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A Oralidade em Moçambique

A oralidade como base cultural moçambicana

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A narrativa da oralidade e a literatura em Moçambique

A questão da oralidade e da literatura no caso de Moçambique, como na maioria dos países africanos
é uma questão complexa e que tem suscitado ao longo dos últimos oitenta anos várias polémicas e
discussões apaixonadas . A nossa abordagem desta problemática decorre da necessidade de
desenvolvermos uma reflexão critica a partir dos dados da experiencia que testamos na Ilha de
Moçambique . Vários autores, principalmente em Portugal e em Moçambique têm abordado esta
questão.

Ana Mafalda Leite, em 1998 efectuou o desenho sumário desta problemática (LEITE, 1998). A questão
da “negritude”, introduzida por Léopold Senghor em 1948 marca o início da busca duma essência
africana (SENGHOR, 1948). Essa problemática será contestada por vários intelectuais africanos na
década de novecentos e setenta (BALOGUN & DIAGNE, 1977) que, considerando a conceptualização
de “negritude” como um conceito com origem (e com um fim) nas problemáticas ocidentais, haveria
que africanizar a problemática centrando-a nas questões africanas. Aqui, africanidade, face à ausência
da escrita, teria que se inserir na oralidade. A aí se gera uma nova oposição entre a tradição
(alicerçada na oralidade) e a modernidade (com a emergência da escrita) como um fenómeno urbano.
Segundo Mafalda Leite esta questão ainda se enraíza na busca duma identidade nacional e prossegue na
afirmação das literaturas pós-independência, que eram até aí consideradas como apêndices das
literaturas nacionais (da língua colonial). O fato de no processo de reconstrução identitária se processar
uma intertextualidade feita na contestação à matriz europeia, vai levar à incorporação de autonomias
(LEITE, 1998, p. 13). E essa busca das autonomias encontra na incorporação da oralidade aplicação
exemplar .

A oralidade como conceito de análise, sobretudo como atributo da tradicionalidade pode ser
considerada como uma problemática que se centra sobre a construção dos mitos originais. A
construção da imagem do africano efectuada a partir das descrições da antropologia, com as
construções dos seus sistemas de cosmogonia, levaram, os ocidentais a incorporar, que face à
ausência da ferramenta da escrita (como elemento de rememoração e reprodução do saber), a
oralidade, o conto tradicional desempenhava, senão funções idênticas, pelo menos funções similares.
Tanto mais que este processo, de descoberta do outro africano, vai correr na sequência da descoberta
das tradições populares europeias, que o movimento romântico vai acrescentar como afirmação da
diversidade e duma identidade face à afirmação dos nacionalismos europeus emergentes que
impunham a ideia da nação associada, entre outros ao uso duma língua vernácula. Como salienta
Mafalda Leite, a oralidade é um resultado do seu processo histórico (LEITE, 1998, p. 13), e não um
resultado duma “natureza africana”, contrariando quem apressadamente considera que a escrita é
um acontecimento disjuntivo para os africanos (LEITE, 1998, p. 13).
A mistificação da oralidade produziu nos Estudos Africanos a utopia da sua justaposição com a
tradicionalidade, identificando os dois conceitos (oralidade = tradição) ou, por outro lado, a oralidade
como uma função exemplar da africanidade. Essas atitudes acabaram por confundir a ideia da
autenticidade com a condição oral. (LEITE, 1998) Uma outra abordagem conceitual da força da oralidade
como característica da africanidade, segundo Mafalda Leite, encontra-se nos defensores da ideia de que
a “oralidade” é uma forma de partilha colectiva do “saber”, processo que seriam particularmente
adequados aos processos de construção socialista de raiz africana, que nos anos sessenta e setenta do
século XX se difundiram pelos novos estados africanos. (LEITE, 1998)
Posteriormente a 1974, Viegas Guerreiro no âmbito do IPPC executa uma pequena monografia sobre
“Guia de Recolha da Literatura Popular” (GUERREIRO, 1982), que era a base da sua classe . Em 1985
Viegas Guerreiro no colóquio “Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa” apresenta uma
comunicação (GUERREIRO, 1987). O autor exprime a importância da análise do discurso da oralidade
para ultrapassar a ideia do “atraso cultural” das sociedades tradicionais. Se do ponto de vista das
técnicas as comunidades podem apresentar-se com situações diferenciadas, ao nível do pensamento
isso não sucede. “O Devir é um fenómeno universal”, afirma o autor, “e se no domínio das técnicas estas
populações se atrasaram, e não tento como se julga, não assim nas manifestações do intelecto”
(GUERREIRO, 1987, p. 171). Segundo Viegas, é através do pensamento que as comunidades expressam a
sua actualização dos conhecimentos. “A narrativa oral é então não apenas elemento do passado
mítico, que também o é, mas é sobretudo uma reelaboração do presente. Uma leitura do presente.
(GUERREIRO, 1987, 171) Trata-se portanto duma expressão da memória social. “As personagens
movem-se, atuam, em ambiente físico que é o de hoje, sentem e pensão de modo análogo ao do
narrador e ouvintes” (GUERREIRO, 1987, p. 172). Estamos portanto perante uma “matéria do
património” justificando-se a sua investigação.

Ainda no âmbito da questão da oralidade, mas agora assumindo uma análise crítica do discurso Jean-
François Loytard quando aborda a “Pragmática do saber narrativo” (LOYTARD, 1986, p. 42) afirma que
a legitimação do saber denotativo, que na pós-modernidade implica o saber fazer, saber viver, saber
escutar, aborda o saber do costume (ou do senso comum). Segundo Loytard o “saber tradicional”, que
se distingue do saber científico, emerge na Europa do século XVIII e XIX como uma legitimação do
novo saber da burguesia, em oposição ao saber teológico. O saber popular, da tradição, fundado em
genealogias que se perdem nos tempos, visto como um saber puro, procura legitimar novas relações
de poder. “Estas histórias populares contam o que se pode chamar formações (Bildungen) positivas ou
negativas, ou seja os êxitos ou os fracassos que corroam as tentativas dos heróis, e estes êxitos e
fracassos conferem legitimidade às instituições (função dos mitos), ou representam modelos positivos
ou negativos (heróis felizes ou infelizes) de integração nas instituições estabelecidas (lendas contos).
Estas narrativas permitem portanto definir, por um lado, os critérios de competência próprios da
sociedade em que são contados, e, por outro lado, avaliar, graças a esses critérios, as performances
que neles se realizam ou podem realizar.” (LOYTARD, 1986, p. 45).
Mais, Loytard encontra ainda mais três funções neste tipo de discurso narrativo: Ele é constituído por
uma pluralidade de jogos de linguagem, que permite uma complexidade de enunciados denotativos, e
por uma forma de transmissão com regras fixadas na pragmática. (LOYTARD, 1986, p. 46). Nesta última
função o autor considera que a transmissão da narrativa, na oralidade obedece a lógicas de enunciação
em que o narrador participa no próprio enunciado, sendo que a legitimação do discurso advém pela
participação do “narratário” e do auditório.

LOYTARD, 1986, p. 47). Para além disso, esta forma de narrativa, como performance, obedece a um
ritmo. O ciclo de exposição e repetição dão origem à formação de competências por interiorização. A
competência nestas comunidades constrói-se assim, segundo o autor, pele exposição sucessiva às várias
narrativas, sendo que através desse processo ele se vai sucessivamente actualizando. E essa actualização
é uma actualização dupla. Do referente e da memória do participante.

(LOYTARD, 1986, p. 50). Em 1986, Lourenço do Rosário na sua tese de doutoramento (ROSÁRIO, 1986)
vem acrescentar à conceptualização da “literatura oral” algumas questões de investigação que
decorrem dum longo trabalho de campo. O autor refere, o entusiasmo com que Aquino de Bragança em
1980, no centro de Estudo Africanos de Universidade Eduardo Mondlane acolheu a sua ideia da recolha
da literatura Oral. Embora a recolha do corpus tenha sido efectuada nas comunidades do Vale do
Zambeze, o tema interessa à nossa problemática pela sua proposta metodológica.

Segundo Lourenço do Rosário, a técnica da escrita, nas sociedades da escrita serve para “uma
transmissão de conhecimentos que perpétua a hegemonia social, onde o núcleo familiar é substituído
pela mediatização do sistema de ensino (ROSÁRIO, 1986, p. 49) “Essa preocupação do grupo dominante
é perpetuar-se inibe o indivíduo e a sua criatividade. É por isso que, muitas vezes, à margem desta
aprendizagem mediatizada, o indivíduo procura, através de actos criativos expressar as suas
interrogações, os seus protestos, o seu posicionamento individual representando o mundo de uma
forma subjectiva e em algumas vezes em confronto com os valores que lhe foram transmitidos. No
entanto, o que tem acontecido, na generalidade, é o ato de criação, na situação de escrita, reproduzir
normas e valores de interesse de classe que lhe permite ter acesso aos mecanismos de divulgação”
(ROSÁRIO, 1986, p. 49). A esta educação erudita, contrapõe Rosário a educação das sociedades da
oralidade onde “a educação se associa à arte e ao ato criativo em função da das preocupações,
manutenção e prosperidade do grupo comunitário”

(ROSÁRIO, 1986, p. 50) Esta dupla função (educativa e criativa) efectua-se em função da manutenção do
grupo, é segundo Rosário, uma característica das “sociedades da oralidade”; ao passo que as
“sociedades da escrita” privilegiam o carácter instrumental da escrita (uma educação instrumental),
ou valorizam a estética desligada da ato educativo (uma estética pela estética).
Como ato cultural e criativo a narrativa oral, na perspectiva saussuriana onde a língua é um sistema
significante, e a língua – oralidade corresponde à sua objectivação social. A língua seria então a
deposição das normas colectivas (tal como sucede na fixação do texto escrito, que é uma mediação
desta) e a fala – oralidade corresponderia à interacção do conteúdo da narrativa com o narrador e o
seu público. A fala, come mediação permite ultrapassar a fixação do texto escrito, e deixa ao artista a
liberdade do ato criativo. Note-se que esta liberdade criativa é condicionada pela conformidade com
as normas e com o público.

A partir dessa reflexão, defende Lourenço do Rosário, verifica-se uma distinção entre o processo de
análise da literatura oral, da literatura escrita. Nesta, a objectivação é feita pela língua/fala (como
norma), enquanto na oralidade a objectivação é feita pela própria língua, inserindo-se portanto no
próprio ato criativo. Com esta distinção, Lourenço do Rosário pretende ultrapassar a ideia de que a
oralidade corresponderia a um arquétipo da literatura, como uma outra forma, mais primitiva.
(ROSÁRIO, 1986) No campo teórico Lourenço do Rosário trabalha ainda a questão das narrativas orais
como objeto de conhecimento, justificando com integração categorial de formas consideradas
características da oralidade, como são os contos, os mitos, as lendas fábulas. Segundo Rosário não existe
entre essas formas diferenças de natureza. A diferenciação entre essas narrativas é pelo seu grau, ou
pela função que desempenha em termos de oposições. Depois de analisar a questão a pertinência da
problemática desta “literatura oral” , que nas sociedades modernas tem sido remetidas para o universo
“das crianças”. Ora Rosário defende, na esteira de outros autores, a existência de dois tipos de
narrativas: as narrativas que se relacionam com as questões de conservação da comunidade e as
narrativas sobre a exemplaridade dos actos individuais. No primeiro caso, temos como exemplo uma
função mais mítica, com formalismos narrativos mais rígidos. No segundo caso, a função é a
apresentação dos actos significativos, onde a personalidade assume características mais abertas, sendo
que nestas encontramos um apelo à ação limitada pelos vários interditos sociais. Nos actos da oralidade
é fundamental a ritualidade da narrativa. (ROSÁRIO, 1986) Em termos de morfologia da narrativa da
oralidade, Lourenço do Rosário distingue o objeto pela sua génese. Às narrativas que são geradas por
uma situação de carência inicial, que implica a sua ultrapassagem, são narrativas ascendentes. Neste
tipo de narrativas encontram-se todas a formas míticas, os exemplos de ação comunitária, e actos de
heroísmo ou bravura. Este tipo de narrativa, segundo Rosário poderia constituir um arquétipo da forma
de narrativa e que corresponde à vontade de futuro (exemplificado pela normalmente apoteótica
conclusão).

Representaria a consciência do ser (ou a perda da idade do ouro). (ROSÁRIO, 1986) A metodologia que
Lourenço do Rosário adopta, foi desenvolvida pelo formalista russo Vladimir Propp . Na análise do corpo
de narrativas pressupunha a sua aplicação num universo social uniforme, e colocava como hipótese que
seria através da narrativa que as comunidades adequavam a sua experiencia no mundo.

Portanto, este tipo de narrativa ascendente opunha-se às narrativas fundadoras, míticas, em termos
funcionais e morfológicos. Estas narrativas são classificadas como descendentes. Partem dum problema
e falam das formas e das soluções que existem para a resolução do problema. Essas soluções
correspondem a formas de vida, a filosofias de vida e são, no tempo dinâmicas, porque representam o
ajustamento da comunidade à sua história, à sua memória, e ao seu devir.

Lourenço do Rosário ultrapassa as condicionantes do método formalista de Propp, adicionando-lhe a


necessidade de compreensão do sistema de funcionamento social da comunidade. “Como ninguém
pode afirmar que conhece uma língua só pelo fato de ter estudado a sua sintaxe, porque o domínio
desta não permite, só por si deduzir qual o léxico, nem o valor semântico dos seus enunciados, assim, ao
nível da narrativa de transmissão oral não é suficiente se não for completada com o conhecimento
etnográfico da comunidade que produz essa narrativa”. (ROSÁRIO,

1986, p. 81) Defende Rosário a complementaridade entre narrativa de tradição oral e a etnografia,
que representam uma relação entre o significante e o significado no contexto em que se verifica a sua
relação com outras narrativas, conforme a proposta de Saussure.

A narrativa oral, em Moçambique tem tido a atenção de vários projetos editoriais.


Por exemplo a Colecção Cinco Mares, da Editora Paulista Mar Além (CAVACAS, 2001) publica uma
recolha de Provérbios Orais Moçambicanos . A intenção da publicação desse tipo de textos “em
estado bruto” tem um objectivo de contribuir para a sua preservação em face da percepção de
ameaça de desaparecimento e um compromisso com a divulgação “da noção de identidade que anima
a história destas gentes e destas terras” (CAVACAS, 2001, p. 9). Trata-se portanto de uma antologia de
textos sem uma abordagem crítica.

Um outro trabalho, de Maria Fernanda Afonso “O Conto Moçambicano: Escritas Pós-coloniais”


(AFONSO, 2004,) vem também tratar da questão do conto, no âmbito da construção das identidades
culturais. A questão da diversidade cultural do país, das múltiplas referências que se conhecem,
encontra naturalmente uma primeira evidência ao nível dos contos tradicionais. Neste texto, que é o
resultado dum doutoramento a autora, depois de longamente ter apresentado um discurso sobre a
história de Moçambique, com particular detalhe na sua história recente afirma: “A literatura tem
desempenhado, sem dúvida, um papel muito importante na construção da identidade nacional
moçambicana. Os escritores de primeira geração identificam-se com o movimento de libertação da
FRELIMO, e acreditaram inabalavelmente no novo projecto de sociedade que ele propunha.

Comprometeram-se pela palavra com o combate anticolonial e vários conheceram o exílio e a prisão.”
(AFONSO, 2004, p. 34) Ainda segundo a autora, após estes primeiros anos de euforia, foi entre os
escritores que surgiram os primeiros sinais de descontentamento social. Esta “imbricação da ficção com
a história, segundo o conceito de refiguração cruzada de Paul Ricoeur toma lugar no seio da literatura
moçambicana. Ferida pela desilusão da revolução inacabada, atravessada por hibridismos multiculturais
e linguísticos, a escrita assume-se como testemunha da pluridiversidade da história, denunciando as
ambiguidades, as mentiras e os conflitos sociais, mas sem a preocupação de produzir um discurso
monológico e autoritário” (AFONSO, 2004, p. 34) E é nesse momento, segundo a interpretação da
autora, que a literatura, melhor os escritores moçambicanos se voltam para a busca das raízes, para a
busca das narrativas curtas “que parece testemunhar uma vontade de criação dum projecto de escrita,
articulada em torno duma herança cultural e linguística. As vozes narrativas instauram a dialéctica entre
o que sempre pertenceu a África e o que ela recebeu de outrem. Elas interpelam o passado, propondo
uma certa percepção do mundo, marcado por um olhar lançado com inquietação sobre a sociedade pós-
colonial” (AFONSO, 2004, p. 35-36). É nesse contexto que a autora centra o seu trabalho. O conto como
expressão da identidade.

O interesse para o nosso trabalho de mobilizar esta reflexão sobre a literatura oral e a literatura
moçambicana recente centra-se precisamente no fato de através dela podermos problematizar a
tensão entre a tradição e modernidade no âmbito da afirmação das hegemonias. Esta tensão
apresenta-se muito frequentemente como uma contradição. Entende-se a tradição como uma forma
original (pura) e a modernidade (como uma dissociação construída sobre essa originalidade inicial por
efeitos exteriores com o objectivo de a recentrar num outro tempo, concebido como mais moderno).
Ao conceber a tradição como uma forma seminal sobre a qual o devir vai exercer um processo de
transformação, é muitas vezes visto como uma corrupção da pureza da harmonia original. O ato criativo,
que constrói uma nova visão da tradição na modernidade é assim proposto como uma nova narrativa de
legitimação da hegemonia.

Compreende-se assim que em Moçambique, após da sua experiencia revolucionária, onde as narrativas
se reconstruíam em torno dos novos heróis, a narrativa ficcional se tenha procurado inserir e recentrar
sobre a busca duma ideia de originalidade ficcional, que alicerçada na tradição reconstrói uma narrativa
orientada para as visões então hegemónicas. “Em África, a prática de uma escrita literária aparece como
consequência das novas relações sociais económicas e políticas criadas pela colonização, que tem
profundamente afectado o universo mental do homem africano, para quem a palavra é revestida do
carácter sagrado ligado às suas origens” (AFONSO, 2004, p. 36).

Não estando completamente de acordo com as palavras da autora, quando nas suas conclusões que
aponta a narrativa curta, do conto, como uma busca duma especificidade africana feita com base na
análise das raízes para construir o futuro , e ultrapassando aquilo que nos parece uma falsa oposição
(entre o tradicional e o moderno), na medida em que o conto, como vimos, pode ser também uma
releitura do presente, interessa-nos sobretudo inserir a problemática a utilização do conto tradicional e
moderno na prática museológica.

A perspectiva museológica pode cruzar-se com perspectiva da crítica literária na análise do processo
narrativo. No entanto, com verificamos esta última perspectiva utiliza como mediação o texto escrito,
implicando portanto um ato criativo dum autor, um processo de divulgação e uma apropriação por um
leitor. Esse processo que decorre num tempo diferente do tempo museológico, onde oralidade, tal
como temos vindo a salientar se pode constituir como um processo de interacção no âmbito da
dinâmica do grupo. No processo museológico, não interessa tanto a mediação da escrita (embora não a
exclua necessariamente), nem interessa tanto a autoria do texto (sobretudo se trabalha sobre os contos
que são narrados pela

memória colectiva), mas interessa fundamentalmente entender o processo pelo qual, através da
narração oral, a mensagem e a visão do presente vai sendo actualizada pela dinâmica social.

Na moderna narrativa moçambicana, vários são os autores que usam a técnica narrativa do conto,
para um discurso sobre o presente com uma forte conotação sobre o devir. Nada impede de os utilizar
no âmbito dos processos museológicos.

A oralidade incorporada à narrativa contemporânea de Moçambique

Em Moçambique, a Literatura, até a década de 1990, como explica Chaball (1994, p. 65), embora fosse
despojada da tradição de prosa “moderna”, indicava que esta era uma área em expansão, pois, no
período colonial, a poesia predominava por ser um meio de burlar a censura, enquanto a prosa era
um instrumento perigoso para ser utilizado no contexto da repressão política. Além disso, não havia
tradição de prosa africana em língua portuguesa ou mesmo em línguas africanas; aliás, levando em
consideração a situação da educação da colônia, o número de africanos letrados era pequeno para
alimentar uma literatura de língua portuguesa com raízes na cultura oral.

Todavia esse quadro começa a mudar durante a luta pela libertação do país, com a publicação de
algumas obras significativas, como Godido e outros contos, de João Dias, em 1950; Nós matamos o
cão tinhoso, de Luís Bernardo Honwana, em 1964; e Portagem, de Orlando Mendes, de 1966,
considerado por alguns críticos o primeiro romance moçambicano. Essas narrativas apontam a
colonização opressora, assinalando as circunstâncias em que vivem os colonizados. Porém, no período
situado entre 1975 e 1992, denominado “Consolidação”, por Pires Laranjeira (1995, p. 262), a ficção
moçambicana adquire, definitivamente, autonomia e extensão inquestionáveis. Nesse período
pósindependência, despontam nomes, como o de Mia Couto, no livro Vozes Anoitecidas, em 1983, além
dos autores que compõem a revista Charrua, editada a partir de 1984, como Ungulani Ba Ka Khosa,
Pedro Chissano, Hélder Muteia, inaugurando novos caminhos, novas possibilidades para a criação
literária.

Convém ressaltar que os autores, até aqui, de um modo geral, dão preferência ao conto que,
utilizando-nos dos termos de Ana Mafalda Leite (2003, p. 90), “[...] se adapta e se revela como a
prática narrativa mais adequada, tendo em conta os seus estreitos laços com a oralidade, [...]”.1
Contudo, a partir de 1990, o romance também passa a ser praticado com frequência por Mia Couto,
Paulina Chiziane, Suleiman Cassamo, Lília Momplé, João Paulo Borges Coelho, Ungulani Ba Ka Khosa, 2
entre outros, que recorrem ao registro de modelos orais em suas práticas narrativas, tentando repor
na escrita, como assinalam as palavras de Leite (2003, p. 92), a arte do griot, do contador de histórias,
em que os narradores “[...] vem contar a forma como se conta, na sua terra, encenando as estratégias
narrativas, em simultâneo à narração”. Ou seja, é possível perceber, na ficção contemporânea de
Moçambique, a incorporação de elementos da oralidade pela escrita, o que condiz com uma
estratégia discursiva pós-colonial persistente e causadora de uma hibridez que, por sua vez, servindo-
nos do que diz Mata (2003, p. 67), “[...] é uma das marcas das culturas pós-coloniais [...], resultado de
uma situação de semiose cultural ou de relação dialética entre matrizes civilizacionais diversas [...]”.
Essa relação de confluência de dicotomias pode ser vista, por exemplo, nos romances que compõem o
corpus deste trabalho, em que se evidencia uma tentativa de amalgamar elementos do legado oral com
aspectos que caracterizam a escrita. Sublinhamos, contudo, que a tradição oral não se transforma em
escrita, o que ocorre é a sua transfiguração por meio da introdução de suas particularidades no texto
escrito, como considera Cabaço (2004, p. 68). Sob essa perspectiva, a preocupação da nossa leitura é
tentar vislumbrar, no entrecruzamento entre os procedimentos orais e escritos, as estratégias que
insinuam a presença da representação do contador de histórias, uma vez que, em diferentes
proporções, na produção escrita dos autores em questão, manifesta-se a consciência da importância da
recuperação das nuances da oralidade, nas palavras de Padilha (1995, p. 9), como “fonte emanadora da
própria identidade literária”.

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