Corpo - Cotidiano
Corpo - Cotidiano
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
INTERDISCIPLINAR EM ESTUDOS LATINO-
AMERICANOS (PPG IELA)
Foz do Iguaçu
2017
INSTITUTO LATINO-AMERICANO DE ARTE,
CULTURA E HISTÓRIA (ILAACH)
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
INTERDISCIPLINAR EM ESTUDOS LATINO-
AMERICANOS (PPG IELA)
Foz do Iguaçu
2017
MARINA FAZZIO SIMÃO
BANCA EXAMINADORA
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RESUMO
RESUMEN
La presente investigación se desarrolla por medio del diálogo entre las artes
escénicas, la antropología y la filosofía, con el objetivo de responder el siguiente
cuestionamientos: ¿el proceso artístico puede ser entendido como medio de
descolonización o descolonialidad del cuerpo cotidiano? El debate propuesto aborda
los estados del cuerpo cotidiano y del cuerpo escénico. Los aspectos relacionados al
cuerpo y sus convenciones son pensados desde las perspectivas de Greiner e
Katz (2005), y Foucalt (1987). Busco mostrar cómo podemos comprender el cuerpo
como un cuerpo colonizado, teniendo como base la producción de los autores
poscoloniales Mignolo (2005) y Quijano (2005) y sus respectivos conceptos de
descolonialidad y descolonización. Realizo una aproximación de dichos conceptos
con las teorías de las artes escénicas en referencia al cuerpo escénico. La discusión
propuesta ocurre entre las teorías poscoloniales y las del teatro de Barba (2012) y
de Casimiro (2011), en relación al cuerpo en estado de representación. De esta
manera, busco comprender cómo los procesos llevados a cabo por los directores
citados pueden (o no) auxiliar en la percepción de un cuerpo colonizado y descubrir
si sus procesos llevan (o no) a la descolonización o descolonialidad de los cuerpos
cotidianos. Partiendo de mi experiencia como docente en teatro, reflexiono sobre los
conceptos propuestos por estos autores poscoloniales en la práctica artístico-
pedagógica, con la finalidad de pensar sobre mi práctica como un abordaje
(des)colonial/colonizadora y sobre la posibilidad de un cuerpo más consciente de
sus automatismos.
INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 09
1. A COLONIALIDADE DO CORPO ................................................................................ 18
1.1. CULTURA, BIOPODER E CORPO ........................................................................... 20
1.2. CORPOMÍDIA ........................................................................................................... 26
1.3. CORPO COLONIZADO E TÉCNICA ........................................................................ 29
2. A DESCOLONIZAÇÃO DO CORPO ............................................................................. 37
2.1. A CONSTRUÇÃO DO CORPO CÊNICO E A DECOLONIZAÇÃO DO CORPO
COTIDIANO ...................................................................................................................... 37
2.2. CORPO CÊNICO E DESCOLONIZAÇÃO...................................................................45
3. A DESCOLONIALIDADEDO CORPO........................................................................... 57
3.1. UMA BUSCA PELO CORPO ATENSO ....................................................................... 65
4. O CORPO COLONIZADO NOS PROCESSOS ARTÍSTICO-PEDAGÓGICOS – A
COLONIALIDADE NA RELAÇÃO PROFESSOR-ALUNO............................................... 75
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................... 90
REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 92
ANEXOS ........................................................................................................................... 95
ANEXO A – DIÁRIO DE BORDO ...................................................................................... 96
INTRODUÇÃO
1
O diretor/pesquisador, Juliano Casimiro de Camargo Sampaio, cujo trabalho é analisado, também é
co-orientador desta dissertação.
2
O material a ser analisado segue em anexo ao trabalho.
9
provém de atores que participaram da montagem do espetáculo em questão. Ao
todo, quatro participaram da coleta de dados, sendo dois ainda participantes e
outros dois ex-participantes do Eu-Outro NPC.
Para fundamentar a pesquisa no que tange questões pedagógicas
referentes à aula de teatro, trago minha experiência enquanto docente. A partir de
reflexões geradas durante minha atuação como professora no ensino de teatro de
jovens e crianças, dialogo com as perspectivas pós-coloniais que apresento aqui.
No encontro entre as artes cênicas, antropologia e filosofia, busco
debater sobre as questões referentes ao corpo cênico, por meio das proposições de
Greiner e Katz (2005), Ingold (2000) e Foucalt (1987) sobre a disciplina e as amarras
sofridas pelo corpo na vida cotidiana. Considerarei os aspectos físico-biológicos do
corpo, mas enfatizarei o contexto sociocultural no qual o corpo está inserido,
tomando-se como referência os autores citados. Nesse sentido, a proposta desta
pesquisa é compreender de que modo o corpo pode passar por um processo
descolonial ou descolonizador durante um processo de criação artística.
Como a investigação abrange aspectos diretamente relacionados à
colonização, vejo a necessidade de informar que a noção de cultura da qual irei
trabalhar será a partir da concepção trabalhada por Wagner (2002). A discussão
avança apoiando-se em Mignolo (2005) e Quijano (2005). Os autores ajudarão a
refletir sobre a ideia de um corpo colonizado. Finalmente, através das perspectivas
propostas por Eugênio Barba (2012) e Juliano Casimiro (2011), busco compreender
de que modo os processos cênicos guiados por esses diretores podem trazer maior
percepção sobre a existência de um corpo colonizado durante o trabalho de ator.
Nesse sentido, analiso, a partir do prisma das artes cênicas, o corpo colonizado,
como proposto pelos cientistas sociais e filósofos citados acima. O objetivo dessa
análise é discorrer sobre o corpo cênico e refletir se estes processos podem ou não
levar à descolonização ou à descolonialidade dos corpos cotidianos.
Esta pesquisa emergiu da minha inquietude em investigar o corpo
inserido na prática teatral. Em especial, ao perceber a importância de se estudar e
treinar o corpo para a cena durante minha experiência artística, principalmente como
também participante do Eu-Outro Núcleo de Pesquisa Cênica. Sob a direção de
10
Juliano Casimiro, no grupo o corpo tem espaço fundamental nas práticas
promovidas pelo diretor e será um dos pontos tratados mais adiante.
Além dos meus estudos nas práticas da cena, me aproximei da
antropologia a partir de meu ingresso no curso de Antropologia, na Universidade
Federal da Integração Latino-americana, UNILA, onde me deparei com os debates
sobre pós-colonialismo. A aproximação com as teorias sobre o pós-colonialismo, tais
como as de Quijano (2005) e Mignolo (2005), fez com que eu percebesse o quanto
este diálogo ainda está tecendo espaço dentro das artes cênicas, principalmente no
que tange pesquisas sobre o corpo em estado de representação.
A partir deste diálogo surge a seguinte questão: O processo artístico
pode ser entendido como meio de descolonização ou descolonialidade do corpo
cotidiano? A resposta pode nos levar ao debate sobre quais caminhos e práticas
podem auxiliar num processo cênico que compreende a passagem do corpo
cotidiano ao corpo cênico como forma de descolonialização ou descolonialidade.
Essas práticas serão aqui consideradas no âmbito artístico e pedagógico do teatro.
Em resumo, reflito sobre a necessidade de compreender o corpo colonizado e
entender os desdobramentos num processo artístico/pedagógico para pensar o
corpo cotidiano a partir de minha prática como atriz e minha atuação no ensino de
teatro.
Nesse sentido, proponho explicitar a articulação teórica em que o
corpo apresenta papel fundamental na compreensão dos processos de construção
cênica, para, a partir deste ponto, desenvolver uma reflexão sobre o corpo
colonizado inserido nesses processos. Não proponho confrontar diferentes teorias
que tenham o corpo como eixo e não pretendo abordar sua biologia. A pesquisa vai
em direção ao que se refere ao corpo dentro dos processos de interação eu-outro,
mas não exclui, evidentemente, a ideia de que esses processos de interação se
pautam na existência de uma dimensão biológica do corpo. As escolhas que
norteiam este trabalho se dão a partir de autores que pensam o corpo ou a
colonização como eixo de suas pesquisas. Busco analisar o corpo cultural, político e
artístico, criando um diálogo entre teorias das artes cênicas com as teorias pós-
coloniais.
11
Ao debater sobre o corpo cotidiano, é importante esclarecer que o
corpo sobre o qual me interessa discutir abrange seus aspectos culturais. Segundo
Foucault (1987), esse corpo está disciplinado pelo biopoder ao qual responde. Dada
as dimensões e debates que surgirão, acredito que o corpo-em-contexto, como
trazido por Greiner e Katz (2005), tem de ser percebido antes de ir para a cena. Este
corpo cotidiano que antecede o corpo cênico transita de um estado ao outro de que
maneira?
Compartilho a ideia de Foucault (1987) de um corpo disciplinado,
isto é, submetido a um poder exercido sobre ele. Respeitando ou resistindo à
realidade normatizadora da qual faz parte, esse corpo é construído sob tal realidade
normatizadora. Tal construção se relaciona ao conceito de colonização definido por
Bosi (1992), que o designa como um processo de dominação e exploração forçosa
que muitas vezes conduziu a ideia de descobrimento e povoamento, camuflando a
violência desse processo, que coagiu povos e explorou territórios. Fundamento
minha reflexão baseada nas ideias sobre biopoder, conforme sugeridas por Foucault
(1987). Nessa esteira, me apoiarei em seus discursos para fortalecer o debate
proposto no que remete à cultura e à colonização do corpo.
Para discutir questões sobre o pós-colonialismo a fim de responder à
questão norteadora dessa pesquisa, apoio-me em dois conceitos bastante
explorados nos debates sobre pós-colonialismo. Primeiro, a proposta de
descolonização elaborada por Quijano (2005), enfocando de modo mais preciso em
seu tópico sobre a colonização do corpo. Ainda que por uma perspectiva social e
política, essa noção possibilita diálogo direto com Focault (1987) e Greiner e Katz
(2005) no que se refere ao corpo como instrumento e construção cultural. Essa
primeira parte da discussão sustentará a ideia de um corpo socialmente construído
para que através do debate com as artes cênicas possamos refletir sobre uma
possível descolonização ou descolonialidade do corpo.
Nesse sentido, busco, através dos apontamentos de Quijano (2005),
compreender melhor o corpo cotidiano, considerando os aspectos políticos e
culturais em que está inserido. Como apontado pelo autor, é necessário reconhecer
o contexto no qual o corpo é colonizado, para discutir o processo da passagem para
o corpo cênico. Greiner e Katz (2005) dão suporte para se pensar que o corpo, além
12
de biológico, é também simbólico e consideram suas dimensões culturais e seus
contextos socioculturais. Barba (2012) servirá de modelo para refletir sobre o corpo
cênico, através dos conceitos criados por ele, como pré-expressividade e corpo
extracotidiano.
Abordo também o conceito de desconialidade, como proposto por
Mignolo (2005), para debater sobre o processo artístico desenvolvido no Eu-Outro
NPC, que segue um trajeto diferente daquele traçado por Eugenio Barba (2012),
mas que também tem o corpo como eixo central de suas práticas teatrais. A
descolonialidade, como abordada por Mignolo (2005), remete à tomada de
consciência das raízes que ainda existem como frutos de colonização. Para construir
um discurso coerente no que tange às questões sobre o corpo, farei uso das
perspectivas da antropologia e do teatro, com o apoio de Ingold (2011) sobre
técnicas e habilidades do corpo em relação às questões abordadas.
A partir de Quijano (2000), podemos compreender que a construção
imagética do corpo que hoje conhecemos tem origem e caráter colonial, e provou
ser mais durável e estável que o colonialismo em cuja matriz foi estabelecida. Trata-
se de um elemento do colonialismo no padrão de poder hegemônico no mundo de
hoje. Com a colonização, a concepção de corpo cindido ocupou a perspectiva nativa
de um corpo integrado. O corpo deixou de ser compreendido a partir da integração
entre corpo e mente e após a colonização, eles passaram a ser percebidos de forma
dividida.
Nos próximos capítulos, o principal objetivo é tratar algumas das
questões teoricamente necessárias sobre as implicações da colonialidade sobre
como pensamos e construímos o nosso corpo. Por essa razão, proponho o diálogo
com Quijano (2000) no que se refere ao corpo e colonização, pois é a partir desta
colonização que começamos a compreender o corpo como hoje percebemos. A
descolonização como proposta pelo autor permite que se desvencilhe de um
colonizador, a priori, mas reconhece que ela não consegue ainda extrair todos os
seus vestígios.
Nesse segundo eixo temático, articulado com o primeiro, o que se
pretende é estabelecer um diálogo entre teatro e antropologia, pensar a relação de
um corpo construído e, se possível, desconstruído para o espaço cênico para que
13
seja facilitada sua desconstrução ou o reconhecimento do corpo cotidiano. Busco
refletir sobre certos imaginários de corpo que construímos em nossa sociedade e me
aproximar das influências que sofremos, seja ela advinda do contexto e/ou do
biopoder, para pensar o corpo que conhecemos através das definições até então
apresentadas e em uma possível desconstrução, para que possa ocupar uma
função cênica, mas que não seja o objetivo do corpo cênico. O corpo cotidiano não
tem sua desconstrução como ponto imprescindível, apresento apenas um caminho
para desvelar suas facetas deste corpo cotidiano.
O corpo integrado, indissociável do natural e social, pode ter seu
processo de colonização evidenciado no treinamento técnico de ator, entre práticas
cênicas que possuam o corpo como centro de suas propostas artísticas. Da mesma
forma, corpo cotidiano e corpo cênico são também indissociáveis. Por essa razão,
escolhi colocar em debate com os autores pós-coloniais das ciências sociais as
propostas do diretor e pesquisador Eugênio Barba (2012), cujo eixo de suas práticas
e investigações3 é o corpo. Assim, sua pesquisa pode nos auxiliar a perceber o
quanto as artes cênicas podem contribuir na percepção e reconhecimento do corpo
cotidiano como um corpo colonizado. Corpo cotidiano e corpo cênico são
indissociáveis um do outro, entretanto, no processo artístico cênico, a percepção
desse estado colonizado pode ser evidenciada.
A opção por Barba (2012) se dá pela aproximação com as teorias da
descolonização dentro das práticas descritas em seus registros. Por falta de acesso
a estudos que abordem o diálogo entre autores das artes cênicas e da pós-
colonialidade, proponho uma ponte entre Barba (2012) e Quijano (2005) para
desenvolver este trabalho. Durante a pesquisa, percebi a escassez de material no
que tange os debates entre teatro, corpo e pós-colonialidade. Considero que se trata
de um debate atual e relevante para as artes cênicas.
Barba (2012) apresenta uma pesquisa teórico-prática sobre o
trabalho do ator bastante intensa e difundida entre diversos grupos teatrais. O autor
que centra sua investigação no corpo, busca suas técnicas de diversos outros
3
Eugênio Barba é fundador do ISTA (International School of Theatre Antropology). Seu campo de
pesquisa e atuação é nos estudos dos princípios da utilização extracotidiana do corpo e para a
aplicação e compreensão de suas técnicas no trabalho criativo do ator e bailarino.
14
grupos artísticos. Com o OdinTheatre4 e o ISTA, Barba e os demais integrantes dos
grupos viajaram por países ocidentais e orientais, pesquisando a cena e as danças
locais. Seu trabalho possibilita o debate sobre descolonização, seja nos critérios
técnicos de ator e/ou no processo de construção da personagem5. Ou seja, o
processo pode se dar durante o treinamento técnico 6de atores e na elaboração da
personagem.
Ao pensar em um corpo extracotidiano, Barba aborda elementos que
poderiam pertencer ao cotidiano, mas que para ele são exigidos na cena em outro
estado, como o equilíbrio, as ações e a energia condicionada para o palco.
Trabalhar com e sobre o corpo cênico traz o olhar do ator e diretor para o corpo
cotidiano, em um processo de (co)regulação dos corpos. Explorar as possibilidades
do corpo cênico poderá trazer maior consciência e percepção para pensarmos sobre
o corpo colonizado, seja na cena ou no cotidiano, no palco ou na sala de aula.
Compreender o corpo que somos pode auxiliar as práticas artísticas e os processos
pedagógicos.
O autor ainda utiliza as técnicas de inculturação e aculturação,
aplicadas e desenvolvidas pelo corpo cotidiano para o corpo em estado de
representação. O autor refere-se à aculturação como técnica incorporada
artificialmente no trabalho dos atores e bailarinos, que durante o processo artístico
apropriam-se de um comportamento cênico, possibilitando desarticular
automatismos que condicionam seus corpos. Quando retoma o conceito de
inculturação, Barba alude a princípios que são aprendidos por atores e bailarinos,
mas que fogem a sua vontade incorporando-se de modo espontâneo, ou seja,
qualidades que os atores acabam por adquirir ao longo de seu trabalho. Tais
conceitos podem sustentar a ideia de um modelo descolonizador (QUIJANO, 2005)
do trabalho de ator.
4
OdinTheatre é um laboratório teatral fundado por Eugênio Barba no ano de 1964. Atualmente, o
grupo criou 75 espetáculos, dos quais viajou por aproximadamente 63 países, criando uma cultura de
troca das técnicas extracotidianas com os grupos locais. Hoje é considerado um dos grupos com
maior diversidade técnica do mundo.
5
Construção da personagem no âmbito das artes cênicas remete ao seu processo criativo e estético,
utilizando técnicas de criação extracotidiana.
6
Como treinamento técnico, entendo uma série de exercícios que buscam aprimorar a consciência e
controle corporal para que os atores possam usar as diversas qualidades de seu corpo de forma
intencional e organizada.
15
Sobre o corpo artístico, sustentarei a pesquisa a partir dos registros
das práticas teatrais exercidas pelo Eu-Outro Núcleo de Pesquisa Cênica, dirigido
por Juliano Casimiro (2011), do qual participei. A presente dissertação explicita o
embasamento teórico sobre o qual o diretor do Eu-Outro NPC conduziu o espetáculo
“Favores da Lua – O Prólogo” (2011) e busca, ainda, adicionar à articulação teórica,
noções e discussões acerca do corpo cênico, sugeridas por Casimiro. Tais
discussões aparecem nos registros do encenador, chamado Diário de Bordo (2011).
Como já explicado acima, trata-se de um espaço no qual o pesquisador relata e
reflete sobre sua prática enquanto propositor de um processo artístico.
O Eu-Outro NPC é um grupo que visa o corpo como eixo de suas
pesquisas cênicas, no qual Casimiro, como diretor e coordenador, traz propostas
conceituais sobre corpo. A escolha de aproximar tais reflexões das teorias que
remetem à descolonialidade, serve para estabelecer relações possíveis entre a
noção de corpo colonizado e de sua descolonialidade. Reconhecendo-o com base
nas influências sofridas pelo contexto em que está imerso, por meio da prática
teatral o corpo colonizado pode se conscientizar ou intuir tais influências para levá-
las à cena. Se é possível estar consciente das amarras sofridas para a cena, seria
possível estar consciente delas na vida cotidiana?
Para responder a esta questão e dialogar com outra perspectiva
pós-colonial, trago Mignolo (2005) e sua proposta em torno do conceito descolonial.
Para o autor, ainda que o Brasil não seja mais colônia, ainda carrega a colonialidade
em suas relações, porque nossa cultura também foi reinventada em contato com a
colonização, e criada por colonizadores e colonizados. A partir desta primeira
aproximação com o autor, interessa-me refletir sobre o corpo que carrega em si
aspectos coloniais adquiridos pelo seu contexto e repensar nosso corpo em estado
cotidiano a partir deste olhar, para que possa considerar ou não o processo artístico
proposto pelo Eu-Outro NPC como um procedimento que pode revelar os aspectos
coloniais embutidos em nós.
Com base nas noções como corpo atenso e corpo cor-primária
criados por Juliano Casimiro, estabelecerei um debate com os conceitos de Foucault
(1987) e Mignolo (2005), buscando articular as proposições de cênico, corpo
cotidiano, colonização e descolonialidade do corpo. Compreender o corpo
16
interligado à mente e vice-versa faz com que vejamos um corpo não mais
desprezível e irrelevante, ele agora é participativo e imprescindível.
Nossa vida é demarcada por diversos limites, que estão no espaço e
na vida, assim como na esfera social, política e econômica, entre os limites
habitáveis e inabitáveis, perceptíveis e imperceptíveis. Os limites aparecem como
fronteiras que delimitam e disciplinam o corpo, através da cultura, do Estado ou das
instituições. Os limites não são apenas o espaço de atuação ou do teatro, mas
também o espaço da vida em sociedade. Necessariamente a vida se desenrola em
redes mistas, onde proliferam forças e poderes. Há uma política de vida. Ela
determina fronteiras diferentes de vida (biopolítica) operados pelo Estado e suas
instituições ciência e educação, todos os sistemas ou dispositivos de normalização
(FOUCAULT, 1987).
Dessa forma, descobrir as possibilidades ou técnicas que podem
ajudar o corpo a extrapolar a colonização, faz com que conheçamos outro estado
talvez ainda desconhecido do corpo. Neste sentido, me propus a pensar os
processos pós-coloniais no ensino de teatro para jovens e crianças. Através de
minha experiência como docente, meus questionamentos como atriz e
pesquisadora, me instigam a debater como seria o papel do professor/diretor
conduzindo um corpo colonizado por um processo de descolonização ou de
descolonialidade. Para que serviria abrir caminhos aos alunos/atores que possam
revelar aspectos sobre as amarras de uma colonização?
17
1. A COLONIALIDADE DO CORPO
7
O termo aculturação, ainda que instigue uma série de debates, é abordado por Bosi (1992) como
um processo de sujeição social a depender do contato entre culturas distintas, onde a partir de
elementos externos uma cultura pode sofrer mudanças. O autor defende que aculturação é um
fenômeno de controle social de um povo sobre outro, como o processo de colonização.
18
em que se insere. Para prosseguir com a ideia de um corpo cotidiano como um
corpo também colonizado, cabe expor o entendimento de Ingold (2000) no que
concerne a discussão em torno das técnicas corporais e como corpo, técnica e
mundo se relacionam. Ou seja, a partir da noção de comrpomídia entender de que
modo nos relacionamos com o mundo e com participação mútua aprendemos
técnicas e nos relacionamos com o mundo.
Reitero que neste texto, trabalho sobre os processos pós-coloniais,
mas antes de dar prosseguimento à reflexão a respeito do corpo colonizado e de
seus processos de descolonização e/ou descolonialidade, é necessário delimitar o
que compreendo como colonização. Trarei a perspectiva de Bosi (1992) sobre ciclos
coloniais e o objetivo é mostrar como o processo colonial pode atuar sobre os
corpos, para que ao longo da pesquisa fique evidente como os corpos cotidianos
são também corpos colonizados. Segundo o autor,
[...] a colonização não pode ser tratada como uma simples corrente
migratória: ela e a resolução de carências e conflitos da matriz e uma
tentativa de retomar, sob novas condições, o domínio sobre a natureza e o
semelhante que tem acompanhado universalmente o chamado processo
civilizatório. (BOSI, 1992, p. 13).
19
As forças envolvidas estão além do ato de ocupar e explorar os
territórios e bens, “são também crentes que trouxeram nas arcas da memória e da
linguagem aqueles mortos que não devem morrer” (BOSI, 1992, p.15). A partir desta
ideia, se nota o quanto o processo de colonização está atrelado a um processo
cultural. O corpo está imerso em determinado contexto e, portanto, em determinada
cultura. Sendo assim, a corporeidade que está dentro do processo de colonização,
por sua vez, acaba por receber as influências do contexto instaurado, e passa a ser
colonizada pelo poder, reproduzindo “[...] sempre o mesmo, corpo e feições, e
obedece aqui a uma necessidade interna de percepção social” (BOSI, 1992, p. 54).
Uma certa ótica, que tende ao reducionismo, julga de modo estrito o vínculo
que as superestruturas mantêm com a esfera econômico-política. É preciso
lembrar, porém, que alguns traços formadores da cultura moderna (traços
mais evidentes a partir da Ilustração) conferem à ciência, às artes e à
filosofia um caráter de resistência, ou a possibilidade de resistência, às
pressões estruturais dominantes em cada contexto. (BOSI, 1992, p. 17).
20
ocorre por meio de uma cultura, da qual o sujeito não pode se desprender. No
entanto, quando há uma relação entre sujeitos de culturas distintas, para que
possam interagir, cada um deve atentar-se para a sua própria cultura e mediá-la
para que consiga compreender a cultura do outro. Isto é, é necessário encontrar
símbolos na sua própria cultura que tragam a equivalência do que procura entender
sobre a cultura do outro. Para que isso ocorra, Wagner aponta que a criatividade
precisa atuar como mecanismo para compreensão e comunicação, embora estes
conceitos sejam variáveis a cada cultura. A criatividade, portanto, auxilia no
processo de analogia, criando paralelos correspondentes entre os símbolos de uma
cultura para os símbolos da cultura do outro.
De acordo com Wagner, o termo “cultura também reduz as ações e
propósitos humanos ao nível de significância mais básico, a fim de examiná-lo em
termos universais para tentar compreendê-los” (2002, p.29). A criatividade e
mediação atuam como facilitadoras para a leitura de outras culturas. Entender uma
cultura específica, ou mesmo explicá-la, requer mediação, isto é, acessar a minha e
encontrar possíveis co-relações com a do outro. A mediação é um processo
individual ou coletivo de criatividade que permite o entendimento do outro, ou dos
outros, e viabiliza a alteridade. Entretanto, a mediação somente é possível através
dos símbolos reconhecidos dentro de seus contextos.
Quando trata sobre mediação cultural, Wagner (2002) entende por
símbolos o sentido conotativo e metafórico que cada cultura estabelece para a
realidade. Sobre a compreensão de cultura, o autor apresenta o discurso da
simbolização. Os símbolos se relacionam entre si, o que significa que o
entendimento de uma cultura se dá através de analogias feitas por alguém de outra
cultura, a mediação entre culturas ocorre por meio de alegorias possíveis em
determinados contextos. Para Wagner (2002), os símbolos podem ser interpretados
somente quando contextualizados. Caso fossem retirados de seu contexto, isto é,
do espaço onde é permitido que se crie infinitas combinações, a compreensão seria
aleatória e desconexa, perdendo a alteridade das relações e o sentido para quem
tenta compreender. A implicação desse fato para a cultura é que, para o autor, a
cultura é a todo tempo inventada, a combinação dos símbolos discorre de uma
mediação criativa e contextualizada.
21
Portanto, os símbolos quando descontextualizados não carregam
sentido, e é na sua relação com seus contextos que podemos interpretá-los. Nossa
necessidade de entendê-los se dá porque precisamos interagir com o outro, e para
isso temos que intuir que compreendemos e estamos em diálogo, caso contrário não
estabeleceríamos estado intencional de comunicação. Nesse aspecto, os símbolos
possuem também, segundo Wagner (2002), um papel fundamental na interpretação
das culturas. Assim, por símbolos correspondentes, o autor entende as metáforas
que encontramos em nossa cultura para compreender os símbolos e as metáforas
de outra cultura.
23
útil conforme se torna mais obediente e vice-versa. Entre as discussões
desenvolvidas nas artes cênicas, encontramos Artaud (s.d.) que, em paralelo à
proposta de Foucault sobre um corpo dócil e disciplinado, propõe o “corpo sem
órgãos”, corpo que não está amarrado pelos órgãos impostos pelo biopoder.
Foucault (1987) escreve sobre poder e biopoder a partir de um
contexto europeu específico, o que faz com que, como aprendemos de Wagner
(2002), o autor francês não possa estar livre dos símbolos presentes em sua cultura.
Entretanto, Foucault apresenta uma teoria que acredita ser válida para todas as
sociedades. Desse modo, seria possível se distanciar desta teoria que já tem
influenciado a tantos teóricos? E nós que ainda sentimos os resquícios de uma
colonização europeia? Ainda que a influência européia não nos faça europeus, e
evidencie muitas vezes certos abismos que nos separam, ainda sim nos
transformamos ao tentar nos aproximar de nossos colonizadores. E não apenas
devido ao tempo, mas também pela colonização e exploração assimétrica e
permanente em nosso território.
Desta forma, as teorias de Foucalt serão úteis à esta pesquisa,
embora eurocentradas como a minha própria concepção. Parece-me que não
podemos nos desvencilhar tão facilmente de um olhar que contribuiu para sustentar
muitos de nossos discursos. No entanto, espero conseguir latino-americanizar
algumas de suas propostas ao dialogar com conceitos propostos pelos autores
Mignolo (2005) e Quijano (2000) que, apesar de serem latino-americanos, trabalham
a partir dos Estados Unidos.
Então, segundo Foucault (1987), o poder é construído
historicamente como prática, não como objeto, e se instaura nas redes de relações e
nas microrrelações das pessoas, e não exclusivamente nas do Estado com os
indivíduos. De acordo com o autor, o poder atravessa toda a sociedade e é
onipresente nas relações do mundo. Sua rede atua para além do Estado,
comunidade, família ou tecnologia e está em toda parte, porque provém de todos os
lugares. Ele engloba tudo e todos, está presente nas relações estabelecidas em
diferentes lugares, mesmo quando há resistência.
Compreende-se que o Estado é a superestrutura em relação a uma
série de pequenas estruturas que o integram. Isso significa dizer que ele atua de
24
modo macro nas relações, verticalizando sua prática. A partir do debate foucaultiano
considero essas pequenas estruturas como uma série de redes de poder, que estão
interligadas dentro do corpo social, que, por sua vez, o autor compreende como a
rede de relacionamentos sociais, um coletivo que pode ou não pertencer a
instituições, mas que juntos representam uma sociedade. As práticas do poder, que
segundo o autor operam em qualquer sociedade, amarrando, impondo limites e
obrigações ao corpo, funcionam através de mecanismos e dispositivos normativos.
Um dos mecanismos do biopoder, de acordo com Foucalt, é a disciplina dos corpos.
Para ele:
25
que, através das características biológicas da espécie humana, cria estratégias de
poder para o controle das massas.
Os prejuízos da força do disciplinar sobre a formação do indivíduo e
da sociedade são difíceis de serem percebidos, o que me leva a refletir se o corpo
repleto de automatismos pode ter autonomia em meio há tantas amarras. Quantas
possibilidades ainda não descobrimos pelo nosso corpo? Será que conhecemos
nosso corpo se estamos a sofrer com amarras?
Mas como o corpo age e reage a essas relações de poder? Uma das
perspectivas teóricas que nos permite compreender esse fato é a proposição de
corpomídia de Greiner e Katz (2005), na qual podemos compreender como o
processo disciplinar é assimilado pelo indivíduo. Pensando historicamente as
questões de poder, biopoder e nossa incursão pelo corpomídia em uma sociedade
como a brasileira, em que o contexto da colonização é explícito, precisamos
compreender como somos afetados pelas amarras e imposições da colonização,
reconhecê-las e talvez desatar algumas delas, possibilitando uma identidade própria,
o contrário do que nos sujeita à colonização.
1.2. CORPOMÍDIA
27
As experiências anteriores de um corpo, portanto, fazem parte dele e
compõem uma bagagem de significação que transita em um fluxo contínuo dentro
da corporeidade. Desta forma, cada corpo possui um teor próprio e, por isso, recebe
de maneira específica as influências externas. Assim, percebe-se um corpo
(co)construtor com o ambiente das experiências e interações entre o sujeito e o
mundo, bem como de conhecimentos e de significações afetivo-cognitivas.
Nesse sentido, as relações de biopoder de que fala Foucault seriam
também (co)construídas pelos sujeitos. Ao passo que o biopoder disciplina os
corpos, ele enquanto prática é também resultado do sujeito. Entretanto, o poder
como prática e força atua de forma mais presente e eficaz sobre o sujeito do que o
sujeito sobre o poder. Um sujeito sozinho não representa a força do coletivo, por
isso a relação é díspar. Se os corpos resultam de suas interações com outros corpos
e com o meio, eles afetam as práticas de poder às quais estão submetidos. Ainda
que afetados pelo meio, também o (co)regulam. Por esse ângulo, os corpos
(co)regulam a colonização, logo, podem encontrar caminhos que enfatizem ou
minimizem tal influência.
Para Greiner e Katz (2005) a noção de contexto abrange tudo que
transita em um espaço-tempo, que afeta e é afetado por tudo que o perpassa,
diferente de Wagner (2002), que define o termo como um espaço sociocultural
delimitado. De acordo com as autoras, o corpomídia é o corpo que se movimenta,
digere a informação e comunica, está em constante (co)regulação com o espaço,
com o outro e consigo mesmo através de suas vivências interiorizadas. Sua
importância para as discussões desta dissertação está no fato de que possamos
compreender como o corpo é (co)regulado pelo seu contexto e como, em vista
disso, sofre com os desdobramentos da colonização.
Se pensarmos as noções de cultura de Wagner (2002), biopoder em
Foucault (1987) e de corpomídia em Greiner e Katz (2005), podemos sugerir que o
corpo é recondicionado e se recondiciona a todo momento, logo corrobora para que
o mesmo transcorra em seu contexto, (co)regulando a cultura e o biopoder.
8
Tradução minha.
9
Tradução minha.
30
estabelece com seu corpo. De acordo com ele, “[...] o primeiro e mais natural objeto
técnico, e ao mesmo tempo meio técnico do homem é seu corpo. [...] Antes das
técnicas com instrumentos, há o conjunto de técnicas corporais” (MAUSS, 1974, p.
407).
O corpo é então nosso instrumento, com o qual existiremos, e que
nos permite desenvolver diversas técnicas, sejam elas necessidades naturais ou
culturais. “A técnica é um ato tradicional eficaz (e vejam que, nisto, não difere do ato
mágico, religioso, simbólico). É preciso que seja tradicional e eficaz. Não há técnica
e tampouco transmissão se não há tradição” (MAUSS, 1974, p.217). Para o autor, a
técnica não está somente ligada ao uso eficaz do corpo, mas intimamente
relacionada à sua aplicabilidade contínua e à herança passada a outros corpos. Ela
não precisa ser necessariamente rígida, mas funciona em torno de certa estrutura,
que pode ser alargada de acordo com o tempo, espaço e indivíduo.
O objetivo, nesse momento, não é realizar uma abordagem sobre o
modo como a transmissão de técnicas procede e é processada em cada individuo,
entretanto queremos revisitar Mauss no que se refere à tradição antropológica do
estudo sobre o corpo. Conhecemos hoje culturas que realizam o que é considerado
"natural" de maneiras distintas. As técnicas seriam apreendidas em cada contexto,
como por exemplo (também analisado pelo autor) o ato de dormir, algumas culturas
dormem em redes, outras têm o hábito de deitar em esteiras ou no chão, todas elas
dormem, mas empregando técnicas distintas.
Por essa razão, podemos concluir que as técnicas provêm de de
culturas. Mauss afirma que “Tudo em nós todos é imposto” (1974, p. 408), inclusive
as nossas técnicas. Um paralelo mais próximo é que possuímos hoje é uma visão
ocidentalizada a respeito do corpo com a colonização da América Latina. Mauss não
considera o corpo em interação, revendo o papel do corpo na imposição das
técnicas. Nesse sentido, é uma forma distinta de compreensão, que se contrapõe à
idéia de um corpomídia (GREINER; KATZ, 2005). Para essas autoras, como sujeitos
em interação com o meio, os corpos também seriam (co)participantes na construção
das técnicas impostas.
Ingold (2000) demonstra que as habilidades humanas não são
herdadas somente pela biologia, nossas habilidades estão fortemente desenvolvidas
31
por nossas relações com o outro e com o ambiente. As habilidades apreendidas ao
longo de nossa vida não são incorporadas por inculturação, mas pelas práticas que
são aprendidas e compartilhadas durante a vida, sejam específicas de domínio ou
relativas ao contexto (habilidades que são adquiridas pelo corpo, como aprender a
tocar um instrumento musical, por exemplo). Assim como para Greiner e Katz
(2005), é por meio de interação, isto é, das relações corpo-corpo que construímos o
conhecimento. “A habilidade [...] não é uma propriedade do corpo humano individual
como entidade biofísica [...], mas de todo o campo de relações constituídas pela
presença de um organismo-persona [...] num ambiente ricamente estruturado”
(INGOLD, 2000, p. 353)10. Ou seja, quando pensamos em biopoder e nas
proposições de Foucault desde essa afirmação de Ingold, compreendemos que a
técnica é apreendida pelo coletivo e atua como medida disciplinar dos corpos,
embora não funcione necessariamente como docilização, pois este aspecto não está
explícito na obra de Ingold. Vale ressaltar que o autor utiliza o termo organismo ao
invés de utilizar a palavra corpo.
Pode-se observar que o autor coloca o organismo em relação ao
meio como uma constante interação. Um e outro são ajustados constantemente, de
modo dinâmico e mútuo. Logo, os processos de (co)regulação entre meio-sujeito e
sujeito-meio permitem a capacitação dos corpos, possibilitando que este processo
nunca seja findado.; trata-se de um percurso que está sempre em movimento e
nunca acabado.
10
Tradução minha.
11
Tradução minha.
32
Considerando como os caçadores noviços aprendem seu ofício, existem
duas coisas que devem ser ditas imediatamente. Em primeiro lugar, não
existe um código explícito de procedimentos que especifique os movimentos
exatos que devem ser executados em qualquer tipo de circunstância
determinada: de fato, as habilidades práticas deste tipo parecem ser
fundamentalmente resistentes à codificação em termos de qualquer sistema
formal de regras e representações [...] em segundo lugar, não é possível na
prática separar a esfera da relação do noviço com outras pessoas, da sua
relação com o meio ambiente não-humano. O caçador noviço aprende
acompanhando os caçadores mais experientes nos bosques. Enquanto se
move, ele é instruído sobre o que procurar e chamar a atenção para sinais
sutis que de outra forma não poderia notar: em outras palavras, é guiado no
desenvolvimento de uma consciência perceptiva sofisticada das
propriedades do ambiente que o rodeia e das possibilidades de ação que
elas oferecem. Por exemplo, aprende a registrar as qualidades da textura
de uma superfície que lhe permitem dizer, somente ao tocar a pegada de
um animal na neve, quanto tempo deixou e quão rápido se move. (INGOLD,
12
2000, p. 542)
12
Tradução minha.
13
Tradução minha.
33
descaracterizada, o meu foco em sua discussão é esclarecer a compreensão de
Ingold (2000) sobre o termo.
O autor considera tecnologia como conhecimentos de práticas na
relação com o mundo, pessoas e objetos e não como uma racionalização do corpo.
Portanto, concebe o corpo-em-contexto, como anteriormente citado, mas ele
enxerga um pouco além, o corpo não está separado das habilidades, como também
seus processos técnicos estão presentes em cada contexto. Outro aspecto
demonstrado por Ingold está relacionado ao entendimento da técnica e sua relação
intrínseca às experiências culturais: o sujeito possui a técnica na corporeidade. Tal
associação evidencia a tríade existente em sua teoria pessoa-técnica-mundo, onde
cada elemento participa no processo de (co)regulação afetando uns aos outros.
Técnica e experiências caminham lado a lado no processo de
(co)regulação dos corpos. As técnicas, para Ingold, são técnicas corporais,
conduzem as práticas sociais e atuam no processo de negociação com o mundo. As
técnicas estão relacionadas à interação com o outro, com o meio, com as coisas e
objetos, permitindo a sua reconfiguração. Logo, está atrelada à cultura muito mais
do que à biologia. A técnica é uma forma de manifestação na qual o sujeito alia seu
conhecimento ao corpo, expressando com e para seu contexto. Dessa forma, suas
habilidades permitem diálogos com o mundo. Para Ingold (2000), portanto, a técnica
é atributo das relações dos sujeitos com outros corpos e com seu meio. A técnica é
um meio de interação entre sujeito e mundo.
As relações entre os processos de colonização e a técnica, e a
constituição das pessoas e das culturas, podem ser observadas nas relações sociais
e podem implicar em automatismos que nos tiram a percepção sobre nós mesmos.
Ou seja, nossa percepção sobre nós é afetada pelos processos de colonização e
técnica sustentados pelas prática do poder. Desta forma, pode fortalecer a
importância em propor estímulos que traga nosso olhar e nossa autopercepção de
volta para nosso corpo.
A partir desta perspectiva, corpo colonizado é um corpo que foi
forçosamente disciplinado, que aprendeu técnicas através de sua sujeição aos
automatismos e às amarras cotidianas.
34
Tendo em vista que o corpo é construído pelo meio e ao mesmo
tempo o constrói, não poderia se movimentar de forma impune e intacto em relação
ao seu contexto, como apontado anteriormente. Por tal razão, o processo de
colonização impõe padrões sociais, que são por sua vez reguladores e regulados
pelos corpos.
Assim, o corpo cotidiano pode ser um corpo colonizado? Ao
aproximar as teorias sobre colonização e biopoder poderia tecer um paralelo entre
ambas, propondo o biopoder como formatador de corpos que, atua sobre eles,
assim como o processo de colonização impõe sua cultura. E como o corpo responde
aos processos culturais, ele também é resultado do poder.
Considerando que a colonização é um processo forçado por um
estrangeiro e que biopoder é uma prática que atua por mecanismos através de
redes que permeiam todos os espaços, aproximo os dois aspectos nas instâncias
que dizem respeito à imposição que atuam a disciplinar os corpos, deslocando o
corpo do contexto histórico colonial, acerca do biopoder no que se refere à forçada
disciplina formatadora de indivíduos, sendo estrangeira ou não.
Nos próximos capítulos serão apresentadas as discussões na
direção das possibilidades múltiplas de se pensar a colonização. Ali, encontro um
ponto de distinção entre os teóricos do teatro: Barba (2012) trabalha sobre um corpo
cotidiano disciplinado pelo biopoder, historicamente deslocado espacial e
temporalmente da colonização. No entanto, se nos aproximarmos da ideia de
colonização do corpo não apenas espaço-temporalmente construída, podemos
refletir sobre o aspecto de um corpo colonizado pelo seu meio, onde sofre
imposições e precisa se adequar a todo momento.
Por outro lado, o corpo que participa dos processos artísticos do Eu-
Outro NPC importou forçadamente a colonização, localizada em tempo e espaço
resultantes da colonização, sofreu a atuação das disciplinas de seu contexto, assim
como apreendeu de modo imposto a disciplina trazida nos corpos dos colonizadores.
Pelo que foi desenvolvido até o momento poderíamos pensar em um corpo
duplamente colonizado. Isto porque Barba vive e trabalha em um contexto europeu,
enquanto o Eu-Outro NPC desenvolve seus trabalhos em cidades do interior
paulista. Talvez, a diferença se dê nos processos de colonização, enquanto o corpo
35
que evidenciamos a partir de Barba (2012) é colonizado pelo poder pertencente ao
contexto, o do Eu-Outro NPC é colonizado pelo biopoder e pelo espaço-tempo de
uma invasão, carregando traços provenientes de uma colonialidade. Em conclusão,
o corpo, como (co)regulador de seu meio, foi afetado durante a colonização, mas
também afetou os processos colonizatórios e disciplinares.
36
2. UMA POSSÍVEL DESCOLONIZAÇÃO DO CORPO
14
A proposição foi discutida no primeiro capítulo desta pesquisa, trata-se de uma articulação teórica
entre BOSI (2012), WAGNER (2002), FOUCAULT (1987), INGOLD (2011) E GREINER & KATZ
(2005).
37
A partir do discurso de Quijano (2000) apresento o debate sobre
descolonização, ponto profundamente tratado em seus estudos e fundamental para
minha busca na ideia de um corpo descolonizado. Quijano (2000; 2005) defende que
a colonização da América organizou um novo padrão de poder global, uma
racionalidade eurocêntrica, que começava após ao início do capitalismo, em que a
divisão de trabalho, a ideia de raças e o controle econômico estão voltados aos
interesses europeus.
38
Reconhecendo os desdobramentos da colonização, Quijano (2005)
propõe o debate a respeito do processo de descolonização. O autor refere-se à
descolonização como uma postura que busca um olhar próprio diante do mundo, um
pensamento próprio e não herdado do poder colonial. Trata-se de um pensamento
divergente do pensamento dominante.
A colonização enquanto um processo econômico e cultural
verticalizado, segundo Quijano (2005), permitiu que as particularidades dos povos
latino-americanos fossem cada vez mais desvalorizadas convergindo-as a um
padrão único de conhecimento. O autor aponta que a ideia de raça implantada pelos
invasores serviu de mecanismo para justificar as escolhas feitas pelos
conquistadores, sobre as quais puderam impor sua cultura e seu modo econômico.
“Na América, a idéia de raça foi uma maneira de outorgar legitimidade às relações
de dominação impostas pela conquista” (QUIJANO, 2005, p.118). O corpo foi critério
para desvalorização do outro. Serviu e serve como mecanismo para segregar e
determinar espaços de pertencimento de cada indivíduo.
39
se de um elemento do colonialismo no padrão de poder hegemônico no mundo de
hoje.
No que segue, o principal objetivo é abrir algumas das questões
teoricamente necessárias sobre as implicações da colonialidade sobre como
pensamos e construímos o corpo. Para Quijano o termo colonialidade se refere aos
desdobramentos da colonização que permanecem nas sociedades invadidas. Se
hoje não somos colônia, possuímos em nossa história e cultura influências de uma
época anterior, onde tivemos que adaptar o modo como viver.
Se a colonialidade ainda é presente no sistema-mundo
(WALLERSTEIN , 1979), ela revela em sua cultura a supremacia européia sobre a
asiática, africana e latino-americana. O debate pós-colonial (QUIJANO, 2000; 2005)
aponta que a colonização pode ter findado em muitos países, mas que a
colonialidade permanece ativa na forma capitalista em que o mundo é organizado.
Isso porque o colonizador continuou sendo o conquistador e controlando os países
antes invadidos e colonizados. As implicações da manutenção da colonialidade para
as discussões a respeito do corpo e da identidade contribuem para que possamos
construir ainda que parcialmente um panorama sobre o processo que estabeleceu o
corpo cotidiano como também um corpo colonizado.
Além disso, quando pensamos a cultura, sua criação nos termos de
Wagner (2002), frente à presença ainda operante da colonialidade, podemos refletir
sobre sua herança. Ao mesmo tempo em que a cultura é criada ela é ensinada. O
corpo é pertencente a determinado contexto cultural, e a colonialidade são
resquícios deixados por uma colonização, rastros que abrangem também a face
cultural de uma sociedade. Logo, o corpo seria fruto desta colonialidade.
Evidentemente, a colonialidade pode ser relacionada às discussões
que apresentei sobre biopoder, quando pensamos no disciplinar dos corpos
(FOUCAULT, 1987) e na colonização como processo forçoso (BOSI, 1992), a
colonialidade apresenta resquícios de um biopoder importado pela prática colonial,
ela própria também é a prática do poder. Neste sentido e como anteriormente
proposto, há uma semelhança entre corpo cotidiano, disciplinado, como um corpo
colonizado.
40
Um dos resultados do processo de colonização na América, é que o
corpo passou a ser visto como o que era pensado pelos gregos, separado da mente,
especialmente pela influência do pensamento cristão, católico na América Latina e
protestante na América do Norte, imposto sobre as cosmologias indígenas que
compreendem o corpo de forma bastante diferente. Essa perspectiva, originária da
colonização ainda mantém seus resquícios na maneira como o corpo é percebido
por muitos. Do mesmo modo que a disciplina ensina aos nossos corpos técnica
provenientes do biopoder, a colonização apresenta novas técnicas e modelos de
comportamento cotidianos e inibia outras possibilidades. Trabalhar a descolonização
dos corpos é permitir que o outro tenha mais possibilidades para viver experiências
e mais acessos a si a fim de descobrir outras potencialidades.
15
Tradução minha.
42
[...] o processo de independência dos Estados na América Latina sem a
descolonização da sociedade não pôde ser, não foi, um processo em
direção ao desenvolvimento dos Estados-nação modernos, mas uma
rearticulação da colonialidade do poder sobre novas bases institucionais.
Desde então, durante quase 200 anos, estivemos ocupados na tentativa de
avançar no caminho da nacionalização de nossas sociedades e nossos
Estados. Mas ainda em nenhum país latino-americano é possível encontrar
uma sociedade plenamente nacionalizada nem tampouco um genuíno
Estado-nação. A homogenização nacional da população, segundo o modelo
eurocêntrico de nação, só teria podido ser alcançada através de um
processo radical e global de democratização da sociedade e do Estado.
Antes de mais nada, essa democratização teria implicado, e ainda deve
implicar, o processo da descolonização das relações sociais, políticas e
culturais entre as raças, ou mais propriamente entre grupos e elementos de
existência social europeus e não europeus. Não obstante, a estrutura de
poder foi e ainda segue estando organizada sobre e ao redor do eixo
colonial. A construção da nação e, sobretudo do Estado-nação foram
conceitualizadas e trabalhadas contra a maioria da população, neste caso
representada pelos índios, negros e mestiços. A colonialidade do poder
ainda exerce seu domínio, na maior parte da América Latina, contra a
democracia, a cidadania, a nação e o Estado-nação moderno. (QUIJANO,
2014b, p. 635-636).
44
suas pesquisas, os autores sistematizaram qualidades que o corpo em estado de
representação costuma possuir. Para Barba (1994) e Barba e Savarse (2012), o
corpo, quando está intencionalmente representando, adquire características
extracotidianas que são geradas para o palco. O processo para esse outro registro
inicia-se no treinamento que exige na prática propriedades não estimuladas no
cotidiano. Tais propriedades são descobertas em exercícios e muitas vezes são
levadas à cena, onde estariam em registros não cotidianos.
16
Nos estudos de Barba, são percebidos alguns princípios comuns em várias técnicas
extracotidianas, apresentados como sugestões recorrentes e comuns a vários grupos de atores e
bailarinos.
47
prática para o ator, este deve ser aceito como se fosse um complexo de
regras absolutas. [...] (BARBA, 1994, p.28, grifo do autor).
Para Barba (1994), o teatro possui certas convenções que para ele
seriam “bons conselhos” que os profissionais da área podem ou não acatar, servem
para facilitar os caminhos, mas não devem ser imutáveis. São indicações ao
trabalho do ator. Algumas estéticas não necessitam do corpo extracotidiano e/ou
podem encontrar outros caminhos para trabalhar o corpo cênico. A exemplo, o teatro
do invisível, onde ator busca não revelar que está atuando. Como também o teatro
naturalista que procura assemelhar-se o máximo possível do estado cotidiano.
Na prática teatral proposta por Barba existe uma série de técnicas e
exercícios que buscam alterar o estado físico e energético do corpo do ator visando
o estado do corpo extracotidiano. Existem treinamentos que evidenciam certas
posturas e/ou comportamentos do corpo em estado de não-representação.
[...] No nível cotidiano, temos uma técnica do corpo que está condicionada
por nossa cultura, por nossa condição social, por nosso ofício. Mas numa
situação de “representação” existe uma utilização do corpo, uma técnica do
corpo, que é totalmente diferente. Então é possível distinguir uma técnica
cotidiana de uma técnica extracotidiana. (BARBA, 2012, p. 16).
48
A maneira como utilizamos nosso corpo na vida cotidiana é
substancialmente diferente daquela como o utilizamos em situações de
“representação”. No nível cotidiano, temos uma técnica do corpo que está
condicionada por nossa cultura, por nossa condição social, por nosso ofício.
Mas numa situação de “representação”, existe uma utilização do corpo, que
é totalmente diferente. Então é possível distinguir uma técnica cotidiana de
uma técnica extracotidiana. (BARBA, 2012, p. 15-16).
17
Trata-se de um corpo-extracotidiano, com energia expandida, energia dilatada para preencher o
espaço cênico, e tocar o espectador.
50
A transição é uma cultura. Existem três aspectos que cada cultura deve
possuir: a produção material através de técnicas, a reprodução biológica
que permite transmitir a experiência de geração em geração e a produção
de significados. Para uma cultura é essencial produzir significados. Se não
os produz não é uma cultura. (BARBA, 1994, p. 18).
51
ponto pretendo aproximar-me da ideia de um corpo descolonizado, em que o corpo
cênico é construído e para isso é necessário desconstruir o corpo cotidiano.
Quando o ator está consciente de seu corpo e busca um novo
estado, reconhecendo seu estado cotidiano, pode, neste processo, realizar a
descolonização, quando realiza um percurso do corpo cotidiano ao cênico. Retomo
que essa possibilidade estudada aponta para um modo de trabalho muito específico
de teatro, que embora o diretor estudado analise diversos grupos, estou aqui
analisando a sua pesquisa e não as companhias por ele pesquisadas. Busco
compreender sua perspectiva sobre o estado extracotidiano do corpo como um
passo a descolonização do corpo.
No princípio, todo ator que tenha escolhido esse tipo de teatro, deve
adequar-se a ele e iniciar sua aprendizagem despersonalizando-se. Aceita
um modelo de pessoa cênica estabelecido por uma tradição. A
personalização desse modelo será o primeiro sinal de sua maturidade
artística. (BARBA, 1994, p. 27, grifo do autor).
Ao contrário do que parece à primeira vista, é o ator do Pólo Norte que tem
maior liberdade artística ao passo que o ator do Pólo Sul permanece
facilmente prisioneiro da arbitrariedade de uma excessiva falta de pontos de
apoio. A liberdade do ator é mantida no interior do gênero ao qual pertence,
e seu preço é uma especialização que torna difícil a saída do território
conhecido. (BARBA, 1994, p.28).
53
meio. Com esse percurso pode-se perceber alguns desdobramentos possíveis para
refletir sobre quanto e como a corporeidade atua ou sofre as influências de seu
contexto.
A exemplo do que venho discutindo, exponho uma descrição que
Eugênio Barba faz de seu grupo de atores e bailarinos.
54
As diferentes codificações da arte do ator e do dançarino são, antes de
tudo, métodos para romper com os automatismos da vida cotidiana, criando
equivalências para ela.
Naturalmente, a ruptura dos automatismos não é expressão. Mas sem a
ruptura dos automatismos não há expressão. (BARBA, 2012, p. 24, grifos
do autor).
55
que aborda a experiência vivida. Tal experiência precisa ser compreendida e
assimilada por aqueles que talvez nunca vivenciaram situação semelhante.
Entretanto, estudar um profissional europeu para embasar nossas discussões sobre
colonização/descolonização evidencia que o teatro possui em si transversalidade,
não está restrito a uma região. Mas nos mostra um terreno árido que precisamos
seguir com cautela para não nos sobrepormos ao outro, e sim estabelecer trocas.
Por fim, mas não menos importante, as relações entre
descolonização e descolonialidade nessas práticas teatrais analisadas se
configuram como um caminho possível para pensar as perspectivas pós-coloniais
sobre o corpo. Da forma como o teatro proposto por Barba se aproxima de tais
teorias, outras práticas também são possíveis. Por isso proponho discussões que
embora naveguem por lugares semelhantes podem nos levar a outras marés. Por
buscar outras perspectivas para compreender os processos coloniais me propus a
inserir outro objeto, desta vez, um do qual fiz parte e está localizado num contexto
latino-americano.
56
3. DESCOLONIALIDADE DO CORPO
18
Os “Diários de Bordo” são os relatos e proposições escritas de Juliano Casimiro durante o processo
artístico do espetáculo “Favores da Lua - O Prólogo”, do Eu-Outro Núcleo de Pesquisa Cênica.
19
O diretor do Eu-Outro Núcleo de Pesquisa Cênica defendeu sua tese de doutorado no ano de
2014, no qual as práticas e discussões do núcleo foram seu objeto de estudo. Portanto, farei uma
distinção entre o diretor Juliano Casimiro e o pesquisador.
57
Realizei entrevistas semi-estruturadas com quatro atores e ex-atores
do núcleo que participaram do espetáculo. A consulta foi feita em duas etapas. A
primeira foi realizada por meio de entrevista, em que solicitei aos atores relembrar o
processo do qual participaram, retomando algumas discussões teóricas que
tínhamos no núcleo sobre o caminho que cada um julgou percorrer para desvelar o
corpo atenso. Depois, enviei um recorte dos diários de bordo para que lessem, a fim
de reavivar as experiências passadas, e combinamos um intervalo de tempo para
autorreflexão a partir dos recortes. Os trechos selecionados do diário de bordo se
referiam a descrições de exercícios e seus resultados, realizados pelo diretor. Minha
intenção era retomar a prática e a teoria, permitir que os atores pudessem relembrar
das sensações e descobertas trazidas pelos exercícios e ensaios. Também
precisávamos reviver debates e conceitos que nos foram propostos sobre o corpo
cênico.
Na segunda etapa, formulei questões a partir de análise do diário de
bordo e das partilhas20 de cada um. As perguntas formuladas tinham por objetivo
compreender a perspectiva de cada ator a respeito das noções e conceitos
propostos e trabalhados no núcleo durante o ano de 2011.
Transcrevo, a seguir, as perguntas realizadas.
1. Tanto o corpo em estado de representação organizada, como
em estado cotidiano não possuem estrutura rígida e imutável, mas ambos serão
pensados aqui a partir de sua percepção atual, dialogadas com as práticas artísticas
no Eu-Outro NPC sobre a noção de um corpo “ideal” pretendido à cena. Como você
explicaria a construção do corpo cotidiano? Quais seriam as qualidades
apresentadas por esse estado do corpo?
2. Depois de trabalhar com métodos que colocam o corpo como
eixo de desenvolvimento, você pode dizer que a sua percepção sobre ações do
estado cotidiano do corpo mudaram? Em caso positivo, quais foram essas
mudanças?
3. Quais as descobertas e contribuições que o processo artístico
vivido pelo Eu-Outro NPC trouxe para o estado cotidiano? Quando olhamos para
20
As partilhas foram relatos que os atores enviavam ao final de cada ensaio. Parte delas foram
postadas no blog http://euoutronpc.blogspot.com.br/p/partilha_22.html onde encontram-se acessíveis.
As partilhas utilizadas para entrevista foram as que estão disponíveis na página do Eu-Outro NPC.
58
nosso corpo, alguns aspectos podem ser mais perceptíveis? O processo de
construção do corpo atenso auxiliou você na consciência do seu estado cotidiano?
Em caso positivo, de que forma?
4. Como ativar o estado extracotidiano do corpo? Antes de entrar
em cena é realizada uma transição consciente do estado cotidiano para o
extracotidiano do corpo?
5. Qual aspecto do estado cotidiano é similar ao do estado cênico?
Ou o corpo cênico seria o mesmo corpo cotidiano, mas com suas potencialidades
exploradas de forma distinta? As potencialidades de ambos e os mecanismos são os
mesmos ou há outros?
6. De que forma o corpo se adapta ao espaço e ao jogo?
7. Quais recursos são necessários ao corpo cênico? Quais
recursos o ator deve lançar mão para conhecer seu estado cênico e atingir certos
princípios como dilatação e energia?
8. Sabemos que somos uma construção e que nossa visão de
mundo se dá também pelas experiências passadas, mas você pode apontar um jogo
que tenha proporcionado uma experiência reveladora no processo de construção do
corpo cênico?
9. De que modo o treino, o ensaio ou os jogos podem afetar seu
corpo? Como eles auxiliam na percepção dos estados do corpo?
10. Qual a importância do local do ensaio para a construção do
corpo cênico?
11. Como você explicaria o corpo atenso trabalhado no Eu-Outro
NPC?
59
A escolha de autores descoloniais, segundo Mignolo (2005), atua
como resistência e fortalece o discurso descolonial. Minha opção por trazer autores
europeus para ajudar a construir a noção de um corpo colonizado e colonial, é
aproveitar um discurso já consolidado. Trato de investigar e debater com teorias
ainda recentes no teatro latino-americano. Mignolo (2005) e Quijano (2000;2005)
defendem que não podemos simplesmente ignorar toda teoria já construída, mesmo
que seja eurocentrada e surjam através de uma perspectiva particular, nos auxiliou a
inventar a nossa leitura de mundo.
No entanto,
Creio que ficará claro para leitores razoáveis que afirmar a co-existência do
conceito descolonial não será tomado como “deslegitimar as idéias críticas
européias ou as idéias pós-coloniais fundamentadas em Lacan, Foucault e
Derrida”. Tenho a impressão de que os intelectuais da pós-modernidade e
os com tendências marxistas tomam como ofensa quando o autor
mencionado acima, e outros semelhantes, não são venerados como os
religiosos o fazem com os textos sagrados. Eis exatamente por que estou
argumentando aqui a favor da opção descolonial como desobediência
epistêmica. (MIGNOLO, 2008, p. 289).
60
mesmo após processos de independência e descolonização. O autor usa o termo
para tentar explicar a modernidade como um processo diretamente ligado à
colonização, ou seja, vinculado à experiência colonial. Com a independência da
maioria das colônias européias, Quijano demonstra que as estruturas de
subordinação e exploração são agora reproduzidas pelo sistema-mundo capitalista.
Para o autor, o sistema atual seria também colonial-moderno. Sendo assim, o
processo histórico iniciado no século XVI está atrelado à noção de colonialidade,
integrando colonizadores e colonizados no sistema atual de modo a perpetuar os
papéis dos participantes em uma relação explorador-explorado.
A colonialidade permanece nas práticas onde o poder está presente.
Não se trata apenas de como a colonização que era uma relação entre colonizador e
colônia, se trata de resquícios que permanecem intrínsecos na sociedade que foi
colonizada. Hoje, a relação deveria ser entre descolonizado/mundo, mas embora um
país não seja mais colonizado, ele ainda sofre as consequências de uma colônia.
Seu povo e sua economia respondem ao capitalismo, que teve seu sistema
construído após as colônias. Numa sociedade que funciona com aspectos advindos
da colonialidade ela detém seus valores sustentados na relação de
explorador/explorado. Um exemplo para se pensar essa relação é o que propõe
Khatibi ao falar de exploração de territórios.
Eu não devo realizar uma ação, eu devo ser essa ação escrita em um
espaço definido. Como a ação acontece em mim, se eu estou em um
espaço, ela acontece no espaço. Se eu estou numa relação, ela acontece
na relação. Minha coluna é o espaço da minha existência. Minha coluna
escreve para que a coluna do outro leia. Estar em cena, me parece, é estar
com a coluna presentificada. Meu corpo ideal é minha coluna ideal.
(CASIMIRO, 16 de out. de 2010).
67
Ao vivenciar o corpo atenso o ator se permite ter uma postura
descolonial. Isto porque, quando o ator de algum modo retira tensões cotidianas
para permitir que a cena mostre as tensões necessárias, está construindo um corpo
que busca contrapor em sua prática o modelo construído pelo cotidiano.
68
enquanto pontos iniciais, são infinitos, mas cada um possui um repertório
potencial finito de criação. (SAMPAIO, 2014, p. 127).
[...] um corpo que esteja posto nas suas tensões necessárias; não falamos,
reitero aqui, de um corpo que se mantenha em um registro estritamente
cotidiano, quanto à percepção, por exemplo, mas de um corpo que deveria
ele mesmo estar lá, nas ações cotidianas. Por que na cena se deve ampliar
os sentidos? Me parece mais lógico que pensemos pelo inverso: este corpo
atenso de que falamos, e que pretendemos organizar com nossas
atividades, considera a um só instante as dimensões do corpo de si, em
seus aspectos físicos, mas também afetivo-cognitivos, e o outro como
(co)construtor dessa dinâmica de ação simbólica, que, nos parece, é
plausível para a cena e para a vida cotidiana. Quando digo outro, digo o
outro como espaço, como iluminação, como sonoridade, mas também como
outro-sujeito. Ou seja, o registro que buscamos para os corpos é
potencialmente cênico e cotidiano ao mesmo tempo, dependendo, é claro,
da inserção que fazemos dele em determinada cultura, se considerarmos a
cena em seu funcionamento, como uma cultura interdependente e análoga
àquela em que vivem os sujeitos em estado de não-atuação-cênica.
(CASIMIRO, 21 de mai. de 2011).
69
descolonial. No entanto, é preciso reiterar que o condutor do grupo não aponta em
seus relatos o corpo cotidiano como um corpo colonizado, muito provavelmente
porque esse não era um tema de interesse explícito na época das proposições das
atividades que me servem de ilustração. Por um lado, o corpo atenso é singular, e
nesse sentido, é original. Por outro, ele está para que se construa sobre ele, então
de alguma forma o corpo atenso abre espaço para que o corpo em estado
descolonial possa permitir a construção do corpo cênico ideal para o contexto.
70
para a montagem do espetáculo. Talvez a importância percebida pelos atores vá ao
encontro da proposta de Sampaio.
Corpo Ideal: Caminhem! Esse é o corpo que vocês julgam ideal para a
cena? Se sim, reparar qual é esse corpo. Se não, como chegar ao corpo
ideal? Realizar a passagem de um a outro – passo-a-passo! O que
realmente é necessário nesse corpo ideal? Parte do grupo declarou que
com o passar do tempo de exercícios a diferença se torna quase
imperceptível. O limiar entre o corpo atenso e o corpo cotidiano se tornar
mais tênue, por exemplo, para o Jeziel, segundo ele mesmo. Há diferença,
certamente, em relação à tonicidade e à percepção. Essa diferença foi
relatada nos exercícios abaixo;
Corpo atenso: Busca do corpo atenso em atividades cotidianas: Sentar,
lavar, deitar, caminhar. Descobrir a coluna desse corpo atenso; [...].
(CASIMIRO, 05 de fev. de 2011).
71
Para que os jogos sirvam de suporte, o ator precisa de algum modo
considerar-se elemento do jogo, precisa estar aberto às dinâmicas estabelecidas
para que possa ser (co)autor do jogo.
21
Os nomes dos atores foram mantidos porque parto nesta pesquisa de documentos públicos já
compartilhados com nomes originais dos autores, não infligindo assim qualquer conduta ética em
pesquisa.
72
coisas. Como se a prática teatral na busca por um corpo cênico abrisse
poros, ativasse canais de percepção que devido as demandas do dia a dia
22
ficam tapados. (INFORMAÇÃO VERBAL).
22
Informação verbal concedida por Thiago de Castro Leite, no dia 10 de novembro de 2016, em
entrevista.
73
cotidiana ou cenicamente. Todos os entrevistados confirmaram ter um momento
anterior à representação, no qual acreditam ativar o corpo cênico, cada um procurou
um caminho. Através de uma maior concentração, eles se propuseram a fazer uso
de seu corpo com outra forma de atenção. Uns relataram meditar; outros, realizar
exercícios energéticos como saltos, agachamentos e abdominais.
As entrevistas e análises do diário de bordo me ajudaram a
responder à questão norteadora deste trabalho, pois os entrevistados e as
entrevistadas passam a perceber o corpo cotidiano de outra maneira e a estarem
mais atentos em si, o que facilita o caminho para desvelar aspectos coloniais
presentes em cada um. A importância desse tipo de pesquisa realizada pelo núcleo
no âmbito das discussões propostas nesse texto são esclarecedoras para seguirmos
refletindo sobre a concepção de um corpo cotidiano e seus automatismos. O tema
da descolonialidade assim está implicado nas práticas do grupo na medida em que o
ator reconhece e percebe seu corpo cotidiano. Como o exemplo da reflexão sobre
sua respiração, no relato feito pela atriz Janaína, à medida que participava do
processo criativo se apropriava das informações. Ou em como Thiago passou a
sentir-se mais presente em seu estado cotidiano.
Essas experiências possibilitam o avanço das discussões sobre as
teorias e o debate pós-coloniais para as artes cênicas, e permitem que as pessoas
tomem consciência, controle de seus corpos e desenvolvam suas qualidades e
potencialidades. No próximo capítulo, levarei a discussão ao ambiente escolar,
visando contribuir para a formação do sujeito, ao possibilitar outras formas de
relação com o mundo.
74
4. O CORPO COLONIZADO NOS PROCESSOS ARTÍSTICO-PEDAGÓGICOS
– A colonialidade na relação professor-aluno
76
descolonizado e o corpo descolonial se dá no seguinte sentido: enquanto o corpo
descolonizado pode mudar de estado energético, construindo outro estado que não
o de seu corpo cotidiano e permitindo tal mudança, o corpo descolonial revela
aspectos de suas amarras coloniais, mas que não necessariamente pode se
desvincular delas.
O corpo descolonizado, se pensado a partir de Quijano (2005), é o
corpo que se ausenta do estado colonizado. Assim como a descolonização, para o
autor, é um processo que permite outra forma de operar o mundo, mas carrega
traços da colonização, o corpo descolonizado transforma seu estado, consciência e
mecanismos de sua operação para outro nível, mas não excluí as propriedades de
uma colonização provenientes do biopoder (Foucault, 1987). Ele é capaz de
exteriorizar e/ou interiorizar outro estado, mas isso não elimina a colonialidade
presente, apenas disfarça. Em certa medida, o corpo descolonizado pode ainda ser
um corpo colonizado, nosso olhar colonizado poderia criar uma ilusão sobre a
experiência como sendo descolonial.
Por outro lado, mas ainda em diálogo com as teorias pós-coloniais,
Mignolo (2005) aborda questões referentes à descolonialidade, que segundo o autor
se trata da percepção de uma colonialidade presente nas instituições e relações
sociais, econômicas e políticas, e pressupõe a tentativa de anular ou minimizar os
vestígios coloniais, buscando uma identidade própria. Sustentada pela perspectiva
de Mignolo (2005) entendo o corpo descolonial como capaz de reconhecer aspectos
coloniais que o constroem. Nesse sentido, o corpo descolonial é capaz de perceber
suas amarras e talvez diminuí-las ou afrouxá-las.
Duas das perguntas que me movem sobre as práticas artístico-
pedagógicas que desenvolvo são: Como recebo e facilito o trabalho para um aluno
que tem seu corpo colonizado? Como eu, professora e diretora teatral, reconheço as
potencialidades do meu aluno? Sendo o seu corpo colonial ou não, não cabe a mim
enquanto professora, conduzi-lo à descolonização e/ou à descolonialidade. Talvez
me caiba apenas dar ao próprio aluno oportunidades e possibilidades de sentir e
perceber como ele está de algum modo implicado pelas e nas relações de
colonialidade, deixando a ele a tarefa de decidir como lidar com o colonialismo que é
desvelado nele próprio. Nessa direção, pretendo evidenciar momentos nos quais, na
77
minha prática docente, pude perceber aspectos que acredito serem frutos da
colonização e/ou da colonialidade.
A colonização foi um processo de exploração, controle e extração
dos recursos naturais. Através da conquista houve um controle do conhecimento e
da subjetividade, onde a questão modernidade/colonialidade levou a um controle da
existência. E retomando Foucault, o controle dos corpos atua em várias instâncias,
nas relações entre sujeitos e instituições. Logo, a escola é um espaço disciplinar, e
um processo que busque evidenciar as amarras do corpo teria que descobrir
mecanismos para isso dentro de um espaço que propõe o oposto. Como
professores poderiam apontar caminhos que evidenciassem a colonialidade do
corpo para o aluno, se o olhar do professor e o espaço de compartilhamento em que
a relação professor-aluno se estabelece são colonizadores?
Quijano (2000) aponta que o europeu era considerado o auge do
desenvolvimento humano e por acreditarem estar acima dos demais, sentiram-se na
obrigação moral de catequizar o restante do mundo. Com tal processo as
particularidades dos povos latino-americanos foram cada vez mais desvalorizadas,
convergindo a um padrão único de conhecimento.
A escola pode ser catequizadora, primeiro porque traz um modelo
europeu de educação, as formações dos professores brasileiros vêm de uma
academia moldada pelos padrões franceses de universidades. Então, mesmo que o
professor possua em si traços de uma colonização, estaria agindo como resistência,
o que para os autores pós-coloniais já seria uma forma de descolonialidade.
Para prosseguir, esclareço alguns pontos fundamentais para
percorrer esse caminho reflexivo. Parto do princípio de que a condução em sala de
aula não estabelece uma relação unidirecional, em que um sujeito transfere
conhecimento ao outro. A condução é uma das atividades que propicia o
estabelecimento de espaços de compartilhamento, permitindo aos corpos
interagirem e disponibilizarem na relação com o outro, seus desejos e expectativas.
Assim, o professor deve escutar o aluno, pois a escuta conduz a
prática. Como explicitado no primeiro capítulo, o corpo é (co)construtor de seu meio,
logo, a relação entre professor/aluno é bidirecional. Mas para que haja interação,
78
não é apenas o outro que mobiliza seu corpo, o contexto23 também atua sobre o
corpo, assim como é afetado por ele. O contexto ao qual o aluno está inserido é
também uma construção.
Então, considero o/a aluno/a e a/o professor/a a partir de suas
dimensões biológicas, sociais e culturais. Quando estão em interação na aula, a
construção do conhecimento emerge do encontro e do atrito entre as dimensões do
aluno com a do condutor, carregadas de suas experiências anteriores e suas
expectativas. Nessa relação, professor e aluno se colocam disponíveis para a
interação, em que existe escuta de ambas as partes para que possam dialogar, eles
processam a informação com o conhecimento prévio e um retorno ao outro (SIMÃO;
SAMPAIO, 2014).
Dessa forma, carregam suas experiências anteriores e seus desejos
atuais. No entanto, se considero as informações prévias como um processamento
de uma perspectiva gerada também pela colonialidade, nessas condições o olhar do
professor deveria estar atento e cauteloso para não reproduzir ações e
comportamentos coloniais em relação ao corpo. Isto é, caso a proposta seja
conduzir a aula e o aluno por um prisma pós-colonial. Por essa razão,
79
reconhecer que professores também reproduzem a colonização, afinal o poder é
inerente às relações sociais. Por meio de práticas nas instituições de poder, como a
escola, o professor verticaliza sua relação com o aluno durante o exercício, impondo
o processo de desenvolvimento pessoal de cada indivíduo e, caso não reflita
conscientemente sobre tal prática, pode reafirmar a colonialidade das relações entre
ele e o aluno.
Se considero que o professor carrega em si vestígios coloniais, e se
ele não se dispõe a realizar um processo de descolonialidade, estaria reforçando a
prática colonial durante a aula. Para que a sala de aula seja um espaço de
compartilhamento que permita a descolonização e descolonialidade dos corpos e
para minimizar os efeitos da colonialidade nas relações pedagógicas, é preciso que
o professor esteja aberto ao desenvolvimento dos processos aos quais me refiro.
Como inicialmente visto neste trabalho, somos parte da colonização,
o meu corpo, por exemplo, é colonial, e sofre e atua a partir de uma colonialidade.
Compreendendo o corpo cotidiano como colonizado e disciplinado pelo poder, inicio
a análise de uma perspectiva pedagógica. Um aspecto que considero relevante é
oferecer a possibilidade de que o aluno possa compreender a colonização que o seu
corpo vive, e possa também evidenciar as amarras da colonialidade na qual está
atado o condutor das atividades. Ambos são como motores dos desvelamentos
no/do corpo colonial do outro, na mesma medida em que são (co)construtores de
contextos nos quais se torna possível lidar com esses aspectos coloniais da
existência.
Por outro lado, a prática na direção da descolonização também pode
carregar em si uma armadilha: estabelecer os padrões de individuação para o outro
ou mesmo a obrigatoriedade de rompimento com a dimensão colonizada do corpo.
Na esteira dessa preocupação, acrescento uma questão pertinente: Como trabalhar
sem que o corpo seja novamente colonizado? Essa foi a minha primeira inquietação
durante as reflexões deste capítulo. No entanto, o que inicialmente poderia parecer
contraditório foi sendo revelado coerente. Percebi que a proposta de trabalho
corporal durante as aulas de teatro permite que o corpo esteja disposto à
negociação, mesmo antes de dimensionar os possíveis resultados decorrentes.
80
Não considero tal processo como colonizador, pois é, justamente,
um processo de consciência e, portanto, de resistência diante da colonização. O
treinamento ou jogos para atores poderia ser entendido como outra prática de
disciplina. Mas quando coloco meu corpo no jogo, percebo parte das mudanças, me
abro a elas e vivencio meu corpo de um modo não cotidiano. O fator resistência
surge ao contrapor a disciplina e a colonização da cotidianeidade atua de modo
avesso ao modo hegemônico, ainda que um outro modelo possa emergir da prática.
Ou seja, permite que os alunos escutem o corpo e, ainda que tenha colonialidade
em sua pronuncia, nas aulas de teatro, seu corpo é estimulado a experienciar um
estado extracotidiano através dos exercícios, em que experimenta situações não
cotidianas e outras formas de comportamento.
Atuar de modo avesso ao modo cotidiano ou considerado em certos
contextos como sendo o modo hegemônico significa se opor ao cotidiano e agir em
forma de resistência, possibilitando outros modos. Uma das questões sobre as quais
refleti durante minhas aulas era: meus alunos estão realmente conscientes do que
estão fazendo? Agora percebo que não há medição suficiente e nem importa seu
resultado, o que interessa é que os alunos estão experienciando seus corpos de
outro modo. Cada um criará sua própria percepção a partir de suas experiências
anteriores e da ação atual. Talvez, com novos estímulos e experiências futuras, o
indivíduo possa ter diferentes percepções das experiências anteriores e revê-las
com novas vivências.
A informação pode também agir como uma ação colonizadora,
quando chegamos com um estereótipo frente ao aluno que está em meio a sua
criação. Podemos, se não formos cautelosos, induzir a produção artística sem que o
aluno descubra as possibilidades de estados extracotidianos. Como professora,
estaria apenas reforçando a continuidade da colonialidade de forma discreta no
aluno. É importante proporcionar práticas que não reforcem a colonização como
prática ou que ao menos reconheçam momentos onde o corpo colonizado se
destaca durante as aulas, oportunizando um novo olhar do aluno.
Reitero que este capítulo não busca ditar uma metodologia ou
ideologia para a pedagogia do teatro. Parece-me contraditório acreditar em uma
prática docente que, construída a partir do diálogo com os alunos, respeitando a
81
relação eu-outro como um processo de (co)regulações de conhecimento, apresente-
se inflexível.
Reconhecer tensões e estereótipos na sala de aula é um dos
primeiros fatores que nos saltam aos olhos durante as propostas artísticas. Os
estereótipos, por exemplo, como já observei, podem vir construídos ou serem
apreendidos em aula. Professores e alunos podem auxiliar nesse modelo de criação,
ainda este não seja o objetivo. Como então conduzir a um conhecimento de corpo
sem que seja forjado? É muito comum o professor utilizar exemplos, o que pode
gerar modelos a partir deles e atrapalhar a descoberta do aluno, oferecendo a ele
um padrão. A descoberta é bem diferente de um exemplo entregue.
A seguir, descrevo algumas práticas a partir de minha experiência
como docente e condutora. Durante as aulas, sentamos em roda e como recorrente
na educação infantil, as crianças sempre sentam-se de pernas cruzadas. Essa forma
de se comportar, a partir de uma colonialidade, está presente muitas vezes desde o
início de nossa aula. Enquanto professora, reforço a disciplina por inúmeros motivos,
pois um corpo disciplinado é mais fácil de ser conduzido, mas busco também ser
(co)construtora de uma relação bidirecional. Como docente, também percebo
algumas características e respostas recorrentes, mesmo em turmas distintas, com
relação aos mesmos exercícios.
Registro duas ilustrações de minhas vivências:
Macaquinho chinês: é um jogo em que um grupo de crianças se
posiciona em uma extremidade da sala e um mestre na extremidade oposta. Este
escolhe um animal para que todos imitem e possam caminhar imitando-o. O grupo
que imita o animal caminha até o mestre apenas quando este não estiver olhando.
Sempre que olhar, todos devem congelar o movimento e, caso observe alguém se
movimentando, pede ao aluno que se moveu que retorne ao ponto de partida e
reinicie o jogo. O objetivo é chegar o mais rápido ao mestre sem ser pego e imitar o
animal sugerido.
Conforme observei, na maioria das vezes, algum aluno tenta definir
como todos devem caminhar, quando acha que alguém não imitou o animal como
deveria. Rapidamente observo todos caminhando do mesmo modo, e muitas vezes
não precisam da intervenção de nenhum colega, pois o estereótipo de certo animal
82
já foi estabelecido entre eles. Penso que tal prática de grupo evidencia as relações
de colonialidade no momento em que as crianças de alguma forma buscam
distinguir quem atingiu ou não o modelo estipulado por eles. Uma das minhas
funções como professora, a partir da prática pós-colonial, poderia ser a de estimular
que cada aluno possa realizar o percurso do jogo imitando o animal como ele
acredita estar comunicando da melhor forma como ele percebe os movimentos de
tal animal.
Marinheiros da Europa: neste jogo o grupo de alunos é dividido
em duas equipes que podem escolher um objeto para imitar de forma coletiva. Os
integrantes devem fazer de conta que são o objeto. Enquanto uma equipe imita tal
objeto, a outra tenta adivinhar qual é. Quando conseguem adivinhar, correm na
direção dos adversários antes que cheguem ao pique (ponto de chegada pré-
estabelecido). Este é um jogo no qual as crianças buscam estabelecer um padrão de
movimento corporal, mesmo que não tenha sido solicitado, e quando procuram um
modelo, alguns tentam determinar o que está certo ou errado, como devem ou não
representar tal objeto. Eles repetidamente escolhem um líder e imitam sua ação na
demonstração do jogo. Por exemplo, quando precisam imitar um liquidificador e
sentem a necessidade de acordar entre si como irão reproduzir tal objeto.
Acima, cito dois exemplos similares de práticas que mostram um
possível reflexo da colonização, onde os alunos, muitas vezes antes de
experimentar outras possibilidades, se limitam a reproduzir e copiar as mesmas
projeções. O que não é necessariamente um problema, mas tais observações nos
servem para refletir. Ao executar os jogos, as crianças discutem entre si como
compor os animais e objetos. Imaginam sempre haver um modelo assertivo. Neste
caso, repetidas vezes é preciso que o condutor enfatize que cada aluno pode fazer
do seu modo, e talvez encontrar uma forma coletiva em que a diversidade esteja
presente e que cada um a sua maneira contribua interagindo com o outro, e assim o
trabalho coletivo tenha mais significados e mais possibilidades para quem os
assiste. Talvez múltiplas e diferentes formas de compor animais ou objetos
comuniquem mais e melhor. Aqui há um paralelo com o primeiro capítulo desta
dissertação. As crianças estariam construindo sua comunicação por meio da
mediação criativa proposta por Wagner (2002).
83
Por outro lado, há crianças que direcionam a maneira de representar
dos colegas, o que significa que existem as que não respondem da mesma maneira
que os demais, ou seja, crianças que usam a criatividade fora de certos padrões
hegemônicos ou dominantes. As que atuam de modo diferente dos colegas estão
distantes do estereótipo? Ainda que não tenha resposta a essa pergunta, considero
que é possível perceber que cada um tem seu caminho para criar, para atuar e por
isso o ponto de chegada não será o mesmo para todos. As experiências serão
distintas porque as experiências anteriores também o foram.
Prossigo com as reflexões. Existem desvios já esperados para os
padrões estabelecidos? Ou seja, será que também o jeito diferente de ser já não
está incluído nas amarras da colonialidade? Como lidar com a experiência
desviante? Não necessariamente porque um aluno está fazendo o exercício
diferente dos demais, ele está fazendo diferente de si, ele pode estar reproduzindo a
sua colonialidade. Ou seja, provavelmente ele não está experimentando algo novo,
do mesmo modo que seus colegas também não estão. Por outro lado, está dando
oportunidade que outro que perceba, desde outro ponto, que há outras formas de
movimentar-se como tal animal ou de ser tal objeto.
Ao mesmo tempo que percebemos a busca por padrões, quando um
ou outro aluno encontra um caminho diferente dos demais, sua experiência é
extremamente visível para o professor e para os demais alunos. O que se move
diferente permite que ocorra os colegas questionem o estado corporal, estimulando
a percepção sobre o corpo e revejam sua organização corporal como dos demais..
O que falte, talvez, seja repensar os jogos propostos na sala de aula para que o
aluno possa passar por outras experiências, para descolonizar-se. Talvez não baste
a oposição de um aluno em relação a vários, como condutora posso oferecer que a
aula de algum modo mostre que outros caminhos são possíveis. De modo algum
vou escolher pelo aluno, mas posso mostrar leques de caminhos possíveis.
Com base na reflexão proporcionada pelas entrevistas com os
atores e ex-atores do Eu-Outro, penso que os alunos não estão atentos ao estado
de seus corpos. Trabalhamos técnicas de respiração durante alguns jogos em sala
de aula e percebi como era difícil para eles aprender outra maneira de inalar e
expirar. Muitas vezes é importante desenvolver uma postura de prontidão, manter os
84
pés paralelos e os joelhos semiflexionados. Os alunos precisam parar e pensar para
executar. Ao final do ano letivo, com a experiência de sala de aula e dos jogos, os
alunos adquirem a postura pró-jogo. Nos exercícios, os alunos compõem outra
forma de caminhar, respirar ou sentar. Desse modo, estariam de algum maneira
descolonizando-se? Ainda que estejam buscando um padrão para a representação,
observei que nos jogos, eles já conduzem seus corpos de forma não cotidiana. Sua
ação seria, portanto, descoloniazada?
O simples ato de respirar, como relatado, pode mostrar ao aluno que
é possível refletir e tornar-se mais atento a uma ação comum sobre a qual ele/ela
nem sequer havia antes prestado atenção. Perceber a maneira como respiro e
descobrir que posso inalar e expirar de forma que aproveitem melhor o ar dos meus
pulmões, é uma forma de perceber a colonialidade do cotidiano presente em meu
corpo. A sala de aula pode promover uma experiência diferente para que o aluno
encontre outras possibilidades que não as já apresentadas a ele em outros espaços.
Durante minhas propostas de exercícios, percebo de forma
recorrente uma necessidade de explicar ou até mesmo jogar com os alunos para
que possam ver como “deveríamos” atingir o objetivo do jogo. Imagino que este
olhar de fora é um olhar colonizador e colonizado. A colonialidade que habita em
mim tenta direcionar o outro por um caminho muito específico. Desta forma, faço o
inverso da proposta, estaria ditando moldes sem permitir a reflexão do outro diante
da situação com a qual o aluno por si pode resolver. Portanto, de que modo a
pedagogia teatral pode ser descolonizadora? Compreendo que pode ser
descolonizadora quando o aluno encontra seu caminho, reconhece seu corpo e com
ele se (re)constrói a partir de sensações e novos conhecimentos. O professor facilita
seu caminho, dando suporte e conduzindo as etapas, não limitando e modelando
rigidamente as possibilidades para a execução. O importante é que o aluno atinja o
objetivo de algum modo, percorrendo o seu caminho é o aluno, criando sua
experiência e encontrando suas possibilidades.
Os exercícios propostos podem facilitar o processo desde que o
incentivem a encontrar mecanismos ou trajetos para a realização do exercício, e que
esses meios o desloquem de seu estado cotidiano. Para que o condutor não seja
colonizador, talvez possa mediar o processo e apontar caminhos possíveis, para que
85
o aluno escolha como quer prosseguir. O caminho apontado deve ser, antes de
tudo, o da experimentação. Quanto maior o número de experiências possibilitadas
que distanciem o corpo das experiências vividas pelo corpo no cotidiano, maior a
gama de possibilidades que o aluno poderá acessar. Por se tratar de um processo
artístico-pedagógico direcionado a jovens e crianças não busco conduzir os alunos
ao corpo atenso como proposto por Casimiro (2011), mas mostrar que outros
estados são possíveis e que através dessa descoberta eles podem reconhecer a
colonialidade presente em seus corpos.
Para acrescentar mais uma observação, recordo de outra atividade,
muito comum nas aulas de teatro, que desenvolvi com meus alunos: os exercícios
que exigem caminhadas em determinado espaço. As caminhadas podem ter como
objetivo ocupar o espaço, trocar olhares, objetos ou gestos uns com os outros
enquanto se caminha, ou novas maneiras de caminhar. Muitas vezes, durante este
exercício, sugeri que a caminhada poderia ser realizada com as mais diversas
partes do corpo. Por exemplo, ao caminhar apoiados nos joelhos ou no quadril é
comum que a postura permaneça na vertical. Porém, se a condutora a orienta que
caminhem com ombros ou com as costas, provavelmente experimentarão caminhar
com os corpos na horizontal. Depois de algum momento, começam a surgir torções
e outros apoios do corpo darão ao aluno formas distintas de se deslocar no espaço.
Eles não induzem mais as formas intencionalmente, passam a responder a uma
necessidade do corpo em se (re)organizar a partir de uma nova estrutura estimulada
por outro apoio que não o cotidiano.
Se for solicitado que usem as mãos ou os cotovelos, a maioria
costuma ficar nos quatro apoios, mas sempre me questionei porque não tentam
caminhar com quatro apoios com as costas viradas para o chão, por exemplo. É
muito raro encontrar uma criança que rompa com uma forma cotidiana de caminhar.
Na maioria das vezes, é preciso que o condutor peça diretamente para que
caminhem com as costas para baixo para perceberem que outras maneiras e
posições corporais são possíveis. Talvez a dificuldade desses alunos em encontrar
outras formas de realizar ações cotidianas seja devida a sua permanência no
registro cotidiano do corpo, se conseguissem extrapolar esse estado para o
extracotidiano poderiam descobrir novas qualidades corporais. Como observado ao
86
longo da dissertação, o corpo cotidiano utiliza o mínimo de esforço para realizar
suas ações, e essa poderia ser uma resposta sobre o motivo pelo qual os alunos
precisam ser conduzidos a outro estado energético (BARBA, 2012) para romper com
o estado cotidiano.
Dialogando com a idéia de técnica do corpo, e analisando exercícios
em que os alunos são colocados em propostas que buscam utilizar o corpo de um
modo não cotidiano, percebo que é recorrente a necessidade de orientar o aluno
para que use partes do corpo como costas, cotovelo, quadril, e não apenas as
extremidades, pés e mãos, como costumam fazer. Afinal eles não estariam
realizando ações cotidianas que exigem um menor esforço e não pressupõe uma
técnica apreendida social e culturalmente como sentar ou caminhar. A proposta é
que o aluno explore os movimentos nunca antes experimentados, pelo menos que
nunca tenha feito de forma “atenta ao corpo”.
Para exemplificar a situação acima apontada, descrevo mais dois
exercícios comuns em minhas aulas. No primeiro jogo, os alunos trabalham em
duplas e são solicitados a ocupar o espaço do outro. O primeiro aluno realiza um
movimento e congela a ação e, então, é a vez do segundo aluno ocupar os vãos
deixados pela ação congelada. Assim que o segundo finalizar o seu movimento,
também congela sua ação para que o primeiro novamente volte a tentar preencher o
espaço deixado livre pelo outro. Essa dinâmica de preencher-congelar-preencher vai
se desenrolando até que o condutor peça para terminar ou desenvolva outra
atividade. Neste jogo, é comum que os jogadores usem as extremidades do corpo,
por isso, como professora, preciso solicitar que utilizem outras partes do corpo.
Outra atividade bastante comum que desenvolvo em minhas aulas
de teatro é o jogo do espelho. Os alunos são divididos em duplas e cada uma
escolhe quem vai ser o jogador A (espelho) e o jogador B (espelhado). Os jogadores
se posicionam um de frente para o outro. Eles precisam agir como se estivessem
frente a um espelho: o jogador A propõe o movimento e B o imita da melhor maneira
possível, tentando manter a dimensão, o tempo e a precisão proposto por A. Um
comando comum neste jogo é para que o jogador A realize movimentos pouco
comuns a B e que tente tirar o outro de sua zona de conforto, propondo ações que
gerem dificuldades. Ou seja, que estimulem à maior uso de energia. O jogador pode
87
propor um movimento de desequilíbrio, maior alongamento ou torções, estimulando
o jogador B a agir de um modo com o qual não está acostumado.
A partir das explanações realizadas neste último capítulo reforço a
articulação dos jogos teatrais nos processos de descolonização e descolonialidade
do corpo retomando os autores pós-coloniais anteriormente mencionados. Quijano
(2005) propõe uma perspectiva universal da América Latina na busca de uma
identidade, nesse sentido qual seria o corpo descolonizado do aluno? Ainda que
acredite não ser possível buscar uma identidade anterior, já que as atuais e futuras
descobertas do aluno estarão embasadas também nas experiências passadas. Por
outro lado, Mignolo (2005) aponta a uma identidade pluriversal e, neste sentido,
posso projetar que cada aluno possui uma identidade própria, cada corpo será
diferente do outro em suas tensões ou estados.
Casimiro (2011) relata nos “Diários de Bordo” que cada ator revela
tensões em locais diferentes do corpo, o que aponta a uma multiplicidade de corpos.
A descolonização não busca pureza e sim um processo mais autônomo do corpo, a
partir de maior consciência de seu estado. No entanto, a diversidade não parece ser
um de seus aspectos centrais. Considerando a diversidade de corpos, me parece
mais interessante buscar a sua descolonialidade, que não só percebe os
automatismos do corpo, mas revê sua particularidade.
Na sala de aula há uma pluriversalidade de colonialidades, os
contextos e experiências que cada aluno carrega faz com que o caminho que ele
deva percorrer conhecendo seu corpo seja único, mas uma razão para que como
professora não devo induzir o aluno a um ponto e sim mostrar que existem caminhos
diversos a percorrer e que o lugar onde ele está não é o único.
Nos processos de montagem de espetáculo, é muito comum a
interferência do professor e /ou assistentes no processo de criação do aluno. Isso se
dá por diversos motivos. Algumas vezes, como docentes, temos prazos
determinados por calendários escolares, em outras, percebemos a insegurança das
crianças e queremos ajudá-las para que possam sentir-se seguras e confiantes em
sua apresentação.
Em muitas outras ocasiões, não temos paciência para respeitar os
avanços algumas vezes lentos de nossos alunos. Nessas situações exemplificamos
88
como deveria ser a personagem ou uma ação: um palhaço deve sentar assim ou um
senhor não pode mover-se tão rápido. Com essas indicações, estamos passando
por cima da construção da experiência pela própria criança e a colocamos como
observadora de um dado externo. Estamos impondo nossas experiências e
perspectivas. Desse modo, não estamos colonizando a prática artística de nosso
aluno?
Hoje, como docente, passei pela escola, graduação e outros
espaços de educação não-formal. Por isso, questiono meu olhar e reflito sobre
minha prática, tentando também descolonizá-la. Se sou fruto de uma colonialidade,
o quanto minha condução também não é colonizadora? Essa dissertação busca
contribuir para a descolonialidade de nossas próprias práticas.
89
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
90
estabelecia um diálogo próximo com conceitos como os de descolonização e
descolonialidade.
Se o rumo das práticas artísticas ou pedagógicas tangem as
discussões pós-coloniais em suas propostas, o caminho percorrido pelo corpo
permite uma constante busca e descoberta do outro e de si. Talvez essa seja a
maior contribuição dos processos (des)coloniais/(des)colonizatórios do corpo.
91
REFERÊNCIAS
KATZ, Helena. Por uma teoria do corpomídia. In: GREINER, Christine. O corpo:
pistas para estudos indisciplinares. 1 ed. São Paulo: Annablume, 2005. P. 125-
134.
WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo, Cosac Naify, 2002. 256 p.
94
ANEXOS
95
ANEXO A- DIÁRIO DE BORDO
97
- Pré-expressividade – a cor primária, a base de um corpo “atenso”.
Um conjunto de cores primárias possibilitam qualquer coloração das cenas. Cabe ao
diretor orientar a mistura das cores. Como o espaço, o figurino e a iluminação
podem ser também primárias numa cena?
- Camila faz um esforço para se atingir a pré-expressividade, o que a
distancia cada vez mais da mesma;
- A força motriz da caminhada do Thiago é para cima e a do Daniel é
para trás. Que jogo cênico interessante eles conseguem? Será que esse já é um
indício do porquê do Thiago chegar a estados de tensão facilmente e o Daniel
chegar a estados de relaxamento com a mesma facilidade?
- Enfoque da caminhada do Elton está nas pernas. Há sempre muita
tensão.
- Por que após exercícios como flexão e abdominal o corpo chega a
um estado de relaxamento interessante na caminhada? Há algo na concentração de
energia que possa, pelo seu inverso, auxiliar no relaxamento do corpo “atenso”?
- Aninha rapidamente localiza a tensão no rosto, em especial na
boca. Por quê?
- O Dado resulta a tensão na voz, que para ele parece se confundir
com uma “voz dilatada”. Como conduzir o corpo dele para um corpo que só aceite
uma voz limpa?
• Coluna animal / Coluna animal em zona de tensão: Iniciar a
escritura de uma coluna animal, modificar as zonas de tensão! Reconhecer no corpo
as zonas de tensão. Desenvolver tensão/relaxamento.
Após o trabalho com a coluna do animal um processo de auto-
reflexão se deu com o grupo. Desgaste físico-emocional me parece ser a condição
que se construiu.
• Ensaio: “Favores da Lua: O Prólogo”
Não conseguimos realizar o ensaio devido a condições de espaço e
de pessoal.
O Corpo “Atenso” e o corpo comum têm um limiar de separação
muito tênue, mas é importante não os aceitar como o mesmo. O corpo “atenso”
98
deverá sempre estar em cena, já que se constrói sobre ele. O corpo cotidiano
deverá estar em cena só quando a cena comportar.
Tivemos uma grande e proveitosa conversa sobre a ética da relação
com o Núcleo e sobre o respeito moral com o tempo de cada um que ali está.
Falamos sobre o nosso futuro projeto e sobre as perspectivas em relação ao Núcleo.
Falamos também sobre um comportamento reconhecido como padrão da Geração
Y, que abarca quase todos os integrantes do Núcleo.
Personagem (Substantivo) – Ações que dão forma à personagem
(Verbo); As ações da personagem no meu corpo “atenso” (verbo) – Eu, ator, como o
presente das ações, como a existência palpável de um campo acional
(Substantivo).As cenas, por essa perspectiva, seriam a subjetivação das ações
objetivadas em determinadas corpos e contextos.
Sobre o espetáculo Favores da Lua:
Os corpos de Cena precisam ser a tridimensionalidade, as torções, a
harmonia da dualidade. As cenas são, desse modo, tridimensionalidades, torções e
harmonias da dualidade em relação. A relação é a ação não substantivada da cena;
ela se dá por meio de corpos que substantivaram ações, que já foram ações
externas ao meu corpo, como um campo de reconhecimento acional de uma
personagem, que já foi, simplesmente, uma personagem em seu sentido nominal.
Pintar com o corpo cor primária tem pressão, para escrever na cena
tem pressão. Mas o Corpo é atenso. Um objeto simples em cena também deve ser
objeto cor primária, também atenso. Meu corpo cor primaria, outros corpos cores
primárias e objetos cores primárias devem se misturar com maiores intensidades
aqui e ali para que se diversifiquem ao longo do espetáculo; suas cores serão
captadas em diferentes vibrações - “tensidades”, pelos meus sentidos, e os
primários deverão se misturar a tal ponto que só reste a opção do preto: todas as
cores, todas as “tensidades”! Black Out!
Acordamento: Bernard!
Exercícios
99
• Coluna que Mastiga: Levar um pedaço de pão! Mastigar o pão
em diferentes velocidades! Engolir! Realizar o mesmo com a Coluna! Outro como
pão!
Parar uma ação não significa travar uma ação;
Não se deve mandar toda a energia para o lugar em que acontece
prioritariamente a ação
Por que o corpo do outro na mastigação amplia a quantidade e
talvez qualidade de movimentos?
Exercício do chute – ansiedade da Monique;
• Pressionar Vs Tencionar: tencionar o corpo o máximo
possível! Relaxar! Tencionar! Relaxar! Tencionar! Relaxar! Pressionar o corpo do
outro! Relaxar! Tencionar o próprio corpo! Relaxar! Tencionar o corpo do Outro...
O corpo relaxado ainda tem energia que circula até a ponta dos
dedos (Lucía, Larissa)
Aninha, como é ter um corpo relaxado?
Jeziel, qual a diferença no corpo entre um corpo atenso e um corpo
cotidiano?
• Corpo ideal/Pressionar o Espaço: Caminhem! Esse é o corpo
que vocês julgam ideal para a cena? Se sim, reparar qual é esse corpo. Se não,
como chegar ao corpo ideal? Realizar a passagem de um a outro – passo-a-passo!
O que realmente é necessário nesse corpo ideal? Escrever na coluna e com a
coluna a mudança de um corpo a outro. Dilatar a mudança. Minimizar a mudança. O
Corpo ideal (Corpo atenso) pressiona o espaço em todos os sentidos.
Como a pressão exerce influência sobre as ações do corpo ideal?
Como a pressão de um corpo ideal, de uma iluminação, de um
objeto cênico interfere no corpo ideal (“atenso”) do outro?
• Coluna animal / Coluna animal em zona de tensão: Iniciar a
escritura de uma coluna animal, modificar as zonas de tensão! Reconhecer no corpo
as zonas de tensão. Desenvolver tensão/relaxamento.Não fizemos!
• Ensaio: “Favores da Lua: O Prólogo”
O Objeto manipula minha coluna ideal. A luz é um objeto cênico.
Xícara também manipula a coluna. Meu corpo procura a luz. Essa é a pressão que
100
ela exerce sobre mim. Se meu corpo manipula o objeto ele não é necessário em
cena. Thiago precisa se aproximar da linguagem que os exercícios estabelecem
para levar para cena. Camilinha ainda necessita exercitar a precisão. Andreza
precisa dar mais material para que os meninos joguem em cena. Felipe precisa
brincar com estados energéticos em cena. Daniel precisa construir melhor as
passagens. Bolo deve investir nas torções, o corpo dela responde bem às torções.
Por que será?
• Acordamento
Jogo: olhar de pedra: Não pode chegar ao final do caminho. Escolhe
uma pessoa para quem você não pode olhar. Olhou para a pessoa você pára.
Descobriu quem é a pessoa você a pára, se não for, você pára.
Por que quando se tem um objetivo de ganhar a velocidade dos
passos aumenta?
Que tipo de atenção se constrói em um jogo como esse?
Cena do artista plástico.
Substantivo: Artista Plástico;
Verbo: ?
Verbo em meu corpo atenso: ?
Substantivo: eu sou o verbo: ?
Variações de tensão e pressão
Jeziel a ação se configura pela expressão da face e muito menos na
coluna;
Marina já tem uma coluna que responde no dia a dia? O Verbo
cotidiano dela já é cênico. (Daniel Idem);
Monique e Felipe se arrumam muito durante os exercícios;
Andreza é sempre pró-forma (será que vem da dança?)
Boa parte das ações acabam no efeito vinólia.
Dado trabalha o corpo em blocos e com grande ênfase nas pontas.
Há qualquer coisa aí, nesse exercício, que ausenta a agressividade.
101
Monique apresenta estados de flacidez. Será que o que falta nela é
um trabalho melhor com o centro de gravidade?
Qual é o foco de quem está sendo manipulado?
Elton tem uma tendência às extremidades.
Simão a voz de cama ou uma película entre ele e as coisas, cenas,
objetos, pessoas... falta atrito no contato, falta pressionar e ser pressionado.
Bernard ultrapassa o ponto de chegada da ação. Parece que ele não
tem muito claro, exatamente o que é esse ponto de chegada.
Quero ver a aninha longe do instinto maternal nos exercícios.
Substantivar um verbo talvez possa ser o ato e o efeito de... em
cena!
Ausentar intencionalmente algo talvez seja aumentar sua presença;
• Coluna animal / Coluna animal em zona de tensão: Iniciar a
escritura de uma coluna animal, modificar as zonas de tensão! Reconhecer no corpo
as zonas de tensão. Desenvolver tensão/relaxamento.
Ninguém se sentiu confortável para ficar com os apoios. As colunas
ainda não estavam suficientemente desenvolvidas para isso.
Marina coloca grande tensão nesse exercício;
Como impedir que o cansaço leve a uma diminuição na percepção?
• Ensaio Favores da Lua: O Prólogo
103
pelo fato de que eles tenham vivenciado aquele estágio anterior, não relatado por
outra dupla.
• Ensaio Favores da Lua: O Prólogo
Turmas divididas em dois grupos, uma ensaiava a cena do
vidraceiro, a outra do artista manipulando a obra. O Simão não conseguiu realizar a
cena. Deve estar cansado. Prestar atenção no rendimento dele. Caso ele venha a
apresentar novas cenas de cansaço como essa, pensar em como conduzi-lo a se
utilizar em trabalho do cansaço. Acabei por trabalhar a cena do Pão. Duas
indicações da cena como o Bernard havia mexido me levaram a conduzir o trabalho:
A primeira delas é que o pão aparecia mais e a segunda era que traços da ideia
original reapareciam como o foco no comer e não no brigar. Assim, reorganizei a
cena a partir de 3 princípios, que acho que acabei por não esclarecer como devia a
eles: O Pão é o objeto que os manipula. A partir da manipulação feita pelo pão, os
corpos se pressionam em cena, a pressão entre os corpos é em si vertiginosa, antes
de mais nada, para a presença da personagem da Aninha, que precisou, portanto,
ser ressignificada. Olhando como diretor, a cena intensificou seu poder de presença
de forma inacreditável.
Reflexão: Talvez aqui eu já seja capaz de realizar uma primeira
reflexão importante:
- Um corpo cor primária dialoga com a ideia/material original, se fricciona com ele e
nos propõe uma primeira coloração em cena. Os elementos da cena se friccionam
em um movimento vertiginoso que coloca cada um dos elementos, inclusive os
corpos disponíveis à vertigem. A vertigem possibilita que os objetos de cena,
quaisquer que sejam, movimentem os corpos, esses corpos passam a ser a ação
mobilizada em última instância pelas ações, ou seja, substantivação. Por ser cíclico,
esse último reorganiza a fricção com os originais... Se o que acontece em cena
acontece na plateia, e isso dito assim, sem contexto e sem maiores explicações
pode soar estranho, esse pode ser o caminho para o teatro que eu acredito/gosto
plenamente de fazer. O Favores me parece uma demonstração quase inconsciente
da teoria que aqui vem se construindo. Estou absolutamente feliz com essa reflexão,
com esse corpo emergido da prática e da pesquisa teórica. Agora resta investigar
ainda mais os elementos aqui apresentados.
104
20/11/2010 Substantivo- verbo verbo – substantivo: encontro teste
105
• Teoria: A passagem de uma poética do trágico como
doutrina normativa para uma filosofia especulativa, tendo no iluminismo o divisor de
águas.
• O Daniel, a partir dessa base, iniciou uma conversa sobre a
necessidade de adaptabilidade do entre-jogo substantivo-verbo verbo substantivo, o
qual pesquisamos. Eu prefiro dizer que a adaptabilidade é o fator que permite a
existência dessa estrutura especulativa a que nos dispomos enquanto pesquisa
cênica.Só há a possibilidade dessa investigação ser validada porque não
trabalhamos do ponto de partida de um processo normativo e tampouco desejamos
estruturar um.Ao propor a investigação coletiva de um corpo atenso, pensamos na
ideia de se construir individualmente, e segundo características específicas a cada
corporeidade, um caminho de se entender praticamente a existência cênica dessa
“atensão corpórea”
• Isolamento muscular com tensão e relaxamento: (Dedos dos
pés, nádegas, ombros, joelhos e olhos) Investigamos as possibilidades iniciais de
cada corpo de isolamento das estruturas musculares por meio de quadros de tensão
e de relaxamento.
Quase que coletivamente, percebeu-se a impossibilidade de
realização plena do exercício. Será que realmente há uma impossibilidade colocada
aí? De que depende esse isolamento?
• Saudação à Maria: A partir de uma imagem de Gauguin,
compreender qual é a dança que se realiza na Saudação que o quadro propõe.
Dividir a atenção em 3 faixas: pés, quadril e seios/peito.
Na grande maioria dos casos a facilidade está no isolamento dos
pés; possivelmente por ser uma extremidade.
Larissa atenta para o fato de João, por conta de uma quantidade
menor de movimentos, conseguir evidenciar os seios. No relato dela, ele chega a
parecer ter seios.
Estar em Saudação seria nesse caso o segundo Substantivo do que
se pretende. Quem se aproxima mais, desse estar em saudação é : Bernard, Lucía,
João e Daniel.
106
O que falta para realizar a passagem do estar saudando para o estar
em saudação?
Obra de Guaguin: Substantivo;
Compreender o movimento que está na obra, saudação: verbo;
Entender aquele movimento no meu corpo: Verbo;
Estar em saudação: Substantivo.
Quando digo estar em saudação quero dizer, eu não posso
reconhecer a ação e se a reconheço, ela precisa estar em segundo plano, eu
preciso ler o substantivo, eu preciso perceber a saudação muito antes do saudar.
107
• Ferroviária com retenção e amplificação das ações, em
frequência e dimensão; sentar na ferroviária, ou reter a ação ao mínimo ou ampliá-la
ao máximo em frequência e dimensão; não conseguimos realizar.
• Saudação à Maria; Por que ao pedir para dar um zoom na
saudação a velocidade da saudação também aumenta? Tamanho de movimento
(amplitude) e velocidade, para esse grupo está diretamente relacionado; quase
todas as saudações são destinadas ao chão. Jeziel tanto no encontro passado como
nesse propõe um desvinculo com a forma como se encontram as mãos nas imagens
originais: proposta ou equívoco/desatenção?
• Coro de Marinheiros; Não conseguimos realizar.
• Primeira brincadeira com o espetáculo de dança: Bailarina
que monta a lanterna – Diário de Bordo; quando se pensa que a luz movimenta meu
corpo, algumas iniciativas, dos três grupos, foram no sentido de construir
movimentações robóticas, quando deveria ser exatamente o contrário. Qual a
corporeidade de quem manipula a lanterna? O grande problema ainda está na
quantidade de movimentos e na precisão deles. Tanto quando na saudação de
Maria, aqui eu preciso ver a bailarina e não os movimentos de compor a bailarina! A
luz que pressiona, da forma como foi elaborada por eles, restringiu a movimentação,
quando deveria ser exatamente o contrário. A pressão da luz é capaz de amplificar o
rol de possibilidades. A pressão coloca em movimento e não restringe o movimento.
109
12/02/2011 – Substantivo – Verbo Verbo – Substantivo: corpo atenso, pressão,
dualidade e tridimensionalidade
110
Experimentos: Favores da Lua – O Diário de Bordo; não
trabalhamos diretamente, mas indiretamente no 1º exercício;
Experimentos: O Touro Branco; não fizemos, mas estamos
trabalhando o espetáculo durante o trabalho com a Lucía;
113
Gravar onze cenas do espetáculo nos fez fortalecer a ideia de se
gravar um curta sobre essa pesquisa de linguagem no segundo semestre. Do
encontro anterior, com o trabalho com a xícara, parte do roteiro a ser desenvolvido já
foi vislumbrado. Enquanto adaptávamos as cenas para o vídeo, pudemos perceber o
quanto o espetáculo é minuciosamente sensível. Efetivamente, não realizamos
grandes avanços objetivos em relação ao espetáculo, porém, criamos um novo
envolvimento e reflexão sobre as cenas que o compõem, pensando a função de
cada uma deles em relação à dramaturgia do espetáculo como um todo.
114
ser o motor e tampouco o sustentáculo da criação cênica. Lembrando sempre que
estamos falando do nosso jeito de pensar e de fazer “cena”.
Caberá ao encenador compreender as dificuldades que deverá
lançar ao ator em cena, e não somente em exercícios, para que esse, ao transpor as
dificuldades, signifique a ação e as micro-ações no sentido que se pretende para o
espetáculo. Uma dificuldade ao ser superada exige que se construa outra. Desse
modo, cabe ao encenador construir dificuldades e ao ator superá-las. A seletividade
está em reconhecer quais caminhos poderão levar à significação que se espera para
determinada cena. Esse jogo será vivo, desde que encenadores e atores saibam o
porquê do jogo e se permitam prospectivamente construir caminhos lúdicos.
Ou seja, a dificuldade deve ser posta em cena. Cada conquista
requer verticalização e é por ela que se tem a complexificação do espetáculo
enquanto obra. Mas essa pesquisa em direção à dificuldade, no sentido com que
trabalhamos, não exige, em hipótese alguma, auto-penetração (do ator). E a
imaginação no trabalho do ator, portanto, está a favor da seletividade, a imaginação
a favor do extravasamento de limites, o que coloca o encenador em um constante
movimento de ressignificação da cena enquanto proposição.
Nesse sentido a exterioridade é responsável por qualquer
movimento interno. Esse movimento interno pode ser acolhido pelo ator em seu
trabalho e de alguma forma alterará o jogo externo com o objeto. Mas há que se
lembrar que o jogo é exterior e passa ao largo de qualquer tentativa de
interiorização. Ou seja, para nós haverá sempre uma materialidade disparadora.
Assim, o trabalho com os objetos estará no ato de reconhecê-los e
de (re)significá-los, nunca em criá-los. Na dinâmica com que pensamos a relação
ator-objeto, ao ser movimentado pelo objeto o ator o está significando e o
reconhecendo naquele contexto específico.
Essa discussão, é claro, não se encerra nas palavras aqui escritas,
mas aos poucos, postaremos nesse Diário de Bordo outras palavras que se
aglutinarão a essas e as modificarão e, quiçá, um dia poderemos falar que temos
algo efetivo para dizer!
115
Discussão teórica: A personagem (Drama Burguês); Talvez essa
tenha sido a melhor discussão teórica que fizemos até agora; colocamos em
questão o fato de cada cena, no sentido histórico, organiza uma espécie de micro
cultura que dialoga diretamente com a macro cultura, ou a cultura dos Sujeitos.
Nesse sentido a cultura dos atores, das personagens, impulsiona por um lado e
limita por outro as possibilidades de trato do ator com essa unidade: a personagem.
Nesse sentido, o trabalho com as ações e mais especificamente com a coluna está
implicado no tipo de cultura (cênica) com a qual lidamos. Se não realizamos uma
pesquisa cênica que considere a cultura da personagem, mas sim a cultura do ator
e, portanto, das suas ações simbólicas, ainda assim não podemos esquecer que a
personagem existe, pelo menos, em dois espaços: o do texto escrito e na
construção de significados realizada pelo espectador.
Canto com Lucía; desenvolvemos algumas atividades em relação a
pulso; parte do grupo ainda apresenta dificuldades em se manter em um pulso mais
constante; alguns, como a Marina, declaram, inclusive, não perceber a diferença
entre estar no pulso e não estar nele. Que tipo de trabalho podemos realizar para
que essas dificuldade seja sanada? Ou como levar essa dificuldade para a cena de
forma que ela se torne produtiva?
Microação nos contatos; Preenchimento da ação; Grupo dos
policiais; grupo dos ladrões, uns prendem, outros matam. Como se prende? Como
se mata? O contato deverá estabelecer o funcionamento do jogo. Por que para os
atores do núcleo estabelecer o jogo é tão mais difícil do que resolver um jogo? As
iniciativas nessa proposta, de um modo geral tendem a dois caminhos: fixar regras
ou declarar o contato; instaurar o jogo e construir se tornaram quase impossível para
esse grupo em uma primeira realização da proposta. Dado evidencia o desejo de
vitória, João vai rapidamente para o contato, sem que ele se faça necessário; Daniel
e Felipe por vezes se ausentam completamente da atividade; grande parte dos jogos
que se iniciam são infantis; por quê?
Impulso na ação; Linhas de força da caminhada; mais uma vez
trabalhamos as linhas de ação como meios para se atingir o estado da vertigem; os
corpos estão respondendo cada vez mais rápido em jogos como esse; é
impressionante reparar as diferentes entre os corpos pré e pós vertigem; ainda
116
assim, para alguns, esses jogos são aniquiladores; os deixam em estados de quase
improdutividade por longos períodos; quais as diferenças entre esses e os outros
corpos? Ainda assim, instaura-se uma energia cênica no corpo cotidiano; se é que
podemos chamar esse registro de corpo cotidiano. Continuaremos as investigações
nesse caminho. Cada vez mais ele me parece um propício eixo de investigação.
Quem sabe o espetáculo de dança não possa nos levar a uma verticalização cênica
desses jogos e atividades...
Ensaio cena a cena do Favores da Lua – O Prólogo; um passadão
muito ruim; era como se o espetáculo não estivesse ali, mas sim um bando de
confusões. Tivemos público, uma pessoa, mas muito interessada, ao fim a
declaração veio no sentido de que se para mim havia sido muito ruim, para ela tinha
sido muito bom. Para minha surpresa a cena que mais agradou foi a do Felipe.
Ingenuamente, já que era uma pessoa conhecida, eu esperava que essa fosse uma
cena que gerasse algum desconforto.
120
espetáculo “Favores da Lua – O Diário de Bordo” a partir do corpo cênico (atenso)
em jogo construído para o espetáculo: “Favores da Lua – O Prólogo”.
Quanto às apresentações na Uniso, deixo aqui uma pergunta:
apresentar no período da manhã nos fez perceber uma suavidade dos corpos, sem
que para isso necessitemos de pouca energia; teria isso alguma relação com o
estado de relaxamento natural dos corpos bem cedo, o que favorece o trabalho que
vimos fazendo na busca desse corpo atenso?
123
11/06/2011 – Apresentação em Itu - Da pressão dos pés à ação da coluna –
Substantivo – Verbo Verbo – Substantivo
124
centrífuga. Revisitei o espetáculo para compreender em que momentos essas forças
apareciam e cheguei à conclusão de que a dinâmica iluminação (já que são os
atores que a fazem em volta da área de presentação) e atores (presentação) se
constitui entre forças centrípetas (iluminação) e centrífugas (atuação), dada a
composição do espaço cênico. Conscientemente os atores investigaram entre centro
e periferia do espaço de representação como seus corpos se organizavam para
cumprir com suas funções de atores e de iluminadores. Há nesse exercício uma
reflexão bastante importante para o espetáculo “Favores da Lua – o prólogo”, que é
a respeito do jogar coletivamente ainda que as cenas sejam bastante individuais.
Um ator, em força centrífuga (da cena para o público), isoladamente compõe sua
cena; entretanto, um conjunto de outros sujeitos iluminam em força centrípeta (da
periferia do palco para o ator em cena) e coletivamente o ator em cena. Em
conversa posterior com o elenco, parece que essa compreensão foi bastante intensa
e produtiva para a realização do espetáculo.
Apresentações do espetáculo “Favores da Lua – o prólogo” – desta
vez fomos obrigamos a efetivar nossa pesquisa de linguagem entre a cena e o
espaço, os atores e o espaço. Se em princípio o espaço em que aconteceriam as
apresentações era muito bom, percebemos com a primeira apresentação que a luz
utilizada era excessiva para as cores e dimensões do espaço, que o chão de
madeira fazia um grande barulho e que os cubos deslizavam quando os atores
desciam deles. Entre a primeira e a segunda apresentação, precisamos,
efetivamente, ouvir esse espaço e entrar em diálogo com ele; agora tínhamos
menos lanternas, outro caminhar em torno da cena, outras pressões ao descer do
cubo e outros tempos de cena, para dar conta das mudanças nas dimensões do
espaço de atuação. Essa experiência me fez voltar para um questionamento feito
por uma das atrizes do Núcleo, Janaína, em sua partilha semanal, sobre a
verdadeira razão dos ensaios para uma pesquisa que se dispõe a experimentar
diferentes espaços. Os ensaios estão para que se disponibilize ao jogo e não para
que se fixem regras e percursos. Os ensaios são para as descobertas de possíveis
micro jogos que compõem o macro jogo (espetáculo).
125
Discussão teórica – O Drama Moderno – para que possamos
adentrar os estudos do drama dito moderno, achamos interessante retroceder
historicamente e compreender, antes, o que é tido como o drama em sua forma
pura, absoluta. Conversamos também sobre a teoria dos gêneros e sobre as
implicações do pensamento renascentista para a constituição de uma determinada
forma de se pensar e se fazer “DRAMA”. Nesse sentido, conversamos sobre a
dimensão do diálogo na constituição dessa forma absoluta de drama e seus
desdobramentos.
Canto com Lucía – Pulso e Timbre. Os exercícios que fizemos
estiveram voltados para reconhecimento de timbres e de pulsos. E as discussões
desdobradas foram no sentido de compreender como uma cena precisa dos
diferentes timbres e pulsos para se compor. Conversamos sobre um fato constante
no grupo que é a alteração de timbres e volume de voz quando se entra em cena. O
ator sempre possuirá um rico material vocal. Ele precisa reconhecê-lo e trabalhar
dentro das suas possibilidades saudáveis. Não há para que realizar alterações
vocais exageradas na cultura da cena com a qual trabalhamos. O repertório de cada
um é suficiente para fornecer materiais de significação para o espectador.
O Ensaio – Aproveitamos a necessidade de substituição de um dos
atores, Darlison, para pensar em cada cena individualmente. O que fizemos foi
atentar para as mudanças que cada uma delas sofreu durante esse longo período
de apresentações e refletimos sobre as mudanças que se tornaram frutíferas e as
que excluíam escolhas importantes que haviam sido feitas anteriormente. Alteramos
uma das cenas, a cena da pomba-gira, para que a atriz, Andreza, pudesse dominar
a cena mais intensamente e propor uma nova composição de cena em que ela, a
atriz, fosse o elemento central.
127
essa situação, mas foi nele que o reconhecimento se deu neste encontro; 2 – A
relação que aqui se pensa é análoga à apresentada anteriormente quando se falava
sobre o trabalho do ator na composição cênica: Substantivo - Verbo Verbo -
Substantivo; o que se está fazendo aqui é compreender essa investigação a que nos
propomos (Substantivo - Verbo Verbo - Substantivo) por outras perspectivas e por
analogias.
Ouvir o Timbre – Passamos um bom tempo da nossa tarde
realizando exercícios de escuta dos timbres individuais; não diria que estávamos
trabalhando sobre timbres, mas simplesmente ouvindo-os, reconhecendo-os, vendo
suas qualidades e limitações. Tentamos conduzir esse momento de forma que os
atores/sujeitos pudessem se sentir o mais confortável possível. Temos conversado
cada vez mais intensamente sobre o ator servir a cena, ainda que com suas
limitações; queremos entender um ator que leve para a cena não só suas
qualidades, mas também seus limites corpo-vocais e que os torne esteticamente
importantes e justos à composição do todo. Nossa pesquisa sobre a materialidade
da cena como significação afetivo-cognitiva nos impulsiona a questionar a
materialidade do ator na mesma ordem. Talvez, por hora, possamos pensar os
atores como peças multifacetadas que se encaixam diversamente e significam por
suas combinações (e as combinações dessas com os elementos “Técnicos”). E
nesse sentido, precisamos saber com que gama de encaixes estamos trabalhando.
É importante frisar que para nós essas ditas materialidades são (re)organizáveis em
seus contornos. O trabalho com cada micro-cultura cênica ajustará os contornos das
materialidades e exigirá um outro registro de corpo atenso, orgânico à composição
do todo cênico. Aqui nos cabe uma pergunta: E a volta? Quanto dos trabalhos com
uma determinada micro-cultura é responsável pela “identidade” corpo-acional dos
sujeitos em trabalho?
129
Apresentações – Depois de dias com um número grande de
apresentações, percebi que a precisão que o espetáculo tinha no começo está se
perdendo... As cenas começam a se mesclar demais. E ainda, que a estrutura
original pensada a partir do Gauguin, respeitando as transformações naturais do
espetáculo em temporada, talvez não caiba mais na concepção atual, ainda que
tenham sido disparadoras da criação inicial. Talvez para mim isso nem seja uma
dúvida, mas valeria a pena recuperar um diálogo mais intenso com Gauguin? Digo
que talvez não seja uma dúvida, porque acho que deve haver certa escuta para os
caminhos que a temporada leva o espetáculo, ainda mais quando se gosta desses
caminhos, mesmo quando eles nos distanciam do ponto de origem.
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exercidas pelo corpo no trato com a materialidade das ações. Ainda não
conseguimos chegar com os corpos dos atores à construção de um ENTRE, que
seja, em si, mas interessante que o próprio corpo em ação, ainda que dependa dele
para existir.
Canto com Lucía – O foco deste novo momento de trabalho vocal
(canto), devido ao número menor de participantes e com vistas aos futuros projetos
do Núcleo, está mais voltado para questões de afinação e musicalidade. Falamos
com o Welinton a respeito da diferença entre dificuldades reais quanto à afinação e
dificuldades geradas por medos e pré-concepções sobre seu rendimento vocal, que
nos parece ser mais próximo da realidade corpo/vocal dele.
Ensaio - Favores da Lua – O Prólogo – Com a reestruturação do
Núcleo de Pesquisa, motivo pelo qual ficamos sem produzir diários de bordos e
partilhas, decidimos remontar o espetáculo com apenas 6 atores, número
consideravelmente menor que o da montagem original que ficou mais de 1 ano em
cartaz. Os atores, que, com exceção da Ana Antunes, já faziam parte do elenco
anterior, estão ainda tentado transitar entre a sensação de substituição, que
efetivamente não é o caso, e a construção de novas propostas cênicas. A ideia de
substituição que permanece neste momento do trabalho faz com que a criação
esteja mais voltada a um tipo de caricatura ou até mesmo sátira da montagem
anterior.
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