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Resumo
O amor dura pela eternidade, pelo menos para Edgar e
Estella. Enquanto ela luta para descobrir seu passado, ela encontra
muito mais do que isso. Há todo um mundo de histórias sobre ela e
sua vida complicada e especial.
Estella entra em si própria em sua primeira grande aventura,
na vida que ela nasceu para viver, e morrer.
PREFÁCIO
E apesar de nós sabermos que as criações dos deuses foram
exiladas para a Terra, o que eles nunca esperaram era a revolta que 2
por fim levaria a revolução. Quando mandados para viver entre os
humanos, para sempre presos a uma vida de tristeza e tormento, as
duas metades prevaleceram, desafiando todas as probabilidades e
encontrando um ao outro. Apesar da necessidade que eles possuem
de destruir tudo o que eles adoram e de se autodestruir, a raça se
adaptou ao desafio, enfurecendo os deuses e criando uma reunião.
Aterrorizado e impulsionado por uma fúria de ciúmes, os
deuses, então, se decidiram por matar todos aqueles que os
desafiaram, ao achar que o seu divertido jogo havia se tornado
amargo. Nas profundas raízes da terra, eles forjaram uma adaga,
forte o bastante para matar suas criações para sempre, deixando
nada a não ser cascas vazias de corvos, servos que não possuem
coração ou alma.
Com sua cobiça, eles ignoraram o simples fato de que tal
arma poderia ser usada contra eles, seus corações muito
corrompidos pelo poder para entenderem sua própria derrota. Entre
as criações dos deuses na Terra, eles procuraram por uma alma
valiosa, uma tão obscura, que eles poderiam comprar com a
promessa de poder, fazendo troca com seus instintos ambiciosos.
Quando a alma foi encontrada, eles o outorgaram a adaga,
definindo a missão dele em matar e um futuro frutífero a ele foi
prometido, que eles nunca pretenderam cumprir. Quando a alma
recebeu a adaga, ele se tornou nada mais do que um rato,
desperdiçando todas as suas riquezas, e matando todos os seus
amigos, um por um.
Os deuses estavam satisfeitos com o sucesso de seu peão, e
quando a raça divina se tornou lenda, o jogo na Terra humana havia
sido esquecido, deixando-a para se autodestruir de maneira que não 3
pudesse ser freado. Enquanto eles desviaram suas atenções da sua
cruzada gananciosa, os deuses perceberam que a Terra agora estava
morrendo, os humanos infestando a superfície como praga.
Aterrorizados, os deuses pararam com seus planos
anteriores, encontrando agora apenas poucas de suas criações
divinas restando, os únicos seres que podiam salvar a todos. Entre
esses restantes havia o primeiro, o protótipo original de seus
experimentos, exponencialmente mais potente e poderoso que todo
o resto, e uma força comprovada que não podia ser apagada, apesar
dos esforços de seu peão maligno.
Nisso eles sabiam que precisavam recrutá-la e apesar de
descobrir que eles estavam agora presos pela vontade dela, eles não
iriam revelar a importância dela para ela, mantendo seu poder em
segredo e espremendo tudo o que restava a ela de volta para a
Terra. Contentes com o novo plano, eles o colocaram em
movimento, matando o peão maligno para se garantirem. É aqui
que nossa história continua...
Capítulo 1
PASSOS DE BEBÊ
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O granito gelado parecia aço contra minha cabeça enquanto
eu ficava deitada no topo das escadas, maquinando minha próxima
jogada. Eu dei algumas calculadas respirações calmas, permitindo
que meus olhos permanecessem fechados enquanto meu coração se
acelerava. Eu nunca havia chegado tão longe, não até agora. O mais
perto que eu havia chegado do meu quarto foi ontem quando eu
finalmente havia colocado um pé no primeiro degrau da escada, e
agora aqui estava eu, no topo, meu corpo tremendo de medo e pesar
como uma idiota nervosa.
Lentamente, eu comecei a abrir minhas pálpebras como uma
cortina em uma peça de teatro. Eu senti o granito embaixo das
minhas palmas suadas, meus braços espalhados ao meu lado e
minhas pernas se cascateando pelas escadas. Eu virei minha cabeça
para a direita, olhando para as portas do meu quarto em um
reconhecimento triste.
Já faz quase dois meses que eu voltei para casa, mas eu ainda
não conseguia voltar para o meu quarto, para ver o que eu temia
que fosse uma cena de tristeza e perda. Eu havia começado a dormir
no sofá da sala de estar, apesar das tentativas de Sam de me
encorajar a encarar os fatos, e seguir em frente. Ele não entendia
como eu me sentia, ele não sabia mais o que era pesar, ou medo. Ele
estava morto, por dentro e por fora.
Eu dei uma respiração funda e a segurei até doer os meus
pulmões. Com cuidado, eu virei minha cabeça para o outro lado,
meus olhos caindo nas portas do quarto misterioso de Edgar, um
lugar que eu não podia nem imaginar visitar. Eu nunca vi por
dentro, pelo menos não nas minhas memórias recentes, mas ainda
parecia como um lugar imaginário, um lugar que nunca realmente 5
existiu.
Apesar de eu ter conseguido minha alma de volta quando o
coração de Edgar parou de bater, minha memória não havia
retornado inteiramente. Havia certas coisas que devagar pipocavam
novamente, como meu conhecimento avançado no xadrez, e claro
meu sentido melhorado de visão, e som, mas não minha memória.
Eu expirei enquanto trazia minha cabeça para o centro,
encarando o teto de folhas douradas. Eu puxei violentamente meu
corpo cansado me levantando enquanto eu apoiava meu queixo nas
mãos e colocava meus pés no degrau do topo. Esfregando meus
dedos nos meus olhos cansados, eu escutei os rápidos bater de asas
ecoando pelo grande hall de entrada.
Minhas mãos caíram no meu colo enquanto eu olhava para
cima, vendo Henry e Isabelle circularem o lustre e se desviarem
bruscamente na minha direção. Eles pousaram no patamar superior
enquanto suas garras deslizavam, rangendo pelo granito como
unhas num quadro negro. Eu estremeci com o som estridente
enquanto eles clicavam seu caminho de volta na minha direção com
pressa, cada um esfregando a cabeça no meu braço como os gatos
normalmente fazem.
Nos meses que passaram, Henry havia se dado para mim
como se ele fosse unicamente meu. Eu sabia que ele sentia falta de
Edgar. Havia um brilho em seus olhos que era inegavelmente triste.
Ele me via como sua mãe adotiva agora, e isso era definitivamente
algo com o qual eu podia me relacionar.
Eu suspirei com o coração pesado enquanto eu coçava a
cabeça de ambos. Esta viagem para o meu quarto estava sempre
destinada a ser uma tentativa falha, mas eu tinha que pelo menos 6
chegar ao patamar superior. Eu olhei para cima quando meus olhos
pegaram o brilho de algo parado no centro da entrada. Sam estava
sorrindo para mim enquanto ficava lá parado em um silêncio
angelical. Era frustrante que nem mesmo eu pudesse ouvir ele se
mexer em sua existência silenciosa.
— Uau, parece que você chegou bem longe hoje. — Ele deu
uma meia risada enquanto dizia isso.
Eu limpei o pesar do meu rosto antes que ele pudesse notar,
revertendo novamente para confiança enquanto eu me preparava
para aguentar seu bombardeio de brincadeiras sarcásticas.
— Obrigada, Sam. — Minha voz era afiada, mas pensativa.
— Então porque você não faz de uma vez, despejar sal na
ferida para que você possa seguir em frente? Eu sei que você é mais
forte que isso, além do mais, você continua falando durante o sono
sobre como o sofá é desconfortável. E francamente, você é
entediante, — ele sorriu.
Eu juntei minhas sobrancelhas.
— Você me vê dormir? Vamos lá Sam, isso é assustador.
Ele riu.
— É claro que eu observo você, é o meu trabalho. E eu gosto
de ser assustador, combina bem com a minha imagem de super-
herói.
Eu franzi os lábios e balancei a cabeça. Tive que praticar um
pouco, mas estava aprendendo a esconder meus pensamentos dele. 7
Eu havia encontrado um lugar especial na minha cabeça que até
mesmo ele não podia penetrar e eu tinha certeza que estava
começando a frustrá-lo. Ele estava acostumado com as mentes dos
humanos fracos, tão reveladores. Mas eu era mais do que humana
agora, eu era imortal, e meus poderes podiam de alguma forma
rivalizar com os poderes dele, apesar de que eu ainda não era tão
forte. Pelo menos minha inteligência e intuição afiada o mantinham
desafiado.
Eu estreitei meus olhos para ele.
— Não, eu acho que você está tentando ler meus
pensamentos. Você não pode suportar não conhecer todos os meus
caprichos, não é?
Ele ficou inquieto com suas mãos enquanto ele as segurou
atrás das suas costas. Suas asas estavam inteiramente retiradas
dentro de suas omoplatas ao ponto de que você nunca seria capaz
de diferenciá-lo de um humano, fora o fato que a pele dele era tão
fria como gelo e seus olhos estavam fortemente sombreados em uma
luz lilás.
Ele finalmente sorriu, bufando de uma maneira delicada, que
sugeria que ele era culpado.
— Talvez, eu apenas goste de ouvir seus pensamentos, me
faz sentir vivo novamente. Os pensamentos humanos são tão
enfadonhos, o que comer, o que ver na TV, o que devo fazer para
envenenar a terra hoje. Você, por outro lado, seus pensamentos são
fascinantes. — Seus olhos acenderam-se subitamente com alegria.
Eu estreitei os meus olhos mais ainda, soltando o ar
bruscamente. Eu parti pelo piso frio e fiquei de pé enquanto Henry e 8
Isabelle trotavam em direção à porta do meu quarto. Eles pararam e
olharam para mim como se estivessem me encorajando a segui-los,
mas eu balancei minha cabeça em desafio.
— Hoje não, garotos, amanhã, eu prometo.
Ambos olharam para mim como se estivessem me contando
que eu já havia prometido isso uma dezena de vezes.
Sam bufou.
— Sim, isso é exatamente o que eles estão pensando.
Eu virei o meu olhar para Sam. Eu havia permitido aquele
pensamento.
— Você não pode ouvir o que eles estão pensando, então pare
de fingir que você pode. Você não pode me empurrar nisso.
Sam deu de ombros.
— Verdade, mas eu posso sentir a emoção deles, e agora eles
parecem bem desapontados.
— Tanto faz. — Eu respondi acidamente. — Você só está
chateado porque eu posso te vencer no teu próprio jogo, você é um
péssimo perdedor, Sam.
Ele riu.
— Tanto faz.
Eu suspirei enquanto me lançava para o alto da escada para a
prateleira e agarrava o caderno de Edgar Allan Poe como se eu
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estivesse andando sobre brasas. O antigo couro grosso parecia
áspero entre os dedos enquanto eu descia pelas escadas, como se
estivesse sendo perseguida pelos fantasmas do meu passado. Não
que eu quisesse fugir da realidade, eu só não estava pronta para
enfrentá-la ainda.
Sam riu de novo.
— Essa foi uma ação digna de Indiana Jones, muito
impressionante, mas você se esqueceu de substituir o artefato com
um saco de areia. Melhor prestar atenção, alguns gremlins malignos,
provavelmente a atacarão. — Ele apontou para as escadas atrás de
mim com um humor sarcástico.
Eu senti uma vontade repentina de socá-lo enquanto o meu
pé descalço pousava como uma profissional no andar térreo, o que
de fato eu fiz. Quando meu punho aterrissou em seu bíceps frio, eu
senti meus dedos se triturarem e uma dor aguda pulsou pelo meu
braço como se eu tivesse socado uma estátua de mármore.
Sam olhou para mim com olhos manhosos, meu soco não
havia sido nada mais do que um roçar de pena para ele. — Opa lá,
mocinha, melhor tomar cuidado.
Eu agarrei a minha mão que pulsava e pinicava. Encarando-
o, eu esfreguei meus dedos quebrados em um silêncio triste
enquanto eu os moldava de volta ao normal em movimentos suaves
e lentos.
— Eu não entendo porque você escolhe infligir dor a você
mesma desse jeito, uma vez atrás da outra. Eu entendi a razão, você
está ressentida comigo, mas supere isso, eu não vou embora a 10
menos que Edgar libere a minha ligação com você. — Ele pausou
enquanto sorria, e meu coração se desmoronou como rochas
enquanto ele dizia o seu nome. — E eu não vejo isso acontecendo
tão cedo. — Ele adicionou uma apunhalada extra da adaga, agora
perfurando a minha triste alma culpada.
Eu grunhi para ele.
— Cala boca, Sam. — Minha voz estava bem melhor
enquanto eu virava em um pé e avançava em direção a cozinha,
uma raiva afiada batia em meus passos.
Ele seguiu como um fantasma silencioso.
— Oh, vamos, Elle! Eu não quis dizer isso. Eu não estou
acostumado a ser educado.
— Bem, então, acostume-se. Você está agindo como um
monstro, não como um anjo. — Seu comentário ainda magoava meu
coração. Cada vez que ele mencionava o nome de Edgar, isso
machucava como se aquela adaga estivesse sendo enfiada em mim,
ao invés dele.
— Estou tentando, mas é difícil lembrar como é sentir
emoção. Eu ainda não entendo por que você escolheu ter sua alma
de volta. Tudo o que fez foi complicar as coisas.
Eu caí subitamente em um banquinho e bati meus cotovelos
para baixo, na ilha de cobre.
— Bem, se esforce mais. —Eu retruquei.
— Tudo bem, me deixe te fazer o almoço. O que você
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gostaria? — O desespero em sua voz estava funcionando e eu
comecei a me sentir culpada, ele simplesmente não sabia fazer
melhor.
— Que tal um pouco de simpatia, com um extra de conforto?
— Eu brinquei.
— O que vai nisso?
Ele soou genuinamente confuso e eu revirei meus olhos para
ele. Você imaginaria que ele pudesse ao menos sentir o cheiro do
seu próprio sarcasmo sendo atirado para ele novamente.
— Só esquece. — Eu suspirei. — Vá ao armário de cima, lá
deve ter uma caixa de macarrão com queijo, só siga as instruções.
Ele me olhou com um sorriso irritante, eu sabia que ele sabia
do que eu estava falando, mas ele era um bom ator. Eu apenas
queria ser tão sarcástica e talentosa na conversa quando eu não tinha
uma alma, talvez eu não ficasse tão miserável quanto estou agora
porque eu nunca teria vindo aqui, nunca teria conhecido Edgar, e eu
poderia ter seguido em frente na minha esquecida escuridão
depressiva.
A caixa fez um tolo som sacudindo enquanto ele a tirava para
fora do armário e os macarrões se mexiam lá dentro. Eu pensei em
meus ovos e calda e desejei que Edgar estivesse aqui para fazê-los
para mim, da maneira que só ele sabia fazer. Eu nunca fui muito de
cozinhar, e meu apetite não tinha sido realmente grande de
qualquer maneira. Eu ainda estava doente com a perda e eu queria
saber se a sensação de tristeza jamais iria acabar. Muitas vezes eles
dizem que o tempo cura todas as feridas, mas até o momento, sentia
que minhas feridas ainda estavam abertas, tristeza e sangue 12
jorrando a cada momento árduo que passava.
Sam me olhou com um olhar sábio. Eu tinha dado a ele a
tortura daquele pensamento, deixando-o saber o quanto eu me
ressentia com as suas tentativas de preencher a lacuna que Edgar
tinha deixado. Tentativas fracassadas, como comer açúcar quando
você está morrendo de fome. Havia um olhar estranho e abrupto no
rosto de Sam e eu o analisei com discrição. Eu nunca tinha visto um
olhar parecido com aquele antes e eu quase o comparei com
remorso real.
Eu estava orgulhosa de mim mesma. Consertar Sam havia se
tornado uma espécie de projeto de estimação, nenhum homem
deveria esquecer a razão pela qual morreu como parecia que ele
tinha esquecido. Eu sabia quem ele costumava ser, baseado na
história de Edgar de como ele deu a vida por uma menina que mal
conhecia. Mas eu nunca o confrontei, apesar disso. Eu estava com
medo do resultado, com medo de que ele não se lembrasse do por
que dele estar aqui e ficasse frustrado. Por mais difícil que fosse
admitir, eu precisava dele, caso contrário, agora, eu já teria
enlouquecido.
Sam estava me observando com olhos nervosos por cima da
caixa enquanto ele lia as instruções com diligência, extraindo cada
ingrediente e medindo como se fosse uma aula de biologia. Sam não
comia também, ele não precisava. Ele me contou que ele não podia
sentir o gosto de qualquer forma, todos os desejos terrenos foram
tirados dele por causa do seu dever de servir. Nada devia desviá-lo
disso. Mas com minha teimosia, eu estava determinada a mudar
essa ideia.
Ele havia sido bem sucedido em fazer uma panela de água 13
ferver enquanto ela ficava bem perto das chamas do fogo no coração
da cozinha. Eu estava impressionada, mesmo eu nunca havia sido
bem sucedida e meu macarrão com queijo era bem duro devido a
isso. Ele parecia interiormente contente com ele mesmo, como se ele
tivesse realizado algo incrível.
Talvez Edgar estivesse certo quando disse que era mais fácil
ser um professor do que fingir ser um estudante. Um professor
conduzia, enquanto um estudante seguia, e agora era aparente, mais
do que nunca, que não havia mais ninguém para eu seguir. Eu tinha
que encarar o fato de que assumir as minhas responsabilidades era
evidente.
Eu havia pensado na faculdade, imaginado se Scott e Sarah
ainda estavam lá. Era meio do verão, então era inegável que eles
estavam lá. Mas não parecia certo também, voltar para lá. Qual era a
razão a não ser reabrir memórias dolorosas e o tédio de esperar? E
para quê? Morte? Ainda assim, isso não havia escapado aos meus
pensamentos e eu estava formulando uma hora para ir, só não
ainda, não agora.
Sam lutou contra o pacote de queijo falso e eu ri
secretamente. Ele me deu um olhar envergonhado e reprovador
antes de rasgar o pacote praticamente em pedaços. Ele conseguiu
colocar apenas metade do seu conteúdo dentro da panela antes do
resto se derramar pelo chão.
— Não se preocupe com isso Sam. — Eu o tranquilizei,
surpreendida por encontrá-lo chateado e bravo consigo mesmo.
Talvez ele estivesse mesmo se tornando humano novamente.
Seu rosto mudou de vergonha para confiança.
14
— Shhh, do que você está falando? Eu não estou
envergonhado.
Eu pude ver a tentativa de uma mentira cruzar seu rosto e eu
ri mais uma vez, olhando para baixo para o balcão de cobre e
admirando o meu reflexo. Meus olhos brilhavam como pequenas
esferas de opalas luminescentes, refletindo em raios afiados em
direção ao cobre e de volta para mim.
— Sam?
Ele ergueu o olhar do fogo, seu rosto se recuperando da
frustração com o resultado de sua comida.
— Humm?
— O que aconteceu aquele dia, antes de eu ser levada? O que
você viu? — Eu nunca tive a chance de fazer essa pergunta para ele,
tudo havia vindo primeiro, principalmente o fato de que Edgar se
foi.
— Eu vi você sendo estúpida. — Ele respondeu de forma
abrupta e fria. Seus olhos de âmbar investigaram o meu rosto,
tentando entrar profundamente nos meus pensamentos.
— Sim, mas sério, você viu o gato, certo? — Meus olhos
investigaram os dele e eu permiti que ele visse os meus
pensamentos, a memória embaçada do gato branco e o ataque
perverso dos corvos.
Seu rosto pareceu se despedaçar, como se eu tivesse revelado
algo doloroso para ele. Eu percebi que era um olhar de falha, falha
porque ele havia me perdido aquele dia na mata e havia deixado 15
Edgar morrer. Era tolo que ele se culpasse por isso, não era nem
mesmo culpa dele, mas eu podia ver sua dedicada razão. Ele havia
falhado na única coisa que ele fazia bem, ser um guardião.
— Sim, eu vi aquele felino asqueroso. — Ele retrucou.
— O que foi aquilo? Por que ele estava lá? Você podia sentir o
que ele estava pensando? — Eu sabia como ele podia sentir Henry e
Isabelle e eu tinha esperanças que ele houvesse sentido o gato
também. Ele deve ter notado alguma coisa.
— Eu senti muitas coisas, Elle. Em primeiro lugar e mais
importante havia os corvos, mas eu acho que o que senti foi uma
estranha e tranquila voz baixa, mas era estranho, como se fosse um
sinal misturado. Eu estava certo do fato de que não era normal, se
você me perguntar. — Ele encolheu os ombros quando ele puxou o
macarrão ensopado para longe do fogo. Eu observei enquanto ele
ponderava sobre um prato ou tigela, finalmente se decidindo por
uma tigela após a expressão amarga em seu rosto reconhecer o
conteúdo da panela estar mais perto de parecer sopa do que de
macarrão.
— Mas você acha que ele era parte do plano de Matthew,
outro peão em seu jogo para me atrair para longe de Edgar e para
dentro do seu abraço letal? — Minha voz estava envolvida pela
curiosidade.
— Não, eu não peguei esse sentimento, ele não era mal. Esta
seria a primeira coisa que eu teria notado. Para mim o mundo é
preto ou branco, mal ou seguro. — Ele empurrou um prato na
minha direção, seus olhos olhando nos meus com uma curiosa
vigilância e eu podia sentir que ele estava nervoso que eu o julgasse
pelas suas habilidades culinárias. 16
— Obrigada, Sam. Parece ótimo. — Eu sorri.
Ele estreitou os olhos para mim e eu podia senti-lo
navegando em cada canto do meu cérebro, e voltando de mãos
vazias. Ele gemeu, seu peito subindo enquanto ele andava para a
sala de estar atrás de mim onde ele jogou seu corpo na
espreguiçadeira.
Eu belisquei a massa encharcada na minha frente,
encorajando meu estômago a achá-la de alguma forma apetitosa. Eu
podia sentir Sam respirando atrás de mim, apesar de não ter certeza
do por que dele fazer isso. Sendo que ele estava morto ele não
precisava respirar, mas eu acredito que era uma questão de se
encaixar, fazia sentido, velhos hábitos são difíceis de matar.
Eu havia contido a minha vida em torno de três cômodos.
Quando eu voltei pela primeira vez, foi difícil passar do salão da
frente. Mas agora, eu me sentia confortável em estar na cozinha, sala
e entrada. A cura era um processo lento e era o meu fardo para
carregar. Eu nunca entendi como os humanos conseguiam seguir em
frente, muitas vezes logo após a sua perda, mas eu acho que o amor
se resume a uma escolha: você pode superar isso e tentar ser feliz,
ou girar em círculos, sozinho. E verdade seja dita, ninguém gosta de
estar sozinho.
Sam ia e vinha quando ele queria, mas não parecia que
houvesse ido a qualquer outro dos cômodos fora aqueles que eu
também ia. Eu supus que era por respeito a mim, se ele possuísse
algum vestígio de respeito. Ele era tão rude, que não me
surpreenderia que ele tivesse ido a cada cômodo da casa, pra não
falar em dormir na cama de Edgar. Mas contanto que ele não 17
mexesse em nada, eu não ligava mais.
Eu empurrei goela abaixo outra carga empapada e aguada de
macarrão com queijo antes de desistir. Eu tinha um novo objetivo
em mente, então depois de jogar o meu prato na pia e pegar o
caderno de Edgar Allan que ontem eu havia deixado no balcão, eu
tentei o meu melhor para sair do recinto sem ser notada. Havia um
lugar na casa que eu estava certa de que seria mais fácil de visitar do
que o meu quarto e agora eu me preparava numa missão para ir até
lá.
Minha mão arranhou ao longo do áspero papel de parede
aveludado enquanto eu seguia em direção à biblioteca. Não havia
nenhuma razão real para eu ainda não ter ido lá, e não fiquei
surpresa de encontrá-la exatamente a mesma. Eu apertei a minha
mão em torno do batente, sentindo o local familiar onde havia
cravado minhas unhas na madeira uma centena de vezes. A
memória dos últimos dias estressantes com Edgar passou diante de
mim, a ansiedade e a espera.
Eu respirei fundo e entrei na sala. Sam não tinha me seguido,
mas eu não era tão ingênua para negar o fato de que ele sabia o que
eu estava fazendo. Mesmo que eu tivesse visão e audição
impecáveis, ele as tinha ainda melhor. Percebi como ele podia
observar o ar na frente dele, nada lá, mas para ele sempre havia
algo, uma partícula de poeira, um fio de seda. Ele sempre sabia, mas
isso não quer dizer que ele sempre me contava sobre isso.
Eu corri minha mão ao longo do grosso couro do sofá,
achando-o frio, áspero, e quase repugnante. O caderno de poemas
na minha mão de repente parecendo uma tonelada de tijolos 18
enquanto eu o colocava no assento do sofá. Olhei para a estufa que
Edgar tinha construído para mim e um caroço doeu em minha
garganta. Aquele cômodo era ainda muito difícil para visitar e até
mesmo vê-lo agora era como torcer a adaga em meu coração
palpitante.
Enquanto eu desviava meu olhar das mesas de plantas
mortas, minha visão captou a sedosa madeira de mogno da escada
para o segundo nível da biblioteca. Minha respiração se acelerou,
meu corpo agora aterrorizado com o que eu sabia que estava lá em
cima. Eu tinha me enganado em vir aqui, eu me enganei com minha
obsessão insaciável com esse pequeno quarto, e a pintura.
Eu respirei profundamente, colocando uma mão no degrau
do meio. Apertando os olhos, a dolorosa memória das mãos de
Edgar em volta da minha cintura inundou minha mente. Meus lados
começaram a formigar com o toque residual enquanto a respiração
era arrancada de meus pulmões. Amaldiçoei-me por choramingar
como uma boba enquanto colocava minha outra mão no corrimão.
Eu trabalhei para acalmar a dor e a queimação na garganta, bufando
respirações pesadas pelo meu nariz, ao invés disso. Eu precisava
disso, já fazia muito tempo. Meu tempo de espera havia terminado e
era hora de um novo dia. Abrindo os olhos, respirei fundo e me
movi.
Capítulo 2
ADIÇÕES
19
Quando meu pé pressionou o primeiro degrau, joguei todo
meu peso sobre a escada. Expirei sentido o sal cair sobre minhas
feridas e o prazer doce-amargo do amor e da perda. Um sorriso
cruzou meu rosto, encontrar minhas memórias aqui era mais
assustador do que eu havia imaginado, e mais excitante também. Eu
me joguei para o outro pavimento com a agilidade de um gato,
colocando meu pé na passagem de aço e segurando com uma mão
no corrimão, a outra aterrissando nas colunas de livros empilhados
tranquilamente contra a parede.
Enquanto eu passeava pelo arco familiar, meus dedos
deslizavam pelos livros como sempre. Senti como se meus dedos
houvessem atingido um vácuo cavernoso naquele amontoado e uma
memória se abriu como um pacote em minha mente, uma memória
de porque aquele vazio estava ali. O pensamento era um dos que
estavam agora enterrados profundamente sob o trauma daquele dia
horrível. Eu havia esquecido tudo o que precedera o fato de minha
abdução, mas o que estava lá naquele dia era extremamente valioso.
Passei minha visão da pequena sala arqueada para minha mão,
parando enquanto a adrenalina corria indelével em minhas veias.
Ajoelhei-me sobre uma perna até que meus olhos ficassem no
mesmo nível que o vazio entre os livros, minha visão se lembrando
do que pertencia originalmente àquele lugar. Meu dedo traçou o
buraco alto e retangular enquanto eu olhava para o fundo da
prateleira, meus olhos não encontrando nada além do mogno da
estante olhando de volta para mim. Balancei a cabeça para os lados
procurando em minha mente o que havia acontecido depois. Passei
os olhos ao meu redor e me virei para trás, para a sala arqueada no
canto, onde meu queixo caiu e minha respiração se derrubou em
ondas quentes. 20
Levantei-me como se estivesse com medo de me assustar
enquanto meu cérebro corria para colocar o passado em ordem,
minha mão me apoiando contra os livros. Respirando fundo, andei
para frente, pondo um pé cuidadosamente após o outro como se
estivesse espreitando uma presa. Quando cheguei ao centro da sala,
coloquei minha cabeça para dentro, como se esperasse que alguma
coisa pulasse em mim, os pequenos candelabros irrompendo em
vida enquanto o suor começava a brotar de minha testa.
Meu primeiro pensamento foi olhar para a pintura, as faces
me atingindo como lanças afiadas. Eu me encolhi, desviando o olhar
para o chão onde alguma coisa estava brilhando claramente como
uma tigela de água dourada. Minha respiração pesada ecoou pelas
finas paredes enquanto eu me agachava, passando os dedos por
baixo das páginas que estavam escancaradas para o chão.
Minha primeira reação foi sentir o quanto estava quente,
como se tivesse sido segurado por alguém. Levei-o ao meu peito
enquanto olhava para o teto, sentindo seu estranho calor agora
reverberando por minha alma, como se fosse uma coisa viva.
Abracei o livro como a uma criança pequena enquanto me arrastava
para a poltrona e deixava meu copo cair e afundar sobre o couro
maleável. Colocando o livro em meu colo, tracei a áspera capa de
ouro com a palma da mão, sentindo os moldes em relevo das letras
italianas sob meu toque.
Tratando-o com cuidadoso respeito, abri a capa, ouvindo o
papel estalar ao ser esticado. Enquanto abria a primeira pagina, a
familiar imagem entalhada do corvo olhou para mim. Meus olhos
caíram sobre a escritura em italiano e contraí minhas sobrancelhas
em admiração à medida que minha mente começava a reconhecer as
palavras que eram tão estranhas antes, moldando-as em inglês, bem 21
em frente aos meus olhos. Senti minha memória destrancar cada
silaba, traduzindo-as até que fossem finalmente legíveis. Li a mesma
primeira linha que havia lido naquele dia, finalmente encontrando
algum significado na descrição.
No início, o corvo era um...
Inclinei-me para trás contra o encosto da poltrona em choque.
Meu recém-descoberto talento de ler em italiano havia me pegado
de surpresa e eu estava estupefata com o fato de que eu podia agora
entender as histórias do livro. Pulei pelas paginas com fome e
pressa, lembrando-me de como o livro tinha metade em branco,
como se não tivesse sido acabado. Quando encontrei a figura
familiar do gato branco entrando na gruta, fiquei surpresa de ver
que quando eu virei a página, ela não estava mais vazia.
Engasguei com horror, deixando o livro cair do meu rosto
para minha perna enquanto as páginas sopravam fechadas e eu
perdia a marcação. Eu não estava completamente certa do que havia
acabado de ver, mas a rápida olhada fez com que meu coração
batesse mais rápido que nunca. Respirei fundo enquanto segurava
as páginas, mais faminta que antes enquanto as folheava de volta
para onde o gato estava. Respirei fundo e virei para a página
seguinte novamente, meus olhos caindo sobre uma nova imagem
impressa.
Havia um corvo branco na floresta, seu corpo curvado e seus
olhos gritando enquanto uma nuvem negra de corvos pretos
mergulhava em sua direção. A cena era familiar demais e eu senti 22
minha cabeça latejar com uma dor súbita. Apesar de minha mente
gritar que não, meus olhos não conseguiam resistir à tentação de ler
a legenda.
Nesse dia, ela foi levada. A alma escura foi enganada,
todavia, o corvo não era nada mais que uma casca, mas a
maldição adiante era decisivamente pesada...
Era eu. O corvo branco era eu. Corri os dedos pela
imagem detalhada, lembrando-me do medo que abriu seu
caminho por meu corpo. Olhei para as árvores que me
cercavam e, para minha surpresa, o gato estava lá, sua cauda
balançando enquanto corria, bem como eu me lembrava.
Virei a página enquanto forçava a mim mesma a encher
minha mente com essa imagem torturante, mas fechei o livro
com uma batida. O que tinha visto lá, não estava preparada
para ver novamente. Era a imagem de dois corvos, um com a
adaga atravessando o coração do outro. Minha respiração se
acelerou e meus dedos tremeram na capa do livro. Minhas
palmas começaram a suar e, por mais que eu quisesse ler
além disso, não conseguia fazer minha mente abrir a capa.
Meus olhos se espremeram, fechando-se e minha
respiração ecoava pelas paredes. Sentada ali, tentando
acalmar meus nervos, senti o ar ficar espesso e pesado, como
se o espaço não fosse mais suficiente para mim e para o livro. 23
Quando abri as pálpebras, não fiquei surpresa de ver Sam de
pé em minha frente, sua figura lançando grandes sombras no
cômodo agora apertado.
— O que está fazendo? — perguntou, bisbilhoteiro.
Revirei os olhos, permitindo que minhas emoções
descessem por meus ombros.
— Nada, só tentando entender umas coisas, — menti.
Seus olhos se desviaram para o livro dourado em
minha mão.
— O que é isso? — ele perguntou, fingindo não ser
grande coisa em seu desespero para saber.
Dei de ombros, tentando fazer com que parecesse que
era apenas um livro qualquer, não um livro mágico que se
escrevia sozinho.
— Parece que você foi um pouco mais além hoje, bom
pra você, campeã. — Ele olhou ao redor da pequena sala e
piscou. Suas costas estavam arqueadas de uma maneira
desconfortável, o teto muito baixo para seu grande corpo ficar
de pé.
— É, acho que sim, — minha voz soou ácida e irritada.
Evitei seu olhar direto, com medo de que ele pudesse
descobrir meus segredos.
Ele se esforçou para manobrar seu corpo, se
contorcendo para olhar para a pintura que agora eu
observava em segredo.
— Oh, ei — surpresa cruzou seu rosto. — Olha, é você!
— apontou o dedo para a minha imagem — E olha só, Edgar!
— ele parecia uma criança pequena numa loja de doces, sem 24
o mínimo senso de luto.
Eu me encolhi quando ele disse o nome dele.
— Você poderia, por favor, não dizer isso?
Seu olhar se atirou no meu, sua boca contorcida num
sorriso.
— Ah, é, desculpa, esqueci que ele está morto.
Expirei, meu peito comprimido no máximo que podia.
Ele era tão rude.
— Ah, mas, olhe ali, — Sam apontou para o casal de
branco, Margriete e... Eu não conseguia nem sequer pensar
no nome dele.
Concordei com a cabeça, desviando o olhar. O sorriso
de Sam se desfez e um silêncio constrangedor cresceu entre
nós. Encontrei-me erguendo os olhos com a surpresa pelo
sentimento repentino. Preparei-me para outro comentário
rude, mas ele não veio. Meus olhos encontraram os de Sam e
nos encaramos fixamente por um momento. O sorriso bobo
havia sumido de sua face e ele estava procurando em mim de
uma maneira desconfortante com se estivesse
experimentando o mesmo sentimento de perda que eu.
Depois de sustentar o olhar por mais tempo que o
necessário ele desviou os olhos.
— Desculpa, — murmurou, saindo da sala e se
sentando no corrimão.
Eu estava um pouco chocada com a expressão
compreensiva em seu rosto. Ele havia expressado um pouco
de arrependimento. O livro pareceu quente em minhas mãos
e eu voltei à realidade, lembrando que eu o estava segurando 25
apertado. Senti a capa novamente, imaginando que o que eu
segurava era uma torta quente, não uma culminância do
passado. O livro estava vivo, e de alguma maneira estranha,
ele sabia de tudo o que estava acontecendo.
Passei as páginas num movimento automático até que
elas ficassem em branco, cuidadosamente não olhando para
as últimas imagens. Havia ainda apenas metade do livro
escrito e eu me perguntava se isso significava que mais
estava por vir, mais para explorar. De qualquer maneira,
agora eu tinha evidências de que o gato realmente estava lá.
Se esse livro havia achado aquilo tão importante para ser
escrito, então era um personagem que eu encontraria
novamente.
Sam suspirou e eu sabia que ele estava apenas
tentando chamar minha atenção. Suspendi meu olhar até o
seu e sorri.
— Sam, você pode me fazer um favor? — eu já estava
querendo fazer isso, mas minha resistência em vir aqui havia
me impedido. — Poderia levar essa pintura para o andar de
baixo, eu gostaria de colocá-la na biblioteca.
— O quê, ele é muito pesado para você? — Ele brincou,
agora retornando ao seu sarcasmo normal.
Eu lhe dei um olhar reprovador.
— Só faça isso, Sam.
Ele bufou e abaixou a cabeça novamente no pequeno
espaço. Pondo duas mãos pálidas em cada lado da pintura,
ele a retirou da parede quase sem esforço e a manobrou para
fora do espaço. Em um giro rápido e ágil ele pulou sobre o
corrimão, caindo no andar de baixo como se tivesse descido a
escada. Levantei-me da poltrona arduamente e me dirigi até o
corrimão. Sam olhou para mim com um olhar presunçoso e 26
eu fiquei irritada por ele desafiar absolutamente complicações
terrenas, como escadas.
— Exibido — soltei.
Sam sorriu, seu rosto branco-fantasma quase radiante
com a luz que entrava pela janela. Notei como os círculos
azuis sob seus olhos contrastavam com o lapidado bronze
dourado de suas pupilas e aquilo lançou calafrios por minha
espinha, a face da morte suspensa em meus pensamentos.
Ele apoiou a pintura no sofá enquanto eu descia pelo
passadiço até as escadas. O livro estava preso junto a meu
peito e eu sentia meu corpo começar a suar sob seu calor.
Quando cheguei à escada, prendi-o sob meu braço,
cuidadosamente segurando o corrimão como Edgar havia me
advertido milhares de vezes.
No meio da descida, me encolhi quando senti Sam
segurar em minha cintura. Instantaneamente congelei com o
toque, achando o sentimento difícil de discernir daquele do
meu passado, enquanto lutava para suprimir o pensamento
sobre Edgar. Sam conseguiu me levantar do jeito exato que
Edgar sempre fazia e eu me soltei assim que chegamos ao
chão.
— Qual é o problema? — Sam riu, achando graça do
meu desconforto.
— Nada — fiz uma pausa, pensando em soltar uma
frase grosseira, mas percebendo que não havia razão para
desperdiçá-la. — Suas mãos são frias, só isso.
Ele riu.
— É, bem, você parece um inferno, então... 27
Sacudi minha cabeça, puxando o livro debaixo do meu
braço agora suado.
— Tanto faz.
— Então, onde você quer que eu pendure essa
tranqueira? — Ele estava tentando me irritar e estava quase
tendo sucesso.
Soltei um suspiro descarado enquanto me arrastava
para o centro do cômodo. Uma coisa com a qual eu sempre
podia contar é que Sam nunca me daria trégua. Isso era uma
coisa que eu realmente não poderia suportar, não agora. Com
um olhar seco analisei o cômodo, procurando cada possível
espaço, que eram poucos entre todos os relógios de Edgar que
estavam pendurados por todo canto.
Recuei ante ao pensamento de retirar os amados
relógios de Edgar, mas de verdade, qual era o sentido? Ele
não estava mais aqui para cuidar e eu tinha certeza de que
ele me perdoaria, se tivesse a chance. Meu coração afundou
em meu peito como uma pedra com o meu desrespeito com
suas coisas. Eu amava Edgar, isso nunca iria mudar, mas
era necessário. Não era como se eu estivesse redecorando por
não gostar do estilo, eu estava fazendo isso como meu
primeiro passo para encontrá-lo, um ato egoísta de amor.
Aquela pintura tinha a obrigação de ser útil para mim,
de alguma maneira. Na verdade, era um bom lembrete do
meu objetivo. Eu me recusava a apodrecer aqui, esperando
como ele fez, eu era mais agressiva do que isso. Lamber
minhas feridas e choramingar por minha sorte terrível nunca
foi meu forte.
Sam leu meus pensamentos e começou a remover os
relógios da parede leste, bem do lado esquerdo da porta de 28
entrada e antes do início das estantes. Silhuetas profundas
ficavam marcadas enquanto ele retirava cada relógio
barulhento e colocava em uma pilha delicada. Eles eram
irritantes, de qualquer maneira, como areia na ampulheta da
minha vida, escorrendo minha existência sem fim. Se eu
pudesse remover tudo o que me deixava de mau humor, ao
invés de brigar, as coisas seriam mais fáceis.
Peguei os relógios e os coloquei dentro da arca que
também servia como mesa de centro. Havia marcas de passos
onde Edgar havia colocado o pé na tampa e eu passei minha
mão sobre elas com respeito quando a tampa se abriu. A
madeira grossa dos relógios tinia como bambu oco enquanto
eu os colocava em seu novo local de descanso. Quando fechei
a tampa, os relógios foram abafados pelas paredes que agora
os cercavam. Um suspiro de alívio escapou por meus lábios e
eu vi Sam sorrindo para mim.
Um rosnado cresceu em minha garganta.
— O que quer que você queira dizer, guarde para si.
Então ele riu, e eu sabia que ele teria dito alguma
coisa. Que idiota, eu pensei, já cultive um coração agora
mesmo. Apontei direto para a pintura, instruindo-o sem
palavras, a pendurá-lo e não se meter mais. Minha mente se
ligou a dele e tive certeza de deixar meu pensamento sibilar
com raiva.
Seus olhos brilharam com satisfação e eu percebi que
ele estava aproveitado a tortura a que me submetia com
euforia doentia e contentamento.
Comecei a pensar em Sarah e Scott enquanto ele
levantava a pintura para a parede, colocando em um prego
que já estava lá, de um dos relógios. A ideia de ir até a escola 29
para surpreendê-los havia cruzado minha mente mais vezes
hoje do que eu gostaria de admitir, toda vez que eu o fazia,
Sam simplesmente olhava para mim e sacudia a cabeça. Por
alguma razão, ele estava tentando me deixar longe deles.
Talvez ele tenha visto o quanto é errado para imortais como
eu fazer amizades com humanos quando, na verdade, eu
estava sentindo falta da distração social.
Mesmo que ele mesmo já tenha sido um humano uma
vez, ele agora os via como uma espécie de parasita,
infestando e matando a terra onde ele inevitavelmente viveria
para sempre. Considerando que eu vivi a maior parte de
minha vida entre os humanos, como humana, não via as
coisas da mesma maneira e me recusava a me desfazer dessa
parte de minha vida. Eu não poderia pisar nas pessoas que
me trouxeram para onde estou hoje. Além de que, eles eram
meus amigos.
Sam olhou para mim por sobre os ombros, franzindo o
cenho.
— Cala a boca — bravejei com um fervor repentino,
sentindo sua necessidade de expressar seu desdém, mais
uma vez.
Por mais que tentasse esconder meus pensamentos
dele, às vezes era difícil, principalmente quando eu sonhava
acordada. Você não consegue controlar o curso natural dos
seus pensamentos; é como tentar capturar o vento, possível,
mas difícil. Mas tinha suas vantagens é claro e eu sabia que
um jeito de provocar Sam era encher meus pensamentos com
Scott e Sarah, os humanos que ele parecia desprezar com o
ódio mais profundo.
— Se você os odeia tanto, então você não precisa vir. E,
para falar a verdade, eu preferia que você o não fizesse, você
não é nada além de um estorvo, e o jeito como você parece 30
um cadáver assusta as pessoas. — Arrebitei o nariz e cruzei
os braços com uma teimosa independência.
Ele riu.
— Sinto muito, docinho, não posso fazer isso, eu tenho
que ir. É meu trabalho. — Senti o encrenqueiro nele começar
a aparecer.
Rosnei para ele. — Eu te odeio, Sam.
Ele deu uma risadinha.
— Eu sei, mas isso não é problema meu, culpe o seu
namoradinho.
Um grito repentino cresceu em meus pulmões e eu o
deixei sair, tremendo de ódio, mas ele nem piscou.
— Só vá embora daqui!
Ele se encolheu e saiu do cômodo, minha cólera se
recusando a se mostrar completamente por mais que eu
fizesse careta para ele.
Meu rosto estava queimando e eu olhei para cima,
amaldiçoando Edgar por prender Sam a mim por toda a
eternidade. Esse era, sem dúvida, algum plano sádico que ele
havia tramado. Mas por outro lado, eu duvidava que ele
houvesse planejado morrer.
Joguei-me no sofá e olhei para a pintura. O morno livro
estava ao meu lado e eu pus a mão em sua capa, permitindo
que a sensação acalmasse minha fúria. Eu precisava
encontrar o gato, mais que tudo. Eu sabia que havia alguma
coisa ali, alguma coisa que ele possuía e que me ajudaria a ir
adiante, e para Edgar.
31
Havia ainda a intimidante questão do quarto de Edgar,
onde eu acreditava que estivesse o grande prêmio da
informação. Mesmo que fosse difícil, minha mente desejava
saber o que havia lá. Eu odiava o desconhecido, mas ao
mesmo tempo, aquele mistério liberava deliciosos litros de
adrenalina por meu sangue. Eu estava viciada na emoção, de
coração e alma.
Outro plano interessante era voltar para a escola e não
só ver Scott e Sarah, mas entrar no laboratório dele. Eu já
tinha pensado que a essa altura eles já haviam conseguido
um novo professor, mas o que eles fizeram com as coisas
dele? Fazia sentido que Edgar houvesse se planejado para
uma coisa assim, e nunca permitiria que um humano se
intrometesse em sua vida e descobrisse o sobre o nosso
mundo secreto de maneira tão descuidada.
Se eu fosse repentinamente reaparecer no campus, de
qualquer maneira, precisaria de um plano. Talvez eu dissesse
que Edgar e eu fugimos para nos casarmos e ele morreu em
um terrível acidente de carro, e eu havia voltado para
recolher seus pertences. Ponderei a ideia, percebendo que
ficariam grandes lacunas, mas ia dar conta. Ri comigo
mesma, me perguntando o que todos pensariam do
escândalo, especialmente a Enfermeira Dee.
Um estranho sentimento de liberação me tomou e meu
coração se encheu de calor e propósito. Choramingar e
espernear não estavam me levando a lugar algum e eu me
sentia aliviada por ter um plano, uma solução. Tinha que
existir uma maneira de encontrar Edgar, mesmo na morte.
Afinal, Sam estava morto, mas ele ainda podia ficar aqui
entre nós e esse fato me dava esperança. Acreditando ou não
em espíritos, vida após a morte e reencarnação, esse mundo
já havia me surpreendido infinitas vezes, e eu esperava que
ainda houvesse surpresas para trás que pudessem me ajudar
a me salvar. 32
Era difícil me sentir tão ligada a alguém que eu sentia
que mal conhecia. Mesmo que nossa vida juntos fosse
impossivelmente longa, minha mente apenas me
disponibilizava a experiência real daqueles maravilhosos
poucos meses. Levei minha mão até o pescoço, lembrando-me
de como havia me sentido quando Edgar me tocou. A maneira
como seu hálito traçava minha pele havia sido intoxicante e
doce, e a sensação do seu corpo contra o meu já não era nada
mais que um calafrio. A eletricidade de nossa conexão era
inegável, predeterminada, mas ainda assim doce, e tão real.
Eu desejava saber mais sobre Edgar. Reconstruí sua
imagem em minha mente até que ela ficou tão rica, que eu
quase podia sentir ele aqui. Seu rosto ainda estava fresco em
minha consciência, e olhar para seu semblante na pintura
me garantia a habilidade de ver seu rosto todos os dias,
lembrando-me dos meus objetivos e propósitos. Não havia
mais imagens dele em nenhum lugar da casa então essa era
minha única referência, e para meu profundo desgosto, ela
incluía Matthew.
Apesar de meus objetivos, havia outras coisas que
precisavam ser feitas também. Primeiro, eu tinha que
aprender como voar novamente. Se eu conseguisse me
lembrar da sensação, tenho certeza de que conseguiria
realizar essa proeza. Edgar me disse para imaginar que eu
não tinha peso como uma pena ao vento. Então, toda noite,
deitada no sofá tentando me distrair dos irritantes ruídos
humanos que Sam fazia em sua tentativa de aparentar estar
dormindo, eu me imaginava voando como uma nuvem sem
peso sobre a terra, como Edgar havia feito com tão pouco
esforço.
Sam poderia ser útil com isso, mas eu não tinha
certeza de quanto tempo eu suportaria seu sarcasmo
enquanto ele me ensinasse. Apesar de meu profundo ódio por 33
ele, ele era meu amigo, e uma parte de mim tinha que amá-lo
por isso, não importando o que. No fim do dia, eu estava pelo
menos aliviada de não estar sozinha, e assim, eu sentia que
poderia sobreviver ao tempo e lidar com a tristeza que agora
eu tinha que enfrentar.
O sofá afundou quando puxei o livro para meu colo,
abraçando-o como se fosse um ursinho de pelúcia. A
exaustão dominou meus membros como uma com uma negra
onda de escuridão enquanto eu preenchia a lista de coisas a
fazer em minha mente e descansava minha cabeça no braço
do sofá, o couro gemendo dolorosamente sob meu peso.
Inspirei até que não coubesse mais ar em meus pulmões, o
rico aroma dos travesseiros enlaçado com o doce cheiro de
mel, de Edgar. Prendi as lágrimas, dizendo a mim mesmo que
não choraria mais. Era tempo de ser forte, e minha vez de
sofrer como ele sofreu por mim por tanto tempo.
Capítulo 3
POR FAVOR, APERTEM OS CINTOS.
34
— Só não dê uma de espertinho comigo, entendeu? —
Eu coloquei minhas mãos em Sam enquanto ele segurava nas
minhas costelas, seu corpo perto das minhas costas,
posicionado para nos levantar no ar.
— Ah! — Sam reclamou. — Assim não tem graça. Você
não gosta de ser apalpada por um anjo?
Eu tentei beliscar a mão dele o mais forte que eu pude,
mas ele riu com a minha débil tentativa.
— Nos seus sonhos.
Uma risada se acumulou em sua garganta.
— Pode apostar nisso. — Sua voz estava cheia de falsa
presunção e sarcasmo.
Eu sabia que ele não possuía coração para aqueles
tipos de pensamentos, mas mesmo assim, ele gostava de
provocar o meu nível de privacidade. Ele sempre se
esgueirava pela sala de estar enquanto eu estava tentando
me vestir. Eu sabia que ele não sentia nada, mas ele gostava
da forma divertida que me fazia gritar quando ele me pegava
desprevenida. Estava claro que eu precisava engolir o meu
orgulho e me mudar de volta para o meu quarto nesse
momento, mas voar vinha primeiro na minha lista de
prioridades.
— Tudo bem Sam, eu estou pronta. — Eu soltei o ar e
apertei meus punhos em uma bola apertada e determinada.
Eu o senti apertar os meus lados um pouquinho mais
forte enquanto ele se agachava para mais perto do chão, suas
asas gigantescas se espalharam ao nosso redor, abanando o
ar com pouco esforço e de alguma forma encontrando espaço. 35
Eu já havia voado com ele antes, mas desta vez eu tinha algo
em que me concentrar. O chão abaixo de mim começou a
derreter enquanto nos levantávamos em direção ao céu e
meus pés deixavam a terra. Enquanto nós circulávamos pelo
ar quente, Sam nos virou para a esquerda enquanto
voávamos diretamente para cima, meu olhar preso no céu
acima, o observando como se eu estivesse totalmente
sozinha, como se o Sam não estivesse ali para me ajudar.
Fechando os meus olhos, o vento varreu meus cabelos
enquanto nós começávamos a voar para frente. Meu corpo
parado pareceu pesado em seu aperto e eu lutei para obter
uma sensação mental de leveza. Eu me contorci em suas
mãos ao mesmo tempo em que eu senti o seu aperto ficar
mais forte e ele começar a mergulhar de volta a terra. Isso
não estava funcionando, e não havia jeito que eu pudesse me
sentir leve quando era tão óbvio que eu não era. Sam estava
vasculhando meus pensamentos. Ele sabia o quanto eu
estava lutando com isso e ele sentiu que era hora de nos
reorganizarmos, e tentar isso de uma nova maneira.
Ele pairou como um beija-flor acima do campo antes de
nos colocar, a ambos, no chão. Ele era cheio de uma
surpreendente elegância e isso sempre me pegava
desprevenida quando meus pés tocavam na grama, como se
não estivesse sendo esperado. Tudo estava nascendo ao
nosso redor e eu me lembrei do quanto eu amava estar ao ar
livre. Sam soltou o seu aperto e eu esfreguei as minhas
costelas enquanto eu tentava esquentá-las novamente depois
de seu toque gelado.
— Então o que eu estou fazendo de errado? — Eu me
virei para encará-lo.
Suas asas estavam posicionadas atrás dele em um
alongamento suave. — Você está pensando como uma
humana. Eu continuo ouvindo uma pequena voz na sua
cabeça dizendo que é errado para você estar lá em cima e é 36
contra a natureza voar.
Eu acenei concordando.
— É, eu sei, só que é difícil negar a maneira como eu
fui criada. Eu me sinto como uma criança criada por lobos,
eu apenas não consigo agir e pensar da maneira que eu
deveria. — Eu chutei a grama na minha frente enquanto ela
tentava alcançar as minhas pernas.
— Sim, bem, pare de agir como uma humana
desprezível então. — Ele sorriu afetadamente, vendo a
oportunidade de tirar sarro de mim.
— Eles não são desprezíveis, Sam, você já foi um deles
uma vez também. — Eu cruzei meus braços e dei as costas
para ele.
— Graças a Deus que eu não sou mais. — Ele fungou.
Eu soltei o ar enquanto eu tentava controlar os meus
nervos e evitar uma briga. Eu não estava a fim de entrar em
outro debate sobre Humano x Imortal. Meus braços estavam
cruzados no meu peito tão fortemente que começaram a suar.
O doce vento acolhedor soprou sobre nós enquanto
estávamos de pé no campo, sozinhos. Eu senti a raiva
diminuir dentro de mim, enquanto eu vasculhava as árvores,
escutando o seu suave roçar. Devia haver algum tipo de
memória reprimida para isso, algum tipo de gatilho que
poderia me fazer lembrar-me da minha vida antiga.
Não havia dúvida nesse momento que eu era imortal, e
que eu podia voar. Eu revirei meus olhos e olhei para os
meus pés, batendo meus dedos contra o meu lado e
mordendo meu lábio. Uma ideia repentina e vingativa passou
pela minha cabeça e eu me virei para encarar Sam, a
genialidade dela dando partida nos meus sentidos. Seu rosto
já estava contorcido em uma expressão dolorida de 37
preocupação e eu o olhei, desafiando seu instinto de me
proteger.
— Oh, vamos lá, Sam, eu acho que é a melhor maneira.
— Em dois passos rápidos eu fechei a distância entre nós
enquanto eu andava em direção a ele.
Ele estava balançando sua cabeça de um jeito que me
dizia que ele iria concordar, mas não me ajudaria de forma
nenhuma. Seus olhos brilharam como o sol refletido, como
água em sua pele fria.
— Você perdeu o juízo, essa é a ideia mais idiota que
eu já ouvi. — Ele colocou seus braços para o ar em uma
maneira defensiva.
— Não, vamos lá. Você sabe que é uma boa ideia, além
disso, você poderia me salvar se você tiver que fazer. — Meus
lábios se curvaram nas beiradas.
Ele fungou.
— Eu não posso acreditar que você está considerando
pular de um penhasco, Elle. Pense sobre o que você vai fazer
por um momento, é insano! Eu duvido que você esteja no seu
juízo perfeito. — Ele se virou para longe de mim, sem vontade
de me dar alguma esperança ou apoio.
— Sam. — Eu disse o nome dele como se eu estivesse
implorando por dinheiro emprestado.
Ele inclinou sua cabeça para trás e se virou para me
encarar, seu rosto confuso.
— Tipo, me falaram que você era teimosa, mas não
louca.
Eu o olhei com raiva enquanto passava empurrando 38
seu ombro e andei com passos rápidos na direção da catarata
onde eu havia encontrado Sam pela primeira vez, apesar de
eu não saber disso naquela época. Ele seguiu como uma
nuvem negra atrás de mim, e eu sorri, satisfeita pelo fato de
que eu o havia forçado a me ajudar.
— Se você morrer, pelo menos eu não terei que te
proteger mais, então eu acho que esse é o lado bom. — Ele
riu enquanto os seus pés laceravam a grama, deixando uma
trilha óbvia da nossa existência atrás dele.
— Se eu morrer, eu não terei que te escutar nunca
mais também, então é ganhar ou ganhar dos dois lados. —
Eu respondi. — Você sabe tão bem quanto eu que me jogar
de um penhasco suscitará a memória de voar de uma
maneira puramente instintiva. É uma ideia engenhosa e sã,
admita. — Eu olhei sobre o meu ombro para ele.
Sam deu de ombros.
— Tanto faz, eu ainda acho que você é uma suicida
idiota. — Ele levantou suas sobrancelhas enquanto tentava
mostrar a minha irracionalidade.
Resmungando, eu peguei um ritmo enquanto
caminhava para as árvores. Meu caminhar era muito mais
rápido do que havia sido tempos atrás, quando eu era uma
humana depressiva e letárgica, e a uma hora, mais ou
menos, que eu havia demorado para chegar no penhasco da
primeira vez, eu facilmente consegui fazer em trinta minutos.
— Ainda achando que isso é uma boa ideia? — Sam
perguntou enquanto ficávamos na ponta dos pés na beirada
do penhasco. Eu costumava ter medo de altura, mas agora
fazia sentido não ter. Sam era inevitavelmente minha rede de
segurança, como usar um escudo ou uma corda de bungee
jump.
39
Eu olhei por sobre a beirada onde a água batia para
dentro do lago, irrompendo para cima em direção a nós e se
pulverizando em nossos rostos. O nevoeiro quase congelou
quando tocou a pele de Sam, pingando em pingentes de seus
cotovelos. Eu suspirei, a queda era de cerca de mil e
quinhentos metros, facilmente, e eu estava contente de que
fosse perfeita para isso.
— É uma ideia ótima. — Eu finalmente respondi,
lutando para impedir o tom trêmulo da minha voz. Meu
coração estava muito rápido e eu sabia que Sam podia ouvi-
lo. Ele me observou com um olhar sábio enquanto eu me
inclinava na beirada, fazendo um plano na sua cabeça para
me salvar se ele tivesse que fazer. A queda d’água a minha
esquerda fazia um desfiladeiro entre as rochas, o barulho da
corredeira era tão alto que eu me encontrei gritando por
causa do som.
Sam sorriu forçadamente enquanto colocava uma mão
nas minhas costas e me deslocou para frente em uma
tentativa de me empurrar, somente para me pegar com sua
outra mão antes de eu cair. Meu coração pulou na minha
garganta e eu tentei gritar através dos meus pulmões
engasgados. Ele começou a rolar de rir, apontando para mim
de uma maneira jocosa.
— Eu só queria que você tivesse o efeito completo. —
Ele gritou, seu rosto torcido em uma máscara de presunção e
sua risada presa na garganta.
— Eu te odeio, Sam. Não é engraçado! − Eu estreitei
meus olhos para ele, brava por tê-lo deixado sair ileso dessa.
Apesar de aquele segundo ter golpeado terror na minha alma,
também havia me preparado.
Eu olhei sobre a beirada enquanto ele continuava a rir.
Tentei não pensar enquanto deixava meu corpo se inclinar 40
para frente e pulei com toda a minha força, vendo com uma
fascinação doentia quando a risada do Sam se transformou
em medo e dever de proteção. O sorriso afetado que eu lancei
a ele enquanto eu começava a cair das rochas se derreteu
quando eu me agarrei na realidade do que eu estava fazendo.
Lutando para me concentrar, eu fechei os meus olhos o
mais forte que eu pude, esquecendo meus medos e me
concentrando na minha tarefa. Eu pensei sobre a ausência de
terra embaixo de mim enquanto eu tentava esquecer o fato
que estava caindo, possivelmente para a minha morte. A
tentativa de suicídio era a confirmação da minha
determinação nessa vida, minha determinação em chegar um
passo mais perto de Edgar. Eu respirei em suaves ondas,
lutando para não pensar no fato de que eu apenas tinha
alguns segundos para fazer isso funcionar.
O vento estava chicoteando meus braços enquanto eu
os segurava ao meu lado como asas. Eu nunca havia me
sentido assim na minha vida, e apesar de eu ter apenas
alguns momentos para aproveitar, eu não podia negar estar
totalmente livre. Todos os meus medos desapareceram e eu
achei mais fácil que nunca me concentrar enquanto a
adrenalina me consumia.
Minha mente agora encontrou uma claridade imensa,
como se estivesse se preparando para a doce libertação da
morte. Meus olhos se recusaram a abrir e eu franzi minha
sobrancelha com uma profunda concentração, sentindo uma
faísca de algo emergir na minha alma como uma luz brilhante
vindo de uma memória distante. Eu me concentrei na luz,
vendo as fagulhas começarem a brilhar nas beiradas, ficando
cada vez mais brilhante.
Como uma onda repentina, meu corpo se tornou leve e
eu senti os cantos da minha boca se transformarem em um
sorriso. Enquanto eu movia meus braços eu encontrei o ar ao 41
meu redor grosso, como se fosse água, e eu podia nadar nele.
Um instinto esquecido me incitou a me mover como um bebê
em uma piscina, eu comecei a dar braçadas, maravilhada
pelo jeito que parecia me empurrar pelo grosso ar, agora algo
que eu podia agarrar.
A sensação de cair que eu havia sentido antes havia me
deixado completamente, e o nervoso no meu estômago agora
parecia como se eu estivesse sobre os mares, boiando sobre
as ondas enquanto minha barriga subia e descia, controlando
a minha respiração nos pulmões enquanto eu inalava e
exalava em ondas controladas. Devagar, mas com um
interesse intrigado, eu abri meus olhos. Para a minha
surpresa, eu estava longe, sobre o lago, e não mais caindo.
Eu dei uma olhada para a esquerda onde eu encontrei a
expressão maravilhada de Sam enquanto ele voava ao meu
lado.
O olhar em seus olhos não tinha preço, como um
cachorro treinado e eu tirei um momento para absorver a
minha doce vitória antes que o meu olhar caísse para a
aparência inegável dos meus braços agora em formato de
asas e do meu corpo com penas. Eu perdi o fôlego,
percebendo que eu realmente havia conseguido e eu era
finalmente um corvo.
A maravilha das penas brancas torrando no sol era
diferente de tudo que eu já tinha visto, ainda mais brancas
do que as de Isabelle, ainda mais acentuadas do que as de
Henry. Em minha mente eu me senti sorrindo, apesar do fato
de que eu poderia agora sentir que a minha boca tinha sido
substituída por um bico afiado desconfortável.
— Uau! − Eu tentei gritar para o Sam, mas ao invés
disso eu escutei um afiado "caw" — e eu estava arrependida,
lembrando do fato de que eu não podia falar.
42
Sam riu. — É, isso foi engraçado. — Ele gritou de volta.
Ah cala a boca, eu pensei na minha mente. Para a
minha sorte ele podia ler isso, e eu tinha que admitir, fazia as
coisas mais fáceis.
Sam sorriu.
— Isso é louco. Eu nunca soube que você era branca.
Eu meio que esperava que fosse negra, igual ao Edgar. — Ele
gritou.
É, bem, branco é mais feminino. Eu pisquei para ele e
ele sorriu afetadamente.
Era surpreendente o quão fácil voar parecia ser, igual a
andar de bicicleta. Eu comecei a testar minhas habilidades
enquanto mudava a direção das asas, inclinando meu corpo
de um lado para o outro enquanto zig-zagueava através do ar.
A textura grossa parecia confortável, e de alguma forma óbvia
a minha memória agora estava esclarecida. Eu nunca esperei
que isso fosse parecer tão natural, tão fácil.
Eu pensei sobre o dia quando o orfanato visitou o
aquário de Seattle e nós todos aprendemos como fazer
mergulho. Parecia igual, exceto pela liberdade de
equipamentos pesados e máscara. Dando uma respiração
profunda, eu notei o quão claro o ar estava nesta altitude, e o
quão refrescante estava de repente como se nunca tivesse
sido tocado. Por um momento eu podia entender por que Sam
se sentia daquela maneira com os humanos, e eu podia ver
por que ele não queria permitir que esse mundo fosse
destruído.
Agora nós já estávamos sobre a geleira do outro lado do
lago do colégio. Eu virei para a direita, enquanto contornava
em torno do pico, lembrando como eu ansiava poder fazer 43
isso, me perguntando como podia ter ficado alheia à noção na
aula na incubadora. Senti o vento me pegar e me jogar para a
esquerda com um tom mais agudo. No começo eu tentei lutar
contra isso por medo, mas eu logo descobri que eu podia me
manipular me beneficiando da sua forte correnteza.
Meus olhos afiados avistaram a faculdade e eu olhei
Sam com um olhar rebelde de reencontro. Ele me deu um
olhar repreensivo de longe e, acima de mim enquanto eu
reduzia minhas asas e mergulhava em direção ao chão,
ganhando velocidade e testando os meus limites.
— O que você pensa que está fazendo! — Eu escutei ele
gritar atrás de mim.
O que você acha? Eu respondi, nem ligando para o fato
de que eu estava do tamanho de um pássaro raro e mítico.
Eu escutei um grunhido distinto enquanto ele se
percebeu impotente em me impedir enquanto eu mergulhava
em direção aos prédios e ele se inclinou e se virou, com medo
de ser visto pelos estudantes que se moviam como pequenos
peões pela trilha de cascalho.
Com um esforço desengonçado, eu me posicionei para
baixo em direção ao teto do viveiro, sentindo minhas garras
rasparem na madeira com uma surpreendente facilidade,
como se estivesse cortando a cobertura de uma vila de bolo
de gengibre. Eu lutei para reunir minhas asas enquanto eu
atirava uma olhada ao redor do complexo, procurando por
um rosto familiar.
Eu trabalhei para me lembrar do horário do dia e
descobri que, baseado na posição do sol acima da cabeça, era
aproximadamente meio dia. Com uma pressa ansiosa, liberei
meu domínio sobre o telhado e levantei-me ao céu onde me 44
abanava em direção à lanchonete, pensando que não
demoraria muito até que Sam viesse me caçar. Minhas asas
se inclinaram em direção às janelas enquanto elas me
rodaram para baixo para a parte traseira da estrutura, onde
pousei em uma pilha de crocantes agulhas de pinheiro que
estavam amontoadas no chão, ao lado da janela do espaço
aberto do refeitório. Meu corpo saltou e eu me esforcei para a
direita, encontrando as minhas asas que não eram tão úteis
como as mãos.
Nós sempre sentávamos no canto do fundo, e meus
olhos afiados pegaram a visão de uma mesa familiar
enquanto me apoiava no vidro. Meu coração pulou excitado
enquanto eu via a silhueta de duas pessoas sentadas lá,
trancadas em uma conversa vívida. Com um lento empenho,
eu pulei para mais perto do vidro, tentando não me revelar
apesar de saber que alguma hora, alguém iria notar.
Quando me aproximei, eu gentilmente coloquei meu
bico contra a vidraça, olhando entre as grades para os rostos
que estavam ali. Meu peito arfava com o reconhecimento
repentino, assim que olhei para os rostos familiares de Sarah
e Scott, meu peito fumegou com o carinho de um amigo.
Esquecendo o meu estado de pássaro, eu comecei a bater na
janela com o meu bico, tentando chamar sua atenção de uma
maneira que era ao mesmo tempo louca, e frenética.
Eles pararam o que estavam fazendo, enquanto os dois
olhavam para mim, os rostos cheios de surpresa súbita
quando a Sarah trouxe uma mão à boca e engasgou,
apontando para mim com a outra. Agora que eu tinha a sua
atenção, encontrei-me constrangida quando me dei conta de
quão estranha eu parecia para eles e comecei a desejar que
eu pudesse de algum modo dizer-lhes quem era eu. Dei-lhes
uma piscada rápida enquanto eu me afastava, olhando para o
edifício e ao céu, fingindo estar surpresa, como se eu tivesse
batido na janela como um pássaro normal faria. Como 45
previsto, eles sorriram e acenaram como idiotas, achando que
eu era bonitinha.
Eu sentia tanta falta deles, mas somente agora eu
percebi o quão importante era voltar, eu precisava deles. O
resto do refeitório começou a perceber, e eu percebi que era
hora de ir embora antes de eu conseguir causar muita
comoção e revelar minha existência para todos. Caindo para
trás, minhas asas bateram pelo grosso ar em braçadas sem
jeito enquanto eu me levantava para cima e longe da vista.
Cortando para a esquerda ao redor do pinheiro, meu
corpo manobrou em direção ao laboratório de pássaros onde
eu me empoleirei no telhado, minhas garras se afundando
dentro da cobertura de metal. Meus olhos famintos
examinaram as dependências, encontrando-as vazias agora
que todos estavam no almoço e eu estava segura para
descansar. Eu suspirei com um coração pesado, lembrando
tudo sobre o ano passado e o turbilhão em que minha vida
havia se transformado.
Uma porta embaixo de mim bateu e eu pulei para trás.
Eu escutei passos pesados amassarem a trilha de cascalho
abaixo de mim e eu dei um passo para frente, me
posicionando na beirada. Inclinando-me para frente, eu olhei
para baixo para a trilha para ver quem havia criado uma
interrupção tão poderosa. Enquanto meus olhos se
trancavam na figura, minha mente se tornou assombrada e
carregada. Eu pisquei forte, inclinando a minha cabeça para
poder ver melhor para a figura impossível que agora
esbravejava em direção ao refeitório, cada movimento dele era
exatamente o mesmo, e sua presença misteriosa mandava
arrepios pela minha espinha.
Edgar? O quê? Meu corpo começou a tremer do estouro
de adrenalina, medo balançando o meu interior tanto com
amor como com traição. 46
De repente, eu senti meu corpo dar um solavanco
enquanto eu era arrancada do telhado.
— Você vem comigo. — Eu reconheci a voz de Sam
quando suas mãos frias se apertaram ao meu redor,
surpreendendo-me enquanto meu coração parecia novamente
humano e eu era agora embalada em seu abraço gelado.
— Não, Sam! — Eu gritei, me contorcendo em seus
braços, meus pés e mãos se debatendo na minha tentativa de
fugir, de fazer ele me soltar. — Me leve de volta, era o Edgar!
— Eu tentei me soltar no meio do ar, agora confiante que eu
sabia voar.
— Você está vendo coisas, Elly, aquele não era ele. Eu
prometo. — Sua voz estava embargada com mentiras.
— Sim, era, Sam! Era ele, eu reconheceria o seu rosto
em qualquer lugar! — Eu senti as lágrimas começarem a
descer pelas minhas bochechas enquanto eu lutava para
conseguir dar mais uma olhada, mesmo que agora, nós
estivéssemos do outro lado do lago, gentilmente pairando em
direção ao prado.
— Elly, por favor. — Ele sussurrou enquanto nós
mergulhávamos em direção à clareira.
Minha mente ferveu com ódio e confusão. Por que ele
estava me mantendo longe dele dessa forma, por que ele não
havia me contado? Se Edgar estava de volta neste tempo
todo, por que ele não veio me encontrar, como ele não pôde
sentir a minha presença inegável? As perguntas corriam pela
minha mente, mais rápidas do que eu podia racionalizá-las e
minha cabeça explodiu de dor.
Ele me jogou no chão com uma mão rude, meu corpo 47
tropeçando com o golpe e minha mente hesitando. Eu podia
sentir que as perguntas intensas haviam irritado a mente de
Sam também, sua testa franzida na tentativa de me fazer
parar e me acalmar. Eu estremeci antes de me ajeitar, ficar
de pé como uma louca frenética. Com uma determinação
incessante e pressa eu comecei a correr em direção à
faculdade, mas as mãos geladas de ferro de Sam me
prenderam como algemas ao redor dos meus pulsos, me
parando antes que eu desse um passo, seus pensamentos
antecipando cada movimento meu. Eu lutei contra o seu
confinamento, sentindo minha pele se partindo enquanto a
insanidade tomava conta de qualquer pensamento.
A mão de Sam afundou no meu braço enquanto ele me
arrastava de volta para onde eu havia caído no chão, minha
cabeça agora confusa depois de ter sido batida fortemente
contra a terra. Uma sombra caiu sobre mim assim que Sam
apareceu acima, suas asas formando uma gaiola em volta de
mim, disposto a agarrar-me se eu escolhesse correr
novamente.
— Isso foi para o seu próprio bem, Elly. Eu sinto muito.
— Seus pés estavam ao lado da minha cabeça enquanto a
grama fazia barulho enquanto crescia ao meu redor. Seu
rosto estava preso em um olhar de pedra enquanto seus
olhos âmbar se tornavam frios e determinados.
— Mas Edgar... — Eu resmunguei.
— Não é o Edgar. — Ele disse novamente, frustrando
meus pensamentos antes mesmo que eles tivessem tempo de
serem formados.
Eu estreitei meus olhos na direção dele enquanto eu
me contorcia em uma bola, me sentindo completamente
exposta e triste. Tinha que ser ele, eu o vi. Os cortes nos 48
meus pulsos de seu aperto forte agora sangrava um líquido
quente na terra, as flores bebendo com pressa. Meu corpo
tremeu com o sentimento verdadeiro do momento, a realidade
que não fazia sentido. Minha mente gritou por uma
explicação, berrando angustiada.
— É o holograma dele, Elle. — A resposta de Sam
mandou uma bala oca pelo meu coração enquanto eu me
lembrava dos fatos do último inverno. Ele colocou um pé em
minhas mãos e apertou-as para dentro da terra enquanto eu
olhava para a floresta, minha mente gravitando em direção à
faculdade como um mártir bêbado.
— Você se lembra. Ele o fez no último inverno, e agora
o holograma vai ficar aqui para sempre, como um eco. Não é
real. Ele o criou pensando que ele sempre estaria aqui. É
meramente uma imagem programada. Não pode reagir com
você da mesma forma que Edgar. — Ele pausou, sua voz se
tornando profunda. — Nunca mais.
Minha respiração começou a ficar lenta enquanto meu
coração afundava. Só ver o rosto de Edgar desse jeito, tão
vivo, havia feito meu coração ter uma síncope. Eu não ligava
se era uma imagem programada, eu precisava vê-lo. Eu me
senti como um viciado em drogas, a falta dele estava me
fazendo ficar louca e me fazendo querer a sua presença
sintética com um sentimento irracional de vazio.
Sam se abaixou e agarrou meus ombros, me
levantando de pé. Eu me senti envergonhada pela minha
repentina reação animalesca e eu olhei nos olhos de Sam.
Com todos os sentimentos me embargando, eu havia quase
me esquecido da tarefa de voar e o fato de que eu havia
dominado. Eu observei o rosto de Sam com um empenho
cuidadoso, encontrando ali uma faísca de algo em seus olhos,
algo que lembrava pena, mas também entendimento.
49
— Sinto tanto que tenha acontecido desse jeito, Elle.
Eu deveria ter te contado antes. — Ele sorriu torto então, e
eu dei a ele uma expressão confusa, achando que o sorriso
não tinha lugar na nossa atual conversa. — Mas eu acho que
antes de discutirmos mais, nós deveríamos te arrumar
algumas roupas.
Horrorizada, eu olhei para o meu corpo, percebendo
que eu estava completamente nua exceto pelas minhas
roupas íntimas em frangalhos.
— Como... — Edgar havia sido capaz de ter mantido as
suas roupas, por que não consegui? Eu olhei para os meus
pulsos manchados de sangue, os cortes agora quase curados.
— Parece que nós ainda temos alguns detalhes para
ajustar. — Sam riu. — Não que eu não esteja ok com isso, no
entanto... — Ele apontou na minha direção.
Eu o encarei enquanto eu tentava colocar os meus
braços em volta do meu peito e das minhas coxas para me
cobrir.
— Vamos só ir embora, ok? — Eu estourei, mancando
pelo meio do campo onde eu me senti tanto cansada quanto
envergonhada.
Capítulo 4
OBSESSÃO
50
— Você poderia, por favor, ficar em algum outro lugar?
— Àquela altura eu estava implorando.
— Mas eu queria conversar com você, você sabe que eu
não me importo. Sua nudez explícita não me afeta, embora eu
saiba que você bem que gostaria que afetasse. — Sam deu
uma piscadela, os braços cruzados sobre o peito enquanto ele
se encostava à parede da sala de estar.
Um nó de raiva se formou em minha garganta.
— É sério, Sam, por favor. Se você não for, eu vou até
lá e dou um tapa na cara de Edgar, se eu puder.
Sam riu ao recuar em direção ao corredor. Um suspiro
cortante escapou de meus lábios cansados enquanto eu me
contorcia para entrar no jeans e passei uma blusa aquecida
pela cabeça. Isabelle estava largada no sofá onde suas asas
estavam desajeitadamente espalhadas e sua cabeça
repousava sobre uma pilha de roupas sujas. Eu não via
Henry há algumas horas e imaginei se ele também havia sido
surpreendido pelo holograma de Edgar.
Meu corpo se encolheu quando minha mente voltou ao
momento em que me sentei empoleirada no telhado, vendo o
fantasma de meu verdadeiro amor vagando como se nada
houvesse mudado. O nó de raiva em minha garganta só fez
crescer quando pensei nas mentiras de Sam. Ele sabia o
quanto Edgar era importante para mim, por que ele não me
contou?
— Eu não contei porque temia que você fosse ficar
obcecada com isso, ao invés de superá-lo e seguir em frente.
— A voz de Sam ecoou do corredor. — Honestamente, Elle, é
só um holograma, não é nem tão impressionante. 51
Eu rosnei baixinho.
— A decisão não era sua, Sam. Eu não preciso de
proteção mental também. Apreciaria se você apenas se
assegurasse de que eu não morra.
Ele caminhou preguiçosamente de volta à sala, onde se
espremeu ao lado de Isabelle no sofá.
— O que quer que você diga, mas não espere mais
conselhos de mim.
— Ótimo, pois não preciso. Nunca precisei. — Comecei
a arrumar a bagunça de minhas roupas e livros do chão em
meu caminho de fúria destrutiva. — E se eu quiser ir até lá
para ver meus amigos humanos, eu vou. Você não é meu
carcereiro. — Enfiei uma pilha de roupas sujas em um cesto
no canto.
— Tanto faz. Amante de humanos. — Ele resmungou,
parecendo bastante satisfeito consigo mesmo.
Eu parei então, uma pilha de livros em minha mão.
— O que aconteceu com você, afinal? Eu sei que você já
foi humano, então qual é o seu problema? Por que você os
odeia tanto?
Pressionei os livros para dentro da prateleira,
implorando para que eles se encaixassem.
Sua boca afundou em uma linha solene e ele deu de
ombros, sem palavras. Eu o pegara com a guarda baixa, sua
inabilidade de esconder a dor deixando-o exposto e indefeso.
Senti-me um pouco culpada ao olhá-lo, sentindo que meu 52
comentário não havia sido melhor que seus golpes
frequentemente dolorosos e eu jamais quis fazer aquilo a
alguém. Enxotei Isabelle do sofá e ela me respondeu com um
olhar letárgico. Lentamente trazendo meu corpo para perto de
Sam, concentrei-me em seu rosto, achando que ele era um
artigo raro.
— O que aconteceu? — Insisti com uma mente
cuidadosa, minha raiva agora se desvanecendo em
compreensão.
Era difícil ver Sam tão sem palavras quando ele era
sempre tão espirituoso e rápido. Imaginei que ele me daria
uma resposta afiada e repulsiva, não havia esperado que ele
se calasse sobre o assunto. Ele suspirou, erguendo o olhar de
seu colo para os meus olhos. Dei-lhe um pequeno sorriso
enquanto buscava sua mão, sentindo como a pele pegajosa e
fria me fazia estremecer e por hábito comecei a esfregá-la em
minha tentativa de aquecê-la.
— Eu morri. — As palavras eram frias e inexpressivas,
sem o menor traço de sarcasmo. Sua boca ainda era uma
linha reta, o mais próximo que eu já vira de uma carranca. —
Eu morri devido à necessidade humana de violência e ódio. É
por isso que não suporto humanos. Eles destroem as coisas
como se estas não significassem nada. A vida é tão especial,
tão incrível. Existe tantas coisas que valem a pena
experimentar, coisas que eu nunca experimentarei. — Ele
apertou minha mão na dele e eu contive a urgência de puxar
a mão que já começava a ficar dormente por causa do frio,
impressionada pela quantidade de sentimento que se
derramava dele.
— Por que isso aconteceu? — Incentivei, achando que
valia a pena tirar vantagem desse momento raro.
— Você quer saber por que eu salvei a garota? — Ele 53
sorriu torto.
— Sim. — Edgar me dissera que ele morrera
protegendo uma menina, mas eu nunca soube a história
toda, então nunca entendi seu significado.
Ele riu. — Porque, Elle, você deve saber melhor do que
ninguém. Eu a amava. Eu a amava muito. Embora eu só
tivesse vinte anos, não importava. Quando você encontra sua
alma gêmea, você sabe.
Sorri, enquanto as lágrimas brotavam em meus olhos à
menção de almas gêmeas. Eu era uma boba romântica,
especialmente agora.
Ele suspirou. — Eu já tinha decidido que ficaríamos
juntos para sempre, que ela era especial. Depois de todos os
meus erros no amor e na vida, era evidente que ela era
diferente, alguém que poderia me transformar numa pessoa
melhor. — Seus olhos fitavam os meus com uma luz que eu
jamais vira, como se as lágrimas se houvessem transformado
em gelo, embaçando seus olhos como lentes de contato.
— Ela ainda está viva, sabia? — Ele apertou ainda mais
minha mão.
— Ela está? — Arfei, surpreendida por quanta restrição
e dor ele vinha passando.
— É. Ela ainda pensa em mim também, mas eu não
posso permitir que ela me veja. Você pode imaginar o quanto
isso seria chocante?
Assenti, notando que o pensamento era algo que eu já
havia literalmente experimentado e percebendo que, se eu
não soubesse das coisas mágicas que podiam existir, ele teria 54
me levado à loucura, como já quase acontecera. Sam sorriu,
lendo meus pensamentos.
— Eu não morri há muito tempo, sabe. Foi só em 1962.
Então ela tem sessenta e seis. — Um ar de frustração cruzou
seu rosto. — Eu morri por ela, desisti de tudo, e sabe o que
ela fez? Seguiu em frente três meses depois. Casou-se em um
ano, e dois anos depois, teve filhos.
Meu coração se partiu com a ideia.
— Isso é horrível!
Ele assentiu. — Mas não importa o quanto eu tente
odiá-la, não consigo. Ela é apenas humana, afinal de contas,
fraca e impressionável. — Ele balançou a cabeça como se
discordasse de si mesmo. — Não acho que ela o ama
realmente, não do jeito que ela me amava, ou pelo menos é o
que ela acredita. Ela se pergunta como teria sido a vida se eu
não tivesse morrido. Se nós tivéssemos uma vida agora, ao
invés dela e o tal James. — Ele bufou. — Mas é como era
para ser, este era nosso destino.
Eu não disse nada quando ele fez uma pausa.
— Houve uma coisa bem engraçada, e eu gostaria que
você tivesse estado lá. — Ele ergueu uma sobrancelha e
apontou uma mão pontuda para mim. — Um dia, encontrei
James no bar. Era sua despedida de solteiro e eu o assustei
tanto que ele quase a deixou no altar. Eu queria ter certeza
de que ele era digno de ficar com ela para sempre.
Dei uma risadinha.
— Então, o que você fez?
— Eu o ameacei, naturalmente. Disse que se ele
alguma vez fizesse qualquer coisa a ela, eu o retalharia. A
princípio ele não acreditou em mim, mas então eu peguei seu
garfo e o esmaguei em um único movimento. Eu o vi suar,
seus pensamentos mortalmente aterrorizados. A partir
daquele momento eu soube que ele estava convencido.
55
Fiz menção de perguntar se James alguma vez contara
a ela sobre esse incidente, mas ele se adiantou.
— É claro que eu também avisei que se ele alguma vez
falasse a ela sobre mim, eu teria que matá-lo. O coitado ficou
tão nervoso que começou a vomitar! Pobre sujeito. O bom
disso é que, desde então, ele tem sido bom com ela a maior
parte do tempo.
— A maior parte? O que isso significa? — Engoli em
seco enquanto meus olhos aumentavam de tamanho com
assombro.
Uma expressão desdenhosa e vingativa surgiu em sua
solene máscara anterior.
— Em um Natal, ele não deu a ela um presente. Eu
sabia disso, é claro, porque estava sempre ouvindo os
pensamentos deles, não que eu precisasse, pois ela estava
gritando razoavelmente alto. Para encurtar a estória, eu o
encontrei uma noite perto da lixeira, quando ele estava
levando embora as caixas de presente de Natal.
Desnecessário dizer, ele acabou 'tropeçando no meio fio e
quebrando a perna', e agora ele acredita em mim, até
comprou um diamante para ela no dia seguinte.
Eu rolei de rir.
— Sam isso foi horrível! — Falei, lutando para
recuperar o fôlego. — E então, o que aconteceu? Por que você
não a vê mais?
Ele deu de ombros.
— Não era saudável. Os deuses são maus por fazerem 56
isso comigo, mas eu realmente não tive escolha. Eu não
poderia deixa-la ser baleada porque então estaríamos no
mesmo lugar, mas com papéis diferentes para desempenhar,
então estou feliz por eu estar aqui, e não ela. Ela sempre será
a linda garota de sempre, mesmo quando eu a vir em sua
velhice, tudo o que verei será o rosto que um dia amei. — Ele
suspirou e olhou para mim pedindo desculpas. — Mas é por
isso que mantive segredo sobre o holograma de Edgar. Não é
saudável ficar obcecada por uma coisa que não lhe pertence
mais.
Uma expiração pesada escapou de meus lábios e eu
olhei para meu colo.
— Mas qual é o mal nisso? Realmente, não é como se
eu pudesse feri-lo. Eu não posso nem tocá-lo. O holograma
não é nada mais que uma nuvem de ar. — Minha tentativa de
justificar a situação não estava me fazendo parecer nem um
pouco menos demente.
Ele deu de ombros novamente.
— Depende de você, mas não diga que não avisei. —
Ele me deu um soco de brincadeira no ombro. — Eu só não
quero passar minhas horas de vigília seguindo você enquanto
você perde tempo perseguindo um fantasma.
Ambos começamos a rir com inquietação. Eu podia ver
o quanto era desconfortável para Sam falar de seu verdadeiro
amor, e imaginei poder entender.
— Qual era o nome dela? — Perguntei.
Ele sorriu como se recordasse algo maravilhoso.
— Jill.
Observei seus olhos ficarem vidrados, e pela primeira 57
vez eu o vi expressar amor. Sentir tristeza por ele não era a
resposta, ele sabia o que havia feito, e honestamente, ele não
parecia tão triste por si mesmo. Suspirei ao observá-lo, me fez
bem saber que ele possuía um ponto fraco, algo que eu
poderia usar contra ele, embora isso soasse horrível.
Finalmente havíamos nos conectado, e pela primeira
vez eu não via Sam como o bruto ríspido que ele sempre
parecera. Houvera um coração uma vez, e amor, e agora
também amizade. Eu podia entender porque Edgar escolheu
Sam, ele era totalmente complicado, e então ele sabia que eu
gostaria disso.
Encostei-me ao sofá, ouvindo o constante e abafado
tique-taque dos relógios de Edgar dentro de meu peito. O
lembrete constante de que o tempo se escoava era
ameaçador, ainda que fosse diferente quando você sabia que
nunca iria acabar, embora fosse pior ao mesmo tempo. Se eu
nunca encontrasse Edgar, não tinha certeza de que seria
capaz de ficar aqui pela eternidade, mas eu tinha que ter
certeza de ter seguido cada pista possível. Eu mantinha a
adaga da luta numa gaveta da cozinha. Eu sabia que se
alguma vez fosse escolher deixar essa vida, eu o faria do
mesmo jeito que Edgar o fizera, ao lado dele para sempre.
Sam ainda estava encarando o espaço, exceto por seus
olhos que disparavam pela sala, seu rosto como pedra.
Endireitei-me e olhei para ele com uma ponta de alarme.
Alguma coisa no modo como suas sobrancelhas estavam
unidas me lembrou daquele dia em Londres, quando ele
estava à caça de Matthew.
— O que...?
Sam me interrompeu, pondo sua mão fria sobre minha
boca tão rápido que não tive tempo de objetar. Ele me lançou 58
um olhar penetrante e senti meus batimentos cardíacos se
acelerarem.
— Você ouviu isso? — Ele sussurrou, quase num
sibilar.
Sua mão ainda estava apertada sobre minha boca,
então balancei a cabeça em desafio.
— Shhh... Escute. — Ele falou suavemente.
Empurrei a mão dele, aborrecida, antes de me
concentrar. Meus pensamentos se clarearam e visualizei
uma sala vazia em minha cabeça, permitindo que qualquer
som reverberasse facilmente. Ele estava certo, havia
definitivamente algo ali. Era como a sirene de um caminhão
de bombeiros, exceto pelo fato de não uivar em ondas
constantes. Ouvi aquele som com uma nítida intensidade,
encurralando-o em minha mente e saboreando cada bocado
de sua fala arrastada.
Meus olhos se abriram e olhei para Sam.
— O que é isso? — Sussurrei.
Sam saiu de sua concentração.
— Acho... — Ele fez uma pausa, como se rolasse o
sabor do som em sua boca. — Acho que é um gato.
— Um o quê? — Engasguei, tentando novamente sentir
o som, mas nossas vozes haviam cortado meus sentidos e eu
perdi o momento.
Ele assentiu.
— É, definitivamente é um gato. Agora posso ouvi-lo 59
respirar, também. Meu coração bateu forte quando Sam
olhou para mim com um sorrisinho no rosto. — Bem, eu
posso não ouvi-lo agora, não com esse som. — Ele apontou
para onde meu coração agora batia surdamente contra meu
peito.
Encarei-o furiosamente.
— Mas de onde está vindo? De fora?
O sorriso de Sam afundou em uma linha fina. — Não.
— Ele fez uma pausa, seus olhos examinando os meus como
se ainda estivesse procurando a localização do som. — Do
andar de cima.
— O quê? — Sibilei, minhas bochechas corando e meus
membros se arrepiando. Não que eu estivesse assustada com
o que ele acabara de me contar, eram as circunstâncias
daquilo estar ali. A última vez em que eu vira o gato, Edgar
morrera e aquilo era certamente algo a se ponderar agora.
Aquele tipo de ansiedade faria o sangue de qualquer um
engrossar de medo e emoção.
Os braços de Sam realizavam pequenos movimentos
silenciosos de um lado a outro do sofá, como se temesse
espantar o gato, embora estivéssemos longe demais dele para
que o animal nos notasse. Olhei freneticamente ao redor da
sala, sem ter realmente certeza se deveria agarrar alguma
coisa afiada, ou algo com que o gato pudesse brincar.
— Venha, vamos lá. — Sam levantou-se e me ofereceu
a mão.
Agarrei-a e ele me ergueu, minha mente girando. Não
apenas não queria ver o gato, eu também não queria ver
nenhum daqueles cômodos. Senti minha pele mudar de um
vermelho corado brilhante para um branco pálido e austero 60
quando o súbito fluxo de emoção forçada tomou conta de
minha alma, ferindo minha garganta dolorosamente.
— Você pode fazer isso, Elle. Agora não é a hora de
tornar-se uma chorona. — Sam apertou minha mão,
afastando meus receios.
Ele estava certo. Eu estava sendo covarde, uma
hipócrita. Eu dissera a mim mesma que lutaria, e agora
estava aqui, contemplando a ideia de fugir? Respirei fundo e
deixei um suspiro profundo escapar de meus lábios enquanto
abandonava a mão de Sam.
Ele sorriu para mim.
— Muito bem, vamos fazer isso.
O olhar em seu rosto era como o de alguém a quem
fora oferecido um carro grátis. Ele estava apreciando a
aventura e o possível perigo. Por um momento imaginei se ele
era mesmo um Anjo da Guarda ou se, na realidade, ele era
um Arcanjo em pele de cordeiro.
Cerrei os punhos enquanto Sam esperava por mim.
Tomando a iniciativa, passei por ele e marchei pelo corredor.
Se eu morresse, quem se importaria? Era para isso que eu
estava aqui, essa era minha hora. Além disso, e se o gato
acabasse por se revelar doce? Então eu teria um novo animal
de estimação.
Sam deu uma risadinha.
— Sério, animal de estimação, Elle? Você é tão
mulherzinha.
— Cale a boca. — Sibilei por sobre o ombro, estreitando
minhas sobrancelhas. 61
Parei ao pé das escadas enquanto o candelabro de
cristal flutuava acima de mim produzindo tinidos agudos em
meus sentidos acentuados. O gato lamentou novamente e
meu coração deu um salto. Meus olhos se dirigiram para a
esquerda, em direção ao meu quarto, e não pude evitar me
sentir pelo menos um pouco aliviada. Eu não estava nem um
pouco animada de ter de entrar no quarto de Edgar pela
primeira vez durante uma caçada. Eu planejava passar mais
tempo com isso, agir tranquilamente, como ele merecia.
Sam caminhava ao meu lado.
— Qual é, é só um gato. Isto vai ser fácil, e ele está
assustado, seu coraçãozinho está disparado.
Olhei encabulada para ele, antes de afastar o olhar
piedoso de meu rosto e avançar. Eu grunhia a cada passo da
subida, meus punhos fechados e prontos. Sentia Sam atrás
de mim e isso me fazia sentir corajosa, mas também que não
havia volta, ele era como um muro.
Meus pés descalços se posicionaram no topo da escada
como uma bailarina, enquanto o gato soltava novamente seu
lamento, segurando o som e finalizando-o com um tom mais
alto de agonia. Franzi os lábios e me forcei para frente em
direção às portas. Meu passo era lento ao me aproximar,
minhas mãos estendidas diante de mim como se estivessem
prontas para agarrar qualquer coisa que pudesse atacar.
Meus últimos passos foram tão silenciosos e lentos que até
mesmo a poeira permanecia assentada no piso, meus dedos
agora a alguns centímetros da entrada.
Observei a luz que vinha por debaixo da porta e meu
coração deu um salto ao perceber uma pequena sombra
caminhando por trás dela. O gato agia como se estivesse
aprisionado, mas eu sabia que não devia cair nessa. Parecia 62
mais provável que o propósito do gato era me fazer ir buscá-
lo, particularmente nesse quarto.
Respirando profundamente, ergui minhas mãos e levei
ambas às maçanetas. Baixando-as para o ouro frio, expirei e
pressionei para baixo, jogando o peso das portas abertas,
enquanto a luz do quarto se derramava sobre mim e para o
corredor. Cobri meus olhos contra a luminosidade levando
meu braço à testa e estremecendo enquanto recuava, meu
coração parava, e minha mente disparava.
Capítulo 5
ISSO FOI FÁCIL
63
Eu tossia enquanto o crepúsculo aparecia e abanava a
minha mão na frente de meu rosto, permitindo o quarto vago
revelasse seus segredos recém-descobertos. Quando meu
olhar se ajustou eu olhei o quarto freneticamente, mas não
havia nada ali. Pequenas partículas de poeira rodopiavam em
nuvens espessas através dos raios da janela enquanto eu
caminhava para dentro, perturbando o ambiente que tinha se
acostumado com o silêncio e a solidão.
Em pequenos passos cuidadosos, rolei meus pés pelo
piso de madeira fria, lentamente, colocando um pé na frente
do outro. Eu olhei para trás para verificar se o gato tinha se
escondido atrás da porta, aliviada que nada estava a espreita
lá. Meus olhos seguiram o piso até eles encontrarem a parede
longe de mim no canto direito, meus olhos pestanejaram
sobre cada pintura familiar.
Eu rastejei para o meio do cômodo, onde eu parei,
virando-me para ver Sam em pé, me olhando com inquietação
e intensidade. Com um silêncio ágil, eu dobrei meus joelhos e
olhei sob a cadeira de seda azul e veludo perto da minha
cama com delicadeza e mente aberta, mas não vi nada lá. Eu
estiquei a cabeça e olhei debaixo da cobertura de ouro do
biombo também, encontrando nada mais do que uma pilha
de roupas ainda emboladas no chão.
Eu soltei o ar de meus pulmões com desânimo, me
virando para olhar para Sam, enquanto encolhia meus
ombros na falta do que fazer. Seu olhar era ainda forte, como
encarar duas moedas de cobre novas. Ele ainda podia sentir
a presença do gato, então para ele a ameaça ainda não tinha
acabado. Olhei para trás em direção a minha cama,
desviando os olhos para as cobertas em minha tentativa de
proteger-me do sofrimento inevitável das duas impressões
gêmeas.
64
Ele deve estar debaixo da cama, eu pensei. Sam fez um
som suave concordando da porta. Como eu fazia em casa
com os gatos da vizinhança, eu estalei a minha língua,
chamando o gato de seu esconderijo e o convidando a se
mostrar. Escutei o silêncio por um momento, não
encontrando nada para justificar onde agora ele se escondia.
Quando eu fiz um movimento para chamar mais uma vez, eu
ouvi um suave arranhar sob a cama e meu coração disparou,
meus pés pularam para trás e longe porque minha mente
imaginou a possibilidade de que ele poderia facilmente pular
em minhas pernas.
Enquanto eu continuava a andar para trás, meus olhos
se fixaram na grossa seda da saia da cama, de onde um gato
branco trotou para fora da larga moldura, diretamente na
minha direção. A maneira pela qual ele se aproximava me
assustou, a sua confiança facilmente confundida com a de
um ataque. Houve uma súbita comoção quando Sam saltou
da porta, pegando o gato em seu caminho e levando-o para o
outro lado da sala onde ele o segurou com os braços
estirados, como se ele fosse perigoso. Eu mal tive tempo para
pensar antes de perceber o que Sam tinha feito e em uma
fração de segundo o gato tinha ido.
— Sam! — Eu gritei. — Ele estava vindo para mim! Eu
duvidava que ele fosse perigoso, você provavelmente o deixou
morrendo de medo.
O gato estava realmente muito assustado, e eu notei
que suas garras tinham rasgado profundamente a pele
branca de Sam, seus pés balançando impotentemente, uma
vez que olhava o chão desesperadamente. Ele não sangrou,
provavelmente nem sentiu, mas ele o empurrou para longe
dele e vi como sua pele foi rasgada sob o aperto de velcro do
gato.
O gato chiou quando ele tentou colocá-lo no chão, se 65
debatendo e arranhando. Sam riu ao ver a indefesa criatura
em seus braços.
— É, está bem, é seguro. Só precisava ter certeza, você
sabe, checar se tinha pulgas. — E com isso, ele o deixou cair
no chão, os pés do gato absorvendo a queda como
minibombas hidráulicas. Ele balançou seu pelo eriçado e
afastou-se de Sam, um olhar atento fixo em seus
movimentos.
Eu olhei para Sam antes de fazer o sonzinho em minha
língua e abaixar o meu corpo ao nível do chão. O gato branco
com olhos bisbilhoteiros desviou o olhar para longe de Sam,
onde os nossos olhos finalmente se encontraram mostrando
gratidão e correu em minha direção, seus olhos agora
relaxados e felizes. Ele esfregou-se contra a minha perna com
charme descuidado, sua garganta em erupção em um rolo de
pesados ronronares.
— Ah, e é uma menina. — Sam acrescentou. — Imunda
pequena felina. — Ele estava batendo com o pé, fazendo com
que a gata ficasse nervosa com cada toque que fazia tremer o
chão.
Eu acariciava a cabeça dela e ela pulava a cada toque,
parecendo um furão em suas patas traseiras. Eu ri,
maravilhada com seu pelo totalmente branco e olhos brancos.
Assim como eu tinha pensado no inverno passado, eu nunca
tinha visto uma gata como ela em minha vida e eu sabia que
era porque ela era especial, como Sam e eu.
— Você pode ouvir tudo em que ela está pensando? —
Eu olhei para Sam, a esperança enchendo os olhos.
Ele apertou os lábios com o pensamento, os olhos fixos
na cabeça dela.
— Não... — Ele fez uma pausa, a reserva em sua voz 66
sugerindo mais. — Há algo, porém, mas eu realmente não
posso dizer o que, é muito intrigante, entretanto. Ele estava
concordando com a cabeça agora, como um filósofo em um
profundo pensamento.
Eu continuei a acariciá-la, seu pelo se derramando
sobre mim.
— Você tem algo a dizer, garota? — Eu sorri para ela e
ela bateu a cabeça na minha direção, miando em sons altos,
como se esperasse falar como um humano.
— Tinha que ser uma menina, ouça aquelas cordas
vocais, tão altas e exigentes. — O rosto de Sam estava
perplexo e distorcido.
— Você só está com ciúmes. — Eu sorri para Sam, um
olhar de menina travessa na minha cara.
— Ciúmes de uma gata? — Ele gargalhou. —
Dificilmente. Essa coisa nem sequer pode voar, e seu corpo é
como pudim, estou surpreso que eu não a espremi até a
morte naquele momento.
Eu a levantei e a segurei em meus braços. Ela se
ajeitou, se abraçando em minhas mãos de uma forma
surpreendentemente doce. Todo o meu medo se dissipou e
todas as ideias que eu tinha formulado ao longo dos meses de
pensamento e perguntas descansaram naquela que eu sentia
que era a mais provável, ela era inofensiva.
Suas garras permaneceram gentilmente retraídas e
seus olhos brilhavam pra mim quando eles começaram a cair
no sono. Era incrível como o olhar dela era branco, quase
vazio exceto pelas fendas negras das suas pupilas. No
momento em que ela se virou em direção ao sol que estava
fluindo através da janela, vi como eles brilhavam como
diamantes. 67
Ela estava tão unida a mim, suas patas envolvidas em
meus braços e sacudindo o rabo alegremente. Olhei para
Sam, que tinha um olhar de horror e repulsa em seu rosto.
Ele tinha sido relativamente ok com Isabelle e Henry, mas a
maneira como ele olhou para a gata, me dizia que ele nunca
seria tão gentil com ela.
— Que nome deveríamos dar a ela? — Eu perguntei
com um sorriso vingativo, achando que ele iria odiar esta
tarefa trivial.
Sam quebrou o olhar.
— Eu não estou nomeando essa coisa. Você não sabe,
uma vez que você dá nome a eles é quase impossível deixá-los
num abrigo, você fica muito apegado.
Eu ri.
— Você realmente acha que um abrigo não vai perceber
a maneira como ela olha, vamos Sam. Eu não vou me livrar
dela.
Sam bufou.
— Pense nisso Elle, você nem sequer conhece a coisa, e
se ela retalhar sua garganta no meio da noite ou algo assim?
— Sério, Sam, você acha que um arranhão de gato vai
me matar? Eu me curo em meros segundos! Isso é um
absurdo. — Eu olhei novamente para o gato. — E, além disso,
esta é minha casa, assim você vai ter que se conformar.
— É, bem, nós vamos ver isso. Alguma vez você já
ouviu falar da febre por arranhão de gato? — Ele retrucou.
Eu olhei pra ele.
— Você realmente acha que só porque algumas
músicas de sucesso 1 dizem que eu vou enlouquecer e 68
eventualmente morrer, eu preciso me preocupar?
Sua próxima observação ficou presa na garganta
quando ele começou a rir.
Olhei ao redor da sala, então, lembrando-me de tudo.
Estar aqui não era tão ruim quanto eu pensava e me sentia
tola por ter me trancado para fora. Isso era quem eu era, e eu
tinha esquecido o quanto isso é importante. Lentamente, me
levantei e caminhei em direção às pinturas enquanto a gata
se aninhava de volta em meus braços, os olhos indecisos,
dentro e fora da consciência, em seu insaciável amor felino
por vinte horas de sono por dia.
A pintura que me retratava atrás do piano era mais
fácil de reconhecer agora que eu estava inteira novamente, ou
pelo menos meio inteira. Olhei para o jeito que eu sorria,
finalmente vendo que o sorriso era realmente meu. Eu
respirei profundamente e a gata ecoou em meus braços. Ela
precisava de um nome, algo bonito, mas encontrar o nome
certo levaria tempo.
Sam riu de mim, se divertindo com meus pensamentos
afetuosos sobre meu novo animal de estimação. Eu olhei para
baixo até ela e acariciei meu dedo sobre o alto de sua cabeça.
1
Referência à música Cat Scratch Fever, do cantor americano Ted Nugent
— Eu me pergunto o que é que você sabe. — Eu
sussurrei para ela, cuidadosamente para não acordá-la.
Uma rude fungada foi substituída pela risada de Sam.
— Tudo bem, isso é revoltante, estou dando o fora
daqui. 69
Virei-me e dei um sorriso torto para ele, contente com o
fato de que eu finalmente tinha conseguido fazê-lo ficar
zangado, ou talvez ele estivesse com ciúmes. Ele olhou para
mim com ressentimento enquanto deslizava para a porta e
saiu do quarto, sem se preocupar em fechar a porta atrás
dele. Meus músculos relaxaram, pois a saída de Sam
permitiu uma sensação de alívio percorrer por mim.
— Como eu estava dizendo gatinha, você e eu temos
muito a discutir. — A gata novamente ronronou em seu sono
enquanto eu andava de volta para a minha cama. Um
pequeno suspiro escapou de meus pulmões enquanto eu
tentava evidentemente me controlar por causa do lugar onde
eu tinha deitado pela última vez e eu simplesmente alisei as
cobertas, fazendo sumir a memória para a qual eu não estava
preparada para sentir falta.
Eu a rolei para fora de meus braços em um delicado
movimento e em um ninho abaixo. No momento em que seu
corpo rolou sobre a seda ela abriu os olhos em objeção. Eu ri
enquanto ela fazia seu caminho de volta para mim sobre as
cobertas, qualquer coisa que ela pudesse fazer para estar
perto de mim, como se ela estivesse mais do que aliviada por
eu finalmente estar aqui. Como sua força de vida.
Algo sobre ela me fazia sentir quente, quente como a
forma como um abraço se parece, ou como Edgar era. Eu a
coloquei novamente no meu travesseiro, a lufada de perfume
de Edgar explodiu em minhas narinas, emitindo doces
arrepios por toda minha espinha. Embora a gata tenha sido
uma boa distração, eu não tinha esquecido o que tinha visto
hoje cedo na faculdade. Primeira coisa amanhã, planejei
voltar lá embaixo, mas desta vez como eu mesma. Ver Sarah
e Scott tinha sido maravilhosamente inebriante, apenas a
verdade de seus rostos familiares foi o suficiente para saber
que tudo é ainda real. Eu não me importava se tudo o que 70
eles gostavam de fazer era jogar Monopólio; agora eu percebia
a importância de apenas tê-los por aí, porque você nunca
sabe quando poderia desaparecer para sempre.
Não disposta a mover a gata de novo, eu me aninhei
ainda mais embaixo das cobertas. Meus olhos estavam
cansados e meu corpo estava agora morto com a exaustão
após a emoção acentuada de encontrar a gata branca. Foi tão
surreal, ela tinha literalmente caído no meu colo com pouco
esforço. Meus olhos vibraram fechados quando a luz da
janela começava a desaparecer das minhas pupilas.
Quando comecei a cochilar, os sonhos invadiram
minha cabeça em uma variedade de cores. Eu estava em um
campo, mas não na campina em que eu estava acostumada.
A luz do céu não era a luz solar normal e lançava sobre todas
as plantas um espectro de lâmpadas fluorescentes escuras.
Olhei ao redor, mas ninguém estava lá, embora,
estranhamente, não me sentia sozinha também. Quando eu
olhei para a luz acima fiquei surpresa ao ver que o céu tinha
sido substituído por um manto de fogo líquido.
Engoli em seco enquanto os raios lançados pela massa
incandescente faziam a minha pele brilhar como uma luz
brilhante, como se eu fosse feita de pura pérola. Eu ouvi uma
voz feminina chamar o meu nome em algum lugar a minha
direita e me virei para olhar. Lá eu vi duas portas com arcos,
cada uma delas inscrita com algum tipo de linguagem que eu
não reconhecia como humana, e também não como corvo.
Eu estreitei o olhar enquanto captava as estranhas
inscrições.
Eu lentamente mudei o meu peso enquanto caminhava
na direção das portas, a minha respiração constante e leve. O
ar estava preenchido com a pulsação sutil do céu enfurecido
e sobrecarregado e eu ouvia a voz dura, suspendendo o meu 71
pescoço quando me aproximei. Meus olhos dispararam entre
as duas aberturas, sem ter certeza de qual escolher, quando
a voz retornou, mas desta vez era a de Edgar.
Chocada, eu dei um passo para trás, balançando a
minha cabeça enquanto o ar em torno de mim girava nas
profundezas do sonho. Eu respirei profundamente e gritei
para ele, escutando como se o grito ecoasse de volta para
mim através das camadas. Eu esperei pacientemente por
qualquer resposta quando ouvi seu distinto sussurro, dizendo
meu nome novamente. Eu estava agora a apenas alguns
metros de distância dos arcos enquanto que eu continuava a
ouvir. Foi então que Edgar disse o meu nome pela terceira
vez, a sua voz ecoando do arco à direita.
De repente, alguém agarrou a minha mão por trás e eu
me virei para olhar, mas antes que eu pudesse ver quem era,
toda a cena se dissipou em torno de mim com o medo que
agora se espalhava pela minha cabeça. Tentei tudo que pude
para me manter no sonho, mas havia pouco o que eu poderia
fazer quando meu coração palpitava na dor e o mundo
retornou.
******
Acordei de repente, o quarto agora escuro e as velas
queimavam quando eu abri meus olhos. Assustada, eu olhei
em volta, esquecendo que eu tinha adormecido na minha
própria cama, no meu próprio quarto. Minha respiração
estava pesada enquanto eu continuava a captar o sonho,
pedindo que ele ficasse e me agarrando com a esperança de
Edgar.
Eu estava tão acostumada a acordar na sala de estar
que a estranha percepção do conforto me pegou de surpresa.
Estava escuro agora, e eu fiz uma careta para a hora,
desejando não ter dormido porque agora me encontrava 72
desperta e ansiosa.
A massa quente ao meu lado se moveu e eu coloquei a
minha mão para baixo para acariciá-la. Eu esperava o pelo
macio da gata, mas fiquei surpresa quando senti penas, ao
invés. Eu olhei para baixo e vi Isabelle aninhada ao meu lado,
seus olhos fechados e seu rosto sorridente. Juntando minhas
sobrancelhas, meu olhar frenético percorreu o quarto
enquanto eu procurava pela gata. Torci meu corpo quando
Isabelle começou a se contorcer acordando, quando ela se
levantou também.
Finalmente, o meu olhar caiu na cadeira ao lado da
cama. A gata estava sobre a almofada, os olhos brilhando
com ódio para Isabelle e seu corpo rígido. O alto barulho ao
meu lado me fez olhar para Isabelle de novo em surpresa. Era
evidente agora que havido tido uma espécie de batalha entre
elas, uma briga sobre quem dormiria mais próximo de mim
enquanto eu estava fora. Dei de ombros e sorri, sabendo que
eu estava um pouco decepcionada que eu tinha perdido isso.
— Sim, foi bom. — Sam entrou na sala então. — Eu
estava torcendo pela bola de penas. É pelo menos bom ver
que ela tem algo que eu possa admirar. Suas habilidades de
luta foram muito impressionantes. — Ele olhou para o gato e
bufou. — Esta aqui é uma covarde, porém. Estou surpreso
que tenha durado na selva por tanto tempo.
— Sam, isto é sádico.
— O quê? Se seu pássaro mata a gata imunda, pelo
menos não será minha culpa. — Ele deu de ombros.
A gata deixou escapar um grito de raiva quando
inclinou a cabeça para trás em agonia emocional, o seu olhar
afiado enquanto seus olhos encaravam Sam. Sam deu uma
risada. A gata, em seguida, pulou da cadeira, suas patas 73
batendo contra o chão onde ela caiu com uma pancada
sólida. Eu vi como ela trotou para as portas e para fora, sua
cauda balançando. Em seguida eu virei meu olhar para Sam,
batendo o pé com aborrecimento, irritado que ele tivesse a
assustado.
Com uma pressa ansiosa, eu pulei da cama na minha
tentativa de seguir a gata, mas depois parei quando ela parou
e olhou para mim em vez disso. Parecia que ela estava
esperando por mim e segui-la fosse tudo o que ela tinha em
mente. De repente, consciente de que eu a estava fazendo
esperar, eu corri para o lado dela, onde ela, em seguida,
trotou para frente e para a escada, a cabeça continuando a
olhar para mim, para ter certeza que eu a estava seguindo.
Sua cauda balançava enquanto ela pulava um degrau de
cada vez, manobrando sua descida como uma expert.
Os degraus frios de mármore pareciam acolhedores
embaixo de meus pés enquanto eu me esforçava para
acompanhar. Ela parou no final, enquanto eu descia os
últimos degraus, seu rabo levantado na espera. Quando eu a
encontrei de novo ela trotou para a biblioteca onde ela pulou
no sofá. Eu ofegava atrás dela enquanto ela colocava uma
pata na capa do livro de ouro que eu tinha deixado lá no sofá
de couro.
Eu andei até ela com uma curiosa e lenta precaução,
meus olhos examinando os dela com compreensão.
— Você quer me mostrar alguma coisa?
Ela concordou quando eu me abaixei e peguei o livro
debaixo de sua pata. Eu ri quando ela se enrolou no local
quente deixado pelo livro como se estivesse ficando
confortável para ouvir uma história. Eu me abaixei sobre a
almofada ao lado dela enquanto eu abria o livro, passando as
páginas até chegar ao final.
74
Como eu tinha imaginado, havia uma nova página e eu
rapidamente olhei a imagem gravada enquanto ela
literalmente se desenhava diante de mim como se ainda não
estivesse pronta para exibição. Eu observei maravilhada
enquanto profundas linhas pretas passavam ao longo do
papel, se torcendo em formas reconhecíveis. Eu me
impressionei com o ato, encontrando uma nova descoberta do
meu mundo.
A imagem que se formava diante de mim em um tecer
delicado era de um gato e um corvo branco. Eles se sentavam
em um campo, seus olhares vidrados como se estivesse
falando sem palavras. A expressão no rosto do gato se
assemelhava a um sorriso, o corvo também possuía um olhar
de felicidade em seus olhos.
Olhei para a gata, enquanto observava a página com
uma calma paciência, como se não achasse a magia não
surpreendente.
— Você fez isso acontecer? — Perguntei-lhe
suavemente.
Ela olhou para mim, as pupilas de seus olhos mais
estreitas e o rosto bastante solene.
— Você fez, não é? É você quem continua mudando
isso. — Eu vi as pupilas dilatadas e, em seguida, meus olhos
caíram de volta para a imagem. — Somos nós? Eu apontei
para as duas figuras que a tinta continuava a espalhar como
se fosse uma doença.
A gata concordou novamente, seus bigodes se
sacudindo tanto por concordar quanto por estar feliz.
Eu ri. 75
— É incrível! — Foi então que as palavras começaram a
se formar no espaço pequeno na parte inferior da página e eu
li em voz alta enquanto apareciam sobre o papel.
Quando finalmente se encontraram, se reconheceram e o
futuro estava certo.
Eu pressionei minhas sobrancelhas juntas em
confusão. De acordo com o livro eu conhecia a gata, mas não
podia fazer a minha memória me lembrar dela. Olhei de novo
para baixo para seu pelo macio e branco, colocando minha
mão em suas costas e fechando os olhos. Quem é você?
Minha mente sussurrou, mas nada sussurrou de volta.
— Eu gostaria de saber quem você é, eu quero ajudar.
— Meus olhos se abriram quando eu olhei profundamente em
seus olhos e suas pupilas tornaram-se fendas apertadas, seu
corpo agora desanimado com minha falta de memória
enquanto as suas costas arqueavam.
Ela sentou-se e caminhou em minha direção onde ela
se enrolou no meu colo, um suave ronronar vinha de seu
peito quando ela me consolou pelo meu equívoco em seu
coração, em sua identidade.
— Eu sinto muito garota, eu só não conheço você. A
memória da minha vida anterior está perdida. — Senti meu
coração apertado. Eu estava desencorajada por essa
interação e meu peito explodiu com um calor raivoso.
Ela soltou um miado dolorido, como se estivesse
sentindo minha frustração, e concordando que ela também se 76
sentia perdida. Eu coloquei minha mão sobre a sua cabeça e
suspirei com o coração pesado enquanto deixei o livro nos
meus joelhos, a tinta ainda desenhando alguns enfeites do
passado. Ela rolou no meu colo, esfregando o rosto contra a
minha perna com amor, achando que nada mais poderia me
consolar no momento.
Sam enfiou a cabeça dentro da sala.
— Você está com fome? Acho que poderia fazer um
sanduíche de atum.
A gata entusiasmou-se em meu colo, esquecendo o
nosso momento de ligação quando empurrou minhas pernas
e saltou sobre o livro de onde correu para os pés de Sam. Ela
se esfregou contra sua perna, seu corpo arqueando em torno
de seu tornozelo em um show ousado tanto de fome quanto
de emoção. Minha boca se abriu de surpresa, orgulho
preenchendo meu coração quando desejei que eu tivesse a
mesma ousadia.
— Oh, eca! — Sam soltou, chutando a gata longe de
sua perna e para o corredor. Apesar disso, ela foi insistente
em segui-lo, sua vontade de atum demasiadamente forte para
desistir.
Eu ri.
— Você disse a palavra mágica Sam, atum.
Um olhar azedo atravessou o rosto dele e eu poderia
dizer que ele nunca diria a palavra novamente. Ele continuou
o seu caminho para a cozinha onde ela o seguiu, saltando
para trás do bar e sentando-se em um banco com boa
maneira e inocência. Eu a segui e me sentei no segundo
banquinho enquanto Sam enfiava a mão no armário para
pegar uma lata de atum com um grunhido de irritação. 77
Ele vasculhou a gaveta procurando um utensílio que eu
presumi ser o abridor de latas, ele não encontrou nada já que
ele veio de mãos vazias. Eu assisti divertidamente quando ele
colocou uma tigela na frente dele, sem se abalar com o revés
trivial ele arrebentou a lata na meio, a borda afiada do
alumínio muito pouco amassada quando ele a fatiou.
Enquanto o atum caía na tigela, os olhos da gata
dilataram com ganância e obsessão. Eu ri e peguei um
pedaço, colocando-o no balcão à sua frente. Com uma pata
educada e delicada, ela chegou diante a refeição. Agarrou a
carne e segurou-a em sua pata, trazendo-a a boca enquanto
seus enormes caninos afundavam na carne e mastigava em
um show extasiado de cobiça e gula.
Sam olhava com um olhar aborrecido de nojo.
— Isso é ridículo, alimentando um gato sujo à mesa. —
Ele me olhou com um lampejo de inveja atravessando em
seus olhos. — Você está ciente de que eles enterram seu cocô
na sujeira, para não mencionar que andam sobre ele em
primeiro lugar. Se eu fosse você, eu estaria protegendo meus
canteiros de flores.
— Sam, supere isso, ela vai ficar. Além disso, os
canteiros de flores poderiam aproveitar o adubo. — Um
sorriso orgulhoso apareceu no meu rosto, achando minha
conclusão não apenas perfeita, mas verdade.
Ele suspirou, murmurando algo inaudível sob a sua
respiração enquanto ele misturava o atum com um pouco de
maionese e em seguida, espalhou em dois pedaços de pão. —
Aqui. — Ele empurrou o sanduíche na minha direção.
Eu o peguei com um sorriso quando a mão dele tocou
na minha, chocando-me com o seu toque gelado. Desde a 78
nossa conversa sobre sua vida, as coisas entre nós pareciam
estranhas, como se ele tivesse de repente exposto uma
fraqueza e estava fazendo tudo o que podia para compensá-la
sendo forte e fechado.
— Desculpe. — Ele havia notado meu salto, e eu juro
que, se pudesse, estaria vermelho por sua amostra vacilante
de vulnerabilidade.
Capítulo 6
FANTASMA
79
Eu vasculhei o meu guarda-roupa desesperada
enquanto procurava outro par de botas. Eu havia perdido o
último par em algum lugar nas florestas de Londres e eu me
xinguei por ser tão descuidada. Aquelas botas em particular
tinham sido tão incrivelmente confortáveis que eu
dificilmente podia acreditar que eu as havia perdido. Eu
acredito, no entanto, em minha defesa, eu não estava em
condições de lembrar-me de coisas materiais na época e tudo
havia caído na beira de estrada.
Meu coração estava batendo forte com excitação. Hoje
era o dia em que eu veria Edgar, bem, pelo menos o fantasma
dele. Só saber que meus olhos seriam capazes de traçar as
linhas sutis de seu rosto já era bom o bastante para mim. Eu
somente desejava que pudesse tocá-lo também, sentir da
mesma maneira que eu havia me sentido enquanto o amor
inegável preenchia a minha alma.
A gata estava enrolada em um monte de mantas limpas
na minha cama. Sam havia me ajudado a trocar os lençóis
antes que eu caísse no sono ontem à noite, ele havia
concordado que era provavelmente melhor passar por cima
das memórias ruins e começar a seguir em frente. Isabelle
estava com as garras enfiadas no encosto da cadeira de seda.
Seus olhos estavam distorcidos de raiva enquanto ela
observava a gata, seu olhar nunca se desviando. Isabelle
havia passado cada momento que ela podia observando-a,
mentalmente odiando cada movimento da gata.
Com uma sensação esmagadora de alívio eu saí do
closet quando encontrei um par de botas pretas escondidas
atrás de uma grande caixa de chapéu. Eu soltei um
resmungo de triunfo enquanto eu me colocava de pé,
segurando as botas acima da minha cabeça antes de me
sentar na beirada da cama onde eu enfiei meus pés no ar e
coloquei cada bota com entusiasmo. 80
Elas eram feitas de uma camurça macia e pareciam
novas apesar do salto desgastado. Eu passei minha mão pelo
comprimento delas, o cheiro almiscarado do couro
preenchendo minhas narinas. A parte boa era que elas não
eram muito pesadas e fariam a caminhada mais fácil do que
seria com as botas maiores que eu havia comprado quando
me mudei para cá. Era legal também porque era verão e eu
dificilmente estava preparada para usar botas de pele.
Triunfante, eu fiquei de pé, alisando minha camiseta
cinza por cima do meu jeans. Havia uma tiara de cabelo
elástico no meu bolso e eu o passei por cima do meu pescoço
e para cima na minha testa, apertando meu cabelo sedoso
para trás e para longe do meu rosto. Eu me olhei no espelho
antigo, o anjo dourado em volta das beiradas do vidro
começando a lascar. Minha pele estava perfeitamente
radiante, e com um rápido retoque final eu peguei um pouco
de pó compacto que estava em minha penteadeira, salpicando
meu rosto e braços com uma camada leve para esconder o
óbvio efeito de pérola.
Eu bati palma com satisfação, feliz que eu tinha
alcançado uma aparência incrivelmente humana, simples e
normal. Eu andei em direção à porta enquanto Isabelle
saltava da cadeira e deslizava para o meu ombro. A gata
esticou as costas com preguiça antes de saltar para o chão e
trotar para o meu lado. Enquanto eu descia as escadas, Sam
saía da biblioteca onde eu notei que Henry estava
empoleirado no seu ombro e isso me pegou de surpresa. Sam
parecia desconfortável e estranho, como se aceitasse que a
companhia de Henry havia trazido ternura para a alma dele,
algo com o qual ele não sabia como lidar.
— Uau, você está horrível — ele se engasgou, tentando
parecer ofensor.
81
— Credo, obrigada, você realmente conhece o caminho
para o coração de uma garota. — Eu quase não lhe dei
qualquer atenção ao significado do seu comentário, vendo
que ele ainda estava lutando para aceitar sua nova
identidade mais boazinha.
Ele olhou para ambas, Isabelle e a gata.
— Você se parece com um desfile de rua.
Eu apontei para Henry.
— Você parece estar se adaptando ao meu modo de
vida.
Ele grunhiu.
— Que seja, ele só parecia meio solitário. O que, com
você e seus dois bichinhos de estimação favoritos. Você
estava deixando-o para os cachorros. — Ele cruzou os braços
na defensiva.
— Ah tá, eu não estava! Henry tinha a escolha de ficar
comigo se ele quisesse. — Sua observação acusatória havia
acertado um nervo com o meu desejo de amar todas as
coisas.
Sam fungou.
— Sim que seja. Então onde você acha que está indo?
— ele sabia, mas eu podia ver que ele tentaria me impedir.
— Não é da sua conta. — Eu respondi com um duro
bufar.
Sam me olhou com uma mistura de emoções. 82
Eu ergui uma sobrancelha na defensiva.
— Mas você está livre para se juntar a mim, se você
tiver coragem.
Um grunhido de raiva escapou do seu rosto congelado.
Eu podia ver que ele queria ir, mas ele ainda estava lutando
com seu ódio pela vida humana.
— Talvez eu só vá observar.
Eu ri, sabendo que ele havia cedido.
— Bom para você Sam, eu estou feliz de ver você
abraçando a civilização.
Seus olhos se estreitaram quando ele me deu um
tapinha brincalhão no ombro.
Eu sorri para ele e andei em direção à porta. A gata
estava nos meus calcanhares.
— Você fica aqui — eu disse com pesar, enquanto ela
olhava para Isabelle, Isabelle dando à gata um olhar
presunçoso de hierarquia. — Você também Isabelle, você não
pode ir comigo neste passeio. — Ela clicou a língua enquanto
ela agarrava minha orelha.
Sam deu de ombros para si mesmo em uma tentativa
de fazer Henry sair de seu ombro. Era claro que ele ainda não
tinha tido coragem de tocá-lo.
— Você está pronto? — Eu estava disfarçando uma
risada enquanto o Sam continuava a mexer o corpo, mas
Henry se recusava a deixá-lo enquanto ele se equilibrava com 83
as asas.
Eu andei até o Sam com uma careta, tentando pegar
Henry enquanto Sam se recusava a parar de se bater. Eu
peguei as asas de Henry e o puxei da camiseta de Sam
enquanto ele a agarrava com desespero.
— Está tudo bem, Henry. — Eu o embalei nos meus
braços enquanto ele apontava o seu bico na direção de Sam.
Eu dei um beijo na cabeça dele. — Sam não pode ser vencido
em um dia meu querido, tenha paciência.
Henry respirou fundo e expirou enquanto as penas do
seu peito relaxavam com a derrota.
Sam deixou sair mais um arrepio violento como se
estivesse tentando se livrar do cheiro.
— Só vamos logo, ok? — ele me deu um olhar
reprovador.
Eu deixei Henry no chão enquanto ele abria suas asas
e voava para o topo do balaústre da escada. Eu andei até a
porta, mas Sam chegou primeiro, pegando a maçaneta e
abrindo-a para mim.
— Oh, olha quem virou cavalheiro agora — eu
provoquei.
Ele sorriu.
— Depois de você, bruxa.
Uma risada se arrastou na minha garganta quando o
ar quente do verão encontrou o meu rosto. O comentário não
me magoou porque era verdade, e eu estava orgulhosa de ser 84
uma bruxa. Eu o escutei fechar a porta atrás de nós e desci
pelos degraus da frente e para dentro do campo um pouco
hesitante enquanto tudo desaparecia atrás de mim. Eu havia
feito isso tantas vezes agora, parecia normal a minha mansão
desaparecer no ar.
— Então você ficará comigo o tempo todo? Ou você vai
desistir ao avistar o primeiro humano? — Eu olhei de volta
para o Sam enquanto nós pisávamos na grama alta. O jeito
que ela se prendia em mim neste amor sem fim era no
momento quase irritante e eu olhei para frente, para a trilha
de cascalho da Faculdade.
Sam assistia divertido a minha luta com a vegetação.
— Eu provavelmente manterei uma distância segura e
saudável. Deus me livre de pegar uma gripe comum.
Eu ri com o seu absurdo.
— Eles não são tão ruins, Sam, de verdade.
Ele deu de ombros. — Não, suponho que não, mas
prefiro me afastar deles. Há tanta vida, ou melhor, pós-vida,
para viver. Eu não posso desperdiçá-la chorando por alguém
que eu nunca terei.
Eu concordei com minhas sobrancelhas franzidas em
frustração.
— Você está dizendo que eu estou perdendo o meu
tempo?
Eu olhei novamente para o seu rosto, suas asas agora
salientes nos seus lados.
— Talvez — ele considerou a afirmação um pouco mais 85
antes de continuar. — Você deveria apenas seguir em frente.
Algum dia eles morrerão e você estará de volta na estaca zero,
triste pela inevitável perda devido ao ciclo humano de vida. É
uma dor desnecessária que você pode evitar agora, antes que
você fique muito afeiçoada.
— Seguir em frente para onde? Não é como se o mundo
estivesse densamente povoado pela minha espécie, eu tenho
quase cem por cento de certeza que eu sou a última. Além
disso, eu já estou muito afeiçoada. — O ar espesso do calor
do verão estava começando a me dar calor e eu senti uma
gota de suor se formar na minha sobrancelha. — Eu prefiro
viver décadas com amigos enquanto eles ficam velhos do que
passá-las triste, evitando a vida.
Olhei para trás em direção à floresta quando dois
braços frios se prenderam nos meus e me levaram para o céu.
— Eu não estou disposto a marchar até lá como um
humano. — Sam gritou no meu ouvido. — Isso demoraria
horas.
Ele me levou em seus braços com pouco esforço,
prendendo um braço embaixo dos meus joelhos e o outro
atrás nas minhas costas. Eu guinchei, não me sentindo tanto
assustada, mas sim pega de surpresa. Suas asas criavam um
movimento suave de ondulação enquanto cortavam o ar, bem
diferente dos meus rápidos e afiados golpes de corvo e eu
gostei. Seu corpo era como ter um ar condicionado no
máximo enquanto se andava de carro, e eu não podia negar
que essa era uma ideia muito melhor do que andar.
Eu havia pensado em ir voando até a faculdade
sozinha, mas então lembrei que provavelmente terminaria
nua, e isso não me traria nenhum ponto a mais com Sarah.
Eu sabia que ela não estava exatamente animada sobre eu e 86
Scott sermos amigos, mas como ela poderia se importar
realmente sendo que fora eu que havia juntado os dois. Além
disso, eu não tinha controle sobre o modo como Scott olhava
para mim, isso era culpa dele.
Nós planamos em silêncio sobre a extensão da floresta
que separava minha casa da Faculdade, o ar mudava de
morno para quente dependendo dos vários bolsões
atmosféricos pelos quais nós passávamos. Quando as árvores
ficaram mais finas eu pude perceber algumas estruturas de
madeira que estavam espalhadas embaixo, solidamente
posicionadas na margem do lago azul leitoso.
Meu coração acelerou enquanto nos aproximávamos,
percebendo que a viagem havia sido bem mais curta do que
eu esperava. A vantagem de ter um tempo para caminhar até
aqui a pé era que eu teria mais tempo para pensar. Mesmo
que fossem meros trinta minutos com o meu passo
apressado, ainda era tempo para me preparar. Sam apenas
rejeitou qualquer forma de atividade humana, não importa a
razão e evitou meus planos detalhados.
Sam se inclinou fortemente para dentro da floresta em
torno da escola, pousando em um bosque espesso de árvores
e samambaias que nos protegia de quaisquer olhares
curiosos. Ele atingiu o chão da floresta com um toque suave,
como se estivesse sendo abaixado a partir de um fio. Seu
aperto se afrouxou e eu pus meus pés no chão macio de
musgo, nenhuma trilha à vista.
— Você poderia pelo menos ter me colocado em algum
lugar onde eu poderia realmente achar o caminho para sair
— eu resmunguei baixinho, arrumando a minha camiseta por
cima do meu jeans e aquecendo a minha pele onde Sam
havia me segurado.
Ele deu uma respiração funda dramática e eu estreitei 87
meus olhos para ele, sabendo que ele havia utilizado o ato
desnecessário de respirar como um precursor de um
comentário horrendo.
— Só pense bem no que você está fazendo Elly, Edgar
está morto, você não vai tê-lo de volta. Mesmo que você
pudesse, você realmente não deveria estar pensando dessa
forma. Sempre espere o pior da vida.
Eu olhei para ele com nojo.
— Sam, se você não tem nada para ansiar, não tem
nada para esperar. Então por que a vida vale a pena ser
vivida?
Seus olhos cintilaram com uma tristeza melancólica e
sua boca caiu em uma linha reta.
— Eu só estava dizendo que há coisas pelas quais
esperar. Eu só acho que deveriam ser coisas mais realistas,
coisas tangíveis.
Ele estava chegando a algum lugar, mas eu não
entendia direito o que era. Eu não podia imaginar que ele
teria a ousadia de me dizer para seguir em frente, e seguir em
frente para quem? Eu estava repentinamente curiosa sobre o
que ele tinha esperanças e o que o fazia seguir por tanto
tempo.
Até onde eu podia dizer, ele não tinha nada a não ser a
simples tarefa de me proteger. Mas então eu frequentemente
me perguntava o que ele ganhava com isso? O que Edgar
havia dito, para fazê-lo assumir esta tarefa? Certamente era
algo, alguma recompensa quando tudo acabasse. Certamente
ele não vai ter que servir como um anjo para sempre, odiando
a vida que eu vivia, odiando tudo. 88
A boca de Sam se curvou nas beiradas e eu vi o seu
óbvio conhecimento dos meus pensamentos. Se havia uma
coisa que eu estava ansiosa por estar com Scott e Sarah, era
que eles respeitavam a privacidade da minha mente.
— Eu estarei esperando aqui quando você terminar. —
Sam retraiu todo o comprimento de suas asas para as suas
costas e cruzou os braços no peito, acocorando-se para uma
espera tediosa.
— Obrigada, Sam, eu não demorarei muito — eu
gentilmente apertei seu ombro antes de me virar e andar pela
colina através dos arbustos grossos, meus olhos se
concentrando em cada obstrução possível que poderia me
fazer tropeçar e dar a Sam a satisfação de rir de mim.
Quando a floresta começou a diminuir eu fui capaz de
me localizar no layout complexo de edifícios que começaram a
aparecer diante de mim. Eu estava entrando do lado leste,
através do conjunto de estufas. Quando passei os brilhantes
edifícios verdes, olhei através do vidro ondulado, observando
como as plantas não pareciam se incomodar com a minha
presença, incapaz de cheirar ou sentir-me através dos seus
limites de espessura. Eu desci pela trilha enquanto o capim
em torno dele chegou para mim, quase de uma forma que
parecia como se eles estivessem me recebendo de volta.
Não havia estudantes em lugar nenhum e eu olhei para
o céu a fim de descobrir o horário. O sol estava a três quartos
do caminho pelo seu ciclo e eu deduzi que as aulas já
deveriam ter acabado pelo dia. Eu andei mais devagar na
trilha, percebendo que amiga mais horrível eu devo ter sido,
eu nem mesmo sabia onde Scott e Sarah viviam no meu
pouco tempo aqui.
Eu apertei os meus lábios, me sentindo frustrada de 89
repente. Batendo meus dedos contra a minha cintura
enquanto eu pensava, eu finalmente lembrei que eu pelo
menos sabia onde era a enfermaria. A intoxicante
hospitalidade da Srta. Dee poderia ser de ajuda nesse tipo de
situação. Eu sempre a imaginei tendo um prontuário
detalhado de cada estudante, com sua necessidade de
controlar tudo.
Meu passo se acelerou então, a trilha agora se
encaminhando pela grama em direção aos prédios baixos.
Esquivando-me para a passarela que estava coberta pelas
telhas suspensas de cada lado, eu percebi como o som
parecia mudar, agora os meus passos ecoavam no tapume de
madeira que me rodeava.
Era uma sensação estranha escutar o eco dos meus
próprios passos. Desde o último outono, quando eu me
mudei daqui para uma grande extensão de silêncio, eu havia
esquecido como era me escutar andar. Eu estava tão
acostumada com a reverberação da cidade que a extensão
repentina de silêncio havia me chocado. Em Seattle, parecia
como se eu estivesse enjaulada, tão engarrafada entre os
prédios iminentes e o concreto pesado onde nenhum som
podia ser absorvido pela terra suave, o barulho constante na
sua cabeça como um lembrete doloroso da sua existência
insignificante nessa vida.
Era verdade o que Sam havia dito sobre os humanos
destruindo toda a beleza que ainda restava no mundo e agora
eu me encontrei invejando os abraçadores de árvores e
ativistas de animais desta raça. Salvar a beleza deste mundo
era algo que eu não tinha dado valor na minha necessidade
egoísta de me encontrar. Agora era evidente que as coisas
precisavam mudar, e os mistérios do mundo retornavam para
que eles pudessem respirar vida entre a escuridão.
Scott e Sarah não eram humanos vis, mas sim os 90
últimos da sua espécie que ainda entendiam o que significava
o valor da vida, e os privilégios verdadeiros que haviam sido
dados a eles. Eles estavam conscientes de si mesmos e de seu
mundo, conscientes das pegadas que eles haviam deixado e o
poder que eles tinham para mudar isso. Sam estava certo em
odiar outros humanos, os assassinos egoístas, e os
presidentes de corporações gananciosos, todos aqui para
explorarem o que a terra dava de graça para toda a raça
humana.
Eu expirei enquanto balançava a cabeça, percebendo
que tais pensamentos estavam se sobressaindo sobre as
minhas razões para estar aqui. Era hora de me concentrar na
tarefa de agora, ser a Elle que todos lembravam, invisível e
estranha. Meus pés amassaram o cascalho até que por fim eu
alcancei a familiar porta vermelha com a pequena cruz
branca pintada no meio. Eu bati uma vez, escutando
enquanto a voz melodiosa do meu passado reverberava pelo
aço pesado.
— Entre!
Eu empurrei a maçaneta enquanto respirava fundo, me
preparando para o que quer que seja que estivesse à frente.
Enquanto a luz de fora inundava o espaço escuro, a
Srta. Dee virou em sua cadeira. Seu corpo estava mais
rechonchudo do que tinha sido no ano anterior e eu ri
interiormente, lembrando-me das rosquinhas que Sarah e
Scott sempre roubavam dela. Você pensaria que com os
donuts dela sempre acabando, ela teria perdido o peso, mas
esse obviamente não era o caso.
— Oh, Senhorita! — Ela gritou. Eu vi o reconhecimento
do meu rosto inundar seus olhos redondos, suas bochechas
ficando vermelhas como um peru de Ação de Graças.
91
— Oi! — Eu respondi para ela, o sentimento estranho
de verdadeira felicidade cansando minha memória. Nunca me
ocorreu até agora que sempre havia uma batalha para eu
sorrir no meu tempo aqui, tanto mentalmente e fisicamente.
Todo dia na minha vida passada de escuridão havia sido uma
batalha grande, uma luta tão grande para viver.
— Oh meu Deus, é como ver um fantasma, querida! O
que te traz de volta? Outra sessão com o Professor Edgar deu
errado? — Uma risada vingativa ressoou em seu peito como
se ela estivesse pensando para si mesma. — Aqui para
ajustarmos as contas agora, não é?
Eu me encolhi com a referência a Edgar.
— Oh... — Eu pausei para organizar meus
pensamentos. — Bem, eu só voltei para uma visita, vim ver o
Scott sabe... Nada tão dramático.
Ela riu.
— Oh, sua espertinha! Eu sempre soube que você e
Scott tinham algo um pelo outro. Mas eu deveria te avisar, eu
acredito que ele esteja com alguém, e na verdade eu acho que
ele está noivo. — Ela apertou seus lábios em um meio sorriso,
tirando sarro de mim com seus pensamentos amáveis. —
Sara acredito que seja o nome dela. — Suas sobrancelhas
estavam fixas de uma maneira dolorosa, seus óculos meia-
lua vacilando na ponta do seu nariz enquanto ela roía as
unhas, ainda perplexa.
Eu rapidamente revirei meus olhos enquanto ela
desviava o olhar. Scott estava noivo? Eu gemi. Bem, isso foi
rápido. Mas eu acho que alguém como ele tem que se garantir
antes da garota perceber o quão inútil ele realmente é, sem
mencionar inerentemente desajeitado.
— Ah sim, eu sabia disso, é por isso que vim, para 92
parabenizá-lo pelo noivado deles, claro! — Eu estava sendo
um docinho de coco, fazendo o papel de uma amiga
carinhosa.
Ela apertou o queixo na grossa dobra de gordura no
seu pescoço, seu rosto agora afundado nessa massa.
— Oh, você é tão atenciosa. — Ela revestiu seu
comentário com uma piscadela rápida.
Eu pus para dentro o vômito que estava se
acumulando na minha garganta. Ser tão alegre era exaustivo,
sem mencionar que era um show de horrores em tempo
integral.
— Eu só estava curiosa, se você saberia para onde eles
se mudaram?
Ela sorriu enquanto ela se virava para a sua mesa,
puxando um livro de registro rosa enorme da gaveta e
abrindo-o com um barulho, sua fraca mesa agitando-se sob o
peso estrondoso. Eu vacilei, incapaz de parar. A capa do livro
era adornada com corações roxos e arabescos e eu sufoquei
uma risada, descobrindo que minhas suspeitas sobre a lista
detalhada tinham sido confirmadas. Ela abriu-o e arrastou
um dedo gordo para baixo na página, murmurando o nome
de Scott baixinho como se fosse esquecer.
— Oh! — Ela pulou e eu me afastei para trás, meu
corpo ficando pronto para o ataque por puro instinto. — Aqui
está! Sim, sim, chalé doze.
Eu funguei.
— Chalé doze? 93
A Srta. Dee se virou e me deu um assentimento grave.
— Eu suponho que eles o pegaram bem logo após você sair!
Um doce sorriso fez sua saída dolorosa das minhas
bochechas enquanto eu me virava para sair, minha mente
agora sem conseguir aguentar outro momento em sua
presença intoxicante.
— Bem, obrigada Srta. Dee, com certeza a visitarei
novamente! — E com isso eu fiz um lembrete mental de evitar
a vizinhança inteira.
— Oh, isso seria muito amável senhorita. — Ela juntou
suas sobrancelhas e trouxe seu dedo ao queixo pensando. —
Só deixe-me dizer, você está diferente, mais adulta ou algo
assim.
Eu ri discretamente.
— Bem, foi um ano inteiro, e você sabe como nós,
jovens adultos, crescemos, tipo ervas daninhas — eu assobiei
para efeito dramático, jogando com o efeito dos meus talentos
mágicos.
Ela concordou, seu rosto ainda contorcido em
pensamentos.
— Humm. Bem, você conseguiu descobrir algo sobre o
seu braço? Isso ainda me deixa perplexa, eu nunca vi
ninguém se curar tão rápido. — Ela estava tentando fazer a
conversa se estender, mas isso apenas havia me irritado
mais.
Eu virei e dei as costas para ela, sabendo que havia
ainda uma coisa que eu podia distraí-la de cutucar ainda
mais a questão. 94
— Oh, Srta. Dee, deixe-me te dar apenas mais um
abraço antes de ir. É tão bom te ver. — Eu dei um grande
sorriso.
Ela pulou na hora da cadeira, esquecendo sua
pergunta como se tivesse sido apagada do quadro-negro.
— Oh, eu adoraria um! — Ela pulou na minha direção
de uma maneira surpreendentemente leve e me apertou tão
forte, que eu realmente achei que havia quebrado o meu
quadril.
Enquanto eu me afastava, seus olhos brilhavam com
amor e felicidade e eu fui para trás, meu rosto iluminado
ainda a hipnotizando de alegria. Eu dei um pequeno aceno
enquanto fazia um movimento rápido para pegar a maçaneta
da porta para fazer meu caminho escada abaixo, expirando
aliviada enquanto eu me virava e a porta se fechava atrás de
mim. Eu me encostei contra o aço gelado, minha mão ainda
na maçaneta enquanto eu olhava os meus sapatos em
absoluta descrença. Ela estava tão feliz que me fazia doente.
— Com licença.
Eu pulei, colocando minha mão no peito enquanto eu
olhava para cima na direção da voz, meu coração acelerando
com a quebra repentina do silêncio.
— Com licença, oi. — Seus olhos se concentraram nos
meus.
Eu pisquei com força, minha voz se engasgando na
garganta e meu corpo inteiro agora se juntando com calor e
medo.
95
— A Srta. Dee está?
Eu engoli duramente, seus olhos azuis acinzentados
perfurando a minha alma, o fantasma na minha frente ainda
lutava para ser registrado nos meus pensamentos.
— Uh... — eu estava gaguejando fortemente.
Edgar esperou pacientemente, seu rosto inalterado e
sua boca nada mais que uma linha concentrada e firme. Ele
nem mesmo vacilou quando me viu. Nada nessa sua
existência fictícia reconhecia o brilho da minha reflexão e
agora eu percebi o quão estranho devia ser para Edgar
quando eu voltei para a sua vida. Era como se eu estivesse
encarando para o mesmo rosto distraído, a mesma expressão
perdida que uma vez eu possuí.
— Uh... Sim. — Meus pulmões começaram a arder
enquanto eu me recusava a respirar.
Ele me deu um firme aceno satisfeito.
— Bem, eu posso passar?
Eu notei repentinamente que eu ainda estava
bloqueando a porta como uma idiota, meus braços estendidos
obstruindo o caminho enquanto eu lutava para permanecer
em pé.
— Oh, desculpa — eu respirei enquanto saía do
caminho, tropeçando na escada.
O fantasma do Edgar fez um movimento rápido para
me pegar antes que pudesse se deter, sua programação
dizendo para ele não tocar ninguém.
96
Eu coloquei minha mão contra a parede antes de fazer
o papel de uma completa idiota e cair no chão. Uma vinha
embaixo da construção começou a se curvar na minha
direção na tentativa de amortecer a minha queda, mas eu
rapidamente dei um passo na frente como se para esconder
sua reação.
— Você está bem, Senhorita? — Suas sobrancelhas se
ergueram e meu coração derreteu.
Eu dei um aceno.
— Ah sim, estou bem. — Eu queria correr para os
braços dele. Eu queria sentir o seu abraço, sentir o amor.
Mas aqui estava eu sem ele, nada mais que um lampejo em
seus olhos e só mais um rosto.
Ele virou e andou em direção ao escritório sem outra
palavra, seu comportamento casual frio e chocante. Minha
mente estava gritando as palavras que há tanto eu queria
dizer para ele, as palavras que eu desejei poder proferir
novamente, mas enquanto a porta se fechava, meus olhos se
incharam com grossas lágrimas e minha voz permaneceu
silenciosa.
Eu inalei num suspiro trêmulo, tentando decidir o que
fazer a seguir. Encostada no prédio, meus joelhos tremiam
com a adrenalina incontrolável e meu coração palpitava
enquanto o sangue bombeava como lava em minhas veias. Eu
finalmente pisquei quando as lágrimas que eu lutava para
esconder escorriam pelo meu rosto. Meu peito começou a
tremer enquanto os soluços seguiam. Permiti-me este
pequeno momento, esta oportunidade de sentir a realidade de
tudo isso antes de me impedir.
Eu limpei meus olhos e franzi a sobrancelha, com raiva
que eu pudesse ser tão fraca. Uma respiração acentuada 97
escapou dos meus lábios trêmulos enquanto eu forçava o
meu corpo a sair da parede, minhas pernas lutando com o
peso enquanto eu me empurrava para frente. Não havia como
saber o quanto Edgar demoraria em sair daquele escritório, e
eu estava certa de que eu não queria estar aqui para
presenciar isso. Essa era toda a prova que eu precisava por
hoje.
Enquanto eu andava com um traste lento pelo corredor
em direção à abertura do centro do complexo, encontrei-me
desapontada. É claro que eu não esperava que seu fantasma
fosse se lembrar de mim, como poderia? Era apenas um
holograma, uma invenção de poeira e de ar. Ele não tinha
coração, nem mente, e nem alma. Mas havia uma parte de
mim que tinha esperança, que esperava que a busca tivesse
acabado e ele iria, finalmente, voltar para casa. Então eu
coloquei minha mão no meu peito, esperando aquela
queimação familiar de amor, mas ao invés disso eu não senti
nada. Eu não podia senti-lo da mesma maneira como eu
costumava sentir, e com isso eu soube que ele tinha ido
embora.
Eu forcei minhas pernas colina acima em direção ao
meu antigo chalé enquanto secava meus olhos mais um
pouco. Se uma coisa era verdade, ter visto o rosto dele como
se ele ainda estivesse vivo havia me instigado a encontrá-lo.
Esta não era uma questão de seguir em frente, era seguir
para frente. Para ele e as respostas que eu precisava.
Capítulo 7
AMOR E CASAMENTO
98
Meu peito ergueu quando eu respirei fundo e me
inclinei onde escutei as vozes abafadas e as risadas atrás da
familiar porta de pinho. Erguendo minha mão, eu bati com
ansiedade na madeira, lembrando-me de como era a
sensação de ouvir aquele barulho do outro lado como Scott
havia feito incansavelmente todas as manhãs antes da aula.
As vozes silenciaram e eu ouvi um apressar de pés no
assoalho. Eu exalei e revirei meus olhos, esperando que eu
não houvesse atrapalhado algum tipo de sessão amorosa. O
meu coração disparou, o que eu diria a eles? Qual seria a
minha desculpa por abandoná-los da forma como eu fiz,
deixando-os para trás?
Enquanto os meus pensamentos disparavam a porta se
abriu e uma rajada de vento bagunçou meu cabelo.
Scott me encarou de olhos arregalados, boquiaberto.
— Não brinca! — ele gritou, jogando suas mãos no ar
como uma boneca de pano.
Eu gemi alto quando ele correu na minha direção, me
abraçando com uma força que eu nunca pensei que ele
possuísse.
— Elle! — ele gritou de novo, sua voz perfurando meus
ouvidos enquanto o queixo dele descansava no meu ombro,
seus braços apertados prendendo o meu corpo inteiro.
Eu olhei por cima do ombro dele e dentro do cômodo,
Sarah estava boquiaberta da mesma maneira que Scott tinha
ficado, seus olhos brilhando com o que pareciam ser
lágrimas. Uma sensação de vergonha tomou conta de mim e
eu fiz um movimento rápido para sorrir na minha tentativa de
aliviar a tensão.
99
Seu olhar se quebrou quando ela finalmente falou.
— É como ver um fantasma! — ela gritou.
Eu revirei os olhos.
— Isso parece estar acontecendo bastante ultimamente,
— eu murmurei baixinho. Felizmente nenhum deles me
ouviu.
Scott me afastou dele, suas mãos presas nos meus
ombros enquanto ele examinava o meu rosto. Eu pressionei
meus lábios, me sentindo como uma formiga num
microscópio.
— Nossa como você está diferente, Elle, mas ainda a
mesma. Como você está? — A voz do Scott se quebrou, o som
me confortando de alguma forma, ele não havia mudado
nada.
— Ah, eu estou bem, eu ouvi algumas notícias
interessantes, no entanto — eu me desvencilhei de Scott o
mais educadamente possível e eu fechei o espaço entre eu e
Sarah em questão de segundos. Minha mão pegou a mão
esquerda dela e eu a puxei para o meu rosto para examinar
as joias.
Sarah corou e eu ouvi o riso nervoso de Scott atrás de
mim, enchendo o ar com uma sensação de justaposição
tímida.
— Ah, é lindo! — eu engoli em seco, absorvendo o
pequeno solitário de diamante que estava delicadamente
empoleirado no topo do anel no dedo da Sarah. Eu virei meu
olhar para Scott. — Você fez um bom trabalho. — Eu pisquei
para ele com um olhar de genuína felicidade cruzando o meu
rosto.
100
As bochechas dele estavam em um profundo tom de
vermelho e suas orelhas estavam mais vermelhas do que
nunca.
— Então vocês já marcaram uma data? — eu virei meu
olhar de volta para Sarah enquanto eu procurava seus olhos.
A pergunta era normal, mas parecia se encaixar no momento
desconfortável.
Ela sorriu.
— No final do verão.
Meu sorriso estava começando a doer o meu rosto. —
Ah, isso é perfeito! — Eu larguei a mão dela enquanto me
afastava e nós três formamos um triângulo em nosso espaço
minúsculo.
Eu olhei ao redor da sala, uma enxurrada de
lembranças correndo de volta para mim. Uma memória, no
entanto, era mais vívida do que o resto, a noite em que Edgar
havia dormido aqui. A imagem dele confortavelmente
descansando no tapete cruzou minha mente e eu engoli as
lágrimas.
— Então, por onde você esteve? — A voz de Scott
finalmente cortou o silêncio desconfortável enquanto eu me
afastava para o parapeito da janela.
— Bem, eu tive que ir embora você sabe, as coisas
estavam ficando complicadas. — Eu olhei para as minhas
mãos nervosas, desejando que elas parassem de tremer.
Scott sorriu um pouco.
— O Professor Edgar, não é? 101
Eu recuei com o nome.
— Ah... — Eu lutei pela vontade de arrumar outro
motivo, mas eu não pude encontrar um. — É.
Uma risada de verdade explodiu de Scott e ele teve que
se esforçar para se acalmar.
— Você já o viu?
Eu bufei.
— Eu acho que você pode dizer que sim.
Sarah riu para si mesma, com medo de me ofender.
— Eu acho que vocês dois formam um casal bonitinho.
Eu me belisquei para impedir que os comentários
rudes deixassem minha boca, levantando as sobrancelhas em
reconhecimento, no lugar.
— É, isso é engraçado — eu bufei de novo.
— Então você está de volta? — A voz de Scott soava
excitada.
Dei de ombros.
— Eu suponho que você pode dizer que sim.
Os dois me olharam com expressões confusas.
Meu sorriso se transformou em uma carranca e eu
sabia que não conseguiria mais mentir. — Ei, escutem — eu
pausei enquanto eu me empurrava para longe da janela — Se 102
eu contasse algo a vocês, vocês tentariam acreditar em mim?
Sarah e Scott se olharam como se eles soubessem o
que estava por vir, como se eles já viessem especulando a
meu respeito há algum tempo — Sim, com certeza Elle, você é
uma das nossas melhores amigas.
Eu sorri com as palavras.
— Obrigada.
Scott deu um passo na minha direção.
— O que você está pensando?
— Bem, eu queria contar a vocês o que realmente
aconteceu. Mas preciso que vocês entendam de verdade,
vocês devem acreditar em mim, eu preciso que vocês
acreditem em mim.
Scott parecia muito intrigado, como se ele estivesse
esperando por meses que algo excitante acontecesse em seu
pequeno mundo.
— Sentem-se — eu gesticulei para os dois se sentarem
na minha antiga cama, a cama deles.
Enquanto eles se acomodavam, eu respirei fundo,
formulando por onde começar.
— Então Scott, você se lembra de quando eu conheci
vocês, eu disse que eu tinha uma coisa com a natureza, e
vocês apropriadamente me nomearam de 'Mãe Natureza'? —
Eu sorri com o título, ainda o achando um absurdo, mas
verdadeiro.
Ele deu de ombros, seus olhos se estreitando em mim. 103
— Sim. — Ele pausou enquanto algo se passava em
sua memória. — Eu estive querendo perguntar a você sobre
isso. — Ele trouxe um dedo à bochecha, sua tentativa em
pensar machucando minha própria cabeça.
Eu ri.
— Sim, bem suas suposições são provavelmente
verdadeiras, então vamos a elas.
Suas sobrancelhas se levantaram de espanto.
— Então a grama...
— Sim. — Eu o cortei. — Mas não é apenas isso. Edgar
foi um importante jogador nisso também, muito importante
— minha voz foi sumindo.
As bocas dos dois ficaram escancaradas de espanto
quando eu continuei.
— Eu não sou humana, por assim dizer. — Eu
estremeci, meu rosto enrugando-se enquanto eu antecipava
suas reações. Eu exalei com força enquanto lutava para dizer
as palavras certas, para dizer o que a minha mente queria.
Scott me deu um olhar vazio enquanto Sarah parecia
reagir ao fato, se esforçando para entender.
— O que você quer dizer? — A voz confusa e afiada de
Sarah soando como um sino nos meus ouvidos.
— Então, ok — eu comecei a caminhar pela sala. —
Scott, você se lembra de quando eu fiz aquele corte profundo
e tinha todo aquele sangue e provavelmente demorariam
semanas, se não meses antes que ele pudesse ficar realmente 104
curado?
Scott assentiu.
— Ok, bem, você se lembra, eu estava completamente
curada no outro dia. Meu corpo não é como o de vocês. — Eu
não olhei para eles quando eu disse isso. Eu apenas
precisava botar tudo pra fora. — Eu tenho mais de mil anos,
e Edgar também. Nós somos diferentes de vocês, mas de
alguma forma iguais. Nós somos híbridos da sua espécie,
criados à imagem de vocês, mas em um modelo melhor.
Pense nisso como um carro. — Eu pausei e respirei fundo. —
Edgar e eu fomos feitos pelos deuses em pares — eu fiz uma
careta de novo, sabendo o quão ridículo tudo isso soava. —
Eu acho que vocês poderiam dizer que Edgar e eu somos
almas-gêmeas. Iguais a vocês dois — eu dei aos dois um
sorriso doce, esperando que, se eu pudesse fazer um
comparativo de alguma forma, eles tentariam se esforçar para
entender.
Olhando de volta para os meus pés enquanto eu
caminhava eu continuei.
— Nós fomos punidos por sermos muito perfeitos,
muito bonitos. E nossos corpos foram forçados a se separar,
forçados à Terra como peões em um gigante jogo de xadrez. —
Eu ouvi um bufo suave vindo do Scott, e os meus olhos
encontraram os dele, brilhando enquanto eu mantive uma
cara séria. — Eu não estou brincando.
O rosto dele ficou frio como se eu o tivesse mergulhado
em uma banheira de gelo e sabia que ele havia visto o olhar
terrível em meus olhos, o olhar igual ao de Edgar.
— Eu não tenho certeza do meu propósito aqui ainda,
mas há mais da nossa espécie. Ano passado, um ainda vivia,
um mal. O nome dele era Matthew, e ele matou Edgar. — Isso 105
saiu da minha boca como um vento frio, enchendo o ar com
uma espessa condenação.
— Mas... — Scott estava balançando a cabeça. — Mas o
professor está aqui, ele não está morto.
— Aquele não é ele — minha voz era contundente como
se eu estivesse tentando ainda me convencer se ele era ou
não real. — Aquele é apenas o fantasma dele, mais ou menos.
Se você fosse corajoso o bastante para tocar nele, você veria o
que eu quero dizer.
Scott me deu um aceno severo.
— Sim, eu vi isso, alguém tentou tocá-lo na primavera
passada, ou dar um soco nele, mais exatamente — ele deu
um sorrisinho sarcástico. — Mas foi estranho. Nós estávamos
tentando descobrir o que era.
Eu olhei feio para ele.
— Isso é um segredo entre nós três, entendido?
Eu devia estar com um olhar aterrorizante no meu
rosto porque ele imediatamente assentiu; seus olhos
arregalados e seu corpo assustado até a morte.
— Ele morreu me protegendo. Então eu acho que vocês
poderiam dizer que estavam certos com todo o negócio sobre
Edgar e eu. Eu o amava. — Eu olhei para eles, contente o
suficiente com o que eu havia contado.
— Então... — Scott parecia totalmente confuso —
Então, o que você é?
Eu enruguei minha sobrancelha. Até mesmo eu não 106
sabia o que eu era.
— Uma bruxa — eu respondi. Era a única coisa que
realmente fazia sentido na língua humana. Ainda soava brega
dizê-la, mas funcionava.
Scott e Sarah ergueram suas sobrancelhas,
concordando em uníssono, a confusão deles de alguma forma
resolvida. Eu havia esperado que eles agissem mais
horrorizados sobre o negócio todo, mas aqui estavam eles,
totalmente de acordo com o negócio todo, ou pelo menos
aparentemente. Mas esse sempre havia sido o estilo de Scott,
de certo modo inabalável e estranhamente receptivo.
— Legal — ele riu. — Nós conhecemos uma bruxa. —
Ele gentilmente bateu no ombro de Sarah com as costas de
sua mão.
Sarah assentiu.
— Agora eu sou mais sem graça ainda do que antes. —
Ela começou a fazer beicinho.
Eu revirei meus olhos enquanto eles trocavam um
momento enjoativo de conversa de bebê e arrulhos. Eu
apenas esperava que Edgar e eu não houvéssemos sido tão
irritantes, porém nós estávamos sempre sozinhos então eu
acho que isso não importava.
A voz de Scott voltou ao normal, seu olhar caindo sobre
mim enquanto eu me levantava com os braços cruzados no
peito.
— Então espera, você vive aqui? Onde? — O olhar em
seu rosto era inocente, mas algo sobre ele fez com que me
sentisse envergonhada, como se viver aqui fosse uma coisa 107
terrível.
— Na floresta — eu respondi francamente. Eu estava
preparada para responder com a verdade e com dignidade.
— Legal! Então tipo, você vive numa caverna ou algo
assim? — Ele estava sorrindo agora.
Eu funguei.
— Dificilmente, eu te mostrarei um dia. — Eu pisquei
para ele.
Ele assentiu.
Sarah estava com um doce sorriso em seu rosto.
— Então você pode fazer alguma coisa legal? Além
desse negócio das plantas que o Scott me contou?
Eu vi Scott corar. Ele devia ter discutido o assunto com
ela para descontar sua frustração.
Eu enruguei meu nariz.
— Ah sim, eu posso fazer um negócio bem legal, mas
eu sou meio nova nisso.
— Faça! — Sarah guinchou, batendo suas mãos como
uma criança.
Eu não consegui evitar um sorriso. Estes eram meus
amigos, verdadeiros amigos. Eu podia ver que eles me
amariam não importa o quê. Eu respirei fundo.
— Bem, é meio complicado, eu não consegui descobrir
todos os detalhes. — Eu estreitei meus olhos, pensando em
como eu fiquei envergonhada quando eu me descobri 108
totalmente nua.
Sarah deu de ombros.
— Está tudo bem, nós não vamos julgar.
Meu peito se apertou quando deixei escapar um
suspiro pesado, uma meia risada escapando com o suspiro.
— Ok, mas eu vou precisar que vocês desviem olhar
quando chegar a hora, certo? Eu não vou ser capaz de falar,
então vamos apenas dizer que eu vou gritar com vocês, mais
ou menos.
Eles inclinaram as cabeças em uníssono, os dois
confusos, mas a curiosidade deles era muito grande para
deixar que isso os incomodasse, então os dois assentiram.
— Ok. Venham ficar aqui perto da porta. — Eu os
conduzi para lá.
Os dois se atiraram da cama com tanto entusiasmo que
foi difícil vê-los se mover pela distância entre nós, e bem
assim, eles estavam já ao meu lado.
— Fiquem bem aqui — eu fui até o outro lado da cama,
pelo menos imaginando que eu teria algum tipo de
privacidade se esse negócio todo desse horrivelmente errado.
Eu me lembro de como eu havia pensado que era incrível
quando Edgar havia feito isso pela primeira vez, mas a
melhor parte era saber que algum dia eu poderia também.
Havia certo orgulhoso presunçoso dentro de mim sobre o fato
de que eu finalmente era especial, finalmente única de uma
maneira que não era depressiva.
Eles observaram enquanto eu fechava os meus olhos e
começava a me concentrar como eu havia feito na cachoeira. 109
Eu me imaginei caindo, imaginei a maneira como o ar
chicoteava pelos meus braços e me enchiam com uma
sensação de liberdade.
Eu coloquei os meus braços nas minhas laterais, Edgar
nunca havia sido assim tão dramático, mas, novamente, se
transformar era algo muito mais natural para ele porque ele
fazia isso o tempo todo.
Eu respirei fundo, meu corpo agora sentindo o ar ao
meu redor ficar mais espesso, como água. Houve uma
sensação súbita e esmagadora de afogamento enquanto eu
começava a nadar, e quando eu fiz isso, eu senti os meus
braços empurrarem o ar enquanto as minhas asas
começavam a voar.
Eu ouvi suspiros unânimes enquanto abria meus
olhos, rapidamente cortando para a esquerda enquanto eu
quase atingia a parede atrás deles. Aliviada de que eu havia
conseguido escapar de uma possível fratura, eu disparei em
um círculo apertado de volta para a cama onde eu pousei em
uma macia pilha de cobertas, meu corpo ainda desajeitado
enquanto os cobertores se emaranhavam ao meu redor.
Lutando sem o uso dos braços, eu me endireitei de uma
maneira que estava longe de ser graciosa.
Sarah estava rindo baixinho, mas eu não podia culpá-
la, de verdade. Era óbvio que eu era nova nisso e eu tinha
certeza que eu tinha feito um completo papel de boba.
— Isso é incrível! — Os olhos de Scott estavam mais
arregalados do que o normal.
Sarah caminhou em minha direção.
— Você é tão linda! Você está praticamente brilhando!
— Ela não conseguiu resistir em mexer nas penas na minha 110
cabeça.
Enquanto ela continuava a coçar eu lutei contra a
vontade de mordê-la, cedendo ao fato inegável de que ser
amada como um bichinho de estimação era gostoso. Não foi
até que Sarah começou a rir de mim que eu finalmente me
afastei dela, achando que as coisas haviam ido longe demais.
Scott ainda estava encarando; a fascinação inegável dele
comigo até mais forte do que havia sido na aula de
incubação.
Torcendo a cabeça para o lado, eu puxei uma pena de
debaixo da minha asa, cortando-a do meu corpo e
derrubando-a na cama antes de me virar novamente e soltar
um estridente grasnido, avisando-os para olhar para o outro
lado enquanto eu tentava me transformar de volta. Os dois se
viraram e obedientemente encararam a parede.
Eu pulei no lugar enquanto eu esticava as penas das
minhas asas e, em seguida, balançava-as como se eu
estivesse tirando um casaco. Antes que eu percebesse eu
estava esparramada metade no meio da cama, o resto do meu
corpo se arrastando no chão. Eu tinha conseguido manter a
maior parte das minhas roupas de baixo intactas, mas ainda
havia uma pilha infeliz de roupas que estava espalhada atrás
da cama.
Eu me atrapalhei com meu jeans e camiseta,
agradecida de que era verão e eu não tinha muita roupa com
a qual lutar. Minhas bochechas estavam coradas quando eu
finalmente pigarreei e os dois se viraram novamente.
As expressões deles ainda eram de encantamento pelo
que eles haviam visto, encantados por mim, e eu me senti
orgulhosa.
111
— Então eu acho que você realmente não está
mentindo sobre o que você disse, você realmente é uma
bruxa. — Scott estava sorrindo.
Eu ri.
— Sim, é meio que inacreditável, mas eu acho que eu
vou me acostumar. Pra vocês verem, eu não me lembro da
minha vida anterior, apenas da minha vida pelos últimos
dezoito anos, ou então eu acho que dezenove anos. Mas eu
sempre vou ter essa mesma aparência como eu tenho agora,
para sempre.
Os olhos de Sarah se arregalaram.
— Você tem tanta sorte.
Eu bufei.
— Eu não sei se eu consideraria isso sorte, eu tenho
que ver todas as pessoas ao meu redor morrer — eu pausei,
pensando em Sam — Ou pelo menos, a maioria delas.
Eles nem sequer vacilaram com o meu comentário.
— Então Edgar está morto? Mas eu pensei que vocês
deveriam viver para sempre?
Eu dei de ombros.
— Na teoria, eu realmente não tenho um manual
médico ou um livro de história sobre a minha espécie, tudo é
um mistério. Mas nesse momento, Edgar está morto e eu não
acho que ele vai voltar. Ninguém jamais voltou, apenas eu.
Scott apertou as sobrancelhas.
112
— Então faz sentido que você esteja aqui por uma
razão. Alguém te trouxe de volta para fazer algo.
Eu assenti.
— Eu acho que você tem razão. E essas são as coisas
que eu preciso descobrir.
— Nós podemos ajudar? — Scott de um olhar ansioso.
Meu olhar passou rapidamente pelo rosto de Sarah e
pelo dele. Eu não tinha a intenção de arrastar mais alguém
para o meu pesar ou minha obsessão.
— Por favor? — Sarah pediu. Eu vi curiosidade se
propagar por todo o seu corpo como uma doença.
Eu não podia decepcioná-los. Eu provavelmente era a
coisa mais emocionante que eles tinham visto nesse ano. As
aulas deles ensinavam matérias que eram previsíveis, sobre
coisas que já foram cientificamente examinadas até cada
cromossomo. Eu, por outro lado, ainda era um mistério. A
pena que eu havia arrancado ainda estava na cama e eu
estendi a mão para alcançá-la.
— Aqui — eu entreguei a pena para eles. — Tenham
cuidado com ela, é afiada. Mas talvez vocês possam investigá-
la, ver do que ela é feita.
O rosto de Scott se iluminou e ele sorriu. A verdade era
que eu realmente não achava que fosse seguro envolvê-los
além de descobrir minha ciência. Se eu um dia eu os perder,
ou colocá-los num caminho perigoso, sabia que eu nunca me
perdoaria e para sempre é um longo tempo para se sentir
culpa. Ainda me surpreendia como eles aceitaram tão bem,
mas eu realmente não tinha esperado nada diferente. Eles 113
sempre foram desse jeito.
Meus olhos cruzaram a sala, minha mente se
lembrando do espaço como se fosse uma memória distante,
uma vida que havia sido vivida apenas em um sonho e cada
elemento de alguma forma distorcido e misturado. Em grande
parte, tudo era o mesmo, exceto melhor vivido. A pequena
cozinha estava uma bagunça e eu notei uma caixa de
chocolate que estava escondida atrás da torradeira.
Um sorriso penetrou no meu rosto enquanto eu me
lembrava do meu passado e uma lágrima se formou em meu
olho. Eu havia sonhado com um dia, um dia onde eu
finalmente encontraria paz. Embora essa sensação de
conclusão continuasse me deixando com o coração vazio, era
uma jornada da qual eu jamais me esqueceria. Do meu
começo humilde até agora, das muitas mães perdidas que eu
tive e aquela que nunca existiu, eu sempre vou me considerar
como sortuda.
Um sentimento de realização se apoderou de mim
enquanto eu continuava a absorver as memórias do meu
passado, eu me lembrei de que havia uma coisa que eu havia
deixado para trás, algo grande e algo agora inútil para mim.
Eu fui até a cozinha onde me ajoelhei ao lado da pequena
geladeira. Eu estendi minha mão na abertura entre o armário
e tirei o grosso envelope que Heidi havia me dado no dia em
que deixei o meu lar adotivo. Quando eu me levantei, eu torci
o envelope na minha mão e soprei o pó, minhas mãos
passando pelos amassados onde Heidi havia uma vez o
segurado com amor e orgulho.
— Uau, o que é isso? — A voz de Sarah veio do outro
lado do cômodo.
Eu me virei para olhá-la com um olhar feliz, seu rosto 114
ainda estava aturdido por causa dos eventos do dia. Eu
coloquei uma mão no meu joelho e me levantei do chão e me
aproximei dela.
— Aqui, um presente de casamento — eu sorri.
Os olhos de Sarah estavam confusos enquanto ela
soltava uma risadinha.
— Você o manteve aqui? Mas como você sabia?
Eu ri, achando a afirmação dela inocente e doce.
Eu o pressionei em direção a ela enquanto ela
cautelosamente pegava o envelope das minhas mãos, seus
lábios entreabertos enquanto ela sussurrava.
— O que é?
Uma respiração forte escapou dos meus lábios.
— Na verdade, eu não tenho certeza. Eu nunca olhei.
Mas eu sei agora, sempre foi para ser seu.
Ela sorriu e seus olhos ficaram vivos com uma
consciência da vida.
— Obrigada.
Scott observou o envelope com um reconhecimento
estranho, sabendo que o conteúdo era algo muito
impressionante para se acreditar. Nós ficamos parados por
um momento e eu percebi que os dois eram muito educados
para abri-lo na minha frente. Não importava. Embora eu
nunca tivesse sabido o que continha o envelope, não era mais
meu para saber agora. De qualquer forma, os seus segredos 115
pouco fariam para mudar a minha vida da maneira que Heidi
havia esperado, porque minha vida já havia feito isso. Eu
sabia que se ela soubesse dessa passagem de presente, ela
apenas ficaria orgulhosa de mim por encontrar alguém que
eu me importasse o suficiente para confiá-lo.
Eu engoli em seco.
— Bem, eu deveria provavelmente ir, mas eu voltarei
logo. — Eu andei até os braços deles enquanto eles me
envolviam em um abraço. — Enquanto isso, deem uma
olhada naquela pena. — Eu me afastei e dei um tapinha nos
ombros deles. Scott estremeceu com o meu toque já que eu
dei um tapinha forte demais.
— O teu segredo está seguro conosco. — Sarah sorriu.
— É tão legal! Você é uma bruxa! — ela estava pulando,
batendo suas mãos.
Eu estremeci, me acostumando ainda com o título.
— Obrigada. Eu apenas tinha que contar para alguém,
e eu prometo que há muito mais para mostrar a vocês. — E
com isso eu pisquei e saí pela porta.
Capítulo 8
POEIRA
116
Eu marchei meu caminho de volta até o morro quando
ouvi o inegável grito de emoção emergir da cabana. Eu sabia
que ou era o fato de que eles abriram o envelope que eu tinha
entregado a eles, ou que eles estavam verdadeiramente
excitados com a minha existência. Quando eu pisei um pé no
abrigo das árvores, a voz de Sam estava de repente logo ao
meu lado.
Eu pulei e agarrei meu peito, dando-lhe um olhar
diabólico.
— Por que você fez isso? Você não sabe que eles são
humanos? — ele estava ofegante, como se tivesse acabado de
percorrer uma longa distância.
— Fazer o quê? — Minha voz era inocente, como se eu
não tivesse ideia do que ele estava falando.
— Você só se desmascarou para as mais fracas mentes
do mundo! Você não pode confiar que não vão contar a
ninguém. Se isso vazar, haverá uma caça às bruxas. — Sua
voz ficou baixa e estava cheia de desgraça.
— Ah, sério Sam, este não estamos em 1800. Se eles
disserem a alguém, é mais provável que eles sejam levados
para a ala psiquiátrica do que comecem uma caça às bruxas.
— Eu ri baixinho.
Ele jogou as mãos no ar, incapaz de aceitar porque eu
me abriria para um ser humano.
Eu olhei para ele mais profundamente.
— Você sabe qual é a diferença entre você e eu?
117
Sam balançou a cabeça.
— Eu, na verdade, possuo a esperança de confiar em
alguém, onde você nega qualquer tipo de amizade ou de
amor. — Eu dei um tapa numa mosca que havia pousado no
meu braço.
Ele bufou.
— Tanto faz, mas você acaba de assinar a sua certidão
de óbito, benzinho.
Eu olhei furiosa para ele, com seu lembrete cruel.
— Eles são legais, Sam. E nunca mais me chame de
benzinho.
Ele riu enquanto caminhávamos por entre as árvores.
— Você é tão enganada pela fraqueza. É nojento.
— Você é nojento — repliquei.
Ele franziu a testa.
— Eu tenho que discordar, eu estou na verdade muito
limpo. — Ele abriu o casaco para mim, mostrando seu pálido
peito forte. — Veja. Sinta o cheiro. É como um bebê recém-
nascido.
Eu olhei para ele com repulsa.
Suas asas de repente surgiram a partir de costas e eu
revirei os olhos, me preparando para o que estava por vir.
Apesar das minhas tentativas em resistir, ele pegou-me do
chão da floresta e disparou para o céu.
— Você sabe, eu estava gostando do passeio. — Eu
disse enquanto ele me segurava contra seu peito gelado. 118
Ele sorriu.
— É, bem, eu estou me divertindo com a desculpa para
fazer você me tocar.
Eu me contorci em seu aperto, desgostosa por seus
avanços lascivos. Embora eu soubesse, ou pelo menos
esperasse que ele estivesse brincando, isso ainda era o
suficiente para me enlouquecer com raiva. — Você é um
porco — eu retruquei para nele.
Ele riu.
— Oh, fique fria, princesa, você vai viver. Eu não sou
tão ruim assim, você está ferindo meus sentimentos.
O olhar presunçoso em seu rosto sugeriu que não
havia nenhum sentimento para machucar, por isso realmente
não importava o quão desprezível eu fosse com ele. Nós
disparamos sobre as árvores enquanto elas piscavam abaixo
em um borrão de verde e marrom. Ter Sam era como ter o
seu próprio dragão, ou Pégaso, só que eu esperava que se eu
tivesse um desses, eles não falariam.
Sam olhou para mim.
— Dragões são perigosos e um Pégaso é muito arredio e
tolo, você poderia muito bem ter um grilo para montar. Confie
em mim.
Eu ri.
— Pois bem, como se eles realmente existissem.
Suas sobrancelhas se ergueram.
— Você alguma vez pensou que eu pudesse existir? 119
Eu pressionei minhas sobrancelhas, juntando-as, é
claro que eu acreditava em anjos, mas ele tinha razão. Eu
realmente nunca pensei que acabaria sendo amiga de um.
Anjos existirem entre nós, invisíveis e gentis, sempre foi um
conto de fadas humano. Embora meus pensamentos sobre a
sua personalidade fossem tragicamente ferrados, as histórias
tinham pelo menos sido verdade. Eu acho que havia um
monte de verdade nos contos de fadas e histórias atualmente,
então a verdade era que não havia nenhuma verdade.
A clareira ficou logo visível sobre o dossel da floresta e
eu suspirei de alívio. Eu precisava de um descanso. O dia
tinha sido duro o suficiente e a maneira como o fantasma de
Edgar olhou através de mim era estranha, como se eu fosse
nada mais do que uma estátua em movimento, ou um ser
humano inútil.
Sam mergulhou na abertura, mas em vez de nos
colocar para baixo, ele deslizou na grama. Voamos
furiosamente através do prado quando eu estremeci e virei
minha cabeça, enterrando-a no peito de Sam quando a
familiar parede de água apareceu diante de nós, tal como
tinha acontecido no dia em que Edgar e eu tínhamos saído
com o snowmobile. Eu me senti como se tivéssemos nos
chocado com ela, a explosão ondulando ao nosso redor como
vidro e água.
Eu senti como Sam dobrou seu corpo em torno de mim
de forma protetora, como se fôssemos agora uma bola de
boliche, o estrondo de metal e vidro quebrando à nossa volta.
Nós batemos com força contra o que eu supunha ser a parede
do fundo da garagem e eu grunhi quando a respiração foi
arrancada de meus pulmões.
Quando Sam soltou seus braços que me prendiam, eu
me movi para socá-lo em seu estômago, mas resisti, 120
calculando que não estava pronta para sentir dor.
— Por que você fez isso? — eu gritei, suas mãos
prendendo meus pulsos enquanto eu lutava contra suas
restrições. A raiva fervia em meu coração, o tipo de raiva que
transforma até mesmo os homens mais sãos em uma fúria
assassina.
Ele riu. — Eu sempre tive a intenção de destruir essa
coisa.
Eu olhei por cima do seu ombro para a massa de metal
verde que estava enrolado em torno dele e esmagada contra a
parede como se fosse nada mais do que papel alumínio
macio.
— Sam! Esse era o meu carro!
— Você vai superar isso. — Ele me empurrou para fora
das ruínas de metal e para longe dele. — Não é como se você
o estivesse usando, mesmo.
— Eu te odeio! — Eu gritei, meu rosto agora quente
com fúria. — Por que você insiste em fazer isso comigo, todo o
tempo! — Sua atitude infantil diante da vida era imprudente.
Ele deu de ombros.
— Eu só gosto de te provocar, Elly. Tome um calmante.
— Ele colocou a mão em meu rosto enquanto um sorriso se
curvou em suas bochechas leitosas e seus olhos brilharam
como bolas de gude âmbar.
Eu me esforcei para entender o que ele quis dizer
enquanto eu resmungava para ele, o som ecoando nas
paredes da garagem. Minhas emoções eram inúteis contra a
sua irritante máscara de confiança, então eu limpei o olhar 121
de tristeza do meu rosto. Caminhei até o pedaço de metal,
meu Datsun completamente irreconhecível além do falso
volante de madeira e a tinta verde que estava lascada pela
ferrugem e sujeira.
Nenhum dos carros de Edgar tinha sido sequer
arranhado pelo incidente, e eu estava pelo menos grata por
isso quando corri minha mão ao longo do Hummer preto
brilhante que estava estacionado ao lado do meu carro. Eu
expirei ao toque, achando que essa era a primeira coisa de
Edgar que eu tinha tocado desde que estava de volta. Edgar
tinha mantido a cada um de seus carros em estado
impecável, nem mesmo uma partícula de sujeira no pneu.
Sam ficou de pé.
— Pelo menos ele tinha mais bom gosto. — Ele apontou
para o Camaro preto que estava estacionado do outro lado do
meu carro, agora brilhando no reflexo do Hummer.
— Eu realmente não me importo de ouvir as suas
opiniões justo agora e eu prefiro que você só saia, antes que
eu realmente perca a paciência. — Eu apontei para a porta,
meus olhos olhando para longe dele e ardendo com dor.
Ele bufou levemente, seus pés amassando através da
pilha de escombros e marchando pela garagem comprida até
a porta.
Eu soltei minha respiração enquanto me virava e olhei
para os pedaços de metal, meu coração apertado quando eu
pensei na bagunça que foi o meu passado, incrementado pela
vida perdida. Eu levemente contornei as peças retorcidas de
borracha e vidro, deixando-os para trás como um lembrete de
que tinha sido assim que eu fiz o meu caminho para casa. Eu
olhei para cada um dos carros de Edgar enquanto passava 122
por eles, como se cada um fosse um fantasma, assim como
ele era.
A gata saltou de trás da Mercedes enquanto eu
caminhava em direção à porta e eu pulei para trás, espantada
com seu pelo branco puro em contraste com o brilhante
negrume dos carros. Seus pés estavam pisando com extrema
delicadeza, como se consciente das coisas sagradas contidas
neste cômodo.
— Ei, menina. — Ajoelhei e passei a mão ao longo de
suas costas, sua voz trovejando numa erupção de ronronos.
Seus olhos prateados me seguiram enquanto ela se esfregava
contra o meu toque, brilhando com uma vida que eu não
tinha notado no ar manso da casa.
Eu curvei minha sobrancelha.
— O que é você? Quem é você? — Eu sussurrei. Ela
miou então, me encarando mesmo apesar de eu acertar um
acorde. Algo nela era tão diferente, tão único. Ela miou
novamente, mostrando seus dentes enquanto ela deixou sua
voz se esgotar em um uivo, reverberando através dos carros e
voltando para meus ouvidos. Levantei-me, um pouco
surpresa por sua súbita mostra de compreensão. Ela se virou
para entrar na casa e eu a segui, sem encontrar outro lugar
para ir, na verdade.
Depois de fechar a porta atrás de mim eu andei para a
cozinha com meus pés se arrastando pelo granito da entrada,
meu corpo apertado com a explosão de medo que assolava
meus músculos. Eu olhei para o topo da escada, a gata
seguindo o meu olhar quando ela disparou a subir os degraus
com facilidade, como se voasse. Eu assobiei para ela quando
se sentou no patamar superior, enrolando a cauda ao redor
de seu corpo e seus olhos teimosamente estáveis.
123
— Gatinha, gatinha, venha aqui — eu dei um tapinha
em minha perna, mas ela não se moveu, seus olhos agora
estreitados com o sono. Eu respirei fundo e me aproximei dos
degraus, meus passos calmos e constantes. Eu olhei em volta
para qualquer sinal de Sam, mas eu não podia vê-lo, o ar
estava parado e o salão vazio.
Expirando, eu subi os degraus, escalando
constantemente até o meu quarto. Ao atingir o topo da
escadaria, eu me ajoelhei e tracei meu dedo pela cabeça da
gata branco leitoso e desci pelo comprimento de seu focinho.
Seus olhos me observaram antes dela ficar de pé e correr em
direção à porta do quarto de Edgar, onde ela soltou um
"miau" desafinado, quase como um ronco, e arranhou a
rachadura na moldura. Eu suspirei, acreditando que minhas
ideias de onde ela tinha ido com isso estavam corretas. Eu
apertei minhas mãos em punhos ao lado do meu corpo, me
forçando a encarar meus demônios enquanto eu dava um
passo adiante.
Revirei meus pés sobre o chão quando me aproximei
um pé de cada vez, a gata assistiu fervorosamente como se
me exigindo de alguma forma, guiando-me ao longo do
caminho. Eu coloquei minha mão sobre a maçaneta de
bronze frio, pensando que a última pessoa a tocá-la tinha
sido Edgar. Segurei mais forte e olhei para meus pés, os olhos
de prata da gata piscando para mim, esperando que eu
abrisse a porta.
Era óbvio que ela poderia ter feito isso ela mesma.
Afinal, ela parecia mover-se pela casa com facilidade, com
porta ou sem porta, como se fosse um fantasma. Ela tinha
esperado por mim, no entanto, percebendo que esse lugar era
para que eu enfrentasse sozinha.
Eu abaixei a maçaneta, empurrando com força 124
enquanto a moldura se recusava a deixar a porta ceder, o
tempo agora a selando por toda a eternidade. Meus nervos
hesitaram quando eu me encontrei desencorajada. Não
encontrando outra ação lógica, eu respirei fundo e joguei meu
ombro contra a porta, a poeira caindo sobre mim quando
finalmente abriu. Eu esfreguei meu braço, notando um
amassado que eu agora tinha feito na madeira, quando uma
lufada do ar selado gentilmente soprou em meu rosto, cheiro
de papel velho e livros de biblioteca.
Espiei através da pequena abertura, a gata enfiando a
cabeça pela fresta e girando-a em torno de como se à caça de
um rato. Na pequena área que eu me permiti observar, eu
podia ver uma grande pilha de livros, teias de aranha
agarradas a elas com o tempo, maiores do que eram desde a
morte de Edgar. Uma luz fraca estava espalhada sobre elas, a
poeira flutuava através dos raios e fazia cócegas no meu
nariz.
Eu espirrei então, a gata olhando para mim com
alarme.
— Desculpe, — eu sussurrei, seu olhar se desviou de
volta para o quarto.
Minha mente gritou para ir mais longe, mas meus
músculos deixaram de se mover. Eu era apenas capaz de
distinguir o canto decorado da moldura de uma grande tela
na parede, num ouro rico e profundo, que contrastava com o
preto do papel de parede. Encontrando coragem, eu
pressionei contra a porta, mas algo agora a estava
bloqueando por trás. Eu empurrei novamente, desta vez mais
forte, mas, ainda assim, a porta não cedeu. A gata olhou para
mim, seus olhos questionando os meus.
Dei de ombros para ela. — Eu não tenho certeza,
menina. Eu acho que está bloqueada. 125
Ela miou, como que concordando. A fresta não era
bastante ampla, não o suficiente para permitir a entrada dela
e eu me encontrei novamente olhando para o fundo da sala,
minha mente agora viva com interesse e curiosidade. Por
alguma razão Edgar tentou me parar, tentou me impedir de
saber o que estava aqui. Ele devia ter reconhecido melhor, no
entanto, eu nunca fui o tipo de desistir. Além disso, eu tinha
o homem ogro perfeito para me ajudar.
Assim que as palavras passaram por minha cabeça, eu
senti algo atrás de mim e girei no meu calcanhar. Minha
respiração foi arrancada de meus pulmões, mas antes que
um grito pudesse escapar da minha boca, ele foi abafado pela
mão de Sam, fria como a de um morto. Ele estava espionando
minhas ações aqui e eu me encolhi, encarando o fato de que
eu precisava dele de forma doentia.
— Shh... — Seu rosto estava ao lado do meu, seus
olhos, penetrantes. Meu coração pulou no meu peito,
aterrorizado por sua estranha presença fantasmagórica e do
conhecimento da sua força paralisante me segurando
acuada. Apesar de tudo o que eu sabia sobre Sam, ainda
havia um lado dele que eu ainda não entendia e que era um
lado de fúria e ódio, um lado que Matthew tinha escondido
tão bem.
O gato soltou um silvo afiado, suas orelhas niveladas
para o alto em sua cabeça, ameaçando-o.
Sam riu e deu um passo para trás, sua atitude
mudando daquele caos à ordem. — Eu totalmente peguei
você lá. Você olhou como se tivesse visto a morte!
Eu não dei a ele a satisfação de uma resposta. — Você
poderia, por favor, me ajudar, se não for pedir demais, — eu
retruquei. 126
Sua risada se acalmou e a gata relaxou, agora sentada
tristemente no chão.
Ele sorriu, passando a mão pelo seu já cabelo
bagunçado.
— Sem dúvida, querida. — Um meio sorriso serpenteou
por seu rosto.
Eu o encarei.
Ele me empurrou, passando por mim e quase pisando
na gata. Ela fugiu para fora do caminho, o pelo dela agora
bagunçado e agitado. Ele empurrou contra a porta com seus
dedos afastados, como se empurrasse através de uma cortina
de tecido. Outra rajada do ar selado caiu sobre mim quando
ele facilmente a empurrou aberta.
— Bem, então! — Ele bateu palmas, como se ele tivesse
terminado um dia de trabalho duro. — Aqui está, donzela em
perigo.
Inclinei a cabeça. — Oh, por favor.
Ele concordou com a cabeça. — Sim, você está certa,
eu suponho que você está mais 'em perigo' do que você é uma
'donzela'.
Para minha surpresa, ele deu um passo atrás,
permitindo-me meu espaço para explorar. Foi a primeira vez
que ele não tinha ultrapassado seus limites e eu saboreei o
momento, imaginando que este podia ser o único. Ele se
inclinou contra a parede do hall, cruzando os braços sobre o
peito, suas asas completamente escondidas atrás das costas.
Eu olhei para seu rosto com o pensamento sem emoção, 127
minha mente girando com a futura tarefa.
A gata estava ao meu lado, olhando para o espaço
escuro, observando como o pó caía à nossa volta.
— Eu vou estar aqui se precisar de mim, —
acrescentou Sam, enquanto eu olhava para frente, meu olhar
fixo em nenhum ponto em particular.
Eu respirei fundo, enquanto eu ainda estava do lado de
fora da porta, mais para me impedir de ingerir poeira do que
por medo. Eu entrei, a longa fila de livros agora ao meu lado.
A gata me seguiu, suas patas deixando uma trilha delicada
de marcas de pegadas atrás dela. Eu assisti com perplexidade
como suas trilhas pareciam desaparecer enquanto ela
andava, assim como as minhas tinham desaparecido na neve
do inverno passado, não deixando nenhum vestígio da minha
existência.
As paredes pretas estavam cheias de pinturas, cada
uma pendurada de maneira descuidada como se jogado nos
ganchos fora do centro. Os tons escuros de tinta disseram-me
que ele apreciava um tipo diferente de arte do que eu. Um em
particular, era uma cena de extrema violência e senti um
estranho aperto no meu peito, meus pensamentos
percebendo o quão escura e irada a mente de Edgar era,
vingativa e com fome de morte. Os tons escuros das pinturas
se misturavam com a escuridão do papel de parede, deixando
nada além das pesadas molduras douradas.
Corri minha mão pela capa de um livro que estava em
outra pilha ao meu lado. Dante estava escrito em ouro
profundo através do couro pesado, a lombada amarrada de
uma maneira antiga, sugerindo ao mesmo tempo a sua idade,
e a edição. A imagem de Edgar em minha mente sempre tinha
sido escura, mas por agora estar cercada por sua vida, sua
vida secreta, a senti muito mais escura. 128
Meu coração começou a acelerar, minha mente
percebendo que a vida que eu conhecia com Edgar tinha sido
tão reservada. Ele tinha mantido a si mesmo angustiado por
sua afeição por mim, escondendo do mundo inteiro qualquer
coisa que pudesse revelar sua raiva. Quando olhei para as
pinturas que se seguiram, cada uma também era torcida em
cenas de violência e terror, dor e angústia, com exceção de
uma. Quando me aproximei, a luz melancólica parecia brilhar
em contraste com o resto do quarto. Eu me mantive para
trás, percebendo que ela estava no centro exato da parede,
emoldurada por todo o caos.
O rosto que olhava para mim era o meu, doce e
inocente, amoroso e profundo. Meus olhos brilharam com
felicidade, e de repente, todos os sentimentos anteriores de
medo e confusão desapareceram. Entre toda a escuridão, a
luz do amor era inegável, e eu agora vi por que ele fez o que
fez e como ele poderia resistir a sua vontade de matar e lutar.
Ele tinha sido o meu amor, o meu protetor, meu guardião, e
toda a sua existência girava em torno de mim e meu
renovador espírito da vida.
A gata miou, olhando para a mesma coisa que eu.
— Isso mesmo, gatinha, aquela sou eu.
Meus olhos se desviaram dos quadros para uma grande
mesa de carvalho empurrada contra a parede e eu segui um
caminho que havia sido esculpido através dos amontoados de
livros. Eu encontrei-me equilibrando sobre bugigangas de
aparentemente de todos os estilos de vida e pilhas sobre
pilhas de pedaços amassados de papel, manchados com tinta
preta grossa. Havia uma grande cadeira de madeira
empurrada para o lado do espaço e eu espanei o assento,
tossindo quando me sentei.
129
A gata pulou no meu colo, colocando suas patas da
frente sobre a mesa e verificando as coisas que ela alojava.
Havia um caderno empurrado para o lado e eu o deslizei para
nós, abrindo-o enquanto sua lombada rangia e a poeira
deslizava da capa e se empilhava em um fio fino ao lado.
As páginas estavam riscadas com furiosos pedaços de
notas, coisas sobre o clima e o tempo, vida e pensamento.
Não parecia haver qualquer ordem real para as notas, apenas
momentos de opinião. Virei as páginas, olhando para cada
rabisco e tentando decifrar a confusão de palavras.
Onde ela está?
Corri meus dedos pela tinta pesada, escrita
repetidamente em um número de páginas. Parecia como se
ele tivesse experimentado um pouco da vida sem mim, mas
não gostava de nada nisso.
Capítulo 9
MATTHEW
130
MATTHEW
Estava escrito em letras maiúsculas através de duas
páginas, como se fosse um lembrete assassino de seu ódio e
raiva. Se Edgar soubesse que ele ainda estava vivo, eu me
perguntei o que impediria de caçar Matthew. Ele tinha o
poder para impedir os eventos que agora se revelavam, mas
seja qual tenha sido a razão, ele não havia feito isso. Havia
uma parte de mim que gostaria de saber se ele havia lutado
entre o seu ódio por Matthew, por outro lado também pelo
seu dever fraternal.
Eu fechei o livro, achando a sua escrita agora fria e
aterrorizante enquanto eu olhava de volta para a mesa. Havia
três gavetas na parte de trás e eu alcancei a primeira,
abrindo-a e olhando dentro dela. Havia um frasco de tinta e
algumas pontas de caneta que haviam sido enfiadas dentro
dele, algumas agora quebradas e inúteis.
Eu deslizei a gaveta de volta e fui para a próxima, um
pouco maior do que a primeira. Eu a puxei com as duas
mãos, franzindo a minha sobrancelha quando a gaveta ficou
presa por um breve momento enquanto ela se arrastava pela
madeira irregular. Havia um repentino brilho colorido que
aparecia no interior e eu apertei meus olhos para me ajustar
à luz, forçando meu olhar poderoso. Eu estendi minha mão
em direção ao conteúdo, pegando uma mão cheia e trazendo-
o para mais próximo do meu rosto.
A gata miou de maneira febril.
— Joias? — eu perguntei, para ninguém em particular.
A gata colocou sua pata no meu pulso, erguendo seu corpo 131
para olhá-las enquanto seus olhos refletiam sua beleza. Eu
as virei em minha mão, minha mente se acelerando para
compreender a importância do valor dos objetos e por que ele
havia simplesmente os descartado em uma gaveta da mesa
como se não fossem nada a não ser lixo.
Havia cortes brutos, cortes de almofada e marquise,
todos brilhando sob a luz fraca, com clareza e com força.
Enquanto eu me abaixava para colocar as joias de volta na
gaveta que transbordava, meus olhos pegaram a ponta de
algo orgânico entre os amontoados de joias brilhantes. Com
minha outra mão, eu agarrei a borda de um pedaço de papel
pardo que espiava entre duas pedras, cuidadosamente
tirando-o da linda pilha que havia se afogado sua vida e
miséria. Eu coloquei as joias da minha outra mão na gaveta,
minha curiosidade agora fixa no pequeno maço de papéis
pardo na minha mão, não achando mais rubis e esmeraldas
perto de me distrair tanto quanto esse curioso pacote.
A gata engatinhou pela mesa enquanto eu me sentava
de volta, meus olhos examinando o papel amarrado de
maneira rude. Eu cuidadosamente desenrolei o embrulho,
agora delicadamente velho por causa da idade, e quase
translúcido. Houve um tilintar quando os conteúdos ficaram
soltos ao meu alcance, agora os deslizando para a minha mão
enquanto eu os segurava, gentil.
O rabo da gata que serpenteava parou de se mexer
quando seus olhos afiados se fixaram nos conteúdos. Prendi
minha respiração com força em minha garganta, minhas
sobrancelhas se pressionando juntas enquanto eu tentava
engolir. Nos papéis dobrados na minha mão havia dois anéis,
os dois brilhando com uma vida etérea e bela.
Um era um pouco maior que o outro, de um negro puro
como uma noite infinita, uma pitada de azul brilhando nas
bordas. Parecia ser forjado a partir de um minério de ferro de 132
algum tipo, completamente ileso e imaculado como se fosse
mais forte do que qualquer coisa nesse planeta. Quando eu
toquei o anel e o movi para o lado, ele parecia bocejar contra
a minha mão, sua temperatura mudando de quente para frio
para quente de novo.
O outro era um cristal azul perolado, como se fosse
esculpido de uma pedra de opala em um anel maciço de
ambos, ar e fogo. As cores cromáticas chamaram minha
atenção, brilhando para mim como se estivesse cheio com o
próprio lago, se agitando com a fúria de uma nuvem de
tempestade em uma tarde ensolarada.
Quando eu desviei meu olhar dos anéis em minha mão,
minha atenção então caiu sobre o papel que agora estava
amassado na outra. Eu olhei para ele mais de perto, achando
familiares as marcas desbotadas que haviam sido
cuidadosamente escritas nele. Meu coração parou quando eu
virei a página para uma posição vertical e comecei a ler...
20 de Outubro de 1048
Hoje foi lindo e Edgar e eu finalmente cedemos às tradições
desse mundo e nos casamos. Todo mundo estava aqui, todos
vestidos de azul, como eu havia pedido. Nós nos casamos na
montanha mais alta, no ar limpo dos céus, e longe de qualquer
vida, além da nossa. Eu vou valorizar essa união por toda a
eternidade, como um símbolo do motivo por estarmos aqui, e
nosso propósito nessa vida...
Eu engasguei, rolando os anéis na palma da minha
outra mão quando eu percebi o propósito deles. Quando eu 133
olhei de novo para eles, os dois ficaram quentes, assim como
o livro dourado havia ficado. Estes anéis estavam vivos de
alguma forma, mesmo depois da morte de Edgar, como um
recipiente para a nossa alma.
Eles tilintaram um contra o outro quando eu continuei
mexendo neles, a canção metálica sugerindo sua força e seu
amor eterno. Estendendo a palma da minha mão em frente a
mim, eu puxei o anel de opala da minha mão, colocando o
anel negro na mesa enquanto o pó era soprado de sua volta,
como se ele estivesse respirando.
A gata se afastou do anel negro e ergueu sua pata,
assustada pela vida ao lado dela. Eu deslizei o anel de opala
no meu dedo, achando-o estranhamente reconfortante e
suave como se uma parte de mim tivesse acabado de ser
encontrada. Eu expirei, finalmente encontrando minha
habilidade de respirar livremente.
Nós havíamos nos casado. Nós havíamos ligado essa
vida por mais do que nossas almas, mas pelos nossos
corações também, prometendo um ao outro uma vida que era
eterna. Eu sempre tive a noção que isso tinha sido verdade,
mas eu nunca tive coragem de perguntar.
A página na minha mão era aquela que havia sido
arrancada do meu diário, uma memória que havia sido
roubada da minha vida. Ele havia me protegido dessa
verdade, dando tempo para que a nossa vida nova pudesse se
desenvolver, tempo que nós nunca teríamos. Eu alisei a folha
sobre a mesa enquanto delicadamente puxava os cantos,
encontrando uma memória que eu não estava disposta a
perder.
Eu olhei a página mais de perto, notando que havia
algo rabiscado no verso que agora estava se transferindo para
a parte da frente. Eu virei a folha, examinando os rabiscos 134
escritos.
O anel ainda está vivo, ela também deve estar. Ela
precisa estar. Eu tenho que encontrá-la...
Eu engasguei novamente. O anel de Edgar, ele também
estava vivo. Se ele estava certo, então isso significa que Edgar
ainda está por aí em algum lugar, o mesmo lugar em que eu
estive, a mesma escuridão e desespero da memória perdida e
do sono. Eu fiquei de pé com tanta força que a cadeira caiu
para trás, a minha frequência cardíaca aumentando com a
prova.
Sam apareceu correndo então, sentindo o meu
desconforto e parando na entrada da porta, seus olhos
buscando os meus por respostas.
Eu hesitei por um momento, medindo a minha vontade
de ficar de pé, me endireitando na mesa enquanto ela
balançava por causa do meu peso.
— Ele não está morto, Sam. Ele não está morto.
Capítulo 10
MELHORES AMIGOS
135
Eu deslizei o metal quente na corrente fria, observando
a qualidade do material enquanto arrepios estouravam por
todo o meu corpo. Eu passei o fecho pra trás ao redor do meu
pescoço, apertando-o antes de traçar meus dedos pela
corrente e de volta ao anel, sentindo o calor quando ele caiu
sobre meu peito.
Essa era toda a vida que restava de Edgar, as únicas
respirações que eu sentia agora. Eu me olhei no espelho,
meus olhos capturando o brilho do anel de opala em meu
dedo, minha memória agora reconhecendo o momento que eu
o recebi e me lembrando da sensação. Um ano atrás, eu
nunca teria imaginado essa vida, mas agora eu tudo que eu
conhecia e tudo que eu havia conhecido.
Levantei-me da cadeira da minha penteadeira, meu
quarto agora completamente sem pó e revelando uma
grandeza que eu não havia imaginado antes. A gata estava
esparramada no piso de madeira frio, seu rabo serpenteando
lentamente por seu corpo. Ela estava ronronando para si
mesma, satisfeita com a sua vida agora confortável, embora
bloqueada de sua identidade verdadeira.
As unhas da Isabelle cavaram na madeira da cabeceira
da cama, seu ciúme fervendo de seus olhos raivosos. Eu
andei em sua direção e a peguei em meus braços. Ela se
aninhou, suas garras se curvando enquanto ela aproveitava o
abraço, seus olhos felizes e amados. Ela resmungou baixinho,
suas penas se mexendo enquanto eu passava minha mão
pela sua testa. Eu me virei e olhei para a gata, agora sentada
no meio do piso, nos observando. O olhar em seu rosto não
sugeriu ciúme, mas sim uma sensação de perda e saudade.
Eu coloquei Isabelle de volta na cama e marchei em
direção à porta, a gata trotando atrás de mim. Quando entrei
no corredor, estava bem a tempo de ver Henry mergulhar pela 136
entrada e atravessar a porta para o quarto de Edgar, agora
permanentemente deixada aberta. Eu lentamente me
aproximei do quarto, a sensação uma vez esmagadora no
meu coração agora substituída por esperança.
A grande porta rangeu com um pesado resmungo
quando eu a empurrei e a luz do corredor inundou o espaço.
Meus olhos estavam presos às pinturas, o seu conteúdo
macabro era um lembrete assustador da maldade no mundo,
no passado e no presente. Eu me permiti observar cada peça
com um respeito que eu não tinha antes, encontrando entre
elas os trabalhos de Francisco Goya e Caravaggio.
Descobrindo que eu não conseguia mais aguentar, eu
desviei os olhos, meu olhar se voltando para o quarto em si.
As paredes negras davam ao espaço uma sensação de
infinito, mas também de frieza. Eu cautelosamente andei
entre as pilhas de livros, meu corpo rompendo as teias de
aranha que tinham conseguido se agarrar à poeira.
A cama de Edgar era bem parecida com a minha,
envolta desde o teto por metros de tecido grosso, aveludado e
uma cabeceira dourada. O tecido também era negro e eu me
encontrei com ciúmes que ele escondia mais luz do que o
meu, permitindo a ele uma noite infinita.
A gata correu atrás de mim e cruzou o quarto, pulando
para a cadeira que estava ao lado da cama. Eu a segui
quando bravamente sentei-me entre as cobertas luxuosas,
todas retorcidas de uma maneira febril pelo sono raivoso de
Edgar. Eu respirei fundo enquanto corria minha mão pelo
tecido, imaginando que ele ainda estava quente como se ele
tivesse acabado de estar ali.
Inclinei-me de volta no espaço que ele havia deixado,
permitindo que ele confortasse o meu corpo com uma falsa
sensação de segurança. Quando olhei para o topo da cama 137
com dossel, meus olhos foram atraídos por um grande mural
que havia sido pintado acima. Eu bufei comigo mesma,
percebendo que o mural parecia bastante com aqueles da
Capela Sistina e não escapou da minha atenção que ele possa
ter sido pintado pelo próprio Michelangelo.
As nuvens estavam tempestuosas e, no entanto eram
rosa, como se estivessem no pôr do sol, torcendo seu
caminho pelos braços e pés de cinco anjos. Eu sorri,
imaginando Sam como um deles, vestido com sua jaqueta de
couro e tênis e tocando uma harpa. Minha cabeça permitiu
que a música começasse a tocar enquanto eu imaginava o
mural tomando vida, agora certa de que o tema era real.
Eu coloquei as mãos atrás da minha cabeça,
assimilando a vida que ainda não havia notado neste lugar.
Eu respirei fundo enquanto meu olhar caía sobre outra
pintura que estava pendurada na parede diretamente à
minha frente. Eu apertei meus olhos por causa da poeira e da
luz fraca, tentando observar as grandes dobras de tinta e tela.
Enquanto a cena se desenrolava eu vi que havia uma
grande janela, a cortina puxada por uma mão delicada de
uma mulher cuja cabeça estava virada para encarar a outra,
sussurrando em seu ouvido. O sorriso agora familiar da
segunda garota era sem dúvidas o meu, mas meus olhos
estavam semicerrados enquanto eu parecia me inclinar para
frente em um ataque de riso. Eu sorri, achando a felicidade
agridoce e cheia de verdadeira alegria e vida.
Enquanto eu continuava a refletir sobre a cena, minha
mente sugeriu um cenário. O tópico era que a primeira garota
estava me contando uma piada, ou melhor, tirando sarro de
seja o que fosse que estava do lado de fora, e para um efeito
dramático eu imaginei que fosse Sam, inconsciente de nossas
ponderações voyeuristas.
138
Eu sorri, finalmente descobrindo que havia graça no
mundo de Edgar e um senso de família e amizade. Eu
continuei a sorrir enquanto observava os olhos divertidos da
minha amiga, encontrando o brilho prateado familiar e o
cinza ostra de seu vestido como aquele de alguém que eu
amei profundamente. Foi aí que eu lembrei que ela era
Margriete, e meu sorriso cresceu ainda mais.
Eu pulei quando a gata saltou da cadeira para a minha
barriga, virando-se para encarar a pintura assim como eu
estava. Eu coloquei minha mão em suas costas enquanto
meu sorriso começou a sumir e meus olhos se arregalaram.
Ela soltou um miado de dor e olhou para mim, seus olhos
confirmando minha repentina percepção.
Eu engoli em seco, minha outra mão saindo da minha
nuca para cobrir minha boca, meus olhos agora absorvendo a
silhueta misteriosa da gata ao lado do rosto de Margriete.
— Não... — Eu sussurrei para mim mesma, como se
estivesse tentando negar os fatos que a minha cabeça estava
me contando. — De jeito nenhum, não. — Eu me sentei, o
pensamento fazendo cócegas na minha mente.
A gata montou em meu colo quando eu me puxei
contra a cabeceira da cama.
— Você não pode ser... — eu ofeguei novamente.
A gata piscou seus olhos prateados como moedas de
dez centavos na penumbra do quarto, o mesmo oval suave
daqueles da pintura.
Eu agarrei a face da gata entre minhas mãos, seus
bigodes se amassando nos meus dedos.
139
— Você é... — eu pausei, minha mente ainda um
borrão de percepção súbita. — Margriete? — Uma risada
escapou dos meus lábios quando falei, o absurdo de minha
ideia próximo à insanidade, mas era muito estranho para
negar.
Minha risada cessou quando a gata uivou de dor,
tirando sua cabeça do meu alcance enquanto começava a
sibilar e gemer, suas unhas agora se afundando nas minhas
coxas. Ela olhou para mim, terror passando por seus olhos
enquanto ela os disparava pelo quarto. Eu assisti horrorizada
quando ela começou a se contorcer diante de mim como se
estivesse possuída pelo próprio diabo.
Eu silenciei um grito quando seu pelo começou a cair,
seu corpo borbulhando como uma panela de água. Henry
voou de um canto escuro onde devia estar se escondendo e
pousou ao meu lado, suas asas se abrindo de uma maneira
protetora como se ele estivesse analisando a gata, agora
encolhida no meu colo, respirando pesadamente enquanto
seu corpo continuava a tremer e se contorcer.
— Sam! — Eu gritei, tentando colocar minhas mãos na
gata na minha tentativa de acalmá-la, de ajudá-la de alguma
forma.
O som alto de asas batendo era audível da entrada da
porta quando Sam cortou pela sala e mergulhou no cômodo,
seu grande corpo batendo numa pilha de livros e deslizando
pelo chão. Ele me olhou com olhos frenéticos enquanto as
orelhas da gata se achatavam contra sua cabeça, seu ódio
por Sam ainda grande apesar de sua dor certa.
— A gata, Sam! Algo está errado! — eu estava
respirando com dificuldade, meu olhar zanzando entre Sam,
Henry e a gata.
140
Sam estava ao meu lado em duas grandes passadas,
livros e papéis voando por toda a parte em seu rastro. Ele
pegou meu braço e me tirou debaixo da gata enquanto o
corpo dela começava a crescer, esmagando minhas pernas
sob o seu peso.
— O que aconteceu Elle, o que você fez? — Sam me
embalou em seus braços enquanto nós dois assistíamos,
horrorizados.
— Eu... — eu pausei, minha voz embargada na
garganta enquanto a gata começava agora a se transformar
com mais rapidez do que antes, — eu apenas... disse...
Margriete.
Ele inclinou a cabeça em confusão enquanto um olhar
em branco cruzava seus olhos. — Você disse o quê?
— Magriete — eu implorei. — Eu apenas pensei... os
olhos! — Eu apontei para a pintura.
Sam seguiu minha mão, me colocando no chão
enquanto se apressava para onde a gata estava agora se
retorcendo nos lençóis, não mais se assemelhando a um gato,
mas sim a um leão deformado.
— Elle, me ajude. Pegue um de seus membros. — Sam
conduziu-me para frente com a mão, agora mostrando
preocupação pelo animal ao invés de ódio.
Eu corri para a cama, meus olhos tentando discernir o
que era um membro nesse ponto. Eu peguei uma grande pata
deformada, pressionando-o com força contra os lençóis
enquanto meus olhos se recusavam a piscar. Suas garras me
atacavam, seus movimentos selvagens e flagrantes, como se
estivessem sendo controlados por algo que não era ela e sim
um mal diabólico que havia vivido dentro dela. De repente, 141
suas garras caíram quando algo começou a pressionar pelo
restante de pelo que havia, algo nu e suave.
— Sam! Sam, olha! — Eu desviei sua atenção do aperto
que ele tinha nela enquanto ele olhava para onde eu estava.
Todo o pelo havia sumido como uma cicatriz sendo tirada,
revelando uma pele rosa fresca de um humano.
Sam riu então e a largou.
Eu olhei para ele com alarme.
— Do que você está rindo? Isso não é engraçado! — Eu
vociferei.
Assim que as palavras saíram dos meus lábios tudo
cessou e o restante de pelo caiu. Ela se contorceu uma última
vez enquanto se encolhia como um bebê, sua respiração
pesada. Eu encarei embasbacada enquanto ela permanecia
deitada nua, entre os destroços de seu antigo eu, aterrorizada
e com frio.
— Viu, ela está bem. — O sorriso dele era presunçoso.
Minha boca se abriu enquanto eu observava o ser
diante de mim, a figura humana, e ainda assim não o era.
Seu rosto estava coberto por suas mãos, a luz fraca do quarto
era dura contra sua pele jovem. Enquanto sua respiração
desacelerava, ela espiou por trás de sua mão, tentando
levantar seu corpo, mas falhando enquanto ela caía de volta
na cama. Eu me ajoelhei ao lado dela quando seus olhos
encontraram os meus, brilhando com a mesma luz de antes.
Eu estiquei minha mão e a coloquei em sua coluna.
— Margriete?
142
Ela choramingou então, e eu sabia que estava certa.
Capítulo 11
REAJUSTE
143
Eu pressionei uma xícara de água quente nas mãos
frias de Margriete, seu corpo ainda tremendo de choque e
medo. Seus olhos agradecidos me encararam, seu cabelo
fibroso e branco como uma cascata, caindo sobre o robe que
eu havia dado a ela.
— Eu ainda não consigo acreditar. — Eu olhei para
Sam. — É realmente ela.
Sam deu de ombros.
— Eu já tinha visto um monte de coisas estranhas em
minha vida, mas isso foi definitivamente a primeira vez. —
Ele gargalhou sob sua respiração. — Sempre há alguma coisa
nova nesse trabalho, — ele adicionou.
Olhei de volta para Margriete enquanto ela
apressadamente tomava um gole da xícara, suas mãos
desajeitadas enquanto ela agarrava a porcelana como se
tivesse sido há décadas desde que ela tinha usado suas
mãos.
— Eu estou feliz que ela não é mais aquela gata
nojenta. — Sam gargalhou, seus olhos examinando Margriete
enquanto ele lia seus pensamentos. — E ela também está. —
Ele apontou para ela.
Ela concordou com a cabeça em direção a mim, sua
capacidade de falar perdida depois de tanto tempo presa no
corpo de um felino. Sam era incapaz de ouvir seus
pensamentos enquanto ela era um animal, mas agora, eles
começavam a ficar claros e então ele estava agindo como meu
intérprete.
Sam olhou para mim, a excitação enlaçando seus
pensamentos. — É fascinante, não é? E se houvessem mais 144
deles, assim como ela? E se houverem? Poderia existir mais
da sua espécie, Elle! Muitos mais!
Margriete bateu freneticamente no braço de Sam, seus
olhos assustados examinando os dele.
— Não, — ele sacudiu a cabeça. — Exceto aquela, —
ele respondeu.
Margriete soltou um suspiro pesado de alívio.
— Exceto qual um? — Eu perguntei febrilmente, agora
batendo no outro braço dele.
Ele riu. — Isso é mais ou menos legal, duas mulheres
lutando em minhas mangas.
Margriete e eu lhe demos um olhar de nojo e nos
afastamos.
Sam riu de novo.
— Bem, droga. — Ele olhou para mim. — Ela
perguntou sobre Matthew.
— Oh, — eu respondi, desviando o olhar dela com
vergonha.
Margriete agarrou meu braço, então, balançando a
cabeça com um olhar desesperado.
Sam suspirou.
— Ela diz que você não deve se envergonhar, ela está
feliz em ver que ele se foi.
Eu balancei a cabeça em direção a ela.
145
— Eu sinto muito, Margriete. Eu realmente sinto.
Ela balançou a cabeça mais uma vez e sorriu, abrindo
sua boca quando ela tentou falar, mas ainda não
encontrando as palavras.
Sam cruzou os braços e revirou os olhos.
— Ela quer que eu lhe diga que você é sua melhor
amiga e ela sempre amou você e Edgar, mais do que ela
poderia amar Matthew, — disse ele a contragosto antes de
olhar Margriete. — Chega dessa coisa melosa agora, isso foi
tudo, — ele ergueu um dedo, sacudindo-o em sua direção
com um olhar de aviso.
Ela riu.
— Oh, nossa. — Sam parou com os calcanhares
fincados no chão, com ódio. — Eu não posso lidar com isso,
eu estou fora, — ele jogou as mãos no ar e marchou para fora
do quarto.
Olhei para Margriete com o rosto assustado. Ela me
deu um sorriso travesso, sugerindo que ela tinha dito a ele
coisas para fazê-lo sair, sabendo do desconforto de Sam sobre
emoções humanas.
Eu ri, curiosa sobre o que ela tinha dito que o tinha
feito deixar o quarto.
Sam colocou a cabeça de volta para dentro, olhando
para mim com desaprovação.
— Ela me disse que era grata a mim, e que me amará
como a um irmão por toda a sua vida, — ele retrucou, seu
corpo visivelmente desconfortável com a situação. Ele se
encolheu para a cozinha, em seguida, irrompendo para fora 146
com raiva silenciosa.
Virei meu olhar de volta para Margriete, alguém que eu
senti que mal conhecia e que, ainda assim, parecia conhecer
como uma irmã. Ela sorriu quando uma emoção exultante
atravessou seu rosto.
Eu sorri e suspirei.
— Eu não sei muito sobre você, além daquilo que
Edgar me disse. — Fiz uma pausa, pensando no que dizer. —
Eu gostaria de saber o que aconteceu, eu gostaria de me
lembrar, então eu saberia o que fazer. — Eu suspirei.
— Às vezes, eu me sinto tão desconectada de tudo,
como se a minha mente ainda estivesse lutando para
compreender que tudo isso é verdade.
Margriete assentiu, cruzando as pernas no sofá e
puxando um cobertor sobre eles. Ela respirou fundo e franziu
sua testa, forçando sua boca em vários formatos.
— Eu... — sua mão foi para a garganta onde ela se
sentia sua voz enquanto ela se partia através de suas fracas
cordas vocais. — Eu... posso... — ela fez uma pausa
enquanto tentava limpar a garganta, o movimento de sua
mandíbula flagrante quando ela exigiu pelas palavras. — Eu
posso ajudar.
Eu sorri.
— Espero que sim, — eu sussurrei, acariciando-lhe o
braço. — Você deve estar de volta ao normal em breve. Eu só
gostaria que você pudesse me dizer mais. — Revirei os olhos.
— Sem que ele esteja por perto — eu apontei na direção da
cozinha, sabendo que Sam tinha provavelmente ouvido meus
pensamentos sobre o assunto.
147
— Me... conte... o que aconteceu — Margriete
estremeceu na última palavra.
Eu respirei fundo. — Você quer dizer, depois daquele
dia na floresta quando eu segui você?
Ela assentiu com a cabeça.
Eu soltei uma risada aguda.
— Bem, eu gostaria que você não tivesse feito com que
eu a perseguisse. — Eu levantei minhas sobrancelhas para
ela.
Ela encolheu os ombros, o rosto torcido numa inocente
careta.
Eu bufei.
— Não seja tão inocente. — Eu balancei minha cabeça.
Seu rosto agora parecia chocado e culpado.
Eu ri, colocando a mão sobre a dela. — Eu estava só
brincando!
Margriete expirou com alívio, agarrando o próprio
coração para efeito dramático. — Eu... deveria... ter
adivinhado, — ela fez uma pausa para engolir — sua
engraçadinha. — Um sorriso rastejou através seu rosto.
Eu ri. — Então eu pareço a mesma, você sabe, como eu
costumava ser?
Ela balançou a cabeça com um sim, seus olhos se
arregalados e sérios.
— Sério, então eu não me pareço diferente em nada? 148
Porque você sabe como eu acabei deixando esta vida, certo?
— Meus olhos procuraram os dela, perguntando o que ela
poderia saber sobre o que tinha acontecido.
Ela revirou os olhos, erguendo o pescoço para se
preparar para o discurso. Ela estava melhorando de forma
preocupantemente rápida.
— Eu vi... acontecer, — seus olhos se tornaram graves
— eu sei onde... você foi... eu estava lá.
Eu parei, minha frequência cardíaca aumentando com
o pensamento.
— Você sabia onde eu estava, enquanto eu estava
morta? — Minha mente repousava em um lugar egoísta, um
lugar onde eu poderia encontrar Edgar.
Ela balançou a cabeça negativamente, mas depois
parecia confusa e balançou a cabeça com um sim.
— Sim, mas não... você não esteve sempre... morta...
— O que você quer dizer? — Eu gritei de volta antes
dela ser capaz de terminar.
— Você... estava enjaulada... — Ela respirou fundo e
fechou os olhos — ...dormindo. — Ela chegou mais perto de
mim e eu podia ver que ela estava tentando ser discreta, mas
com Sam, isso não tinha utilidade. Sua voz era rouca
enquanto deixava seus lábios.
— Você só pode morrer... se você for apunhalada pelo
punhal dos deuses, que Matthew tinha... roubado. — Ela
engoliu em seco. — Mas... eu realmente acredito que foi
concedido a ele pelos próprios deuses... outro peão no jogo 149
deles... contra... nós.
Eu olhei para ela com espanto, achando sua fala quase
normal se não fosse o arrastar ocasional de hesitação em sua
garganta.
— A adaga, — sussurrei. — Mas... — o meu rosto
transtornado — eu a tenho comigo.
Ela engasgou com minhas palavras, tossindo como se a
respiração tivesse feito cócegas em sua garganta.
— Você a tem?
Dei-lhe um aceno solene.
Excitação encheu seus olhos. — Se você a tem, então
nós podemos usar isso contra eles.
— Contra quem? — Eu perguntei, achando a história
agora perdida.
Ela estreitou os olhos para mim, confusa com meu
comentário. — Você não sabe?
Eu sacudi a cabeça.
— Edgar não deve ter dito a você, — ela tossiu
fortemente, liberando a garganta antiga.
Eu estremeci.
Ela continuou. — Os deuses...
Eu a interrompi. — Eu sei sobre os deuses, e como nós
chegamos aqui, mas eu nunca soube sobre o punhal.
150
Ela balançou a cabeça. — Mas, você sabe sobre como
os deuses fizeram o punhal, e o que ele faz?
Eu dei de ombros.
Ela sorriu para si mesma, como se satisfeita com o
conhecimento secreto que ela possuía. — Bem, o punhal nos
mata. Mas, pode também matá-los. Diz-se que quem livra a
terra de nossa espécie, é então digno o suficiente para
desafiar um assento entre os deuses. Os deuses estão
ameaçados por nós, pois embora tenham criado a nossa
espécie, nos fizeram melhores do que eles mesmos. Eles estão
com inveja e com medo.
Pisquei algumas vezes enquanto deixava a informação
ser processada.
— Mas como é que Matthew a conseguiu? — Minha voz
era agora um murmúrio, para combinar com a dela.
— Eles a deram a ele, porque sabiam que ele tinha
raiva e ódio o suficiente para matar todos nós, mas também
era fraco o suficiente, que ele nunca iria vencê-los. Ele foi
criado para falhar. — Margriete suspirou, e um pequeno
sorriso deslizou em seu rosto. — Matthew não foi sempre
assim como você o conhece hoje. Ele já foi bonito e amável e
ele me amava muito. Nunca houve um lampejo de mal em
seus belos olhos prateados, não até que... — Seu rosto
mudou de repente. — Eu me lembro do dia, as vozes
sussurradas no quarto abaixo do meu. Eu sabia, mas
ninguém nunca acreditou em mim. Exceto você Elle, você
sempre fez.
Vi seus olhos começarem a se inundar de lágrimas.
— Você acreditou em mim. Mas Edgar silenciou você
muito rapidamente. 151
O anel no meu peito de repente respirava com
dificuldade contra a minha pele, como se reagindo ao
comentário de uma forma negativa.
— Quando descobri o que estava acontecendo, fui até
os deuses. Levei meses para descobrir onde eles se
escondiam, e para você, eu já estava morta. Doía-me fazer
isso, mas eu sabia que precisava, que era minha culpa ter
permitido que minha outra metade se tornasse tão ingênua e
crédula, eu sabia que era meu trabalho corrigir tudo. — Uma
tosse violenta a silenciou.
Entreguei-lhe outra xícara de água que estava sobre a
mesa de centro.
Ela tomou um grande gole, permitindo que escorresse
por sua garganta. — Mas os deuses riram das minhas débeis
tentativas, e me amaldiçoaram a vagar pela Terra como uma
gata até o dia que alguém se importasse o suficiente para
pronunciar o meu nome, como você fez. Estou para sempre
despojada de minha capacidade de voar e a vida de corvo me
deixou. Naquela forma de gato, eles sabiam que Matthew
acabaria por me encontrar, justamente porque ele ainda não
tinha tomado a minha alma, mas conforme o tempo se
arrastava, eu acho que ele desistiu. — Ela colocou o copo de
volta em cima da mesa. — Tudo isso, era tudo um jogo
doentio.
Olhei para as minhas mãos. — Não me admira que eu
odeie Monopoly2, — sussurrei baixinho, lembrando Scott e
Sarah.
Ela riu, ao ouvir o que eu tinha dito.
Eu sorri. — Mas agora que temos a adaga, nós temos o 152
poder, certo? E tudo o que resta somos você e eu?
Ela balançou a cabeça. — Eu não tenho certeza, como
eu disse, eu acho que Edgar sobreviveu. Por alguma razão, eu
acho que eles o mantém vivo. Afinal, ele seria a última
metade masculina.
Eu agarrei o anel na mão, torcendo o metal aquecido
entre meus dedos.
Margriete continuou a falar, sua voz mudando de rude
a quase melódica. — Eu não tenho certeza de quais eram
seus motivos, eu sempre acreditei que era para livrar-nos
desta terra, mas agora, eu não vejo a racionalidade nisso.
Temos o punhal, mas não adianta de nada para nós se os
matarmos, mas talvez haja uma maneira de negociar com
eles. Se for verdade que quem detém a adaga tem uma
legítima oportunidade no trono dos deuses, eu tenho certeza
que eles não querem que ela caia em mãos erradas. Há
muitas criaturas que vagam na terra, criaturas que não são
naturais aqui. Os deuses permitiram muita vulnerabilidade, e
eu tenho certeza que eles estão nervosos que nós
conseguimos. Talvez...
2
Monopoly — Jogo no qual foi inspirado o Banco Imobiliário aqui no Brasil.
Ela se esgotou, seus olhos vidrados como se numa
revelação. Sentei-me em linha reta como uma seta, ansiosa
para ouvir o que ela tinha a dizer.
— É exatamente isso! — Ela engasgou. — Eles querem
que você a leve de volta para eles. Eles sabem que você a tem,
então eles tomaram Edgar como garantia. 153
Meu coração disparou. Sim! Fazia sentido. De repente
não pude me controlar e conter minha felicidade e eu lhe dei
abraço enorme, espremendo o fôlego de seus pulmões
enquanto ela estremecia sob meu aperto. Eu a soltei e ela
caiu para trás, seu corpo esmagado por minha emoção.
Bati as mãos contra o couro do sofá.
— Então tudo o que temos a fazer é levá-la até eles! —
Eu gritei com entusiasmo.
Ela bufou e revirou os olhos, zombando de mim. — Não
é assim tão fácil, chegar lá é uma outra história. Não é como
se você pudesse caminhar até a porta da frente dos deuses e
tocar a campainha, ou pegar o próximo ônibus na rodoviária.
Se isso fosse verdade, você poderia imaginar quantas religiões
lutariam por essa propriedade, pelo ônibus?
Eu dei uma risada.
— Bem, então onde é? — Eu franzi minha testa.
Ela encolheu os ombros. — Jerusalém.
Eu ri novamente. — É, certo, você está brincando.
Ela sorriu. — É, você está certa, eu estava brincando.
Eu dei-lhe um soco brincalhão no braço enquanto nós
duas rolávamos de rir.
Ela prendeu a respiração antes de continuar.
— É em todo e qualquer lugar, Elle. — Ela colocou as
mãos no ar e as acenou por aí como uma hippie em um 154
concerto do Santana. — Mas a parte mais difícil é a sua
mente que cria. Sejam quais forem seus medos mais
profundos, quaisquer que sejam suas piores memórias, serão
mostrados para você lá. Você tem que ser forte para isso, e
você tem que estar preparada para ver as coisas do seu
passado, todas as coisas, mesmo se sua mente não puder se
lembrar. — Ela estremeceu, lembrando sua própria
experiência. — E você tem que esperar que, em sua defesa,
eles vão tocar todas essas cordas. Eles vão usar todas as
coisas que poderiam fazer você ficar louca, com medo e até
mesmo suicida.
Eu expirei.
— Eu posso fazer isso. Temos que fazer.
Margriete agarrou minha mão.
— Nada os impedirá de destruir você antes de alcançá-
los, para tirarem a adaga de você antes de terem que desistir
de Edgar. — Seus olhos eram tempestuosos e duros. — E
depois de tudo, eles vão supor que nós estamos lá para
desafiá-los. Eles são esperando seduzi-la e matá-la,
certamente não permitirão que você tenha Edgar de volta.
Tenho certeza de que pretendem se desfazer dele assim que a
adaga esteja de volta, segura, em suas mãos.
Eu olhei para ela com um olhar severo.
— Edgar é uma parte de mim e eu não posso viver sem
ele. Eu devo isso a ele, a nós. O que é a vida sem isso?
Os olhos de Margriete caíram e eu vi que as minhas
palavras a tinham machucado.
— Eu sinto muito — meu olhar caiu em tristeza. — Eu 155
não queria dizer isso assim.
Ela suspirou.
— Não se desculpe, é o meu fardo para suportar.
Matthew me deu uma vez o amor que eu merecia, e que é
suficiente para servir-me até ao fim. Devo sacrificar a minha
felicidade por causa das escolhas que eu fiz. — Ela se virou e
olhou para a nossa pintura na parede, apreciando a tarde,
como sempre. — Eu tenho essas memórias para me apegar, e
viver o tempo suficiente para recordá-las é tudo que eu
sempre precisei. Mas se eu fosse você, e meu amor
necessitasse ser salvo, eu não hesitaria, Elle. — Ela segurou
minha mão ainda mais apertado.
— Bem, então. — Eu parei e dei um passo em direção à
porta, notando que Sam estava lá de pé, quem sabe por
quanto tempo.
— Sinto cheiro de aventura, — ele fervia.
Eu suspirei. — O que faz você pensar que está
convidado?
Ele deu uma gargalhada. — O que faz você pensar que
eu ia deixar vocês, meninas, irem sozinhas?
Todos nós rimos enquanto eu concordava. — Tudo
bem.
Margriete fez um movimento para levantar-se, mas o
cobertor se enrolou ao redor de seus pés. Ela começou a cair
para o chão, mas de repente, em um flash de luz, ela mudou.
Suas quatro patas bateram na madeira com um baque suave,
graciosamente incólume, enquanto o cobertor caía ao seu
redor.
156
Eu gritei, levando minha mão para a boca, quando
puxei uma respiração, aterrorizada. Eu assisti com horror
como Margriete olhou para mim com seus olhos felinos,
miando com uma ponta de desdém. Eu continuei a prender
minha respiração enquanto ela piscava, seu corpo de repente
se contorcendo como antes, mas muito mais rápido desta vez.
Ela respirava com dificuldade quando ela finalmente
mudou, deitada no chão em sua forma humana, nua e a
tremer. Sam tinha um sorriso lascivo em seu rosto e eu lhe
bati com força, correndo para seu lado e envolvendo um
cobertor em torno dela.
— Vai levar tempo para me acostumar com isso, — ela
respirava enquanto eu a ajudei a se erguer do chão.
Eu sorri. — Eu acho que você e eu temos os mesmo
problemas para resolver.
Ela inclinou seu peso sobre mim enquanto eu
caminhava com ela em direção a Sam e ele a pegou em suas
mãos fortes.
— Leve-a até a minha cama, onde ela pode descansar.
— Eu apertei o braço dela uma última vez.
Margriete me deu um sorriso cansado. — Obrigada,
Elle, por me trazer de volta. Eu sabia que de todas as
pessoas, você veria através de mim.
— Claro que sim, você é a minha família. — As
palavras ferroaram meu coração, quando eu percebi esta vida
valeu a pena, e valiam os 18 anos que tinha perdido na
tristeza e dor. Quando Sam se afastou senti um calor voltar
ao meu coração e um amor que eu tinha sentido falta. Cerrei
meus punhos, encontrando o meu caminho agora claro e
minha mente pronta. 157
Capítulo 12
O PLANO
158
— Quem é a gata? — Scott se afastou de Margriete
quando ela se sentou no tronco ao nosso lado, sacudindo o
rabo para frente e para trás e o musgo cresceu sob ela como
um cobertor de lã verde suave.
— Oh, apenas uma amiga, — eu disse levemente, não
atraindo muita atenção para o fato de que ela era um animal
totalmente perfeito, com olhos sobrenaturais e talentos
semelhantes aos meus.
Sarah a encarava com fascínio doentio, seu olhar
nunca vacilando com exceção das vezes ocasionais em que
olhava para as árvores, onde tanto Isabelle quanto Henry
estavam escondidos, vigilantes sobre Margriete, ainda
incertos de quem ela realmente era.
— Ela é tão diferente, onde você a encontrou? — Sarah
estendeu a mão para acariciá-la na cabeça, mas Margriete se
esquivou enquanto fazia para Sarah uma encolhida careta.
— No lago, — eu ri.
Margriete virou-se e assobiou para mim, fazendo com
que Sarah risse.
Peguei o musgo que também tinha crescido em torno
de mim, o tronco completamente brotado folhas, apesar do
fato de que já estava morto há muito tempo.
Margriete continuou a me olhar com desdém e eu sorri.
— Então, — eu tentei desviar a atenção para longe de
Margriete e voltar para o assunto em questão. Eu tinha dado
a Scott uma de minhas penas, em uma tentativa de aprender
mais sobre mim e era o que eu estava aqui para fazer. —
Scott, você encontrou alguma coisa? 159
Olhos de Scott se arregalaram.
— Ah sim, — ele acenou com a cabeça com fervor,
enquanto ele procurava através de sua bolsa, recuperando
uma pilha de anotações amassadas. — Você não estava
mentindo, eu encontrei traços de metal no DNA. Suas penas
agem como um casaco de armas, armaduras, assim como
você sugeriu, — ele fez uma pausa e olhou para a folha que
estava agora abrindo ao nosso lado.
— Seu exame de sangue estaria normal, se não fosse
normal demais. Bem literalmente, suas plaquetas parecem
suspensas no espaço. Você não está envelhecendo.
Ele tocou a folha como se estivesse com medo de que
ela o mordesse.
— E então há essa questão, — ele arrancou a folha do
tronco e a examinou. — Eu realmente não descobri como é
isso ainda, exceto que você parece secretar um gás rico em
vitaminas. É completamente inodoro, mas age bem como um
feromônio, atraindo e estimulando todos que a rodeiam. —
Ele me olhou nos olhos, dizendo-me que sua atração por mim
no ano passado tinha sido uma reação científica, não
necessariamente amor.
Eu balancei a cabeça.
— Eu sabia que não iria envelhecer, mas é tão
estranho, como se tudo dentro de mim tivesse se congelado
quando eu me tornei o que eu sou. E quanto ao gás,
suponho, eu sempre tive isso, embora nunca parecesse
funcionar em pessoas ao meu redor, ou melhor, ele o fazia, e
as assustava completamente.
160
Sarah concordou comigo enquanto ela continuava a
tentar acariciar Margriete. Eu não a culpo, Margriete era
linda, mas eu podia ver o quão degradante isso podia ser
para Margriete também.
— Se você ficar assim vai ter 18 para sempre, — ele
engasgou.
— Bem, esse é o plano. — Eu bufei.
— Você é tão sortuda, — Sarah sussurrou baixinho.
Ela enrugou a testa enquanto olhava para a manta de musgo
embaixo de Margriete. — Ela é...
Eu ri então, cortando-a.
— Sim, — eu disse claramente.
— Oh,— Sarah se afastou dela, de repente percebendo
sua insignificância.
— Confie em mim. Viver para sempre é obrigado a ficar
velho em algum ponto. Em minha opinião, não pode ser tudo
diversão, — eu adicionei.
Sarah me olhou de perto, mudando o assunto.
— Então, você realmente viveu no passado? Isso é
fenomenal, você provavelmente viu tanto!
Encolhendo os ombros, eu pensei em todas as coisas
das quais eu não me lembrava. — Sim, bem, a maioria das
coisas que eu nem sequer me lembro. Minha vida não é assim
tão glamorosa. Você faz com que pareça um sonho, mas na
verdade, eu acho que eu prefiro ser como você, generosa para
com todo este mundo em que eu estou. — Eu pisquei para
Margriete, o sentimento de que ela era uma dos poucas que 161
realmente entendia como era.
O rosto de Sarah se transformou em uma careta.
— Eu não sou assim tão alheia a tudo, eu entendo o
que está acontecendo.
Eu peguei a mão dela em pedido de desculpas.
— Eu não quis dizer isso assim. Eu quis dizer que você
começa a viver onde eu tenho que sofrer.
Ela assentiu com a cabeça, seu espírito retornando
quando ela agora parecia convencida sobre o fato. Era
verdade que, apesar de Sarah se preocupar com este mundo,
ela não tinha que se preocupar sobre viver nele para sempre.
Corri meu pé pelo cascalho do caminho quando
estudantes começaram a surgir para o café da manhã. Eles
me olhavam com um reconhecimento assustador, alguns me
dando um olhar ruim de desgosto, outros observando com
curiosidade, sem vergonha. Meu coração começou a se
apertar, meus nervos assumindo o controle quando eu, de
repente, senti como era diferente. No ano passado, neste
momento, eu tinha sido apenas mais um rosto, mas agora, eu
era muito mais.
Margriete pulou do tronco e andou em direção ao meio
do caminho, opondo-se contra os temíveis estudantes
enquanto ela rolava sobre o cascalho, fazendo com que as
ervas daninhas crescessem ao seu redor. Ela estava
acostumada a ser desumana, acostumada aos olhares e
julgamentos. Não era como se eu não tivesse sido sujeitada a
isso antes, mas nunca de um ângulo de autoridade e
responsabilidade. Eu coloquei a mão no meu peito, sentindo
o espaço uma vez vazio, onde minha alma agora prosperava.
Eles eram as nossas crianças, o nosso futuro, e foi então que 162
senti o peso da minha existência puxando em minha alma.
— Então, o que você vai fazer agora? — Scott cortou o
silêncio.
Dei de ombros e inclinei a cabeça, os olhos ainda
fixados em meus pés.
— Eu tenho que encontrar Edgar, e eu suponho tentar
acertar as coisas.
— Então, você realmente acha que ele ainda está vivo?
— O rosto de Sarah estava torcido com a confusão.
— Sim, eu tenho certeza. — Eu peguei o anel que
estava em volta do meu pescoço e senti uma respiração ao
seu redor, fazendo cócegas nos meus dedos. — Há uma
possibilidade de que ele ainda esteja lá fora em algum lugar.
Uma amiga minha acredita que ela sabe onde, então eu vou
partir por um tempo.
— Uma amiga? — Sarah inclinou a cabeça.
Eu olhei nos olhos dela antes de olhar para Margriete.
— Ah... — Sarah assentiu, ainda confusa com
Margriete em sua forma de gato, mas recuperando-se do fato
de que ela era como eu, e poderia mudar.
— Eu queria vir e dizer adeus. Eu não tenho certeza do
que vai acontecer, mas há uma possibilidade de que esta
possa ser a última vez que eu veja vocês. — Meus olhos
baixaram para meu colo.
Scott colocou a mão nas minhas costas.
163
— Não Elle, eu sei vamos ver você de novo, e isso não é
um adeus. — Ele sorriu e me deu uma piscadela.
Senti o calor crescer em meu coração. Apesar da minha
partida, era bom ter amigos que tinham confiança em mim,
que sabiam que eu iria voltar como eu pretendia.
Margriete pulou no meu colo então, com os olhos
procurando os meus com uma súbita e frenética dica. Eu
curvei minha sobrancelha quando olhei para ela, mas ela
desviou o olhar e até o caminho. Eu segui o seu olhar, o meu
coração parou quando o fantasma de Edgar caminhou em
nossa direção, sua imagem grande e potente. Margriete virou-
se para me ver, suas garras cavando através do meu jeans e
espetando em minha pele.
Ela ainda não tinha visto o fantasma e eu estava certa
de que agora ela sentia o que eu tinha sentido, surpresa e
assustada com o imediatismo do momento, esquecendo o
comportamento inofensivo do fantasma.
Ele voou por nós como se fôssemos nada, Scott, Sarah
e eu seguindo sua imagem com nossos olhos, nossas
respirações rasas e lentas e os nossos corpos congelados. Eu
apertei minha mão em torno do anel no meu pescoço,
sufocando-o em minha mão nervosa. Minha garganta ardia
enquanto eu recusava-me a respirar, com medo de que ele
me percebesse, atacando-me embora eu soubesse que ele não
podia.
Eu senti quando o anel expirou com uma picada
afiada. Eu gritei, largando-o contra o peito como se tivesse
me mordido. Scott foi rápido em silenciar a minha
perturbação quando o fantasma de Edgar parou, virando as
costas e olhando a sua volta. Seus olhos eram frios e escuros,
de alguma forma alterados como se olhando para o inferno
em si. Para alguns poucos momentos ele olhou através de 164
mim, o olhar mudando para um de reconhecimento.
Minha respiração engasgou na garganta assim que seu
olhar caiu para o anel em meu peito, agora queimando em
minha pele. A boca de Edgar se curvou em um meio sorriso
enquanto a minha se abriu em descrença. Embora a troca
tivesse durado apenas uma fração de segundo, parecia ter
sido como uma eternidade quando ele virou seu olhar de
volta, bem a tempo de evitar a dissipação por meio de um
grande grupo de alunos.
Eu olhei para Margriete, seu olhar assustado e
confuso.
— O que foi aquilo? — Eu perguntei.
Ela soltou um miado assustado.
Olhei para Scott e Sarah, ambos ainda atordoados pelo
evento, os olhos fixos nas costas de Edgar.
— O que foi aquilo? — Scott finalmente falou, sua
observação espelhando a minha e seu corpo tremendo com
suspense e medo.
Desde que eu havia dito a eles sobre a morte de Edgar,
eu sabia que eles haviam sentido certo desconforto para com
o fantasma. Sarah tinha expressado que ela tinha notado
uma mudança, como se ele estivesse se aclimatando ao
mundo humano, assumindo uma personalidade própria e
esquecendo o propósito de por que ele tinha sido criado.
— Eu não sei, — eu respirei, minha mente se
acelerando para descobrir o que tinha acontecido. Tinha o
seu fantasma sentido a presença de Edgar através do anel?
Ele sabia? Meu corpo estremeceu com o pensamento, 165
perguntando se era um perigo que eu precisava manter em
mente.
Margriete esperava do meu colo e começou a andar em
frente a mim, seus olhos olhando para trás em direção à
floresta, e depois para mim.
— Eu acho que eu deveria ir. — Eu parei e olhei para
Sarah e Scott, ficando em suspense quando seus rostos me
questionaram. — Eu vou tentar estar de volta em breve, mas
não tenho certeza de quanto tempo será. Algo estranho está
acontecendo aqui, e apenas alimenta minha necessidade de
avançar com meus planos. — Se as histórias que Margriete
tinha me contado fossem verdade, então era incerto o que os
deuses fariam para frustrar meus arranjos. Quanto mais
tempo eu esperasse para agir, mais bem sucedidos eles
seriam em me impedir.
Algo nos olhos do fantasma parecia como um alerta e
eu não poderia deixar isso pra lá. Se houve de fato uma
suspeita de Edgar deixada dentro do holograma, pode ter sido
a sua maneira de me dizer que eu precisava me apressar, ou
o seu modo de me observar. Eu apertei minhas mãos quando
meu estômago embrulhou.
— Desculpem-me, pessoal. — Inclinei-me e dei um
abraço em ambos. — Mas obrigada por todo o trabalho que
vocês fizeram.
Scott saltou para seus pés.
— Mas tenha em mente Elle, você está mais seguro
quando você é... — ele fez uma pausa e olhou em torno dele,
certificando-se de que ninguém estava no alcance da voz. —
Um corvo — ele sussurrou. — A armadura só se aplica assim.
Eu balancei a cabeça antes de me virar no meu
calcanhar e caminhar em direção à floresta, Margriete 166
trotando atrás de mim. Meus braços balançavam livremente
ao meu lado quando entramos nas árvores.
— Como é que seu fantasma mudou assim? Ele é
apenas um holograma, um programa. Era como se, ele tivesse
me visto. — Eu olhei para Margriete, mas ela não me deu
nenhum sinal ou resposta.
— Você sentiu que era perigoso? — Eu olhei para trás
para a trilha. — Quero dizer, você acha que os deuses sabem
sobre o fantasma? Você acha que eles estão usando isso
contra mim? — Minha mente não conseguia parar de
perguntar essa mesma questão, na fronteira com a loucura.
Quando eu virei para trás para olhar para Margriete,
ela de repente estava ao meu lado, novamente humana. — Eu
realmente não sei, alguma coisa não estava certa, porém, o
meu coração estava acelerado, mas por quê? Eu não costumo
ter esse tipo de reação, e não foi o fato de ver seu rosto
também. Eu acho que os deuses estão a ficar ansiosos, com
medo de que se eles permitirem que você continue a formular
um plano, que você possa finalmente prejudicá-los.
Margriete vinha praticando com sua nova forma,
acostumando-se com a sensação de ser gato, em vez de corvo.
Tínhamos ambas descoberto como manter nossas roupas
agora e tínhamos dominado como nos mudar sem som,
apenas um sopro contínuo de ar. Minha mudança tinha sido
um pouco mais difícil de dominar, mas eu estava começando
a me acostumar com isso. Minha natureza desajeitada por ter
crescido como humana tinha estragado a minha reputação
uma vez graciosa. Mesmo Margriete tinha comentado sobre o
constrangimento de meu novo corpo, como se ainda não
soubesse como se manter com a minha mente.
— Estranho, — eu finalmente respondi. — Você acha
que precisamos nos preocupar? 167
Margriete olhou ao redor para as árvores que agora nos
engolfavam. — Eu acho que o mais importante é termos
Edgar de volta agora, todos os preparativos que fizemos
precisam ser colocados em ação. Não podemos permitir que
esta distração nos desvie. Além disso, a melhor pessoa para
lidar com o problema é o próprio Edgar, é apenas mais uma
razão pela qual salvá-lo é bastante inútil.
Eu expirei, achando o motivo de salvar Edgar
irrelevante, mas a certeza na voz de Margriete foi
reconfortante.
Uma grande fenda se abriu nas árvores acima de nós
quando Sam caiu à nossa frente, o terreno entrando em
colapso sob o peso dele e sacudindo as árvores próximas.
Margriete soltou um suspiro de aborrecimento.
— Ele é sempre tão dramático?
Eu coloquei minhas mãos em meus quadris e me apoiei
em um dos pés. — Infelizmente.
— Olá senhoras, — Sam deu um passo à frente, içando
seu grande corpo para fora da cratera que ele tinha feito.
Ele se aproximou Margriete e levantou-a em seus
braços enquanto ela gemia com ódio. Como ela não podia
voar estava sendo submetida às mesmas provocações
narcisistas que Sam tinha me forçado a suportar. Eu
rapidamente me transformei, agora pairando entre os ramos,
minhas asas hesitando no ar espesso e enevoado.
Com um aceno de cabeça nós dois nos atiramos em
direção ao céu, e eu peguei um vislumbre de Margriete
quanto ela virou para trás se transformando em gato, 168
cravando as garras no peito de Sam com despeito. Sam
estava olhando para ela com desgosto, permitindo que ela se
agarrasse a ele embora, obviamente, não gostasse da
proximidade. Se alguém pudesse ver agora o nosso desfile de
amigos, certamente acharia engraçada a estranha aliança.
Havia dois falcões, um corvo branco, e um anjo com um gato
lutando em seu peito, todos voando através da floresta.
Sam me olhou quando entramos no prado, seu olhar
envergonhado após a reprimenda que ele tinha finalmente
recebido pelo que ele tinha feito para o meu carro. Ele estava
aprendendo as regras da casa, e eu estava grata que ele
estava pelo menos tentando cumpri-las. Ele pousou no prado
com outro baque pesado, sacudindo Margriete, enquanto ela,
impotente, se agarrou a sua camisa, suas patas traseiras
pendendo livres.
Ela assobiou para ele enquanto ela rapidamente se
transformava novamente e depois lhe deu um tapa no rosto.
Com um dramático resmungar, ela saiu batendo os pés em
direção ao meio do campo, a grama se tornando um vermelho
vibrante em sua trilha. Eu ri e olhei para Sam quando nossos
olhos se encontraram.
— Eu acho que ela vai se recuperar, Sam, me desculpe.
— Eu bati a poeira do meu jeans e colete de lã.
Ele bufou, um sorriso divertido cortando através de seu
rosto branco.
— Ela certamente é divertida de se provocar, no
entanto. — Seus olhos a seguiram enquanto ela desaparecia
na fina névoa, agora dentro da casa.
— Ela não é realmente o seu tipo, de qualquer forma —
eu brinquei.
169
Ele caminhou em minha direção e colocou o rosto bem
próximo do meu.
— Ela é mal-humorada, o que mais você poderia
querer?
Chocada, eu olhei para ele de lado.
Ele se inclinou para trás, — Estou só brincando.
Eu ri baixinho, trazendo a minha mão para meu peito.
— Vá sonhando.
Suas sobrancelhas subiram e houve indício de algo
grave persistente por trás de seus olhos dourados.
Eu rapidamente olhei para longe, achando essa
revelação intrigante, mas também sentindo o
constrangimento que tinha, de alguma forma, aparecido entre
nós. Estávamos unidos. Eu engasguei então, afastando-me
dele enquanto me recusava a achá-lo divertido e simpático.
Tossi para aliviar o gosto da minha boca, andando em direção
à casa com dignidade e segurança.
Voltando a minha mente para teorias mais produtivas,
eu pensei sobre o nosso plano já definido. Hoje à noite nós
íamos embora, para onde ainda não estávamos certos.
Margriete informou-me que o seu diário dourado possuía
todas as ferramentas que precisávamos para encontrar o
nosso caminho, e ela estava confiante como nossa guia.
Eu podia ouvir Sam atrás de mim enquanto eu
caminhava para o meio do campo, onde eu peguei uma
maçaneta invisível, agora acostumada o suficiente para saber
onde encontrá-la. Abrindo a porta para Sam, nós dois
desaparecemos para dentro, o prado agora regressando à sua
beleza silenciosa enquanto nossos sapatos ecoavam no
granito da entrada. Descendo para a biblioteca, encontramos 170
Margriete com o nariz no livro de ouro, sua mão traçando no
ar, acrescentando algumas anotações nas páginas mágicas.
Ela não olhou para cima quando entramos, sentindo a
nossa presença.
— Então, eu queria ter certeza de ficar de olho no que
eu tinha feito da última vez, — ela apontou para a página que
mostra a imagem dela como um gato, entrando na caverna.
Tinha sido uma das primeiras páginas que eu tinha
virado quando eu encontrei o livro e minha mente se lembrou
do momento e como encantada e espantada eu tinha ficado.
Muito aconteceu desde aqueles dias, e agora ela havia criado
novos registos, tudo magicamente escrito em seu livro vivo,
um pedaço de sua mente.
As palavras transformavam-se em ouro quando ela
deslizava seu dedo ao longo de cada linha, reagindo ao seu
toque familiar. Quando ela sentou-se, elas se desvaneceram
novamente ao preto, movendo-se como se suspensas na
página, como pequenas cobras. Eu senti o sotaque familiar
do ciúme crescendo em meu coração, desejando que meus
diários também fossem tão especiais.
— Eu acho que nós deveríamos tentar alinhar nossos
pensamentos o melhor que pudermos. Se pudermos pensar
as mesmas coisas, eu acho que a caverna irá revelar-se mais
facilmente, — continuou ela.
Eu balancei a cabeça em acordo, sentando-me ao seu
lado o sofá.
— Onde você acha que a caverna vai aparecer?
Ela respirou fundo e soltou o ar, esfregando os lábios
com o pensamento. 171
— Eu acho que vai ser relativamente fácil, desde que
nos concentremos. Saber que a caverna existe é meio
caminho andado. — Eu vi como ela habilmente navegava
pelas páginas do livro, mesmo com as costas da mão.
— Veja aqui, — havia uma imagem de dois olhos no
escuro. — Isso é como a minha viagem foi. A coisa é que tudo
é fruto da sua própria imaginação. Não importa quão real
pareça, você e Sam devem se lembrar, não é. — Ela suspirou.
— Eu não tenho certeza do que a caverna vai fazer com Sam,
ele é diferente de nós. Ele tem um processo de pensamento e
estrutura mental semelhantes aos dos deuses, então eles não
podem sequer detectar sua presença, ou a sua intrusão.
Poderia ser uma boa ferramenta para nós.
Sam entrou na sala com as mãos cheias de
suprimentos.
— O crepúsculo está chegando. Acho que devemos
pensar em ir.
Pela primeira vez, Sam tinha um firme e grave olhar em
seu rosto. Era como se ele conhecesse os desafios que
enfrentaríamos e estava agora focado na tarefa. Afinal, era
seu trabalho.
Margriete e eu concordamos e ela gentilmente fechou o
livro e prendeu uma cinta de couro em sua volta, amarrando-
o de tal forma que ela poderia carregá-lo em suas costas
como uma bolsa.
— Nós não precisamos de muitos suprimentos, mas
definitivamente vamos precisar daquele punhal. — Ela olhou
para mim com um brilho nervoso em seu olhos.
172
Olhei para Sam, depois de volta para ela quando eu
parei. Eu caminhei até a cozinha, onde abri a gaveta,
remexendo para trás e agarrando o pano enrolado que
continha o punhal. Puxei o pano onde expus o cabo,
lembrando o dia em que ele havia roubado de mim tudo o que
me importava. Eu corri meu dedo através das gravuras como
eu me perguntei o que significavam. Havia três ratos e uma
serpente, seus olhos feitos de rubis vermelhos e seus rostos
rosnando.
Estremeci, percebendo o poder da arma agora em
minha posse. Eu rapidamente envolvi o pano de volta em
torno do punho e o empurrei dentro em meu cinto. Senti-me
estranha ao partir, como se a jornada que chegava fosse
ainda apenas um sonho.
Enquanto eu caminhava de volta para o corredor,
Henry sentou-se no ombro de Margriete enquanto Sam estava
parado arbitrariamente ao lado dela, seu rosto como uma
estátua de mármore à luz do dia que recuava.
— Bem, você está pronta? — Margriete respirou fundo
e exalou.
Eu balancei a cabeça, meus nervos estalando através
de meus membros.
— Vamos.
Capítulo 13
A CAVERNA
173
Olhei de relance para as árvores enquanto lentamente
abríamos nosso caminho na floresta, afastando-nos cada vez mais da
faculdade em direção à montanha. Um corvo pousou em um galho
próximo, mas ele já não trazia aquele medo potente de antes, era
agora apenas um pássaro, e de uma raça americana.
O cabelo branco de Margriete contrastava vivamente na
escuridão do bosque, quase como um farol. O passo de Sam era
duro e pesado ao pousar no chão da floresta, ativando um pulsar na
terra. Senti o ar frio e úmido agitar meus pulmões, liberando-se
como uma nuvem quando eu expirava e caindo como uma cortina
ao meu redor.
Ao escurecer, meus instintos se impuseram e meus olhos se
ajustaram à luz noturna sem muito esforço. Era mais fácil para eu
ver à noite, as cores perdiam intensidade e as árvores e animais
tornavam-se mais visíveis. Como se eu os enxergasse através de
óculos de visão noturna. Lembrei-me da facilidade com que Edgar
encontrava o interruptor no escuro, e como minha visão fora fraca
um dia. Um sorriso se insinuou em meu rosto à lembrança,
considerando-a um bem vindo empurrão para frente.
Margriete parecia saber para onde estávamos indo, mas era
como se estivéssemos vagando sem rumo. Eu ainda não
compreendia como a caverna se revelaria, especialmente quando
não parecia haver uma encosta real para que ela aparecesse. Analisei
cada colina enquanto o som dos grilos de verão calmamente cortava
os galhos dos enormes ciprestes, beijando meus ouvidos com uma
grata melodia.
Nossos pés esmagavam o chão úmido da floresta, a lama
fértil dando boas vindas às nossas atraentes presenças ocultas. 174
Fechei minhas mãos e estalei minhas juntas, minha mente
começando a zumbir em meio ao tédio e o nada. A mochila em
meus ombros começava a fazer minhas costas suarem e eu tentei
alcançar um ponto que pudesse coçar.
Sam olhou para trás e viu meus esforços.
— Já está desistindo?
Resmunguei enquanto lutava com a mochila. — Não estou
vendo a relevância da direção que estamos tomando — sussurrei,
esperando que Margriete não me ouvisse. — Parece que estamos
perdidos. — Ela estava alguns passos adiante, seus olhos
concentrando-se no cenário ao seu redor.
Ela percebeu nossa interrupção e voltou-se para nós, parando
por um momento para tomar fôlego.
— Então, onde estamos exatamente? Como você sabe que não
estamos apenas andando em círculos? — perguntei, minha
expressão acusadora e fria.
Os olhos de Margriete ainda estavam olhando ao redor,
perscrutando um lado e outro.
— Isso é o máximo de natureza que eu posso...
— Shhh — Margriete interrompeu Sam, suas sobrancelhas
franzidas e a mão erguida como se para nos fazer parar.
— O quê? — sussurrei, mas Margriete apenas tornou-se mais
perplexa com minha desobediência.
175
Tentei ouvir o que fosse que ela estivesse percebendo, mas
não escutei nada. Na verdade eu não ouvia absolutamente nada.
Olhei em volta, finalmente notando que o vento havia cessado, e os
grilos, silenciado. Olhei para o céu. Um melro pousou em um galho,
seu bico se movendo, mas sem produzir nenhum som.
Subitamente, houve um estalo distinto e senti uma friagem
abater-se sobre nós como um nevoeiro silencioso. Meu coração
disparou e continuei a examinar a floresta em busca de qualquer
coisa que pudesse me dar um sinal do que estava acontecendo. Foi
então que no chão diante de mim começou a se formar uma camada
de gelo que lentamente abriu seu caminho em direção aos troncos
das árvores, interrompendo qualquer movimento, por mais sutil,
como se o congelando no tempo e no espaço.
Minha respiração irrompeu em uma névoa morna diante de
meu rosto, o ar agora dramaticamente mais frio do que o do mais
rigoroso inverno. Sam curvou-se em seu lugar, seu corpo reagindo à
mudança repentina enquanto se preparava para atacar. Sam era o
único de nós que não exalava uma nuvem de vapor, seu corpo frio
incapaz de produzir calor.
— Está tudo bem, Sam — Margriete tentou tranquilizá-lo —
Isso é bom.
As árvores estavam agora completamente cobertas por uma
camada de vidro aquoso e o melro acima de nós completamente
congelado no tempo, seu bico escancarado em uma última tentativa
de gritar. A luz da lua cintilava ao tocar o gelo, desvanecendo a
escuridão como se estivesse amanhecendo.
O corpo de Margriete relaxou enquanto ela desatava a faixa
de couro que continha seu livro. O vapor se ergueu da capa 176
dourada, ondulando no ar como se partisse de uma xícara de chá
quente. Ela folheou rapidamente as páginas, seu dedo seguindo um
parágrafo do texto que agora brilhava.
— De acordo com minha última lembrança, a caverna deveria
estar bem perto, se nós apenas pisarmos em seus arredores, ela se
revelará para nós. — Ela virou a página e continuou lendo — o gelo
cresce de forma a congelar todos os espectadores humanos para que
não vejam a entrada, ou inibindo-os de entrar. Somente os da nossa
espécie podem resistir a essa simples medida de segurança porque
não pertencemos ao mundo humano. — Ela apontou para o melro
congelado acima. — Somos os únicos seres vivos aqui, agora. Tudo
o mais está suspenso.
Pisquei com força enquanto a observava. — Então, para que
lado agora?
Margriete deu de ombros. — Não tenho certeza, mas vamos
prosseguir. Se nos distanciarmos demais da entrada, o gelo
derreterá e nós saberemos.
Sam riu.
— É como brincar de quente e frio. Só que, quanto mais perto
de nosso alvo, mais frio ele fica.
Eu bufei.
— É uma maneira de encarar isso, eu acho. — Levei a mão às
costas e joguei a mochila no chão à minha frente. Remexendo seu
conteúdo, retirei dois suéteres e joguei um para Margriete.
Ela o pegou com uma das mãos, a outra ainda segurando o
livro enquanto continuava a ler. 177
— Obrigada. — Seu corpo inteiro tremia violentamente e
seus dentes começaram a bater. —Bom saber que você está
preparada.
Sam se intrometeu, incapaz de resistir.
— Ora, vamos, garotas, vocês poderiam simplesmente se
aconchegar em mim. — ele deu uma piscadela. Margriete e eu nos
olhamos e reviramos os olhos.
— Duvido que isso resolvesse muita coisa, Sam. — Olhei
para sua pele que agora estava azul.
Guardei minhas coisas na mochila e prosseguimos, minhas
botas agora estalando contra o gelo, como se caminhasse sobre vidro
quebrado. Demos a volta por um grande cipreste e descemos um
pequeno barranco. No fundo da pequena ravina um riacho havia
sido congelado, um pequeno sapo pulando para fora da água, com
um pé ainda envolto em gelo.
Inclinei-me e o examinei com um interesse doentio. Seus
olhos estavam completamente congelados, como mármore brilhante
e sua pele revestida por uma fina camada de vidro claro. Quando
olhei rio abaixo, vi também um cervo, a língua de fora enquanto
bebia a água agora perigosamente congelada até que nosso trabalho
aqui estivesse feito.
— Isto é incrível — tomei fôlego, saltando de uma margem
para a outra. Minhas botas deslizaram quando pisei, e eu caí, meus
braços agitando-se ao bater no sapo. Engoli em seco, sentindo-me
culpada ao ver a perna dele estalar como um pingente de gelo e
deixei escapar um grito de tristeza.
178
Sam riu e apontou para o para o sapo que girou no ar e
colidiu com um tronco próximo e espatifando-se.
Margriete lançou a Sam um olhar desdenhoso, antes de
voltar seu olhar zangado para mim.
— Tente ser mais cuidadosa, Elle, não estamos aqui para
caçar animais ilegalmente.
Suspirei, meu coração apertado, mas também percebendo o
humor enquanto Sam continuava a rir a despeito do aviso de
Margriete. O pezinho do sapo continuava preso no borrifo de água e
tentei o mais que pude suprimir uma risadinha. Com mais uma
encarada maldosa, Margriete desviou o olhar, agora ignorando-nos
em sua tentativa de punir nossas ações.
Ao olhar para cima, vi um pássaro ainda elevando-se acima
das árvores, suas asas bombeando o ar. Parecia que o mundo não
havia apenas congelado, mas congelado em animação suspensa.
Sam pulou por sobre o riacho, suas asas guiando-o enquanto
ele pousava suavemente do outro lado.
Margriete saltou por último, como uma corça, com uma graça
e agilidade que eu ainda não adquirira. Ao caminharmos colina
acima, Sam abriu caminho por uma nuvem de mosquitos, cada um
caindo no chão com um pequeno tilintar ao bater no gelo. Ouvi
Margriete expirar irritada e olhou para ele, a expressão de Sam era
de diversão enquanto os mosquitos restantes se chocavam
impotentes contra sua face fria.
— Sinto que está ficando mais frio, você sente também,
Margriete? — estiquei a mão, como se sentisse chuva, embora não 179
houvesse nuvens.
Ela caminhou em minha direção, as solas de borracha de suas
botas deslizando no gelo.
— Acho que você tem razão, estamos chegando perto.
Mantenha os olhos abertos para qualquer sinal de... bem, de qualquer
coisa.
Olhei através dos ramos cobertos de gelo, as folhas abafadas
pelo frio.
— O que você viu quando veio?
Margriete franziu a testa.
— É difícil dizer. É como um sonho, quando acontece é muito
vívido, mas quando você acorda, a maior parte dele se desvanece,
até os momentos que você nunca imaginou. É o que são os sonhos, a
jornada de sua alma a seu próprio mundo. É lá onde tudo acontece.
Inclinei a cabeça.
— Então você está dizendo que eu estive mesmo lá?
Margriete assentiu.
— Essencialmente, sim, mas não em carne e osso. Você verá o
que eu quero dizer quando chegarmos lá. Existem montes de
sonhadores preenchendo seus mundos, fazendo todo tipo de coisas,
quase literalmente realizando os desejos de seu coração.
Franzi os lábios enquanto considerava o fato e minha 180
imaginação corria solta.
Todos nos apressamos por um grande bosque de ciprestes,
seus galhos se apertando contra o meu casaco, como aço. Sam
destruiu um arbusto que estava em seu caminho suas mãos
sangrando enquanto o gelo afiado cortava sua pele, mas isso não
parecia incomodá-lo. O sangue já frio congelou em pequenas gotas
no chão da floresta quase instantaneamente.
Olhei para trás e para frente, encarando a parte de trás da
cabeça de Margriete, ainda tentando me lembrar dela. Para mim, ela
era como uma estranha, mas para ela eu era uma irmã, e a típica
conversa superficial entre novos amigos não existia, deixando-me
no escuro. Depois de tudo o que tentara recordar lendo meus
diários, eu decidi desistir, descobrindo que era mais importante
viver o agora e deixar o resto se ajeitar.
Caminhamos um pouco mais de um quilômetro antes de
alcançar o que parecia ser uma trilha, provavelmente uma trilha de
caminhada que cruzava as Cascades em direção ao vale Columbia.
Fizemos uma curva natural e seguimos a trilha, encontrando um
caminho sólido na direção certa. Meus olhos examinavam
atentamente a terra congelada, minhas botas tropeçando em pilhas
de lama solidificada.
Enquanto examinava tudo, notei que Margriete havia parado
um pouco adiante, sua cabeça baixa e ela estava olhando algo que
brilhava no chão. Ao me aproximar, observei que havia uma nuvem
de vapor emergindo da fonte do brilho.
— O que é isso? — bufei, ao alcançá-la, meus olhos tentando
entender de onde vinha o vapor. Pisquei ao já familiar objeto diante
de mim, sorrindo em reconhecimento. Uma pena brilhante havia 181
sido descartada no caminho flamejando através do gelo e das folhas.
— É uma Gr3fus, ou uma pena de Grifo — Margriete
respondeu em tom monótono, sugerindo que isso era algo com que
já se deparara antes.
— Uma o quê? — tentei recordar as criaturas que me foram
ensinadas nas aulas de história grega.
Seu olhar se desviou da pluma ardente, seus olhos brilhando
suavemente no ar fresco.
— Um Grifo. Metade falcão, metade leão e feito de ferro
sólido.
Sam se aproximou por trás de mim, seus passos produzindo
um ruído ao pisar no chão congelado.
— Não vejo um desses há séculos. — Seus olhos estavam
iluminados de felicidade, como se aquilo fosse uma coisa boa,
embora algo dentro de mim sentisse o contrário.
Olhei para os dois, meus olhos inexpressivos e meu queixo
caído.
— Esperem, o que está acontecendo, ainda não entendi.
Pensei que fossemos as únicas criaturas por aqui.
Sam limpou a garganta enquanto se punha de pé, estreitando
os olhos, enquanto começava a recitar sua réplica.
— As únicas criaturas míticas, talvez, mas certamente há
outras. Normalmente, eles ficam em seu mundo, o mundo de Deus.
Eles só vêm aqui para caçar por esporte, de tempos em tempos... 182
— Porém o mais importante é que uma Gr3phus é a guardiã
natural do divino, isso significa que estamos chegando à caverna,
eles devem estar guardando-a. Eles são designados para cuidar dos
tesouros mais preciosos de seu mundo.
Eu queria muito me esticar e tocar a pluma enquanto ela
ardia lentamente diante de mim, sentindo uma estranha fascinação
por ela. Sam agarrou meu braço, percebendo meu desejo e
sacudindo a cabeça enquanto franzia a testa.
— Acredite-me, querida, essa coisa vai queimar seus dedos
antes que você saiba o que está acontecendo. — ele soltou meu
braço.
A pluma continuou a brilhar, enquanto passávamos por ela,
continuando a caminhada. O Grifo não deixara rastro atrás de si,
como todas as criaturas de nosso mundo. Parecia que éramos
apenas sombras, sem deixar nenhum vestígio real de nossa
existência entre os homens como um vergonhoso pensamento
posterior.
Margriete caminhava a meu lado, suas mãos fechadas em
punhos ansiosos.
— Eu só queria poder lembrar o que acontece em seguida.
Posso me recordar da aparência dos grifos, como brasas
incandescentes da morte, mas não muito mais.
Ela deixou seus punhos baterem contra as coxas.
183
— Para a maioria, os grifos levam medo a fundo da alma,
mas ter Sam conosco será uma enorme vantagem, ele não tem alma.
— Então existe mais de um? — Meus punhos também se
fecharam em nós apertados, mais por medo que por frustração.
Ela assentiu.
— Eles são animais meigos, na verdade, só estão zangados.
Não posso culpá-los, afinal quem amaria algo que arde como o sol?
Balancei a cabeça lentamente, apreciando o pensamento e
permitindo que sua imagem tomasse forma em minha mente.
Amaldiçoei a mim mesma por não ouvir as aulas, ou pelo menos ler
mais livros de ‘Criaturas Místicas’ que estavam infinitamente
empilhados no segundo andar da biblioteca. Eu poderia estar mais
preparada para isto, para Edgar.
Dizer seu nome em meu pensamento um lamento de perda.
Fazia quase oito meses desde que ele se fora e sua lembrança estava
se desfazendo de minha mente embora eu tentasse
desesperadamente me agarrar a ela. Eu ansiava por sentir seu toque,
por energizar seus olhos até aquele azul brilhante. Onde ele
estivesse eu sabia que ele estava fraco sem mim, razão pela qual era
minha tarefa trazer meu poder para ele.
Uma brisa se infiltrou pelas folhas congeladas, soprando o
cabelo de meu rosto e desfazendo o silêncio parado da floresta.
Enquanto o vento continuava a soprar, tornava-se óbvio que não ia
diminuir. Margriete e eu nos inclinamos com dificuldade contra o
vento, Sam dobrando fortemente suas asas atrás de si ao nos
apressar para diante com uma mão forte em nossas costas. 184
Caminhávamos lentamente agora, nossos esforços
dificultados e nossos pés deslizando para trás. Com o passar dos
minutos, senti meus músculos finalmente enfraquecerem pelo
esforço, meus pés se arrastando agora. Foi então que tudo aquilo
cessou e caímos todos empilhados. Nos mexemos freneticamente
para nos levantar enquanto nos esforçávamos para nos
desembaraçar, o diário dourado de Margriete ardendo através do
gelo, ao repousar no solo.
Enquanto nos recompúnhamos e nos limpávamos, olhamos
ao mesmo tempo para o mesmo lugar, nossos movimentos parando
abruptamente. O brilho cálido que pousou sobre nós revelou dois
silenciosos Grifos, ambos posicionados diante de uma caverna
bloqueada. O chão tremia com o movimento de suas patas, o gelo
derretia ao redor delas e as árvores amarelavam e morriam.
Meus olhos se arregalaram enquanto eu respirava
pesadamente observando um dos Grifos, de quase três vezes o meu
tamanho, empinava diante de mim. Quando ele desceu, suas garras
atravessaram o gelo, a água saindo em borrifos de sob suas patas e
fazendo a terra tremer violentamente. Eu via tudo em câmera lenta,
o sentimento de medo recolhendo meus pensamentos e
canalizando-os para meus sentidos.
Recuei quando o Grifo inclinou a cabeça, aproximando-a da
minha. Coloquei todo o meu peso sobre o pé que estava mais
recuado e me afastei mais ainda, seus olhos ardentes piscando,
enquanto minhas faces explodiam com o calor. O segundo Grifo
estava a seu lado e Margriete caiu para trás quando ele balançou a
cabeça para o primeiro Grifo, beliscando suas costas como um irmão
brincalhão.
185
Sam nos agarrou pelo braço e nos abrigou atrás dele,
reagindo aos seus fortes instintos protetores. Margriete e eu nos
chocamos quando ele nos circundou com suas asas, grunhindo de
dor quando nossas cabeças colidiram. A dor foi passageira, pois eu
rapidamente me posicionei para ter uma melhor visão sobre o
ombro dele. Ambos os Grifos sentavam-se calmamente agora, suas
caudas balançando sinuosamente no ar, deixando em seu rastro
faíscas que flutuavam no chão da floresta, chiando ao se misturarem
à terra.
O Grifo que estava na frente soltou um grito e Sam inclinou a
cabeça como se compreendesse o que ouvia. O que aconteceu a
seguir enviou arrepios por minha espinha abaixo enquanto uma voz
se fez ouvir aparentemente de lugar nenhum, mas não era qualquer
voz, era a voz de Edgar.
— E qual é seu negócio aqui? — ele ribombou, minha alma
tremendo mais do nunca, mais até do que quando eu vi o fantasma
de Edgar.
— Ele roubou a voz de Edgar. — Sussurrei bruscamente para
Margriete, os olhos dela examinando meu rosto — Eles estão nos
enganando, tentando nos amedrontar.
Ela assentiu.
— Eles pegam a voz que descobrem ser a mais eficaz, e a roubam de
sua memória, para usá-la contra você. Tente abafá-la, você pode fazer isso,
você foi muito bem até agora.
O timbre ressoava em minha mente, de algum modo mais
real do que quando eu vira o fantasma de Edgar, como se ele 186
estivesse ali, vivo, e bem ao meu lado. Fechei bem os olhos,
afastando aquele sentimento e impedindo minha mão de tentar
alcançar aquele som. Senti o calor do Grifo filtrar-se pelo braço frio
de Sam.
— Viemos somente para passar — Sam finalmente replicou.
Abri meus olhos e vi os dois Grifos analisando-o com seus
olhos ardentes, suas almas vazias vendo tudo o que havia nas
nossas. O Grifo líder inclinou a cabeça, a voz novamente parecendo
vir de nenhum lugar.
— Guardião, nós não sentimos que você seja uma ameaça.
Você é bem vindo para adentrar o mundo de nossa espécie, mas não
pode trazer as duas metade-coração.
Senti os músculos de Sam se flexionarem sob meu aperto
ansioso.
Ele se inclinou em direção a eles.
— Estou entregando suas almas aos deuses, elas não
causarão dano a ninguém, e seus corações não interessam a vocês.
O Grifo que estava atrás empinou arrogantemente, e o líder o
beliscou, contendo seu fervor juvenil, enquanto se bicavam.
O Grifo chefe retornou, suas sobrancelhas flamejantes
franzidas de irritação.
— Meu irmão não confia na sua posição, mas ele é jovem, e
estou certo de que vocês têm nobres propósitos e não causarão dano
à nossa grande terra além destes portões. 187
Olhei para além dos Grifos em direção à caverna, as pedras
agora caindo e chocando-se contra o gelo, lascas voando pelo ar.
Cobri meus olhos quando elas vieram em nossa direção, silvando
com uma fúria quente ao chocar-se contra a pele do Grifo.
— Podem ir.
O Grifo se afastou, suas asas estendidas para os lados, o ar
fumegando com irritação.
Sam deu um passo à frente, empurrando nós duas para trás
dele, suas asas agora protetoramente conduzindo-nos e defendendo
nossa pele do calor escaldante. Vi Sam estremecer quando uma
faísca pousou em seu braço, o primeiro sinal de dor verdadeira que
eu vi nele. Os poderes dos Grifos não eram deste mundo, Sam não
era mais o homem invencível que havia sido, mas agora apenas
mais um rosto.
Passamos sob o beiral rochoso da caverna, a fria umidade
retornando enquanto os Grifos permaneciam calmamente em nosso
rastro. Logo, a escuridão caiu sobre nós quando as pedras
retomaram a forma de uma parede às nossas costas e estávamos
novamente fechados em um novo mundo, na caverna.
Capítulo 14
AS CATACUMBAS
188
Meus pés tropeçaram enquanto meus olhos se ajustavam à
escuridão, tentando refletir a pouca claridade restante, brilhando de
dentro do túnel. Paramos brevemente para ajeitar nossas coisas.
Tirei a mochila dos ombros, descobrindo que o suor que se havia
formado enquanto estávamos diante dos Grifos agora secava em
minha pele, causando uma onda de irritação.
Margriete folheou o livro, seus olhos a um centímetro da
página, enquanto ela também tentava encontrar alguma luz. Sam
reclinava-se contra a parede da caverna, seus olhos examinando o
ponto em que a fagulha do Grifo queimara sua pele, seu rosto
contorcido, como se percebesse sua súbita vulnerabilidade.
— Há um mapa aqui em algum lugar, eu sei.
Margriete agora folheava o livro depressa.
— As cavernas são grandes, como as veias do sistema
nervoso humano. Se nos perdermos, ficaremos aqui por uma
eternidade.
Ela caminhou até a parede, seus dedos roçando a pedra
áspera. Ela traçou seu caminho em direção a Sam, afastando-o do
caminho enquanto se ajoelhava no chão, o livro aberto em sua outra
mão. Observei seus dedos traçarem um círculo impreciso que estava
escavado na rocha, o qual ela pressionou com o peso de seu corpo
sobre a pedra. Houve um retinir aveludado quando a pedra cedeu e
uma luz fraca brilhou no espaço.
Satisfeita, Margriete levantou-se, um pesado suspiro
escapando de seus lábios e um sorriso se formando em seu rosto.
189
— Bom trabalho, Grietly! — dei um passo em direção a ela.
Ela se virou para mim, seu sorriso crescendo — Oh, Elle, você
não esqueceu!
Olhei para ela com estranheza, sem perceber o que era que eu
havia feito.
— O que você quer dizer?
Margriete veio em minha direção.
— Você me chamou de Grietly! Todo esse tempo você ficava
me chamando de Margriete, e eu tinha certeza de que você havia
esquecido. Ela me envolveu em seus braços e me deixou sem fôlego
antes de se afastar.
— Você nunca me chamava de Margriete. Tem sido tão
diferente ultimamente; você não é o que costumava ser. — Deu de
ombros — Mas isso não significa que a nova você não possa ser
minha melhor amiga. Por dentro, você será sempre a mesma Elle, e
você é.
O pequeno arroubo de emoção quebrou a tensão de nossa
tarefa, honrando-nos com uma pequena luz de felicidade. Meus
olhos ficaram marejados ante as palavras de Margriete e desviei
meu olhar para a fonte de luz. Havia alguns frascos pendendo do
teto que era ligado a uma pequena caverna anexa da qual
vagalumes saíam.
Engasguei, minha mente esquecendo completamente do
pequeno arroubo de percepção.
190
— Como isso funciona? — perguntei, aproximando-me de
um frasco e examinando-o. Margriete caminhou ao meu lado.
— Eles vivem na terra, imagino. Existem esses 'interruptores'
escondidos em todas as cavernas. — Ela apontou para o círculo de
pedra. — Eles duram cerca de trinta minutos antes de se libertarem,
fechando a rede de portões que permitem aos vagalumes entrarem
nos frascos.
Sam fez uma careta.
— Os que são deixados para trás por fim se desintegram e
morrem.
Deixei escapar um suspiro enojado e olhei para Sam.
— Típico de você estragar um belo momento.
Margriete riu.
— Sério, como você acabou com um mártir como guardião?
Eles costumam ser muito menos sádicos.
— É minha sorte. — pisquei para Sam.
Ele se ajoelhou e pegou minha mochila do chão.
— Pelo menos este guardião idiota está disposto a carregar
suas coisas — replicou ele.
Margriete revirou os olhos.
— É melhor nos pormos a caminho para que possamos
191
encontrar o próximo interruptor; é um tanto desconfortável para
mim, enxergar na escuridão. — Margriete acrescentou, fechando o
livro e atando-o às costas, recusando a oferta de Sam para levar suas
coisas.
— Como você vai saber o caminho sem o mapa? —
perguntei, dando um passo à frente.
Margriete caminhava ao meu lado, a caverna larga o bastante
para caber quatro homens lado a lado, e alta o suficiente para que
talvez um Grifo pudesse voar ali.
— Você sabe, desde que possa confiar em seu coração. Na
maioria das vezes nos recusamos a aceitar as percepções que estão
dentro de nós. — Ela enrugou a testa. — É como quando você tem
um teste e sabe a resposta imediatamente, mas leva muito tempo
pensando e duvida de si mesma. Tenho certeza de que você pode
se identificar com isso, — ela me cutucou de leve, — tendo
frequentado a escola e tudo.
Um sorriso afetado cruzou sua pele lisa, seus julgamentos
divertidos parecendo os de uma irritante irmã mais velha.
— Pois é, o bom é que eu sempre segui minhas ideias e era a
primeira de minha classe. — Fiz minha observação com insolência
em uma tentativa de validar o fato de que eu havia sucumbido às
convenções e à sociedade humanas.
Margriete sorriu à resposta desafiadora.
— Bem, então não devemos ter nenhum problema. — Ela deu
uma piscadela antes de olhar adiante, nosso passo constante, mas
não rápido.
192
Pensei com meus botões enquanto Sam assobiava, sua canção
ecoando na longa câmara. As paredes pingavam, e entre os assobios
de Sam, era possível ouvir o gotejar no granito e mármore. Eu
nunca realmente imaginara que o mundo humano contivesse outro,
escondido sob a superfície. Dei uma risadinha ante a ideia geral de
que o paraíso estivesse acima de nós, mas ao mesmo tempo, enterrar
os mortos no solo começava a fazer muito mais sentido também.
Pensei em Edgar e em como a terra o havia reclamado. Ele deveria
estar morto, mas algo dentro de mim se recusava a perceber isso até
que eu tivesse certeza. Meu coração ansiava por seu retorno,
desejava sentir seu toque aveludado em minha pele. Os Grifos
sabiam o que impeliria minhas emoções, e como me enredar em sua
cruel teia de almas perdidas. Não fosse por meus amigos, eu temia
ter ficado sentada ali por toda a eternidade, ouvindo sua linda voz e
saboreando a beleza.
Não havia nada que eu desejasse mais que sentir sua face
outra vez, seu corpo contra o meu. Suspirei e Sam percebeu,
olhando para mim enquanto lia meus pensamentos sobre o tema.
— Você o ama de verdade, não é? — ele chutou uma pedra
que estava no meio do caminho.
Assenti, contendo as lágrimas. Eu havia tentado bravamente
manter uma fachada de raiva e amargura, mas enquanto
continuávamos a testar nossas vidas, minha armadura estava
desmoronando e eu começava a me sentir triste e fraca.
Sam suspirou.
— Acho que não entendi; o tempo normalmente cura todas as
feridas e as pessoas seguem adiante.
Fiz um gesto de impaciência com as mãos.
193
Sam prosseguiu. — Se Edgar está morto...
— Ele não está. — Eu finalmente falei, minha mão
alcançando o anel morno que descansava contra o meu peito.
Sam apertou os lábios. — Mas você precisa compreender,
existe a possibilidade de que você seja como Margriete, eternamente
perdida sem ele.
Olhei para Margriete, caminhando ansiosamente alguns
passos à frente, achando sua existência triste e solitária, algo com
que eu sabia que não seria capaz de lidar como ela fazia.
— Jamais descansarei, vou continuar a procurar um jeito.
Sam suspirou novamente, como se seu coração sentisse a dor
do meu. — Você será sempre dele então, a garota de Edgar.
Olhei para ele, achando suas palavras reconfortantes.
Ele sorriu, revelando o lado suave que eu tinha medo de
abraçar, mas que agora achava inapropriado. Observei-o
cuidadosamente, seus pensamentos agora se distanciando de nossa
conversa para alguma outra coisa. Eu ansiava por saber o que ele
estava pensando, mas sua personalidade não dava pistas de seu
estado emocional, ou do passado que o assombrava.
Olhei ao redor da caverna, incerta sobre quanto tempo havia
se passado, mas comecei a me preparar mentalmente para o
inevitável blecaute. Margriete examinava as paredes agora,
procurando pelo próximo interruptor, em meio aos jorros de água.
Sam parecia relaxado e até mesmo contente, algo que eu raramente
sentia nele. 194
— A-há! — Margriete deu um salto no ar, seu punho em
direção ao teto, em sinal de vitória.
Assustada, olhei em volta em busca do interruptor que eu
sabia que ela havia encontrado, bem no momento em que a
escuridão se abateu sobre nós.
— Ótimo. — Margriete praguejou entre os dentes enquanto
se movia desajeitadamente em meio à escuridão, seus olhos ainda
incapazes de ver através da espessa mortalha de escuridão, mas
para sua sorte, sua mente ainda visualizava o ponto que vira antes.
Minha respiração era curta quando ouvi o familiar rangido
aveludado quando ela pressionou o interruptor. A luz lentamente
voltou à vida, o som gentil dos vagalumes caindo contra o vidro
encheu o ar quando eles saíram de suas pequenas cavernas,
mórbidas, porém intrigantes.
Margriete ficou de pé e sacudiu a sujeira de suas calças, seus
joelhos escurecidos e molhados do chão úmido.
— Este lugar com certeza não é glamoroso.
— Pois é, — olhei ao redor — Por que os deuses deram aos
humanos a superfície da Terra, por que não dar-lhes o centro?
Margriete deu uma risadinha
— É só esperar, você logo verá o porquê.
Fiquei maravilhada com a resposta, enquanto minha mente
tentava imaginar o que poderia ser mais grandioso que o sol e a lua,
195
as nuvens e o céu.
Ao caminharmos mais para o fundo, a caverna formava um
arco para esquerda e então subitamente se dividia. Todos paramos e
olhamos uns para os outros, cansados do contínuo suplício infligido
à nossa determinação. Margriete rapidamente desatou o livro
dourado e folheou suas páginas. Nós a observamos com olhos
ansiosos enquanto ela se concentrava nas palavras, examinando
cada página com uma pressa irritada ao que o livro parecia gemer
sob seu toque cruel.
Sam se distraiu com alguma coisa, enquanto seus olhos
disparavam pela caverna, descobrindo que algo no ar estava
diferente. Desde nossa conversa ele permanecia distante, como se
estivesse enredado em seu passado. Sua respiração tornou-se pesada
enquanto eu o observava, como se ele lutasse por um fôlego de que
não precisava. Esfregando as palmas, ele olhava para suas mãos.
— O que há de errado, Sam? — finalmente perguntei, vendo
agora claramente que algo não estava certo.
— Minhas mãos — ele fez uma pausa, pressionando-as
contra o jeans — estão suando.
Fui até ele e agarrei suas mãos, o calor perceptível e chocante
em contato com minha pele. Olhei em seus olhos.
— Sam, você está quente.
Sua respiração ainda estava pesada, seus olhos agora
voltados para a caverna localizada à extrema direita. Eu e Margriete
seguimos seu olhar, nossos batimentos cardíacos se acelerando.
Enquanto permanecíamos em silêncio, um som débil começou a vir 196
da caverna, aproximando-se como um eco lento e suave. Ficamos
parados como estátuas enquanto o som aumentava de volume até
que reconheci os tons suaves de uma mulher cantarolando.
Olhei para Sam, um semblante assustado vidrando os olhos
dele, um sentimento que eu jamais imaginaria que ele possuísse
aparecendo em seu rosto. Uma luz vinha de longe, aproximando-se
a um passo constante até formar a silhueta da pessoa que a
carregava. Sam deu um passo à frente quando a figura se
aproximou, ainda imperturbável por nossa presença em seu
caminho.
A figura emergiu então, seu cantarolar parando subitamente
quando ela quase deixou escapar um grito, surpresa ao descobrir
que não estava sozinha.
Sam deixou o ar escapar com força, sua respiração parando
abruptamente como se ele estivesse morrendo novamente.
— Jill?
Capítulo 15
O CAMINHO
197
— Sam. — Ela deixou cair a lanterna que tinha agarrada em
sua mão. — Oh... — Ela se ajoelhou no chão onde ela tentou agarrar
a alça, atrapalhada quando suas mãos tremiam.
Todos nós encaramos um ao outro, todos congelados em
choque ou curiosidade. A jovem garota que apareceu não tinha mais
de dezoito anos, mas claramente não era dos tempos modernos
também. Ela tinha cabelo longo e reto que caía até a cintura,
escovado sobre suas costas quando ela se levantou e o jogou para
trás. O cinto de couro estava longe de ter estilo, e seu colar de contas
era dolorosamente familiar para os estereótipos dos finais dos anos
sessenta.
— Sam, você conhece essa mulher? — Margriete finalmente
rompeu a grande tensão.
Sam virou a cabeça para enfrentar Margriete mas seus olhos
se mantiveram sobre a mulher.
— Sim, eu conheço. — Ele respirou, sua boca se movendo
como se não fosse uma parte de seu rosto.
Jill falou em seguida.
— Sam, eu... — Ela hesitou e deu um passo em direção a ele.
— Nunca pensei em ver você aqui.
Sam se aproximou também, mas manteve o seu corpo para
trás, como se assustado com a sua presença.
— Er... — Ele inclinou a cabeça, encontrando as palavras. —
Como você está?
198
Jill olhou em volta.
— Bem, eu... Eu estava acordada um minuto atrás, eu
precisava de um pouco de água, mas... — Ela olhou de novo. — Eu
devo estar sonhando de novo. — Ela olhou para baixo para seu
corpo. —E eu sou jovem de novo! — Ela engasgou, sorrindo como
uma criança, sua mente claramente em um nevoeiro.
— Sonhando? — Sam falou com descrença.
Margriete e eu olhamos uma para a outra enquanto seu rosto
se iluminou, lembrando-se de algo.
— Jill. — Margriete deu um passo corajoso em direção a ela,
colocando uma mão no ombro dela por cima da blusa marrom e
mostarda de poliéster. — Você é humana, certo?
Jill olhou Margriete de lado.
— O que você quer dizer? É claro que eu sou humana.
Margriete virou-se para nós.
— Ela está sonhando. — Ela olhou para Sam. — Eu te disse,
este é o local em que seres humanos vêm para sonhar, seu mundo
perfeito, por assim dizer.
Sam piscou devagar.
— Jill, eu... — Ele congelou quando Jill finalmente passou por
Margriete e correu para os braços de Sam. Ele fechou os olhos e
retribuiu o abraço, Margriete e eu agora completamente confusas,
nossas bocas escancaradas.
— Sam, quem é essa? — Margriete finalmente perguntou, sua 199
paciência se esgotando.
Eu sabia quem essa era assim que Sam tinha dito o nome
dela, mas eu não tinha achado oportuno colocar Margriete a par. Eu
vi quando a testa de Margriete franziu, uma dica surpreendente de
ciúmes passando por seus olhos e eu deixei um respiração profundo
de espanto passar meus lábios, achando este momento uma
revelação para os corações de todas as coisas.
Sam abriu os olhos e soltou Jill.
— Esta é Jill, meu amor.
Margriete revirou os olhos e virou-se, fingindo não se
importar, mas eu sabia que, por alguma estranha razão ela se
importava.
Jill olhou fundo nos olhos de Sam.
— Oh Sam, você me salvou, eu nunca tive a oportunidade de
lhe agradecer, a dizer que eu te amei. — Seu rosto mudou de
repente, como se sua mente tivesse apenas esquecido o que tinha
dito, mostrando que, no mundo dos nossos sonhos, as coisas nem
sempre são claras.
Eu continuei a ficar de boca aberta mesmo que Margriete
tivesse desistido. Eu estava muito tomada pelo momento e o amor
verdadeiro para me deixar perder esta. Foi triste ver Sam em tal
estado, ver a única coisa que poderia jamais fazê-lo vacilar.
Ele olhou para Jill que estava olhando ao redor, confusa e
perdida.
200
— Como você veio parar aqui?
Ela deu um passo para trás como se percebendo onde ela
estava pela primeira vez.
— Eu estou sonhando, não estou?
Ela tropeçou em uma pedra, mas Sam não demorou a pegar
seu braço e evitar que ela caísse.
Sam olhou para Margriete por afirmação.
Margriete se recompôs o suficiente para concordar. Não
parecia que Sam estava percebendo o ciúme de Margriete, mas eu
podia entender o porquê. Sua mente provavelmente estava
demasiadamente sobrecarregada para até mesmo perceber ou ligar.
Um sorriso inocente cresceu em todo o rosto de Sam, como
um adolescente apaixonado.
— Sim, eu acho que você está.
Jill franziu o cenho.
— Eu queria que eu não estivesse. — Ela sussurrou, sua voz
soando cansada e distante e seu olhar caindo no chão. — Oh Sam,
eu penso em você todo o tempo.
Sam sorriu. — Eu também.
Eu ri comigo mesma, eu estava certa. Sam tinha a capacidade
de sentir algo afinal, mas ele havia escondido isso de mim em uma
gaiola de metal dentro de seu coração.
201
— Oh. — Ela ecoou novamente. — Eu estava no lugar mais
incrível, antes... — A voz dela sumiu. — Era como o céu.
Margriete agarrou a mão de Jill.
— Foi dali de onde você veio, através dessa caverna? —
Parecia que ela tinha liquidado as suas emoções e estava tentando
ser civilizada.
Jill virou lentamente para olhar, como se tentando encontrá-
la através de um espesso nevoeiro. Sua mente trabalhava muito para
lembrar, mas os sonhos eram assim.
— Eu acho que sim, mas eu não sei por que eu entrei na
caverna. — Ela olhou para Sam. — Mas eu acho que eu vejo porque
agora.
O amor entre Sam e Jill era inegável e de repente eu percebi
porque ele tinha feito o que fez e por que ele tinha cuidado dela,
mesmo quando ela tinha escolhido amar outro alguém.
Os olhos de Margriete se iluminaram então.
— Essa é a nossa caverna! — Ela apontou para onde Jill tinha
surgido. — Precisamos passar por lá.
Jill olhou atordoada enquanto olhava para o espaço.
— Oh. — Ela gritou. — Eu acho que estou acordando
novamente.
Sam se jogou em sua direção, suas asas agora expostas.
— Não Jill, não vá.
202
Ela lhe deu um olhar triste, mas surpreso.
— Oh Sam, eu nunca deixei de te amar. Você sempre foi meu
cavaleiro. — Ela finalmente notou suas asas e ofegou. — Oh, Sam!
Sam, você é um anjo!
Sam sorriu. — Tudo por causa de você, meu amor.
Algo soprou por trás dela, como um vórtice. Medo cruzou
seus olhos.
— Eu estou caindo, Sam!
Sam passou os braços ao redor dela, envolvendo-a em sua
força quando ele tentou ficar com ela.
— Não... eu posso salvar você, Jill! — A expressão de dor em
seu rosto colocou medo em meu coração e eu observava impotente,
enquanto os horrores de seu passado eram revividos.
Jill começou a gritar, então, sua voz desaparecendo à medida
que seu corpo começou também a desaparecer no ar como partículas
de areia.
O suor revestiu a testa de Sam, seu corpo de alguma forma
vivo e quente em sua presença.
— Volte, Jill! — Ele gritou, mas ela já tinha ido. Sam caiu no
chão enquanto seus joelhos batiam com força contra a pedra, o rosto
enterrado nas mãos. Margriete e eu nos aproximamos com humilde
determinação, colocando uma mão em suas costas, como se nós
tentássemos trazer-lhe conforto.
203
— Ela era tudo que eu sempre quis. — Sua voz estava
abafada e triste.
Eu esfreguei as costas tão duramente quanto eu podia, em
uma tentativa de ajudá-lo a sentir.
Seu rosto se virou para me encarar.
— Eu vejo agora, Elle, por que você se tortura. Por que você
está tão determinada a encontrá-lo. Lembro-me do amor agora, Elle,
eu me lembro... — Sua voz sumiu em soluços, seu corpo grande
tremia enquanto Margriete e eu tentávamos tudo o que podíamos
para ajudá-lo.
Eu concordei e me ajoelhei ao seu lado.
— É claro, Sam, eu não culpo você pelas coisas que você
disse. — Abracei-o fortemente enquanto sentia os nossos corações
mais perto, se fundindo, a nossa amizade agora mais do que uma
simples transação ou dever. Ele não era mais o mesmo Sam chato
que eu tinha odiado, mas um irmão e amigo querido.
Margriete engoliu em seco. Eu sabia que as palavras que
falávamos eram como adagas em seu próprio coração, lembrando-
lhe de seu amor assassinado e os sentimentos que tinham sido
negados ao seu coração.
— Nós vamos superar isso juntos, Sam. —Eu sequei as
lágrimas de seus olhos frios. — De alguma forma. — Eu acrescentei.
Ele tomou um grande fôlego e parou, com as mãos tremendo
e os olhos pesados.
204
— Nós precisamos continuar. — Houve uma súbita sensação
de determinação sobre ele, como se percebendo a importância desta
missão além de seu acordo vinculativo para me proteger.
Sam deixou um último suspiro quente escapar de seus lábios
antes que seu corpo caísse frio e ele se afastou. Margriete e eu nos
encaramos e reagrupamos, achando que a melhor maneira de
sermos solidárias era seguirmos a sua posição. Em sua grande
sombra todos nós entramos para a caverna à esquerda, seguindo os
passos que Jill tinha deixado.
Quando a entrada passou sobre nossas cabeças eu sorri,
encontrando uma visão familiar em um mundo tão escuro quando
as esculturas ficaram claras. Havia um pequeno Corvo acima de
cada porta e eu me lembrei de meu sonho, mas não foi só o sonho
que trouxe um sorriso a meu rosto, também foi o poema de Edgar
Allan Poe, e o corvo que sentava acima da porta de seu quarto,
como faziam agora.
Margriete percebeu minha curiosidade.
— Você se lembra da importância do corvo, não é?
Eu balancei minha cabeça enquanto entrávamos ainda mais
profundo na caverna, os vagalumes lançando uma tonalidade verde
através das cavernas.
— O corvo era um símbolo do divino, muito antes que
alguém realmente soubesse como chamá-lo. Os deuses os criaram
em uma forma física quando a raça humana começou a crescer na
superfície da terra, para que eles pudessem vigiá-los. Sempre que se
reúnem corvos é um lugar que está sendo vigiado, um lugar onde os
deuses têm medo de que possam tomar a terra. Assim como o 205
bando de corvos na Torre de Londres, eles migram para todas as
coisas que secretam o mal verdadeiro e a desesperança humana. —
Ela fez uma pausa, pensando para si mesma. — Como Matthew.
Eu concordei com a cabeça.
— Eu acho que faz muito sentido, parece quase óbvio. —
Comecei a me perguntar o que mais estava lá fora.
Margriete assentiu.
— Há um monte de coisas que você ainda tem que aprender
sobre si mesma. — Ela chutou uma pedra que estava no chão. — Eu
não posso imaginar como tudo isso deve ser para você.
Eu encolhi os ombros.
Ela me olhou de lado, quase rindo.
— E os seus amigos! — Ela jogou as mãos para cima. — Eu
simplesmente não consigo acreditar que você tem amigos humanos
verdadeiros. Quando fomos para baixo para ver Sarah e Scott, devo
admitir, eu estava com um pouco de repulsa.
Eu franzi o rosto, dando-lhe um brilho amargo.
— Eu não vejo qual é o grande problema, quero dizer, fui
criada por seres humanos.
Margriete riu.
— Você é como uma espécie de humano criado por lobos,
206
exceto, eu acho, que se encaixa melhor como um lobo criado por
seres humanos.
Sua analogia foi fraca, mas eu entendi o ponto e era algo que
eu tinha pensado por mim mesma. Meu coração se apertou com o
pensamento de Scott e Sarah, eu tinha tudo mas os abandonei em
favor da vida mágica, mas o que eu podia fazer? Ficou claro que eu
estava aqui por um motivo, uma missão que eu ainda não entendia.
Se nós fossemos os guardiões do mundo deles, então eu sabia que
seria capaz de compensá-los um dia, salvando-o.
A caverna ficou mais estreita na curva para a esquerda.
Margriete foi novamente analisando as paredes, procurando pelo
próximo interruptor. Sam se esquivou passando por ela, sua
presença aparentemente distraída até agora.
— Eu faço isso, querida. — Ele piscou para Margriete, sua
personalidade lasciva retornando. Ele bateu a parte de baixo da mão
na rocha, onde estava o interruptor.
Quando olhei para cima, a luz começou a iluminar, como a
cena de abertura no cinema. As cavernas estreitas conduziam para
frente onde terminavam em uma sala grande, cerca de quinze
metros de largura e dez metros de comprimento. Quando os insetos
abriram seu caminho para os jarros, eu notei que a caverna rochosa
parecia dar a algo estranho, algo humano.
Margriete soltou um suspiro, reconhecendo o que agora nos
encarava. Ela caminhou até onde o muro acabava, passando a mão
em toda a pedra e madeira. Sam estendeu suas asas no espaço,
também se aproximando da parede estranha.
— É... — Fiz uma pausa enquanto eu atravessava a distância. 207
— É uma parede. — Mas não apenas uma parede qualquer, era
como uma parede que você vê em uma casa completa, com papel de
parede. No meio da parede havia uma porta de ouro branco com
uma maçaneta e à esquerda pendia uma pintura. Eu franzi minha
testa enquanto eu olhava a foto, vendo uma réplica exata da parede
pintada nesse quadro.
Sam veio e ficou ao meu lado.
— Que original. — Ele bufou.
Margriete rapidamente desamarrou o livro de seu cinto e
lutou com as páginas. Seu rosto se iluminou quando ela encontrou o
ponto certo e a empurrou para mim, apontando a litografia na
página.
— Veja aqui, a pintura é importante a fim de abrir essa porta.
— Ela acenou para a porta à nossa direita. — Nós temos que abrir
primeiro esta. — Ela apontou para a mesma porta na pintura.
— Parece bastante simples — eu disse, olhando em fascínio
para a foto no livro de ouro, que brilhava sob o toque de Margriete.
— Bem, mas é aí que chegamos a um impasse. Eu não me
lembro como eu fiz isso exatamente. Havia alguma coisa... — Ela
parou quando levou a mão para cima e pressionou os dedos com
força contra a testa.
Sam sacudiu a maçaneta da porta real, dando um bom puxão,
mas não se mexeu. Virei as costas e olhei para a pintura, chegando
em sua direção com uma mão. Quando a minha mão caiu sobre a
superfície, eu ofeguei quando atravessou a pintura.
Sam riu. 208
— Ei, veja isso. — Ele apontou para Margriete.
Margriete se virou e olhou para nós enquanto eu me enfiava
na pintura, tanto quanto podia, até meu ombro. Eu mexi meus
dedos, vendo que meu braço estava agora pintado na arte em si,
tornando-se uma parte dela. Visualmente, o alcance do meu braço
não era o suficiente para alcançar a maçaneta da pintura, mesmo
que eu estivesse posicionada no outro lado da sala.
— Claro! — A mente de Margriete parecia rever suas
memórias, dar sentido à confusão. — Elle, você precisa ir lá e abri-la
de dentro da pintura.
Eu puxei meu braço para fora, agora coberto por espessa tinta
a óleo pingando no chão da caverna.
— De jeito nenhum! — Eu chorei quando derramei a tinta do
meu braço. — Eu vou me afogar nisso!
— Vamos, Elle. — Ela insistiu.
— Por que eu? Porque você não pode fazer isso? — Eu andei
para longe da pintura, para o outro lado da sala.
O corpo de Margriete estava se mexendo com emoção e
ansiedade.
— Porque você pode voar.
Um rápido suspiro escapou dos meus lábios e eu achei que o
meu novo talento finalmente teve um lado negativo.
— Bem, Sam também pode! — Eu retruquei.
209
— Sam é muito grande, Elle, ele vai destruí-lo.
Eu estava andando agora, meus nervos com medo.
— Mas eu ainda não sou muito boa nessa coisa toda. E como
eu vou abrir a porta? Com o meu bico?
Margriete balançou a cabeça negativamente.
— Não, você deve mudar de volta quando estiver lá, e depois
mudar novamente e voar para fora. Você tem que respirar fundo e
se concentrar.
Ela fez isso parecer tão fácil, embora eu soubesse que era
tudo menos isso. Bem mais do que isso, eu estava quase certa que
ela estava apenas tentando solidificar o fato de que somente eu
poderia fazer isso, embora eu duvidasse que este fosse
completamente o caso. Eu podia ver um gato superar o mesmo feito.
Ela era muito teimosa para admitir isso.
Sacudi o medo das minhas mãos, as palmas agora suando.
— Ok. — Eu murmurei. — Eu posso fazer isso. Eu ainda
estava estimulando.
— Você pode fazer isso. Esta é a única maneira de passar.
Você sabe que é inevitável. — Ela insistiu com confiança.
Sam não tinha nada a dizer sobre o assunto então olhou para
mim em vez disso, um reflexo de ansiedade em seus olhos. Ele jurou
me proteger, mas essa tarefa era apenas minha e não havia nada que
ele pudesse fazer para ajudar. Vi seu deslocamento de peso de um
pé para o outro, finalmente acenando para mim e me dando o ok.
210
Eu apertei meus olhos tão apertados quanto eu podia, me
concentrando em voar e me perguntando o que eu sentiria dentro
da pintura. Foi então que eu fui capaz de mudar e eu abri os olhos,
virando firmemente para evitar colidir com o muro de pedra,
Margriete e Sam abaixaram as cabeças quando eu achei quase
impossível de controlar onde eu estava indo.
Minhas penas brilhavam na penumbra da caverna,
adicionando um tom claro branco na luz azul dos insetos. Na minha
segunda passagem, eu respirei fundo, com o objetivo agora de
entrar na pintura e preparando-me para o toque de seu espesso
conteúdo.
Olhei Margriete e Sam mais uma vez, tanto pronta e
congelada como uma pedra. Fechando os olhos, eu dobrei as minhas
asas e peguei velocidade, meu corpo tremia enquanto eu tentava
imaginar o que esperar. Pisquei uma última vez quando eu me
choquei com a pintura, o som ao redor de mim abafado, como se
afagasse meus ouvidos.
Na medida em que eu abria meus olhos, eu achei que tudo
estava turvo e misturado, como se eu precisasse de óculos. Eu batia
minhas asas relutantemente, sentindo a tinta manchando o seu
caminho através de minhas penas, mas achando que elas estavam
lutando contra isso, embora com pouco esforço. Era como se eu
tivesse apenas mergulhado em uma poça de água e eu tentei
imaginá-la como uma, a fim de evitar o pânico. Eu nadei tão
rapidamente quanto eu pude em direção à porta, a respiração que
eu tomei ainda não estava ardendo em meus pulmões, mas meus
músculos agora queimavam com a falta de oxigênio.
Eu poderia apenas identificar as vozes suaves e abafadas de
Sam e Margriete atrás de mim, incentivando-me a continuar. 211
Quando eu cheguei à porta, eu rapidamente concentrei-me em meu
corpo, mudando com tanta pressa e medo, que eu sabia que tinha
perdido a minha roupa. Apesar do constrangimento, era mais fácil
me mover através da pintura agora e eu agarrei a maçaneta,
sentindo minhas mãos contra a massa sólida conforme eu a
deslizava. Eu puxei fortemente quando senti que ela finalmente
abriu, uma sucção suave vinda de fora enquanto a porta aberta
tentava me colocar para fora, em um lugar que eu estava certa de
que não queria estar.
Eu me virei e pressionei duramente contra a corrente,
mudando de volta para corvo enquanto eu ia e encontrando nas
asas um melhor uso para passar através da pintura. Apertei tão forte
quanto eu podia, meu corpo agora fraco e cansado, gritando para
desistir. Minha mente começou a duvidar de si mesma quando
meus olhos fechavam com dor e determinação. De repente, a voz de
Edgar ecoou de algum lugar perto de mim, me distraindo de minha
saída enquanto olhava para o som.
— Querida, eu estou aqui, não vá.
Sua voz era clara, como se a pintura não estivesse mais
entupindo meus ouvidos. Eu olhei através das grossas listras, mal
capaz de distinguir o seu rosto já que ele ficava no canto, sorrindo
de uma forma que fez o meu coração derreter.
— Elle, você não pode me deixar aqui. — Ele suplicou.
Continuei a avançar, abrindo a boca para responder, sentindo
o gosto de tinta que jorrava para dentro.
— Você não é real! — Eu gritei, meu fôlego agora escapando
dos meus pulmões, enquanto as lágrimas tentavam cair dos meus
olhos, desaparecendo em listras azuis. Meu peito começou a arder 212
como se me incentivasse a inalar, a me afogar.
— Mas eu sou, Elle, eu sou real. Eu estou bem aqui. — A
imagem borrada de Edgar estendeu a mão para mim, sua mão a
apenas alguns centímetros de distância.
Meu corpo começou a se sentir cansado, minha mente
intoxicando-se com a falta de oxigênio, sem saber o que era
verdadeiro ou falso. Virei uma asa para ele, um sorriso agora
indefinido em seu rosto familiar quando ele chegou mais perto. Eu
queria dizer que o amava, mas não tinha mais fôlego.
Eu estava prestes a desistir e uma respirar profundamente
quando senti meu corpo sendo puxado para o lado, uma grande
mão agarrando o meu braço, eu mudei de volta para a minha forma
humana. A imagem de Edgar se afastou de mim e eu gritei uma
última vez, meus pulmões falhando enquanto a pintura jorrava para
dentro. Saindo através da pintura, eu caí duro no chão, sobre Sam e
Margriete. Tossi em jorros violentos, espirros de tinta aterrissaram
em todas as paredes da caverna enquanto a minha boca queimava
por causa dos óleos. Eu tinha conseguido manter a minha roupa
neste momento, mas elas estavam agora saturadas e pesadas, meu
corpo fraco incapaz de suportar.
Na medida em que eu limpava a tinta dos meus olhos, eu vi
que Sam e Margriete estavam ambos furiosamente ofegantes, a
cabeça e o braço de Margriete estavam completamente encharcados
e o rosto de Sam, tinha listras azuis e verdes, vibrantes contra a sua
pele limpa. Deixei escapar o riso de um louco enquanto eu cuspia
mais tinta no chão, percebendo o quão perto da morte eu havia
chegado.
Margriete empurrou meu cabelo encharcado longe do meu 213
rosto.
— Essa foi por pouco. — Ela respirou, não encontrando graça
no assunto.
Sam tinha um olhar de nojo no rosto quando ele olhou para o
braço e o rosto encharcado, também não vendo graça, mas sim
desprezo.
Meu sorriso murchou para uma carranca quando a minha
sanidade mental voltou.
— Edgar estava lá. — Tentei acalmar minha respiração,
percebendo que meu coração se recusava a acreditar que estava
segura. — Eu o vi.
Margriete encarou meus olhos, nunca quebrando o seu olhar.
— Não era real, Elle. Ela agarrou meu cabelo e o espremeu. — Ele
estava apenas em sua mente, enganando você. Você precisa
reconhecer isso.
Sam resmungou quando ele atirou tinta contra a parede,
andando em círculos, como se esperasse poder correr para longe
dele.
Eu balancei minha cabeça, meus olhos, finalmente, jorrando
em lágrimas.
— Não. Era ele dessa vez. — Minhas emoções estavam como
uma montanha-russa, voando em minha mente de uma forma que
mantinha os meus sentidos confusos. Olhei para trás até a pintura,
mas não havia ninguém lá.
Margriete ainda tinha a mão na minha cabeça. 214
— Não é real, Elle. Está tudo na sua cabeça.
Eu suspirei. — Bem, você o viu, certo?
Margriete e Sam se olharam antes de ela responder.
— Er... — Seus lábios formaram uma linha reta. — Não, nós
não vimos nada além de você.
Eu sustentei meu olhar, me perguntando se ela estava
dizendo a verdade ou não. Eu não precisava deles para me proteger,
eu sabia o que tinha visto e não havia nenhuma razão para me
impedir de sentir tristeza, pelo menos eu sabia de qualquer maneira,
que eu estava louca.
Sam caminhou em nossa direção e nos ofereceu uma mão.
Meu punho escorregou por entre os dedos de Sam, a tinta se
espremendo entre os nossos dedos ligados. O humor alterou para o
riso quando Margriete caiu com sua bunda em uma poça de tinta,
deixando-a com uma cara feia e dolorosa de constrangimento.
Reagrupando para tentar novamente, ela agarrou as suas
mãos em volta do braço de Sam e conseguiu ficar em uma posição
ereta. Deixando escapar um suspiro na conclusão, todos nós ao
mesmo tempo olhamos para a porta agora aberta, analisando o seu
interior com cautela. Quando me aproximei e meus olhos se
ajustaram, vi que havia uma escada que começava logo ali dentro do
espaço pequeno e escuro, descendo em uma espiral sem fim como
um redemoinho.
Sam colocou a mão na maçaneta da porta, inclinando seu
peso contra ela enquanto olhava para dentro e para baixo. 215
— Bem, eu acho que é tudo ladeira abaixo a partir daqui.
Margriete e eu olhávamos para o caminho à frente, meu
corpo gritando por um descanso e minhas roupas arruinadas e frias.
— Nós não podemos ficar aqui, temos de continuar. —
Margriete disse finalmente, a luz agora no quarto apagando quando
o poder dos vagalumes começou a morrer. Ela colocou uma mão em
meus ombros afundados. — Vamos descansar logo, Elle, mas não
agora.
Capítulo 16
PARA BAIXO E PARA FORA
216
As escadas continuavam a se espiralar para baixo, minha
mente confusa e minha cabeça doendo de continuar indo na mesma
direção por tanto tempo. As minhas coxas agora queimavam mais
do que nunca e mesmo Sam, lutando para se manter estável, estava
mostrando os seus primeiros sinais de fraqueza. A luz encheu o
espaço de algum lugar acima, como se a torre de escadas houvesse
aberto um telhado para o céu, apesar de isso parecer impossível. Até
agora, era claro que nós estávamos profundamente abaixo da
superfície da terra, bem mais fundo do que qualquer explorador
esteve.
Margriete estava respirando em ondas constantes, o seu
passo nunca se interrompendo, como se estivesse em um transe. De
tempos em tempos ela se transformava em gato, os seus
pensamentos lutando com a natureza repetitiva da escadaria, e o
fato de que como um gato, ela parecia flutuar em uma marcha mais
confortável. Eu tentei fortemente manter o mesmo ritmo, apesar de
que o meu corpo implorava por uma pausa.
Eu não tive tanta sorte. Transformar-me em um corvo
significaria rodopiar fora de controle. A escadaria era estreita e
apertada, e eu sabia que uma vez que eu pegasse velocidade, eu só
continuaria indo para baixo, sem lugar para pousar.
Eu esfreguei as palmas das mãos nas minhas coxas.
— Grietly, quanto tempo mais? — eu reclamei.
Ela pareceu assustada quando a sua marcha repetitiva se
quebrou.
— Quase lá, — ela gritou. — Eu acho. — Os olhos dela se
217
viraram para me olhar e eu notei o quão inchados de sono eles
haviam se tornado, sua pele já murcha.
Sam gemeu atrás de mim, obviamente entediado com a falta
repentina de ação. A tinta havia secado em todos nós e estava agora
se despedaçando enquanto o suor se acumulava embaixo dela,
deixando um rastro de cor escada abaixo. Eu estava praticamente
coberta de tinta branca, sendo que na pintura eu era um corvo
branco, pelo menos em grande parte, então eu estava feliz por isso.
Eu pensei em Edgar e quando eu o tinha visto. Apesar das
manchas de tinta, eu ainda estava convencida que tinha sido ele. Sua
voz era inconfundível, se não excessivamente sedutora. Eu tremi me
lembrando da sensação de quando ele havia me tocado, aquele
sentimento inegável que nós éramos uma só alma, ligados pela
eternidade.
Você poderia pensar que seria mais fácil, que as nossas vidas
continuariam em um felizes para sempre. Mas como a maioria das
coisas na vida, a perfeição é muito cobiçada para ser fácil e livre, e
contentamento pode no final levar à autodestruição se você não for
cuidadoso o bastante. Nosso amor havia se tornado a nossa derrota,
e no final, sempre nos seguraria nesse ciclo tumultuado de crises e
significados.
Lá em cima, mais luz se derramava pelo espaço, mas desta
vez pelos lados como se houvesse uma janela. Eu pisquei forte,
tentando discernir os raios que passavam por ali, tentando decidir o
que na terra poderia se assemelhar ao sol.
—Aquilo é luz solar? — eu perguntei, inclinando minha
cabeça enquanto continuávamos a galope para baixo e para frente.
218
Margriete riu.
— Sim. — Seus olhos começaram a clarear quando ela viu
também.
— Mas, — eu pausei, olhando na direção do topo da torre,
agora tão alto que a luz lá era um pequeno buraco de agulha. —
Mas, nós estamos no subsolo!
Sam não disse nada, mas havia um olhar óbvio de
curiosidade em seus olhos.
— Bem, os seus sonhos nunca são sem sol, são? — Margriete
desacelerou um pouco, permitindo que ela recuperasse o ar para
falar. — Vamos dizer assim, você não acharia que os deuses
deixariam que os humanos tivessem o único sol, não é?
— Bem, — eu pensei por um momento. — Não. Mas há
aquele pequeno detalhe chamado espaço e gravidade. Quer dizer, o
sol não é muito grande para caber dentro da terra?
Margriete fungou e o barulho ecoou pela câmara.
— Você tem que pensar diferente, Elle, qualquer coisa pode
acontecer, e acontecerá. Além disso, não é como se eles estivessem
tentando esquentar o universo inteiro aqui, pense em uma escala
menor.
Eu apertei os meus lábios e ergui minhas sobrancelhas,
achando que a explicação dela havia clareado os meus pensamentos.
— Eu acho que consigo entender.
A janela estava aproximando-se de nós agora, e Margriete
desacelerou ainda mais, os seus passos agora um de cada vez, ao 219
invés do trote firme que ela estava fazendo por tanto tempo.
Sam finalmente falou.
— Espera, eu conheço esse lugar.
Eu me virei e olhei para ele, o rosto dele agora cintilava com a
luz, mais branco do que eu jamais tinha visto em dias.
— Isso é...
Margriete o cortou. — Sim Sam, é.
As janelas estavam bem diante de nós e eu me encontrei
segurando a respiração em antecipação do que poderia ver.
Enquanto eu terminava a última espiral, eu mal podia distinguir o
que havia atrás. Expirando devagar, eu dei um passo em frente a
moldura, a luz solar se derramando pela minha pele e o calor
repentino mandando ondas de conforto pelo meu corpo, uma
sensação parecida com o lar, que eu não pude evitar a não ser
esquecer onde eu estava.
Com admiração, eu olhei para o que aparentava ser um vale
luxuriante. O vento estava soprando com perfeição por árvores com
folhas verdes e uma fragrância fresca se derramava do lugar para as
minhas narinas. O ar era o mais doce que eu já havia sentido, atado
com o pólen de cem flores perfumadas.
Meu coração pulou como se estivesse fazendo o seu caminho
pelo meu peito com a sua necessidade desejosa para brincar dentro
deste mundo, esquecer a terra por inteiro e estar aqui, de uma vez
por todas. Este não era só um lugar de sonhos, mas era também o
meu céu.
220
Olhando para a minha esquerda, eu vi que havia um rio que
se derramava além da torre e descia pela colina. Nós ainda
estávamos a cem metros do chão, mas eu podia ver agora,
estávamos próximos do fundo. Eu olhei em direção ao céu,
encontrando o sol deste mundo, maravilhada que eu pudesse olhar
diretamente para ele sem a normal sensação incômoda em meus
olhos. Não parecia menor do que aquele que eu estava acostumada
na terra, mas o fato de estar mais perto sugeria que ele era menor no
final das contas. Apesar de parecer do mesmo tamanho, não parecia
da mesma cor e eu notei como o brilho interno da luz era azul,
lentamente irradiando uma luz branca.
Nuvens começaram a passar lentamente na frente da luz,
fofas e grossas de chuva. Enquanto a luz se esvaía para longe de
mim, puxou a minha visão para ainda mais longe na paisagem. Bem
distante estava uma cidade através do ar nebuloso e era difícil
reconhecer muito mais do que algumas estruturas, tudo muito
simples para ser o castelo que eu havia imaginado, mas o que eu
sabia?
Foi aí que houve um grito vindo de baixo e a minha cabeça
virou em direção do som, achando-o um lembrete estranho do meu
passado. Margriete colocou suas mãos na soleira da janela, também
chocada pela interrupção repentina. Sam, se sentindo deslocado,
veio por detrás de nós, colocando uma mão em cada ombro e
olhando por cima as nossas cabeças.
Havia um homem lá embaixo, arrastando uma canoa pela
terra macia em direção ao rio, respirando forte e xingando baixinho.
Eu o assisti por um momento, achando que algo em seu físico era
estranhamente familiar também. O homem tropeçou, caindo de
bunda enquanto uma palavra, que eu não vou repetir, deixava os
seus lábios e ecoava pelo vale. Enquanto o homem lutava e ajeitava 221
os óculos estranhos em seu nariz, eu perdi o ar.
— Scott! — Eu gritei, meu corpo surtando de excitação
enquanto eu pulava para cima e para baixo, colocando minhas mãos
firmemente no peitoril enquanto eu contemplava descer voando até
ele.
Scott pulou e olhou em volta dele, assustado pela minha voz
como se ele pensasse que fosse a única pessoa em quilômetros.
Ele inclinou a cabeça.
— Elle? — ele perguntou, mais para si mesmo do que para o
ar em volta dele, parecendo como se tivesse pensado estar ouvindo
coisas.
— Scott! — Eu gritei novamente, agora acenando da janela.
Scott parecia confuso quando finalmente percebeu que havia
uma torre gigante na frente dele. Ele olhou para cima, sua boca
abrindo e os seus óculos ainda quebrados no nariz enquanto o suor
brilhava em sua testa. Quando os olhos dele encontraram os meus,
ele repetiu, mas desta vez era como se ele não tivesse certeza de
estar vendo o que ele estava vendo.
— Elle? — ele pausou, um sorrindo surgindo em seu rosto
como se ele finalmente tivesse visto que eu era real, — Elle! — Ele
correu em direção à torre.
— Scott! Você está aqui! — Minha voz se quebrou.
222
— Elle! O que você está fazendo aqui? Este é o meu sonho! —
Ele gritou, agora de pé diretamente abaixo de nós.
— Eu sei, Scott! Mas nós estamos aqui! — Eu me virei para
dentro e encarei Margriete e Sam. — Nós temos que descer lá! — Eu
olhei para baixo de volta para Scott. — Fique bem aí, nós já
desceremos! — Eu gritei.
Sam deu um aceno concordando, colocando as mãos nos
quadris e se virando em direção ao rio, os seus olhos passando
rapidamente entre o rio e a canoa.
— Vamos, gente, vamos! — Adrenalina agora pulsava pelas
minhas veias e eu esqueci o quão cansados os meus músculos
estavam enquanto eu pulava degraus inteiros até chegar nos
últimos. No final, portas arqueadas guiavam para fora no vale onde
a hera engolia a entrada como uma cortina. Eu empurrei a cortina
para o lado, meus pés dando boas vindas para a grama enquanto eu
passava pela porta.
Eu parei onde o sol banhava todo o meu corpo e respirei
fundo e fechei meus olhos. Quando eu os abri, Scott estava de pé
diretamente na minha frente.
— Elle? O que você está fazendo aqui!? — Ele estava
surpreso, como se ele não se lembrasse de que já tinha me visto, o
seu rosto reagindo como um replay de antes.
— Scott, — eu franzi as sobrancelhas. — Scott você já me viu,
nós já passamos por isso. Sabe, lá? — Eu apontei em direção à torre
e a janela.
Ele olhou para o chão, e acima para a torre, e então de volta
para onde a sua canoa estava perto da beirada do rio. 223
— Oh, — ele pausou, se virando de novo para mim, os seus
olhos perolados se dilatando atrás de seus óculos. — Oh, sim! — ele
deu um tapa na perna, finalmente se lembrando enquanto as peças
se encaixavam na sua cabeça.
Eu ri e dei um grande abraço nele.
— Está tudo bem Scott, você está sonhando.
Ele concordou de olhos arregalados.
— Infelizmente, — ele respondeu. —Eu estava estudando
para uma grande prova no laboratório de plantas e eu devo ter
pegado no sono. — Ele bateu em sua perna de novo. — Droga! Eu
precisava daquele dez.
Eu dei um tapinha nas costas dele.
— Não se preocupe Scott. Além disso, o que é melhor do que
estar aqui comigo?
Ele sorriu, agora massageando a perna e descobrindo que dar
dois tapas nela era um descuido.
— Sim, isso é verdade. — Ele juntou as sobrancelhas quando
o Sam e a Margriete surgiram, ele olhou para os dois com um olhar
tanto de interesse quanto de medo. — Quem são eles? — ele olhou
em volta dele, e então de volta para a torre. — E onde nós estamos?
Eu segui o olhar dele enquanto ele olhava para o céu. A torre
continuava pelo que parecia ser uma eternidade, para o céu e para
dentro das nuvens onde não havia sinal das paredes externas, ou 224
das cavernas. Era como estar na superfície da terra, e por um
momento, eu duvidei de mim mesma.
Sam e Margriete se aproximaram atrás de mim enquanto
Margriete ofereceria uma resposta ao questionamento de Scott.
— Estes são os campos periféricos da Cidade dos Anjos. —
Margriete esticou a mão em direção a Scott. — Oi, eu sou Margriete.
Scott estava compreensivelmente devagar, como esperado,
até porque ele estava sonhando. Ele hesitou pelo que pareceu serem
minutos antes de agarrar a mão dela e balançar.
— Oi, eu sou Scott.
Margriete tentou conter uma risada.
— Sim, eu sei, eu já te conheci antes.
Eu não consegui evitar um sorriso.
— Sim, Scott, Margriete é a gata que eu levei comigo da
última vez que eu fui te ver.
Scott levantou um dedo e apontou para ela, os olhos se
estreitando.
— Oh sim, — ele analisou, encaixando as peças.
Sam se recusou a dar um passo para frente enquanto ele
cruzava os braços na frente do peito, enojado por estar na presença
de um humano de verdade.
— Então é isso, hum? — ele falou, dirigindo a sua afirmação
para Margriete. 225
— É isso, — ela respondeu simplesmente.
— Hum... — Ele grunhiu com uma pontada de crítica em sua
respiração.
— Bem, você não conhece este lugar Sam? — Eu estava um
pouco confusa, se esta era a Cidade dos Anjos, ele deveria ter estado
aqui.
Margriete deu um passo para frente onde ela enfiou o nariz
no ar, cruzando os braços e parecendo tão fria quanto Sam.
— Ha, nos sonhos dele, — ela disse arrogantemente
orgulhosa do fato que ela tinha conhecimento sobre algo que Sam
não tinha. — Ele tem que merecer a entrada aqui, — ela zombou na
direção do Sam, — E ele simplesmente não é bom o bastante ainda,
então esta é a primeira vez que ele vê isso aqui. — Ela imaturamente
mostrou a língua para ele, fazendo com que o Sam pulasse na
direção dela com um olhar de ódio.
— Bem, o que ele tem que fazer para merecer vir para cá? —
Eu perguntei, falando pelo grupo todo, olhando-a com suspense
enquanto ela se afastava do avanço do Sam.
Ela se inclinou contra a torre.
— Esta é a aposentadoria do Anjo da Guarda, por assim
dizer. Aonde os anjos vêm depois que sua missão de proteger uma é
alma termina. — As sobrancelhas de Margriete se levantaram
enquanto ela ria e olhava para mim. — Parece que você vai ser um
Anjo da Guarda por um longo tempo, Sam, Elle estará aqui por toda
a eternidade se tudo der certo. 226
Sam grunhiu para ela.
— Cala a boca, Margriete.
Ela soltou uma risada explosiva.
— Oh, relaxa, Sam, não é tão bom aqui lembra? Você tinha
acabado de criticar o lugar.
Se o Sam pudesse ficar vermelho de raiva, ele provavelmente
ficaria, mas ao invés disso ele se virou e andou em direção ao rio e
longe de nós.
O rosto de Margriete instantaneamente perdeu todo o seu
humor enquanto ela se puxava da parede. — Ele é bem sensível
para alguém que finge ser tão durão.
Eu explodi em risadas enquanto o Scott ficou de pé ao meu
lado totalmente perdido.
— Então espere, — ele me acotovelou de leve, tentando
seguir a nossa conversa pela grossa névoa de seu sonho. — Aquele
cara das aulas o ano passado... — o rosto dele franziu enquanto ele
tentava encaixar as peças. — Ele é um Anjo da Guarda?
Eu dei um tapinha nas costas dele, sem perceber a minha
própria força e quase arranquei os óculos da cabeça dele.
— Você entendeu Scott! Estou tão orgulhosa de você, — eu
provoquei. Margriete revirou os olhos e começou a descer a colina
na direção do Sam e eu encorajei o Scott a seguir em frente. — 227
Vamos Scott, vamos aproveitar ao máximo este seu sonho. — Ele
tropeçou antes de se endireitar, endireitando os óculos e a camiseta
e agindo como se ele fosse um homem renovado.
Capítulo 17
NA CIDADE
228
— Oh, olhe, — gritou Scott, — uma canoa!
Margriete gargalhou enquanto todos nós demos a volta ao
barco.
— Sim Scott, eu acho que você já disse isso.
Ele apertou as sobrancelhas e rebobinou sua memória.
— Oh sim, — ele respondeu de forma tímida.
Sam olhou para ele com nojo.
— Criatura desprezível, — ele assobiou baixinho.
— Você não pareceu achar que Jill era desprezível, —
Margriete sorriu para ele.
— Vá abraçar uma árvore, Margriete, — ele cuspiu de volta.
Eu balancei a cabeça para eles, sentindo que a atitude de um
para o outro estava se transformando em bastante ácida e infantil.
— Será que vocês, por favor, podem se concentrar?
Ambos olharam para mim com olhares de raiva quando
todos nós içamos a canoa sobre as nossas cabeças e marchamos o
resto do caminho para a água. Na borda, eu olhava nas profundezas
do rio, maravilhada com o quanto era impecável, e também quão
azul.
Eu olhei para os meus pés, meus dedos mergulharam na
água quando algo que eu não tinha notado chamou minha atenção e 229
eu me virei e olhei para trás. Ali, na grama estavam minhas distintas
e muito profundas pegadas. Ajoelhei-me e passei a mão em torno da
depressão, admirando a maneira como elas permaneceram intactas
em comparação com a maneira como haviam desaparecido na Terra.
Lá em cima, eu era algo mágico, mas aqui, eu finalmente era
capaz de deixar minha marca, um mundo onde eu poderia
pertencer. Além de formar as pegadas na lama e grama havia
também uma falta de floração na trilha atrás de nós. Como tudo
neste mundo, já estava encantado com a beleza e a vida eterna e não
era mais necessário o florescer a partir de nossa presença.
Eu suspirei, perdendo-me na sensação de harmonia.
— Vamos, Elle! — Margriete gritou. — Empurre!
Eu voltei à realidade quando coloquei as duas mãos na borda
da canoa que estava descansando ao meu lado, empurrando a
grande embarcação no rio. Quando a corrente puxou o casco, Sam se
manteve na parte de trás e todos nós subimos para dentro, Scott
estava completamente perdido em seu próprio espanto e estava
sorrindo para ele mesmo enquanto Margriete manejava os remos.
— Duvido que vamos precisar deles, — Sam gritou sobre o
barulho da correnteza.
Margriete deu-lhe um olhar malvado e desviou os olhos,
agora o ignorando com o silêncio.
De repente, Sam soltou e saltou para dentro quando a canoa
avançou. Scott agarrou os lados do barco, os nós dos dedos brancos
enquanto segurava forte. Nós fomos atirados entre as pedras 230
enquanto rapidamente pegávamos nosso ritmo. Entre as árvores, o
rio caiu sobre uma pequena coleção de rochas, sacudindo-nos com
um baque pesado e empurrando a canoa para a direita. Scott
começou a rir descontroladamente sobre a correnteza barulhenta
como um louco, perdido nas brumas do seu sonho e não se
incomodando com o fato de que isso poderia matá-lo.
Enquanto nós descíamos o rio, nos esforçamos para manter a
canoa para frente. Margriete foi rápida em nos dar os remos,
sorrindo para Sam cada vez que ele olhava para ela, provando que
os remos tinham seu propósito afinal.
Eu poderia dizer que ambos estavam animados com o jogo e
a emoção do momento. Eu, por outro lado, não podia deixar de
sentir o fluxo de terror através de meu sangue como lava quente. A
última coisa que eu precisava era morrer no meu caminho para
salvar Edgar.
Sam desistiu e assistiu Margriete enquanto nós esquivamos
de uma grande rocha que dividia o rio. Ele empurrou-nos para
longe quando chegamos perto, agarrando os lados da canoa e, em
seguida, espalhou suas asas, de modo a permitir um pouso suave e
confortável quando as corredeiras continuaram a bater-nos para
frente. Logo, o rio diminuiu, torcendo pela direita quando o som
ensurdecedor de água escoava raivoso atrás de nós.
Scott estava gritando em triunfo quando ele balançou para
trás e para frente em sua cadeira, ainda perdido no sonho. O fato de
que ele estava em forma prejudicial não o tinha perturbado, como
não deveria. Os sonhos eram o único lugar em que você pode
morrer, apenas para acordar no mundo real. Era um conceito
interessante pensar no que iria acontecer comigo se eu tivesse 231
morrido, eu iria acordar de tudo isso? Será que eu perceberia que eu
realmente sou humana, afinal, deprimida e sozinha, abandonada e
com medo?
O rio começou a diminuir a um fio preguiçoso e eu pude ver
que nossas aventuras já tinham terminado.
— Bem, isso não foi tão ruim, — eu empurrei o meu agora
umedecido cabelo do meu rosto, enquanto Margriete manteve sua
visão aguçada para frente.
— Sim, mas nós provavelmente devemos pensar em sair em
breve, — ela apontou para frente e eu segui seu olhar.
Assim que eu pensei que nosso passeio tinha chegado a um
final, vi que o fluxo suave do rio era apenas o precursor do que
estava à frente. Eu assisti com horror quando a água acabou em uma
linha de repente, abrindo caminho para uma cachoeira raivosa
adiante.
— Sam, rápido, pegue Scott, — Margriete jogou os remos na
água e eles flutuaram para longe de nós. — E Elle, me agarre, — ela
levantou passando por Scott e sentou-se em frente de mim.
Sam gemeu.
— Só faça isso, — ela gritou, suas palavras sumindo quando
ela se transformou em gato e subiu no meu colo.
—Mas você vai estar muito pesada! — Eu protestei, sabendo
que, como um corvo, eu já me esforçava para me manter à tona,
imagine com um gato também. 232
Margriete assobiou para mim quando ela cravou as unhas em
minhas pernas.
Sam tentou conter Scott enquanto ele continuou a balançar
em comemoração e eu rapidamente lutei para me agarrar à minha
mudança quando eu ouvi o barulho revelador da queda de água
perto. Era difícil me concentrar com Margriete arranhando a minha
pele e eu mudei a tempo de agarrar sua cauda com uma garra, a
canoa caindo sob nós e para baixo da montanha.
Margriete sibilou e rosnou enquanto eu observava a canoa
bater contra a encosta rochosa, a água levando embora os pequenos
pedaços do tamanho de palitos.
Sam e eu circulamos para baixo, meu aperto na cauda
Margriete quase falhando quando chegamos ao chão.
Exausta, eu deixei cair seus 1,50 metros acima da grama na
beira do rio. Água pulverizando e emaranhando sua pele quando
ela rastejou para longe da água, seu ódio instintivo disso ainda
remanescente.
Em um flash, ela rapidamente mudou de volta quando Sam
soltou Scott no chão, com a mão firmemente colocada sobre a boca
de Scott, que se contorcia. Sam olhou para mim quando o rosto de
Scott ficou vermelho como uma beterraba em sua tentativa de gritar.
— Qual é o seu fascínio com esta raça? Realmente, — ele
sussurrou, jogando Scott para o chão.
Scott instantaneamente começou a rugir com uma risada
gutural, como um louco enviado para a solitária.
233
— Incrível! Absolutamente selvagem, — ele gritou,
rapidamente de pé e pulou para a beira do rio onde inspecionou os
danos. Sendo tão precavido como era, isto era certamente novo para
ele. Tenho certeza de que nunca houve um momento em que ele
pensou em voar de uma cachoeira nas mãos abusivas de um Anjo
da Guarda.
Sam bufou em desgosto, enquanto caminhava para a beira da
água e tentou lavar-se do cheiro humano. Eu me mudei de volta
para minha forma humana, apressadamente verificando meu cinto
para garantir que a adaga ainda estava lá. Eu a tinha deixado para
trás quando tinha entrado na pintura, então não tinha me
preocupado em perdê-la, mas na comoção do rio, perdê-la teria
arruinado todos os meus planos e eu tentaria negociar com nada.
— Você tinha que agarrar a minha cauda Elle? — A voz de
Margriete estava cheia de insolência enquanto ela sacudia o resto da
névoa. — Quero dizer, realmente, — ela passou a mão contra a base
das costas, onde o cóccix estava.
Dei de ombros e sorri, — Desculpe.
Ela exalou enquanto sua respiração se arrastava entre os
lábios, fazendo-os bater com aborrecimento.
Todos nós tivemos um momento para se reagrupar enquanto
eu acalmava Scott, ajudando-o a perceber onde estava e esperando
que ele encontrasse sua sanidade. Depois de alguns minutos, eu
consegui fazer com que ele parasse de rir e olhasse para mim,
quando ele começou a esquecer de que esteve aqui o tempo todo.
— Lembre-se, Scott, nós viemos de lá, — eu apontei para o
topo da cachoeira. — Do rio, onde você viu-me na torre. 234
Ele apontou o dedo para mim, como sempre fazia,
estreitando os olhos em reconhecimento.
— Oh meu Deus, Elle, você está certa! — O olhar em seu
rosto era impagável, como se ele não pudesse acreditar que ele tinha
sido tão feliz e aventureiro.
Revirando os olhos eu me juntei a Sam e Margriete quando
eles discutiam sobre o que fazer a seguir.
— Espero que ele acorde cedo, — Sam sussurrou baixinho.
Tentei acotovelá-lo, mas em vez disso, acabei com uma
contusão.
— Sam, esqueça Scott, ele está aqui por agora, então supere
isso, — Margriete esticou uma mão para ele e Sam se calou.
— Bom trabalho, — eu gritei, dando-lhe um sinal de positivo
por ter sucesso em derrotar Sam em seu próprio jogo.
— Então, — Margriete acalmou seu riso quando Sam amuou.
— De volta aos negócios. Eu acho que é seguro dizer que, se
seguirmos o rio, não vai demorar muito até que nos deparemos com
a cidade.
Eu balancei a cabeça, enquanto Sam se recusou a dar-lhe
qualquer reconhecimento.
— Em nosso caminho para baixo, não parecia muito longe, —
acrescentei, olhando na direção indefinida.
235
Sorrindo para mim mesma, lembrei-me das obras de Júlio
Verne, comentando quão verdadeira a Jornada ao Centro da Terra
tinha sido. Eu me perguntei se ele sabia, assim como Scott faria, que
este lugar era real, e eu perguntei se ele tinha realmente estado aqui
da maneira como seu livro poderia sugerir.
Margriete recolheu suas coisas, a pintura agora lavada de
todos nós, saindo de uma festa um pouco apresentável. Enquanto
fizemos o nosso caminho ao longo do leito do rio, assisti um peixe
colorido tecer abaixo da superfície, já não precisando de minha vida,
ou minha atenção. Pelo que eu sabia isso era o céu, ou pelo menos o
que qualquer homem consideraria como sendo. Tudo parecia
perfeito e saudável, eternamente ligado a uma vida de felicidade.
Não demorou muito para que as árvores começassem a
diminuir e chegamos a uma pequena cabana com um portão de
entrada. O telhado era coberto de palha, muito parecido com o que
você poderia ter visto nos velhos tempos coloniais, ou talvez no
campo. A cerca estava bastante quebrada, e em alguns pontos,
completamente destruída. Um rebanho de cabras estava espalhado
por toda a paisagem, metade dentro dos portões da fazenda, metade
fora.
— Existe alguma espécie de dinheiro aqui? — Eu perguntei
para ninguém em particular.
Margriete acenou com a cabeça.
— Hmm... — ela olhou para a desgastada casa e pesava seus
pensamentos. — Sim, eu acredito que há. — Ela puxou o livro e
folheou algumas páginas, rapidamente encontrando o local que ela
estava procurando. Ela sorriu. — Sim, parece que os anjos ganham
sua aposentadoria... — ela parou e olhou para Sam com um olhar
acusador. — Vocês são tão interesseiros! — Ela exclamou, deixando 236
cair o livro a seu lado e olhando estupidamente para ele.
Sam sorriu e olhou para longe dela.
Ela trouxe o livro de volta para seu rosto.
— Aqui diz que Anjos da Guarda ganham várias quantias,
baseadas em quem escolheram proteger em sua vida de serviço.
Proteger alguém como você — ela apontou para mim, sua cabeça
ainda enterrada na página — traz a maior recompensa, algo
equivalente à realeza. — Ela bufou, agora vendo Sam como
ganancioso, não como cavalheiro.
Soltei um grunhido de surpresa, minha boca aberta quando
olhei para Sam com os olhos arregalados.
— Seu pequeno ladrão! — Eu gritei, um pouco divertida. A
personalidade de Sam certamente sugeriu que ele seria tão
convencido, mas eu esperava o contrário.
— Mas por que é pago tanto para nos proteger quando os
deuses realmente nos querem mortos? Isso não parece um pouco
estranho para você?
A testa de Margriete franziu.
— Você tem um razão, mas eu não sei dizer o porquê. — Sua
boca se curvou em um sorriso. — Talvez não haja realmente mais
para nós do que sermos apenas um erro. — Seus olhos vidrados
quando ela guardou seus pensamentos para si mesma, agora
pensando em uma explicação racional.
237
Sam enfiou o nariz no ar.
— Antes de você me castigar, você deve saber que eu não
queria o emprego.
— É, certo, — Margriete engasgou.
Sam olhou para ela com um olhar assustador, seus olhos
agora brilhando em um ouro profundo.
— Eu fiz isso por Edgar, ok?
Meu sorriso afundou, vendo a tensão em sua expressão.
— Edgar fez muito por mim em um tempo difícil. O dinheiro
é apenas um bônus. — Ele desviou o olhar, o rosto marcado pela
dolorosa suposição.
Margriete olhou para os dedos dos pés, um pouco vergonha.
— Lamento Sam. Eu não tive a intenção de te machucar.
Sam não disse nada quando cruzou os braços.
— O que Edgar fez por você? — Eu pressionei, agora
egoisticamente intrigada com a conversa.
Sam se virou e me olhou com os olhos estreitos, o violeta em
seu rosto morto mais escuro do que eu já tinha visto.
— Ele me ajudou a superar Jill, — ele respondeu claramente.
Eu lhe dei um aceno cortês, deixando-o saber que eu não era
238
o inimigo aqui.
— Ele ajudou a esquecê-la?
Ele acenou com a cabeça.
— Ele disse que nenhum homem deve ter que suportar esse
tipo de tortura por toda a eternidade.
Meu coração se afundou nas palavras, e pela primeira vez, eu
me perguntei se Edgar realmente tinha me superado, se ele tinha
seguido em frente na minha ausência. Eu nunca considerei esse fato,
talvez, ele tenha tentado encontrar o amor em outro lugar. Eu tinha
ido embora há 300 anos e não sabia nada sobre esse tempo, ou o que
ele tinha feito.
Margriete agarrou meu braço, vendo minha angústia. — Mas
não Edgar, querida, ele sempre te amou.
Olhei para Sam, mas ele desviou o olhar, como se ele
estivesse escondendo algo. E se Edgar tinha tido outra mulher, se
tivesse mesmo a amado?
Talvez ele não a amasse tanto quanto ele me amava, mas pelo
menos o suficiente para tornar a vida suportável. Fosse o que fosse
que Sam escondia, eu sabia que ele nunca diria.
Uma súbita sensação de absurdo tomou conta de mim e algo
dentro de mim me fazia sentir boba por estar aqui, por ter tomado a
iniciativa de encontrá-lo quando ele obviamente não tinha feito o
mesmo quando eu tinha desaparecido. Lágrimas surgiram em meus
olhos e eu tentei pressioná-las de volta quando Scott começou a
assobiar atrás de mim, com os pés traçando a borda da água, 239
perigosamente perto de cair dentro do rio. Eu coloquei minha mão
na adaga que estava confortável em meu cinto, um lembrete dos
sacrifícios que eu tinha feito por ele, por alguém que eu ainda
achava que eu não conhecia, e de repente não tinha certeza se podia
confiar.
Eu tinha caído tão depressa nos aspectos do amor e
felicidade, nunca questionando seus motivos, ou os meus. Era mais
fácil para ele encontrar o amor e conexão, quando não havia alma
para ansiar? Ou isso não satisfez aquele buraco dentro dele, o
buraco que eu poderia encher, se ele me deixasse.
Estávamos bem perto da pequena fazenda agora e outra casa
apareceu por entre as árvores. Esta tinha um telhado mais resistente,
de telhas, com assoalho de tábuas e uma nova camada de tinta
branca. Uma coluna de fumaça branca subia da chaminé e um
viveiro de pássaros foi construído na metade externa da casa.
Margriete novamente abriu o livro, um olhar de
reconhecimento cruzou seu rosto.
— Eu acho que nós estamos aqui, eu reconheço este lugar,
como se fosse um déjà vu. — Ela passou a mão em toda a página e
sorriu. — Elle, você vai adorar isso, eu prometo. — Ela piscou para
mim quando fechou o livro e empurrou-o para os laços de couro nas
costas.
À medida que nos aproximamos, eu fui capaz de ver os
pássaros quando eles saltaram entre os ramos da gaiola, arrulhando
rispidamente.
— Eles são corvos, — eu ofeguei. — Por que alguém iria
manter corvos? 240
Sam revirou os olhos como se soubesse.
— Você vai ver, — Margriete me cutucou, seu sorriso agora
vingativamente irritante.
Capítulo 18
VELHOS AMIGOS
— Oh, oi! Venha, venha minha querida criança! — Um 241
homem abriu a porta, o rosto radiante a ponto que parecia engoli-lo.
Nós tínhamos batido várias vezes, esperando pelo que
pareceram horas enquanto as pancadas de potes e tinidos de pratos
colidiam atrás da porta.
Scott sorriu com uma expressão embasbacada em seu rosto e
eu podia dizer que ele estava começando a desaparecer deste
mundo e voltar para o seu próprio, onde ele teria que encarar um
teste para o qual ele mal havia estudado.
— Ah, querido amigo, — Margriete inclinou-se e deu ao
homem um abraço, como se ela o conhecesse como um tio.
— Faz tantos anos, querida! — Ele bateu em suas costas com
suas velhas mãos. — Eu achei que nunca iria vê-la novamente. — O
sorriso do homem era tão grande que sua bochecha pressionou seus
olhos fechados, fazendo-lhe tropeçar como um homem cego.
Atrás dele repousava um par de asas, pendentes de suas
costas como pipas cansadas, exaustas com a idade. Seu sorriso
relaxou e eu finalmente fui capaz de encontrar uma pessoa dentro
das dobras de seu sorriso, vendo que apesar das finas linhas
deixadas pelos anos de felicidade, sua visão geral parecia jovem e
vibrante. Selvagens fios de cabelos negros caíam em sua testa e isto
me lembrou do cabelo de Edgar, bagunçado e um pouco longo na
parte de trás, igualmente curvado para a direita, para fora de seus
olhos em uma onda natural. Ele tinha grossas sobrancelhas e um
grande bigode que acentuava seu personagem, fazendo seu sorriso
muito mais divertido.
Inclinei minha cabeça e olhei-o com interesse, procurando
alguma coisa familiar em sua aparência geral. 242
— Onde estão meus modos, — Margriete agarrou ambos os
ombros do homem, segurando seus longos braços enquanto ela o
analisava. Ela soltou uma mão de seu braço e colocou no meu,
suspense agora crescendo enquanto o homem me olhava,
ansiosamente esperando para saber meu nome, seu rosto ainda em
êxtase.
— Esta é... — ela parou e bateu em meu braço, suas feições
quase estremecendo de excitação. — Esta é Elle! — Ela gritou, como
uma garota louca por um garoto de uma banda, pulando para cima
e para baixo e apertando ambas as mãos até a morte.
O rosto do homem ficou ainda mais animado, se é que isso
era mesmo possível, e inesperadamente correu para mim e deu-me
o maior abraço que eu já recebi. Não só seus braços quase me
sufocaram em um abraço, mas suas asas também. Eu arfei por ar
enquanto ele balançava-me ao redor e eu ainda imaginava o que
poderia possivelmente ser excitante em me ver.
— Não. É mesmo? A Estella? — O homem olhou para
Margriete esperando a afirmação e ela acenou com um largo olhar.
Ele soltou-me de volta no chão, agora segurando pelo braço
enquanto ainda examinava minha saúde física, meu rosto parecendo
abalado.
— Eu esperei toda a minha vida por este momento! Isto é um
culminar completo do trabalho de minha vida! — ele anunciou, o
olhar de um homem a testemunhar um milagre enchendo seus olhos
com uma imensa energia.
— Oh, por favor, — Sam disse baixinho. Scott estava agora 243
saltando para ele correndo em círculos ao redor do pátio, seu
comportamento estranho destoando de toda a comoção.
— Você me fez um grande favor, Margriete, — ele lhe deu
um tapinha forte força na cabeça. — Venha garota, venha! Nós
temos muito que conversar!
Eu ainda estava atordoada e confusa quando Margriete riu ao
meu lado.
— Mas espere... — Margriete agarrou o braço do homem
quando ele se virou para nos guiar para dentro da casa. — Ela não
tem ideia de quem você é! Diga a ela! — Margriete encorajou.
— Oh, que deselegante da minha parte! — ele girou sobre
seus calcanhares para encarar-me, a base de sua mão batendo
duramente contra sua testa em seu esquecimento.
Eu sorri, achando sua extrovertida e alegre atitude em nada
parecida com a atitude de Sam. Eu estava convencida que todos os
anjos tinham um coração frio, mas isto simplesmente não era
verdade.
— Querida menina, por que... — ele pausou para um efeito
dramático e eu poderia dizer que ele tinha um talento para o
suspense. — Eu sou Edgar Allan Poe! — ele exclamou, jogando seus
braços para seus lados com excitação.
Eu arfei, minha mão tapou minha boca. Eu olhei para
Margriete.
— Não... — Eu neguei em voz baixa, moderando o tom
quando minha mente se acelerou para crer que realmente era ele.
244
Margriete afirmou com a cabeça com entusiasmo.
Edgar pulou para cima e para baixo na soleira da porta, bateu
palmas com suas mãos em frente a ele, mostrando que a
personalidade que uma vez tinha parecido bonitinha, parecia agora
um pouco louca.
Edgar pegou minha mão e empurrou-me enquanto Margriete
nos seguiu. Sam conduziu Scott através da porta enquanto
mergulhava pela passagem, achando-a muito pequena para sua
altura gigantesca. Quando eles entraram na sala, Sam assoviou para
Scott calar-se enquanto ele tentava o seu melhor para não nocauteá-
lo com um soco, os nervos dele falhando.
Olhando ao redor da sala, vi que ele tinha mais adereços do
que eu tinha inicialmente imaginado. A área de convivência era
muito ampla e dois grandes sofás de couro estavam em frente um
do outro, diante de um vibrante fogo. Havia um grande tapete de
urso no chão entre eles e as paredes eram abarrotadas de livros
como se a fundação da casa fosse construída sobre eles.
Eu observei como Edgar correu em direção do canto de outra
sala onde o bater de potes recomeçou. Margriete descaradamente
atirou-se sobre a poltrona, obviamente familiarizada com o lugar,
como se ela visitasse um parente distante de longo tempo. Eu não
podia evitar, mas continuava a sorrir, Edgar Allen foi uma das
primeiras coisas maravilhosas que eu descobri sobre meu Edgar,
mas agora encontrar ele em carne e osso era verdadeiramente
maravilhoso.
Sam pressionou Scott dentro de uma poltrona perto de uma
desgastada mesa preta no canto, colocando um pedaço de papel em
branco diante dele e uma caneta em sua mão. Eu ri de seu 245
comportamento infantil, como se tentando distrai-lo com desenhos
de colorir.
Edgar surgiu segundos mais tarde, um bule de chá em uma
mão e xícaras balançando em uma bandeja na outra. Ele colocou a
bandeja na mesa entre as poltronas, seu pé distraidamente esmagou
a cabeça do tapete de pele de urso que quase pareceu se defender,
como se ainda houvesse um pouco de vida nele. Cantarolando, ele
deu ao tapete uma fervorosa pancada antes de colocar a chaleira
sobre o fogo para aquecer. Satisfeito com ambos, o tapete e a
chaleira, ele sentou defronte a Margriete, deu um tapinha na
almofada ao lado dele e me chamou para sentar.
— Venha, venha criança, deixe-me contar para você algumas
histórias. — Ele sorriu amplo com seu bigode serpenteando para
cima em suas bochechas, perto de furar os olhos dele.
Meus olhos ficaram fixados na cabeça do urso quando me
aproximei, nervosa que ele pudesse me morder quando eu sentasse
na borda da almofada, ainda muito chocada pela coisa toda.
Sam empurrou Margriete para o lado, reivindicando sua
metade do sofá enquanto ela reclamava e apoiava novamente a
cabeça em sua mão no braço do sofá, seus olhos tão cansados para
preocupar-se com o que estava acontecendo ao redor dela.
Edgar pegou minha mão, a esfregando com suas mãos frias.
— Querida, você tem sido minha maior inspiração para o
amor. — Ele não podia ficar parado como se as palavras que ele
tinha para me dizer estivessem fervendo em sua consciência. — A
história de Edgar e sua dor permanente era tão profunda, tão
interminável. — Seus dentes eram amarelados e manchados com
pedaços de tabaco, um produto óbvio da cultura do século XIX. 246
Meu riso forçado desfaleceu, minha cabeça flutuava com as
ideias que tive mais cedo, ideias de infidelidade.
— Como ele era, então? Quando você o conheceu?
— Bem, — ele sentou-se. — Eu o conheço há algum tempo,
mesmo depois da minha morte humana, eu ainda era seu anjo. —
Ele gesticulou suas mãos ao redor da sala. — De que outra forma
mais eu poderia adquirir tal exuberante modo de vida! — ele sorriu,
seu peito elevando-se com drama. — Mas foi tudo por amizade e
admiração. Eu achei sua vida maravilhosa, tão diferente da minha
que eu queria aprender tudo o que eu podia, eu queria entender
como esse mundo veio a ser assim.
— Então você o protegia. — Eu fiquei chocada ao descobrir
que meu Edgar tinha necessidade de proteção afinal.
— Sim, depois de sua morte... — ele me olhou de cima a
baixo. — Ou melhor, desaparecimento, ele estava com medo, com
medo de Matthew vir atrás dele. Ele confiava em mim, mesmo
enquanto humano. Eu na verdade morri protegendo a ele. Ha! — Ele
viu o absurdo nisso, pois estava claro que, em qualquer luta, fazia
sentido que Edgar deveria ter sido capaz de proteger a si mesmo. —
Isto é o motivo pelo qual, no mundo humano, minha morte é ainda
um mistério, — ele piscou.
— Então foi assim que você se tornou um Anjo da Guarda,
você sacrificou sua vida pela dele, — eu olhei para longe de Edgar
enquanto aceitava a volta estranha dos acontecimentos.
Edgar sorriu com afetação e se direcionou a mim.
247
— Bem, eu classifico de trapaça, eu sabia que se eu morresse
o protegendo, então eu viveria para sempre na próxima vida. — Ele
piscou novamente e recostou-se. — Seu Edgar contou-me histórias
de como as pessoas poderiam viver, mesmo na terra. Isto é como eu
vim a ser conhecido como o maior contribuinte do gênero
emergente da Literatura de Ficção Científica. — Uma risada escapou
de seus lábios.
— Conhecer Edgar redeu-me algumas grandes histórias e
alguns de meus maiores mistérios. — Ele espalhou-se através da
poltrona em uma maneira orgulhosa. — Eu queria
desesperadamente viver para sempre, continuar com meus dons,
então quando a oportunidade finalmente se mostrou eu me joguei
sobre ela, literalmente.
Eu sorri, achando que seu plano tinha sido um conluio, mas
esperto e eu admirei como ele tinha enganado a todos nós. — Mas o
que aconteceu quando você morreu? Quem foi que tentou matar
Edgar?
— Oh, minha querida, é neste ponto que fica interessante. Se
você pode acreditá-lo, não foi Matthew. Foi um homem comum!
Meus olhos arregalaram-se. — Apenas um homem comum?
Mas então Edgar teria estado bem, este homem não podia tê-lo
machucado.
Edgar inclinou um olho. — Você está se dando conta,
querida! Você é esperta. Eu vejo porque Edgar amou tanto você,
querida. — Ele rolou de rir por um momento antes de reorganizar-
se. — Você vê, eu estava doente com tuberculose e então Edgar
provocou um homem tentando conseguir que ele me atacasse. — Ele
sentou na poltrona, acrescentando drama. — Ele contou ao pobre 248
sujeito que ele tinha dormido com sua esposa! Você pode acreditar
nisso?
Eu olhei para baixo para minhas mãos.
— Eu realmente não tenho mais certeza alguma. — Eu
resmunguei sob minha respiração.
Edgar não percebeu então ele continuou. — Então, o homem
planejou uma vingança e veio atrás dele. Isto foi nosso pequeno
segredo, enganar os deuses com intenção de me fazerem imortal. —
Ele inclinou-se perto de mim novamente, um dedo sobre a sua boca
enquanto ele sussurrava, — e até os dias de hoje, eles ainda não
sabem.
Eu sorri com afetação, me inclinando para longe dele
achando seu hálito asqueroso, mas suas trapaças um tanto sagazes, e
ainda assim, brilhantes.
— Então você vê, eu devia isso a ele, protegê-lo depois disto,
e eu o fiz! — Ele parecia orgulhoso de si mesmo enquanto ele
alongava suas asas atrás dele, permitindo-as descansarem nas costas
da poltrona. — No final das contas, Matthew planejou uma
vingança pessoal ele mesmo, e isso foi quando eu fiz o sacrifício
final e ganhei minha aposentadoria. — Ele empurrou seu queixo no
ar.
— Eu estou orgulhoso do que fiz de minha vida, auferi
mentiras cruéis e criatividade. — Ele estalou os lábios enquanto ele
levantava e agarrava o jarro fervendo com água do fogo onde, neste
ponto ele despejou nas quatro xícaras de chá, hesitando na quinta
enquanto ele virou-se procurando por Scott.
249
— Parece que seu amigo nos deixou, — ele exclamou
particularmente claro, sua boca caindo com decepção.
Eu virei e olhei a cadeira onde uma vez esteve Scott, a caneta
agora descartada descuidadamente na folha de papel e a escrita
terminada no meio da frase com a tinta pingando em uma poça. Eu
franzi a testa com desgosto caindo sobre mim, eu não tinha tido a
chance de dizer adeus.
— Saúde a isto! Bom ver que o pequeno inseto voltou para
seu próprio mundo. — Sam impulsionou sua xícara de chá no ar
antes de gargarejar para baixo muito grosseiramente.
Edgar puxou um frasco de seu bolso, derramando um líquido
âmbar dentro de sua xícara e um cheiro de carvalho surgiu no
vapor. Em seguida bebeu avidamente todo ele em um gole quente,
estalando seus lábios.
Margriete sacudiu desperta e inclinou-se para frente, suas
mãos tremendo enquanto ela agarrava sua xícara e a trazia aos
lábios.
Eu coloquei a minha entre minhas frias mãos aonde Edgar
segurou enquanto ele estava falando. Ele cantarolou para si mesmo
enquanto ele derramava o mesmo líquido âmbar dentro de minha
própria xícara de chá com minha permissão.
— Isto ajudará você a dormir querida, — ele deu um tapinha
em minha cabeça como um cão.
Eu trouxe o chá para meu nariz, deixando o cheiro adormecer
meus sentidos antes de tomar um gole, tossindo loucamente
enquanto o liquido picava minha garganta e enviava uma onda 250
instantânea de doce tontura em minha cabeça. Edgar assistiu-me
enquanto tomava outro gole, apoiando um dedo no fundo da xícara
de chá, enquanto ele me obrigou a terminar tudo.
Eu tossi uma última vez, minha cabeça agora leve e relaxada.
— Obrigada, — eu engasguei.
Eu estava curiosa para descobrir o que Edgar bebia, ou
mesmo comia. Talvez neste mundo a fome deles fosse real,
enquanto que no outro plano lhes tenham negado qualquer tipo de
alimento, ou mesmo conforto. Eu nunca vi Sam comer qualquer
coisa antes, mas ele parecia adorar tudo.
— Ahhh, — Edgar suspirou. — Foi lamentável que eu não
pude matar Matthew quando no final eu faleci. Era o punhal que eu
precisava pegar dele, mas era impossível golpear sua mão.
Meus olhos animaram-se e eu coloquei a xícara de chá
gentilmente na mesa. Eu alcancei dentro de meu cinto e agarrei o
punhal de dentro da bainha, puxando-o para fora e o segurando
com as duas mãos enquanto repousava em minhas palmas. A luz do
fogo brilhava através da lâmina de ouro e Edgar olhou fixamente ele
com olhos congelados.
— Porque criança, você o encontrou! — Sua excitação o
ultrapassou enquanto a xícara em sua mão voava no ar, seu
conteúdo espalhando-se enquanto aterrissava no fogo. Seu rosto se
tornou sério então. — Mas você deve proteger isso, há alguns
numerosos seres aqui que amariam a chance de possuir o poder que
este punhal traz sobre este mundo.
Ele passou as mãos através da lâmina e cabo, então pegou 251
minhas mãos e as enrolou ao redor dele.
Meu olhar levantou-se do punhal para seu rosto.
— Eu espero ganhar Edgar de volta com ele. Eu não desejo
ser poderosa, eu apenas desejo ser feliz e amada.
O olhar de Edgar parecia transbordar com as lágrimas e ele
sorriu.
— Isso é o que o punhal verdadeiramente significa. Sua
corrupção nunca foi destinada a ser reforçada e sua maldição morre
quando alguém sacrifica o poder diante dos deuses. — Ele segurou
minhas mãos apertadas. — Você tem o coração para destruir este
punhal, e com isso, ninguém mais de sua espécie irá morrer.
Eu olhei para Margriete e então de volta para Edgar.
— Eu temo que não exista mais muitos de nós, pelo menos
não que eu saiba.
O rosto de Edgar se entristeceu e ele suspirou. — Isto é
lastimável. — Ele balançou sua cabeça. — Mas se você puder
completar isto, anda existirá esperança para você. — Ele sorriu. —
Você receberá o que deseja, mas por quanto tempo, eu não estou
certo. Você deve ser cautelosa ao fazer uma negociação com eles.
— O que isto significa? — Eu puxei o punhal de volta em
direção a mim, empurrando de volta dentro da bainha em meu
cinto.
— Os deuses são ardilosos, e vão encontrar qualquer furo
possível para conseguir o que querem, por fim causarão em você 252
tanta dor quanto for necessária antes deles sentirem que você
merece sua recompensa de felicidade, especialmente por sua
bondade. — Ele suspirou. — Eu temo que a discriminação deles
contra a perfeição de vocês tenha ido além do necessário. Eu não
entendo como ou porque eles ainda odeiam vocês, ou melhor,
temem vocês. Eu venho a acreditar que eles criaram em vocês o
poder para derrotá-los, com ou sem o punhal, mas como isto vai
acontecer é outra questão a parte. — Ele trouxe uma mão ao seu
rosto, fitando seu queixo com um dedo.
Eu olhei para Margriete enquanto ela cochilava na poltrona.
Edgar parecia chegar a uma conclusão.
— Eles vão parar alguma hora de torturar você. Apesar de
sua alma ser inocente e apesar de você não merecer a dor, não vai
importar. É deles a culpa por criar você, não sua, então nunca sinta
como se algo disto seja sua culpa. — Seus olhos caíram a sua volta
em dor e piedade.
Eu coloquei minha mão na sua.
— Não sinta piedade de mim Edgar, eu sinto que eu vivi uma
vida bastante feliz, cheia de amor. Embora tenha que encarar meus
problemas, não é nada que eu sinceramente não possa suportar.
Ele olhou-me profundamente em meus olhos. — Então você é
uma alma melhor do que todos nós, altruísta e bondosa. Você
certamente encarará uma adorável aposentadoria. Eu não estaria
surpreso ao ver você sentada numa cadeira de poder um dia, e não
por ambição, mas por vingança. Eles pensariam que isto seria um
castigo, mas eu suspeito que você elevar-se-ia na tarefa e nós 253
veríamos dias melhores, um dia de luz e paz com aqueles que
residem na superfície, como a que uma vez jazia.
Eu sorri. — Obrigada Edgar, por toda a sua bondade, por
tudo que você fez por minha alma, e por Edgar.
Edgar aplaudiu com suas mãos juntas. — Eu abençoo sua
jornada, e espero que você ache o seu caminho para essa paz
definitiva. — O selvagem brilho em seus olhos retornou enquanto
ele levantou repentinamente. — Mas agora criança, você deve
descansar, — ele apressadamente agarrou as xícaras de chá de todos
nós e correu para dentro da cozinha, quando eu as ouvi chocarem
no que eu supunha ser uma pia.
Ele correu de volta para fora, suas meias em uma atitude
desengonçada ao redor de seus finos tornozelos.
— Descanse aqui, e de manhã, nós a equiparemos melhor
para a sua tarefa. — Ele soprou o ar para fora na exata direção
enquanto todas as velas foram extinguindo-se.
Ainda dando risada, eu assistia enquanto ele subia as escadas
rangentes em sua sala. Eu encostei de volta no interior quente da
poltrona, meus músculos doloridos com um agradável sofrimento.
Eu estava fazendo progresso e meu coração era bastante justiceiro
para lidar com a chegada dos desafios. Eu não tinha ideia do que eu
enfrentaria, mas eu sabia que eu precisava manter a cabeça
precisamente clara. Se Edgar tinha honrado nosso amor ou não,
minha obrigação era sincera e verdadeira e eu nunca perdi minha
moralidade para perseverar.
Eu permiti a mim mesma o conforto da noite enquanto
minhas pálpebras se fechavam. Enquanto o sono caía sobre mim, 254
minha mente não perambulava com sonhos porque eu já estava
aqui, no local onde os sonhos são feitos e alimentados, na Cidade
dos Anjos e a ponto de encontrar meus demônios.
Capítulo 19
PENTEADO
O som de gritos altos me acordou de um sono profundo 255
enquanto a luz solar atravessava através da manchada janela de
vidro e para os sofás. Esfreguei os olhos e virei a cabeça para olhar
para Sam e Margriete. A mesa entre os dois sofás havia ido embora,
juntamente com o tapete de pele de urso e eu levantei minhas
sobrancelhas, olhando em volta para ver por onde ele poderia ter
possivelmente escapado, e quem os tinha movido.
Não encontrando nada e me sentindo um pouco
desconfortável, eu olhei para Sam e Margriete. Ambos ainda
estavam num repouso profundo, sugestivamente esparramados um
contra o outro no sofá. Eu deixei uma risada pequena e tranquila
escapar por meus lábios, percebendo sua proximidade inconsciente
se justapondo aos seus temperamentos um contra o outro durante o
dia.
Eu pressionei meu peso para frente quando o meu corpo
dolorido pediu-se para sentar-se. O couro rangeu alto e eu encolhi,
esperando por mais alguns minutos de solidão antes de Sam e
Margriete acordarem. Passei a mão através do meu cabelo enquanto
ele instantaneamente se domava do cochilo, agora caindo por
minhas costas de forma disciplinada.
Minhas roupas não estavam tão sujas como eu estava
esperando, mas depois do banho no rio mais limpo que eu já vi,
achei que tinham a chance de estarem limpas. Meus jeans pareciam
duros, como se tivessem sido secos esticados no varal, e eu não
podia evitar me sentir como se estivesse viajando. Se isso era uma
aventura, no entanto, eu precisava sentir como se fosse uma, suja,
áspera, e cansada.
Levantei-me nas pontas dos pés e fui para a janela da casa
velha, olhando para o quintal através do vidro ondulado feito à 256
mão. Foi lá que eu finalmente encontrei a mesa de café e o tapete de
pele de urso, arrastando-se pela relva como uma panqueca,
perseguindo uma cabra do outro lado da cerca. Inclinei a cabeça,
achando o fenômeno não apenas perturbador, mas irreal também.
Eu balancei a imagem dos meus pensamentos, concentrando-
me em algo familiar. As montanhas ao redor e árvores queriam
sugerir que você era o único aqui, na feliz solidão da aposentadoria
como as montanhas do North Cascades pareciam ser. Seus picos
estavam cobertos com a neve, e as nuvens os envolviam como se
também atraídas por seu poder.
Olhei para longe das montanhas, para o viveiro de pássaros
que estava à direita da janela, de onde eu mal podia distinguir os
corvos, lutando contra o confinamento. Eles bicaram um bloco de
milho e sementes, moldados com o que parecia uma mistura de
manteiga de amendoim e geleia de uva. Seus olhos eram de um
ouro macio e eu encontrava beleza onde qualquer pessoa normal só
encontraria medo e ódio.
Edgar Poe não tinha sido nada como eu sempre imaginei. Ele
sempre era colocado em uma máscara de uma torturada alma triste,
mas nesta vida, ele parecia descuidado, desajeitado. Talvez as
torturas da vida fossem difíceis sobre ele, mas agora, ele estava livre
de todas as suas preocupações, perdendo sua mente para a
felicidade. Virei na direção da janela do quarto. Tudo parecia velho
e eclético como a casa de um cigano. Havia um relógio na parede e
eu olhava os ícones estranhos que os circundava. Onde deveriam ser
encontrados os números, havia fotos de comida no lugar. Eu ri,
achando o absurdo do tempo inútil neste mundo. Parecia que a
única coisa que você precisava era um lembrete de quando comer,
especialmente para alguém que tinha desistido de se alimentar
durante seu tempo como Guardião. 257
Havia uma mesa lateral longa prensada num canto com um
pano colocado sobre ela. Na parte superior do pano estavam cinco
itens, empoeirados com a idade. Aproximei-me, ainda tentando ser
tão quieta quanto humanamente possível, andando na ponta dos
pés pela confusão de livros e papéis descartados no chão.
O primeiro objeto era uma caneta velha, certamente uma
memória de seu passado e de suas grandes contribuições para o
gênero literário. O segundo era uma pequena bola de gude de vidro,
seu propósito sem conhecimento para mim, mas obviamente de
importância. O terceiro era um pequeno pedaço de pergaminho
enrolado, amarrado com um fio vermelho e o quarto, uma lupa sem
cabo, mas foi o quinto que verdadeiramente me chamou a atenção.
Uma escova pequena brilhava à luz do quarto, inabalável
pela poeira que havia recolhido em toda parte e era mais delicada
do que qualquer coisa que eu já tinha visto. O cabo era feito de um
marfim iridescente que mostrava como um cristal, mas com uma
névoa leitosa. Ele foi esculpido em forma de uma pena, mas não
uma pena que eu estava acostumada a ver. A forma como as folhas
se curvavam era quase extravagante, e a escultura era tão delicada
que eu temia que se rompesse com o mais gentil toque.
Ao examinar o objeto estranho eu inconscientemente toquei
minha mão no anel em volta do meu pescoço. Eu tinha quase me
esquecido dele no tumulto da viagem, mas ele também havia se
tornado calmo e silencioso, como se sentisse que estava em seu
próprio mundo e estava se aproximando de Edgar a cada passo.
Ele ainda estava quente ao toque e ele fez o meu coração se
sentir seguro sabendo que ele ainda estava vivo. O poder de nosso
amor era surpreendente, criando mágica nos objetos do cotidiano e 258
criando a turbulência e a raiva da guerra que eu agora liderava.
Parecia haver algumas coisas pelas quais lutarmos, posses, amor e
poder, mas no final, esses eram os três pontos que nos levariam a
nossa própria autodestruição e tormento.
Houve um barulho na parte superior da escada e eu me virei
a tempo de ver uma panela de metal rolando para baixo. Sam se
sacudiu no sofá, agora acordado ele esfregou os olhos e inspecionou
sua posição ao lado Margriete. Eu peguei o vislumbre de um sorriso
cruzando seu rosto antes que ele percebesse que eu estava olhando
e, de imediato, se transformou numa careta.
Não me tinha ocorrido até agora que eu nunca tinha visto
Sam dormir. Quanto mais tempo passávamos aqui, mais humano
ele se tornava e a ideia dele como uma máquina de destruição
começava a desaparecer. Ele bocejou uma última vez antes de
afastar-se de Margriete, me olhando com o canto do olho, como se
tivesse sido pego.
A panela de metal girou sobre o solo em sua última tentativa
de fazer ruído enquanto um xingamento irrompeu a partir do topo
da escada. Ouvi o arrastar de pés quando Edgar aproximou-se do
patamar e começou a descer. Baseado no estado da sua sala de estar,
eu só podia imaginar que o quarto foi ainda mais confuso com
bugigangas e lixo.
Edgar expirou e sorriu para nós quando chegou ao piso
térreo, alisando sua camisa limpa sobre sua não calças tão limpa.
Coçando a cabeça, olhou para onde o tapete de pele de urso tinha
ido, xingando e procurando para fora da janela e para o pátio,
murmurando baixinho. Ele então olhou em minha direção,
observando a mesa atrás de mim e soltando um grito feliz. 259
— Você encontrou meus estimados pertences, querida! — Ele
correu em direção a mim, chutando a panela no chão em sua falta de
jeito. — Opa, — ele olhou para baixo, mas não deu importância
quando continuou em frente. Ele colocou uma mão sobre a borda do
tecido, onde as cinco bugigangas estavam. — Ahhh, sim, — ele
arrancou a bolinha de gude da mesa e manteve-se na luz.
Eu o observava com curiosidade, querendo saber quais
contos ele tinha, trancafiados em sua mente tão torturada e criativa.
— Minha bolinha de gude, — ele respirou, o brilho da luz
através do vidro arredondado mostrando os vários planos coloridos
que estavam trançados por dentro. — Esta bolinha de gude é de
quando eu era criança, — ele riu. — Bem, talvez não seja exatamente
essa bolinha de gude, mas se parece muito com ela. — Ele colocou a
bolinha de volta sobre o pano.
— E esta é a minha lente de aumento, — ele a pegou com as
duas mãos e segurou-o diante de seus olhos, — assim eu pude
realmente ver a bolinha de gude. — Ele colocou-a sobre a bolinha
com uma risada feliz que escapou de seus lábios e me pediu para
olhar. — Adorável, não é?
Eu balancei a cabeça, achando sua estranha coleção
totalmente sem valor agora.
— E esta é a minha caneta, com a qual eu gosto de fazer
minhas listas de tarefas! — Ele a pegou e rapidamente agarrou o
pedaço de pergaminho. — E aqui é onde eu as escrevo, —
acrescentou. Inclinando-se para mim, ele me deu uma cotovelada de
leve. — Obviamente, já tem um longo tempo desde que eu tive
tarefas. — Ele piscou, fazendo referência a poeira que havia se 260
juntado na caneta e papel.
— Mas isso! —Ele anunciou. — É fenomenal! — Ele pegou
delicadamente a escova entre seus dois dedos. — Esta é uma escova
Pégaso, — ele segurou no ar, inclinando-se tanto para trás que eu
temia que ele caísse. Ele se recolheu de volta, protegendo o pincel
em uma mão e apontando para mim com os olhos apertados. — Um
dos três únicos nesse mundo, veja bem.
Margriete e Sam estavam ambos agora olhando para a escova
com olhos famintos. Os cabelos de Margriete estavam terrivelmente
despenteados e seus olhos estavam inchados, como se tivesse
dormido como os mortos.
Ver suas expressões me deixou curiosa. — Bem, o que é
isso?— Eu perguntei.
Edgar começou a jogá-lo de uma mão para a outra, como se
fosse nada. — É para domar um Pégaso, é claro!
Minha ansiedade aumentava enquanto eu o observava,
temendo que o material delicado se quebrasse a qualquer momento.
— Você não vai quebrá-la se você tratá-la dessa forma? — Eu
perguntei, sentindo-me repentinamente quente de medo.
— Não seja boba! Este pente é feito da rocha mais forte já
conhecida! Ele não pode ser quebrado.
— Bem, não é de diamante? —Eu perguntei, meus olhos
vendo que o material, que se assemelhava ao cristal, não era de todo
claro como um diamante. 261
— Não, não querida. Ela é feita da mesma rocha que os
tronos dos deuses! É Fazonita.
Eu vacilei com seu comentário um pouco rude e inábil, e,
naturalmente, não entendi. Até onde eu sabia, não havia tal coisa
como Fazonita. Margriete de repente veio em torno do sofá e se
aproximou.
— O que ele está dizendo, Elle, é que o pincel é, literalmente,
a chave para o reino dos deuses. A fim de chegar até eles, é preciso
atravessar um vasto mar. A fim de fazer isso, temos que montar em
Pégasos, os portadores dos deuses. E, a fim de montar Pégasos,
devemos domá-los com a escova. — Ela respirou fundo, fornecer
essa explicação drenou seus pulmões.
Olhei para a escova de Edgar enquanto ele sorria para mim,
seus olhos redondos e cabelos despenteados, comicamente
benevolente para os jogos que ele estava tentando jogar.
— E você a mantém com a sua falsa bolinha de gude de
infância e lista de tarefas? — Engoli em seco. Edgar deu de ombros.
— Por que não? O que há de errado com isso? — Ele olhou
para Sam e Margriete, esperando por algum tipo de afirmação de
que ele não era louco. — Cada qual com seu cada um, certo?
Sam resmungou e balançou a cabeça. — O homem é um caso
perdido, — ele murmurou baixinho.
Margriete sorriu, dando-me um olhar astuto que me disse
para jogar junto. Ela colocou uma mão graciosa nas costas de Edgar.
262
— E você vai nos emprestá-la, não é?
Edgar olhou para mim com um olhar cético.
— Por favor? — Eu falei. Edgar sorriu.
— Oh, tudo bem, — cedendo, ele a jogou para mim.
Eu tropecei para frente, a fim de pegá-la, o seu peso em nada
comparado a seu tamanho e tão leve quanto o entalhe de penas de
seu cabo poderia sugerir.
— É tão leve! — Exclamei, agora a deixando descansar na
palma da minha mão.
— Perfeito, — Margriete assoviou. — Isso era exatamente o
que precisávamos, obrigada, Edgar.
Edgar acenou com a cabeça e saiu da sala, os potes de novo
fazendo barulho na cozinha enquanto eu assumi que ele estava
tentando nos preparar o café da manhã.
— Então, como você atravessou antes? — Sussurrei para
Margriete.
Ela se inclinou em minha direção, com um olhar presunçoso
em seu rosto. — Eu peguei emprestado.
— Você quer dizer que a roubou, — acrescentei.
Ela encolheu os ombros. — O velho tolo nem sequer
percebeu que ela não estava mais aqui.
— Você é implacável! — Eu gritei.
263
Ela bagunçou meu cabelo. — É tudo sobre sobrevivência,
querida e nossa espécie costuma ser bem engenhosa.
Houve outro clamor barulhento vindo de fora enquanto um
baque forte reverberava contra a parede da cabana, seguido por um
sopro doloroso. Sam entrou rapidamente em direção à janela, os
dedos descansando no painel, enquanto olhava para o quintal.
— Você tem que estar de brincadeira, — ele resmungou.
Houve uma batida na porta desajeitada em um ritmo familiar
que eu não podia negar conhecimento.
— Scott! — Eu pulei para abrir a porta. Scott estava com a
mão na cabeça, olhando para trás, como se algo o estivesse caçando.
— Eu pensei que você não poderia se ferir em sonhos? — Ele
lamentou. — Eu acho que há uma mesa tentando me atacar também.
Eu ri enquanto lhe dava um grande abraço e ele gemia em
agonia.
— Como você fez isso de volta?
Scott passou cruzou a soleira, ansioso para entrar.
— Como eu poderia esquecer! Acordei com uma pilha de
papéis cheios de palavras, naturalmente, eu escrevi tudo sobre o
sonho. E então, quando eu caí no sono novamente, eu me lembrei de
tudo e fui capaz de voltar. — Ele foi rápido para fechar a porta atrás
de si, olhando pela pequena janela e examinando o quintal.
264
Ele estava muito mais alerta do que tinha sido no final de
ontem e eu percebi que sugeria que ele estava no início do seu sono,
em seu mais profundo ciclo REM 3, onde sua mente poderia prestar-
se à realidade deste mundo.
— Como foi a sua prova? — Eu perguntei. Scott franziu a
testa.
— Não muito bem, mas eu acho que vou passar, talvez.
Eu dei-lhe um tapinha furtivo nas costas e me inclinei em
direção a ele.
— Está tudo bem, às vezes os professores simplesmente não
entendem que talvez você saiba mais do que um teste realmente
procura. Não se preocupe, — eu sussurrei, achando a relevância de
uma educação agora trivial.
Ele acenou com a cabeça e entrou enquanto Edgar saltava no
ar.
— Ahh, maravilhoso, o ser humano está de volta! Que
fascinante, — ele correu para o lado de Scott e examinou-o enquanto
Scott lhe deu um olhar rude. — Frank não machucou você, não é?
3
Sono REM é a fase do sono na qual ocorrem os sonhos mais vívidos.
Ele pode ser um verdadeiro sofrimento, às vezes, — Edgar riu e deu
uma cotovelada em Scott. — Você entendeu? Sofrer?4 — Ele piscou.
Scott lhe deu um sorriso estranho, sugerindo que ele estava
tentando ser legal, mas também de concordando que ele era louco.
265
Sam estava batendo o pé, os braços cruzados no peito.
— Isso é ridículo, podemos, por favor, ir andando?
Margriete abafou um riso enquanto recolhia suas coisas e
amarrava o livro de volta em suas costas.
Edgar franziu a testa. — Partindo tão cedo?
Coloquei uma mão no braço frágil de Edgar. — Desculpe-
nos, meu velho amigo, mas temos que ir. Eu tenho que encontrar
Edgar.
Os olhos de Edgar brilharam. — Eu entendo. Você o ama,
assim como ele sempre disse. Você nunca vai encontrar uma ligação
tão forte como o que vocês dois têm. É lindo, a essência do termo
amor. — Seu rosto agora estava perdido em um sonho.
Observei-o por um momento antes de responder. —
Obrigada, Edgar. — Eu me inclinei e apertei seu pequeno corpo
contra o meu, mas não importou o quão forte eu o abracei, ele
conseguiu me abraçar ainda mais forte.
4
A palavra usada é bear, que significa urso, mas também pode significar
sofrer, suportar.
— Tudo bem, todo mundo! — Scott empurrou a mão no ar,
— Nós estamos saindo!
Sam passou por Scott, batendo em seu ombro e jogando-o
contra a parede. — Você nem mesmo sabe para onde estamos indo,
idiota. 266
Scott esfregou o braço com uma cara azeda, Margriete olhou
para ele com um olhar tímido quando também passou por ele e saiu
para o quintal.
— Obrigada novamente, Edgar, eu prometo devolver a sua
escova. — Voltei para o sofá e peguei minha mochila.
Edgar amuou. — Vocês não tiveram nem a chance de
experimentar a minha comida. — Ele suspirou, tentando nos fazer
culpados e ficar.
— Quando eu voltar, Edgar, eu prometo que você pode me
preparar um banquete completo. — Eu o beijei no rosto antes de me
dirigir para a porta, lutando contra o meu desejo de olhar para trás,
a figura inacreditável em minha trilha, o maior poeta que o mundo
tinha visto, pelo menos em papel.
Eu fechei a porta atrás de mim, o trinco se fechando com um
clique suave quando a magnitude do mundo ao ar livre me tirou o
fôlego. Este lugar mudava mais do que o mundo que eu estava
acostumada e isso sempre me deixava deslumbrada. As nuvens no
céu eram de um branco enganosamente suave, o sol agora era de
alguma forma laranja e o ar tinha a temperatura perfeita.
Nós rapidamente nos reunimos no pátio, onde todos nós
levamos um momento para avaliar o nosso próximo passo. Eu ouvi
um rugido alto do quintal, seguido pelo grito de Edgar. Eu ria para
mim mesma, imaginando que ele tinha finalmente encontrado
Frank.
— Então, qual caminho? — Eu perguntei a Margriete,
observando como ela testava o ar com um dedo coberto de saliva. 267
Ela estreitou os olhos, olhando para a torre de onde tínhamos
vindo, a queda d'água, e em seguida, voltando-se para olhar no
sentido oposto.
— Em frente, — foi o que ela respondeu e isso era exatamente
o que ela fazia, agora perambulando através da cerca e indo para as
árvores.
Capítulo 20
PRETO E BRANCO
Enquanto a manhã avançava, as casas que pontilhavam a 268
floresta pareciam cada vez menores e cada vez mais velhas. De vez
em quando uma cortina vibrava através da espessura dos vidros,
sugerindo que havia alguém lá para nos assistir em nossa jornada.
As árvores haviam mudado também, como se nossa viagem nos
levasse para outro país, e para outra região geográfica.
As nuvens sob nossas cabeças cresceram densas, e a luz ao
nosso redor parecia sugar todas as cores do mundo, deixando tudo
drenado de seu antigo brilho e rica beleza. Tinha passado quase
uma hora desde que tínhamos passado por uma casa e eu estava
ficando entediada, mas as coisas ainda me pareciam fascinantes.
Sam pegou um maço de ciprestes em arco enquanto Scott se
esquivava entre as árvores, num jogo que se desenrolava em sua
mente onde só ele sabia as regras e agora estava envolto em seu
mundo, mente e alma. A mudança no clima foi tão sutil, era difícil
dizer exatamente o que estava acontecendo, mas quando eu olhei
para trás, Margriete, também parecia analisar a mudança e eu
percebi o quão preto e branco ela parecia, as cores agora
completamente desaparecidas, deixando-nos em uma confusão de
figuras monocromáticas, como se assistíssemos a um filme antigo.
— Margriete, que lugar é este? — eu perguntei. Seus olhos
prateados estavam ainda tão brilhantes como sempre e quando ela
olhou para mim, eles brilhavam como afiados raios de luzes.
— Estamos entrando no perímetro exterior do reino deles.
Seja o que resida aqui é literalmente sugado de beleza. Seu reino
precisa do poder que o rodeia e assim como você pode imaginar,
seu castelo está repleto com cor e vida.
Houve uma pausa nas árvores à frente, e quando chegamos 269
ao limite da floresta, toda a vida cessou. Minha respiração lutava
para encontrar a relevância no vasto espaço diante de mim, e
quando olhei à minha direita, eu vi a linha de árvores do extenso
círculo, como se realmente toda a vida tinha deixado o perfeito
perímetro circular em torno do nosso destino final, deixando apenas
deserto.
As nuvens acima raivosamente mandavam trovões à medida
que giravam em um ponto central distante. Estiquei-me a fim de ver
o que esse ponto era, mas a névoa era mais grossa e o horizonte
mais próximo disso do que o reino deles.
Scott fez uma parada brusca enquanto ele saiu das árvores.
— Opa... — seus olhos ficaram enormes e a luz que atingiu seu rosto
fez a sua pele ficar branca com o súbito medo.
Sam se engasgou com um riso, dando um passo à frente para
o chão seco do deserto, não deixando pegadas enquanto a brisa
suave as lavava para uma superfície perfeitamente polida de areia
fina e poeira. Margriete também avançou, insistindo em seu jeito
teimoso.
Peguei a mão de Scott e seguimos, olhando um ao outro com
admiração e mistério sinistro. A tempestade acima de nós retumbou
novamente, a luz piscando por entre as nuvens quando um raio
pousou em algum lugar distante.
— Pessoal, precisamos ficar alertas. Estas nuvens carregadas
são perigosas aqui e nós somos seus únicos condutores. Precisamos
ficar logo atrás da tempestade, e agir depressa. — O rosto de
Margriete era como uma pedra enquanto ela gritava sob o uivo do
vento agora mais selvagem e através das raivosas nuvens de poeira.
270
Eu concordei, agarrando a mão de Scott ainda mais apertado
à medida que aceleramos nosso ritmo. Outro clarão surgiu no céu,
dessa vez bem acima de nós. Margriete franziu o cenho e olhou para
o céu enquanto as asas de Sam se suspendiam a partir de suas
costas, preparando-se para o desastre. Scott ficou maravilhado com
Sam enquanto andávamos atrás dele, de alguma forma esquecendo
o perigo e, agora, tomando conhecimento da condição de Sam.
Eu andava mais rápido agora, quase quebrando em uma
corrida apressada quando as pernas longas de Margriete me
ultrapassaram. O céu resmungou e as asas de Sam se alargaram, as
pontas completamente espalmadas como se espalhassem os dedos.
Minhas mãos começaram a suar quando agarraram Scott, sua
atenção agora vacilante enquanto via que estava chegando a hora
dele acordar. Apesar do fato dele nos deixar, eu continuei a puxá-lo
quando a chuva começou a cair, determinada a mantê-lo seguro,
ainda que isso pouco importasse.
As asas de Sam se tornaram muito embaraçadas quando as
gotas caíram em gordas e inchadas orbitas, refrigerando minha pele
já quente e empapando meu cabelo como se eu tivesse entrado num
chuveiro. A chuva escorria pelo meu rosto, pingando de meus cílios
e inundando minha boca enquanto eu lambia os meus lábios,
olhando para o céu mais uma vez. Houve outro estrondo, e com o
relâmpago propriamente dito, Sam se lançou a frente e colidiu com
Margriete, empurrando-a para o chão, quando um raio gigante caiu
no local onde tinha estado, destruindo a terra com um estalo alto e
deixando meus ouvidos zumbindo com dor.
Eu derrapei um pouco antes da cratera fumegante, meu
coração bateu rapidamente, empurrando o sangue em minhas agora
trêmulas veias. Houve outro pop súbito quando a mão de Scott 271
desapareceu da minha. Apertando os olhos através da chuva, eu vi
que ele tinha desaparecido de volta para seu mundo. Eu empurrei o
meu cabelo molhado do meu rosto, prendendo-os nas minhas costas
enquanto eu olhava de volta para onde Sam e Margriete caíram.
Ambos lutavam um contra o outro, rapidamente ficando de
pé com seus peitos subindo e descendo como gatos encurralados.
Nós todos nos entreolhamos então e sem dizer uma palavra, todos
começamos a correr. Quando os pés Margriete começaram a correr
em confusão e pressa, eu vi ela se mudando para gato, as patas
macias agora cavavam a terra com o dobro da velocidade do seu eu
anterior, deixando-me na poeira.
Outro estrondo rachou o céu, cortando para baixo para a
direita a terra diante de mim quando eu pulei para trás, também me
transformando em um corvo antes que meus pés tocassem o chão.
Eu virei rapidamente para trás e ao redor da cratera fumegante e me
encontrei com Sam, que agora também espalhara suas asas e
levantara voo, agora ignorando o fato de que o voo fazia o seu corpo
ter duas vezes seu tamanho original e marcava-o como um alvo
óbvio e poupava a Margriete e a mim.
Ele protegia Margriete abaixo dele, enquanto eu
impulsionava minhas asas mais arduamente do que eu já tinha feito,
a fim de me manter, a chuva batendo duro em minhas penas e
filtrando em meu rabo, o que tornava difícil navegar no ar. Outro
crack iluminou o céu, batendo no chão ao nosso lado, ao mesmo
tempo em que metade de todo o céu inflamava em câmera lenta,
entalhando a ponta da asa de Sam enquanto o ouvi gritar de dor,
seu corpo sacudindo para baixo, para o chão, onde ele atravessou o
deserto lamacento, deixando uma profunda vala de cerca de quinze
metros de comprimento.
272
O último estrondo foi filtrado para a distância, as nuvens
agora, de algum modo contentes com a lesão que tinham causado,
se torciam para o leste e para longe de nós enquanto nuvens mais
brancas de repente enchiam os céus. Caí no chão molhado ao lado
de Sam enquanto ele estava deitado de lado, meio grunhindo de dor
e meio rindo. Eu mudei rapidamente e coloquei uma mão em sua
asa ardente, inspecionando o local onde o raio tinha batido nele.
Sam balançou a cabeça quando Margriete trotou para nós, camadas
de lama se aglomerados em espessura em seu pelo e em seus pés.
Ela balançou a chuva fora dela quando mudou, sua coluna
arqueando-se em uma posição ereta.
— Sam, — ela ofegou, caindo de joelhos enquanto colocava a
mão em seu braço, empurrando-me para fora do caminho.
Eu não pude evitar, mas não podia negar a forma como ela
reagiu à situação, como se de repente Sam significasse muito mais
para ela do que ela já tinha revelado.
— Sam, dói? Vai ficar bem? — Margriete tentou curar seu
ferimento, mas neste mundo isso era inútil.
Sam sorriu e sentou-se para frente. — Oh, pare de me mimar,
eu estou bem. É nada mais do que um ferimento de batalha. — Ele
agarrou a mão de Margriete e puxou-a longe de sua asa, seus dedos
atados em volta de seu pulso como se fosse um galho.
Eles se entreolharam por um breve momento antes de
Margriete tirar a mão do alcance de Sam, caindo sentada para trás.
Um suspiro afiado se apressou dos meus pulmões quando
percebi o que estava acontecendo. Olhando para longe, eu escondia
o sorriso que estava crescendo em meu rosto, apesar da situação 273
pouco estressante. Margriete realmente se importava com Sam, se
importava de uma maneira que eu poderia dizer que ela não sabia
como reagir a isso. Quando olhei para trás, Margriete estava
esfregando seu pulso enquanto Sam estendia suas penas, dobrando
suas asas de volta em suas costas e ficando em pé, a tensão, agora
mais espessa do que as nuvens que começavam a nos envolver em
sua espiral de volta ao redor do vórtice.
— Acho que devemos ir, — eu insisti. O vento aumentou
então, tal como tinha feito antes.
Margriete olhou para o céu e ajustou o pacote nas costas,
girando com um abrupto resmungar e andando para frente com um
passo arrogante. Sam olhou para mim e encolheu os ombros,
piscando quando ele me deu um sorriso parcial. Ele tinha ouvido
tudo que eu tinha pensado sobre a situação, até os pensamentos na
cabeça Margriete também.
Nós andamos em frente, ambos lutando para nos manter com
Margriete. A tempestade ainda estava em nosso caminho, mas lá na
frente eu podia ver a borda do que parecia um precipício, o chão do
deserto terminando em uma abrupta queda. À medida que se
aproximava, parecia quase como se o mundo acabasse de repente, e
tudo o que estava além desse ponto estava rodando de nuvens e um
mar de neblina. Margriete parou a poucos centímetros da borda,
esticando a cabeça e olhando para os dois lados. Ela pegou o livro
de suas costas, o rosto ainda dolorosamente torcido enquanto
tentava dar sentido ao incidente anterior.
Distraída, ela levou um tempo para abrir o livro e folhear as
páginas, o vento também criando um obstáculo irritante. Sam
caminhava logo atrás dela, olhando por cima do ombro e lendo 274
junto, Margriete se afastou ainda mais longe. Ela deu um passo
raivoso para a esquerda, se virando para longe de Sam, falando para
si mesma, seu dedo pressionado duramente contra o papel brilhante
do livro, fazendo com que a dourada capa fechasse da página em
sua tentativa afobada para ler.
Sam me deu outra piscadela e eu bati meu pé, apertando os
olhos para ele. Olhei para cima, para as nuvens, agora a poucos
minutos de onde estávamos. Eu cruzei meus braços contra meu
peito e avancei mais perto da borda, olhando por cima quando eu
senti a vertigem do precipício que mergulhava por entre as nuvens
nebulosas e para o nada, o mundo ainda em preto e branco,
enfatizando apenas a luz sutil que escapava do céu. Abaixo, a
neblina estava como uma piscina gigante de algodão, o vento
incapaz de alcançar isso enquanto os penhascos protegiam essa
paisagem.
Uma grande gota atingiu minha testa e eu desviei o olhar da
fenda e de volta para Margriete. As sobrancelhas pareciam mais
relaxadas e eu poderia dizer que tinha encontrado algo de útil
enquanto ela parecia pesar a informação na página com a do nosso
meio ambiente.
— Deveria haver uma escada em algum lugar por aqui, —
uma gota de chuva bateu na página que estava lendo e ela fechou o
livro.
Eu olhei sobre a borda, — Onde?
Sam aproximou-se do precipício, agora olhando e esticando a
cabeça também.
O vento estava realmente começando a aumentar,
275
ameaçando levar-nos ao longo da borda enquanto eu continuei a
pesquisa.
— Ali! — Sam gritou através de uma forte rajada e eu olhei
na direção que ele estava apontando.
Apertando meus olhos ainda mais quando a areia começou a
emergir sobre a borda, eu vi algo se projetar do precipício.
Emaranhava-se para baixo e eu me esforcei para discernir como Sam
tinha sequer visto isso para começar. As nuvens se chocavam na
distância, arrepiando minha espinha. Margriete nos levou até a
escada, fazendo-nos pegar um ritmo enquanto se apressava para
alcançá-la antes da tempestade. Sam abriu as asas e voou para fora
sobre a borda, sua asa machucada com dificuldades, mas o
mantendo enquanto ele espiralava ao redor e para baixo,
inspecionando o que tinha visto.
Ele voou de volta até nossa direção, gritando através da
distância. — Parece seguro!
Margriete não hesitou enquanto colocava uma mão sobre a
madeira que parecia crescer a partir da terra, e quando olhei mais de
perto, era exatamente isso. Ela se atirou ao longo da borda quando a
grande escada de raiz gemia torcida sob seu peso, mas ainda
suficientemente forte para segurar. Coloquei uma mão sobre a
torção da raiz, olhando para o céu mais uma vez antes de olhar para
baixo da superfície do penhasco, o vento cessou quase que
instantaneamente.
A chuva começou a cair em pesada, mas enquanto nós
descíamos, estávamos a salvo da tempestade, agora blindados perto
da borda. Sam continuou a espiral descendente e quando a neblina 276
nos engoliu, o mundo ficou repentinamente silencioso e Sam não era
mais que uma figura borrada ao nosso lado.
Capítulo 21
O LAGO
— Sam! — Minha voz reverberou, mas fui incapaz de 277
descobrir a causa do eco. — Sam, você ainda está aí?
Ouvi uma risada profunda e gutural enquanto a névoa ao
nosso redor rodopiava e Sam voou para perto da escada.
— Estou aqui.
Olhei para baixo em direção a Margriete, imaginando se ela
estava tão cansada de escalar quanto eu. Já se passara pelo menos
uma hora desde que descêramos do cume e eu imaginava se isto
teria um fim, ou se acabaríamos na China. A escada enraizada
amarrada à montanha, ainda rangendo sob nosso peso enquanto
desaparecia de nossa vista.
Margriete ergueu os olhos para mim, seu rosto tenso e
cansado. A luz diminuía gradualmente e eu sabia que isso
significava que a noite se aproximava. Eu não queria ficar presa em
uma escada na escuridão, embora com as nuvens densas, parecia
que já estávamos.
Tentei pensar se já vira um nevoeiro tão denso, e minha
mente vagou impotente de volta a Seattle em uma fria manhã de
outono. A névoa frequentemente se assentava entre os prédios,
criando uma espécie de cobertor que era tão confortante, como se
sufocasse toda a ganância e ódio da cidade, deixando nada além de
silêncio. Foi então que percebi que devíamos estar perto da água,
pois o que mais poderia criar uma névoa tão densa, presa aqui pelas
tempestades vindas do alto e pelas nuvens em turbilhão.
Ouvi Sam gritar de algum lugar abaixo de nós e eu voltei à
realidade para ouvir o que ele dizia.
278
— Não está muito longe, acho que posso ver o chão —
bradou ele.
Bufei. — Ver? Como você consegue ver alguma coisa?
Margriete permitiu-se uma risada, mas foi interrompida
quando ela saiu abruptamente do nevoeiro e tudo ficou claro.
Fiz uma pausa e olhei ao redor, a neblina flutuando acima de
mim agora, enquanto descia mais alguns degraus. A densa nuvem
estava suspensa como se congelada, como se algo invisível a
segurasse ali. Olhei para baixo, além de Margriete, vendo o chão
apenas alguns centímetros abaixo dela. Em minha excitação, me
soltei da parede e pulei sobre ela atingindo o chão com
surpreendente suavidade quando areia cedeu sob meus pés.
Esfreguei tristemente meus ombros doloridos, segurando
meus braços enquanto o sangue voltava a circular para meus dedos
que formigavam com o desconforto, me encontrei sacudindo as
mãos para aliviar a dor. A névoa continuava a se arrastar e senti
como se estivesse em uma casa com teto baixo, e minha
claustrofobia começava a tomar conta. O cabelo desgrenhado de
Sam quase tocava as nuvens, mas enquanto permanecíamos ali, elas
se levantaram ligeiramente, reajustando-se à nossa agitação dentro
da névoa.
Desviando os olhos da parede do penhasco, vi que a areia se
estendia uns cinquenta metros antes de gradualmente descer para
um curso d'água. Não havia ondas batendo contra a praia e fiquei
maravilhada com o silêncio, descobrindo que estava por demais
acostumada à vibração da vida neste mundo.
279
Aproximando-me da beira da água, olhei para baixo, vendo
meu reflexo distorcido retribuir meu olhar através da superfície
vitrificada.
— Perfeito — Margriete veio para o meu lado, um ar de
satisfação em seu rosto.
— Perfeito? — Lancei-lhe um olhar azedo, pressionando
minha testa — Estamos presos.
Margriete olhou para mim com desdém. — Eu já fiz você se
perder alguma vez? Elle você tem que confiar em mim, apenas
espere. — Ela se jogou na areia cruzando as pernas na altura dos
tornozelos e apoiando os braços sobre os joelhos.
— Nós vamos ficar aqui esperando? — Baixei meus olhos
para ela, meu corpo irritado e ansioso por seguir adiante. Margriete
assentiu e deu um tapinha na areia a meu lado enquanto Sam
caminhava pela praia, avaliando a situação.
Despenquei perto dela, descobrindo-me derrotada. Um
suspiro pesado saiu de meus lábios e drenou a energia de meu
corpo quando me deixei cair na areia macia. Apesar de meu desejo
de prosseguir, não podia negar o fato de que precisava de um
descanso.
Alguns minutos se passaram antes que eu olhasse de volta
para Margriete, seus olhos fechados e a boca congelada em um meio
sorriso. — Em que você está pensando? — Quebrei o silêncio, minha
voz soando acima do ruído da água.
Margriete abriu os olhos lentamente, seu longo cabelo 280
prateado perfeitamente assentado contra suas costas.
— Estava pensando em Matthew, e em quando éramos
felizes.
Olhei para o meu colo, usando meu dedo para traçar um
círculo na areia. O anel de Edgar balançou como um pêndulo,
movendo-se em direção à água como se implorasse para ser
entregue a seu dono por direito.
— Você o amava de verdade, não?
Ela assentiu, seus olhos se enchendo de lágrimas, mas notei
que ela as segurou devido ao orgulho.
— Eu me sinto traída, como se estivesse destinada ao fracasso
desde o começo, sempre fadada a ficar sozinha
Assenti, lembrando-me de como havia sido estar sozinha.
— Não consigo imaginar como é, saber que não se tem futuro
no amor. — Esperava que ela fosse chorar, mas em vez disso ela deu
uma risadinha afetada.
— Mas se eu sou obrigada a ficar só, como outros são, então
não estamos mais tão sozinhos. — Vi seu olhar se dirigir para a
praia e para Sam antes que ela se voltasse de novo para mim. —
Você acha que poderia aprender a amar outra pessoa, se Edgar se
fosse para sempre?
Dei de ombros, pensando cuidadosamente na questão, como
já o fizera.
281
— Acho que, com o tempo, eu aprenderia a amar novamente
— inclinei a cabeça — Especialmente para você, porque você sabe
quem foi seu verdadeiro amor, um monstro e assassino.
A dor passou por seus olhos.
— É verdade. Saber o que Matthew havia se transformado
tornou mais fácil para mim, esquecê-lo. Afinal de contas, ele me
descartou em sua ganância, deixando-me à morte. Eu jamais teria
feito isso com ele, e isso me faz pensar em por que éramos almas
gêmeas. Sempre achei que compartilhássemos os mesmos desejos,
os mesmos princípios. — Ela suspirou e franziu a testa. — Eu jamais
sacrificaria uma alma inocente como ele fez tão descuidadamente.
Sam caminhava de volta para nós, com um sorriso no rosto.
Ele ouvira nossa conversa, mas ela não havia sido secreta. Não era
como se eu e Margriete houvéssemos sido discretas.
— Sinto que eu poderia amar outra vez. — Ela procurou
meus olhos — É surpreendentemente excitante ter esse sentimento
para iluminar minha alma.
Eu ri. — Então você gosta mesmo de Sam. Eu sabia.
Os cantos de sua boca se pressionaram contra sua bochecha e
seus olhos cintilaram.
— Ele é bonito.
Deixei escapar uma gargalhada, minha voz ecoando por
sobre a água e reverberando de volta em nossa direção.
— Grietly! Isso é nojento!
282
— O quê? — Ela ergueu os braços no ar — Bem, ele é! E é
engraçado. É difícil deixar de sorrir cada vez que ele abre a boca.
Sacudi a cabeça, e me inclinei para trás, apoiando-me nas
mãos. — Não acredito.
— Do que vocês estão falando? — Sam assomou sobre nós,
sua boca dolorosamente retorcida.
— Ora, cale a boca, Sam. — Bufei. Embora ele soubesse
exatamente sobre o que Margriete e eu falávamos, era divertido
fingir que ele não sabia, como se fosse nosso segredinho.
Estava escurecendo agora, e tudo o que iluminava o ar eram
os sutis reflexos da água calma. Havia algo nesse lugar que era
assustadoramente calmo, como se fosse o centro de nossa mente,
onde nada vive, além de pensamentos silenciosos. Corri os dedos
pela areia macia, sentindo o quanto ela massageava minha pele e
acalmava minha alma.
Sentia profundamente a falta de Edgar, e apesar de nossa
separação, eu tinha certeza de que jamais amaria alguém como o
amava. Ele jamais me enganara em minha vida, e eu não sentia que
ele tivesse alguma crença além das minhas próprias. Ainda me
incomodava o que Edgar Poe dissera sobre o tempo em que eu
estivera longe, que Edgar tentara seguir em frente, mas falhara. Eu
queria saber a quem ele havia tentado amar, quem despertara seu
interesse o suficiente para que ele tentasse esquecer.
A água batia na areia e eu olhei para cima, surpreendida pelo
som repentino que havia sido previamente destituído desse mundo.
Margriete posicionou-se ao meu lado chegando para frente quando 283
a água batia novamente na areia, desta vez, mais forte.
— Está vindo — ela sussurrou, cutucando-me para que eu
ficasse de pé como ela estava.
— O que está vindo? — Sussurrei de volta, mas ela não me
deu resposta, pois eu descobriria logo.
Nós nos afastamos da beira da água, que agora ondulava de
um jeito que me fazia lembrar uma noite de verão nas praias de
Puget Sound. Olhei para Sam e Margriete, mas os olhos de ambos
estavam fixos nas ondas. Foi então que algo emergiu das
profundezas, iluminando a água com uma suave luz azul, a única
coisa que tinha alguma cor.
A água, perturbada pelo movimento, se empurrava para a
areia à medida que a coisa se aproximava. À medida que aquilo
chegava mais perto da superfície da água eu me retraí, com a forte
luz em meus olhos. Recuando uma vez mais, meu coração começou
a bater mais rápido, o objeto agora a alguns centímetros de nós.
O silêncio permanecia, exceto pelo barulho das ondas na
margem, mas quando a luz cruzou a superfície um grito agudo
cortou o ar, o ruído de cavalos. Atônita, cobri minha boca, olhando
enquanto três pares de asas gigantes rompiam a superfície da água
em direção à borda, a água respingando violentamente em direção à
camada de névoa acima de nós.
Os cavalos empinavam e se chocavam na água, seus corpos
de um cristal azul leitoso, como o da escova que Edgar me dera.
Seus olhos eram ocos, como se tivessem sido suavizados por anos de
água correndo por sua pele. Eles trotavam em meio às ondas agora,
aproximando-se da praia com as asas ainda estendidas, ajudando-os
em seu avanço, embora não estivessem realmente batendo. 284
Jogando as cabeças para trás, eles se reuniram, seus olhos
vazios a nos observar, esperando.
— O que nós fazemos? — Sussurrei para Margriete.
— Pegue a escova. — Ela sibilou.
Lentamente levei a mão às costas, desenganchando a delicada
escova de meu cinto e segurando-a. Ela também brilhava, e quando
os cavalos a viram deixaram escapar outro grito.
Margriete me empurrou de leve para frente, meus pés
deslizando na areia em minha tentativa de resistir a ela. Um dos
cavalos deu um passo à frente, seus cascos pateando a areia,
cutucando-me enquanto seu focinho de cristal gelado tocava minha
pele. Dei uma guinada para trás, observando meu olhar passou
através da fera e para dentro de sua alma, onde um grande coração
de cristal batia em seu peito.
Margriete outra vez me empurrou para frente e quando ela
fez isso eu estendi a escova em direção ao animal. O cavalo baixou a
cabeça, suas asas se encolhendo contra sua espinha em pesarosa
apreciação. Segurei a escova diante de mim o mais distante que meu
braço permitia, avançando lentamente ao posicionar a escova na
cabeça do cavalo, movendo-a em pequenos círculos.
O cavalo soltou um pequeno relincho, e chegou para frente,
cutucando-me outra vez, mas desta vez de brincadeira. Sam bufou,
adiantando-se e agarrando a escova de minha mão enquanto o
cavalo diante de mim dava-lhe uma pequena mordida, zangado por
Sam ter-me feito parar e levantando as orelhas.
285
Sam deu-lhe um olhar de advertência antes de se aproximar
bravamente pela direita. Com um movimento fluido ele escovou a
extensão do flanco do cavalo abaixo de sua asa. O cavalo dançou
deleitosamente no mesmo lugar enquanto Sam o escovava,
aceitando-o apesar de seu comportamento rude.
Sam então se virou e jogou a escova para Margriete, que a
pegou, atônita enquanto se aproximava do último cavalo. Ela correu
a escova pela crina de cristal, os pelos do cavalo produzindo um
som agudo e metálico uns contra os outros, como lascas de vidro,
enchendo o ar com uma música suave. O terceiro cavalo estivera
muito mais calmo que os outros dois, como se sentisse o desconforto
de Margriete e ajustando-se de modo a fazê-la sentir-se confortável.
Demos um passo atrás, esperando pelo próximo movimento
do Pégaso enquanto permanecíamos de pé na margem. Os três
cavalos nos observavam agora, como se subitamente estivessem a
nosso serviço, seus olhos dardejando ao redor. Foi então que o
primeiro cavalo deixou escapar um suspiro satisfeito, o som
semelhante ao do vento em um órgão de igreja.
Margriete sorriu.
— E agora — o sorriso transformado em um astuto olhar de
satisfação que cintilou em seus olhos quando a luz etérea dos
cavalos refletiu neles — Nós os montamos.
Capítulo 22
O CENTRO DO MUNDO
286
— Isso não é natural, — Sam ajustou-se no topo do Pégaso, a
estranheza das asas de anjo e asas de Pégaso enroladas entre si,
lutando pelo controle.
— Sam, apenas dobre suas asas, você está bem. Você não
precisa ser tão defensivo. — Margriete apontou para Sam de volta
enquanto seu cavalo andava em círculos, ansioso para seguir em
frente.
Eu ri, achando a situação constrangedora para os envolvidos.
Sam resmungou baixinho quando afrouxou seu controle sobre a
crina, finalmente desistindo e se submetendo a uma posição de
inferioridade, algo que eu nunca pensei que veria em toda a minha
vida.
Sam olhou para Margriete e Margriete sorriu. Revirei os
olhos à vista, vômito ameaçando minha garganta enquanto eu
pensava sobre o amor florescer assim na minha frente, tanto quanto
tinha sido com Scott e Sarah. Embora eu soubesse que a minha
própria história de amor era sentimental e cheia de momentos
desagradáveis, eu tinha pelo menos privado aos outros de assisti-la.
Meu cavalo empinou quando cavalo de Margriete beliscou sua
cauda, suas mentes tornando-se inquietas com a nossa incapacidade
de nos recompormos e seguirmos em frente.
Eu nunca tinha imaginado que um Pégaso fosse tão bonito,
como uma gota de orvalho em uma manhã de primavera. Era como
se eu estivesse sentada no ar, o cristal frio mais suave do que
qualquer coisa que eu já senti, como a mais suave água que corre
através de suas mãos. Sua existência dentro do oceano diante de nós
era mística, como se fossem o ar desse mundo, movendo-se com 287
tanta graça e silêncio que faria com que as sereias ficassem com
ciúmes.
Meu cavalo saiu em direção à água, os cascos batendo contra
a superfície como taças de cristal se chocando. Suas asas foram
ampliadas, permitindo que as regras simples de gravidade fossem
extintas, como se a água não fosse um elemento trespassável, mas
um palco de vidro. Eu olhei abaixo de mim e depois para Margriete
com fascínio.
— Legal, hein? — Ela gritou com sua voz ecoando. — Eles
andam sobre a água. — Ela apontou para o horizonte. — Esta é a
única maneira de encontrar, é por isso que precisamos da escova,
para domá-los, para que eles nos emprestam suas costas.
Eu olhei para a camada de névoa em cima de mim, que agora
se encostava sobre minha cabeça. Margriete estava certa, Sam nunca
seria capaz de voar através de um espaço tão estreito, sem perturbar
o nevoeiro e causando a queda da visibilidade. Se isso viesse a
acontecer, nós certamente perderíamos o rumo, como um barco em
uma tempestade, em busca de terra até ceder e afundar.
— Basta ficarmos quietos, — Margriete disse, mais para Sam
do que para mim quando viu que até seu pescoço estava envolto
pela névoa, fazendo-o parecer sem cabeça.
Eu ri e me inclinei para a crina brilhante do cavalo, olhando
para baixo através de suas pernas, para o seu coração. Todos os três
cavalos se elevaram à medida que cambalearam para frente, se
atirando num galope, quando o barulho de cascos afiados tornou-se
tão profundo que era como vidro quebrando. Cada passo causava
ondulações na água, gotas voavam atrás de nós e quando olhei para 288
trás sobre a garupa dos cavalos, suas caudas eram como sinos
conforme os fios se chocavam, fluindo no vento como um riacho.
Logo em frente, um brilho crescente levantou-se da água
como uma lua, sua luz lançando raios longos diretamente para nós,
guiando nosso caminho. Enquanto nós continuamos mais perto, a
lua, como um globo, continuou a aumentar até que ela se levantou e
na névoa, a metade inferior agora totalmente erguida, ainda
iluminando o nosso caminho.
Enquanto eu estremecia pela luz, notei que a cor em torno de
nós estava gotejando de volta para a paisagem, a luz da lua agora
pulverizando raios brilhantes como um arco-íris através dos ossos
de cristal dos cavalos. Foi então que uma ilha agora surgiu do
horizonte como se puxada pela órbita lunar, brilhando em uma cor
que eu nunca tinha visto no mundo humano.
Eu não conseguia desviar os olhos quando nós rapidamente
descemos sobre a massa de terra, o ar enevoado clareou e a água
agora era de um vibrante verde azulado. Uma luz branca brilhante
começou a crescer a partir do centro da grande ilha, seus contornos
lentamente moldando uma cidade que era cercada por um muro
grande e protegida por sua própria atmosfera. Os cavalos se
aproximaram do outro monte sem hesitação e quando seus cascos
pousaram na areia, derraparam até parar, mergulhando seus
traseiros no chão enquanto as patas dianteiras ficavam enterradas na
areia.
Eu me inclinei para frente, a parada súbita ameaçando lançar-
me para o chão de areia laranja. Os cavalos ficaram de pé, batendo
suas asas enquanto todos nós avaliávamos nosso novo ambiente, 289
piscando com as cores e protegendo os olhos da repentina claridade
da luz. Quando olhei para cima, vi que as nuvens serpenteantes que
eu tinha visto no deserto convergiram para este ponto, torcendo-se
em um círculo como o olho de um furacão. Havia flashes brilhantes
de luz como se a tempestade acima se mantivesse aumentando,
ameaçando quem ousasse vir até aqui.
— Que lugar é esse? — Engoli em seco, olhando para
Margriete. Meu coração sabia onde estávamos, mas meus nervos
não estavam prontos para aceitar que era isso, era para isso que eu
estava me dirigindo todo esse tempo. Eu ansiosamente agarrei o
punho da adaga em meu cinto, sentindo como o anel em volta do
meu pescoço parecia afundar em meu peito com calor abrasador. Eu
estava tão perto agora, Edgar estava ao meu alcance. Eu podia sentir
isso.
— É o núcleo de todas as coisas, o reino de Deus. —
Margriete olhou para mim com olhos horrorizados, o rosto se
lembrando de sua última viagem até aqui, lembrando-se do destino
que se abatera sobre ela.
Sam desmontou, seus pés afundando na areia quando seu
cavalo de repente se elevou, decolando em direção à água, indo de
encontro a sua superfície, sua luz lentamente desaparecendo
enquanto descia em suas profundezas. Eu também desmontei o meu
cavalo que já estava ansioso para seguir seu amigo de volta para
casa. Uma vez que estávamos todos de pé na areia, assistimos
quando o último cavalo desapareceu e nossa atenção voltou-se para
os grandes portões que dividiam o muro.
As travessas do portão eram grossas e brilhantes, feitas da
mesma rocha que os cavalos, mas de alguma forma mais brilhantes.
Havia alavancas e travas que cobriam cada travessa, brilhando a luz 290
da terra e faiscando como diamantes. Eu olhei para os meus pés,
achando que a areia que eu pisava parecia como pudim, derretendo
de tal forma que você sentia que não poderia ficar parado por muito
tempo, temendo que fosse afundar abaixo da superfície.
O sentimento geral deste novo mundo era sinistro, como se
estivéssemos presos em uma jarra de vidro que tinha sido colocada
no sol. Embora não houvesse ninguém à vista, a esmagadora
sensação de que alguém estava observando deixava o meu corpo
cheio de tensão e indecisão. O único som era o das ondas atrás de
nós, batendo à costa, como se puxadas pela energia da ilha,
ameaçando afundá-la.
Margriete alcançou suas costas e pegou o livro enquanto eu
continuava a analisar a tranquilidade deste lugar. Eu caminhei na
direção dos portões enquanto Sam se pendurava sobre o ombro de
Margriete. Colocando as mãos nas barras eu tentei olhar através das
claras travessas para o mundo além, mas elas pareciam ofuscar a
visão, recusando-se a espionar alguém, mas dando a noção de que
você talvez pudesse.
A própria parede era feita de uma fria pedra cinza, não muito
diferente de qualquer coisa que eu já tinha visto antes, mas
perfeitamente moldada e cimentada, como se recém-erguida. Eu dei
um passo para a direita, meus pés afundaram na areia até os
tornozelos. Eu dei a cada pé uma balançada, retirando a areia
coletada nos arcos dos meus sapatos que se moveu estivesse viva,
como pequenos insetos. As nuvens acima se chocaram enquanto um
trovão continuava a retumbar, meus ossos tremendo com cada
rosnado.
— Ei, Elle, — Margriete quebrou minha atenção.
291
Eu olhei de volta para eles.
— Venha ver isso, — Margriete chamou-me para frente,
apontando para algo no livro.
Enquanto eu dava a volta para olhar para a página, eu vi que
o livro agora brilhava com uma réplica do portão, cada engrenagem
no lugar e cada alavanca travada. Margriete tocou sua mão em cada
engrenagem e a tinta girava sob seu toque, tentando desvendar cada
truque quando a porta começou a se torcer. Assim que as portas
estavam prestes a abrir, o movimento começou a diminuir, deixando
de funcionar com uma parada abrupta e Margriete suspirou.
— Bem, não é esse aqui, — ela olhou para o portão que se
agigantava diante de nós. — Podemos testar as alavancas com meu
desenho. — Ela virou o olhar de volta para a página. — Nós só
temos uma chance de dar certo com a coisa real, por isso o meu
desenho é uma grande ajuda, ou então ficaremos presos aqui,
afundados na terra para sempre.
Eu enruguei minha testa. — Mas deve haver centenas de
alavancas! — Eu olhei para a porta de 50 pés novamente, sentindo-
me sobrecarregada.
Margriete riu baixinho. — Exatamente, é por isso que eu fiz o
desenho, para nós não estragarmos tudo, — reiterou.
Eu resmunguei, sentindo-me derrotada e tola. — Bem, você
não lembra qual é? — Eu devolvi.
Margriete olhou para mim. — Se eu me lembrasse, já
estaríamos dentro agora, além disso, quem sabe se eles mudaram as
fechaduras ou não. — Houve uma acidez distinta em seu tom. 292
Sam pressionou seu grande dedo na página. — Que tal essa
aqui? — A engrenagem virou sob seu toque, rapidamente se
bloqueando e recusando-se a ceder mais rápido do que a tentativa
que Margriete fez. Ele franziu a testa, sentindo-se tolo.
Margriete soltou uma risada aguda. — Grande chance, Sam.
Eu olhei para a página, agora tentando me redimir. Hesitei
no começo, mas quando olhei para trás no portão, vi que havia uma
alavanca que parecia se destacar. Não era particularmente grande,
mas o formato era de alguma forma diferente do restante. A maioria
das travas tinham formatos arredondados com maçanetas em forma
de videiras, mas esta era sólida e quadrada.
Olhando para a página novamente eu levantei a minha mão e
trouxe-a para o papel. A tinta se contorcia sob o meu toque macio,
não gostando do fato de que eu não era Margriete, mas ainda
sucumbia aos meus desejos. As engrenagens começaram a se mover,
uma de cada vez, a partir do canto direito da porta e giravam até
que uma destrancou o outra, criando uma reação em cadeia de
movimento silencioso dentro da tinta.
A boca de Margriete começou a formar um sorriso enquanto
observava com os olhos famintos, Sam pairava sobre nossos ombros.
As engrenagens agora se espalharam e pararam, enquanto as travas
simultaneamente levantaram e havia uma clara linha aberta entre os
dois portões, o que sugeria que tinham sido desbloqueados. Todos
nós olhamos para longe do livro e na direção dos portões brilhantes
ao mesmo tempo, nossos olhos pousando sobre o botão quadrado,
agora brilhando em nossas mentes com esperança.
Sam foi o primeiro a disparar para frente, um animado 293
sorriso no rosto, com suas asas suspensas a partir de suas costas e
ele graciosamente pulou na direção da alavanca, puxando-a para
baixo tão duro quanto podia, deixando a altura de suas asas cair
quando ele colocou seu peso todo nela, finalmente aterrissando no
chão com uma sólida batida, enquanto a areia pulverizava em meu
rosto.
Margriete me deu uma cotovelada. — Exibido.
As portas se lançaram para a vida, então, rangendo como
ferro enferrujado enquanto cada engrenagem arranhava duro contra
a próxima, anunciando nossa chegada de uma forma nada discreta.
Eu coloquei minha mão em minha barriga, sentindo minhas
entranhas se torcerem até meu coração, enchendo-o com um medo
frio. Este era o momento que eu estava esperando todo esse tempo,
mas eu ainda não estava pronto para enfrentar o que estava além.
Cada engrenagem agora repousava sobre a próxima,
exatamente como na imagem e as travas que bloqueavam em
conjunto no meio das portas agora se levantavam uma de cada vez,
como se abrissem o zíper de um casaco. A luz se derramava através
da abertura, ainda mais brilhante que a luz da própria ilha, nos
atingindo em uma variedade de cores.
Senti Margriete pegar minha mão e a apertá-la quando a
última trava se levantou a partir de seu entalhe e as portas se
abriram lentamente para dentro. No começo, foi difícil para minha
visão noturna manter o foco, mas quando as luzes se igualaram, eu
fiquei impressionada com uma cena que parecia vir diretamente de
um sonho distante. Eu não tinha certeza do que esperar, mas
quando meus olhos caíram sobre os vales dourados deste novo
mundo, o nervoso em meu estômago diminuiu como se
submergisse em serenidade. 294
Uma parte de mim pensava que quando chegamos às portas,
tínhamos chegado ao fim, mas agora era evidente que havia ainda
mais caminhos a percorrer. As montanhas de ouro rolavam a nossa
frente, o céu de um azul profundo que contrastava com as colinas
enquanto um vento suave vinha em direção a nós, se empurrando
sobre a grama dourada que crescia em fileiras perfeitas por todo a
terra.
Ao andar para frente, a grama me encontrou como uma
onda, engolindo minhas pernas e cobrindo toda a parte inferior do
meu corpo. Eu coloquei minhas mãos para os lados, deixando os fios
de trigo se enlaçarem em meus dedos, as sementes saltando para
fora enquanto os topos ficavam bloqueados nos nós de meus dedos.
A brisa era quente e doce e quando passamos sob os arcos do
portão, o mundo atrás de nós desapareceu, deixando nada mais do
que o próprio portão, aberto para outro campo mais além.
Margriete suspirou. — Bem, é isso.
Eu deixei algumas sementes caírem de minha mão. — Isto é o
que? Nós chegamos?
Ela sorriu e gargalhou. — É claro que chegamos. Nós estamos
na terra de Deus.
Eu pensei por um momento enquanto olhava em torno da
paisagem simples. — E ela tem um nome?
Sam entrou em cena. — É claro que tem um nome, — ele
soltou um suspiro. — Ela tem muitos nomes, mas para você, você
deve estar mais bem relacionada com o termo Céu. 295
Eu ri baixinho. — Então é isso né, este é o lugar aonde todos
nós vamos quando morremos?
Sam grunhiu. — Talvez, depende do que você é. Todos os
humanos fazem seu caminho para uma vida futura, ou trabalho,
como eu. Tudo depende de quem você era em sua vida na terra, que
determina quem você é agora.
Eu balancei a cabeça e apertei os lábios, tendo a noção lógica
mais fácil de digerir. Fazia sentido que todos nós trabalhássemos
para um futuro, mas esse futuro dependia da vida que tínhamos
vivido. — O que acontece com aqueles que creem em outras
religiões?
Começamos a seguir adiante agora, mais por hábito do que
determinação.
— Eles estão todos reconhecidos, mesmo aqueles que
escolhem não acreditar em qualquer coisa. Era tudo parte do projeto
humano, para determinar o que acontece quando as pessoas são
colocadas em várias regiões geográficas deste mundo, — Sam
continuou. — Tudo isso é um grande experimento, e é verdade que
somos todos iguais, ou melhor, todos nós acreditamos nas mesmas
coisas, mas são diferentes. — Ele riu. — Se é que isso faz sentido.
Margriete estava cantarolando agora e eu olhei para os meus
pés, encontrando minhas calças agora cobertos de pó de trigo.
—Eu acho que eu entendo o que você está dizendo, é só
muito difícil de acreditar. Há tanta dor e sofrimento que foram
causados por isso, em todo o mundo. 296
Margriete parou de cantarolar. — Bem, querida, isso é o teste.
Quem você é na terra determina quem você é aqui, o seu lugar. É
como uma faculdade gigante lá em cima, — ela apontou para o céu,
— e esta é a vida real.
Olhando para cima, eu achei difícil acreditar que estávamos
no centro da Terra. Os céus aqui eram tão claros, tão verdadeiros
que era difícil pensar que se eu voasse alto o suficiente, haveria um
teto.
Quando chegamos à crista de uma colina, algo brilhante
chamou minha atenção. Na distância, uma torre branca se levantava
do chão, mas estava tão longe, que parecia não mais do que um
ponto no horizonte, de alguma forma não mais do que tinha
parecido lá da praia, como se a ilha continuasse a crescer quanto
mais perto chegássemos.
Enquanto trilhávamos nosso caminho através dos campos, o
trigo dourado virou-se lentamente para verde e o terreno começou a
mudar à medida que a terra macia deu lugar às pedras e poeira. Nós
descemos por uma colina e a torre desapareceu novamente no
horizonte, flores selvagens agora dominando a vista diante de mim,
lembrando-me do prado em que ficava nossa casa. O odor doce de
trigo foi substituído pelo cheiro de néctar, muito mais potente do
que eu já tinha cheirado na Terra.
Caminhamos lentamente sobre mais algumas colinas antes de
eu ser capaz de associar o cheiro frutado com o de um pomar de
árvores de pera que agora que nos cercavam, seus frutos
perfeitamente maduros e gordos como se implorando para serem
colhidos. A velocidade em que mudamos de uma época para a outra
era mágico, como num pequeno planeta. 297
Sam olhou para as frutas com olhos desconfiados, seus
pensamentos nadando diante deles como água. — É como a árvore
proibida de maçãs, exceto que existem centenas.
Margriete riu. — Eu só espero que não nos deparemos com
Adão e Eva, eu não estou para nudez no meio da tarde.
Eu não pude evitar sorrir enquanto pensava em todas as
histórias que existiam sobre o fruto proibido, a maçã venenosa, o
Jardim do Éden. A fruta era um símbolo da vida, o processo que
leva o mundo a crescer, uma e outra vez. Quando eu pensava que
não era mais que uma órfã abandonada e triste, eu tinha jurado
nunca abandonar os meus filhos, mas agora parecia que eu nunca
seria capaz de ter meus próprios filhos e eu nunca conheceria as
alegrias de ser mãe, ou o ciclo da vida.
Eu sempre pensei que eu iria ter tempo para pensar nessas
coisas, mas quando você sabe que ter um bebê nunca vai acontecer,
é como ter uma opção arrancada de você antes mesmo de ter a
chance de saber. Eu estava certa de minha vida eterna e nossa
atração letal impediria a mim e Edgar de nunca termos essa
pequena alegria que aparentemente todas as outras coisas na terra
tinham.
Eu suspirei, atraindo a atenção de Sam enquanto ouvia em
meus pensamentos. Havia um olhar de dor em seu rosto, um olhar
que eu sabia que significava que ele estava se relacionando comigo.
Eu estava certo de que ver Jill o fez pensar as mesmas coisas.
Certamente houve um dia quando ele era jovem, em que ele
sonhava em ter sua própria prole, de transmitir seu nome de família.
Vi-o olhar em direção de Margriete, seu amor por ela parecendo
crescer a cada passo que dávamos. 298
Eu estava feliz por eles, feliz de que ambos pareciam querer
seguir em frente, para encontrar mais na vida do que os passados
sofridos que tinham vivido. A vida tinha lhes dado um cartão difícil
e eu não podia culpá-los. Eu sabia como era querer a felicidade. Se
eu pudesse ter encontrado algo que me fizesse sorrir como uma
criança eu o teria acolhido em minha vida com um forte abraço.
O rosto de Edgar cruzou minhas memórias. Seu sorriso
desajeitado encheu minha alma com calor e eu agarrei o anel no
meu pescoço. Edgar era um homem tão forte e, no entanto seu
coração estava tão frio, mas quando ele olhou para mim, era como
se tudo houvesse mudado e seu coração tivesse encontrado calor e
amor. Lembrei-me da forma em que seu rosto, então, se torceu em
um sorriso, um sorriso que era reservado só para mim.
Houve um movimento entre as árvores e eu rapidamente
parei na grama do pomar, minha mente perdendo a imagem. Sam
tinha visto também, parando logo ao meu lado e agarrando o braço
de Margriete. Ela estremeceu e amaldiçoou para ele, mas Sam
puxou-a de seu lugar e prendeu-a em seus braços, onde cobriu sua
boca com sua mão gigante. Ele estreitou as sobrancelhas para ela,
com força, sugerindo que ela ficasse quieta e calma.
Enquanto ouvíamos, o único som era o vento suave entre as
árvores e meu peito que subia e descia em respirações medidas.
Quando eu estava prestes a ignorar a perturbação, houve outro
movimento, seguido de uma rodada melódica de risadas jovens. Eu
girei a cabeça em direção ao ruído, nós três agora costas com costas,
num círculo defensivo.
Algo branco saltou por entre as árvores, agora mais perto de
nós do que antes. Outra risadinha repercutiu fora dos troncos 299
grossos e eu senti o calor de Margriete quando sua pressão arterial
subiu. Ela pegou minha mão quando Sam agarrou a dela. Foi então
que uma pequena cabeça saiu de trás da árvore diretamente na
minha frente e eu engasguei, soltando a mão Margriete e agarrando
o meu peito enquanto meu coração ameaçava parar.
O pequeno rosto sorriu para mim, seguido por outra
risadinha. Eu relaxei um pouco, achando o incidente menos
aterrorizante do que eu tinha imaginado inicialmente. Eu pisquei e
soltei minha mão ao meu lado. Não era mais do que uma criança,
vestida de branco com uma cara de porcelana. Ela piscou os olhos
com um aceno triste de confiança e lentamente saiu de trás da
árvore enquanto Margriete e Sam giravam ao meu lado, agora a
observando como tolos, da mesma forma que eu tinha feito.
— Olá, — eu arrulhei, meus músculos relaxando enquanto eu
deixava meu corpo se curvar para baixo a seu nível.
A menina me deu outro sorriso doce. — Olá, — respondeu
ela, com os olhos cheios de admiração e de vida.
Margriete agarrou minha mão, advertindo-me quando eu dei
um passo em sua direção. A menina me imitou, se aproximando
também.
— O que você está fazendo aqui? — Eu perguntei, olhando
para ela quando ela juntou as mãos atrás das costas e girou no lugar.
— Caçando besouros, — ela respondeu claramente,
encolhendo os ombros pequenos. Seu vestido branco flutuou em
seus joelhos quando um vento suave e quente circulou por entre as
árvores.
Sua pele era muito parecida com a de Sam, mas tinha um 300
brilho mais jovem. Havia algo sobre ela que parecia tão inocente e
estranho, como se estivesse sempre escondida dos problemas do
mundo, sem o conhecimento de seus males.
Margriete fez um barulho estranho de reconhecimento e eu
olhei para ela. Seus olhos estavam arregalados e um sorriso rastejou
em seu rosto.
— Eu sei o que ela é... — A voz dela enfraqueceu quando ela
começou a acenar com a cabeça, agora segurando a nossa atenção, e
até mesmo a da jovem.
— Esta criança morreu jovem em seu tempo na terra. —
Margriete observou a reação da jovem ao comentário, seu rosto se
fechando. — Por causa disso, ela está ligada para sempre como uma
criança descuidada neste mundo, pois ela nunca teve a chance de
viver sua vida na terra. Ela vive agora, quase como uma espécie de
'refazer'.
Eu juntei minhas sobrancelhas em descrença. — Um refazer?
Quer dizer que os Deuses basicamente disseram 'opa', e eles agora
estão tentando compensar isso?
Sam riu de minhas referências grosseiras.
Margriete sorriu junto com ele. — Por falta de uma
explicação melhor, sim.
A menina riu de nós enquanto levávamos um momento
pensando no fato. Eu a vi quando ela se ajoelhou na grama e
começou a cantarolar, recolher os talos e fazendo um pequeno
buquê de flores de maçã.
— Ela é tão linda, — eu murmurei baixinho, seu macio cabelo 301
loiro soprando em tufos. Havia algo sobre ela que fez com que eu
me lembrasse de mim como criança, como a filha que eu tinha
sonhado que eu poderia ter sido. Quando eu era jovem, eu me
sentaria e olharia por horas, me perguntando por que eu não
poderia encontrar a felicidade.
De repente eu estava com ciúmes da menina, aproveitando a
infância que eu nunca tive. Eu queria ser capaz de viver aquela vida,
saber como era a sensação de que tudo era seguro e que cada dia era
apenas mais uma oportunidade para brincar e explorar. Eu suspirei,
desejando que o fato de que talvez um dia, me pudesse ser
concedida esta oportunidade.
Sam bateu na cabeça da jovem e ela olhou para ele com olhos
amorosos, como os de uma corça. Ela passou sua mãozinha pelo
cabelo, reorganizando o que Sam tinha bagunçado. Ela, então,
entregou o pequeno buquê para ele, suas mãos esmagando os caules
enquanto ele tentava pegá-los.
Houve uma chamada repentina que trilhou seu caminho
através do pomar e a menina virou a cabeça, seu sorriso ainda
maior. — Estou indo, Mama! — Ela gritou de volta.
Meu coração se derreteu quando ela se virou para nós e pôs-
se de pé, a grama se torcendo entre os dedos dos pés. — Foi um
prazer conhecer vocês, pessoal, — ela fez uma delicada e educada
saudação antes de se virar com seu buquê e correndo na direção
oposta, de volta para casa.
Forcei de volta as lágrimas ao vê-la desaparecer entre as
árvores em seu próprio reino dos Céus. Eu tinha certeza de que eu
nunca me seria concedido tal asilo na próxima vida e comecei a me 302
perguntar se a nossa espécie ainda tinha um futuro aqui. Se já
tínhamos feito o nosso lugar nesta terra, com certeza teríamos que
nos desfazer e nos tornar uma parte da Terra em si, não mais do que
pó.
Capítulo 23
O CÍRCULO SECRETO
Quando finalmente saímos do pomar, eu vi uma pequena 303
cabana no final dos acres cultivados e eu deduzi que era o local
onde a menina tinha vivido. A grama do pomar imediatamente deu
lugar a outro campo, mas desta vez as torres brancas que eu tinha
visto mais cedo estavam muito mais próximas, próximas o suficiente
para induzir meus nervos a desmoronar.
O terreno diante de mim guiava-me no caminho para o
centro da cidade com a multidão em direção a ele. As torres brancas
eram lisas e afiadas, penetrando no céu em sua grandeza. Talvez o
campo diante de nós fosse uma estrada e nós seguimos nosso
caminho por ele. A estrada era acidentada e rachada, mostrando
sinais de pesado uso em viagens e eu estava repentinamente
lembrando O Mágico de Oz enquanto eu pensava em mim mesma
como Dorothy, sentindo o mesmo medo e esperança de ir para casa.
Havia movimento ao redor do castelo, um alvoroço
semelhante a uma feira de rua. Bandeiras soprando ao vento, cada
uma vibrando com seu próprio desenho e cor. Havia algumas
nuvens de fumaça que sopravam em direção a nós dos vagões, cada
uma delas enlaçada com um cheiro diferente, carnes, flores e pão.
Minha boca encheu-se de água com o cheiro, apesar de meu
estômago seguir um pequeno pensamento de fome.
Sam amaldiçoou quando ele tropeçou através dos ressaltos
na estrada onde a água tinha esculpido profundas fendas.
Tuias 5 começavam a nascer em ambas as laterais de nosso
caminho como se fossem um fila de soldados, assistindo nossa
chegada. Meu coração estava golpeando em meu peito e minhas
palmas começaram a suar enquanto eu as permitia filtrar através do
frio ar da primavera.
304
Cigarras estavam cantando em meio ao campo e eu tentando
fingir que estava em casa num dia de verão, na campina, onde eu
sabia que estava segura e onde eu sabia que podia ainda encontrar
Edgar, se não em corpo, mas ao menos em alma. Eu fechei meus
olhos quando os primeiros sons do mercado encontraram meus
ouvidos como uma canção de tique-taque. Tinha sido um longo
tempo desde que eu havia encarado uma multidão e o sutil barulho
acordou memórias que tinham sido suprimidas por um longo
tempo.
Seattle tinha ritmo próprio, um tamborilar que doía no dia,
florescendo com vida. Eu odeio a mediocridade disto, mas o som
agora parecia um triunfo porque eu sabia que estava acima disto e
podia lidar com a dor que brotava profundamente do meu interior.
Eu lutava para capturar minha respiração enquanto abria
meus olhos, sufocando minha necessidade de ter um colapso
nervoso bem agora e voltar atrás. Eu fui forte não só por Margriete e
Sam, mas por Edgar e meu futuro. Um homem aproximou-se de nós
no caminho, arrastando uma pequena cabra em uma corda
esfarrapada de algodão. A cabra cantava com cada passo,
desafiando o puxar de seu mestre e ansiando mastigar no campo
além.
5
Espécie de pinheiro, como um cipreste.
Quando nos aproximávamos, o homem deu-me uma olhada
com medo, seguida de abalado sorriso e uma inclinação de chapéu
como se ele me conhecesse. Eu agarrei o punhal em meu cinto,
lembrando meu destino e imaginando se ele sabia. A verdade do
negócio era que eu não estava aqui para desafiar os deuses, eu
estava aqui para chegar a um consenso, então eles tinham um 305
pequeno medo de mim; eu nunca iria governá-los.
O doce cheiro ainda inundava minhas narinas, combinando
canela e óleo que era mais forte do que antes. Quando nós fomos de
encontro à feira, eu tomei a direção da parada de carroças que
delineava a rua e o campo mais além. A multidão era tão volumosa
que eu admirava-me de como alguém podia encontrar qualquer
coisa, muito menos encontrar seu caminho de volta para a estrada.
Eu pulei quando um palhaço surgiu diante de mim, sua boca
grotescamente manchada e seus olhos girando como bolinhas de
gude. Sam agarrou o palhaço e o empurrou para o lado por instinto,
atirando-o dentro da carroça de pequenos animais, com uma
mistura de muitas espécies que eu conhecia do mundo acima de
nós.
Eu senti como se todos estivessem me notando, como se
todos soubessem o porquê de eu estar aqui. Cada rosto que eu
encontrava olhava-me também com medo ou ódio e eu não podia
entender o porquê. O círculo de visitantes estava amedrontado e
sombrio, obviamente o produto de vidas humanas atormentadas
por más decisões.
Nós caminhamos passando sucessivamente pela fila de
vendedores na rua, todos vendendo seus bens de uma maneira
desesperada, mais como vagabundos. Minha atenção estava retida
em uma carroça em particular aonde uma gaiola mantinha um
animal essa parecia ser feito de aço sólido. À medida que nós
chegávamos mais perto eu fui capaz de ler a placa, vendo que eles
eram Grifos, muito jovens para possuírem o calor que eles
finalmente teriam.
Foi então que eu reparei numa jovem menina, muito parecida 306
com a garota que eu tinha encontrado no pomar, caminhando
através da multidão em direção a nós, sua cabeça para baixo e suas
mãos fechadas juntas, por medo. Um vendedor em roupas rasgadas
aproximou-se dela, abordando-a de um modo assustador. Ela
encolheu-se para longe dele, seus olhos permanecendo fixos no chão
onde ela tornou óbvio que não pertencia a este lugar. Quando nos
aproximamos, eu notei que Sam cerrou suas mãos em punho, suas
costas tornando-se rígidas e zangadas.
O vendedor olhou para cima, surpreso pela nossa repentina
proximidade. Seu grotesco sorriso foi arruinado para um olhar
carrancudo e ele rapidamente afastou-se da garota quando ele viu as
asas de Sam se apertarem ao redor de seus ombros. A jovem menina
agitou-se com nossa presença agora e eu ajoelhei-me no chão,
colocando minha mão em seu braço para confortá-la.
— Você está bem, querida? — eu perguntei calmamente, o
barulho ao redor de mim enfraquecendo enquanto eu escutava sua
rápida e amedrontada respiração. Meu coração se apertou quando
eu me lembrei de minha própria infância com medo. Eu nunca pude
entender minhas habilidades e a rejeição que sempre me cercava
tinha me deixado aleijada. Seu cabelo loiro caindo ao redor de seu
rosto, protegendo-a do resto do mundo em um véu de segurança.
Os punhos de seu vestido branco estavam manchados com
lama e seus pés descalços estavam desgastados e ressecados. Sua
respiração ainda estava acelerada quando ela inclinou sua cabeça
para cima, seus olhos azuis penetrando os meus como uma onda de
eletricidade. Ela piscou os olhos, gesticulando com as mãos.
— Você é Estella? — Ela suspirou, um medo inocente
flutuando em seus olhos.
307
O choque abalou-me quando ela pronunciou meu nome. Eu
esforcei-me para encontrar uma resposta, mas ao invés disso eu
acenei com a cabeça, o nó na minha garganta se recusava a falar.
A menina continuou a falar com lentidão aspirando longa e
trabalhosamente e eu desejava saber o que tinham feito a tão
inocente ser, esse exato vasilhame de felicidade que agora estava
para sempre manchando por este mundo. Pessoas começaram a
reunirem-se ao redor de nós, algumas me observando com
vingativos olhares fixos, titubearam em seus pensamentos somente
pela presença de Sam.
— Você... — a garota gaguejou, olhando de súbito a
multidão. — Você esta me seguindo.
Eu olhei Margriete, puro medo e tristeza enchendo seus
olhos. Margriete afirmou com a cabeça para mim, colocando uma
mão em minhas costas e estimulando-me a aguentar. Eu agarrei as
mãos da menina nas minhas e ela olhou para mim com um olhar
fixo de adoração, como se aliviada por eu estar aqui para confortá-
la. Ela virou e me conduziu de volta na direção que ela tinha vindo,
de volta em direção às torres brancas. A multidão ao redor de nós se
dividiu, mantendo a uma distância segura como se uma bolha de ar
nós envolvesse.
Suas minúsculas mãos agarraram as minhas com uma força
ansiosa enquanto ela me empurrava em frente. As palmas de suas
pequenas mãos estavam suando, mas ela recusou a largar à medida
que ela tropeçava em frente, um espelho de mim mesma na sua
idade. O anel no meu peito estava batendo com vida, no compasso
de meu próprio coração enquanto o cascalho triturava embaixo de
nossos pés, a menina dava dois passos para cada um dos meus.
308
Quando nos aproximamos do portão, eu vi que dois guardas
o estavam flanqueando, um de cada lado. Seus corpos estavam
rígidos como estátuas e suas cabeças eram aquelas de lobos. Eu
observei como seus afiados olhos seguiam em mim, suas bocas
agora salivando com ódio.
Margriete inclinou-se em minha direção. — Fique quieta,
enquanto nós ficarmos calmos, não deve haver problemas.
Os lobos rosnaram para os sons dos sussurros de Margriete e
ela instantaneamente afastou-se de mim. A menina apertou minha
mão ainda mais firmemente até que eu podia sentir seu próprio
sangue derramando através de suas veias. Um guarda soltou um
rugido selvagem, os portões instantaneamente rompendo para vida,
as engrenagens rangendo como se elas forçassem abrir o que
pareciam como portas de puro calcário.
Eu nunca vi uma estrutura tão incrível em minha vida inteira,
tão pura e ainda assustadora. Os portões estavam a menos de 40 pés
de altura e o que parecia dois pés de espessura. Quando eles
abriram, a sujeira espremeu duramente atrás das portas quando eles
arrastaram-se para dentro. Uma vez que as portas pararam, a
menina arrastou-me em sua direção com dever e bravura, lambendo
seus lábios enquanto se concentrava em sua tarefa.
Quando passamos embaixo dos portões, as portas atrás de
nós começaram a fechar e eu voltei meu olhar para o caminho em
frente. O caminho diante de nós era feito de puro cascalho branco
com grama em ambos os lados, cortada tão curta que me lembrava
de um campo de golfe. Novamente as paredes em ambos os lados
eram filas de gaiolas, recheadas com corvos negros, um exército
inteiro de maldade pronto para ser liberado sob o mundo. Os corvos
começaram a se mover assim que me viram, desconfortáveis com 309
minha presença em seu reino. Eu olhei diretamente em seus olhos,
chocada por nada mais encontrar exceto uma lacuna em um olhar
fixo em branco, suas almas completamente destruídas.
No fim do caminho estavam grandes degraus de pedras, que
conduziam para outro conjunto de portas de mogno, com
guarnições de ferro. A menina clamou sobre os degraus e
pesarosamente conduziu os nós dos dedos contra a madeira batendo
suavemente quando ela liberou o teimoso domínio de minha mão.
Ela olhou para mim enquanto as portas lentamente abriam e seu
rosto relaxava como se dando conta do medo que restringia nela. Ela
piscou uma vez, sorrindo de um modo que fazia cócegas na minha
alma de um jeito familiar.
— Aqui é onde meu tempo com você termina, — ela piscou
novamente, uma lágrima rolando pela sua face. A voz da menina
agora estava cheia de autoridade e idade, mudando desta inocente
criança para uma mulher que tinha presenciado uma longa vida.
Ela sorriu, seu corpo agora desfalecendo como se filtrado
para longe, pedaço por pedaço. — Eu sempre soube que minha filha
voltaria pra mim, e cumpriria as profecias, — suas feições de criança
assemelhando-se a uma idosa rapidamente, revelando um rosto não
diferente do meu próprio.
Fiquei boquiaberta enquanto mantinha meu olhar fixo
travado sobre o seu, revelando quem ela era.
— Eu sempre tive orgulho de você, Elle, e embora você nunca
tenha me conhecido, sempre estive lá, sempre protegendo você, —
ela me alcançou e colocou suas mãos sobre o meu coração. — Bem
aqui.
— Eu... — Eu tentei responder, mas antes mesmo que eu 310
pudesse reunir as palavras, ela tinha se transformado em um corvo
branco, voando para cima e para fora do pátio enquanto seu corpo
desaparecia dentro do céu, soprando dentro das nuvens como nada
mais que um fantasma.
Eu caí de joelhos, lágrimas agora descendo pelo meu rosto. A
emoção tinha sido tão repentina que havia pouco que eu pudesse
fazer para evitá-las. Eu sabia que havia algumas coisas sobre ela que
tinha sentido próximas, a forma que ela agarrava minha mão era
mais do que preocupação, mas amor e orgulho, orgulho de mãe. Eu
sequei as lágrimas de meus olhos como se tentando acalmar as
esmagadoras emoções que agora me atavam. Eu tinha uma mãe,
afinal.
Sam envolveu suas mãos ao redor de mim e levou-me sobre
meus pés. Sem palavras, Margriete e Sam envolveram-me em seus
confortantes braços.
— Isto me surpreendeu também mais uma vez, — Margriete
sussurrou em meu ouvido. — Foi aqui também que eu encontrei
minha própria mãe, mas não da mesma maneira que você. Eu
contaria a você, Elle, mas eu não queria fazer uma promessa, nem
todo mundo é permitido saber deles, eles são uma geração
esquecida.
Eu tomei uma profunda respiração e inclinei-me para fora do
abraço. Eu sequei as lágrimas de meus olhos, achando minha vida
imprevisivelmente doce no pior dos tempos. — Mas por que eu
nunca soube dela?
Margriete encolheu os ombros. —Eu não penso que eles
alguma vez existiram da mesma forma que nós. Nós ainda somos os
primeiros de nossa espécie, criados por meio da reprodução, uma 311
criação para a perfeição.
A picada da realidade estava ainda afogando-me enquanto
Sam encorajava-me para frente. Eu queria tão seriamente apertar
para rebobinar, para saborear aquele pequeno momento sagrado de
novo mais uma vez. Tinha acontecido tão rápido que agora parecia
como se fosse nada mais que um sonho, um momento perdido que
me esforçaria para lembrar toda minha vida.
Margriete agarrou com força o livro de suas costas e folheou
até a última pagina e sorriu. — Aqui, Elle, — ela empurrou o livro
em direção a mim. — Eu o lembrarei pra você.
Meus olhos caíram sobre a página, eu vi a imagem de dois
corvos sendo desenhados de lado a lado, juntos em uma harmoniosa
reunião, para sempre lembrar-me como um diário da alma de
Margriete. Eu sorri para Margriete quando nós passamos embaixo
da soleira da porta e para dentro das salas escuras.
— Obrigada, Grietly.
Capítulo 24
HORA INOPORTUNA
312
Quando as portas se fecharam atrás de nós, a sala estourou
para a vida com cem ou mais velas, candelabros de ferro
pendurados no teto abobadado, a cerca de oitenta pés de altura. A
própria sala era grande, quase tão grande que era difícil ver o outro
lado. Nossos passos ecoaram por todo o chão de mármore que era
tão negro que era como se estivéssemos andando sobre o céu
noturno. As velas atrás de nós desapareceram quando novas
crepitavam à vida, à nossa volta com um halo de luz.
Cortinas pendiam do teto como se penduradas para secar em
um varal, cada uma como um muro enorme enquanto passávamos
através delas, seguindo o mármore preto, seguindo nosso caminho
em direção a uma luz fraca na parte de trás da sala. Sam lutou com
as cortinas, praguejando para si mesmo enquanto ele segurava cada
uma para o lado.
Margriete riu quando ela puxou a última cortina, revelando
uma porta que tinha sido aberta, como se esperando a nossa
chegada. Risos e músicas irromperam do interior e encontrei-me
cheia de curiosidade, não de medo. Olhamos uns para os outros por
uma última vez, tomei uma respiração profunda enquanto eu
empurrei a minha mão contra a velha porta, entrando na sala
enquanto a luz caía sobre nós.
O riso que eu tinha ouvido de imediato desapareceu quando
meus olhos se ajustaram e um cenário se formou ante a mim.
Tínhamos entrado em uma grande sala onde eu vi que uma longa
mesa ao longo de todo o comprimento dela se encaixava no espaço
quase que perfeitamente. Cortinas penduradas na parede e fumaça
de milhares de velas descansavam em direção ao teto. 313
— Ahhh ...
Uma voz ecoou pela sala em minha direção, me fazendo
tremer, o tom de uma semelhança triste ao de Matthew. Minha
respiração estava curta e apertada quando olhei em volta, preparada
para enfrentar meu destino. Raízes cresceram a partir do teto, como
se suspensas a partir da terra acima de nós e isso fez com que fosse
difícil encontrar de onde a voz tinha vindo. Os itens foram
enrolados entre as suas ramificações, de espadas a taças, todos os
tipos de coisas, preciosas e triviais.
— Nós estivemos esperando por você, minha querida! —
Outra voz ressoou em minha direção sobre a longa mesa, desta vez
cheia de alegria e humor. — Venha, tome uma bebida!
O cálice arranhou o seu caminho sobre a mesa em direção de
onde eu estava, ondulando entre as raízes como um fantoche em um
fio. Sam pegou o copo antes que caísse no chão, levando-o a seu
nariz e inspecionando o conteúdo. Ele respirou fundo e estremeceu
para longe da taça, jogando-a contra a parede à esquerda e
sacudindo a cabeça, sugerindo que o que enchia o copo ou estava
podre ou envenenado.
O riso de cinco almas encheu a sala, seguido pela mesma voz
profunda — Eu vejo que você trouxe proteção. Você é sábia. — A
voz exalava enquanto eu tentava localizar a fonte. — Valia a pena
tentar, esse truque funciona normalmente em alguém que é burro o
suficiente.
Eu dei um ousado passo para frente e ao redor da mesa,
pressionando de volta as raízes enquanto continuava. Sam seguiu-
me, uma mão em minhas costas, como se preparado para agarrar- 314
me a qualquer momento. Eu afastei uma cortina que as raízes
tinham reunido em um nó, e foi então que eu finalmente os vi.
Com um rosto severo, me concentrei em cinco personagens
que estavam reunidos em torno do fim da mesa, meus olhos
duvidando do que eu realmente via. Na cabeceira da mesa estava
um homem gordinho, baixo e calvo com piercings de ouro por cada
pedacinho de seu corpo. Ele estava sorrindo muito, sua grande
barriga exposta através de seu colete púrpura.
À sua direita estava sentada uma senhora, seus cabelos de
um branco puro e sua pele mais branca ainda, brilhando com uma
luz etérea, como se ela fosse o sol. Ela sorriu docemente, mas os seus
olhos eram de um cinza que pareciam muito sinistro para me
enganar. Minha mente queria confiar nela, mas seus olhos me
sacudiam por dentro.
— Exponha seu propósito, criança, — um velho à esquerda
do homem com os piercings de ouro assobiou para mim. Embora ele
não estivesse sentado à cabeceira da mesa, eu poderia dizer que ele
era o líder. O ar ao redor dele parecia congelar em sua presença,
medo golpeando a minha alma como uma marreta de aço.
De repente, me senti extremamente pequena ao lado deles,
essas antigas almas da criação. — Vocês... — eu comecei, a minha
voz se arrastando em minha garganta. — Vocês roubaram alguma
coisa de mim. — Pulei direto ao ponto, sentindo que os meus nervos
suportariam apenas um curto período de tempo antes que eu
certamente vacilasse.
O velho riu, a sala estava agora mais fria. — Eu acredito que
é você quem tem algo roubado de nós menina. — Ele riu com
desprezo cruel e olhou para baixo de seu nariz para mim quando 315
um homem pequeno ao lado dele pressionou os óculos até seus
olhos como um cientista. Eu me concentrei no homem pequeno,
incapaz de suportar olhar nos olhos de seu líder. Ele tinha um
chapéu pequeno e uma bengala e não era mais alto do que uma
criança de cinco anos, mas eu duvidava que ele fosse tão fraco.
Eu desviei o olhar do homem para a última deusa que estava
do outro lado da mesa do pequeno cientista. Ela era bonita e jovem,
seus olhos de um azul profundo e sua pele como seda. Ela piscou e
estreitou os olhos para mim como se me comparando a si mesma e
deduzindo que ela era muito superior, mas a julgar pela sua cara
feia, ela sabia melhor. Enquanto eu segurava o olhar, senti uma
parte dela entrar em minha alma, uma parte que tinha medo de
mim, como se ela soubesse que tínhamos uma espécie de futura
profecia que eu ainda não conhecia.
Eu olhei para longe dela, finalmente me recompondo e voltei
a olhar para o líder. —Eu... —, eu gaguejei. — Eu não estou aqui
para desafiá-lo. — Eu coloquei minha mão sobre o punhal quando
os cinco deuses tornaram-se nervoso em seus assentos.
Era óbvio que eles estavam tão ansiosos quanto eu, e tão curiosos
sobre o que iria acontecer a seguir.
Por um momento eu deixei minha mente sonhar acordada,
permitindo-lhe ver o que seria como desafiar os deuses, pegar o seu
lugar e todo esse mundo. Havia uma parte de mim que desejava
salvá-lo, roubá-lo das garras dos deuses de modo que, o que tinha
acontecido a mim, nunca voltasse a acontecer de novo. Edgar Poe
havia dito que por desistir voluntariamente da adaga, todo o seu
poder de morte seria drenado dela, não restando nada mais do que
uma bugiganga afiada. Minha alma implorou para acreditar que
isso era verdade.
316
O velho na cabeceira da mesa deve ter sentido os maus
pensamentos dentro de mim, porque as raízes acima de nós
começaram a se torcer, um nó delas caiu lentamente a partir do teto.
Meus pensamentos imediatamente cessaram quando o anel ao redor
do meu pescoço queimou em meu peito, o conteúdo das raízes que
fazia com que o mundo à minha volta girasse indo embora. Edgar
estava envolto em ramos como um fardo de feno, sem vida e
congelado como se suspenso em repouso.
A velha senhora de branco falou agora, sua voz quase um
sussurro, mas suas palavras justificavam seu olhar escuro e sinistro,
— Eu acredito que você não pode evitar tais pensamentos, criança,
você está à nossa mercê.
Eu soltei o punhal em meu cinto e coloquei minhas mãos em
minha cintura. Eu podia sentir Sam atrás de mim, seu corpo rígido e
desconfortável. Margriete arrogantemente sussurrou em seu ouvido,
mantendo-o calmo. Forcei de volta as lágrimas enquanto me
encorajava a olhar para longe do corpo sem vida de Edgar.
— Por que nos odeiam? — Eu assobiei entre os dentes.
Apertar minha mandíbula era a única coisa que eu poderia fazer
para impedir meus dentes de baterem, dado o fato que eu estava
apavorada.
A jovem mulher riu baixinho. — Você age como se pensasse
que é melhor do que nós, criança.
Eu juntei minhas sobrancelhas. — Eu não, — revidei, com
raiva se arrastando em minhas palavras.
— Mentirosa, — ela assobiou.
O velho ergueu a mão para acalmar a manifestação de ciúmes
317
da mulher. — Por favor, desculpe-a. Ela não entende com quem está
lidando.
A mulher cruzou os braços diante dela, fazendo beicinho
como uma criança vingativa.
— Eu vou fazer um acordo, então. — Eu tentei manter a
compostura, mas a presença de Edgar era inebriante, minha alma se
agitando com um amor que eu não sentia há meses.
O velho riu uma vez, expirando suavemente. — Você nos
deve mais do que apenas uma adaga, garota. Você nos deve a sua
vida também. — Ele cruzou as mãos em seu colo e se recostou na
cadeira. — Eu vou permitir que você troque a sua vida e o punhal
em sacrifício por Edgar, mas isso é tudo.
Eu senti a raiva dentro de mim começar a crescer. — Isso não
é nem um trato, meu senhor. Você esquece que eu ainda tenho o
punhal, e eu preferia morrer aqui e sacrificar nós dois a permitir que
Edgar viva sem mim novamente. — Coloquei a mão no cabo da
adaga, os deuses se contorcendo em suas cadeiras, incapazes de
aceitar superficialmente minhas palavras.
O velho encostou-se à mesa, colocando sua cabeça em sua
mão e correndo os dedos por sua longa barba em pensamento. A
jovem murmurou algo para ele sobre a mesa, sua voz cheia de
pressa e atrevimento. O velho acenou com a cabeça ligeiramente,
acatando sua observação e inclinando para trás.
Ele levantou as raízes que embalavam Edgar de volta para o
teto e senti meu coração se partindo. — Vou fazer um acordo então,
criança, — ele fez uma pausa e se ajustou na cadeira, o pequeno 318
cientista manteve os olhos fixos na minha mão e no punhal, com a
boca escancarada. — Nos dê a adaga e vá embora daqui. Vou
conceder-lhe a sua vida, e vamos pensar no assunto. Ele passou a
mão sobre a mesa. — Você vê... Nós precisamos de você, por isso
não podemos nos dar ao luxo de tê-la morta.
Sorri para mim mesma, achando que havia mais do que eles
tinham dito e eu era mais do que apenas uma alma. Eu era um
instrumento valioso, talvez tão valioso quanto o punhal. — Eu não
vou fazer nada por vocês a menos que vocês me deem a vida dele,
— eu apontei para o teto, onde Edgar estava pendurado.
O velho riu. — Eu te prometo, eu lhe darei Edgar de volta,
mas você deve sair agora, sem o punhal, e sem ele.
Eu estreitei os olhos para o homem, achando que não havia
outra maneira de eu poder mudar isso. Os deuses estavam me
oferecendo sua palavra, mas eu sabia que não devia confiar neles. —
Eu vou sair, — eu peguei o punhal e o puxei para fora do meu cinto
num movimento rápido. — Mas eu não vou hesitar em matar todos
os que vagueiam pela terra se não honrarem até o fim este negócio.
Eu vou destruir a sua premiada criação e não haverá nada para me
parar, porque sem Edgar, eu não tenho medo da morte.
O velho sorriu, como se visse a verdade das minhas palavras
e a coragem em meu coração que não pararia por nada para honrar
o homem que eu amava. A jovem se inclinou sobre a mesa com uma
cara frenética e sussurrou algo para o velho, mas ele a silenciou. Era
óbvio que eles estavam planejando me enganar, mas não haviam
contado com o meu próprio ataque malicioso. Eu não era como
Margriete, eu não tinha medo desses meros seres diante de mim e
eu não tinha medo de fazer o que fosse para vingar a minha vida
perdida. 319
Eu lentamente abaixei a adaga para a mesa e coloquei-a sobre
a madeira e depois recuei.
— O que você está fazendo? — Sam sussurrou atrás de mim.
— Você não pode confiar neles, Elle.
Eu não dei a Sam uma resposta, ao invés disso vi o velho
olhar avidamente para o punhal, agarrando-o em sua ganância e
puxando-o para ele. Eu tinha dado o meu melhor na negociação,
mas algo dentro de mim me disse para confiar neles.
Eu suspirei e fechei os olhos, olhando para Edgar. — Eu te
amo, — eu sussurrei quando recuei para fora da sala. Quando as
portas bateram atrás de mim, senti meu coração apertado. O futuro
era incerto, mas eu senti que não era hora de descansar ainda. Com
pressa, nos retiramos das torres brancas e fizemos o caminho de
volta em direção ao portão.
Eu faria como havia dito. Eu iria para casa e esperaria. Eu
sabia que minha ameaça não tinha caído em ouvidos desatentos e
quanto mais cedo eu pudesse chegar em casa, melhor.
Capítulo 25
CASA 320
— Oh Elle, eu estou tão feliz que você tenha feito tudo isso
para nós, eu não sei como eu vim a merecer tão boa amiga. — Sarah
piscou para mim quando os cabelos sopraram no vento quente
como uma onda de chocolate. Havia flores em seu cabelo e o vestido
que ela usava era simples, soprando como um lençol de seda atrás
dela.
Eu sorri e abracei Sarah, Margriete ronronou e esfregou-se
contra sua perna, seu pelo branco quase tão brilhante que se
misturava com vestido branco de Sarah. Margriete tinha escolhido
permanecer disfarçada para o evento, considerando que o fato
trivial seria demais para suportar. Scott andou na minha direção,
vestido em um terno preto lindo, que eu tinha lhe emprestado do
armário de Edgar.
Arrumei a lapela do seu casaco, enquanto observava o meu
rosto.
— Você o encontrou, Elle? — Ele colocou uma mão em cada
um de meus ombros, me apertando de uma forma que quebrou
minha guarda emocional.
Eu concordei com a cabeça, sentindo as lágrimas começarem
a crescer em meus olhos enquanto eu olhava para longe dele.
— Ele vai voltar? — Scott pressionou. Ele tinha crescido do
menino que tinha sido uma vez. O tempo que ele passou conosco
em seus sonhos haviam mudado suas visões sobre a vida, fazendo-o
perceber o quão importante é a vida e o quanto ele realmente era
uma parte de tudo isso.
321
Dei de ombros, pressionando os lábios juntos. — Quando
chegar a hora, Scott, você vai estar lá para me ajudar?
Scott sorriu. — Eu a seguiria até os confins da terra, se eu
precisasse, Elle, e você sabe disso.
Eu balancei a cabeça, — Obrigada, Scott.
Scott ajoelhou-se e esfregou Margriete na cabeça. Quando ele
se levantou, olhou para cima do meu ombro e riu, fazendo-me
voltar para ver o que ele tinha visto. Sam tinha aparecido no prado,
seu rosto franzido em uma linha de desconfortável, enquanto ele
lutava com o terno que ele se sujeitou a vestir. Apesar de seu ódio
inicial por Scott, que tinha vindo a respeitá-lo e esta era sua maneira
de provar isso.
Eu ri quando Margriete soltou um miado longo e difícil, seu
queixo batendo no final, como uma risada. Sam me deu um olhar
reprovador quando ele veio ao nosso lado, pegando Margriete em
um movimento rápido e embalando-a nos braços.
— É melhor não dizer nada sobre isso de novo, — ele
murmurou no ouvido dela, aninhando sua pele e fazendo com que
ela começasse a ronronar.
Eu sorri. Desde que voltamos Margriete e Sam tinham
conseguido encontrar o amor novamente. Trouxe calor ao meu
coração saber que eu tinha sido a responsável por tanta felicidade.
Eu tinha desafiado as regras o suficiente para lhes dar forças para
abraçarem o seu amor e vivê-lo todos os dias.
Nós fizemos nosso caminho em direção ao corredor que eu
tinha criado na campina. A família inteira de Sarah e Scott tinha 322
vindo, até mesmo a mãe de Scott. Eu ri enquanto ela limpava uma
mancha de algo de seu rosto enquanto ele estava no altar.
Sua mãe tinha estado confusa sobre o porquê e como
tínhamos conseguido tantos móveis em um prado que estava tão
longe da faculdade, mas a ideia disso era muito complicada para
que ela refletisse sobre o assunto por muito tempo. Eu estava certa
que Scott tinha mantido a minha existência em segredo, sabendo
que a mentalidade científica de sua mãe jamais seria capaz de
acreditar em qualquer coisa, mas só em fatos.
O meu sorriso começou a doer enquanto eu assistia Sam levar
Margriete para frente e tomar um assento. Demorei-me para trás
com Sarah, achando que o casamento tinha começado a influenciar
as minhas emoções. O anel em volta do meu pescoço ficara ali,
nunca hesitando em respirar e de vez em quando me oferecer falsas
esperanças, uma vez que queimava a minha pele, como se ele
finalmente estivesse aqui.
Sarah estava tremendo de medo e felicidade, segurando
minha mão com a mesma vontade e força que minha mãe tinha
feito. O fato de ela ter sido real era tudo que eu sempre precisei,
tudo que eu sempre quis. Era difícil ser órfã, se perguntando por
que sua mãe tinha lhe abandonado, mas agora ficou claro que ela
não teve escolha e sua devoção para mim era inegável.
A música começou. — Vai Sarah, — eu sussurrei, colocando
minha mão em suas costas e incentivando-a para frente pelo
corredor. Ela caminhava sozinha, seu pai a muito tinha ido, mas
estava aqui em espírito. Um suspiro escapou dos meus lábios
macios e tomei meu lugar, contente com tudo que tinha feito. Eu
tinha feito o meu melhor para encontrar Edgar, eu tinha dado tudo 323
de mim e agora esperaria. A música do violinista tocou em toda a
relva, as flores em torno de nós floresciam fragrâncias de tanto amor
e tanta vida.
Eu me inclinei na minha cadeira e fechei os olhos, tomando o
perfume de tudo, os sutis sons e o sentimento da vida me cercando
em um vórtice de aceitação. A face de Edgar estava em minha
mente, sempre o mesmo e nunca esmorecendo. Eu pensei sobre seu
cheiro, lembrando-me de cada pouquinho do nosso tempo juntos,
como se fosse um filme que eu pudesse ver outra e outra ver. Eu
inalei, encontrando o acentuado bater da saudade vibrando no meu
coração como asas, vibrando em torno de mim como se ele estivesse
aqui.
Segurando o anel em volta do meu pescoço, eu abri os olhos
devagar, saboreando o verdadeiro sentimento. Assustada, eu soltei
um grito silencioso e saltei para o meu lado. A vibração que senti foi
real e um corvo negro agora se sentava na cadeira ao meu lado, a
cabeça inclinada e os olhos de opala brilhando ao sol. Ele tinha
vindo sem um som como se fosse um fantasma, o anel agora
queimava quando o deixei cair em meu peito, em choque.
Lágrimas caíram dos meus olhos enquanto o corvo estava ali,
quieto e calmo, o vento vibrando em suas penas. Meu peito
começou a arder quando percebi que tinha me esquecido de
respirar. Eu trouxe minha mão para a boca e expirei pelos meus
dedos, fechando os olhos e dizendo a mim mesma que era apenas
um sonho, uma ilusão criada por minha mente cansada. Eu encarei a
frente, sem vontade de me permitir tal comportamento infantil.
Abrindo-os, o corvo tinha ido, substituído por uma figura
escura que inundou meu redor. Foi então que a figura pegou minha 324
mão e minha alma estourou aberta, com mais vida do que alguma
vez tenha tido, afirmando que este momento era real. Eu não podia
me mover para olhar para a figura, com medo que ele fosse embora
tão rapidamente como tinha chegado, a identidade ainda um
mistério que minha alma conhecia.
Sam olhou por cima do ombro, sorrindo para mim como se
ele também visse o que estava acontecendo, como se ele soubesse o
tempo todo. Ele piscou e acenou com a cabeça e eu achei difícil
negar que aquilo estava realmente acontecendo e esta figura ao meu
lado não estava mais em minha imaginação.
A figura se inclinou para mim e falou. — Obrigado.
Eu exalei quando a respiração tranquila de Edgar caiu em
meus ouvidos, arrepiando minha espinha. Sua fragrância suave me
cercando em uma nuvem de fumaça quando minha cabeça começou
a se sentir fraca.
Eu respirei fundo antes de virar para encará-lo, os olhos de
um azul profundo nublado, falhando como nuvens carregadas no
céu. O nó na garganta negou o meu discurso quando Edgar trouxe a
outra mão no meu rosto. Ele envolveu meu rosto e inclinou-se,
nunca quebrando o nosso olhar e seus lábios macios encontraram os
meus. Fechei os olhos e segurei em seus braços, recusando-me a
deixá-lo ir, mas descobri que, como sempre, Edgar pressionava-me
para longe, com um sorriso no rosto e os olhos quase pretos.
FIM
325
Esse livro foi traduzido do original por amantes da leitura para
amantes da leitura, no intuito de disseminar a cultura e o entretenimento,
sem qualquer tipo de fim lucrativo.
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