ao seu
redor, ao que deveria dirigir a sua atenção sobretudo à uma antropologia
9
dos sentidos. (INGOLD , 2000, p. 285) .

Ou seja, o que diferencia as proposições de Ingold e de Wagner está


na forma de observar a mediação. Ingold aponta para uma mediação sensorial que
decorre da experiência e da prática entre as pessoas que tentam se fazer entender,
afetando a compreensão e a comunicação entre elas, enquanto Wagner preocupa-
se com a compreensão das metáforas, a partir de uma perspectiva cultural,
alimentadas por comparações daqueles que nem sempre compartilham uma mesma
cultura. As implicações dessa diferença para a presente discussão contribuem no
enfoque que apresento, pois, dessa forma, o corpo cotidiano é (co)regulado pelos
símbolos que estão a seu redor e, também, pela prática dos corpos e dos
organismos em seu contexto.
Ainda sobre a influência da cultura sobre o corpo, trago a clássica
reflexão de Marcel Mauss, que foi pioneiro neste assunto. Seu enfoque está nas
técnicas possibilitadas e aprendidas pelo corpo e como elas são distintas nas
variadas culturas analisadas por ele sobre a primogênita relação que o homem

8
Tradução minha.
9
Tradução minha.
30
estabelece com seu corpo. De acordo com ele, “[...] o primeiro e mais natural objeto
técnico, e ao mesmo tempo meio técnico do homem é seu corpo. [...] Antes das
técnicas com instrumentos, há o conjunto de técnicas corporais” (MAUSS, 1974, p.
407).
O corpo é então nosso instrumento, com o qual existiremos, e que
nos permite desenvolver diversas técnicas, sejam elas necessidades naturais ou
culturais. “A técnica é um ato tradicional eficaz (e vejam que, nisto, não difere do ato
mágico, religioso, simbólico). É preciso que seja tradicional e eficaz. Não há técnica
e tampouco transmissão se não há tradição” (MAUSS, 1974, p.217). Para o autor, a
técnica não está somente ligada ao uso eficaz do corpo, mas intimamente
relacionada à sua aplicabilidade contínua e à herança passada a outros corpos. Ela
não precisa ser necessariamente rígida, mas funciona em torno de certa estrutura,
que pode ser alargada de acordo com o tempo, espaço e indivíduo.
O objetivo, nesse momento, não é realizar uma abordagem sobre o
modo como a transmissão de técnicas procede e é processada em cada individuo,
entretanto queremos revisitar Mauss no que se refere à tradição antropológica do
estudo sobre o corpo. Conhecemos hoje culturas que realizam o que é considerado
"natural" de maneiras distintas. As técnicas seriam apreendidas em cada contexto,
como por exemplo (também analisado pelo autor) o ato de dormir, algumas culturas
dormem em redes, outras têm o hábito de deitar em esteiras ou no chão, todas elas
dormem, mas empregando técnicas distintas.
Por essa razão, podemos concluir que as técnicas provêm de de
culturas. Mauss afirma que “Tudo em nós todos é imposto” (1974, p. 408), inclusive
as nossas técnicas. Um paralelo mais próximo é que possuímos hoje é uma visão
ocidentalizada a respeito do corpo com a colonização da América Latina. Mauss não
considera o corpo em interação, revendo o papel do corpo na imposição das
técnicas. Nesse sentido, é uma forma distinta de compreensão, que se contrapõe à
idéia de um corpomídia (GREINER; KATZ, 2005). Para essas autoras, como sujeitos
em interação com o meio, os corpos também seriam (co)participantes na construção
das técnicas impostas.
Ingold (2000) demonstra que as habilidades humanas não são
herdadas somente pela biologia, nossas habilidades estão fortemente desenvolvidas

31
por nossas relações com o outro e com o ambiente. As habilidades apreendidas ao
longo de nossa vida não são incorporadas por inculturação, mas pelas práticas que
são aprendidas e compartilhadas durante a vida, sejam específicas de domínio ou
relativas ao contexto (habilidades que são adquiridas pelo corpo, como aprender a
tocar um instrumento musical, por exemplo). Assim como para Greiner e Katz
(2005), é por meio de interação, isto é, das relações corpo-corpo que construímos o
conhecimento. “A habilidade [...] não é uma propriedade do corpo humano individual
como entidade biofísica [...], mas de todo o campo de relações constituídas pela
presença de um organismo-persona [...] num ambiente ricamente estruturado”
(INGOLD, 2000, p. 353)10. Ou seja, quando pensamos em biopoder e nas
proposições de Foucault desde essa afirmação de Ingold, compreendemos que a
técnica é apreendida pelo coletivo e atua como medida disciplinar dos corpos,
embora não funcione necessariamente como docilização, pois este aspecto não está
explícito na obra de Ingold. Vale ressaltar que o autor utiliza o termo organismo ao
invés de utilizar a palavra corpo.
Pode-se observar que o autor coloca o organismo em relação ao
meio como uma constante interação. Um e outro são ajustados constantemente, de
modo dinâmico e mútuo. Logo, os processos de (co)regulação entre meio-sujeito e
sujeito-meio permitem a capacitação dos corpos, possibilitando que este processo
nunca seja findado.; trata-se de um percurso que está sempre em movimento e
nunca acabado.

[...] a base da habilidade reside na condição irredutível de inserção de um


praticante (o termo original é practitioner, integrando um sentido de
aplicação ativa da cultura de um membro do referido grupo, um leigo sábio)
num ambiente [...] a prática hábil não é a aplicação de uma força mecânica
para objetos externos, mas requer das qualidades de cuidados, juízo e
destreza [...] isso implica que o que seja que os praticantes [practitioners]
façam às coisas é incorporado em uma participação atenta e perspicaz com
11
elas. (INGOLD, 2000, p. 353) .

O autor ainda exemplifica:

10
Tradução minha.
11
Tradução minha.
32
Considerando como os caçadores noviços aprendem seu ofício, existem
duas coisas que devem ser ditas imediatamente. Em primeiro lugar, não
existe um código explícito de procedimentos que especifique os movimentos
exatos que devem ser executados em qualquer tipo de circunstância
determinada: de fato, as habilidades práticas deste tipo parecem ser
fundamentalmente resistentes à codificação em termos de qualquer sistema
formal de regras e representações [...] em segundo lugar, não é possível na
prática separar a esfera da relação do noviço com outras pessoas, da sua
relação com o meio ambiente não-humano. O caçador noviço aprende
acompanhando os caçadores mais experientes nos bosques. Enquanto se
move, ele é instruído sobre o que procurar e chamar a atenção para sinais
sutis que de outra forma não poderia notar: em outras palavras, é guiado no
desenvolvimento de uma consciência perceptiva sofisticada das
propriedades do ambiente que o rodeia e das possibilidades de ação que
elas oferecem. Por exemplo, aprende a registrar as qualidades da textura
de uma superfície que lhe permitem dizer, somente ao tocar a pegada de
um animal na neve, quanto tempo deixou e quão rápido se move. (INGOLD,
12
2000, p. 542)

Ou seja, o aprendizado se dá nas relações eu-outro. O outro é aqui


cogitado como um ser humano, um animal ou um meio. Na relação do corpomídia
(GREINER; KATZ, 2005), assim como na compreensão fenomenológica de Ingold
(2000), os autores entendem que nossas habilidades e os contextos nos quais
vivemos são frutos de uma (co)relação extremamente ativa. Portanto, pertencemos
aos contextos, da mesma forma que o construímos somos construídos por eles.

Efetivamente a prática e a inovação [...] ou o sentido prático poderiam se


pensar como um modo primitivo da relação com o meio, o que permitiria
mostrar aos caçadores – coletores como sujeitos ativos que participam do e
no meio, em uma crítica das propostas funcional-economicistas. Porém, os
problemas começam quando trata a estabilização e a estandardização das
técnicas. (INGOLD, 2000, p. 357)13.

Pode-se compreender, então, que nossa ação, como propõe Ingold


sobre a criação e regulação da cultura e das redes de poder que a integram, é
relativa. Retomando Foucault (1987), o corpo responde ao poder. Ingold (2000), ao
tratar sobre tecnologia, analisa a aplicação do termo, mostrando que seu significado
surge a partir da palavra grega tekhné, a qual remete a certa arte ou habilidade,
associada ao artesão, enquanto logos pode ser interpretada como arte ou habilidade
da razão. Ainda que o autor acredite que a compreensão do termo foi hoje

12
Tradução minha.
13
Tradução minha.
33
descaracterizada, o meu foco em sua discussão é esclarecer a compreensão de
Ingold (2000) sobre o termo.
O autor considera tecnologia como conhecimentos de práticas na
relação com o mundo, pessoas e objetos e não como uma racionalização do corpo.
Portanto, concebe o corpo-em-contexto, como anteriormente citado, mas ele
enxerga um pouco além, o corpo não está separado das habilidades, como também
seus processos técnicos estão presentes em cada contexto. Outro aspecto
demonstrado por Ingold está relacionado ao entendimento da técnica e sua relação
intrínseca às experiências culturais: o sujeito possui a técnica na corporeidade. Tal
associação evidencia a tríade existente em sua teoria pessoa-técnica-mundo, onde
cada elemento participa no processo de (co)regulação afetando uns aos outros.
Técnica e experiências caminham lado a lado no processo de
(co)regulação dos corpos. As técnicas, para Ingold, são técnicas corporais,
conduzem as práticas sociais e atuam no processo de negociação com o mundo. As
técnicas estão relacionadas à interação com o outro, com o meio, com as coisas e
objetos, permitindo a sua reconfiguração. Logo, está atrelada à cultura muito mais
do que à biologia. A técnica é uma forma de manifestação na qual o sujeito alia seu
conhecimento ao corpo, expressando com e para seu contexto. Dessa forma, suas
habilidades permitem diálogos com o mundo. Para Ingold (2000), portanto, a técnica
é atributo das relações dos sujeitos com outros corpos e com seu meio. A técnica é
um meio de interação entre sujeito e mundo.
As relações entre os processos de colonização e a técnica, e a
constituição das pessoas e das culturas, podem ser observadas nas relações sociais
e podem implicar em automatismos que nos tiram a percepção sobre nós mesmos.
Ou seja, nossa percepção sobre nós é afetada pelos processos de colonização e
técnica sustentados pelas prática do poder. Desta forma, pode fortalecer a
importância em propor estímulos que traga nosso olhar e nossa autopercepção de
volta para nosso corpo.
A partir desta perspectiva, corpo colonizado é um corpo que foi
forçosamente disciplinado, que aprendeu técnicas através de sua sujeição aos
automatismos e às amarras cotidianas.

34
Tendo em vista que o corpo é construído pelo meio e ao mesmo
tempo o constrói, não poderia se movimentar de forma impune e intacto em relação
ao seu contexto, como apontado anteriormente. Por tal razão, o processo de
colonização impõe padrões sociais, que são por sua vez reguladores e regulados
pelos corpos.
Assim, o corpo cotidiano pode ser um corpo colonizado? Ao
aproximar as teorias sobre colonização e biopoder poderia tecer um paralelo entre
ambas, propondo o biopoder como formatador de corpos que, atua sobre eles,
assim como o processo de colonização impõe sua cultura. E como o corpo responde
aos processos culturais, ele também é resultado do poder.
Considerando que a colonização é um processo forçado por um
estrangeiro e que biopoder é uma prática que atua por mecanismos através de
redes que permeiam todos os espaços, aproximo os dois aspectos nas instâncias
que dizem respeito à imposição que atuam a disciplinar os corpos, deslocando o
corpo do contexto histórico colonial, acerca do biopoder no que se refere à forçada
disciplina formatadora de indivíduos, sendo estrangeira ou não.
Nos próximos capítulos serão apresentadas as discussões na
direção das possibilidades múltiplas de se pensar a colonização. Ali, encontro um
ponto de distinção entre os teóricos do teatro: Barba (2012) trabalha sobre um corpo
cotidiano disciplinado pelo biopoder, historicamente deslocado espacial e
temporalmente da colonização. No entanto, se nos aproximarmos da ideia de
colonização do corpo não apenas espaço-temporalmente construída, podemos
refletir sobre o aspecto de um corpo colonizado pelo seu meio, onde sofre
imposições e precisa se adequar a todo momento.
Por outro lado, o corpo que participa dos processos artísticos do Eu-
Outro NPC importou forçadamente a colonização, localizada em tempo e espaço
resultantes da colonização, sofreu a atuação das disciplinas de seu contexto, assim
como apreendeu de modo imposto a disciplina trazida nos corpos dos colonizadores.
Pelo que foi desenvolvido até o momento poderíamos pensar em um corpo
duplamente colonizado. Isto porque Barba vive e trabalha em um contexto europeu,
enquanto o Eu-Outro NPC desenvolve seus trabalhos em cidades do interior
paulista. Talvez, a diferença se dê nos processos de colonização, enquanto o corpo

35
que evidenciamos a partir de Barba (2012) é colonizado pelo poder pertencente ao
contexto, o do Eu-Outro NPC é colonizado pelo biopoder e pelo espaço-tempo de
uma invasão, carregando traços provenientes de uma colonialidade. Em conclusão,
o corpo, como (co)regulador de seu meio, foi afetado durante a colonização, mas
também afetou os processos colonizatórios e disciplinares.

36
2. UMA POSSÍVEL DESCOLONIZAÇÃO DO CORPO

Este capítulo trata de uma análise a ser realizada sobre o corpo


cênico proposto por Barba (2012) a partir do prisma pós-colonial (QUIJANO, 2005).
Apoiada na noção de um corpo colonizado14, neste tópico irei discutir sobre o corpo
em estado de representação intencional, como um corpo descolonizado (QUIJANO,
2000). Essa empreitada me auxilia a responder à questão norteadora do trabalho, já
que Barba apresenta em seus livros processos de treinamentos e aspectos do
trabalho do ator que de algum modo estimulam o registro do corpo, para que rompa
em alguma medida com o estado cotidiano. Reflito a partir de Quijano (2000) sobre
como o processo artístico pode ser descolonizador do corpo.
Em primeira análise, a pesquisa do diretor teatral Eugênio Barba se
aproxima da investigação do sociólogo peruano Aníbal Quijano nas questões que
abordam descolonização (QUIJANO, 2000) e corpo cênico (BARBA, 2012).
Enquanto o sociólogo discute pontos relacionados às teorias pós-coloniais, no qual
aborda o processo de descolonização, o diretor italiano discorre sobre o corpo
cênico, que se distingue em suas funções e estados físicos de um corpo cotidiano.
Nesta e nas próximas etapas do trabalho, apontarei estéticas ou
métodos particulares e não proporei uma conclusão que possa e deva ser aplicada a
qualquer trabalho cênico. Pretendo debater baseada em processos específicos de
encenação. Neste sentido, o contexto teatral é de extrema relevância. A busca deste
capítulo envolve pontos interdisciplinares, ainda que a pesquisa desenvolvida tenha
como base as teorias pós-coloniais conduzidas por um debate com as artes cênicas,
aqui trago debates da sociologia e da antropologia para fortalecer a discussão em
pauta.

2.1. A CONSTRUÇÃO DO CORPO CÊNICO E A DECOLONIZAÇÃO DO CORPO


COTIDIANO

14
A proposição foi discutida no primeiro capítulo desta pesquisa, trata-se de uma articulação teórica
entre BOSI (2012), WAGNER (2002), FOUCAULT (1987), INGOLD (2011) E GREINER & KATZ
(2005).
37
A partir do discurso de Quijano (2000) apresento o debate sobre
descolonização, ponto profundamente tratado em seus estudos e fundamental para
minha busca na ideia de um corpo descolonizado. Quijano (2000; 2005) defende que
a colonização da América organizou um novo padrão de poder global, uma
racionalidade eurocêntrica, que começava após ao início do capitalismo, em que a
divisão de trabalho, a ideia de raças e o controle econômico estão voltados aos
interesses europeus.

A América constitui-se como o primeiro espaço/tempo de um padrão de


poder de vocação mundial e, desse modo e por isso, como a primeira id-
entidade da modernidade. Dois processos históricos convergiram e se
associaram na produção do referido espaço/tempo e estabeleceram-se
como os dois eixos fundamentais do novo padrão de poder. Por um lado, a
codificação das diferenças entre conquistadores e conquistados na idéia de
raça, ou seja, uma supostamente distinta estrutura biológica que situava a
uns em situação natural de inferioridade em relação a outros. Essa idéia foi
assumida pelos conquistadores como o principal elemento constitutivo,
fundacional, das relações de dominação que a conquista exigia. Nessas
bases, consequentemente, foi classificada a população da América, e mais
tarde do mundo, nesse novo padrão de poder. Por outro lado, a articulação
de todas as formas históricas de controle do trabalho, de seus recursos e de
seus produtos, em torno do capital e do mercado mundial. (QUIJANO, 2005,
p.117, grifo do autor).

O processo de colonização que sucedeu-se na América poderia ter


sido uma segunda colonização dos corpos, a primeira provida diretamente do
processo colonial e a segunda pela disciplina (FOUCAULT, 1987). Ou seja, o corpo
que é disciplinado pelo biopoder de determinado contexto, aqui na América foi
novamente disciplinado com a chegada dos colonizadores. Minha proposta não é
desvendar as consequências de um corpo disciplinado e/ou colonizado, mas
reconhecer este corpo como um possível corpo cotidiano e, a partir disso, traçar um
paralelo com certos processos artísticos que possam contrapor essa prática. Ou
melhor, revisitar o corpo cotidiano como um corpo colonizado.
Assim como Bosi (2012), Mignolo (2005; 2008) defende que a
colonização foi também uma tentativa de controle para a exploração de território,
trabalho e produto. Se por um lado a conquista trouxe à América segregação,
dividindo os povos por suas etnias, por outro, os conquistadores articulavam-se para
um ganho maior de recursos e poder e os conquistados passaram a servir o capital.

38
Reconhecendo os desdobramentos da colonização, Quijano (2005)
propõe o debate a respeito do processo de descolonização. O autor refere-se à
descolonização como uma postura que busca um olhar próprio diante do mundo, um
pensamento próprio e não herdado do poder colonial. Trata-se de um pensamento
divergente do pensamento dominante.
A colonização enquanto um processo econômico e cultural
verticalizado, segundo Quijano (2005), permitiu que as particularidades dos povos
latino-americanos fossem cada vez mais desvalorizadas convergindo-as a um
padrão único de conhecimento. O autor aponta que a ideia de raça implantada pelos
invasores serviu de mecanismo para justificar as escolhas feitas pelos
conquistadores, sobre as quais puderam impor sua cultura e seu modo econômico.
“Na América, a idéia de raça foi uma maneira de outorgar legitimidade às relações
de dominação impostas pela conquista” (QUIJANO, 2005, p.118). O corpo foi critério
para desvalorização do outro. Serviu e serve como mecanismo para segregar e
determinar espaços de pertencimento de cada indivíduo.

A formação de relações sociais fundadas nessa idéia, produziu na América


identidades sociais historicamente novas: índios, negros e mestiços, e
redefiniu outras. Assim, termos com espanhol e português, e mais tarde
europeu, que até então indicavam apenas procedência geográfica ou país e
origem, desde então adquiriram também, em relação às novas identidades,
uma conotação racial. E na medida em que as relações sociais que se
estavam configurando eram relações de dominação, tais identidades foram
associadas às hierarquias, lugares e papéis sociais correspondentes, como
constitutivas delas, e, conseqüentemente, ao padrão de dominação que se
impunha. Em outras palavras, raça e identidade racial foram estabelecidas
como instrumentos de classificação social básica da população. (QUIJANO,
2005, p. 117, grifos do autor).

Falar de identidade racial implica mencionar uma questão relativa ao


corpo no aspecto social e biológico, o fenótipo que serve como argumento para os
desdobramentos sociais, dentre os quais o efeito mais perverso e presente é o
racismo. Ocupar determinados espaços mobiliza nosso corpo, se estamos em
diálogo e somos (co)construtores, não só construímos nosso meio, como permitimos
que nosso meio nos construa. Ou seja, Quijano aponta para a construção imagética
do corpo que hoje conhecemos e que possui origem e caráter colonial, mas provou
ser mais durável e estável que o colonialismo em cuja matriz foi estabelecida. Trata-

39
se de um elemento do colonialismo no padrão de poder hegemônico no mundo de
hoje.
No que segue, o principal objetivo é abrir algumas das questões
teoricamente necessárias sobre as implicações da colonialidade sobre como
pensamos e construímos o corpo. Para Quijano o termo colonialidade se refere aos
desdobramentos da colonização que permanecem nas sociedades invadidas. Se
hoje não somos colônia, possuímos em nossa história e cultura influências de uma
época anterior, onde tivemos que adaptar o modo como viver.
Se a colonialidade ainda é presente no sistema-mundo
(WALLERSTEIN , 1979), ela revela em sua cultura a supremacia européia sobre a
asiática, africana e latino-americana. O debate pós-colonial (QUIJANO, 2000; 2005)
aponta que a colonização pode ter findado em muitos países, mas que a
colonialidade permanece ativa na forma capitalista em que o mundo é organizado.
Isso porque o colonizador continuou sendo o conquistador e controlando os países
antes invadidos e colonizados. As implicações da manutenção da colonialidade para
as discussões a respeito do corpo e da identidade contribuem para que possamos
construir ainda que parcialmente um panorama sobre o processo que estabeleceu o
corpo cotidiano como também um corpo colonizado.
Além disso, quando pensamos a cultura, sua criação nos termos de
Wagner (2002), frente à presença ainda operante da colonialidade, podemos refletir
sobre sua herança. Ao mesmo tempo em que a cultura é criada ela é ensinada. O
corpo é pertencente a determinado contexto cultural, e a colonialidade são
resquícios deixados por uma colonização, rastros que abrangem também a face
cultural de uma sociedade. Logo, o corpo seria fruto desta colonialidade.
Evidentemente, a colonialidade pode ser relacionada às discussões
que apresentei sobre biopoder, quando pensamos no disciplinar dos corpos
(FOUCAULT, 1987) e na colonização como processo forçoso (BOSI, 1992), a
colonialidade apresenta resquícios de um biopoder importado pela prática colonial,
ela própria também é a prática do poder. Neste sentido e como anteriormente
proposto, há uma semelhança entre corpo cotidiano, disciplinado, como um corpo
colonizado.

40
Um dos resultados do processo de colonização na América, é que o
corpo passou a ser visto como o que era pensado pelos gregos, separado da mente,
especialmente pela influência do pensamento cristão, católico na América Latina e
protestante na América do Norte, imposto sobre as cosmologias indígenas que
compreendem o corpo de forma bastante diferente. Essa perspectiva, originária da
colonização ainda mantém seus resquícios na maneira como o corpo é percebido
por muitos. Do mesmo modo que a disciplina ensina aos nossos corpos técnica
provenientes do biopoder, a colonização apresenta novas técnicas e modelos de
comportamento cotidianos e inibia outras possibilidades. Trabalhar a descolonização
dos corpos é permitir que o outro tenha mais possibilidades para viver experiências
e mais acessos a si a fim de descobrir outras potencialidades.

Na realidade, cada categoria usada para caracterizar o processo político


latino-americano tem sido sempre um modo parcial e distorcido de olhar
esta realidade. Essa é uma conseqüência inevitável da perspectiva
eurocêntrica, na qual um evolucionismo unilinear e unidirecional se
amalgama contraditoriamente com a visão dualista da história; um dualismo
novo e radical que separa a natureza da sociedade, o corpo da razão; que
não sabe o que fazer com a questão da totalidade, negando-a
simplesmente, como o velho empirismo ou o novo pós-modernismo, ou
entendendo-a só de modo organicista ou sistêmico, convertendo-a assim
numa perspectiva distorcedora, impossível de ser usada salvo para o erro.
Não é, pois, um acidente que tenhamos sido, por enquanto, derrotados em
ambos os projetos revolucionários, na América e em todo o mundo. O que
pudemos avançar e conquistar em termos de direitos políticos e civis, numa
necessária redistribuição do poder, da qual a descolonização da sociedade
é a pressuposição e ponto de partida, está agora sendo arrasado no
processo de reconcentração do controle do poder no capitalismo mundial e
com a gestão dos mesmos responsáveis pela colonialidade do poder.
Conseqüentemente, é tempo de prendermos a nos libertar do espelho
eurocêntrico onde nossa imagem é sempre, necessariamente, distorcida. É
tempo, enfim, de deixar de ser o que não somos. (QUIJANO, 2005, p. 138-
139).

Para Quijano (2005), evidenciar o quanto diversas culturas no


mundo ainda se voltam à Europa e aos Estados Unidos para inventar suas culturas,
é importante para perceber o quanto nossos corpos foram afetados com a invasão
européia. Sua contribuição nos abre a possibilidade para compreendermos o corpo
como hoje conhecemos. Este corpo, que resulta de uma

[...] colonialidade global do poder, não incentiva apenas o legado passado,


como também todo aprendizado da resistência histórica de tanto tempo.
41
Estamos, portanto, caminhando sobre a necessidade de uma identidade
histórica nova, histórico/ estruturalmente heterogênea como todas as outras,
mas cujo desenvolvimento poderia produzir uma nova existência social livre
15
da dominação / exploração / violência [...] . (QUIJANO, 2014a, p. 859).

A descolonização é um processo heterogêneo, uma vez imerso em


determinada cultura, não é possível desprender-se de todas suas propriedades para
encontrar outras. Ainda que Wagner (2002) aponte para a invenção da cultura, de
modo que o sujeito só entende o outro a partir de sua própria cultura, durante a
colonização ele passa a pertencer a uma cultura que não mais aquela que
anteriormente (co)construía. Logo, o processo de descolonização trata de uma
transição híbrida, mas que busca seu caminho se distanciando da imposição
colonial. Os ganhos efetivos dos processos de descolonização são desenvolver um
pensamento próprio e original, trazendo outras possibilidades de operação de
mundo.
Quando nos deparamos com projetos eurocêntricos, que permeiam
o cotidiano americanista, como explicitado por Quijano (2014a), é difícil descobrir um
ponto de partida para uma identidade própria, já que muitas vezes surge de uma
perspectiva pautada na visão dos invasores. Quando se questiona o ponto de
identidade própria é importante considerar as perspectivas de Ingold (2002) e
Wagner (2002) no que se refere à construção criativa de uma cultura. Considero
aqui as diferenças culturais dos povos latino-americanos, não há como refletir sobre
etnias distintas por uma única perspectiva de identidade. A proposta de Quijano
(2014a) no que se remete à cultura originária é discutível, já que anula a
pluriversidade latino-americana. No entanto, considero seu discurso pensado como
caráter originário das culturas que antecedem a invasão em seu caráter múltiplo.
Nosso modelo de poder, ainda que não nos atentemos para tal, é
eurocêntrico. Nosso olhar é colonizado, nosso espelho é colonizado (QUIJANO,
2005). Como reconhecer nosso corpo sem uma imagem distorcida? Como perceber
as amarras que envolvem nosso corpo se talvez nunca tivemos a oportunidade de
vivenciar um corpo sem os entraves coloniais?

15
Tradução minha.

42
[...] o processo de independência dos Estados na América Latina sem a
descolonização da sociedade não pôde ser, não foi, um processo em
direção ao desenvolvimento dos Estados-nação modernos, mas uma
rearticulação da colonialidade do poder sobre novas bases institucionais.
Desde então, durante quase 200 anos, estivemos ocupados na tentativa de
avançar no caminho da nacionalização de nossas sociedades e nossos
Estados. Mas ainda em nenhum país latino-americano é possível encontrar
uma sociedade plenamente nacionalizada nem tampouco um genuíno
Estado-nação. A homogenização nacional da população, segundo o modelo
eurocêntrico de nação, só teria podido ser alcançada através de um
processo radical e global de democratização da sociedade e do Estado.
Antes de mais nada, essa democratização teria implicado, e ainda deve
implicar, o processo da descolonização das relações sociais, políticas e
culturais entre as raças, ou mais propriamente entre grupos e elementos de
existência social europeus e não europeus. Não obstante, a estrutura de
poder foi e ainda segue estando organizada sobre e ao redor do eixo
colonial. A construção da nação e, sobretudo do Estado-nação foram
conceitualizadas e trabalhadas contra a maioria da população, neste caso
representada pelos índios, negros e mestiços. A colonialidade do poder
ainda exerce seu domínio, na maior parte da América Latina, contra a
democracia, a cidadania, a nação e o Estado-nação moderno. (QUIJANO,
2014b, p. 635-636).

O padrão de conhecimento e da subjetividade que se instauram nas


relações de poder atuam em várias instâncias socioculturais. O poder enquanto
prática (FOUCAULT, 1987) transpassa política, a economia e a cultura. Há
diferenças epistêmicas em termos de entendimento do mundo que aparecem em
cosmogonias, narrativas, saberes e práticas. Com a colonização há uma
verticalização de saberes, na qual o padrão eurocêntrico passa a ocupar o topo nos
lugares de poder como a universidade, a escola, as igrejas, etc. A colonização traz
consigo (QUIJANO, 2014b) um modelo social, um modelo de Estado-Nação e uma
ideia de raça superior (a branca). A colonização não elimina necessariamente outras
práticas de poder previamente existentes no lugar onde este processo ocorre. Essa
visão fez com que as relações de trabalho no mundo fossem também hierarquizadas
e, a partir de então, os países latino-americanos tivessem uma relação de
subalternidade com os da Europa. Uma relação verticalizada, onde o eurocentrismo
determina a direção política-econômica-social do sistema-mundo. Se trata de um
fator relevante no contexto atual.
O projeto de descolonialidade na América nos impulsiona a buscar
meios de evidenciar a influência da colonialidade em nossos corpos e modos de
operar o mundo. Dessa forma, podemos buscar meios de lidar diretamente com tais
colonialidades cotidianas advindas de fatos históricos que embasam nossas
43
constituições culturais e identitárias. Proponho, contudo, que algumas práticas
cênicas podem ser caminhos frutíferos para avançarmos rumo à descolonialidade,
nesse caso, principalmente no que se refere ao corpo.
Passo a discutir questões que tratam do pós-colonialismo e da
descolonização pensados desde a prática e a arte da cena. É com esse propósito
que me aproximo da perspectiva cênica expressa pelo diretor teatral Eugênio Barba
(2012). Busco refletir sobre o corpo cotidiano enquanto um corpo colonizado e
através de suas indicações reflexionar sobre como o processo artístico pode revelar
vestígios de uma colonialidade.
Entretanto, é necessário fazer uma ressalva. Ainda que Quijano
(2000) trate da América Latina e o diretor teatral Eugênio Barba seja europeu, Barba
traz em seu trabalho e pesquisa fontes provenientes de uma grande diversidade
cultural, apoiado no trabalho de atores de diversos países e nas pesquisas
realizadas nas trocas de metodologias e estéticas de grupos artísticos de todo o
mundo. Logo, pretendo nesse capítulo usar o conceito de descolonização proposto
pelo sociólogo sobre a ideia de corpo cotidiano, para pensar como nosso corpo é
disciplinado e, com a pesquisa e a proposta teatral do diretor italiano, investigar
como a prática cênica pode ser descolonizadora do corpo cotidiano.
Barba possui em sua pesquisa o corpo como eixo norteador de seu
trabalho e pesquisa práticas rituais e teatrais com métodos desenvolvidos por
diversas culturas: europeias, latinas e asiáticas. Apresenta um processo artístico em
seus relatos nos quais busca realizar um registro corporal que não é o cotidiano.
Barba é uma das grandes referências do teatro com pesquisa em culturas tão
diversificadas e por ter sistematizado em livros seus estudos sobre uma antropologia
teatral. A sua busca por métodos para a pesquisa cênica o faz identificar algumas
semelhanças em trabalhos muito distintos e mecanismos diferentes com resultados
semelhantes. No livro “A Canoa de Papel”, ele defende que: “A Antropologia Teatral
indica [...] o estudo do comportamento pré-expressivo do ser humano em situação
de representação organizada” (1994, p.24).
Barba e Savarse (2012), no livro intitulado “A Arte Secreta do Ator –
Um dicionário da Antropologia Teatral”, apresentam múltiplos modos de se fazer
teatro, que nos auxiliam a construir uma maneira de pensar as artes da cena. Em

44
suas pesquisas, os autores sistematizaram qualidades que o corpo em estado de
representação costuma possuir. Para Barba (1994) e Barba e Savarse (2012), o
corpo, quando está intencionalmente representando, adquire características
extracotidianas que são geradas para o palco. O processo para esse outro registro
inicia-se no treinamento que exige na prática propriedades não estimuladas no
cotidiano. Tais propriedades são descobertas em exercícios e muitas vezes são
levadas à cena, onde estariam em registros não cotidianos.

2.2. CORPO CÊNICO E DESCOLONIZAÇÃO

No primeiro capítulo, apresentei a possibilidade de um corpo


colonizado como um corpo disciplinado por colonizadores ou pelo biopoder
(FOUCAULT, 1987). Seja ele resultado do primeiro ou segundo modo ou de ambos,
este corpo pode, no processo artístico, tornar-se um corpo descolonizado? Quais os
caminhos pelos quais ele precisará ou poderá percorrer para ser considerado
descolonizado? Ao pensar o corpo cênico, como o proposto por Barba e
reconhecendo as diferenças assinaladas por ele entre o corpo em estado de
representação intencional e o corpo cotidiano, proponho uma reflexão sobre a sua
prática artística como um possível processo de descolonização do corpo.
Por corpo em estado de representação intencional, Barba entende
um corpo que possui energia expandida. Enquanto o corpo cotidiano busca
economizar energia, o extracotidiano usa o máximo de energia mesmo que seja
para exercer uma pequena ação. Ele possui seus sentidos acordados e preparados
para responder a estímulos. Está atento e procura dilatar-se para preencher o
espaço cênico e tocar o espectador. O corpo cotidiano, por outro lado, é um corpo
que está em seu modo mais mecânico e automático, e não exige, na maioria das
vezes, plena consciência e controle corporal.
Quando me refiro ao corpo cotidiano ou cênico estou tratando de um
mesmo corpo em estados e contextos diferentes. As situações em que é colocado,
cênica ou cotidianamente, podem evidenciar características distintas, qualidades
diferentes das que são expressadas cotidianamente. A partir daqui, desenvolverei as
semelhanças e/ou diferenças destes estados do corpo. Barba, em sua prática
45
artística, tem o corpo como veículo e eixo principal de seus processos. E destaca-se
ao produzir sua investigação na chamada antropologia teatral, na qual estuda
princípios que regem as mais diversas práticas de atores/bailarinos em estado
intencional de representação. A antropologia teatral é, segundo Barba, o estudo do
“comportamento fisiológico e sociocultural do homem em uma situação de
representação” (2012, p.14).
Os aspectos que caracterizam o corpo cênico de Barba têm início
em seu corpo pré-expressivo, que não se trata de um corpo sem expressão, mas
que inicia seu preparo para a cena. Nas palavras do autor, a pré-expressividade é
definida a partir da “utilização do corpo-mente segundo técnicas extracotidianas
baseadas em princípios-que-retornam transculturais” (1994, p.25). Este corpo ocupa
um espaço de transição, do corpo cotidiano para o cênico, e encontra-se no limiar
entre o cotidiano e a representação. Trata-se de um nível básico de organização que
independente da cultura, atores e bailarinos encontram tecnicamente a energia do
corpo extracotidiano.

As diferentes técnicas do ator podem ser conscientes e codificadas; ou não


conscientes, mas implícitas nos afazeres e na repetição da prática teatral. A
análise transcultural mostra que nestas técnicas se podem individualizar
alguns princípios-que-retornam. Estes princípios aplicados ao peso, ao
equilíbrio, ao uso da coluna vertebral e dos olhos, produzem tensões físicas
pré-expressivas. Trata-se de uma qualidade extracotidiana da energia que
torna o corpo teatralmente “decidido”, “vivo”, “crível”; desse modo a
presença do ator, seu bioscênico, consegue manter a atenção do
espectador antes de transmitir qualquer mensagem [...]. (BARBA, 1994,
p.23, grifo do autor).

Para pensar num corpo extracotidiano, Barba (2012) ressaltam


certos aspectos que vou apresentar no decorrer deste trabalho. É no estado de
representação organizada do corpo que talvez se possa perceber e ampliar a
consciência sobre suas amarras. A percepção e o reconhecimento do corpo
colonizado pode ser conquistado através das práticas teatrais, exercícios que
estimulem outro registro do corpo, por meio de estímulos não cotidianos, ou se
forem cotidianos basta o condutor ressaltar pontos esquecidos no dia-a-dia. Os
jogos que estimulam outro estado do corpo, auxiliam o ator a perceber-se de outra
forma, podendo revelar facetas de uma corporeidade antes não notada. As técnicas
apreendidas no processo artístico podem auxiliar na percepção, desconstrução e
46
reconstrução de sua corporeidade. Exercícios e jogos podem evidenciar, revelar e
indicar costumes e caminhos.
No início do capítulo, discuti a relação entre corpo cotidiano e
extracotidiano proposto por Barba. E aqui reitero as diferenças entre esses estados
e ressalto um ponto que os diferenciam, a técnica. Como abordado no primeiro
capítulo, a técnica é apreendida, mas o que determina como ela será executada é o
contexto ao qual o sujeito pertence. Para Barba e Savarese, as

[...] técnicas cotidianas do corpo são geralmente caracterizadas pelo


princípio do menor esforço: ou seja, obter o máximo resultado com o menor
uso de energia. Mas com as técnicas extracotidianas do corpo acontece
exatamente o contrário, elas estão baseadas no desperdício de energia. Às
vezes parecem até sugerir um princípio especular com relação ao que
caracteriza as técnicas cotidianas do corpo: princípio do máximo uso de
energia para obter um resultado mínimo. (BARBA; SAVARESE, 2012, p.16).

É importante ressaltar aqui a diferença entre a ideia de técnica em


Barba e a apresentada no capítulo anterior, proposta por Ingold (2000), e como se
diferenciam no estado de representação intencional. Para o ator, a técnica exige
maior energia e expansão, enquanto para o corpo cotidiano ela economiza o
máximo de energia possível. Ambas estão inseridas em contextos culturais, seja
cotidiano ou cênico. Para Barba, o teatro, assim como a vida, tem uma cultura
própria e técnicas compartilhadas de acordo com sua estética.
Barba e Savarese (2012) propõem exercícios e dão conselhos
reconhecidos em diversas culturas da cena que auxiliam o ator a atingir o estado
extracotidiano. Para eles, grande parte das práticas cênicas seguem técnicas que
abusam do uso de energia, o que significa dizer que essas técnicas possuem o
princípio do máximo esforço. Não se trata de uma regra, mas de uma constatação
evidenciada pela recorrência do fato16.

Sabe-se abstratamente não existem regras cênicas absolutas. Estas são


convenções e uma “convenção absoluta” seria em si mesma uma
contradição. Mas, isso é correto somente no abstrato. Para que um
experimentado complexo de regras possa ser verdadeiramente útil na

16
Nos estudos de Barba, são percebidos alguns princípios comuns em várias técnicas
extracotidianas, apresentados como sugestões recorrentes e comuns a vários grupos de atores e
bailarinos.
47
prática para o ator, este deve ser aceito como se fosse um complexo de
regras absolutas. [...] (BARBA, 1994, p.28, grifo do autor).

Para Barba (1994), o teatro possui certas convenções que para ele
seriam “bons conselhos” que os profissionais da área podem ou não acatar, servem
para facilitar os caminhos, mas não devem ser imutáveis. São indicações ao
trabalho do ator. Algumas estéticas não necessitam do corpo extracotidiano e/ou
podem encontrar outros caminhos para trabalhar o corpo cênico. A exemplo, o teatro
do invisível, onde ator busca não revelar que está atuando. Como também o teatro
naturalista que procura assemelhar-se o máximo possível do estado cotidiano.
Na prática teatral proposta por Barba existe uma série de técnicas e
exercícios que buscam alterar o estado físico e energético do corpo do ator visando
o estado do corpo extracotidiano. Existem treinamentos que evidenciam certas
posturas e/ou comportamentos do corpo em estado de não-representação.

[...] No nível cotidiano, temos uma técnica do corpo que está condicionada
por nossa cultura, por nossa condição social, por nosso ofício. Mas numa
situação de “representação” existe uma utilização do corpo, uma técnica do
corpo, que é totalmente diferente. Então é possível distinguir uma técnica
cotidiana de uma técnica extracotidiana. (BARBA, 2012, p. 16).

Entre eles, por exemplo, a Ópera de Pequim, na qual uma parte do


sistema em que os atores se baseiam consiste na oposição, em que todo movimento
se inicia na direção oposta em que termina. Talvez esse aspecto não seria notado
na vida cotidiana, ou nem todos estariam conscientes da oposição ao realizá-la.
Para Barba, é importante evidenciar certas posturas e/ou
comportamentos do corpo porque abrem possibilidades para o ator, permite que o
corpo cotidiano transcenda seus automatismos e encontre uma nova maneira de
operar. Reconhecer o corpo cotidiano é o primeiro passo para a descolonização. É
conhecer a si. Explorar o corpo em estado de representação permite experenciá-lo
em estados e contextos distintos dos cotidianos. É possível descobrir outras
possibilidades e reconhecer técnicas cotidianas de outra perspectiva que não a
mecânica, um olhar mais atento para essas técnicas.

48
A maneira como utilizamos nosso corpo na vida cotidiana é
substancialmente diferente daquela como o utilizamos em situações de
“representação”. No nível cotidiano, temos uma técnica do corpo que está
condicionada por nossa cultura, por nossa condição social, por nosso ofício.
Mas numa situação de “representação”, existe uma utilização do corpo, que
é totalmente diferente. Então é possível distinguir uma técnica cotidiana de
uma técnica extracotidiana. (BARBA, 2012, p. 15-16).

O treinamento e sugestões de princípios cênicos permitem, nesse


caso, perceber outras potencialidades do corpo. Por isso é preciso perceber as
técnicas extracotidianas e colocar o olhar para este momento tentando reconhecer
as diferentes nuances que surgem no estado extracotidiano do corpo.

As técnicas cotidianas não são conscientes: nos movemos, nos sentamos,


carregamos peso, beijamos, indicamos, concordamos e negamos com
gestos que acreditamos ser “naturais”, mas que, ao contrário, são
culturalmente determinados. As diversas culturas ensinam as técnicas do
corpo que são diferentes, e isso depende se as pessoas caminham ou não
de sapatos, se carregam peso na mão ou em cima da cabeça, se beijam
com a boca ou com o nariz. O primeiro passo para descobrir quais podem
ser os princípios do bíoscênico do ator e do dançarino, a sua “vida”,
consiste, então, em compreender que as técnicas extracotidianas, ou seja,
às técnicas que não respeitam os habituais condicionamentos do corpo.
(BARBA, 2012, p. 16, grifo do autor).

Dada as diferenças entre corpo cotidiano e cênico, é importante


reiterar que além dos estados que os diferenciam, e para considerar o treinamento
artístico de Barba como possível processo de descolonização do corpo, é importante
que o ator esteja consciente do seu corpo durante o trabalho, buscando as
mudanças pretendidas e reconhecendo as transições de estado do corpo cotidiano.
O trabalho do ator, para Barba (2012, p. 27), não está em estudar
fisiologia, e sim reagir através de ações físicas, que podem surgir por estímulos
externos ou internos. Seriam essas ações descolonizadoras? Se o ator propõe-se a
seu modo a desconstruir o estado cotidiano, e o processo de descolonização busca
livrar-se da colonização, ele estaria de algum modo realizando este processo de
descolonização? Se o ator se propõe a desconstruir-se através de um método como
o apresentado por Barba, precisa disponibilizar-se para a interação para que a
prática o afete e ele possa reagir aos estímulos e descolonizar-se.
Então, se a descolonização não exige que a colonialidade seja
extinta, apenas que a relação colonizador/colonizado deixe de existir, quando o ator
49
encontra um estado que não é o cotidiano, ele estaria contrapondo o padrão e
dando seguimento sem se preocupar com os resquícios de seu corpo cotidiano e/ou
coloniais. Ou seja, suas amarras podem estar evidenciadas e não apenas
desconstruídas.
Se pensamos que o corpo é resultado das experiências passadas,
assim como das expectativas futuras, não estaria livre da colonização, nele
haveriam resquícios de uma colonialidade. Assim, não posso dimensionar os
aspectos que permanecem de uma colonização, mas que de algum modo o
processo artístico pode apontar outras projeções, que ainda que possuam
colonialidade não são cotidianas, ou seja, qualidades extracotidianas.
Barba aponta que “o oposto de uma cultura colonizada ou seduzida
não é uma cultura que se isola, mas uma cultura que sabe cozinhar do seu modo e
comer o que traz e chega do exterior” (BARBA, 1994, p. 29, grifo do autor). Portanto,
para a descolonização é necessário estar consciente daquilo que parece
estrangeiro, reconhecê-lo em certa medida e selecionar os aspectos que irão
permanecer ou serão menos evidenciados. Tais aspectos são “selecionados” de
modo mais ou menos orgânico, a depender de cada contexto, e podem ser
considerados como um modo de reflexão sobre os aspectos adequados ao contexto
no qual está inserindo-se. A descolonização precisa de um processo de adaptação.
Assim como na cultura, o corpo para a cena precisa adaptar-se continuamente a
cada nova situação, dispõe-se integralmente e se sujeita à (co)regulação de seu
contexto.
Se através de sua corporeidade o ator realiza o projeto semiótico
para o espaço do jogo, a cena possui um corpo que difere do cotidiano. De certo
modo, os princípios que estão presentes no trabalho do ator em diferentes culturas
(BARBA, 2012), auxiliam a dilatar sua presença e criar o “corpo-em-vida”17.
Tratando-se, então, da descolonização como um processo também cultural, trago à
discussão uma breve definição de cultura pensada por Barba (1994), já que estamos
dissertando sobre o corpo cênico e como o autor o percebe.

17
Trata-se de um corpo-extracotidiano, com energia expandida, energia dilatada para preencher o
espaço cênico, e tocar o espectador.

50
A transição é uma cultura. Existem três aspectos que cada cultura deve
possuir: a produção material através de técnicas, a reprodução biológica
que permite transmitir a experiência de geração em geração e a produção
de significados. Para uma cultura é essencial produzir significados. Se não
os produz não é uma cultura. (BARBA, 1994, p. 18).

Portanto, se o teatro cumpre os três aspectos, para o autor os


grupos de teatro também possuem uma cultura própria. Enquanto criam sua cultura,
estão baseados em uma gama de princípios-que-retornam. A proposição de cultura
em Barba vai de encontro à conceituação de Wagner (2002) e reitera aspectos
levantados pelo autor norte-americano sobre metáforas e significados, e também se
aproxima dos fundamentos de técnica e cultura apontados por Ingold (2000). Isso
auxilia a responder à questão norteadora desta pesquisa, como técnica e
significados transpassam gerações, logo os efeitos da colonização podem estar
presentes em nós. A partir deste ponto passo a refletir sobre um corpo colonial e
somente sobre um corpo colonizado.
Para Barba, grande parte das estéticas e métodos possuem alguns
princípios em comum, e em cada contexto trabalham a seu modo, mas em sua
maioria usam tais recomendações em seus processos para que possam atingir o
corpo cênico que desejam. Entretanto, o que Barba (2012) sugerem como princípios
teatrais, são indicações extremamente flexíveis e não obrigatórias. Os autores
escrevem que

Os princípios-que–retornam não provam a existência de uma “ciência do


teatro” ou de algumas leis universais. São apenas “conselhos
particularmente bons”, indicações que têm uma grande chance de se
tornarem úteis para a prática cênica.
Os “bons conselhos ”têm essa particularidade: podem ser seguidos ou
ignorados. Não são taxativos como as leis: podem ser respeitados com
exatidão para depois serem infringidos e superados - talvez essa seja a
melhor maneira de utilizá-los. (BARBA, 2012, p. 14).

De acordo com o autore, tais princípios auxiliam no trabalho do ator,


na construção de um corpo cênico com as características que acreditam serem
necessárias, e também numa espécie de desconstrução, que aqui compreendo
como uma desconstrução do corpo cotidiano. Quando Barba fala dessa
desconstrução, se refere à mudança do registro cotidiano ao extracotidiano. Nesse

51
ponto pretendo aproximar-me da ideia de um corpo descolonizado, em que o corpo
cênico é construído e para isso é necessário desconstruir o corpo cotidiano.
Quando o ator está consciente de seu corpo e busca um novo
estado, reconhecendo seu estado cotidiano, pode, neste processo, realizar a
descolonização, quando realiza um percurso do corpo cotidiano ao cênico. Retomo
que essa possibilidade estudada aponta para um modo de trabalho muito específico
de teatro, que embora o diretor estudado analise diversos grupos, estou aqui
analisando a sua pesquisa e não as companhias por ele pesquisadas. Busco
compreender sua perspectiva sobre o estado extracotidiano do corpo como um
passo a descolonização do corpo.

No princípio, todo ator que tenha escolhido esse tipo de teatro, deve
adequar-se a ele e iniciar sua aprendizagem despersonalizando-se. Aceita
um modelo de pessoa cênica estabelecido por uma tradição. A
personalização desse modelo será o primeiro sinal de sua maturidade
artística. (BARBA, 1994, p. 27, grifo do autor).

Para a descolonização é necessário assumir um novo perfil. O ator


em cena realiza uma nova transição, seja na direção cotidiano-cena ou cena-
cotidiano. Neste ponto, acredito que as teorias teatrais e pós-coloniais começam a
dialogar. Os princípios da despersonalização das quais trata Barba e da
descolonização sobre a qual enfoco neste trabalho, aproximam-se de proposições
de desmontagem, em alguma medida, do sujeito. A despersonalização permite
afastar certos aspectos e qualidades do seu corpo. Entretanto, diferenciam-se
quando a proposição de Barba não questiona a possibilidade de que esses aspectos
permanecem, e talvez se escondam, no corpo. Por outro lado, Quijano (2000;2005)
não discute se o processo de descolonização pode acontecer, mas que poderia se
desdobrar em uma (re)colonização. Barba (1994) já apresenta a possibilidade do
ator se desvencilhar de características de seu corpo e retomá-las.

O ator do Pólo Norte é aparentemente menos livre. Modela seu


comportamento cênico segundo uma rede bem experimentada de regras
que define um estilo ou um gênero codificado. Este código da ação física ou
vocal, fixado em uma peculiar e detalhada artificialidade (seja o balé ou um
dos teatros clássicos asiáticos, a dança moderna, a ópera ou mimo) é
suscetível de evoluções e inovações. No princípio, entretanto, todo ator que
tenha escolhido esse tipo de teatro, deve adequar-se a ele aceitando um
52
tipo de pessoa cênica estabelecido por uma tradição. A personalização será
o primeiro sinal de sua maturidade artística. (BARBA, 1994, p.27).

Para o autor um processo mais consistente e menos flexível


permitiria ao ator um personalizar e despersonalizar mais eficaz.

Ao contrário do que parece à primeira vista, é o ator do Pólo Norte que tem
maior liberdade artística ao passo que o ator do Pólo Sul permanece
facilmente prisioneiro da arbitrariedade de uma excessiva falta de pontos de
apoio. A liberdade do ator é mantida no interior do gênero ao qual pertence,
e seu preço é uma especialização que torna difícil a saída do território
conhecido. (BARBA, 1994, p.28).

Barba explica que o ator é capaz de vestir-se e desvestir-se.


Acredito que no aprendizado das técnicas que moldam o corpo para a cena, é o
momento em que o ator passa pelo processo de descolonização. Trata-se de um
processo em que percorre o trajeto cotidiano-cena e cena-cotidiano, caminhando em
ambas as direções, e pelo processo artístico pode induzir sua corporeidade para o
percurso que desejar. Enquanto no processo de colonização a disciplina é em parte
imposta, num processo como o proposto por Barba, o ator é conduzido a encontrar
seu estado extracotidiano.
Assim como o estado cênico pode estar sobreposto ao cotidiano,
apenas escondendo um estado colonizado e nos revelando a colonialidade do
corpo, o processo pode também trazer à tona o corpo cotidiano, permitindo que o
ator esteja mais consciente de seu corpo. Estando, então, em estado extracotidiano
ou não, ele passa a se perceber mais, através de estímulos que recebeu durante
seu treinamento.
Por outro lado, supor, como o próprio Barba (1994, 2012), que o
ator deve se adequar aos princípios teatrais a que se destina, não poderia configurar
também um processo de colonização? A resposta penderia para uma negativa se o
pensarmos como resistência ou oposição ao biopoder.
Enquanto o corpo cotidiano sofre com as amarras impostas pela
disciplina cotidiana, ainda que seja (co)regulador de seu meio, ele não é detentor de
todo poder para escolher pelo meio, é como muitos outros corpos (co)participantes.
Ao passo que ele altera o meio, outros indivíduos também estão (co)construindo o

53
meio. Com esse percurso pode-se perceber alguns desdobramentos possíveis para
refletir sobre quanto e como a corporeidade atua ou sofre as influências de seu
contexto.
A exemplo do que venho discutindo, exponho uma descrição que
Eugênio Barba faz de seu grupo de atores e bailarinos.

[...] quando um de meus atores executava uma dança balinesa, entrava


num outro esqueleto/pele que condicionava seu modo de erguer-se,
deslocar-se, resultar “expressivo perante meus olhos. Logo se libertava
deste outro esqueleto e entrava no esqueleto/pele de ator do Odin.
Entretanto, ao passar de um esqueleto/pele a outro, apesar das diferenças
de expressividade”, aplicava princípios similares. A aplicação desses
princípios conduzia a diversas direções. Via resultados que não tinham
nada em comum entre eles, exceto a “vida” os impregnava. (BARBA, 1994,
p. 20).

O treinamento técnico para ator, dessa forma, passa a significar um


novo modo de operar do corpo, no qual intencionalmente a corporeidade busca
atingir outro estágio em relação ao cotidiano. Dessa forma, ele está consciente da
transição que pode realizar, não importa agora o quão plena ela é, mas nos revela
que de algum modo que o ator está a conduzir seu corpo, da mesma maneira em
que um estado pode apenas esconder o outro.
A percepção de Barba, diante dos corpos de seus atores, indica que,
de algum modo, os atores podem realizar dois processos, o de mudança do corpo
cotidiano ao cênico e o do corpo cênico ao cotidiano, como processo artístico e de
descolonização. Discutirei somente o último processo, não pretendo abordar o
reverso, corpo cênico-corpo cotidiano.
Embora seja único, o corpo pode transitar de um registro ao outro, o
que não impede que anule as experiências e construções anteriores, mas pode
evidenciar ou camuflar seus aspectos. Apesar de não haver molde ou padrão para o
corpo cênico, cada estética ou metodologia teatral pode pretender um horizonte,
com características desejáveis, e que podem ser exploradas de distintas maneiras.

[...] o ator-dançarino, para viver teatralmente, também não pode apresentar


ou representar o que ele é. Deve representar o que quer mostrar através de
forças e procedimentos que tenham o mesmo valor e eficácia. Em outras
palavras: deve abandonar seus automatismos.

54
As diferentes codificações da arte do ator e do dançarino são, antes de
tudo, métodos para romper com os automatismos da vida cotidiana, criando
equivalências para ela.
Naturalmente, a ruptura dos automatismos não é expressão. Mas sem a
ruptura dos automatismos não há expressão. (BARBA, 2012, p. 24, grifos
do autor).

A descolonização do corpo como um rompimento do estado


cotidiano do corpo, ou seja, transitar do estado do corpo cotidiano ao estado cênico,
seria então descolonizar o corpo. Já quando o corpo transita do estado cênico ao
cotidiano podemos perceber que o processo pode ocultar sua colonialidade. Se o
corpo cotidiano traz aspectos de uma colonização, ele ainda seria colonial.
Descolonizar o corpo, então, nesse caso, seria poder conduzir seu corpo quando
necessário a estados descolonizados.
Tal processo poderia ser apresentado pelo conceito de aculturação,
como proposto por Barba quando se propõe refletir sobre o corpo extracotidiano, no
qual sugere que as técnicas dos atores são incorporadas artificialmente para que o
ator possa se dirigir de modo eficaz ao espectador.

A “técnica de aculturação” torna artificial (ou, como se costuma dizer,


estiliza) o comportamento do ator-dançarino, mas ao mesmo tempo cria
outra qualidade de energia. [...] É fascinante observar até que ponto eles
conseguiram modificar a “naturalidade” transformando-aem leveza, como no
balé clássico, ou no vigor de uma árvore na dança moderna. A técnica de
acultração é a distorção da aparência, do que aparece, para recriá-la
sensorialmente de um modo mais real, fresco e surpreendente. (BARBA,
2012, p.229).

Em resumo, as propostas de Barba auxiliam a responder à questão


norteadora desse trabalho quando evidenciam a possibilidade do corpo transitar por
mais de um estado. Trabalhar com a possibilidade de um corpo cênico construído
indica que o corpo cotidiano também teria tal possibilidade de trânsito. Então, se
posso caminhar entre ambos, posso desconstruí-los, mas não invalidá-los. Isso
significa que pela prática teatral de Barba a descolonização do corpo se daria ao
passo que o ator alterasse seu registro cotidiano para o extracotidiano, através de
métodos que o auxiliariam a perceber seus estados e peregrinar entre eles.
Os limites da minha proposição para a descolonização do corpo,
segundo os princípios teatrais de Barba, são percebidos quando trago seu modelo

55
que aborda a experiência vivida. Tal experiência precisa ser compreendida e
assimilada por aqueles que talvez nunca vivenciaram situação semelhante.
Entretanto, estudar um profissional europeu para embasar nossas discussões sobre
colonização/descolonização evidencia que o teatro possui em si transversalidade,
não está restrito a uma região. Mas nos mostra um terreno árido que precisamos
seguir com cautela para não nos sobrepormos ao outro, e sim estabelecer trocas.
Por fim, mas não menos importante, as relações entre
descolonização e descolonialidade nessas práticas teatrais analisadas se
configuram como um caminho possível para pensar as perspectivas pós-coloniais
sobre o corpo. Da forma como o teatro proposto por Barba se aproxima de tais
teorias, outras práticas também são possíveis. Por isso proponho discussões que
embora naveguem por lugares semelhantes podem nos levar a outras marés. Por
buscar outras perspectivas para compreender os processos coloniais me propus a
inserir outro objeto, desta vez, um do qual fiz parte e está localizado num contexto
latino-americano.

56
3. DESCOLONIALIDADE DO CORPO

Neste capítulo, dialogo com a noção de corpo cênico proposto por


Juliano Casimiro (2011) e diretamente com a perspectiva da descolonialidade
apresentada por Mignolo (2005). A noção de corpo atenso, proposta por Casimiro, é
presente nos relatos do “Diário de Bordo”18, no qual compartilha sua pesquisa
teórico-prática. Pretendo observar como o processo cênico pode contribuir para
desvelar a colonização do corpo e proporcionar um corpo atenso (CASIMIRO, 2011)
que comporte apenas as tensões necessárias para a cena.
A partir daqui reflito sobre o processo artístico do qual os atores do
Eu-Outro NPC participaram durante o ano de 2011 para o espetáculo “Favores da
Lua- O Prólogo”. A partir da noção de descolonialidade (MIGNOLO, 2005), acredito
que a noção de corpo atenso sugerida pelo diretor do núcleo se aproxima da
proposição de Mignolo. Encontro os seguintes pontos convergentes: a) a noção de
corpo proposta pelo diretor pressupõe, na prática do núcleo, reconhecer suas
tensões para poder explorá-las; b) o termo proposto por Mignolo indica a
conscientização da colonialidade e a busca por uma identidade própria. Não
pretendo categorizar o processo como descolonial, mas acredito na importância de
reconhecer as contribuições que alguns estudos cênicos podem trazer para a
compreensão de outras possibilidades do corpo. Seria uma medida descolonial, mas
obviamente não excluí outras formas de práticas artísticas. Analisarei a seguir uma
prática do núcleo.
É importante ressaltar que essa aproximação com os processos
tomados aqui como descoloniais não foram assumidos ou desejados sob esse termo
pelo diretor do núcleo quando da realização das atividades. O que ele pretendia
naquele momento, segundo sua tese de doutorado (CASIMIRO, 2014)19 era
desenvolver sua pesquisa artística explorando estéticas intimistas e a manipulação
dos elementos técnico-artísticos (luz, som e cenário) dos espetáculos.

18
Os “Diários de Bordo” são os relatos e proposições escritas de Juliano Casimiro durante o processo
artístico do espetáculo “Favores da Lua - O Prólogo”, do Eu-Outro Núcleo de Pesquisa Cênica.
19
O diretor do Eu-Outro Núcleo de Pesquisa Cênica defendeu sua tese de doutorado no ano de
2014, no qual as práticas e discussões do núcleo foram seu objeto de estudo. Portanto, farei uma
distinção entre o diretor Juliano Casimiro e o pesquisador.
57
Realizei entrevistas semi-estruturadas com quatro atores e ex-atores
do núcleo que participaram do espetáculo. A consulta foi feita em duas etapas. A
primeira foi realizada por meio de entrevista, em que solicitei aos atores relembrar o
processo do qual participaram, retomando algumas discussões teóricas que
tínhamos no núcleo sobre o caminho que cada um julgou percorrer para desvelar o
corpo atenso. Depois, enviei um recorte dos diários de bordo para que lessem, a fim
de reavivar as experiências passadas, e combinamos um intervalo de tempo para
autorreflexão a partir dos recortes. Os trechos selecionados do diário de bordo se
referiam a descrições de exercícios e seus resultados, realizados pelo diretor. Minha
intenção era retomar a prática e a teoria, permitir que os atores pudessem relembrar
das sensações e descobertas trazidas pelos exercícios e ensaios. Também
precisávamos reviver debates e conceitos que nos foram propostos sobre o corpo
cênico.
Na segunda etapa, formulei questões a partir de análise do diário de
bordo e das partilhas20 de cada um. As perguntas formuladas tinham por objetivo
compreender a perspectiva de cada ator a respeito das noções e conceitos
propostos e trabalhados no núcleo durante o ano de 2011.
Transcrevo, a seguir, as perguntas realizadas.
1. Tanto o corpo em estado de representação organizada, como
em estado cotidiano não possuem estrutura rígida e imutável, mas ambos serão
pensados aqui a partir de sua percepção atual, dialogadas com as práticas artísticas
no Eu-Outro NPC sobre a noção de um corpo “ideal” pretendido à cena. Como você
explicaria a construção do corpo cotidiano? Quais seriam as qualidades
apresentadas por esse estado do corpo?
2. Depois de trabalhar com métodos que colocam o corpo como
eixo de desenvolvimento, você pode dizer que a sua percepção sobre ações do
estado cotidiano do corpo mudaram? Em caso positivo, quais foram essas
mudanças?
3. Quais as descobertas e contribuições que o processo artístico
vivido pelo Eu-Outro NPC trouxe para o estado cotidiano? Quando olhamos para

20
As partilhas foram relatos que os atores enviavam ao final de cada ensaio. Parte delas foram
postadas no blog http://euoutronpc.blogspot.com.br/p/partilha_22.html onde encontram-se acessíveis.
As partilhas utilizadas para entrevista foram as que estão disponíveis na página do Eu-Outro NPC.
58
nosso corpo, alguns aspectos podem ser mais perceptíveis? O processo de
construção do corpo atenso auxiliou você na consciência do seu estado cotidiano?
Em caso positivo, de que forma?
4. Como ativar o estado extracotidiano do corpo? Antes de entrar
em cena é realizada uma transição consciente do estado cotidiano para o
extracotidiano do corpo?
5. Qual aspecto do estado cotidiano é similar ao do estado cênico?
Ou o corpo cênico seria o mesmo corpo cotidiano, mas com suas potencialidades
exploradas de forma distinta? As potencialidades de ambos e os mecanismos são os
mesmos ou há outros?
6. De que forma o corpo se adapta ao espaço e ao jogo?
7. Quais recursos são necessários ao corpo cênico? Quais
recursos o ator deve lançar mão para conhecer seu estado cênico e atingir certos
princípios como dilatação e energia?
8. Sabemos que somos uma construção e que nossa visão de
mundo se dá também pelas experiências passadas, mas você pode apontar um jogo
que tenha proporcionado uma experiência reveladora no processo de construção do
corpo cênico?
9. De que modo o treino, o ensaio ou os jogos podem afetar seu
corpo? Como eles auxiliam na percepção dos estados do corpo?
10. Qual a importância do local do ensaio para a construção do
corpo cênico?
11. Como você explicaria o corpo atenso trabalhado no Eu-Outro
NPC?

A partir das respostas, procuro retornar ao debate com os autores


com os quais venho trabalhando, em especial sobre a noção de descolonialidade. O
diálogo é estabelecido também com autores não latinos, pois como comenta Mignolo
(2005) não podemos anular as influências européias, que estão intrínsecas em
nossos discursos. As teorias construídas na América Latina vêm em grande parte de
modelos eurocêntricos. Não se pode excluir certas teorias, nem achar que podemos
dialogar com elas sem duvidar de seus discursos e certezas.

59
A escolha de autores descoloniais, segundo Mignolo (2005), atua
como resistência e fortalece o discurso descolonial. Minha opção por trazer autores
europeus para ajudar a construir a noção de um corpo colonizado e colonial, é
aproveitar um discurso já consolidado. Trato de investigar e debater com teorias
ainda recentes no teatro latino-americano. Mignolo (2005) e Quijano (2000;2005)
defendem que não podemos simplesmente ignorar toda teoria já construída, mesmo
que seja eurocentrada e surjam através de uma perspectiva particular, nos auxiliou a
inventar a nossa leitura de mundo.

Pensamento descolonial significa também o fazer descolonial, já que a


distinção moderna entre teoria e prática não se aplica quando você entra no
campo do pensamento da fronteira e nos projetos descoloniais; quando
você entra no campo do quichua e quechua, aymara e tojolabal, árabe e
bengali, etc. categorias de pensamento confrontadas, claro, com a
expansão implacável dos fundamentos do conhecimento do Ocidente (ou
seja latim, grego, etc.), digamos, epistemologia. Uma das realizações da
razão imperial foi a de afirmar-se como uma identidade superior ao construir
construtos inferiores (raciais, nacionais, religiosos, sexuais, de gênero), e de
expeli-los para fora da esfera normativa do “real”. Concordo que hoje não há
algo fora do sistema; mas há muitas exterioridades, quer dizer, o exterior
construído a partir do interior para limpar e manter seu espaço imperial. É
da exterioridade, das exterioridades pluriversais que circundam a
modernidade imperial ocidental (quer dizer, grego, latino, etc.), que as
opções descoloniais se reposicionaram e emergiram com força. (MIGNOLO,
2008, p. 291, grifo do autor).

No entanto,

Creio que ficará claro para leitores razoáveis que afirmar a co-existência do
conceito descolonial não será tomado como “deslegitimar as idéias críticas
européias ou as idéias pós-coloniais fundamentadas em Lacan, Foucault e
Derrida”. Tenho a impressão de que os intelectuais da pós-modernidade e
os com tendências marxistas tomam como ofensa quando o autor
mencionado acima, e outros semelhantes, não são venerados como os
religiosos o fazem com os textos sagrados. Eis exatamente por que estou
argumentando aqui a favor da opção descolonial como desobediência
epistêmica. (MIGNOLO, 2008, p. 289).

A proposta de descolonialidade traz resquícios de uma colonialidade


que não parece tão simples de ser removida e sugere que tanto colonialismo como
colonialidade estão quase que intrínsecos no sistema-mundo.
Quijano (2000) cunhou o conceito de colonialidade como sendo uma
prática de poder que ultrapassa o colonialismo, que permanece no sistema-mundo

60
mesmo após processos de independência e descolonização. O autor usa o termo
para tentar explicar a modernidade como um processo diretamente ligado à
colonização, ou seja, vinculado à experiência colonial. Com a independência da
maioria das colônias européias, Quijano demonstra que as estruturas de
subordinação e exploração são agora reproduzidas pelo sistema-mundo capitalista.
Para o autor, o sistema atual seria também colonial-moderno. Sendo assim, o
processo histórico iniciado no século XVI está atrelado à noção de colonialidade,
integrando colonizadores e colonizados no sistema atual de modo a perpetuar os
papéis dos participantes em uma relação explorador-explorado.
A colonialidade permanece nas práticas onde o poder está presente.
Não se trata apenas de como a colonização que era uma relação entre colonizador e
colônia, se trata de resquícios que permanecem intrínsecos na sociedade que foi
colonizada. Hoje, a relação deveria ser entre descolonizado/mundo, mas embora um
país não seja mais colonizado, ele ainda sofre as consequências de uma colônia.
Seu povo e sua economia respondem ao capitalismo, que teve seu sistema
construído após as colônias. Numa sociedade que funciona com aspectos advindos
da colonialidade ela detém seus valores sustentados na relação de
explorador/explorado. Um exemplo para se pensar essa relação é o que propõe
Khatibi ao falar de exploração de territórios.

Tratar a ocupação territorial da monocultura de cana para produção de


agrocombustíveis como resultante de uma colonialidade na apropriação da
natureza é uma tentativa de clarificar a permanência de um padrão de poder
com traços colonialistas, que continuamente se revigora, se modifica e se
reatualiza, buscando manter a exploração dos territórios. Nesse sentido,
conceber a existência de uma colonialidade na apropriação da natureza é
caminhar na direção de um projeto de descolonização simbólica e material
que indaga as formas hegemônicas de usurpação das riquezas
territorializadas que, por sua vez, sustentou e segue sustentando a
continuidade da modernidade ocidental. É realçar, portanto, a força de um
pensamento outro, calcado no ideal da descolonialidade, que aciona a
diferença colonial irredutível para questionar os valores construídos como
centrais. (KHATIBI, 2001 apud ASSIS, 2014, p. 617).

Se autores pós-coloniais ainda não conseguiram sustentar debates


próprios nas mais diversas áreas, já são capazes de reconhecer a influência de um
discurso eurocêntrico nelas. Mas será que existe um corpo que possa ter
características originárias? Por características originárias compreendo como sendo
61
aquelas que não sofreram processos de imposição colonial e possuem uma
identidade própria.
De acordo com Foucault (1987), toda sociedade domestica seus
corpos através de punição ou vigilância. E partir de Wagner, compreendemos que
toda cultura é invenção e transformação. Ou seja, não há origem, há transformação.
Enquanto a descolonização suplanta a colonização, é possível perceber que ainda
que a colônia deixasse de existir concretamente, nela vigorou traços do processo de
colonização, ou seja, a colonialidade.
Com a descolonialidade, então, o que se pretende é construir
perspectivas próprias. Como não é possível excluir as influências de uma
colonização, o que se espera com a descolonialidade é encontrar uma identidade
que não aquela imposta pelos europeus, ainda que suas influências permaneçam.
Talvez, em um primeiro momento, acreditava-se que os aspectos econômicos,
culturais e políticos se configurariam de forma autônoma nos países latino
americanos após a descolonização. No entanto, isso não ocorreu e, de acordo com
Mignolo (2005) tais aspectos respondiam aos interesses de países europeus.
Pensar a descolonialidade é permitir a criação da cultura através de um processo
mais autônomo e menos forçado pelo estrangeiro, o que não significa puro, mas
consciente.
Se, como aponta Quijano (2000), o poder também é colonial, nossos
corpos disciplinados também o seriam? Trago essa e outras perguntas para a
reflexão. Reitero, estou discorrendo aqui sobre possibilidades de um fazer teatral
muito específico, e acredito que essas contribuições das artes teatrais não são
taxativas, mas auxiliam nos processos de evidenciação da colonialidade e da
colonização que constituem também os corpos, inclusive de atores. Para
professores, diretores ou alunos, considero interessante para pensar e atuar no
teatro e em suas possibilidades de descolonização e descolonialidade de corpos.
Tratando os corpos colonizados e como corpos que sofrem a
colonialidade, Mignolo (2008) explica que

Na América do Sul, na América Central e no Caribe, o pensamento


descolonial vive nas mentes e corpos de indígenas bem como nas de
afrodescendentes. As memórias gravadas em seus corpos por gerações e a
marginalização sócio-política a qual foram sujeitos por instituições imperiais
62
diretas, bem como por instituições republicanas controladas pela população
crioula dos descendentes europeus, alimentaram uma mudança na geo- e
na política de Estado de conhecimento. (MIGNOLO, 2008, p.292).

Na América, como em outros cantos do mundo, nossos corpos são


diversos, os pensamentos descoloniais são plurais, e não cabe o universalismo, o
universalismo descolonial é para que todas as identidades e epistemologias caibam
no mundo. A perspectiva descolonial não pretende sobreposição, nela espera-se a
equidade de mundos.

[...] a opção descolonial concede à concepção da reprodução da vida que


vem de damnés, na terminologia de Frantz Fanon, ou seja, da perspectiva
da maioria das pessoas do planeta cujas vidas foram declaradas
dispensáveis, cuja dignidade foi humilhada, cujos corpos foram usados
como força de trabalho: reprodução de vida aqui é um conceito que emerge
dos afros escravizados e dos indígenas na formação de uma economia
capitalista, e que se estende à reprodução da morte através da expansão
imperial do ocidente e do crescimento da economia capitalista. Essa é a
opção descolonial que alimenta o pensamento descolonial ao imaginar um
mundo no qual muitos mundos podem co-existir.
Hoje, uma forma de pensamento descolonial que não confesse sujeição às
categorias gregas de pensamento já é uma opção existente: re-ins-há uma
lista de “outros textos brancos nacionalistas. (MIGNOLO, 2008, p. 297, grifo
do autor).

Dessa forma, se a opção descolonial é um mundo da co-


existência,no qual percebemos a colonialidade intrínseca e descobrimos como viver
com ela, podemos pensar que corpos descoloniais podem co-existir. Eles podem
perceber sua identidade e, sendo assim, os estados dos corpos também podem co-
existir?

[...] Os conceitos na história da filosofia européia são mono-tópicos e uni-


versais, não pluri-tópicos e pluri-versais. E por que os conceitos que são
elaborados nos projetos descoloniais e em processo de pensamento
descolonial são pluritópicos e pluri-versais? Porque a ferida colonial foi
diversificada, empregando linguagem de Wall Street, por todo o mundo [...]
tiveram que lidar, de uma forma ou de outra, com a cosmovisão mono-
tópica da civilização ocidental encapsulada no grego e no latim, nas seis
línguas modernas imperiais da Europa, e na subjetividade correspondente
registrada na e através da expressão artística, na cultura popular, na
comunicação de massa, etc. Eis porque a consciência mestiça é diversa e
diversificada. E também eis porque qualquer projeto descolonial e qualquer
opção descolonial precisou lidar com a epistemologia de fronteira e o
pensamento de fronteira e duplas traduções como uma linha metodológica
(peço desculpas pelo pleonasmo e pela expressão redundante “caminho
metodológico”. (MIGNOLO, 2008, p. 304).
63
A consciência mestiça (MIGNOLO, 2008), por exemplo, é um
caminho desbravador para pensar os processos de invenção da cultura (Wagner,
2002), posso relacionar na criação de uma consciência descolonial. Pensar numa
organização cultural pluri-versal significa ter numa sociedade uma série de leituras
sobre a sua cultura ou as demais. A pluversalidade de um povo pode acarretar em
uma leitura plural dos símbolos de um contexto similar como pensado por Wagner?
Qual a contribuição do pensamento descolonial numa visão pluri-versal?

[...] Descolonial significa pensar a partir da exterioridade e em uma posição


epistêmica subalterna vis-à-vis à hegemonia epistêmica que cria, constrói,
erege um exterior a fim de assegurar sua interioridade. [...] Descolonial
implica pensar a partir das línguas e das categorias de pensamento não
incluídas nos fundamentos dos pensamentos ocidentais. (MIGNOLO, 2008,
p. 305).

Nesse sentido, como seria possível descolonizar os corpos? Como


seria um corpo que pensasse/atuasse de uma maneira subversiva em relação ao
seu sistema-mundo? De um lado, a descolonialidade ainda ocorre com seus
percalços, sobre a qual nem sempre é possível separar o eurocentrismo, mas a sua
busca está em pensar desde pontos menos europeus e/ou norte-americanos. Seria
o corpo cênico essa outra perspectiva? Ou seria ainda um momento de
reconhecimento da colonialidade presente no corpo cotidiano? A exemplo da
influência européia dentro do projeto descolonial, Mignolo apresenta a

Descolonização, ou melhor, descolonialidade, significa ao mesmo tempo: a)


desvelar a lógica da colonialidade e da reprodução da matriz colonial do
poder (que, é claro, significa uma economia capitalista); e b) desconectar-se
dos efeitos totalitários das subjetividades e categorias de pensamento
ocidentais (por exemplo, o bem sucedido e progressivo sujeito e prisioneiro
cego do consumismo). [...] o marxismo não pode desconectar no sentido da
descolonialidade, porque ou não mais haverá marxismo ou será um novo
projeto imperial que absorva, engula, silencie e reprima categorias de
pensamento articuladas em línguas e cosmologias que não são o latim e o
grego [...]. (MIGNOLO, 2008, p. 314).

Se a descolonialidade é um processo similar ao reconhecimento da


colonialidade por estar limitada nas redes que se consolidaram por meio de um
modelo de sistema-mundo eurocêntrico e pela violência da colonização. Sugiro
pensar como um processo artístico pode ser utilizado para que o ator reconheça a
64
colonialidade de seu corpo. Não me refiro à desconstrução para buscar uma nova
maneira de trabalhar o corpo, mas ao reconhecimento de aspectos de nosso corpo
que são frutos de um cotidiano pautado também na colonialidade.

3.1 UMA BUSCA PELO CORPO ATENSO

A seguir, tratarei da experiência da produção de um espetáculo


veiculado em 2011 no estado de São Paulo, organizado pelo diretor Juliano
Casimiro, em que apresentou proposições sobre o corpo cênico. Reitero que a
análise de documentos se dará por meio da exploração do diário de bordo disponível
online na página do Eu-Outro NPC. Adicionalmente, utilizarei como instrumento de
pesquisa entrevistas semi-estruturadas com participantes do núcleo de pesquisa
cênica.
O Eu-Outro Núcleo de Pesquisa Cênica foi criado no ano de 2009,
na cidade de Tatuí, interior de São Paulo. A atividade executada no núcleo busca
atingir três esferas: artística, sociocultural e epistemológica. O trabalho artístico tem
seu olhar voltado para a pesquisa teórico-prática de teatro, dança, música e outras
áreas afins. Enquanto busca levar espetáculos com estéticas mais experimentais
para o interior de São Paulo, fomentando público, procura valorizar os saberes
populares e a formação de nova identidade cultural de seus integrantes. O núcleo
promove a produção científica oferecendo cursos e realizando publicações no
ambiente acadêmico. O diretor Casimiro experimentou com os membros do grupo a
noção de corpo atenso, como pude vivenciar e revisitar por meio do diário de bordo.
As análises e discussões estão primordialmente pautadas na ideia de Mignolo de
que a colonialidade permanece em nosso contexto, assim como a descolonialidade
auxilia o processo de reconhecimento dos modelos coloniais.
A primeira observação importante para me aproximar das intenções
de Casimiro, no que se refere ao nosso recorte temático, é que ele parece, antes de
tudo, buscar um corpo atento para as indicações e conduções durante a prática. Ou
seja, um corpo ativo com seus sentidos abertos e prontos para dialogar com o outro.
Um dos aspectos cruciais dessa busca é que o ator precisa voltar o olhar para seu
corpo a fim de tirá-lo do automatismo. Assim como Barba (1994), Casimiro considera
65
que o ator precisa no mínimo intuir a sua condição para realizar o trabalho. O que
significa dizer que precisa imaginar o caminho que deve percorrer para desvelar os
automatismos de seu corpo. Seu olhar deve estar voltado ao seu estado. Isso
implica na qualidade da presença do ator, como se pode observar no trecho
transcrito a seguir:

Eu não devo realizar uma ação, eu devo ser essa ação escrita em um
espaço definido. Como a ação acontece em mim, se eu estou em um
espaço, ela acontece no espaço. Se eu estou numa relação, ela acontece
na relação. Minha coluna é o espaço da minha existência. Minha coluna
escreve para que a coluna do outro leia. Estar em cena, me parece, é estar
com a coluna presentificada. Meu corpo ideal é minha coluna ideal.
(CASIMIRO, 16 de out. de 2010).

Como se pode observar, o corpo é literalmente colocado como meio


na condução dos atores, e não o discurso verbal, como se poderia esperar. No
momento em que o ator disponibiliza-se para a proposta, ele está em diálogo
intencional com seu corpo? Se sim, posso então iniciar uma trajetória refletindo
sobre a descolonialidade. O primeiro passo seria dialogar com seu corpo, para então
tomar consciência de suas amarras. Essa iniciativa seria o primeiro passo para
acabar com o automatismo de que fala Foucault (1987) sobre a disciplina dos corpos
e o biopoder.
Dessa forma, o ator além de estar atento ao seu corpo, busca uma
consciência não cotidiana a respeito do seu corpo. E, assim, leva seu corpo para um
estado extracotidiano. É nessa situação de extracotidianidade do corpo que o diretor
Casimiro acredita que o ator possa tomar consciência de suas amarras corporais,
não só para a cena, mas também e, principalmente, para a vida cotidiana. Se o ator
passa a ter consciência de seu corpo, e talvez reconheça seus automatismos,
estaria no rumo de experimentar um corpo descolonial.
No processo de construção do espetáculo “Favores da Lua – O
Prólogo”, Casimiro apresentou aos atores do núcleo a noção de corpo atenso para
que fosse explorada. O corpo atenso busca ter o mínimo de tensões, colocando
apenas as necessárias para a cena.

A busca pelo “corpo atenso”, que se configura, em resumo, como um corpo


portador apenas de tensões necessárias à sua manutenção – todas as
66
outras tensões devem surgir na medida em que se apresentem
imprescindíveis ou deliberadamente trazidas aos corpos; a emergência do
ENTRE como qualidade estética das relações entre os corpos e as coisas,
fruto das fricções entre as diferentes materialidades que compõem o jogo
cênico. (SAMPAIO, 2014, p.116).

Portanto, no espaço de compartilhamento de experiências e


informações, a prática teatral pode ser o jogo, onde as tensões necessárias ao corpo
serão percebidas. Ou melhor, se partir de um corpo atenso, que possui apenas as
tensões necessárias de sua biologia quando disposto à cena, sofrerá pressões das
diversas materialidades do jogo, gerando novas tensões. No entanto, o ator deverá,
de acordo com esta proposta, gerar apenas as tensões imprescindíveis para a cena.

Depois de constituído sobre as tensões necessárias, o “corpo atenso” deve


ser friccionado com as outras materialidades da cena, a fim de que possa,
efetivamente, construir sobre si as tensões necessárias ao jogo instaurado
na criação (e não somente na sua própria existência). As tensões
necessárias devem surgir, assim, na medida em que a ação cênica vai
sendo composta e os corpos são assumidos como uma das materialidades
dessa composição. Para nós, do NPC, toda vez que o corpo possuir
tensões compatíveis com as exigências da ação e da significação estética
vislumbrada, ainda que exista (necessariamente) tensão em sua dimensão
biológica, ele será considerado por nós como “atenso”. (SAMPAIO, 2014
p.124).

Mas o corpo precisa, segundo o autor, estar em interação com o


meio para que possa ser afetado e pressionado pelas materialidades da cena (ator,
luz, som, cenário, etc.) para aí realizar as mudanças necessárias. Tensionar o que
for preciso e relaxar o que não é necessário.

[...] todo o trabalho com pressão que estamos descrevendo se estrutura


tanto no nível do contato entre corpos, entre materialidades, como também
pela perspectiva da (co)presença (sem contato real), e que um e outro
caminhos servem, em última instância, para revelar os seres que são
corresponsáveis pelo surgimento do ENTRE a ser fruído e significado pelo
espectador. Ou seja, as materialidades da cena organizam um projeto único
de composição narrativa (narratividade), que, de alguma forma, revelam
também os seus criadores. Sendo assim, cada uma das escolhas por
materialidades e jogos de fricção específicos passa, prioritariamente, por
uma relação de “observação” e interferência material e espaço-temporal,
com fins da construção de imagens dispostas não linearmente. (SAMPAIO,
2014, p. 131).

67
Ao vivenciar o corpo atenso o ator se permite ter uma postura
descolonial. Isto porque, quando o ator de algum modo retira tensões cotidianas
para permitir que a cena mostre as tensões necessárias, está construindo um corpo
que busca contrapor em sua prática o modelo construído pelo cotidiano.

Ou seja, o “corpo atenso” é contextualmente construído e só é possível ser


efetivamente experienciado se o ser-ator se abre para a dimensão biológica
da sua própria existência; todavia, esse existir nunca é independente das
dimensões sociais e culturais do corpo. Essa abertura, portanto, é uma
abertura do ser para o corpo-em-si. Como veremos adiante, mesmo que
exista uma dimensão do ser-em-si, ela nunca está desvinculada de uma
existência do ser-para-si. [...] Supomos assim que, à medida que ele se
aproxima de sua organização biofísica, é remetido à sua existência
sociocultural. Ainda que o acesso à dimensão biológica do corpo nunca seja
dada ao ser direta e isoladamente, é só porque ela existe que qualquer
outra dimensão do fenômeno humano pode acontecer. Em função disso,
com o passar do tempo e das experimentações, a maior parte dos seres-
atores percebeu uma considerável diminuição da distância entre o “corpo
atenso” e o corpo cotidiano, relatando mudanças de tonicidade e percepção
não no corpo em cena somente, mas também, e principalmente, no corpo
em suas atividades cotidianas. (SAMPAIO, 2014, p.124-125).

Durante as entrevistas, constatei a recorrência dos atores em


relacionarem a percepção do corpo atenso a do corpo cotidiano. Relembro
discussões que se encaminhavam neste sentido durante as nossas trocas de
experiências no grupo. Os quatro atores entrevistados comentaram que a partir do
processo artístico passaram a prestar mais atenção em suas condições e estados
físicos ao longo do dia, quando não estavam em cena, contaram que percebiam
suas tensões, posturas, respiração. Observavam uma série de comportamentos e
funções que nosso corpo executa, sobre as quais, antes, não tinham um olhar atento
e consciente sobre eles.
Para dialogar com a noção de corpo atenso, Casimiro apresenta
uma comparação deste corpo atenso à noção de um corpo cor-primária. O autor e
diretor sugere que corpo terá seu estado formulado a partir das interferências por ele
sofridas.

Em alguns momentos [...] comparamos o “corpo atenso” à ideia de uma cor


primária. Cada ser-ator em criação e sob a perspectiva do “corpo atenso”,
expõe uma base, um marco zero, para múltiplas interações criativas.
Enquanto as cores primárias são apenas três, os “corpos atensos”,

68
enquanto pontos iniciais, são infinitos, mas cada um possui um repertório
potencial finito de criação. (SAMPAIO, 2014, p. 127).

Casimiro apresenta a noção de corpo-cor-primária como a base para


o corpo atenso. Essa ideia de corpo-cor-primária se refere a um corpo, de diferentes
cores e nuances, que possui os elementos necessários para futuras combinações e
que ganha suas tonalidades através do diálogo com os elementos e integrantes da
cena. “[...] Esse corpo quando disponibilizado para o jogo de pressões sofrerá o
impacto de novas tensões e relaxamentos que o possibilitarão à composição do dito
corpo cênico, segundo os princípios com os quais trabalhamos.” (CASIMIRO, 18 de
mai. 2011).
O autor ainda escreve que “[...] Um conjunto de cores primárias
possibilitam qualquer coloração das cenas. Cabe ao diretor orientar a mistura das
cores.” (CASIMIRO, 16 de out. de 2010). No trabalho com o corpo atenso, os
automatismos não são evitados, pelo contrário, no estado de representação
buscam-se caminhos para que se reconheça os automatismos e para que se
permita uma construção identitária que, no mínimo, se paute na admissão da
existência da colonialidade que constitui o corpo. Se o corpo atenso varia a cada
indivíduo, poderia então estabelecer e buscar seu modo originário de estar.

[...] um corpo que esteja posto nas suas tensões necessárias; não falamos,
reitero aqui, de um corpo que se mantenha em um registro estritamente
cotidiano, quanto à percepção, por exemplo, mas de um corpo que deveria
ele mesmo estar lá, nas ações cotidianas. Por que na cena se deve ampliar
os sentidos? Me parece mais lógico que pensemos pelo inverso: este corpo
atenso de que falamos, e que pretendemos organizar com nossas
atividades, considera a um só instante as dimensões do corpo de si, em
seus aspectos físicos, mas também afetivo-cognitivos, e o outro como
(co)construtor dessa dinâmica de ação simbólica, que, nos parece, é
plausível para a cena e para a vida cotidiana. Quando digo outro, digo o
outro como espaço, como iluminação, como sonoridade, mas também como
outro-sujeito. Ou seja, o registro que buscamos para os corpos é
potencialmente cênico e cotidiano ao mesmo tempo, dependendo, é claro,
da inserção que fazemos dele em determinada cultura, se considerarmos a
cena em seu funcionamento, como uma cultura interdependente e análoga
àquela em que vivem os sujeitos em estado de não-atuação-cênica.
(CASIMIRO, 21 de mai. de 2011).

É nessa direção do destensionamento do corpo em direção ao


cotidiano que considero este processo artístico como sendo um processo

69
descolonial. No entanto, é preciso reiterar que o condutor do grupo não aponta em
seus relatos o corpo cotidiano como um corpo colonizado, muito provavelmente
porque esse não era um tema de interesse explícito na época das proposições das
atividades que me servem de ilustração. Por um lado, o corpo atenso é singular, e
nesse sentido, é original. Por outro, ele está para que se construa sobre ele, então
de alguma forma o corpo atenso abre espaço para que o corpo em estado
descolonial possa permitir a construção do corpo cênico ideal para o contexto.

O Corpo “Atenso” e o corpo comum têm um limiar de separação muito


tênue, mas é importante não os aceitar como o mesmo. O corpo “atenso”
deverá sempre estar em cena, já que se constrói sobre ele. O corpo
cotidiano deverá estar em cena só quando a cena comportar. (CASIMIRO,
16 de out. de 2010)

Um dos caminhos adotados pelo diretor para se chegar ao corpo


atenso foi trabalhar com a vertigem. Para Casimiro, ao diminuir o controle racional
sobre o corpo, alguns automatismos e linhas de força que agiam sobre o corpo se
tornavam evidentes como pode ser observado na seguinte passagem do diário de
bordo:

Os relatos foram no sentido de que dessa maneira as tensões dos corpos


ficam ainda mais evidenciadas. Esse ponto me interessa muito. Será que a
vertigem pode ser um caminho de descoberta das tensões e aí resultaria
um trabalho intenso para se chegar a um corpo atenso? Elton, por exemplo,
deixa evidenciar sua tensão nas pernas. Relato de mais de uma pessoa do
grupo. Aninha, logo após o giro, coloca uma tensão no rosto que
rapidamente é identificada por alguém (não me lembro quem foi).
(CASIMIRO, 13 de nov. de 2010).

Nos exercícios de vertigem, os atores eram conduzidos a esse


estado girando sobre si ou ao intensificar uma das linhas de força ao caminhar,
podiam ressaltar as laterais, frente/atrás ou em cima/ em baixo. Cito a seguir um
exemplo de exercício de vertigem registrado no diário de bordo. “Vertigem pelo giro
(com e sem linhas de força de caminhada). Gira-se o máximo que der e depois sai
em caminhada experimentando linhas de força da caminhada.” (CASIMIRO, 13 de
NOV. de 2010). Os estudos da vertigem parecem ter se tornado muito importantes
para os atores, já que nas entrevistas todos eles se referiram a essas experiências

70
para a montagem do espetáculo. Talvez a importância percebida pelos atores vá ao
encontro da proposta de Sampaio.

A vertigem, de certa forma, impede que o ser-ator construa o ser-da-cena


completamente sob os cuidados da razão. Ao confundir os próprios
sentidos, no giro frenético, por exemplo, o corpo passa a se revelar ainda
mais no turbilhão de sensações e na tentativa biológica de se (re)equilibrar.
As tensões desnecessárias tendem a ficar consideravelmente mais
evidentes para os olhos do observador e, assim, na condução, o orientador
tem mais acesso aos passos a serem dados em busca do “corpo atenso”.
(SAMPAIO, 2014, p. 132).

No decorrer dos trabalhos, os atores perceberam nessa(s)


atividade(s) seus pontos de atração, assim como muitos relataram perceber suas
tensões com maior ênfase. Por pontos de atração me refiro a uma força propulsora
na caminhada, poderia ser uma caminhada que possui um fio de tensão que conduz
o corpo do ator, na época alguns atores relataram sentir uma força maior que
conduzia seu andar. Poderia ser, por exemplo, para cima que durante a caminhada
puxava seu corpo para cima amplificando um andar leve que parecia deslizar pelo
chão. No entanto, com essa atividade não estávamos desconstruindo o corpo, e sim
desvelando algumas de suas características, ou seja, tornando a colonialidade
evidente e abrindo caminhos para a descolonização, que é, em grande medida, uma
iniciativa pessoal e não está vinculada com a cena a ser criada.
A construção do corpo atenso é possível também por meio de outras
naturezas de jogo, tais como o exemplo a seguir:

Corpo Ideal: Caminhem! Esse é o corpo que vocês julgam ideal para a
cena? Se sim, reparar qual é esse corpo. Se não, como chegar ao corpo
ideal? Realizar a passagem de um a outro – passo-a-passo! O que
realmente é necessário nesse corpo ideal? Parte do grupo declarou que
com o passar do tempo de exercícios a diferença se torna quase
imperceptível. O limiar entre o corpo atenso e o corpo cotidiano se tornar
mais tênue, por exemplo, para o Jeziel, segundo ele mesmo. Há diferença,
certamente, em relação à tonicidade e à percepção. Essa diferença foi
relatada nos exercícios abaixo;
Corpo atenso: Busca do corpo atenso em atividades cotidianas: Sentar,
lavar, deitar, caminhar. Descobrir a coluna desse corpo atenso; [...].
(CASIMIRO, 05 de fev. de 2011).

71
Para que os jogos sirvam de suporte, o ator precisa de algum modo
considerar-se elemento do jogo, precisa estar aberto às dinâmicas estabelecidas
para que possa ser (co)autor do jogo.

[...] Eu prefiro dizer que a adaptabilidade é o fator que permite a existência


dessa estrutura especulativa a que nos dispomos enquanto pesquisa
cênica.Só há a possibilidade dessa investigação ser validada porque não
trabalhamos do ponto de partida de um processo normativo e tampouco
desejamos estruturar um.Ao propor a investigação coletiva de um corpo
atenso, pensamos na ideia de se construir individualmente, e segundo
características específicas a cada corporeidade, um caminho de se
entender praticamente a existência cênica dessa “atensão corpórea”.
(CASIMIRO, 22 de jan. 2011).

Ainda que discutamos sobre uma estrutura corpórea, esclareço que


não se trata de uma forma rígida, este corpo atenso ou cor-primária possuí suas
variações em cada corporeidade. Trata-se de um horizonte almejado pelos atores,
mas que tanto percurso como ponto de chegada será individual a depender de seus
trajetos no jogo e na cena. Os integrantes e ex-integrantes que foram entrevistados
comentaram que a construção do corpo cotidiano, para eles, era social e cultural.
Para eles, o indivíduo não percebe seu corpo no decorrer desse estado apreendido,
como observamos na fala de Thiago de Castro Leite21.

O corpo cotidiano é formado e organizado a partir das experiências que


temos no dia a dia. Ou seja, tudo aquilo que fazemos e experienciamos ao
longo de nossos dias configura nosso corpo. Como se esse corpo fosse
resultado de nosso simples viver e se relacionar com as coisas do mundo e
com as outras pessoas que nele também habitam.
[...]
Sem dúvida, nós não somos dois seres, o ser cotidiano e o ser ator. Somos
um só. A questão é que quando nos lançamos na experiência teatral,
experimentamos possibilidades que em nosso cotidiano, muitas vezes
deixamos de lado. Na medida em que nossa percepção na prática teatral se
amplia, nossa percepção no mundo também. Se nosso corpo cotidiano é
resultado de tudo que nos ocorre, as experiências vivenciadas na pesquisa
teatral também afetará esse corpo.
[...]
Acho que principalmente a percepção de um espaço tridimensional. Digo
isso porque frequentemente só nos atentamos aquilo que está em nossa
frente, diante dos olhos. O fato de enxergarmos com os olhos, muitas
vezes, limita todas as outras formas de vermos o mundo, de sentirmos as

21
Os nomes dos atores foram mantidos porque parto nesta pesquisa de documentos públicos já
compartilhados com nomes originais dos autores, não infligindo assim qualquer conduta ética em
pesquisa.

72
coisas. Como se a prática teatral na busca por um corpo cênico abrisse
poros, ativasse canais de percepção que devido as demandas do dia a dia
22
ficam tapados. (INFORMAÇÃO VERBAL).

Após passar pelo processo artístico, os atores começaram a atentar-


se para o corpo durante seu dia-a-dia, reconhecendo um pouco mais suas tensões,
movimentos e ações. Não comentam perceber necessariamente alguma mudança
física, mas uma atenção maior voltada para seus próprios movimentos, posturas ou
estados energéticos. Quando começaram a construir este corpo em estado de
representação, relataram reconhecer micro movimentos que antes não reconheciam.
Janaína Sizinio (2016) comentou que prestava mais atenção inclusive em sua
respiração, que por muitas vezes não executava a respiração diafragmática,
necessária ao trabalho do ator.
Elton Pinheiro (2016) disse que descobriu uma série de tensões em
seu caminhar que antes não percebia. Janaína Sizinio (2016) relatou que, após
alguns exercícios, passou a perceber-se mais durante seu cotidiano. Nenhum
relatou buscar estar com o corpo em estado de representação, mas passaram a
observar-se de uma forma que não costumavam fazer. Nas entrevistas, muitos
consideraram que o jogo permitia chegar ao estado cênico do corpo dentro do
processo analisado nessa pesquisa. A partir dos relatos e da minha experiência no
coletivo posso dizer que meu corpo precisa do outro. Se tenho um corpo atenso ou
cor-primária é a interação que vai ditar as tensões e misturas de cores necessárias à
cena. Portanto, é um corpo que busca a interação.
Para os integrantes e ex-integrantes do Eu-Outro NPC, o corpo
cotidiano se dá pelas vivências do dia-a-dia. Para Lúcia Spivak (2016), “o corpo
cotidiano não se constrói, ele se dá naturalmente”. À medida que em seu dia-a-dia
os atores retomam lembranças dos ensaios, eles buscam que seu corpo de algum
modo se acomode de modo similar ao que descobriram em seus treinamentos. A
atriz relata que trabalhar com o grupo fez com que alinhasse seu corpo de forma
diferente em relação a seu cotidiano. Nesse sentido, somos o resultado de nossas
experiências, logo, o estado cênico, enquanto experiência, reverbera em nós, seja

22
Informação verbal concedida por Thiago de Castro Leite, no dia 10 de novembro de 2016, em
entrevista.

73
cotidiana ou cenicamente. Todos os entrevistados confirmaram ter um momento
anterior à representação, no qual acreditam ativar o corpo cênico, cada um procurou
um caminho. Através de uma maior concentração, eles se propuseram a fazer uso
de seu corpo com outra forma de atenção. Uns relataram meditar; outros, realizar
exercícios energéticos como saltos, agachamentos e abdominais.
As entrevistas e análises do diário de bordo me ajudaram a
responder à questão norteadora deste trabalho, pois os entrevistados e as
entrevistadas passam a perceber o corpo cotidiano de outra maneira e a estarem
mais atentos em si, o que facilita o caminho para desvelar aspectos coloniais
presentes em cada um. A importância desse tipo de pesquisa realizada pelo núcleo
no âmbito das discussões propostas nesse texto são esclarecedoras para seguirmos
refletindo sobre a concepção de um corpo cotidiano e seus automatismos. O tema
da descolonialidade assim está implicado nas práticas do grupo na medida em que o
ator reconhece e percebe seu corpo cotidiano. Como o exemplo da reflexão sobre
sua respiração, no relato feito pela atriz Janaína, à medida que participava do
processo criativo se apropriava das informações. Ou em como Thiago passou a
sentir-se mais presente em seu estado cotidiano.
Essas experiências possibilitam o avanço das discussões sobre as
teorias e o debate pós-coloniais para as artes cênicas, e permitem que as pessoas
tomem consciência, controle de seus corpos e desenvolvam suas qualidades e
potencialidades. No próximo capítulo, levarei a discussão ao ambiente escolar,
visando contribuir para a formação do sujeito, ao possibilitar outras formas de
relação com o mundo.

74
4. O CORPO COLONIZADO NOS PROCESSOS ARTÍSTICO-PEDAGÓGICOS
– A colonialidade na relação professor-aluno

Dando continuidade às discussões realizadas no capítulo anterior,


neste capítulo pretendo refletir sobre práticas artístico-pedagógicas como processos
que podem estimular e/ou revelar certos aspectos do corpo colonial, a partir da
minha experiência como condutora no ensino de teatro. É importante frisar que a
proposta que apresento traz uma reflexão desenvolvida durante minhas aulas de
teatro. Não é e nem pretendo que seja uma fórmula para o fazer artístico-
pedagógico. Prossigo o debate com as teorias pós-coloniais, buscando apresentar
momentos das práticas artístico-pedagógicas em que o corpo pode ser/estar
descolonizado e/ou descolonial. O primeiro ponto de partida é considerar a
colonialidade do corpo do aluno, como discutida nos capítulos anteriores.
As discussões que foram construídas até o momento me auxiliam a
compor este último capítulo para refletir as diferenças entre corpo cênico e corpo
cotidiano. No primeiro capítulo, apoiada nos autores que se propõem estudar o
corpo em seu caráter cultural e seus processos de (co)construção com o meio,
desenvolvi a ideia do corpo colonizado. Após a primeira fase desta pesquisa
apresentei ao leitor a possibilidade do corpo em um estado não cotidiano, encarando
essa transição como um processo de descolonização. O terceiro capítulo demonstra
como o processo artístico pode reverberar no estado do corpo, possibilitando
estados que se diferenciem do cotidiano. O enfoque é refletir como, na prática
teatral, o processo artístico pode evidenciar ao ator/aluno suas amarras,
possibilitando reconhecer as diferenças e tornar consciente em seu cotidiano,
percebendo a colonialidade que o habita. Finalmente, a proposta do último capítulo é
refletir sobre o processo de condução, isto é, como perceber e se relacionar com o
corpo colonizado dentro da sala de aula.
Conceber o corpo como construção cultural além de biológica me
permitiu considerar que o corpo responde e atua em relação ao biopoder (Foucault,
1987). É possível sugerir, a partir das teorias pós-coloniais, que é possível trilhar um
caminho contrário, especialmente quando aceitamos que o poder está presente não
75
somente nas instituições e no Estado, mas também nas relações sociais, como
observou Foucault.
Considero o corpo como (co)regulador de seu meio e que sofre os
desdobramentos dessa prática, mas também atua conjuntamente com o poder. Um
exemplo dessa via de mão dupla poderia ser a relação/professor aluno, na qual os
corpos são (co)regulados, mas que o professor pode solicitar, induzir e condicionar o
aluno na execução das atividades caso queira ou caso não esteja atento para este
ponto. O professor pode disciplinar o aluno e também ser disciplinado pela relação
estabelecida em sala e pela instituição de poder que é a escola.
Minha proposta, neste capítulo, é apresentar uma reflexão sobre a
condução de exercícios na aula de teatro, onde os alunos possam reconhecer a
colonialidade em seus corpos, e não reforçá-las por meio da reprodução de técnicas
(INGOLD, 2000, buscando perceber se a condução não reitera a colonialidade
presente nos corpos. Quijano (2005) e Mignolo (2005) apontaram a dificuldade em
desenvolver projetos pós-coloniais livres de toda colonialidade que nos permeia,
pois somos frutos destes projetos e nossas concepções foram construídas e
influenciadas por aspectos anteriores a nós, somos provenientes de uma cultura que
nos antecede.
Proponho refletir como as aulas de teatro podem fazer com que o
aluno perceba as amarras cotidianas que o cercam, auxiliando-o a tomar
consciência da colonialidade nele presente. Como se pode apontar caminhos para
construir um estado diferente do corpo cotidiano? Ou seja, quais seriam atitudes de
descolonização para começar a pensar e a experienciar um corpo descolonial? Ao
descobrir outro estado do corpo que não o do corpo cotidiano, quem sabe o aluno
poderia também descobrir um estado que estivesse livre dos entraves coloniais?
Os exercícios que serão apresentados servem para apoiar a
pesquisa, não os apresento como sendo atividades chave para promover a
descolonização, apresento a modo de ilustração. Depois de pensar os aspectos que
se enquadram nas teorias pós-coloniais por meio das artes da cena, espero trazer o
debate para a sala de aula e mostrar possíveis caminhos para que o aluno se
descolonize e/ou perceba aspectos presentes em seu corpo frutos de uma
colonização. Vale ressaltar e reiterar que considero que a diferença entre o corpo

76
descolonizado e o corpo descolonial se dá no seguinte sentido: enquanto o corpo
descolonizado pode mudar de estado energético, construindo outro estado que não
o de seu corpo cotidiano e permitindo tal mudança, o corpo descolonial revela
aspectos de suas amarras coloniais, mas que não necessariamente pode se
desvincular delas.
O corpo descolonizado, se pensado a partir de Quijano (2005), é o
corpo que se ausenta do estado colonizado. Assim como a descolonização, para o
autor, é um processo que permite outra forma de operar o mundo, mas carrega
traços da colonização, o corpo descolonizado transforma seu estado, consciência e
mecanismos de sua operação para outro nível, mas não excluí as propriedades de
uma colonização provenientes do biopoder (Foucault, 1987). Ele é capaz de
exteriorizar e/ou interiorizar outro estado, mas isso não elimina a colonialidade
presente, apenas disfarça. Em certa medida, o corpo descolonizado pode ainda ser
um corpo colonizado, nosso olhar colonizado poderia criar uma ilusão sobre a
experiência como sendo descolonial.
Por outro lado, mas ainda em diálogo com as teorias pós-coloniais,
Mignolo (2005) aborda questões referentes à descolonialidade, que segundo o autor
se trata da percepção de uma colonialidade presente nas instituições e relações
sociais, econômicas e políticas, e pressupõe a tentativa de anular ou minimizar os
vestígios coloniais, buscando uma identidade própria. Sustentada pela perspectiva
de Mignolo (2005) entendo o corpo descolonial como capaz de reconhecer aspectos
coloniais que o constroem. Nesse sentido, o corpo descolonial é capaz de perceber
suas amarras e talvez diminuí-las ou afrouxá-las.
Duas das perguntas que me movem sobre as práticas artístico-
pedagógicas que desenvolvo são: Como recebo e facilito o trabalho para um aluno
que tem seu corpo colonizado? Como eu, professora e diretora teatral, reconheço as
potencialidades do meu aluno? Sendo o seu corpo colonial ou não, não cabe a mim
enquanto professora, conduzi-lo à descolonização e/ou à descolonialidade. Talvez
me caiba apenas dar ao próprio aluno oportunidades e possibilidades de sentir e
perceber como ele está de algum modo implicado pelas e nas relações de
colonialidade, deixando a ele a tarefa de decidir como lidar com o colonialismo que é
desvelado nele próprio. Nessa direção, pretendo evidenciar momentos nos quais, na

77
minha prática docente, pude perceber aspectos que acredito serem frutos da
colonização e/ou da colonialidade.
A colonização foi um processo de exploração, controle e extração
dos recursos naturais. Através da conquista houve um controle do conhecimento e
da subjetividade, onde a questão modernidade/colonialidade levou a um controle da
existência. E retomando Foucault, o controle dos corpos atua em várias instâncias,
nas relações entre sujeitos e instituições. Logo, a escola é um espaço disciplinar, e
um processo que busque evidenciar as amarras do corpo teria que descobrir
mecanismos para isso dentro de um espaço que propõe o oposto. Como
professores poderiam apontar caminhos que evidenciassem a colonialidade do
corpo para o aluno, se o olhar do professor e o espaço de compartilhamento em que
a relação professor-aluno se estabelece são colonizadores?
Quijano (2000) aponta que o europeu era considerado o auge do
desenvolvimento humano e por acreditarem estar acima dos demais, sentiram-se na
obrigação moral de catequizar o restante do mundo. Com tal processo as
particularidades dos povos latino-americanos foram cada vez mais desvalorizadas,
convergindo a um padrão único de conhecimento.
A escola pode ser catequizadora, primeiro porque traz um modelo
europeu de educação, as formações dos professores brasileiros vêm de uma
academia moldada pelos padrões franceses de universidades. Então, mesmo que o
professor possua em si traços de uma colonização, estaria agindo como resistência,
o que para os autores pós-coloniais já seria uma forma de descolonialidade.
Para prosseguir, esclareço alguns pontos fundamentais para
percorrer esse caminho reflexivo. Parto do princípio de que a condução em sala de
aula não estabelece uma relação unidirecional, em que um sujeito transfere
conhecimento ao outro. A condução é uma das atividades que propicia o
estabelecimento de espaços de compartilhamento, permitindo aos corpos
interagirem e disponibilizarem na relação com o outro, seus desejos e expectativas.
Assim, o professor deve escutar o aluno, pois a escuta conduz a
prática. Como explicitado no primeiro capítulo, o corpo é (co)construtor de seu meio,
logo, a relação entre professor/aluno é bidirecional. Mas para que haja interação,

78
não é apenas o outro que mobiliza seu corpo, o contexto23 também atua sobre o
corpo, assim como é afetado por ele. O contexto ao qual o aluno está inserido é
também uma construção.
Então, considero o/a aluno/a e a/o professor/a a partir de suas
dimensões biológicas, sociais e culturais. Quando estão em interação na aula, a
construção do conhecimento emerge do encontro e do atrito entre as dimensões do
aluno com a do condutor, carregadas de suas experiências anteriores e suas
expectativas. Nessa relação, professor e aluno se colocam disponíveis para a
interação, em que existe escuta de ambas as partes para que possam dialogar, eles
processam a informação com o conhecimento prévio e um retorno ao outro (SIMÃO;
SAMPAIO, 2014).
Dessa forma, carregam suas experiências anteriores e seus desejos
atuais. No entanto, se considero as informações prévias como um processamento
de uma perspectiva gerada também pela colonialidade, nessas condições o olhar do
professor deveria estar atento e cauteloso para não reproduzir ações e
comportamentos coloniais em relação ao corpo. Isto é, caso a proposta seja
conduzir a aula e o aluno por um prisma pós-colonial. Por essa razão,

O Condutor, nesses termos, deverá se atentar não só para os objetivos da


atividade proposta, mas também, e, talvez, prioritariamente, às dimensões
biológicas e culturais do corpo, já que a primeira estabelece os limites e
potencialidades das ações, e a segunda permite a veiculação de
conhecimentos e de significações de experiências anteriores. (SIMÃO;
SAMPAIO, 2014, p.165).

As experiências anteriores, se dialogadas com as teorias pós-


coloniais (QUIJANO, 2005 e MIGNOLO, 2005) trazem ao aluno aspectos de sua
colonialidade. Se, como observado por Ingold (2000), as técnicas são apreendidas,
os alunos aprenderam a sentar, caminhar e deitar nas culturas onde foram criados
(MAUSS, 1974).
Portanto, as dimensões culturais do corpo devem ser consideradas
nas conduções artístico-pedagógicas. É importante lembrar Foucault (1987) e
23
Contexto, aqui está apresentado conforme explanado no primeiro capítulo por Greiner e Katz
(2005). Contexto é o meio em que o sujeito está inserido, seguido por um dado espaço/tempo, por
uma cultura, biologia e fisicidades determinadas.

79
reconhecer que professores também reproduzem a colonização, afinal o poder é
inerente às relações sociais. Por meio de práticas nas instituições de poder, como a
escola, o professor verticaliza sua relação com o aluno durante o exercício, impondo
o processo de desenvolvimento pessoal de cada indivíduo e, caso não reflita
conscientemente sobre tal prática, pode reafirmar a colonialidade das relações entre
ele e o aluno.
Se considero que o professor carrega em si vestígios coloniais, e se
ele não se dispõe a realizar um processo de descolonialidade, estaria reforçando a
prática colonial durante a aula. Para que a sala de aula seja um espaço de
compartilhamento que permita a descolonização e descolonialidade dos corpos e
para minimizar os efeitos da colonialidade nas relações pedagógicas, é preciso que
o professor esteja aberto ao desenvolvimento dos processos aos quais me refiro.
Como inicialmente visto neste trabalho, somos parte da colonização,
o meu corpo, por exemplo, é colonial, e sofre e atua a partir de uma colonialidade.
Compreendendo o corpo cotidiano como colonizado e disciplinado pelo poder, inicio
a análise de uma perspectiva pedagógica. Um aspecto que considero relevante é
oferecer a possibilidade de que o aluno possa compreender a colonização que o seu
corpo vive, e possa também evidenciar as amarras da colonialidade na qual está
atado o condutor das atividades. Ambos são como motores dos desvelamentos
no/do corpo colonial do outro, na mesma medida em que são (co)construtores de
contextos nos quais se torna possível lidar com esses aspectos coloniais da
existência.
Por outro lado, a prática na direção da descolonização também pode
carregar em si uma armadilha: estabelecer os padrões de individuação para o outro
ou mesmo a obrigatoriedade de rompimento com a dimensão colonizada do corpo.
Na esteira dessa preocupação, acrescento uma questão pertinente: Como trabalhar
sem que o corpo seja novamente colonizado? Essa foi a minha primeira inquietação
durante as reflexões deste capítulo. No entanto, o que inicialmente poderia parecer
contraditório foi sendo revelado coerente. Percebi que a proposta de trabalho
corporal durante as aulas de teatro permite que o corpo esteja disposto à
negociação, mesmo antes de dimensionar os possíveis resultados decorrentes.

80
Não considero tal processo como colonizador, pois é, justamente,
um processo de consciência e, portanto, de resistência diante da colonização. O
treinamento ou jogos para atores poderia ser entendido como outra prática de
disciplina. Mas quando coloco meu corpo no jogo, percebo parte das mudanças, me
abro a elas e vivencio meu corpo de um modo não cotidiano. O fator resistência
surge ao contrapor a disciplina e a colonização da cotidianeidade atua de modo
avesso ao modo hegemônico, ainda que um outro modelo possa emergir da prática.
Ou seja, permite que os alunos escutem o corpo e, ainda que tenha colonialidade
em sua pronuncia, nas aulas de teatro, seu corpo é estimulado a experienciar um
estado extracotidiano através dos exercícios, em que experimenta situações não
cotidianas e outras formas de comportamento.
Atuar de modo avesso ao modo cotidiano ou considerado em certos
contextos como sendo o modo hegemônico significa se opor ao cotidiano e agir em
forma de resistência, possibilitando outros modos. Uma das questões sobre as quais
refleti durante minhas aulas era: meus alunos estão realmente conscientes do que
estão fazendo? Agora percebo que não há medição suficiente e nem importa seu
resultado, o que interessa é que os alunos estão experienciando seus corpos de
outro modo. Cada um criará sua própria percepção a partir de suas experiências
anteriores e da ação atual. Talvez, com novos estímulos e experiências futuras, o
indivíduo possa ter diferentes percepções das experiências anteriores e revê-las
com novas vivências.
A informação pode também agir como uma ação colonizadora,
quando chegamos com um estereótipo frente ao aluno que está em meio a sua
criação. Podemos, se não formos cautelosos, induzir a produção artística sem que o
aluno descubra as possibilidades de estados extracotidianos. Como professora,
estaria apenas reforçando a continuidade da colonialidade de forma discreta no
aluno. É importante proporcionar práticas que não reforcem a colonização como
prática ou que ao menos reconheçam momentos onde o corpo colonizado se
destaca durante as aulas, oportunizando um novo olhar do aluno.
Reitero que este capítulo não busca ditar uma metodologia ou
ideologia para a pedagogia do teatro. Parece-me contraditório acreditar em uma
prática docente que, construída a partir do diálogo com os alunos, respeitando a

81
relação eu-outro como um processo de (co)regulações de conhecimento, apresente-
se inflexível.
Reconhecer tensões e estereótipos na sala de aula é um dos
primeiros fatores que nos saltam aos olhos durante as propostas artísticas. Os
estereótipos, por exemplo, como já observei, podem vir construídos ou serem
apreendidos em aula. Professores e alunos podem auxiliar nesse modelo de criação,
ainda este não seja o objetivo. Como então conduzir a um conhecimento de corpo
sem que seja forjado? É muito comum o professor utilizar exemplos, o que pode
gerar modelos a partir deles e atrapalhar a descoberta do aluno, oferecendo a ele
um padrão. A descoberta é bem diferente de um exemplo entregue.
A seguir, descrevo algumas práticas a partir de minha experiência
como docente e condutora. Durante as aulas, sentamos em roda e como recorrente
na educação infantil, as crianças sempre sentam-se de pernas cruzadas. Essa forma
de se comportar, a partir de uma colonialidade, está presente muitas vezes desde o
início de nossa aula. Enquanto professora, reforço a disciplina por inúmeros motivos,
pois um corpo disciplinado é mais fácil de ser conduzido, mas busco também ser
(co)construtora de uma relação bidirecional. Como docente, também percebo
algumas características e respostas recorrentes, mesmo em turmas distintas, com
relação aos mesmos exercícios.
Registro duas ilustrações de minhas vivências:
 Macaquinho chinês: é um jogo em que um grupo de crianças se
posiciona em uma extremidade da sala e um mestre na extremidade oposta. Este
escolhe um animal para que todos imitem e possam caminhar imitando-o. O grupo
que imita o animal caminha até o mestre apenas quando este não estiver olhando.
Sempre que olhar, todos devem congelar o movimento e, caso observe alguém se
movimentando, pede ao aluno que se moveu que retorne ao ponto de partida e
reinicie o jogo. O objetivo é chegar o mais rápido ao mestre sem ser pego e imitar o
animal sugerido.
Conforme observei, na maioria das vezes, algum aluno tenta definir
como todos devem caminhar, quando acha que alguém não imitou o animal como
deveria. Rapidamente observo todos caminhando do mesmo modo, e muitas vezes
não precisam da intervenção de nenhum colega, pois o estereótipo de certo animal

82
já foi estabelecido entre eles. Penso que tal prática de grupo evidencia as relações
de colonialidade no momento em que as crianças de alguma forma buscam
distinguir quem atingiu ou não o modelo estipulado por eles. Uma das minhas
funções como professora, a partir da prática pós-colonial, poderia ser a de estimular
que cada aluno possa realizar o percurso do jogo imitando o animal como ele
acredita estar comunicando da melhor forma como ele percebe os movimentos de
tal animal.
 Marinheiros da Europa: neste jogo o grupo de alunos é dividido
em duas equipes que podem escolher um objeto para imitar de forma coletiva. Os
integrantes devem fazer de conta que são o objeto. Enquanto uma equipe imita tal
objeto, a outra tenta adivinhar qual é. Quando conseguem adivinhar, correm na
direção dos adversários antes que cheguem ao pique (ponto de chegada pré-
estabelecido). Este é um jogo no qual as crianças buscam estabelecer um padrão de
movimento corporal, mesmo que não tenha sido solicitado, e quando procuram um
modelo, alguns tentam determinar o que está certo ou errado, como devem ou não
representar tal objeto. Eles repetidamente escolhem um líder e imitam sua ação na
demonstração do jogo. Por exemplo, quando precisam imitar um liquidificador e
sentem a necessidade de acordar entre si como irão reproduzir tal objeto.
Acima, cito dois exemplos similares de práticas que mostram um
possível reflexo da colonização, onde os alunos, muitas vezes antes de
experimentar outras possibilidades, se limitam a reproduzir e copiar as mesmas
projeções. O que não é necessariamente um problema, mas tais observações nos
servem para refletir. Ao executar os jogos, as crianças discutem entre si como
compor os animais e objetos. Imaginam sempre haver um modelo assertivo. Neste
caso, repetidas vezes é preciso que o condutor enfatize que cada aluno pode fazer
do seu modo, e talvez encontrar uma forma coletiva em que a diversidade esteja
presente e que cada um a sua maneira contribua interagindo com o outro, e assim o
trabalho coletivo tenha mais significados e mais possibilidades para quem os
assiste. Talvez múltiplas e diferentes formas de compor animais ou objetos
comuniquem mais e melhor. Aqui há um paralelo com o primeiro capítulo desta
dissertação. As crianças estariam construindo sua comunicação por meio da
mediação criativa proposta por Wagner (2002).

83
Por outro lado, há crianças que direcionam a maneira de representar
dos colegas, o que significa que existem as que não respondem da mesma maneira
que os demais, ou seja, crianças que usam a criatividade fora de certos padrões
hegemônicos ou dominantes. As que atuam de modo diferente dos colegas estão
distantes do estereótipo? Ainda que não tenha resposta a essa pergunta, considero
que é possível perceber que cada um tem seu caminho para criar, para atuar e por
isso o ponto de chegada não será o mesmo para todos. As experiências serão
distintas porque as experiências anteriores também o foram.
Prossigo com as reflexões. Existem desvios já esperados para os
padrões estabelecidos? Ou seja, será que também o jeito diferente de ser já não
está incluído nas amarras da colonialidade? Como lidar com a experiência
desviante? Não necessariamente porque um aluno está fazendo o exercício
diferente dos demais, ele está fazendo diferente de si, ele pode estar reproduzindo a
sua colonialidade. Ou seja, provavelmente ele não está experimentando algo novo,
do mesmo modo que seus colegas também não estão. Por outro lado, está dando
oportunidade que outro que perceba, desde outro ponto, que há outras formas de
movimentar-se como tal animal ou de ser tal objeto.
Ao mesmo tempo que percebemos a busca por padrões, quando um
ou outro aluno encontra um caminho diferente dos demais, sua experiência é
extremamente visível para o professor e para os demais alunos. O que se move
diferente permite que ocorra os colegas questionem o estado corporal, estimulando
a percepção sobre o corpo e revejam sua organização corporal como dos demais..
O que falte, talvez, seja repensar os jogos propostos na sala de aula para que o
aluno possa passar por outras experiências, para descolonizar-se. Talvez não baste
a oposição de um aluno em relação a vários, como condutora posso oferecer que a
aula de algum modo mostre que outros caminhos são possíveis. De modo algum
vou escolher pelo aluno, mas posso mostrar leques de caminhos possíveis.
Com base na reflexão proporcionada pelas entrevistas com os
atores e ex-atores do Eu-Outro, penso que os alunos não estão atentos ao estado
de seus corpos. Trabalhamos técnicas de respiração durante alguns jogos em sala
de aula e percebi como era difícil para eles aprender outra maneira de inalar e
expirar. Muitas vezes é importante desenvolver uma postura de prontidão, manter os

84
pés paralelos e os joelhos semiflexionados. Os alunos precisam parar e pensar para
executar. Ao final do ano letivo, com a experiência de sala de aula e dos jogos, os
alunos adquirem a postura pró-jogo. Nos exercícios, os alunos compõem outra
forma de caminhar, respirar ou sentar. Desse modo, estariam de algum maneira
descolonizando-se? Ainda que estejam buscando um padrão para a representação,
observei que nos jogos, eles já conduzem seus corpos de forma não cotidiana. Sua
ação seria, portanto, descoloniazada?
O simples ato de respirar, como relatado, pode mostrar ao aluno que
é possível refletir e tornar-se mais atento a uma ação comum sobre a qual ele/ela
nem sequer havia antes prestado atenção. Perceber a maneira como respiro e
descobrir que posso inalar e expirar de forma que aproveitem melhor o ar dos meus
pulmões, é uma forma de perceber a colonialidade do cotidiano presente em meu
corpo. A sala de aula pode promover uma experiência diferente para que o aluno
encontre outras possibilidades que não as já apresentadas a ele em outros espaços.
Durante minhas propostas de exercícios, percebo de forma
recorrente uma necessidade de explicar ou até mesmo jogar com os alunos para
que possam ver como “deveríamos” atingir o objetivo do jogo. Imagino que este
olhar de fora é um olhar colonizador e colonizado. A colonialidade que habita em
mim tenta direcionar o outro por um caminho muito específico. Desta forma, faço o
inverso da proposta, estaria ditando moldes sem permitir a reflexão do outro diante
da situação com a qual o aluno por si pode resolver. Portanto, de que modo a
pedagogia teatral pode ser descolonizadora? Compreendo que pode ser
descolonizadora quando o aluno encontra seu caminho, reconhece seu corpo e com
ele se (re)constrói a partir de sensações e novos conhecimentos. O professor facilita
seu caminho, dando suporte e conduzindo as etapas, não limitando e modelando
rigidamente as possibilidades para a execução. O importante é que o aluno atinja o
objetivo de algum modo, percorrendo o seu caminho é o aluno, criando sua
experiência e encontrando suas possibilidades.
Os exercícios propostos podem facilitar o processo desde que o
incentivem a encontrar mecanismos ou trajetos para a realização do exercício, e que
esses meios o desloquem de seu estado cotidiano. Para que o condutor não seja
colonizador, talvez possa mediar o processo e apontar caminhos possíveis, para que

85
o aluno escolha como quer prosseguir. O caminho apontado deve ser, antes de
tudo, o da experimentação. Quanto maior o número de experiências possibilitadas
que distanciem o corpo das experiências vividas pelo corpo no cotidiano, maior a
gama de possibilidades que o aluno poderá acessar. Por se tratar de um processo
artístico-pedagógico direcionado a jovens e crianças não busco conduzir os alunos
ao corpo atenso como proposto por Casimiro (2011), mas mostrar que outros
estados são possíveis e que através dessa descoberta eles podem reconhecer a
colonialidade presente em seus corpos.
Para acrescentar mais uma observação, recordo de outra atividade,
muito comum nas aulas de teatro, que desenvolvi com meus alunos: os exercícios
que exigem caminhadas em determinado espaço. As caminhadas podem ter como
objetivo ocupar o espaço, trocar olhares, objetos ou gestos uns com os outros
enquanto se caminha, ou novas maneiras de caminhar. Muitas vezes, durante este
exercício, sugeri que a caminhada poderia ser realizada com as mais diversas
partes do corpo. Por exemplo, ao caminhar apoiados nos joelhos ou no quadril é
comum que a postura permaneça na vertical. Porém, se a condutora a orienta que
caminhem com ombros ou com as costas, provavelmente experimentarão caminhar
com os corpos na horizontal. Depois de algum momento, começam a surgir torções
e outros apoios do corpo darão ao aluno formas distintas de se deslocar no espaço.
Eles não induzem mais as formas intencionalmente, passam a responder a uma
necessidade do corpo em se (re)organizar a partir de uma nova estrutura estimulada
por outro apoio que não o cotidiano.
Se for solicitado que usem as mãos ou os cotovelos, a maioria
costuma ficar nos quatro apoios, mas sempre me questionei porque não tentam
caminhar com quatro apoios com as costas viradas para o chão, por exemplo. É
muito raro encontrar uma criança que rompa com uma forma cotidiana de caminhar.
Na maioria das vezes, é preciso que o condutor peça diretamente para que
caminhem com as costas para baixo para perceberem que outras maneiras e
posições corporais são possíveis. Talvez a dificuldade desses alunos em encontrar
outras formas de realizar ações cotidianas seja devida a sua permanência no
registro cotidiano do corpo, se conseguissem extrapolar esse estado para o
extracotidiano poderiam descobrir novas qualidades corporais. Como observado ao

86
longo da dissertação, o corpo cotidiano utiliza o mínimo de esforço para realizar
suas ações, e essa poderia ser uma resposta sobre o motivo pelo qual os alunos
precisam ser conduzidos a outro estado energético (BARBA, 2012) para romper com
o estado cotidiano.
Dialogando com a idéia de técnica do corpo, e analisando exercícios
em que os alunos são colocados em propostas que buscam utilizar o corpo de um
modo não cotidiano, percebo que é recorrente a necessidade de orientar o aluno
para que use partes do corpo como costas, cotovelo, quadril, e não apenas as
extremidades, pés e mãos, como costumam fazer. Afinal eles não estariam
realizando ações cotidianas que exigem um menor esforço e não pressupõe uma
técnica apreendida social e culturalmente como sentar ou caminhar. A proposta é
que o aluno explore os movimentos nunca antes experimentados, pelo menos que
nunca tenha feito de forma “atenta ao corpo”.
Para exemplificar a situação acima apontada, descrevo mais dois
exercícios comuns em minhas aulas. No primeiro jogo, os alunos trabalham em
duplas e são solicitados a ocupar o espaço do outro. O primeiro aluno realiza um
movimento e congela a ação e, então, é a vez do segundo aluno ocupar os vãos
deixados pela ação congelada. Assim que o segundo finalizar o seu movimento,
também congela sua ação para que o primeiro novamente volte a tentar preencher o
espaço deixado livre pelo outro. Essa dinâmica de preencher-congelar-preencher vai
se desenrolando até que o condutor peça para terminar ou desenvolva outra
atividade. Neste jogo, é comum que os jogadores usem as extremidades do corpo,
por isso, como professora, preciso solicitar que utilizem outras partes do corpo.
Outra atividade bastante comum que desenvolvo em minhas aulas
de teatro é o jogo do espelho. Os alunos são divididos em duplas e cada uma
escolhe quem vai ser o jogador A (espelho) e o jogador B (espelhado). Os jogadores
se posicionam um de frente para o outro. Eles precisam agir como se estivessem
frente a um espelho: o jogador A propõe o movimento e B o imita da melhor maneira
possível, tentando manter a dimensão, o tempo e a precisão proposto por A. Um
comando comum neste jogo é para que o jogador A realize movimentos pouco
comuns a B e que tente tirar o outro de sua zona de conforto, propondo ações que
gerem dificuldades. Ou seja, que estimulem à maior uso de energia. O jogador pode

87
propor um movimento de desequilíbrio, maior alongamento ou torções, estimulando
o jogador B a agir de um modo com o qual não está acostumado.
A partir das explanações realizadas neste último capítulo reforço a
articulação dos jogos teatrais nos processos de descolonização e descolonialidade
do corpo retomando os autores pós-coloniais anteriormente mencionados. Quijano
(2005) propõe uma perspectiva universal da América Latina na busca de uma
identidade, nesse sentido qual seria o corpo descolonizado do aluno? Ainda que
acredite não ser possível buscar uma identidade anterior, já que as atuais e futuras
descobertas do aluno estarão embasadas também nas experiências passadas. Por
outro lado, Mignolo (2005) aponta a uma identidade pluriversal e, neste sentido,
posso projetar que cada aluno possui uma identidade própria, cada corpo será
diferente do outro em suas tensões ou estados.
Casimiro (2011) relata nos “Diários de Bordo” que cada ator revela
tensões em locais diferentes do corpo, o que aponta a uma multiplicidade de corpos.
A descolonização não busca pureza e sim um processo mais autônomo do corpo, a
partir de maior consciência de seu estado. No entanto, a diversidade não parece ser
um de seus aspectos centrais. Considerando a diversidade de corpos, me parece
mais interessante buscar a sua descolonialidade, que não só percebe os
automatismos do corpo, mas revê sua particularidade.
Na sala de aula há uma pluriversalidade de colonialidades, os
contextos e experiências que cada aluno carrega faz com que o caminho que ele
deva percorrer conhecendo seu corpo seja único, mas uma razão para que como
professora não devo induzir o aluno a um ponto e sim mostrar que existem caminhos
diversos a percorrer e que o lugar onde ele está não é o único.
Nos processos de montagem de espetáculo, é muito comum a
interferência do professor e /ou assistentes no processo de criação do aluno. Isso se
dá por diversos motivos. Algumas vezes, como docentes, temos prazos
determinados por calendários escolares, em outras, percebemos a insegurança das
crianças e queremos ajudá-las para que possam sentir-se seguras e confiantes em
sua apresentação.
Em muitas outras ocasiões, não temos paciência para respeitar os
avanços algumas vezes lentos de nossos alunos. Nessas situações exemplificamos

88
como deveria ser a personagem ou uma ação: um palhaço deve sentar assim ou um
senhor não pode mover-se tão rápido. Com essas indicações, estamos passando
por cima da construção da experiência pela própria criança e a colocamos como
observadora de um dado externo. Estamos impondo nossas experiências e
perspectivas. Desse modo, não estamos colonizando a prática artística de nosso
aluno?
Hoje, como docente, passei pela escola, graduação e outros
espaços de educação não-formal. Por isso, questiono meu olhar e reflito sobre
minha prática, tentando também descolonizá-la. Se sou fruto de uma colonialidade,
o quanto minha condução também não é colonizadora? Essa dissertação busca
contribuir para a descolonialidade de nossas próprias práticas.

89
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O corpo está em constante regulação, com sua cultura, técnica,


contexto e com outros corpos. Ele se revisita na medida em que (co)regula e/ou é
(co)regulado e está, portanto, em constante aprendizagem.
O corpo cotidiano, como refletido ao longo dessa pesquisa, pode ir
para a cena quando requisitado, mas é importante que o faça de modo intencional.
O corpo colonizado pode estar em estado de representação, a depender da prática
cênica em que está inserido e se não o percebemos a partir de perspectivas pós-
coloniais. Os processos cênicos que conduzem as práticas de ator são mecanismos
que atuam para que possa aprimorar suas técnicas para um melhor resultado
artístico. No entanto, o processo artístico pode auxiliar na compreensão e
reconhecimento de um corpo cotidiano que foi domesticado e disciplinado pelas
diferentes formas de poder e biopoder que sobre ele atuam.
Porém, ainda que o processo artístico revele traços de uma
colonialidade e possibilite um aprendizado desde outra perspectiva, como um
professor/diretor pode conduzir o aluno/ator a experienciar um processo descolonial
ou descolonizador? Sugiro ser de extrema importância que, caso se pretenda
realizar uma condução que busca resultados pós-coloniais, o condutor precisa voltar
o olhar para si.
Os processos trabalhados ao longo dessa dissertação buscaram
reconhecer as amarras do corpo e buscar maneiras para que possam ser
percebidas e vivenciadas no próprio corpo. No entanto, além das práticas artísticas,
pensar também por um viés pedagógico possibilita nos aproximar de corpos que não
costumam estar num estado extracotidiano, o que nos abre a outra forma de pensar
a condução, pois as metodologias se diferenciam no ensino com crianças e nos
processos de pesquisa e criação de atores profissionais.
Esta pesquisa contribui com um novo diálogo, aproxima as artes
cênicas às teorias pós-coloniais, um projeto interdisciplinar que traz aspectos do
corpo cênico, que há muito é explorado nos estudos teatrais, mas que ainda não

90
estabelecia um diálogo próximo com conceitos como os de descolonização e
descolonialidade.
Se o rumo das práticas artísticas ou pedagógicas tangem as
discussões pós-coloniais em suas propostas, o caminho percorrido pelo corpo
permite uma constante busca e descoberta do outro e de si. Talvez essa seja a
maior contribuição dos processos (des)coloniais/(des)colonizatórios do corpo.

91
REFERÊNCIAS

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LEITE, Thiago de Castro: entrevista concedida em: 10 de dez. de 2016


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SIZINIO, Janaína: entrevista concedida em: 8 de nov. de 2016.

SIZINIO, Janaína: entrevista concedida em: 10 de dez. de 2016.

SPÍVAK, Lucía: entrevista concedida em: 10 de nov. de 2016.

SPÍVAK, Lucía: entrevista concedida em: 15 de dez. de 2016.

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los origins de la economía-mundo europea en el siglo XVI. México: Siglo
Veintiuno,1979. v. 1.

94
ANEXOS

95
ANEXO A- DIÁRIO DE BORDO

02/10/2010 – Substantivo Verbo Substantivo-Verbo – Zonas de Tensão

Me parece que nesse dia eu comecei os trabalhos reais com o EU-


OUTRO Núcleo de Pesquisa Cênica.
Isso porque escolhi um jeito de trabalho, uma função pra esse
trabalho, e uma maneira de me aproximar daquilo que desejo para daqui um, dois,
cinco anos...
Exercícios:
• Corpo Ideal: Caminhem! Esse é o corpo que vocês julgam
ideal para a cena? Se sim, reparar qual é esse corpo. Se não, como chegar ao corpo
ideal? Realizar a passagem de um a outro – passo-a-passo! O que realmente é
necessário nesse corpo ideal?
Por que o corpo ideal da Larissa tem o queixo para frente?
Por que alguns corpos ideais possuem braços destacados do corpo?
Por que quando falamos em corpo ideal tanta gente coloca tensão?
O corpo ideal não deveria ser o corpo “Atenso” ou “Atento”?
Qual o limiar entre o “corpo comum” e o “corpo cênico”?
• Ímã corpo/chão, corpo/corpo: Seu corpo é atraído pelo chão,
com uma grande força, mas você pretende ficar em pé. Depois seu corpo é atraído
por outro corpo e você arrasta o que for necessário para chegar a ele.
Qual a verdadeira ação que se realiza nesse exercício?
A Lucía coloca o medo antes da ação. Nesse caso, como age o
corpo dela?
Como estar pronto para receber o corpo do outro ao mesmo tempo
em que se está pronto para ser atraído ao corpo do outro? Que ambiguidade é essa
e como ela tem um paralelo com a cena?
Esse desprendimento de energia leva a outro estado de corpo ideal?
• Zonas de tensão: Estabelecemos as intensidades para
ações, considerando zonas progressivas de tensão de um ponto a outro.
96
Como a contradição das zonas de tensão pode gerar diferentes
respostas das colunas?
De onde e para onde são realizados os movimentos nas áreas mais
e menos tensas?
Por que para o Thiago chegar a um estado de hipertensão é mais
fácil do que chegar a um pleno relaxamento?
• Ensaio “Favores da Lua: O Prólogo”
Fizemos um passadão mais técnico do que supunha.
Sinto ainda que o envolvimento nesse tipo de trabalho diminui. Será
que ainda não se compreende a importância das ações de apoio?

16/10/2010 – Substantivo-Verbo Verbo-Substantivo – Zonas de Tensão

Eu não devo realizar uma ação, eu devo ser essa ação


escrita em um espaço definido. Como a ação acontece em mim, se eu estou em um
espaço, ela acontece no espaço. Se eu estou numa relação, ela acontece na
relação. Minha coluna é o espaço da minha existência. Minha coluna escreve para
que a coluna do outro leia. Estar em cena, me parece, é estar com a coluna
presentificada. Meu corpo ideal é minha coluna ideal.
Exercícios:
• Queda total e em partes: Caminhem! Perde-se a vida!
Movimentos no chão! Reconstituam-se! Levantem! Caminhem! Perdem-se as
pernas! Movimentos no chão! Reconstituam-se! Caminhem! Perde-se a vida!...
Perder a vida e perder as pernas parece em um primeiro momento
que é entendido por eles como a mesma coisa.
A tentativa de construir uma ação leva o olhar pra dentro?
• Corpo ideal: Caminhem! Esse é o corpo que vocês julgam
ideal para a cena? Se sim, reparar qual é esse corpo. Se não, como chegar ao corpo
ideal? Realizar a passagem de um a outro – passo-a-passo! O que realmente é
necessário nesse corpo ideal? Escrever na coluna e com a coluna a mudança de um
corpo a outro. Dilatar a mudança. Minimizar a mudança.

97
- Pré-expressividade – a cor primária, a base de um corpo “atenso”.
Um conjunto de cores primárias possibilitam qualquer coloração das cenas. Cabe ao
diretor orientar a mistura das cores. Como o espaço, o figurino e a iluminação
podem ser também primárias numa cena?
- Camila faz um esforço para se atingir a pré-expressividade, o que a
distancia cada vez mais da mesma;
- A força motriz da caminhada do Thiago é para cima e a do Daniel é
para trás. Que jogo cênico interessante eles conseguem? Será que esse já é um
indício do porquê do Thiago chegar a estados de tensão facilmente e o Daniel
chegar a estados de relaxamento com a mesma facilidade?
- Enfoque da caminhada do Elton está nas pernas. Há sempre muita
tensão.
- Por que após exercícios como flexão e abdominal o corpo chega a
um estado de relaxamento interessante na caminhada? Há algo na concentração de
energia que possa, pelo seu inverso, auxiliar no relaxamento do corpo “atenso”?
- Aninha rapidamente localiza a tensão no rosto, em especial na
boca. Por quê?
- O Dado resulta a tensão na voz, que para ele parece se confundir
com uma “voz dilatada”. Como conduzir o corpo dele para um corpo que só aceite
uma voz limpa?
• Coluna animal / Coluna animal em zona de tensão: Iniciar a
escritura de uma coluna animal, modificar as zonas de tensão! Reconhecer no corpo
as zonas de tensão. Desenvolver tensão/relaxamento.
Após o trabalho com a coluna do animal um processo de auto-
reflexão se deu com o grupo. Desgaste físico-emocional me parece ser a condição
que se construiu.
• Ensaio: “Favores da Lua: O Prólogo”
Não conseguimos realizar o ensaio devido a condições de espaço e
de pessoal.
O Corpo “Atenso” e o corpo comum têm um limiar de separação
muito tênue, mas é importante não os aceitar como o mesmo. O corpo “atenso”

98
deverá sempre estar em cena, já que se constrói sobre ele. O corpo cotidiano
deverá estar em cena só quando a cena comportar.
Tivemos uma grande e proveitosa conversa sobre a ética da relação
com o Núcleo e sobre o respeito moral com o tempo de cada um que ali está.
Falamos sobre o nosso futuro projeto e sobre as perspectivas em relação ao Núcleo.
Falamos também sobre um comportamento reconhecido como padrão da Geração
Y, que abarca quase todos os integrantes do Núcleo.
Personagem (Substantivo) – Ações que dão forma à personagem
(Verbo); As ações da personagem no meu corpo “atenso” (verbo) – Eu, ator, como o
presente das ações, como a existência palpável de um campo acional
(Substantivo).As cenas, por essa perspectiva, seriam a subjetivação das ações
objetivadas em determinadas corpos e contextos.
Sobre o espetáculo Favores da Lua:
Os corpos de Cena precisam ser a tridimensionalidade, as torções, a
harmonia da dualidade. As cenas são, desse modo, tridimensionalidades, torções e
harmonias da dualidade em relação. A relação é a ação não substantivada da cena;
ela se dá por meio de corpos que substantivaram ações, que já foram ações
externas ao meu corpo, como um campo de reconhecimento acional de uma
personagem, que já foi, simplesmente, uma personagem em seu sentido nominal.

23/10/2010 Substantivo-Verbo, Verbo-Substantivo – Zonas de Tensão

Pintar com o corpo cor primária tem pressão, para escrever na cena
tem pressão. Mas o Corpo é atenso. Um objeto simples em cena também deve ser
objeto cor primária, também atenso. Meu corpo cor primaria, outros corpos cores
primárias e objetos cores primárias devem se misturar com maiores intensidades
aqui e ali para que se diversifiquem ao longo do espetáculo; suas cores serão
captadas em diferentes vibrações - “tensidades”, pelos meus sentidos, e os
primários deverão se misturar a tal ponto que só reste a opção do preto: todas as
cores, todas as “tensidades”! Black Out!
Acordamento: Bernard!
Exercícios
99
• Coluna que Mastiga: Levar um pedaço de pão! Mastigar o pão
em diferentes velocidades! Engolir! Realizar o mesmo com a Coluna! Outro como
pão!
Parar uma ação não significa travar uma ação;
Não se deve mandar toda a energia para o lugar em que acontece
prioritariamente a ação
Por que o corpo do outro na mastigação amplia a quantidade e
talvez qualidade de movimentos?
Exercício do chute – ansiedade da Monique;
• Pressionar Vs Tencionar: tencionar o corpo o máximo
possível! Relaxar! Tencionar! Relaxar! Tencionar! Relaxar! Pressionar o corpo do
outro! Relaxar! Tencionar o próprio corpo! Relaxar! Tencionar o corpo do Outro...
O corpo relaxado ainda tem energia que circula até a ponta dos
dedos (Lucía, Larissa)
Aninha, como é ter um corpo relaxado?
Jeziel, qual a diferença no corpo entre um corpo atenso e um corpo
cotidiano?
• Corpo ideal/Pressionar o Espaço: Caminhem! Esse é o corpo
que vocês julgam ideal para a cena? Se sim, reparar qual é esse corpo. Se não,
como chegar ao corpo ideal? Realizar a passagem de um a outro – passo-a-passo!
O que realmente é necessário nesse corpo ideal? Escrever na coluna e com a
coluna a mudança de um corpo a outro. Dilatar a mudança. Minimizar a mudança. O
Corpo ideal (Corpo atenso) pressiona o espaço em todos os sentidos.
Como a pressão exerce influência sobre as ações do corpo ideal?
Como a pressão de um corpo ideal, de uma iluminação, de um
objeto cênico interfere no corpo ideal (“atenso”) do outro?
• Coluna animal / Coluna animal em zona de tensão: Iniciar a
escritura de uma coluna animal, modificar as zonas de tensão! Reconhecer no corpo
as zonas de tensão. Desenvolver tensão/relaxamento.Não fizemos!
• Ensaio: “Favores da Lua: O Prólogo”
O Objeto manipula minha coluna ideal. A luz é um objeto cênico.
Xícara também manipula a coluna. Meu corpo procura a luz. Essa é a pressão que

100
ela exerce sobre mim. Se meu corpo manipula o objeto ele não é necessário em
cena. Thiago precisa se aproximar da linguagem que os exercícios estabelecem
para levar para cena. Camilinha ainda necessita exercitar a precisão. Andreza
precisa dar mais material para que os meninos joguem em cena. Felipe precisa
brincar com estados energéticos em cena. Daniel precisa construir melhor as
passagens. Bolo deve investir nas torções, o corpo dela responde bem às torções.
Por que será?

30/10/10 Substantivo-Verbo Verbo-Substantivo

• Acordamento
Jogo: olhar de pedra: Não pode chegar ao final do caminho. Escolhe
uma pessoa para quem você não pode olhar. Olhou para a pessoa você pára.
Descobriu quem é a pessoa você a pára, se não for, você pára.
Por que quando se tem um objetivo de ganhar a velocidade dos
passos aumenta?
Que tipo de atenção se constrói em um jogo como esse?
Cena do artista plástico.
Substantivo: Artista Plástico;
Verbo: ?
Verbo em meu corpo atenso: ?
Substantivo: eu sou o verbo: ?
Variações de tensão e pressão
Jeziel a ação se configura pela expressão da face e muito menos na
coluna;
Marina já tem uma coluna que responde no dia a dia? O Verbo
cotidiano dela já é cênico. (Daniel Idem);
Monique e Felipe se arrumam muito durante os exercícios;
Andreza é sempre pró-forma (será que vem da dança?)
Boa parte das ações acabam no efeito vinólia.
Dado trabalha o corpo em blocos e com grande ênfase nas pontas.
Há qualquer coisa aí, nesse exercício, que ausenta a agressividade.
101
Monique apresenta estados de flacidez. Será que o que falta nela é
um trabalho melhor com o centro de gravidade?
Qual é o foco de quem está sendo manipulado?
Elton tem uma tendência às extremidades.
Simão a voz de cama ou uma película entre ele e as coisas, cenas,
objetos, pessoas... falta atrito no contato, falta pressionar e ser pressionado.
Bernard ultrapassa o ponto de chegada da ação. Parece que ele não
tem muito claro, exatamente o que é esse ponto de chegada.
Quero ver a aninha longe do instinto maternal nos exercícios.
Substantivar um verbo talvez possa ser o ato e o efeito de... em
cena!
Ausentar intencionalmente algo talvez seja aumentar sua presença;
• Coluna animal / Coluna animal em zona de tensão: Iniciar a
escritura de uma coluna animal, modificar as zonas de tensão! Reconhecer no corpo
as zonas de tensão. Desenvolver tensão/relaxamento.
Ninguém se sentiu confortável para ficar com os apoios. As colunas
ainda não estavam suficientemente desenvolvidas para isso.
Marina coloca grande tensão nesse exercício;
Como impedir que o cansaço leve a uma diminuição na percepção?
• Ensaio Favores da Lua: O Prólogo

06/11/2010 – Substantivo- Verbo Verbo – Substantivo –Tentativa de passagem


nas cenas do Favores

• Condução do Bernard sem a minha presença;


Retorno absolutamente positivo do trabalho que ele realizou;
• Pelo que eu entendi, ele enfatizou o retorno aos originais –
Ótimo! Conversamos depois sobre as camadas desse dito original: Por um lado tem
os textos do Baudelaire, mas também tem a chave de leitura: imagens do Gauguin e
tem as nossas escolhas em relação ao material. Nesse momento, fala-se
efetivamente dos Originais (Baudelaire lido pelas imagens do Gauguin resultando
em um recorte intencional)
102
13/11/2010 – Substantivo – Verbo Verbo – Substantivo: Vertigem;

• Caminhada com ênfase em linhas de ação (frente, trás, cima,


baixo). Colocando uma corda imaginária em uma das dimensões do corpo (frente,
trás, cima, baixo). Variar velocidades e olhar para diferentes lugares (frente, trás,
baixo, embaixo das pernas/trás, cima). Descobrir que essa ação menos intensa
também pode ser vertiginosa. No momento em que se está neste estágio de
vertigem parece-me que este estar passa a um ser a vertigem. Será real?
Cada um deles sentiu intensificar a linha de maior força durante a
caminhada. Como isso é determinante para se descobrir o corpo atenso (não
cotidiano)? É necessário realizar intervenções em que ordem nas linhas de força da
caminhada para se chegar a um corpo cor primária?
• Vertigem pelo giro (com e sem linhas de força de
caminhada). Gira-se o máximo que der e depois sai em caminhada experimentando
linhas de força da caminhada.
Os relatos foram no sentido de que dessa maneira as tensões dos
corpos ficam ainda mais evidenciadas. Esse ponto me interessa muito. Será que a
vertigem pode ser um caminho de descoberta das tensões e aí resultaria um
trabalho intenso para se chegar a um corpo atenso? Elton, por exemplo, deixa
evidenciar sua tensão nas pernas. Relato de mais de uma pessoa do grupo. Aninha,
logo após o giro, coloca uma tensão no rosto que rapidamente é identificada por
alguém (não me lembro quem foi).
• Vertigem pelo giro com pressão no corpo do outro. Gira-se e
depois pressiona-se o corpo do outro como caminho de se dominar a vertigem.
Rafaele e Thiago sentiram a internalização do giro e nesse momento
relataram uma dominação interna da força do giro. Não sei dizer se nesse momento
eles sentiram, ainda que não entendam a razão, a substantivação do verbo. Ao
internalizar eles são capazes de nos levar, em algum grau, à vertigem. Fiz uma
proposta de que então eles girassem e sem o apoio do corpo do outro parassem,
olho a olho, e fizessem a pressão à distância. Outras pessoas tentaram, mas a
sensação descrita por eles não foi a mesma descrita pelo resto do grupo. Talvez

103
pelo fato de que eles tenham vivenciado aquele estágio anterior, não relatado por
outra dupla.
• Ensaio Favores da Lua: O Prólogo
Turmas divididas em dois grupos, uma ensaiava a cena do
vidraceiro, a outra do artista manipulando a obra. O Simão não conseguiu realizar a
cena. Deve estar cansado. Prestar atenção no rendimento dele. Caso ele venha a
apresentar novas cenas de cansaço como essa, pensar em como conduzi-lo a se
utilizar em trabalho do cansaço. Acabei por trabalhar a cena do Pão. Duas
indicações da cena como o Bernard havia mexido me levaram a conduzir o trabalho:
A primeira delas é que o pão aparecia mais e a segunda era que traços da ideia
original reapareciam como o foco no comer e não no brigar. Assim, reorganizei a
cena a partir de 3 princípios, que acho que acabei por não esclarecer como devia a
eles: O Pão é o objeto que os manipula. A partir da manipulação feita pelo pão, os
corpos se pressionam em cena, a pressão entre os corpos é em si vertiginosa, antes
de mais nada, para a presença da personagem da Aninha, que precisou, portanto,
ser ressignificada. Olhando como diretor, a cena intensificou seu poder de presença
de forma inacreditável.
Reflexão: Talvez aqui eu já seja capaz de realizar uma primeira
reflexão importante:
- Um corpo cor primária dialoga com a ideia/material original, se fricciona com ele e
nos propõe uma primeira coloração em cena. Os elementos da cena se friccionam
em um movimento vertiginoso que coloca cada um dos elementos, inclusive os
corpos disponíveis à vertigem. A vertigem possibilita que os objetos de cena,
quaisquer que sejam, movimentem os corpos, esses corpos passam a ser a ação
mobilizada em última instância pelas ações, ou seja, substantivação. Por ser cíclico,
esse último reorganiza a fricção com os originais... Se o que acontece em cena
acontece na plateia, e isso dito assim, sem contexto e sem maiores explicações
pode soar estranho, esse pode ser o caminho para o teatro que eu acredito/gosto
plenamente de fazer. O Favores me parece uma demonstração quase inconsciente
da teoria que aqui vem se construindo. Estou absolutamente feliz com essa reflexão,
com esse corpo emergido da prática e da pesquisa teórica. Agora resta investigar
ainda mais os elementos aqui apresentados.

104
20/11/2010 Substantivo- verbo verbo – substantivo: encontro teste

Testaremos nesse encontro ir direto para as cenas do espetáculo e


ver o que conseguimos construir diretamente nas cenas. Veremos como
conseguimos realizar as discussões até agora apresentadas no trabalho com um
espetáculo já levantado. Veremos tudo que devemos evidenciar, retirar e mudar.
Reflexão: Passamos por um período intenso de pesquisas práticas e
reflexões, ao mesmo tempo em que realizávamos substituições no elenco a todo
instante e cena. Pode parecer coincidência, mas o estado de vertigem foi me
dominando aos poucos e eu mesmo consegui pequenos insights de substantivação
do próprio espetáculo como diretor e condutor.
Continuaremos essa pesquisa em 2011, com algumas localizações
teóricas e com a montagem do novo espetáculo.
Passamos por uma série de apresentações e situações que prefiro
não descrever ou relatar aqui, com exceção de uma situação:
Há que se ter um respeito com os espaços que nos são cedidos. Há
que se ter muito profissionalismo para que a seriedade do trabalho não signifique
rigidez de comportamento. Há que se ter uma visão do todo, para entender que cada
uma das nossas ações, ainda que isso nos incomode muito em alguns instantes,
reverbera em todos do Núcleo e na existência do próprio Núcleo. Juliano
(Itapetininga) obrigado por nos permitir compreender na prática certos discursos que
vínhamos fazendo ao longo da existência do Núcleo.

22/01/2011 – Bases Organizacionais do ano de 2011

• Conversa sobre o mapa das ações que desenvolveremos em


2011: Manutenção do “Favores da Lua – O Prólogo”, início de um novo projeto de
espetáculo teatral, de um espetáculo de dança e de um curta. Discussões sobre as
questões éticas que envolvem o projeto “Narrativas Pessoais”, inserção de novos
membros e apresentações do quadro teórico que embasará as discussões dos
sábados pela manhã.

105
• Teoria: A passagem de uma poética do trágico como
doutrina normativa para uma filosofia especulativa, tendo no iluminismo o divisor de
águas.
• O Daniel, a partir dessa base, iniciou uma conversa sobre a
necessidade de adaptabilidade do entre-jogo substantivo-verbo verbo substantivo, o
qual pesquisamos. Eu prefiro dizer que a adaptabilidade é o fator que permite a
existência dessa estrutura especulativa a que nos dispomos enquanto pesquisa
cênica.Só há a possibilidade dessa investigação ser validada porque não
trabalhamos do ponto de partida de um processo normativo e tampouco desejamos
estruturar um.Ao propor a investigação coletiva de um corpo atenso, pensamos na
ideia de se construir individualmente, e segundo características específicas a cada
corporeidade, um caminho de se entender praticamente a existência cênica dessa
“atensão corpórea”
• Isolamento muscular com tensão e relaxamento: (Dedos dos
pés, nádegas, ombros, joelhos e olhos) Investigamos as possibilidades iniciais de
cada corpo de isolamento das estruturas musculares por meio de quadros de tensão
e de relaxamento.
Quase que coletivamente, percebeu-se a impossibilidade de
realização plena do exercício. Será que realmente há uma impossibilidade colocada
aí? De que depende esse isolamento?
• Saudação à Maria: A partir de uma imagem de Gauguin,
compreender qual é a dança que se realiza na Saudação que o quadro propõe.
Dividir a atenção em 3 faixas: pés, quadril e seios/peito.
Na grande maioria dos casos a facilidade está no isolamento dos
pés; possivelmente por ser uma extremidade.
Larissa atenta para o fato de João, por conta de uma quantidade
menor de movimentos, conseguir evidenciar os seios. No relato dela, ele chega a
parecer ter seios.
Estar em Saudação seria nesse caso o segundo Substantivo do que
se pretende. Quem se aproxima mais, desse estar em saudação é : Bernard, Lucía,
João e Daniel.

106
O que falta para realizar a passagem do estar saudando para o estar
em saudação?
Obra de Guaguin: Substantivo;
Compreender o movimento que está na obra, saudação: verbo;
Entender aquele movimento no meu corpo: Verbo;
Estar em saudação: Substantivo.
Quando digo estar em saudação quero dizer, eu não posso
reconhecer a ação e se a reconheço, ela precisa estar em segundo plano, eu
preciso ler o substantivo, eu preciso perceber a saudação muito antes do saudar.

29/01/2011 – Substantivo – Verbo Verbo – Substantivo – do cotidiano ao cênico

• Teoria: O Trágico em Schelling e em Hölderlin; conversas a


partir da doutrina normativa de Aristóteles; talvez de todos os comentários, o mais
importante tenha sido o do Daniel, quando ele relata que conseguiu fazer relações
diretas entre o que estávamos discutindo naquele momento com o trabalho dele na
área de audiovisual. Encanta a mim a ideia de que as reflexões talvez sejam as
mesmas, mas respeitando-se suas particularidades.
• Canto com a Lucía; Lu começou a falar da respiração
intercostal, fez escala e brincou com a ideia de uma música de marinheiros.
Comentou da falta de articulação do Daniel e pediu que o Elton atentasse para o que
havia sido trabalhado no momento de cantar (marinheiro). Dado reclamou de dores
na garganta após os exercícios; parece-me que houve uma grande confusão entre
mar/marinheiro, campo/índios; alguma confusão entre lavadeiras e marinheiros, que
fique clara a diferença. Os marinheiros estarão em cena, mas não as lavadeiras. Os
marinheiros dão base ao oráculo.
• Corpo atenso: Busca do corpo atenso em atividades
cotidianas: Sentar, lavar, deitar, caminhar. Descobrir a coluna desse corpo atenso;
não conseguimos realizar;
• Corpo atenso e vertigem: Realizar o exercício anterior após
processos de giro e vertigem; não conseguimos realizar;

107
• Ferroviária com retenção e amplificação das ações, em
frequência e dimensão; sentar na ferroviária, ou reter a ação ao mínimo ou ampliá-la
ao máximo em frequência e dimensão; não conseguimos realizar.
• Saudação à Maria; Por que ao pedir para dar um zoom na
saudação a velocidade da saudação também aumenta? Tamanho de movimento
(amplitude) e velocidade, para esse grupo está diretamente relacionado; quase
todas as saudações são destinadas ao chão. Jeziel tanto no encontro passado como
nesse propõe um desvinculo com a forma como se encontram as mãos nas imagens
originais: proposta ou equívoco/desatenção?
• Coro de Marinheiros; Não conseguimos realizar.
• Primeira brincadeira com o espetáculo de dança: Bailarina
que monta a lanterna – Diário de Bordo; quando se pensa que a luz movimenta meu
corpo, algumas iniciativas, dos três grupos, foram no sentido de construir
movimentações robóticas, quando deveria ser exatamente o contrário. Qual a
corporeidade de quem manipula a lanterna? O grande problema ainda está na
quantidade de movimentos e na precisão deles. Tanto quando na saudação de
Maria, aqui eu preciso ver a bailarina e não os movimentos de compor a bailarina! A
luz que pressiona, da forma como foi elaborada por eles, restringiu a movimentação,
quando deveria ser exatamente o contrário. A pressão da luz é capaz de amplificar o
rol de possibilidades. A pressão coloca em movimento e não restringe o movimento.

05/02/2011 – Substantivo-Verbo Verbo-Substantivo: corpo atenso na passagem


verbo-verbo

Teoria: O Trágico em Hegel, Solger, Goethe, Schopenhaur, a ideia


de inscrição de regime de linguagem em Benjamin e as normativas aristotélicas;
conseguimos desenvolver uma boa discussão sobre a presença do ausente e sobre
a desconstrução como caminho da construção, princípio da vertigem, seja no texto,
seja no corpo;
Canto com Lucia; Jeziel relatou que sente “falta de ar” enquanto
conversa e nada. Lucía sugeriu que as pessoas façam, no mínimo, dois minutos de
exercícios de respiração; deve-se tentar alterar a entrada e a saída de ar? –
108
pergunta do Bernard. Eu sempre vou expirar considerando-se que fica uma parte do
ar que é residual.
Corpo Ideal: Caminhem! Esse é o corpo que vocês julgam ideal para
a cena? Se sim, reparar qual é esse corpo. Se não, como chegar ao corpo ideal?
Realizar a passagem de um a outro – passo-a-passo! O que realmente é necessário
nesse corpo ideal? Parte do grupo declarou que com o passar do tempo de
exercícios a diferença se torna quase imperceptível. O limiar entre o corpo atenso e
o corpo cotidiano se tornar mais tênue, por exemplo, para o Jeziel, segundo ele
mesmo. Há diferença, certamente, em relação à tonicidade e à percepção. Essa
diferença foi relatada nos exercícios abaixo;
Corpo atenso: Busca do corpo atenso em atividades cotidianas:
Sentar, lavar, deitar, caminhar. Descobrir a coluna desse corpo atenso; anotações
no exercício anterior;
Corpo atenso e vertigem: Realizar o exercício anterior após
processos de giro e vertigem; anotações no exercício anterior;
Ferroviária com retenção e amplificação das ações, em frequência e
dimensão; Sentar na ferroviária, ou reter a ação ao mínimo ou ampliá-la ao máximo
em frequência e dimensão; Janaína passou absolutamente mal após o exercício;
João declarou passar mal com a vertigem; a instauração de uma atmosfera cênica é
automática quando eles entram em vertigem. Por quê? O que acontece com o tônus
muscular em estado de “pós-“vertigem? Quais caminhos podem nos levar a esse
corpo que está internamente desestabelecido e na tentativa de se re-estabelecer
acaba por se tornar um corpo com pouca tensão e grande qualidade cênica?;
Encontros: Níveis de pressão e vertigem (verbo encontrar); o grupo
tem grande dificuldade de se atingir uma movimentação frenética, bem como quase
não atinge precisão em relação ao início e ao final da ação. Como ter precisão sem
cair numa velocidade reduzida? Os corpos entram em contato deixando partes sem
contato, parece que para algumas duplas há um contágio e os corpos quase se
tornam uma massa só! Como investir na pressão sem que os corpos precisem estar
totalmente em contato, ou, se quer, em contato físico?
Bailarina que monta a lanterna – Diário de Bordo; não fizemos!
Coluna Animal; não fizemos

109
12/02/2011 – Substantivo – Verbo Verbo – Substantivo: corpo atenso, pressão,
dualidade e tridimensionalidade

Teoria: Compreensão de uma análise do Szondi; discutimos a


dimensão da tragédia na obra Otelo em comparação com duas cenas do Favores:
Natureza e Mulher selvagem; levantamos questionamentos a respeito da Ausência
como Presença e da Destruição da Ideia como caminho para a constituição da
linguagem poética; organização dos conceitos de autodivisão e de conciliação;
destino e amor; dever e querer;
Canto com Lucía; a tentativa de realizar uma respiração em que não
se mexe o tórax leva determinada tensão a esse tórax; a respiração indica seus
caminhos de trabalho com a voz; alguns, incluindo-se o Felipe, ainda que afinados,
não percebem a afinação; Larissa trava no trabalho com voz em público;
Verbalização: pressão, dualidade e tridimensionalidade – Caminhos
para a atensão – Percepção e Tonicidade; Jeziel precisa entender melhor o trabalho
com a pesquisa em ação sem representação; após sequência de verbos, todos os
corpos atingem uma tonacidade interessante para a cena, e, ainda que cansados,
nenhum possui grandes tensões; por questão de tempo, nem todos fizeram o
exercício completo; a parte das 10 ações nos cubos não foram feitas por todos;
Felipe testou ações do espetáculo – boa percepção de um momento para explorar
as ações; Marina, mais uma vez demonstra um corpo com grande resposta (coluna
e músculos) – falta para ela saber garimpar a significação desse corpo em atividade;
fizemos uma volta às pesquisas do Áppia; isso me levou a revisitar alguns textos,
após o ensaio, e a entender uma possibilidade de caminho para o espetáculo
Favores da Lua: O Diário de Bordo;
Experimentos: Favores da Lua – O Prólogo; com o trabalho que
realizamos de experimentação a partir do diário de bordo, as composições da cena
do Favores da Lua - O Prólogo acabaram por serem revistas; trabalhamos um pouco
sobre a ideia de pressão entre os corpos e da vertigem como caminho para a
construção das cenas, compreendendo como os corpos podem, pela pressão que
exercem entre eles, gerar a vertigem;

110
Experimentos: Favores da Lua – O Diário de Bordo; não
trabalhamos diretamente, mas indiretamente no 1º exercício;
Experimentos: O Touro Branco; não fizemos, mas estamos
trabalhando o espetáculo durante o trabalho com a Lucía;

19/02/2011 – Substantivo-Verbo Verbo-Substantivo – Experimentos da pressão


– corpo-corpo, corpo-espaço, corpo-sonoridades, corpo-luz;

Teoria – discussão a partir de 5 artigos em diálogo com as


teorizações visitadas nos encontros anteriores; Levantamos questões comparativas
entre a teoria aristotélica sobre a tragédia e a perspectiva de Platão; transitamos
entre Nietzsche, Wagner e Áppia; discutimos as normatizações aristotélicas a partir
de Pavis; concepção de mito e seu emprego na tragédia clássica e na moderna;
noção de espírito e de verdade na obra trágica grega;
Canto com Lucía; sonorização: coro de marinheiros/oráculo; entre
som e corpo os movimentos são produzidos racionalmente. Onde reside essa
dificuldade? Pensar no bocejo com movimentação. A transição para a cena dos
marinheiros aumentou a tensão do canto e tudo que havia sido discutido até então,
parece que foi esquecido;
• Experimentações: Favores da Lua – O Diário de Bordo, 1º, 2º
e 3º Atos; começamos a composição das cenas dos 3 atos; ficou evidente com o
trabalho com os cubos a necessidade de se compreender o “objeto que me
movimenta”; mais uma vezes me parece que precisão sem tensão e relaxamento
com precisão são grandes dificuldades desse grupo;
• Experimentações: Favores da Lua – O Prólogo; discutimos a
relação corpo-espaço intensamente e na prática; ao tentar dominar o espaço meu
corpo é pressionado por ele e quase que naturalmente se torna tridimensional;
dividir a cenas em moléculas e estruturá-las com começo meio e fim, com funções,
tornou a cena inicial muito maior e melhor do que o que se via antes; o Dado possui
grande dificuldade de não indicar a próxima ação; acabamos sempre por saber qual
será o próximo passo do Dado; Thiago ainda me parece trabalhar mais com tensão
do que com pressão, em especial nos trabalhos que estamos realizando nessa
111
primeira cena; a cena inicial, que antes era composta por homens e mulheres, agora
possui apenas uma mulher, a Larissa, isso me gerou uma necessidade de repensar
o espaço sonoro da cena; outros corpos – outras pressões corpos-sonoridades.

26/02/2011, 05/03/2011, 12/03/2011 e 19/03/2011 Substantivo-Verbo Verbo-


Substantivo – Experimentos da pressão – corpo-corpo, corpo-espaço, corpo-
sonoridades, corpo-luz;

Todo o trabalho desses 4 dias serviu como uma verticalização dos


temas que vimos discutindo; como precisávamos realizar substituições nas cenas do
Espetáculo “Favores da Lua - O Prólogo”, toda e qualquer investigação esteve
profundamente atrelada a ele. Com a volta aos textos originais do Baudelaire, veio à
tona uma questão emergencial: quanto do autor e quanto da adaptação estão na
obra vista pelo espectador? De certo modo, essa relação conflituosa disparou um
universo possível de trabalho sobre as cenas. Quanto aos atores, o que se
evidenciou nesses dias de trabalho foi a urgência de compreensão da
movimentação/ação humana como fruto de uma necessidade sem resolução pelo
plano das ideias. O dever e o querer impuseram um jogo dialético que está na
concretude do corpo do ator em diálogo com a materialidade da cena e só atinge a
perspectiva do subjetivo quando encontra o espectador. Os cubos de diferentes
tamanhos produzem alicerces muito diversos para pés com 30, 35 cm que tentam
preenchê-los por completo. Meu corpo encontra pedaços de materialidade e esse
encontro precisa ser uma explosão externa de possibilidades, que só depois poderá
ser significada internamente, e, de dentro, romperá um vulcão dos mais ferozes para
propor novas relações de compartilhamento do espaço. Ao compartilhar eu ocupo e
sou ocupado. Meu corpo só é tridimensional porque o todo que o toca e se entrega
ao toque é tridimensional por excelência. A tentativa de realização da ação é o
caminho mais curto me parece para o fracasso dessa ação. Mas como deixar-se em
composição? Como perder o eixo em cena, para que o espectador seja capaz da
construção? Como querer resolver menos? Como querer a exposição de um corpo
que nem se sequer deve agir, mas ser em ação? Volto à questão que me move
nesta pesquisa: Se minha coluna me permite a vida no âmbito cotidiano com a
112
simplicidade de viver, e reconheço nos momentos mais significativos os instantes em
que a ação não parte de mim, mas está em mim enquanto compartilho algum
espaço, como entender esse processo na preparação de atores? Colocar o ator
iluminando a cena e arrastá-lo com uma voracidade à cena do outro, ao jogo com o
outro, à circulação de energia que o outro precisa. É preciso compreender a
dinâmica, em cena, de objetos que são em si toda a potencialidade da cena. É
gigantesco observar um corpo em estado de ação quando encontra o outro. Mas por
que ainda é tão difícil estar em estado de ação quando se pretende a emissão de
um texto? Que venham os ensaios gerais da próxima semana e as apresentações a
partir do dia 02/04/2011 – 2ª temporada do nosso querido prólogo.

26/03/2011 – Ensaios Gerais do “Favores da Lua – O Prólogo”

Nesse sábado fizemos ensaios gerais do espetáculo “Favores da


Lua – o Prólogo”. Acabamos por discutir em paralelo o que significa o termo
PROFISSIONALISMO. O que implica ser profissional no comportamento em trabalho
de cada um dos participantes do Núcleo? Quanto à pesquisa de linguagem, acho
que não investimos efetivamente em nenhuma novidade, apenas demos o tempo
para a decantação cênica dos elementos que vimos pesquisando. Essa decantação
se faz necessária. O espetáculo amadurece a cada vez que nos dedicamos a esse
tempo de simplesmente realizá-lo. Claro que as discussões teórico/práticas dos
encontros anteriores amparam as construções cênicas que fizemos. Talvez uma
importante descoberta desse processo foi o valor que atribuíamos a um elemento
cênico, a xícara. Se dar conta disso nos levou a revisar as cenas em que ela
aparecia e as possibilidades de utilização desse objeto em outras cenas. Nesse
sentido acho que o que mais me agradou foi a verticalização da expressão: “é o
objeto que manipula o corpo do ator” . Nesse caso a expressão se aplica também
ao espetáculo. Uma xícara movimentou nossa sedimentação.

02/04/2011 – Gravação de Algumas Cenas do Espetáculo “Favores da Lua – O


Prólogo”

113
Gravar onze cenas do espetáculo nos fez fortalecer a ideia de se
gravar um curta sobre essa pesquisa de linguagem no segundo semestre. Do
encontro anterior, com o trabalho com a xícara, parte do roteiro a ser desenvolvido já
foi vislumbrado. Enquanto adaptávamos as cenas para o vídeo, pudemos perceber o
quanto o espetáculo é minuciosamente sensível. Efetivamente, não realizamos
grandes avanços objetivos em relação ao espetáculo, porém, criamos um novo
envolvimento e reflexão sobre as cenas que o compõem, pensando a função de
cada uma deles em relação à dramaturgia do espetáculo como um todo.

16/04/2011 – Discussão sobre a experiência de (re)estreia do espetáculo


Favores da Lua – o prólogo

Este encontro foi basicamente destinado a conversas sobre a


experiência da (re)estreia do espetáculo Favores da Lua – o prólogo. Janaína
relatou a necessidade de atentarmos para a função real dos ensaios de um
espetáculo; já que falamos de jogar com o espaço, de construir a significação pela
materialidade externa, que os ensaios sejam para nos organizar uma estrutura a
partir da qual jogamos: atores, espaço, elementos cênicos e público. Conversamos
ainda sobre as dinâmicas administrativas do Núcleo, tão necessárias para sua
manutenção. Estamos pensando em estratégias que não tornem o trabalho
administrativo tão desgastante e em iniciativas que nos ajudem com o prazer de
administrar.
Quanto à discussão teórica, nos ativemos em perceber o lugar da
imaginação na nossa prática, na nossa pesquisa de linguagem. Conversamos sobre
os limiares da seletividade do encenador e da seletividade do ator como um possível
campo para o fortalecimento da imaginação em ambos. Falamos sobre a
necessidade de se entender imaginação em uma dinâmica dual: imaginação
retrospectiva e imaginação prospectiva. Parece-me que
trabalhamos nesse processo com a materialidade, com a externalidade, de uma
imaginação prospectiva, que está implicada na ação seletiva. A experimentação
cênica certamente inclui uma faceta da imaginação retrospectiva, mas ela não pode

114
ser o motor e tampouco o sustentáculo da criação cênica. Lembrando sempre que
estamos falando do nosso jeito de pensar e de fazer “cena”.
Caberá ao encenador compreender as dificuldades que deverá
lançar ao ator em cena, e não somente em exercícios, para que esse, ao transpor as
dificuldades, signifique a ação e as micro-ações no sentido que se pretende para o
espetáculo. Uma dificuldade ao ser superada exige que se construa outra. Desse
modo, cabe ao encenador construir dificuldades e ao ator superá-las. A seletividade
está em reconhecer quais caminhos poderão levar à significação que se espera para
determinada cena. Esse jogo será vivo, desde que encenadores e atores saibam o
porquê do jogo e se permitam prospectivamente construir caminhos lúdicos.
Ou seja, a dificuldade deve ser posta em cena. Cada conquista
requer verticalização e é por ela que se tem a complexificação do espetáculo
enquanto obra. Mas essa pesquisa em direção à dificuldade, no sentido com que
trabalhamos, não exige, em hipótese alguma, auto-penetração (do ator). E a
imaginação no trabalho do ator, portanto, está a favor da seletividade, a imaginação
a favor do extravasamento de limites, o que coloca o encenador em um constante
movimento de ressignificação da cena enquanto proposição.
Nesse sentido a exterioridade é responsável por qualquer
movimento interno. Esse movimento interno pode ser acolhido pelo ator em seu
trabalho e de alguma forma alterará o jogo externo com o objeto. Mas há que se
lembrar que o jogo é exterior e passa ao largo de qualquer tentativa de
interiorização. Ou seja, para nós haverá sempre uma materialidade disparadora.
Assim, o trabalho com os objetos estará no ato de reconhecê-los e
de (re)significá-los, nunca em criá-los. Na dinâmica com que pensamos a relação
ator-objeto, ao ser movimentado pelo objeto o ator o está significando e o
reconhecendo naquele contexto específico.
Essa discussão, é claro, não se encerra nas palavras aqui escritas,
mas aos poucos, postaremos nesse Diário de Bordo outras palavras que se
aglutinarão a essas e as modificarão e, quiçá, um dia poderemos falar que temos
algo efetivo para dizer!

23/04/2011 – Ação e Microação – O estado de cena: linhas de impulso

115
Discussão teórica: A personagem (Drama Burguês); Talvez essa
tenha sido a melhor discussão teórica que fizemos até agora; colocamos em
questão o fato de cada cena, no sentido histórico, organiza uma espécie de micro
cultura que dialoga diretamente com a macro cultura, ou a cultura dos Sujeitos.
Nesse sentido a cultura dos atores, das personagens, impulsiona por um lado e
limita por outro as possibilidades de trato do ator com essa unidade: a personagem.
Nesse sentido, o trabalho com as ações e mais especificamente com a coluna está
implicado no tipo de cultura (cênica) com a qual lidamos. Se não realizamos uma
pesquisa cênica que considere a cultura da personagem, mas sim a cultura do ator
e, portanto, das suas ações simbólicas, ainda assim não podemos esquecer que a
personagem existe, pelo menos, em dois espaços: o do texto escrito e na
construção de significados realizada pelo espectador.
Canto com Lucía; desenvolvemos algumas atividades em relação a
pulso; parte do grupo ainda apresenta dificuldades em se manter em um pulso mais
constante; alguns, como a Marina, declaram, inclusive, não perceber a diferença
entre estar no pulso e não estar nele. Que tipo de trabalho podemos realizar para
que essas dificuldade seja sanada? Ou como levar essa dificuldade para a cena de
forma que ela se torne produtiva?
Microação nos contatos; Preenchimento da ação; Grupo dos
policiais; grupo dos ladrões, uns prendem, outros matam. Como se prende? Como
se mata? O contato deverá estabelecer o funcionamento do jogo. Por que para os
atores do núcleo estabelecer o jogo é tão mais difícil do que resolver um jogo? As
iniciativas nessa proposta, de um modo geral tendem a dois caminhos: fixar regras
ou declarar o contato; instaurar o jogo e construir se tornaram quase impossível para
esse grupo em uma primeira realização da proposta. Dado evidencia o desejo de
vitória, João vai rapidamente para o contato, sem que ele se faça necessário; Daniel
e Felipe por vezes se ausentam completamente da atividade; grande parte dos jogos
que se iniciam são infantis; por quê?
Impulso na ação; Linhas de força da caminhada; mais uma vez
trabalhamos as linhas de ação como meios para se atingir o estado da vertigem; os
corpos estão respondendo cada vez mais rápido em jogos como esse; é
impressionante reparar as diferentes entre os corpos pré e pós vertigem; ainda

116
assim, para alguns, esses jogos são aniquiladores; os deixam em estados de quase
improdutividade por longos períodos; quais as diferenças entre esses e os outros
corpos? Ainda assim, instaura-se uma energia cênica no corpo cotidiano; se é que
podemos chamar esse registro de corpo cotidiano. Continuaremos as investigações
nesse caminho. Cada vez mais ele me parece um propício eixo de investigação.
Quem sabe o espetáculo de dança não possa nos levar a uma verticalização cênica
desses jogos e atividades...
Ensaio cena a cena do Favores da Lua – O Prólogo; um passadão
muito ruim; era como se o espetáculo não estivesse ali, mas sim um bando de
confusões. Tivemos público, uma pessoa, mas muito interessada, ao fim a
declaração veio no sentido de que se para mim havia sido muito ruim, para ela tinha
sido muito bom. Para minha surpresa a cena que mais agradou foi a do Felipe.
Ingenuamente, já que era uma pessoa conhecida, eu esperava que essa fosse uma
cena que gerasse algum desconforto.

30/04/2011 – Apresentação em Capela do Alto

Durante a viagem fizemos uma conversa sobre as ausências em


relação a algumas atividades do Núcleo; falei sobre meu cansaço de cobranças;
ainda acho que as pessoas se manifestam menos do que deveriam, não em
palavras, mas em ações;
Chegamos em Capela do Alto, o ambiente me lembrou antigas
atividades que desenvolvi em áreas mais afastadas dos centros urbanos; além de
algumas atividades práticas que se alicerçavam em uma filosofia do espetáculo
(círculos de atenção e de energia, por exemplo), realizamos um passadão não
completo, além de algo que me pareceu apropriado: atividades cênicas de
descontração. Talvez o clima tão positivo em que estávamos antes do início da
apresentação venha exatamente, mas não só, desses momentos de descontração.
Devo repetir mais vezes; por outro lado, fico pensando nos limites desse tipo de
trabalho e como perceber os limites de cada um dos integrantes em relação a esse
tipo de trabalho; dar um tempo para que cada um individualmente entrasse em jogo
de apresentação, para depois ir trazendo cada um deles, um a um, até que
117
formássemos o coletivo para o último aquecimento, também foi bastante positivo e
repercutiu não só em cena como nas próprias falas dos atores sobre o dia de
trabalho. Um outro ganho desse dia foi realizar o aquecimento pré-apresentação aos
olhos e ao sabor do público, a conexão espetáculo-espectador me pareceu
garantida naquele momento.
A apresentação certamente foi a melhor que já fizemos desde a
estreia do espetáculo Favores da Lua – O Prólogo; não porque tudo estava
suficientemente bom e no seu rendimento máximo, mas porque nosso público nunca
jogou tão intensamente conosco como nesse dia. Uma maioria avassaladora de
homens na plateia e, ainda assim, tivemos a sensibilidade à flor da pele, da nossa
pele e da pele deles. A não necessidade de compreensão racional desse público
muito específico conduziu a sensibilidade a níveis bastante intensos; risos, falas,
celulares, timidez, sorrisos, olhares. Eles comentavam o espetáculo, durante o
espetáculo, e isso compunha uma cena que era nova também para nós; eles torciam
para que alguns atores, como Daniel e Janaína, voltassem a cena; eles se
questionavam, uns aos outros, sobre o que viam: “É de verdade?”; eles procuravam
a cumplicidade entre eles e com os atores com o olhar e com sons; eles me
agradeceram ao final e mal sabiam que eu, naquele momento, estava louco por
agradecer um a um da melhor forma possível, mas me contive com um muito
obrigado a cada um que passou por mim na saída. Se alguém teve audácia de dizer
um dia que esse espetáculo é para “iniciados”, para intelectuais, para..., é porque
não foi público nesse dia ou não pode ver o que nós vimos desse público. Resta
saber: quando a gente se encontrará novamente?. Plagiando o próprio espetáculo:
“O PÚBLICO QUER MAIS!”

07/05/2011 – Adaptação do espetáculo “Favores da Lua – O Prólogo”

Adaptação do Espetáculo: devido à saída de um dos atores do


Núcleo, precisamos adaptar algumas cenas do espetáculo para as próximas
apresentações. Impulsionado pela entrada de uma nova corporeidade/subjetividade
em cena, e frente a algumas dificuldades/ características específicas do ator
Wellington (Capela), utilizei da proposta do figurino para conduzir a cena para um
118
trato que me pareceu proveitoso para o espetáculo como um todo. Ainda que
tenhamos na coluna o sustentáculo da ação, nesse caso, da caminhada, ela se
manifesta e dialoga com o espaço a partir de outros pontos do corpo, algumas
vezes, extremidades. Valorizar o que o figurino já evidenciava do corpo, partes em
exposição direta, alterou o modo de caminhada do ator, que em hipótese alguma
abandonou sua estrutura inicial de caminhada, mas ressignificou seu modo de
ocorrência. Ou seja, ele parte da sua estrutura cotidiana, a reconhece, entende os
limites dela para a cena, compreende a proposta material do figurino e se vale disso
para chegar a um estado de corpo e de caminhada que parece justo à cena. Dessa
experiência, uma pergunta surge: e quanto aos outros atores, como eu estou
estimulando a utilização do figurino como um dos instrumentos da ação? Uma nova
meta de experimentações surge a partir dessa questão. Lidamos muito tempo com a
sonoplastia e a iluminação como geradoras de pressão; neste momento se faz
necessário pensar o figurino como instrumento da ação cênica. Bernard fez uma das
substituições de cena, e ver o rápido resultado positivo atribuído ao trabalho dele,
me fez pensar no que havia alterado no trabalho desse ator desde que começamos
nossas experimentações. Para o tipo de trabalho cênico que fazemos, Bernard me
parece muito mais disponível e com resultados muito mais interessantes do que no
início desse trabalho. Neste sentido fico curioso e interessado em investigar mais
minuciosamente o processo de crescimento deste ator, em especial, para, quem
sabe, poder compreender melhor o caminho, em si, que proponho para a
preparação de atores.

21/05/2011 – Da ação no espaço para a ação cênica – Dançar o espaço.

Discussão Teórica – O Privado e o público; a separação do sujeito


da representação do objeto representado - A partir das concepções de Peter Szondi
sobre o Drama Burguês, discutimos questões relacionadas à emersão desse e o
surgimento e fortalecimento do chamado Drama Familiar; mais uma vez voltamos às
questões referentes a personagens e o trato com o texto...
Dançando o espaço – a descoberta do corpo atenso que dança o/no
espaço – Numa simples caminhada o corpo pressiona e é pressionado pelo espaço;
119
alguns rapidamente se sentem impulsionados a realizar outras ações - ações
complementares para a caminhada; a abertura para o espaço era o foco do
estabelecimento dos jogos; o outro ocupa esse espaço tanto quanto eu o ocupo, e
nessa coabitação somos, eu e outro, balizados pelo espaço; se no início só meus
pés tocam a concretude material dele, com o tempo todo o corpo está friccionado na
relação; mais uma vez, instaurar o jogo era o objetivo da atividade; não instaurar
regras, mas instaurar um campo de jogo; volto a notar, e dessa vez jogando com
eles, num sentido mais estrito do termo, que deixar o jogo se instaurar por
necessidades que não as racionais é uma das grandes dificuldades do grupo; em
outro sentido, os jogos instaurados são repetidos, quase que incessantemente, sem
que se permita seu desenvolvimento, ou mesmo, seu esgotamento. O que quero
dizer é que os jogos são tão minuciosamente calculados por alguns, que em pouco
tempo são nada mais do que partituras vazias ou em esvaziamento. Ainda assim,
um dos pontos fortes da atividade foi perceber que esses corpos com os quais eu
trabalho já possuem um registro bastante positivo em relação à nossa pesquisa de
um corpo atenso..., de um corpo que esteja posto nas suas tensões necessárias;
não falamos, reitero aqui, de um corpo que se mantenha em um registro
estritamente cotidiano, quanto à percepção, por exemplo, mas de um corpo que
deveria ele mesmo estar lá, nas ações cotidianas. Por que na cena se deve ampliar
os sentidos? Me parece mais lógico que pensemos pelo inverso: este corpo atenso
de que falamos, e que pretendemos organizar com nossas atividades, considera a
um só instante as dimensões do corpo de si, em seus aspectos físicos, mas também
afetivo-cognitivos, e o outro como (co)construtor dessa dinâmica de ação simbólica,
que, nos parece, é plausível para a cena e para a vida cotidiana. Quando digo outro,
digo o outro como espaço, como iluminação, como sonoridade, mas também como
outro-sujeito. Ou seja, o registro que buscamos para os corpos é potencialmente
cênico e cotidiano ao mesmo tempo, dependendo, é claro, da inserção que fazemos
dele em determinada cultura, se considerarmos a cena em seu funcionamento,
como uma cultura interdependente e análoga àquela em que vivem os sujeitos em
estado de não-atuação-cênica. Nesse sentido proporei para a próxima semana, uma
investigação que segue essa linha de pesquisa: investigaremos ações para o

120
espetáculo “Favores da Lua – O Diário de Bordo” a partir do corpo cênico (atenso)
em jogo construído para o espetáculo: “Favores da Lua – O Prólogo”.
Quanto às apresentações na Uniso, deixo aqui uma pergunta:
apresentar no período da manhã nos fez perceber uma suavidade dos corpos, sem
que para isso necessitemos de pouca energia; teria isso alguma relação com o
estado de relaxamento natural dos corpos bem cedo, o que favorece o trabalho que
vimos fazendo na busca desse corpo atenso?

28/05/2011 – Corpo Atenso – o Pé Pressiona, a Coluna Age

Discussão Teórica – O Contexto na Forma do Drama Burguês –


Seguimos com as conversas sobre o drama burguês; nosso foco esteve em
entender como a passagem de uma esfera do público para o privado sustentou um
modo de se pensar e de se produzir cenas no contexto do drama burguês do séc.
XVIII; uma das questões que nos colocamos foi: houve um afastamento da ideia de
catarse ou uma alteração do estatuto e da função dessa dentro dos propósitos
morais do Drama Burguês? Recorrendo à ideia de profissão como chamamento,
como algo que está para além das intenções de acúmulo de capital, e à necessidade
de uma ascese da vida intramundana, acabamos por tender à segunda opção em
relação à catarse. Num outro sentido, conversamos sobre a influência de um
pensamento corrente: família patriarcal e o cumprimento das condições por parte
dos integrantes de uma família, como sustentáculos da ideia de catarse que então
se desejava.
Canto com Lucía – Trabalhamos a ideia de um corpo que age e,
portanto, possui determinada sonoridade; nesse sentido os exercícios caminharam
para a compreensão de que se o corpo está em ação, a voz, as sonoridades, se não
sofrerem nenhuma tipo de manipulação, também estarão. Tanto quanto um corpo
deve ser receptivo cenicamente a um outro corpo, um corpo deve ser receptivo em
igual proporção a um outro corpo/sonoro.
Os Favores da Lua – do Prólogo ao Diário de Bordo – Essa atividade
teve por objetivo a compreensão de que a forma como meus pés pressionam o
espaço de apoio (chão, cubos...) e são pressionados por ele, potencializa uma
121
qualidade de ação a partir da minha coluna; ou seja, a pressão de apoio é ela
mesma um estímulo para a pressão que meu corpo faz no espaço. A investigação
partiu de um campo seguro, “Favores da Lua – O Prólogo”, para um espaço de
negociação e construção, “Favores da Lua – O Diário de Bordo”; nesse contexto que
construímos a primeira cena do espetáculo de dança. Há aqui um trabalho anterior,
que não está citado, que é o reconhecimento do corpo atenso; esse corpo quando
disponibilizado para o jogo de pressões sofrerá o impacto de novas tensos e
relaxamentos que o possibilitarão à composição do dito corpo cênico, segundo os
princípios com os quais trabalhamos.

04/06/2011 – Apresentação em Itaquaquecetuba – Da pressão dos pés à ação


da coluna – Substantivo – Verbo Verbo – Substantivo

Discussão Teórica – Seguimos com nossas conversas a respeito do


Drama Burguês; o que se tentou articular é a ideia de uma pedagogia da moral e de
um estado, de uma condição, que alimentam as ações das personagens e sua
moralidade; partiu-se da ideia de Diderot de que todo homem nasce bom, mas
encontra na sociedade sua corrupção; nossa conversa tentou responder, no âmbito
das personagens, “como compreender esse paradoxo?”;
A coluna como alavanca da ação – Efetivamente desenvolvemos
exercícios em que a coluna era a alavanca para a ação de lançar; minha coluna
alavanca o lançamento da coluna do outro; nesse caso específico, trabalhamos com
foco na pressão entre colunas como meio de se construir o caminho de projeção do
corpo do outro no espaço, e, portanto, da verbalização da minha coluna a partir do
ato de lançar, ou seja, do lançamento. Em paralelo, tentou-se compreender a
relação entre a pressão que os pés realizam e sofrem em relação ao apoio como
estruturador da qualidade da coluna como motora da ação e, por desdobramento, da
própria ação, neste caso, de lançar. Diferentes pressões exercidas e sofridas em
relação aos apoios organizam a coluna do Sujeito de forma com que ela mesma
pressione o espaço diferentemente, de acordo com a (re)equilibração dos arcos
corporais. Quando uma parte do meu corpo toca algo, ela deverá realizar a pressão
possível (devido à organização da coluna) em relação a esse algo, ao mesmo tempo
122
em que a pressão sofrida percorrerá o corpo até reestruturar a coluna do agente.
Cada pressão tem nela mesma o tempo potencial do contato, que se respeitado, se
ouvido, não esvaziará a ação e não a deixará incompleta ou abandonada.
Ensaio “Favores da Lua – o diário de bordo” – Mantivemos a
atenção na primeira composição (ou primeira cena); Thiago precisa efetivamente
entender o que significa, nesse estudo da Luz que pressiona o corpo, ter seu corpo
sob uma constante luz em oposição a partes do corpo que recebem a pressão da luz
de modo pontual e descontínuo; ainda que a luz esteja direcionada à face da
Larissa, ela deverá compreender que só se chega plenamente a um olhar, quando
se entende, lá na base, que pressão seus pés exercem e sofrem sobre o/do solo;
Daniel deverá investigar de forma mais vertical a pressão como impulsionadora da
ação, e não a ação como algo pré-definido; Janaína e Leila precisam entender o
tempo da cena;
Apresentação “Favores da Lua – o prólogo” – Nosso público mais
jovem até então; baixa temperatura e ainda assim corpos bastante prontos à cena: o
que efetivamente, então, a temperatura ambiente faz com meu corpo? Se em
Itapetininga o calor foi a “desculpa” para um estado de corpo cênico considerado
inferior, como justificar essa relação entre o corpo dos atores (bastante eficaz) e o
frio em Itaquaquecetuba (considerando-se que era uma temperatura realmente
baixa)? Thiago, não sei se conscientemente, regulou rapidamente seu volume de
voz, após a primeira fala, para amplitude do espaço que fazia com que os sons se
“perdessem” em parte. Será que essa percepção veio da atenção atual desse ator
para as questões vocais? As sombras, que inicialmente compunham a encenação, e
que se perderam por conta da variedade dos espaços, estiveram absolutamente
presentes na apresentação em Itaquaquecetuba; e mais uma vez eu me certifico de
que com a presença delas o espetáculo parece mais completo. Uma boa
apresentação, com uma energia centralizada, mas com movimentos centrífugos dos
atores em cena e centrípetos dos atores em volta das cenas. Como investir
intensamente nessa relação centrípeta/centrífuga? Foi a questão que ficou para mim
desta apresentação. Que dinâmicas podem ser promissoras para esse
investimento? Será que esta é uma percepção apenas sensível? Ou ela pode ser
construída intencional e racionalmente?

123
11/06/2011 – Apresentação em Itu - Da pressão dos pés à ação da coluna –
Substantivo – Verbo Verbo – Substantivo

Discussão Teórica – Fizemos o fechamento do livro sobre o Drama


Burguês; conversamos sobre a privatização da vida e as implicações dessa para a
relação palco-plateia; repensamos a clausula do estado nas dinâmicas nobreza-
comédia e sociedade-tragédia; nesse sentido discutimos se a proliferação das
personagens cômicas, de diferentes classes sociais, potencializa o drama burguês;
recapitulamos a noção de conteúdo precipitado. O drama burguês está colocado sob
a necessidade de uma ação simples, sustentada pela violência das paixões. Como
pensar o realismo em Diderot em relação com o drama histórico em Stanislávski?
Essa foi uma questão que ficou como link para fazermos a transição de um drama
burguês para o drama moderno. Discutimos, também, o diálogo entre a ironia trágica
e o drama burguês.
Da pressão dos pés à ação da coluna – escolhe-se um ponto no
corpo; será como se uma corda presa àquele ponto puxasse o corpo pelo espaço.
Ao ser puxado pelo espaço, o corpo organiza o contato com o solo de forma
diferente dos momentos de caminhadas cotidianas. Entretanto, não se quer construir
uma caminhada grotesca, ao contrário, ainda que se alterem os pontos de apoio, a
coluna será passível de reorganização e o que se terá é um caminhar orgânico,
atenso (originalmente). Nesse estado, o ator não estará realizando um outro
caminhar, será ele todo esse outro caminhar, em que tanto os apoios estão
alterados quanto a organização da coluna, e portanto, dos arcos corporais. A
Andreza rapidamente compreende o funcionamento dessa dinâmica e a leva para a
cena. A passagem que ela faz em cena, caminhando com a lanterna azul se amplia
em qualidade. A presença dessa atriz se torna prazerosa para os sentidos. Talvez
essa tenha sido a primeira vez em que um exercício repercute tão rapidamente em
cena. Por outro lado, Daniel e Leila não conseguem evitar que seus corpos
evidenciem o ponto escolhido, mais do que a organização corporal já o faz. Isso
torna o trabalho deles frágil. Neles a caminhada se tornou não-crível.
Força Centrípeta – Força Centrífuga – Dados os questionamentos
do encontro anterior, decidi trabalhar com os conceitos de forças centrípeta e

124
centrífuga. Revisitei o espetáculo para compreender em que momentos essas forças
apareciam e cheguei à conclusão de que a dinâmica iluminação (já que são os
atores que a fazem em volta da área de presentação) e atores (presentação) se
constitui entre forças centrípetas (iluminação) e centrífugas (atuação), dada a
composição do espaço cênico. Conscientemente os atores investigaram entre centro
e periferia do espaço de representação como seus corpos se organizavam para
cumprir com suas funções de atores e de iluminadores. Há nesse exercício uma
reflexão bastante importante para o espetáculo “Favores da Lua – o prólogo”, que é
a respeito do jogar coletivamente ainda que as cenas sejam bastante individuais.
Um ator, em força centrífuga (da cena para o público), isoladamente compõe sua
cena; entretanto, um conjunto de outros sujeitos iluminam em força centrípeta (da
periferia do palco para o ator em cena) e coletivamente o ator em cena. Em
conversa posterior com o elenco, parece que essa compreensão foi bastante intensa
e produtiva para a realização do espetáculo.
Apresentações do espetáculo “Favores da Lua – o prólogo” – desta
vez fomos obrigamos a efetivar nossa pesquisa de linguagem entre a cena e o
espaço, os atores e o espaço. Se em princípio o espaço em que aconteceriam as
apresentações era muito bom, percebemos com a primeira apresentação que a luz
utilizada era excessiva para as cores e dimensões do espaço, que o chão de
madeira fazia um grande barulho e que os cubos deslizavam quando os atores
desciam deles. Entre a primeira e a segunda apresentação, precisamos,
efetivamente, ouvir esse espaço e entrar em diálogo com ele; agora tínhamos
menos lanternas, outro caminhar em torno da cena, outras pressões ao descer do
cubo e outros tempos de cena, para dar conta das mudanças nas dimensões do
espaço de atuação. Essa experiência me fez voltar para um questionamento feito
por uma das atrizes do Núcleo, Janaína, em sua partilha semanal, sobre a
verdadeira razão dos ensaios para uma pesquisa que se dispõe a experimentar
diferentes espaços. Os ensaios estão para que se disponibilize ao jogo e não para
que se fixem regras e percursos. Os ensaios são para as descobertas de possíveis
micro jogos que compõem o macro jogo (espetáculo).

18/06/2011 – Substituição de ator – Espetáculo “Favores da Lua – O prólogo”

125
Discussão teórica – O Drama Moderno – para que possamos
adentrar os estudos do drama dito moderno, achamos interessante retroceder
historicamente e compreender, antes, o que é tido como o drama em sua forma
pura, absoluta. Conversamos também sobre a teoria dos gêneros e sobre as
implicações do pensamento renascentista para a constituição de uma determinada
forma de se pensar e se fazer “DRAMA”. Nesse sentido, conversamos sobre a
dimensão do diálogo na constituição dessa forma absoluta de drama e seus
desdobramentos.
Canto com Lucía – Pulso e Timbre. Os exercícios que fizemos
estiveram voltados para reconhecimento de timbres e de pulsos. E as discussões
desdobradas foram no sentido de compreender como uma cena precisa dos
diferentes timbres e pulsos para se compor. Conversamos sobre um fato constante
no grupo que é a alteração de timbres e volume de voz quando se entra em cena. O
ator sempre possuirá um rico material vocal. Ele precisa reconhecê-lo e trabalhar
dentro das suas possibilidades saudáveis. Não há para que realizar alterações
vocais exageradas na cultura da cena com a qual trabalhamos. O repertório de cada
um é suficiente para fornecer materiais de significação para o espectador.
O Ensaio – Aproveitamos a necessidade de substituição de um dos
atores, Darlison, para pensar em cada cena individualmente. O que fizemos foi
atentar para as mudanças que cada uma delas sofreu durante esse longo período
de apresentações e refletimos sobre as mudanças que se tornaram frutíferas e as
que excluíam escolhas importantes que haviam sido feitas anteriormente. Alteramos
uma das cenas, a cena da pomba-gira, para que a atriz, Andreza, pudesse dominar
a cena mais intensamente e propor uma nova composição de cena em que ela, a
atriz, fosse o elemento central.

23/06/2011 - O Substantivo TIMBRE – Substantivo – Verbo Verbo – Substantivo

Discussão Teórica – Na sequência sobre as questões do Drama


Moderno, conversamos sobre a possibilidade de diálogo entre a crise do drama
apresentada por Szondi e as questões da temporalidade, aqui pensada no âmbito
das relações das personagens com o presente. O presente que estamos
126
considerando é o momento em que a ação acontece no texto dramatúrgico.
Entretanto, essa ação é presentada no fazer teatral por ator(es), o que gera uma
meta-reflexão: como a perspectiva da temporalidade na cena, da personagem,
baliza a presentação cênica do ator e seu percurso para se chegar a uma
presentação cênica justa e orgânica da relação temporal (presente-
personagem/futuro/passado)? Achamos que aqui existe um ponto de tensão
bastante importante para as teorias de preparação do ator: as questões sobre a
temporalidade. Se por um lado as relações entre presente passado e futuro
constituem um importante “organizador” das “etapas” do drama e das correntes
estéticas, cada uma dessas relações é potencializadora de um percurso específico
de composição cênica e do vir-a-ser do ator.
Canto com Lucía – A Lucía continuou a realizar trabalhos sobre
pulso. Marina apresentou uma interessante melhora na compreensão e na
percepção do pulso. Felipe e Welinton precisaram de uma atenção especial.
Novamente, voltamos a conversar sobre as proposições de pulsos no espetáculo
Favores da Lua – O Prólogo. Parece que alguns dos atores já começaram a refletir
sobre implicações dessa atenção especial ao pulso para a composição das cenas,
em especial o Thiago. No trabalho sobre emissão sonora (ALTURAS), Thiago foi
sinalizado sobre a grande tensão na região do pescoço enquanto fala/canta. Ele
declarou não haver se dado conta disso até o presente momento. Mais uma vez
penso nas questões do corpo atenso: uma estrutura físico-vocal como a do Thiago
precisa ser trabalhada não para significar, mas para deixar de produzir tensões
desnecessárias e até prejudiciais ao seu funcionamento, não só em cena, como no
cotidiano. Ou seja, aquele que o Thiago achava ser o corpo atenso dele,
seguramente não o é simplesmente pela tensão detectada. Ou seja, o trabalho que
o Thiago deverá fazer em si e para si está voltado para o reconhecimento dessa
tensão e para seu satisfatório relaxamento. O Substantivo Corpo do Thiago no
momento precisa passar por uma interferência acional (verbo) até se ter um novo
registro, agir com esse corpo em estado considerado atenso (Verbo), ainda que se
descubram posteriormente novas tensões desnecessárias, para que finalmente ele
seja confortavelmente esse corpo em estado atenso (Substantivo). Essas
considerações exigem duas explicações: 1 – Não só o corpo do Thiago passa por

127
essa situação, mas foi nele que o reconhecimento se deu neste encontro; 2 – A
relação que aqui se pensa é análoga à apresentada anteriormente quando se falava
sobre o trabalho do ator na composição cênica: Substantivo - Verbo Verbo -
Substantivo; o que se está fazendo aqui é compreender essa investigação a que nos
propomos (Substantivo - Verbo Verbo - Substantivo) por outras perspectivas e por
analogias.
Ouvir o Timbre – Passamos um bom tempo da nossa tarde
realizando exercícios de escuta dos timbres individuais; não diria que estávamos
trabalhando sobre timbres, mas simplesmente ouvindo-os, reconhecendo-os, vendo
suas qualidades e limitações. Tentamos conduzir esse momento de forma que os
atores/sujeitos pudessem se sentir o mais confortável possível. Temos conversado
cada vez mais intensamente sobre o ator servir a cena, ainda que com suas
limitações; queremos entender um ator que leve para a cena não só suas
qualidades, mas também seus limites corpo-vocais e que os torne esteticamente
importantes e justos à composição do todo. Nossa pesquisa sobre a materialidade
da cena como significação afetivo-cognitiva nos impulsiona a questionar a
materialidade do ator na mesma ordem. Talvez, por hora, possamos pensar os
atores como peças multifacetadas que se encaixam diversamente e significam por
suas combinações (e as combinações dessas com os elementos “Técnicos”). E
nesse sentido, precisamos saber com que gama de encaixes estamos trabalhando.
É importante frisar que para nós essas ditas materialidades são (re)organizáveis em
seus contornos. O trabalho com cada micro-cultura cênica ajustará os contornos das
materialidades e exigirá um outro registro de corpo atenso, orgânico à composição
do todo cênico. Aqui nos cabe uma pergunta: E a volta? Quanto dos trabalhos com
uma determinada micro-cultura é responsável pela “identidade” corpo-acional dos
sujeitos em trabalho?

16/07/2011 – Apresentação de “Favores da Lua – o prólogo” em Sorocaba (18,


19 e 20/07 – apresentações em São Paulo)

Discussão Teórica – Ainda sobre a crise do drama moderno,


conversamos sobre o diálogo como recurso de salvamento da estrutura dramática;
128
nesse sentido, debatemos sobre a constituição intersubjetiva do diálogo e a
necessidade de manutenção dessa mecânica; em contrapartida, analisamos, ainda
que brevemente a passagem do diálogo para a conversação. Conversamos,
também, sobre a aproximação do drama, enquanto naturalista, do romance, a partir
da concepção de Szondi de que “a categoria central do naturalismo é o meio: a
síntese de tudo que é alienado do homem, sob cuja dominação a subjetividade
dramática acaba por cair” (p. 118).
Exercício 1 (Sorocaba) – Alguns dos elementos centrais da
montagem foram usados como aquecimento para o grupo antes da apresentação de
sábado. A ideia central era tornar o aquecimento eficaz, prazeroso e direcionado aos
interesses do espetáculo. A relação que o exercício (derrubar o outro da cadeira
pelo campo de visão) estabelecia era entre apoio, torção e corpo em movimento.
Exercício 2 (São Paulo) – Jogamos um duro ou mole pelo espaço da
plateia do teatro. Além do aquecimento objetivo, estávamos investigando a relação
de atenção compartilhada e como ela direciona o trabalho do grupo em criação. Nos
foi surpreendente perceber que após o jogo, a música inicial do espetáculo, cantada
por todos, foi executada de maneira bastante produtiva, como não se via fazia algum
tempo. O exercício foi proposto depois de refletirmos teoricamente sobre a
necessidade de um espaço ativo de compartilhamento para a nossa estrutura de
criação.
Exercício 3 (São Paulo) – Propus ao Thiago que tentasse construir
uma relação palco plateia, no sentido do “palco italiano”, para que ele reconhecesse
diferenças entre as passagens mais épicas e mais dramáticas da permanência dele
no espetáculo. O ator em questão, ainda que compreenda teoricamente a diferença
entre o épico e o dramático, ambos pensados sob a estrutura dramática, tem
dificuldades em compor essas diferenças nas cenas. A passagem para uma outra
relação palco/plateia evidenciou, em princípio, a ausência de relação entre o ator, o
espaço e o público, já que a alteração não produziu diferenças na sua forma de
estar em cena, e aqui acreditamos no rompimento no espaço de compartilhamento.
Não que o exercício tenha aberto um caminho de trabalho, ao contrário, ele serviu
para evidenciar para o ator, e não menos para o grupo, aquilo que se apresenta para
mim com um problema a ser resolvido.

129
Apresentações – Depois de dias com um número grande de
apresentações, percebi que a precisão que o espetáculo tinha no começo está se
perdendo... As cenas começam a se mesclar demais. E ainda, que a estrutura
original pensada a partir do Gauguin, respeitando as transformações naturais do
espetáculo em temporada, talvez não caiba mais na concepção atual, ainda que
tenham sido disparadoras da criação inicial. Talvez para mim isso nem seja uma
dúvida, mas valeria a pena recuperar um diálogo mais intenso com Gauguin? Digo
que talvez não seja uma dúvida, porque acho que deve haver certa escuta para os
caminhos que a temporada leva o espetáculo, ainda mais quando se gosta desses
caminhos, mesmo quando eles nos distanciam do ponto de origem.

23/07/2011 – Apresentação em Sorocaba do espetáculo “Favores da Lua – O


Prólogo”

Discussão Teórica – Conversando sobre as tentativas de


salvamento apresentadas por Szondi para a crise do Drama Moderno, aproximamos
o espetáculo “Favores da Lua – O Prólogo” da estrutura das peças de um só ato.
Discutimos a diferença entre o trato com uma cena com conflito já instaurado e outra
que necessita ou serve à instauração de um conflito. “Favores da Lua – O Prólogo”
é, tanto quanto os dramas de um ato só de que aqui se trata, um espetáculo
constituído por partes de um drama que se erigem em sua totalidade. As situações
apresentadas no espetáculo citado são sempre limites, sempre a situação anterior à
catástrofe. A ideia que permeia essa comparação/aproximação é a utilização do
tempo, como o tempo que não pode ser preenchido por uma ação que leve a
situação a outra dimensão que não àquela contra a qual o homem si vê incapaz de
lutar. Mas deve-se atentar que nesse caso não se trata de destino, mas do homem e
de sua alienação. Se trata, portanto, do homem em sua impotência. E cada cena do
“Favores da Lua” se finda quando se reconhece a catástrofe.
Exercício 1 – Como se conseguir uma emissão sonora orgânica e
coerente com a encenação? Como levar o ator a ouvir seu próprio texto e jogar, em
curso, com o significado do que diz? Essas foram as questões que me levaram a
investir na compreensão dos textos do espetáculo por parte dos atores. Outra vez o
130
trabalho foi realizado, com maior ênfase, com o ator Thiago. Antes de tentar alterar o
modo de se dizer o texto fez-se necessário que houvesse a compreensão de dois
fatos: 1 – O Thiago havia construído uma métrica textual tão rígida que,
independente das alterações corpo/cênicas que propuséssemos nada alterava no
seu texto emitido em cena; 2 – Os atores, talvez pelo tempo em que estão em
trabalho com o espetáculo, já não se dão conta mais das razões de se dizer
determinados textos. O Exercício foi simples: compreender o porquê das pausas,
das diferenças na velocidade e das variações de alturas na fala cotidiana, para que
depois, em uma tentativa de aproximar o texto cênico de uma estrutura mais
orgânica, o significado desejado pudesse ser alcançado a partir da estrutura de
emissão (do cotidiano ao cênico, reorganizando o que se fizesse necessário devido
à transição).
Apresentação em Sorocaba – O Exercício anterior começou a gerar
frutos, em especial para o ator Thiago; alguma naturalidade podia ser percebida na
emissão sonora/cênica do ator. Outro dos avanços do espetáculo foi recuperar os
limites de cada uma das cenas do espetáculo, de acordo com o que foi apresentado
na discussão teórica do mesmo dia;
Apresentações em Tietê (24/07/2010) – Fizemos duas
apresentações neste dia em Tietê. Foram as duas melhores apresentações do
espetáculo até então. Parece que os trabalhos a partir da compreensão das peças
de um só ato e os exercícios sobre a composição sonora/textual do espetáculo estão
gerando frutos importantes. Outro aspecto que creio que possa ter ajudado à
sintonia apresentada pelo elenco foi deixá-los por 90 minutos trabalhando juntos e
sem a minha presença sobre o espetáculo; essa ação tão próxima do momento de
apresentação me soa como um caminho para que o envolvimento deles com o
espetáculo se estruture intensamente, já que eles estão por conta e estão
direcionando suas atenções quase que exclusivamente para a estrutura criativa.

24/09/2011 – Substantivo – Verbo Verbo – Substantivo – O Corpo-Interação

Discussão Teórica – Conservamos a respeito das diferenças entre a


perspectiva analítica e a perspectiva sintética de construção da lógica cênica.
131
Falamos sobre a transição do pensamento de um corpo-biológico em ação para um
corpo-social que ao se friccionar com o OUTRO (corpo, espaço, sonoridade) gera
um ENTRE, que seria o substantivo interessante à cena. Conversamos sobre
aproximações e distanciamentos entre o realismo e o naturalismo. Iniciamos um
estudo sobre o contexto histórico junto ao qual emergiram as pesquisas de
Stanisláski e de Meierhold.
O Outro da ação: caminhada – O grupo caminha e sua atenção deve
estar voltada para o preenchimento total do espaço; para a distribuição harmônica
dos corpos pelo espaço; de tempos em tempo, um objeto é abandonado pelo
orientador em direção ao chão. Os atores devem conseguir pegar o objeto antes que
ele toque o chão. A suposição que temos aqui é a de que se a ocupação do espaço
for efetivamente plena, o objeto terá poucas chances de chegar ao chão sem ser
tocado antes por um dos atores. Entretanto, dificilmente os atores conseguem
efetivamente manter o foco de atenção na caminha e rapidamente esta passa a ser
um segundo plano da ação, quando deveria ocupar o primeiro plano. A cena, como
a vejo, deve ser o lugar em que a realização plena de uma ação possibilita outra,
que efetivamente interessa para a “significação”. Entretanto, a composição da
primeira ação, neste caso a caminhada, não só possibilita ou impossibilita a
segunda, como também baliza, de alguma forma, os meios e qualidades de
ocorrência dessa.
Perspectiva analítica da ação de caminhar – Decompusemos o
caminhar em etapas e averiguamos todas as tensões empregadas no ato. Cada ator
investigou, pela exploração e amplificação, as tensões em diferentes partes do
corpo, com foco inicial para os pés. Pretendemos com esse trabalho compreender
as pressões e tensões efetivamente necessárias para o caminhar separadas
daquelas que o compõem por repetições cotidianas. Ainda estamos investigando a
noção de corpo atenso.
Perspectiva sintética da ação – Análogo ao que fizemos com as
partes do corpo em suas subdivisões realizamos com o corpo como unidade frente
ao confronto de si com objetos reais durante ações. Evitando-se as extremidades,
em especial as mãos, a tentativa foi de explorar o jogo entre impulso e coluna na
realização de uma ação; mais uma vez amplificamos as tensões e pressões

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exercidas pelo corpo no trato com a materialidade das ações. Ainda não
conseguimos chegar com os corpos dos atores à construção de um ENTRE, que
seja, em si, mas interessante que o próprio corpo em ação, ainda que dependa dele
para existir.
Canto com Lucía – O foco deste novo momento de trabalho vocal
(canto), devido ao número menor de participantes e com vistas aos futuros projetos
do Núcleo, está mais voltado para questões de afinação e musicalidade. Falamos
com o Welinton a respeito da diferença entre dificuldades reais quanto à afinação e
dificuldades geradas por medos e pré-concepções sobre seu rendimento vocal, que
nos parece ser mais próximo da realidade corpo/vocal dele.
Ensaio - Favores da Lua – O Prólogo – Com a reestruturação do
Núcleo de Pesquisa, motivo pelo qual ficamos sem produzir diários de bordos e
partilhas, decidimos remontar o espetáculo com apenas 6 atores, número
consideravelmente menor que o da montagem original que ficou mais de 1 ano em
cartaz. Os atores, que, com exceção da Ana Antunes, já faziam parte do elenco
anterior, estão ainda tentado transitar entre a sensação de substituição, que
efetivamente não é o caso, e a construção de novas propostas cênicas. A ideia de
substituição que permanece neste momento do trabalho faz com que a criação
esteja mais voltada a um tipo de caricatura ou até mesmo sátira da montagem
anterior.

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