CONTRABANDISTA
JOÃO SIMÕES LOPES NETO
Batia nos anos o corpo magro
mas sempre teso do Jango
Jorge, um que foi capitão duma
maloca de contrabandistas
que fez cancha nos banhados
do Ibirocaí.
Esse gaúcho desabotinado
levou a existência inteira a
cruzar os campos da fronteira:
à luz do sol, no desmaiado da
lua, na escuridão das noites, na
cerração das madrugadas…;
ainda que chovesse reiúnos
acolherados ou que ventasse
como por alma de padre, nunca
errou vau, nunca perdeu
atalho, nunca desandou
cruzada!…
Conhecia as querências, pelo
faro: aqui era o cheiro do
açouta-cavalo florescido, lá o
dos trevais, o das guabirobas
rasteiras, do capim-limão; pelo
ouvido: aqui, cancha de
graxains, lá os pastos que
ensurdecem ou estalam no
casco do cavalo; adiante, o
chapechape, noutro ponto, o
areão. Até pelo gosto ele dizia
a parada, porque sabia onde
estavam águas salobres e águas
leves, com sabor de barro ou
sabendo a limo.
Tinha vindo das guerras do
outro tempo; foi um dos que
peleou na batalha de Ituzaingo;
foi do esquadrão do general
José de Abreu e sempre que
falava do Anjo da Vitória ainda
tirava o chapéu, numa braçada
larga, como se cumprimentasse
alguém de muito respeito,
numa distância muito longe.
Foi sempre um gaúcho
quebralhão, e despilchado
sempre, por ser muito de mãos
abertas.
Se numa mesa de primeira
ganhava uma ponchada de
balastracas, reunia a gurizada
da casa, fazia — pi! pi! pi! pi! —
como pra galinhas e semeava
as moedas, rindo-se do
formigueiro que a miuçalha
formava, catando as pratas no
terreiro.
Gostava de sentar um laçaço
num cachorro, mas desses
laçaços de apanhar a paleta à
virilha, e puxado a valer, tanto,
que o bicho que o tomava,
ficando entupido de dor, e
lombeando-se, depois de
disparar um pouco é que
gritava, num — caim! caim!
caim! — de desespero.
Outras vezes dava-lhe para
armar uma jantarola, e sobre
o fim do festo, quando já
estava tudo meio
entropigaitado, puxava por
uma ponta da toalha e lá vinha,
de tirão seco, toda a
traquitanda dos pratos e
copos e garrafas e restos de
comidas e caldas dos doces!…
Depois garganteava a chuspa
e largava as onças pras
unhas do bolicheiro, que
aproveitava o vento e le echaba
cuentas degran capitãn… Era
um pagodista!
Aqui há poucos anos — coitado
— pousei no arranchamento
dele. Casado ou doutro jeito,
estava afamilhado. Não nos
víamos desde muito tempo.
A dona da casa era uma
mulher mocetona ainda, bem
parecida e mui prazenteira;
de filhos, uns três matalotes
já emplumados e uma
mocinha — pro caso, uma moça
—, que era o — santo-
antoninho-onde-te-porei! —
daquela gente toda.
E era mesmo uma formosura; e
prendada, mui habilidosa;
tinha andado na escola e sabia
botar os vestidos esquisitos das
cidadãs da vila. E noiva,
casadeira, já era. E deu o caso,
que quando eu pousei, foi justo
pelas vésperas do casamento;
estavam esperando o noivo e o
resto do enxoval dela.
O noivo chegou no outro dia,
grande alegria; começaram os
aprontamentos, e como me
convidaram com gosto, fiquei
pro festo.
O Jango Jorge saiu na
madrugada seguinte, para ir
buscar o tal enxoval da filha.
Aonde, não sei; parecia-me que
aquilo devia ser feito em casa, à
moda antiga, mas, como cada
um manda no que é seu…
Fiquei verdeando, à espera, e
fui dando um ajutório na
matança dos leitões e no
tiramento dos assados com
couro.
Nesta terra do Rio Grande
sempre se contrabandeou,
desde em antes da tomada das
Missões.
Naqueles tempos o que se fazia
era sem malícia, e mais por
divertir e acoquinar as
guardas do inimigo: uma
partida de guascas montava a
cavalo, entrava na Banda
Oriental e arrebanhava uma
ponta grande de eguariços,
abanava o poncho e vinha a
meia-rédea; apartava-se a
potrada e largava-se o resto; os
de lá faziam conosco a mesma
cousa; depois era com gados,
que se tocava a trote e galope,
abandonando os assoleanos.
Isto se fazia por despique dos
espanhóis e eles se pagavam
desquitando-se do mesmo jeito.
Só se cuidava de negacear as
guardas do Cerro Largo, em
Santa Tecla, no Haedo… O
mais, era várzea!
Depois veio a guerra das
Missões; o governo começou a
dar sesmarias e uns
quantíssimos pesados foram-
se arranchando por essas
campanhas desertas. E cada
um tinha que ser um rei
pequeno… e aguentar-se com as
balas, as lunares e os
chifarotes que tinha em
casa!…Foi o tempo do manda-
quem-pode!… E foi o tempo que
o gaúcho, o seu cavalo e o seu
facão, sozinhos, conquistaram
e defenderam estes pagos!…
Quem governava aqui o
continente era um chefe que se
chamava o capitão general; ele
dava as sesmarias mas não
garantia o pelego dos
sesmeiros…
Vancê tome tenência e vá
vendo como as cousas, por si
mesmas, se explicam. Naquela
era, a pólvora era do el-rei
nosso senhor e só por sua
licença é que algum particular
graúdo podia ter em casa um
polvarim… Também só na vila
de Porto Alegre é que havia
baralhos de jogar, que eram
feitos só na fábrica do rei
nosso senhor, e havia fiscal,
sim, senhor, das cartas de
jogar, e ninguém podia
comprar senão dessas!
Por esses tempos antigos
também o tal rei nosso senhor
mandou botar pra fora os
ourives da vila do Rio Grande
e acabar com os lavrantes e
prendistas dos outros lugares
desta terra.
Agora imagine vancê se a gente
lá de dentro podia andar com
tantas etiquetas e pedindo
louvado pra se defender, pra
se divertir e pra luxar!… O tal
rei nosso senhor não se
enxergava, mesmo!… E logo
com quem!… Com a gauchada!…
Vai então, os estancieiros iam
em pessoa ou mandavam ao
outro lado, nos espanhóis,
buscar pólvora e balas, pras
pederneiras, cartas de jogo e
prendas de ouro pras mulheres
e preparos de prata pros
arreios…; e ninguém pagava
dízimos dessas cousas.
Às vezes lá voava pelos ares
um cargueiro, com
cangalhas e tudo, numa
explosão de pólvora; doutras
uma partilha de milicianos
saía de atravessado e tomava
conta de tudo, a couce d’arma:
isto foi ensinando a
escaramuçar com os golas-de-
couro.
Nesse serviço foram-se
aficionando alguns gaúchos:
recebiam as encomendas e pra
aproveitar a monção e não ir
com os cargueiros debalde,
levavam baeta, que vinha do
reino, e fumo em corda, que
vinha da Bahia, e algum
porrão de canha. E faziam
trocas, de elas por elas, quase.
Os paisanos das duas terras
brigavam, mas os mercadores
sempre se entendiam…
Isto veio mais ou menos assim
até a guerra dos Farrapos;
depois vieram as califórnias do
Chico Pedro; depois a guerra do
Rosas.
Aí inundou-se a fronteira da
província de espanhóis e
gringos emigrados. A cousa
então mudou de figura. A
estrangeirada era mitrada, na
regra, e foi quem ensinou a
gente de cá a mergulhar e ficar
de cabeça enxuta…; entrou nos
homens a sedução de ganhar
barato: bastava ser campeiro
e destorcido. Depois, andava-se
empandilhado, bem armado;
podia-se às vezes dar um
vareio nos milicos, ajustar
contas com algum devedor de
desaforos, aporrear algum
subdelegado abelhudo…
Não se lidava com papéis nem
contas de cousas: era só
levantar os volumes,
encangalhar, tocar e
entregar!… Quanta gauchagem
leviana aparecia, encostava-se.
Rompeu a guerra do Paraguai.
O dinheiro do Brasil ficou muito
caro: uma onça de ouro, que
corria por trinta e dois, chegou
a valer quarenta e seis mil-
réis!… Imagine o que a
estrangeirada bolou nas
contas!…
Começou-se a cargueirear de
um tudo: panos, águas de
cheiro, armas, minigâncias,
remédios, o diabo a quatro!…
Era só pedir por boca!
Apareceram também os
mascates de campanha, com
baús encangalhados e
canastras, que passavam pra
lá vazios e voltavam cheios,
desovar aqui…
Polícia pouca, fronteira aberta,
direitos de levar couro e cabelo
e nas coletarias umas
papeladas cheias de
benzeduras e rabioscas…
Ora… ora!… Passar bem,
paisano!…
A semente grelou e está a
árvore ramalhuda, que vancê
sabe, do contrabando de hoje.
O Jango Jorge foi maioral
nesses estropícios. Desde
moço. Até a hora da morte.
Eu vi.
Como disse, na madrugada
véspera do casamento o Jango
Jorge saiu para ir buscar o
enxoval da filha. Passou o dia;
passou a noite.
No outro dia, que era o do
casamento, até de tarde, nada.
Havia na casa uma gentama
convidada; da vila, vizinhos, os
padrinhos, autoridades,
moçada. Havia de se dançar
três dias!… Corria o amargo e
copinhos de licor de butiá.
Roncavam cordeonas no fogão,
violas na ramada, uma caixa de
música na sala. Quase ao entrar
do sol a mesa estava posta,
vergando ao peso dos pratos
enfeitados.
A dona da casa, por certo
traquejada nessas bolandinas
do marido, estava sossegada, ao
menos ao parecer.
Às vezes mandava um dos filhos
ver se o pai aparecia, na volta
da estrada, encoberta por uma
restinga fechada de arvoredo.
Surgiu dum quarto o noivo, todo
no trinque, de colarinho duro e
casaco de rabo. Houve
caçoadas, ditérios, elogios.
Só faltava a noiva; mas essa não
podia aparecer, por falta do seu
vestido branco, dos seus
sapatos brancos, do seu véu
branco, das suas flores de
laranjeira, que o pai fora buscar
e ainda não trouxera. As moças
riam-se; as senhoras velhas
cochichavam.
Entardeceu.
Nisto correu voz que a noiva
estava chorando: fizemos uma
algazarra e ela — tão boazinha!
— veio à porta do quarto, bem
penteada, ainda num vestidinho
de chita de andar em casa, e
pôs-se a rir pra nós, pra
mostrar que estava contente.
A rir, sim, rindo na boca, mas
também a chorar lágrimas
grandes, que rolavam devagar
nos olhos pestanudos…
E rindo e chorando estava, sem
saber por quê… sem saber por
que, rindo e chorando, quando
alguém gritou do terreiro: — Aí
vem o Jango Jorge, com mais
gente!…
Foi um vozerio geral; a moça
porém ficou, como estava, no
quadro da porta, rindo e
chorando, cada vez menos sem
saber por quê… pois o pai estava
chegando e o seu vestido
branco, o seu véu, as suas flores
de noiva… Era já fusco-fusco.
Pegaram a acender as luzes.
E nesse mesmo tempo parava
no terreiro a comitiva; mas num
silêncio, tudo. E o mesmo
silêncio foi fechando todas as
bocas e abrindo todos os olhos.
Então vimos os da comitiva
descerem de um cavalo o corpo
entregue de um homem, ainda
de pala enfiado…
Ninguém perguntou nada,
ninguém informou de nada;
todos entenderam tudo…; que a
festa estava acabada e a tristeza
começada…
Levou-se o corpo pra sala da
mesa, para o sofá enfeitado, que
ia ser o trono dos noivos. Então
um dos chegados disse:
— A guarda nos deu em cima…
tomou os cargueiros… E
mataram o capitão, porque ele
avançou sozinho pra mula
ponteira e suspendeu um
pacote que vinha solto.., e ainda
o amarrou no corpo… Aí foi que
o crivaram de balas… parado…
Os ordinários!… Tivemos que
brigar, pra tomar o corpo!
A sia-dona mãe da noiva
levantou o balandrau do Jango
Jorge e desamarrou o embrulho;
abriu-o.
Era o vestido branco da filha, os
sapatos brancos, o véu branco,
as flores de laranjeira…
Tudo numa plastada de
sangue… tudo manchado de
vermelho, toda a alvura
daquelas cousas bonitas como
que bordada de cobrado, num
padrão esquisito, de feitios
estrambólicos… como flores de
cardo solferim esmagadas a
casco de bagual!…
Então rompeu o choro na casa
toda.