0% acharam este documento útil (0 voto)
389 visualizações383 páginas

1771266235

Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
Formatos disponíveis
Baixe no formato PDF, TXT ou leia on-line no Scribd
0% acharam este documento útil (0 voto)
389 visualizações383 páginas

1771266235

Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
Formatos disponíveis
Baixe no formato PDF, TXT ou leia on-line no Scribd
Você está na página 1/ 383

VOZ DO CORAÇÃO

By Andréa Jamaro
Copyright:2024

Todos os direitos reservados de propriedade desta edição e obra são


da autora. É proibida a cópia ou distribuição total ou de partes desta obra
sem o consentimento da autora.
A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na lei n°.
9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.
A autora não autoriza a cópia em PDF e se reserva no direito de
agir legalmente contra o compartilhamento ilegal.

Créditos:
Título: Voz do Coração
Autora: Andréa Jamaro
Capa: Lidiane Soares (Liah)
Diagramação: Andréa Jamaro

Copyright©2024 Andréa Jamaro

Índice
Nota do Autor
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Epílogo
NOTA DA AUTORA

A história de Leonardo e Mariana chegou para mim de forma


repentina e inesperada, numa tarde em que navegava pela internet
aleatoriamente e me deparei com uma reportagem sobre transplante. A
matéria falava sobre memória celular. Alguns especialistas montaram uma
teoria com base na observação de alguns comportamentos de pessoas
transplantadas.
A teoria da memória celular pressupõe que as células do organismo
humano detêm o poder da memória, e são, portanto, capazes de armazenar
costumes, valores e inclinações, tanto quanto os neurônios. Desta forma,
qualquer órgão transplantado de uma pessoa para outra pode levar consigo
estas informações e incorporá-las ao modo de ser do receptor desta estrutura
celular.
Há pesquisas e testemunhos que apontam a incidência destes eventos
em pacientes transplantados. Apesar de existirem relatos interessantes de
pessoas nessas condições, estes eventos não são, porém, conclusivos o
suficiente para propiciar uma evidência científica irrefutável nos meios
acadêmicos. Assim, nada é comprovado e aprovado pela ciência. Pelo
menos, não ainda.
Porém, como na ficção tudo é possível, foi assim que a história deste
casal surgiu, bem ali, na minha frente, enquanto pesquisava sobre o assunto.
Espero que gostem!
Lembrando que esse é um trabalho de ficção. Todos os nomes,
personagens, alguns lugares, casos envolvidos, eventos e incidentes, são
frutos da minha imaginação. Qualquer semelhança com pessoas vivas ou
mortas, ou eventos reais, é apenas espelho da realidade ou mera
coincidência.

Aviso: O livro contém cenas inadequadas para menores de 18 anos.


Também contém gatilhos sobre saúde e perdas, que podem incomodar
pessoas sensíveis.

Playlist Spotify:
Algumas músicas embalam nossa história. Clique no link abaixo
para ouvi-las:
https://open.spotify.com/playlist/0RND5h8N2RBU4pxuH6KMTq?
si=1bf32b4f6f6b4699
PRÓLOGO

Leonardo Moretti

De pé, com os olhos fixos na lápide de mármore do túmulo de


Daniela, tentava organizar meus pensamentos. Fazia muito tempo que eu
não a visitava. Parado ali, imerso em minha tristeza, já tinha chorado como
um condenado toda minha cota de lágrimas. Pedi perdão a ela por várias
coisas. Principalmente por estar envolvido com outra mulher e não ter
cumprido minha promessa. Ainda mais uma mulher que não era digna de
ser comparada a ela, minha Doce Daniela.
Estava consciente dos meus erros, mas reconhecer isso não anulava o
fato de que eu tinha sentimentos por outra. Eu poderia usar a desculpa de
estar me sentindo assim por achar que Mariana carregava o coração da
minha falecida esposa, mas não era verdade. Eu já a queria antes de saber
disso. Essa era a verdade: Eu a amava. Amava Mariana. Amava aquela
mulher que tinha acabado de me jogar no limbo.
CAPÍTULO 1

Mariana Barros

O som do despertador soou estridente pelo quarto, em sua terceira


tentativa de me acordar. Despertei assustada, como sempre, pois o terceiro
toque era insuportável.
— Desliga essa merda, Mari! — reclamou Diego, cobrindo a cabeça
com um travesseiro.
Resmunguei alguma coisa e ainda sonolenta, tateei a mão pela
mesinha ao meu lado até alcançar o celular. Verifiquei o horário e dei um
pulo.
— Meu Deus, estou atrasada! — exclamei.
Sacudi meu namorado, o apressando. Bem, ele não era realmente um
namorado. Era uma espécie de namoro sem compromisso. Estava mais para
um ficante. Nos encontrávamos esporadicamente. Era só sexo.
— Acorda, Diego! — exclamei.
Ele resmungou e virou-se para o lado.
— Acorda, estamos atrasados! — insisti.
Diego trabalhava na mesma agência que eu, mas em outro setor. Ele
era fotógrafo e fazia muitos trabalhos externos, enquanto eu me desdobrava
dentro da SideBySide/SP liderando um grande time de profissionais para
desempenhar as inúmeras atividades e tarefas exigidas por lá. Era uma
loucura a minha vida. Não era fácil dar conta de tanta coisa, mas aquilo era
o meu mundo, era o que eu amava fazer.
Já estava terminando de me vestir, enquanto Diego seguia derramado
na cama.
— Diego! Acorda! — gritei, jogando uma almofada nele.
— Ah, qual é Mari? A agência não vai sair do lugar!
Estávamos em seu apartamento dessa vez. Decidimos de última hora.
Não gostava desses encontros no meio da semana, pois atrapalhavam minha
rotina, mas estava precisando relaxar um pouco e Diego sabia aliviar minha
tensão com maestria. Apesar de ser bem mais novo que eu, nos
entendíamos muito bem na cama. Começamos nosso envolvimento há
pouco mais de um ano. Foi num dia em que chegou em minha sala levando
o material de uma campanha.
Eu sempre o via por ali, mas nunca tinha reparado o quanto era
bonito. Devia ter mais de 1,80 de altura. Moreno, olhos castanhos intensos.
Cabelos escuros num corte baixo, que deixava os fios espetados para cima.
O sorriso emoldurado por duas covinhas que eram notadas, mesmo cobertas
pela barba bem aparada. As meninas se derretiam por ele, mas eram lerdas,
eu não. Sempre fui objetiva, decidida. Antes que ele deixasse a sala, girei
minha cadeira para fitá-lo e o varri com os olhos, sem nenhuma discrição.
Ele reparou no meu gesto, pigarreou e perguntou:
— Quer mais alguma coisa, Dona Mariana?
Sorri levemente, só com os lábios.
— Só Mariana, por favor! E sim... Quero você. — Falei seca e direta,
sem tirar os olhos dele, como se dissesse que queria um café, mas com uma
sensualidade dosada — Está livre essa noite?
Ele me olhou surpreso, assustado, confuso. Parecia tentar entender se
eu estava dando em cima dele ou o queria para algum trabalho extra.
— Sim, e-eu... j-já terminei o meu... meu expediente. — gaguejou.
— Já estou livre...
— Ótimo! — levantei-me decidida, pegando minha bolsa. — Vamos
para minha casa.
Ele ficou parado me olhando com a boca semiaberta, como se fosse
dizer algo. Eu o olhei de volta esperando o que ele tinha a dizer.
— O que a senhora quer comigo? — quis saber.
Sorri, meneando a cabeça e falei calmamente:
— Já disse. Quero você. E não precisa me chamar de senhora!
Ele franziu a testa ainda sem entender.
— Está dizendo que... me quer... Como assim?
— De preferência na minha cama, mas o sofá é bem confortável
também.
Ele piscou algumas vezes e notei que se enrijeceu. Um pensamento
passou pela minha mente e hesitei.
— Você não é gay não, é? — perguntei.
— Não, claro que não! — respondeu prontamente e até pareceu
ofendido. — Eu só não esperava por isso... Eu...
— Olha, garotão... — me aproximei dele — Como é mesmo o seu
nome?
— Diego.
— Diego! — repeti — A vida é muito curta pra gente ficar de
enrolação.
Avancei sobre ele e o beijei, o pegando de surpresa. Ele passou os
braços em volta da minha cintura me puxando para si e correspondeu ao
beijo, me devorando com sua boca. O garoto tinha pegada! Senti o quanto
estava excitado e gostei. Assim... tudo começou.
Agora estávamos nesse relacionamento enrolado. Queria deixá-lo
livre totalmente, mas toda vez que tentávamos, sempre tínhamos uma
recaída. Ele era gostoso demais e eu adorava sua companhia. Diego era
engraçado, me fazia rir o tempo todo, me divertia e ser desejada por um
cara mais novo aumentava minha autoestima. Ele dizia que eu era linda, me
enchia de elogios, me mimava, me adorava. Às vezes, eu tinha medo de que
não se desapegasse de mim. Me sentia atrapalhando sua vida, o impedindo
de viver outras coisas, até chegar o momento de ter um relacionamento
sério. Coisa que eu não queria.
Eu já começava a notar alguns fios brancos camuflados nos meus
cabelos loiros e, apesar de ter uma genética favorável, por me cuidar, ser
magra e tentar levar uma vida saudável, sabia que o tempo estava passando
rápido demais. Mesmo assim, eu estremecia só em pensar em casamento...
Cuidar de marido, filhos... Que horror! Nunca me vi fazendo isso... Estava
comprometida comigo mesma. Me sentia inteira, completa. Não entendia
essas mulheres que diziam amar a escravidão de um casamento! Como
alguém se submete à isso? Tenho certeza de que me sentiria sufocada.
Quanto ao Diego, sei que ele teria que seguir sua vida, então, não lhe
dava nenhuma esperança. Só o mantinha ao meu alcance para momentos
como os que vivíamos. Eu gostava dele, mas estava longe de me apaixonar
por quem quer que fosse.
— Volta pra cama, Mari! — falou preguiçosamente.
— Não dá! Tenho uma reunião importante essa manhã! Vamos logo,
você sabe que preciso de uma carona, a gente veio no seu carro, lembra?
Ele levantou-se devagar, andando até mim só de cuecas, com um
sorriso safado nos lábios.
— Calma! Relaxa, meu amor! Que tal a gente se divertir só mais um
pouquinho? — propôs, me abraçando pela cintura.
Eu revirei os olhos e espalmei seu peito o afastando de mim.
— Já era pra estarmos na agência, Diego!
Ele suspirou desanimado e caminhou até o banheiro.
— Você não vai nem tomar o café da manhã? — perguntou.
— Como qualquer coisa por lá. — respondi, catando minhas coisas.
Já tinha me vestido com uma saia lápis azul claro, com blazer da
mesma cor e uma blusa de seda branca. Sempre mantinha algumas roupas
minhas na casa dele para essas ocasiões, a fim de não chegar à empresa com
a mesma roupa do dia anterior. Não que o nosso envolvimento fosse
segredo, mas não gostava de especulações sobre minha vida pessoal.
— Isso não está certo, Mariana! — falou com a voz embolada por
estar escovando os dentes.
— O que não está certo? — eu quis saber.
Diego enxaguou a boca e respondeu:
— Você precisa se alimentar direito ou vai adoecer!
Revirei os olhos não dando importância.
— Eu estou ótima!
— Ótima? Você está se matando... Vive estressada, sobrecarregada.
Só pensa em trabalho, trabalho, trabalho... Precisa frear esse ritmo...
Olhei para ele indignada.
— Como assim? Nós não passamos a noite toda relaxando, Diego?
Comemos pipoca, assistimos aquele filme... transamos...
— Qual é, Mari? Você ficou o tempo todo olhando o celular na hora
do filme e estava com a mente no trabalho na maior parte do tempo.
— Isso não é verdade...
— Não? Você me perguntou se as fotos da campanha da Bonnie
estavam prontas, enquanto gozava, Mari! — e imitou: — “Aiii, Diego!
Assim, issooo! A campanha da Bonnie tá prontaaaa, né? Ahhhhh!
Hummm!” Eu até achei sexy!
Ri do jeito dele, mas tive que reconhecer, eu estava mesmo muito
estressada. Mas assim que aquele tsunami de campanhas passasse, tiraria
um tempo para mim.
— Tá, você tem razão. — concordei — mas nesse momento, não
posso ser diferente. Muita coisa depende de mim naquela empresa. Victor
depositou sua confiança em mim e não posso decepcioná-lo.
— E quando ele volta?
— Não sei. Ele precisa desse tempo com a família depois de tudo o
que aconteceu. Mas acho que em três meses estará conosco.
Diego suspirou.
— Ele faz muita falta.
— Sim — concordei.
— Aprendi muito com ele. Quando cheguei à agência, não sabia nada
sobre fotografia. Ele quem me incentivou a me especializar nisso. — disse,
enquanto acabava de se arrumar. — Espero que superem essa tragédia.
Suspirei, pensativa.
— Também espero...
Diego se aproximou e me abraçou pela cintura.
— Essa cor realça seus olhos verdes. — observou, ajeitando a gola
do meu blazer.
Eu o olhei com ternura e deitei minha cabeça em seu peito. Amava a
forma como ele parecia sempre se preocupar comigo.
— Sou louco por você, Mari! — confessou.
Ergui a cabeça para olhar em seus olhos, para em seguida ele beijar
meus lábios suavemente. Demorou-se um pouco e se afastou do beijo para
dizer:
— Gosto desse nosso relacionamento confuso, — emendou — mas...
— Sem “mas”, Diego! Nós já conversamos sobre isso. — me
desvencilhei dele e fui até minha bolsa — Não quero nada sério, não quero
namorar, me casar...
— Mas você não pensa em ter uma família, filhos...?
Arregalei os olhos.
— Deus me livre! Nunca! — exclamei — Eu posso até me casar, mas
ter filhos jamais!
— Por quê?
Sacudi os ombros.
— Simplesmente não nasci para isso... Ser mãe. Compartilhar a vida
com um homem legal seria bom, desde que ele se adequasse ao meu estilo
de vida, mas...
— Então, podemos...
— Não, Diego! Eu jamais me casaria com você! Você é um garotão
de vinte e três anos, eu já estou com trinta e três. Dez anos de diferença. O
que temos é só diversão, não vai passar disso.
Ele suspirou desanimado e desviou o olhar. Não era a primeira vez
que tínhamos essa conversa. Eu suspeitava que ele estava apaixonado por
mim, mas tinha certeza de que aquilo iria passar. Eu não sei o que havia de
errado comigo. Simplesmente não conseguia me apaixonar por ninguém.
Não acreditava nessas bobagens do amor, coisas românticas. Para mim, isso
tudo era comércio. Só uma invenção do capitalismo para os espertos, como
eu, ganharem dinheiro.
Diego voltou o olhar para mim, como se tentasse ler meus
pensamentos. Para amenizar as coisas me aproximei dele novamente, com
sensualidade.
— Acho que ainda temos uns vinte minutos! — falei, enquanto
desabotoava a blusa revelando meu sutiã branco, meia taça.
Ele logo reagiu e ficou excitado, me tomando para si. Em poucos
minutos ele estava metendo em mim do jeito que eu gostava. Escorados na
parede do closet. Não nos despimos totalmente, apenas o suficiente para
uma rapidinha.
— Gostosa! — disse ele mordiscando meu queixo.
— Ahhh, Diego... Mais rápido, por favor! — supliquei.
Ele acelerou o ritmo das estocadas até me fazer gozar. Foi muito
bom, mas naquele frenesi todo, senti uma dor no peito. Fiquei ofegante
além do normal.
— Está tudo bem? — ele perguntou, parando os movimentos, ao ver
a minha reação estranha.
— Está sim... — respondi sorrindo, tentando não transparecer meu
mal-estar — É que... Foi bem intenso!
Ele sorriu e voltou a se mexer até finalizar e encher o preservativo.
Me olhou com ternura e percebi que ainda estava inconformado com a
minha forma de pensar.
— Isso não precisa acabar, Mari! Casa comigo! — disse, repousando
sua testa na minha. — Eu te amo!
Aquela declaração me pegou de surpresa. Essa coisa de romance de
novo! Por que as pessoas têm que ser assim? Respirei fundo e fechei os
olhos, enquanto ele ainda brincava dentro de mim com o pênis semiereto.
— Diego... — sussurrei — Eu...
— Sei que você não sente o mesmo, tudo bem! — Ele foi logo
dizendo — Também sei que acha que sou um garotão... Que não sou digno
ou maduro o suficiente pra estar ao seu lado, mas eu juro que sei bem o que
quero e... É você, Mariana! Isso não vai mudar!
Olhei para ele com ternura e inclinei a cabeça para o lado. Abri a
boca para começar a falar, mas ele a fechou com um beijo ardente, por
medo de que eu dissesse algo que poderia estragar aquele momento. Eu
correspondi e apreciei o beijo. Resolvi não dizer mais nada. Não queria
magoá-lo.
— Vamos, estamos atrasados! — foi só o que eu falei.
Ele respirou fundo e se afastou devagar. Nos recompomos e ele falou:
— À noite a gente continua!
Mordi o lábio, animada com a promessa.
— Tudo bem, mas vai ter que ser em minha casa, ok? — exigi.
— Tudo bem! — ele respondeu com uma piscadela.
Meu envolvimento com Diego estava mais longo do que previsto e
ambos sabíamos que aquilo não ia dar em nada, apesar da insistência dele.
Não podia prendê-lo ao meu lado, se não queria nada sério. Eu sabia que ele
não estava pronto, como eu também não estava. Ele era jovem e logo se
amarraria em outra pessoa. Alguém que tivesse os mesmos ideais. Essa
coisa de família, filhos... Chego a ter arrepios só em pensar! Quanto a mim,
não me faltavam homens interessados na bela diretora criativa da
SideBySide/SP. Talvez optasse por dividir minha vida com alguém, mas não
seria o Diego. Por enquanto, era só diversão. Essa era a minha vida.
CAPÍTULO 2

Mariana Barros

A reunião foi um sucesso. Fechamos uma campanha maravilhosa


para o outono com uma famosa marca de cosméticos, o contrato duraria
dois anos. Saímos da sala empolgados para começar as tarefas que
precisariam ser cumpridas para a execução de todos os passos até tudo estar
pronto. Os próximos dias seriam uma correria.
Mergulhei no trabalho, como sempre, levando muita coisa para fazer
em casa. Passaria o fim de semana inteiro imersa naquilo. Mal dormi ou
comi direito. Sabia que isso não era bom, mas não conseguia ser diferente.
Era uma viciada em trabalho. Também não podia ser de outra forma. A
responsabilidade de estar à frente de uma empresa tão importante não me
deixava vacilar.
Além do mais, Victor depositou sua confiança em mim, enquanto ele
e a esposa tiravam um tempo para se reerguerem emocionalmente.
Passavam pelo luto de ter perdido a única filha para um câncer agressivo.
Sua esposa Helena estava arrasada e precisava dele naquele momento tão
delicado.
Além de todo estresse que passaram com tratamentos e terapias na
esperança de que Sophia fosse curada, agora vinha a sensação de
impotência. Só restavam o vazio, a tristeza, a dor... a saudade. O luto. Não é
fácil superar algo assim. Estavam reclusos em algum lugar na Europa em
busca de uma ajuda espiritual.
Na segunda-feira eu estava preparadíssima para a execução das
atividades, com várias ideias pipocando em minha cabeça. Toda a equipe
estava animada, mas eu não me sentia muito bem fisicamente. Estava
zonza, fraca e sem concentração, coisa que nunca acontecia. Estávamos na
sala de reunião, apenas em quatro pessoas quando meus sintomas pioraram.
— Mari, você está bem? — perguntou Eleanor, nossa coordenadora
da equipe de criação. — Está pálida!
— Sim, estou bem... — falei apertando os olhos, com a respiração
curta — Só preciso de um café.
Tentei me levantar, mas me senti tonta. Junto com a tontura, uma dor
no peito.
— Mari! — Eleanor gritou.
A dor no peito aumentou e tudo girou. A última coisa de que me
lembro foi alguém gritando e pedindo para chamarem um médico.
— Mari! Mariana!
Foi assim que meu martírio começou. Acordei cinco dias depois
numa cama de UTI, sem saber onde estava ou o que havia acontecido, cheia
de tubos e acessos. Quis gritar, mas a garganta parecia colada. Algo muito
sério estava acontecendo comigo. Gemi, desesperada. Uma enfermeira veio
em meu socorro.
— Srta. Mariana! Srta. Mariana! Fique calma!
Olhei em volta, apenas girando os olhos.
— Onde estou? — perguntei. A voz saiu fraca.
— Você está hospitalizada. Estamos cuidando de você...
Olhei para todos aqueles tubos e quase surtei.
— O que aconteceu comigo? — as lágrimas já invadiam meus olhos.
Sabia que algo grave tinha acontecido — Por que estou assim?
A enfermeira se posicionou ao meu lado verificando os aparelhos,
que mostravam alguma alteração devido à minha agitação e, enquanto fazia
o seu trabalho, me passava as informações de forma profissional e me pedia
calma.
— Você passou por uma cirurgia de emergência.
Estremeci.
— Cirurgia? — perguntei.
— Sim, mas não se preocupe, o pior já passou... Vai ficar tudo bem!
Estava me sentindo como se estivesse dentro de um sonho. Pior, um
pesadelo. Era tudo muito estranho. Parecia que há poucos segundos estava
na sala de reuniões da empresa e agora estava ali naquela cama de hospital,
completamente desnorteada. Meus pensamentos estavam embaralhados.
Cirurgia? Mas o que havia acontecido comigo?
Há uns meses vinha me sentindo muito cansada, mas achei que era
meu corpo reclamando por um descanso apenas, afinal, meu ritmo de
trabalho estava muito intenso, mas daí a chegar ao ponto de ter que passar
por um a cirurgia de emergência? Não, não! Não podia acreditar que o meu
maior pesadelo estava se tornando real.
— Quero sair daqui! — falei com certo pavor.
— Fique calma, moça! Você está em observação e o seu tratamento
ainda está começando. Vai ter que ficar alguns dias aqui, antes de receber
alta.
— Eu não posso ficar aqui! Preciso trabalhar...
A enfermeira olhou para mim com a testa franzida.
— Trabalhar? Seu trabalho terá que ficar para depois. O Dr. Moreira
vai conversar com você e te explicar tudo.
Mais tarde o médico foi conversar comigo. Ele era um senhor de
sessenta anos, cabelo quase todo branco, pele clara, olhos castanhos e
pesados pelo cansaço da profissão tão exigente. Tinha mesmo cara de
médico. E descobri que meu estado era pior do que eu pensava... Eu estava
muito doente. Tinha insuficiência cardíaca.
O Dr. Moreira cuida de mim há quatro anos. E, sim, eu já sabia desse
problema, mas pensei que estivesse controlado. Quando criança já dava
sinais de que futuramente meu coração me traria transtornos. Meus pais
fizeram de tudo para que eu tivesse uma infância normal e eu me sentia
normal, mas havia restrições, remédios e um monte de coisas que me
limitariam e me fariam ser uma pessoa frustrada. Porém, eu dei a volta por
cima. Não aceitei ser menos do que eu tanto almejava ser e me tornei tudo o
que sou hoje.
Eu sempre tomei e ainda tomo alguns medicamentos específicos para
o meu caso. Porém, há cinco anos, durante uma cirurgia estética, o
anestesista me alertou e me orientou a procurar um cardiologista urgente.
Eu fui negligente e acabei deixando isso para segundo plano. Fui
empurrando com a barriga me mantendo saudável como pude, seguindo
uma boa dieta, exercícios e, claro, meus antigos remédios, até que tive uma
crise e esta me obrigou a pedir socorro e foi assim que conheci o Dr.
Moreira.
— Sinto muito, Mariana, mas você vai precisar de um transplante. —
ele me informou.
Nem acreditei no que ouvi.
— O quê? Transplante?
Ele me olhou com uma ruga na testa.
— Você tem miocardiopatia dilatada. É uma condição que não afeta a
estrutura do coração propriamente dita, mas está afetando o funcionamento
do ventrículo esquerdo. Isso pode ser fatal. Você vai precisar entrar na fila
para um transplante. Até lá, receberá os cuidados necessários para
conseguir sobreviver até que o mesmo seja feito.
O encarei com olhos arregalados.
— Como assim? — perguntei assustada — Que história é essa de
transplante, doutor? E o senhor fala assim... Como se me dissesse que eu
preciso comprar um sapato novo?
Ele meneou a cabeça.
— Não tenho por que te enganar, querida! Você sempre soube que
essa hora poderia chegar... Já fizemos tudo o que havia ao nosso alcance e
agora essa é a única opção. Se quiser ter qualidade de vida, esse é o
caminho.
Olhei para o médico sem saber o que dizer. Me sentia como se um
muro estivesse desabando sobre mim. Essa era minha nova realidade. Havia
feito um cateterismo, estava com um Stent e teria que entrar para a fila de
espera para receber um coração. Fiquei em observação e pelo menos até o
momento, tudo estava sob controle. Dois dias depois saí da UTI e recebi as
visitas de alguns colegas do trabalho, que levaram flores e mimos para
mim.
Todos tentavam me animar, mas sabia que meu caso era muito
complicado. Diego foi o que ficou mais tempo comigo. Estava calado,
pensativo e mais assustado do que eu. Percebi que aquilo estava sendo
muito difícil para ele. Era sua chance de me provar se estava mesmo
disposto a lutar por mim, já que confessou me amar.
— Você vai ficar bem, Mari! — Sua fala era meio hesitante. Ele
parecia estar com medo ou se contendo para não chorar.
— Por favor, Diego! — falei com voz fraca — É melhor você ir.
— Por quê?
— Isso está sendo muito difícil para nós dois... E não quero que me
veja assim.
— Assim como?
— Acabada, destruída!
Ele me olhou com pena.
— Você só está doente... É normal ficar debilitada.
— Não, não é normal nada disso! — esbravejei. Estava cansada da
forma como todos me tratavam, como se fosse um cristal prestes a se
quebrar. Cobri o rosto com o lençol e gritei: — Sai logo daqui! Some da
minha vida!
Ele ficou parado, sem reação. Retirei o lençol lentamente para
conferir se ele ainda estava lá. Ele seguia parado com as mãos nos bolsos,
cerrou os lábios e assentiu, concordando.
— Tudo bem, Mari. Eu vou, então. — suspirou e desviou o olhar,
percebi que estava magoado, mas não reclamou — Se precisar de alguma
coisa é só chamar.
Me deu as costas e saiu apressadamente. Um nó se fez em minha
garganta. Quis chamá-lo de volta, mas hesitei. Esperava que ele insistisse
em ficar, mas não. Ele simplesmente me deu as costas e se foi. Foi melhor
assim. Talvez de agora em diante ele entendesse que não tínhamos futuro.
Pude ver medo em seu olhar e constatei que ele não era a pessoa certa para
me ajudar a passar por aquilo. Mas, podia compreendê-lo. Eu me tornaria
um fardo para ele.
Nossas noites de paixão seriam trocadas por noites de crises intensas,
tonturas e náuseas. Seria obrigado a conviver com uma moribunda. Meus
olhos se encheram de lágrimas e pela primeira vez chorei pela minha
situação. A primeira de muitas.
CAPÍTULO 3

Mariana Barros

Depois de ficar quase um mês internada, voltei para casa. Fui me


reabilitando aos poucos. Passei a dividir meu tempo entre internações e uma
vida praticamente reclusa. Continuei trabalhando, mas 80% do trabalho em
home office. Não pude mais ficar à frente da equipe. Victor teve que
adiantar seu retorno para assumir a liderança e foi muito compreensivo com
toda a situação. Ele era meu primo, filho de um tio muito querido, irmão do
meu pai.
Meu pai e meu tio não eram mais vivos, infelizmente. Essa coisa de
problemas cardíacos era genética. Victor era bem mais velho que eu, já
tinha cinquenta anos, mas estava no auge de sua beleza masculina. Era
grisalho no estilo George Clooney. Não era só bonito externamente, era
lindo de alma. Me orgulhava muito dele. Era uma honra poder trabalhar
com ele e fiquei muito mal por não poder cumprir o meu papel. Estava me
lamentando com ele ao telefone e ele tentava me animar.
— Mari, para com isso! Não se preocupe com a empresa agora, cuide
de você!
— Acho melhor me desligar da SidebySide, não quero receber com
baixa produtividade!
— Nada disso! Você é uma das donas da empresa, esqueceu?
— Sim, mas ninguém sabe disso, todos pensam que sou apenas uma
funcionária...
— Porque você quis assim. Não sei porque esconder isso!
— Porque gosto de ser vista como uma igual. Detesto bajuladores! É
uma porcentagem pequena, são só 20%, você pode comprar minha parte
facilmente, não quero ser um estorvo.
Ele riu do outro lado.
— Desse jeito você me deixa mal, eu fiquei afastado por meses!
Devo pensar que sou um estorvo também?
— É diferente, Victor!
— Exatamente, o seu caso é pior. Você já fez muito pela empresa.
Não se preocupe, tome o tempo que precisar.
Respirei fundo e concordei com ele. Eu estava arrasada por não poder
fazer o que tanto amava, o trabalho pelo qual tanto estudei e me dediquei.
Aquela agência era minha vida.
— Tudo bem Victor, mas precisando de mim estou aqui. Pode me
ligar a qualquer hora!
— Sim, não vou me esquecer de você.

...

Nos primeiros dias em casa, tive que ficar de repouso. O doutor


Moreira designou uma enfermeira para cuidar de mim, mas estava me
sentindo muito só. Liguei para Diego. Em se tratando de afeto, ele era a
pessoa mais próxima que eu tinha, mas eu estava com muito medo de uma
rejeição da parte dele. As coisas estavam estranhas entre nós. Desde nossa
última conversa no hospital, não nos falamos mais, mesmo assim, liguei.
— Oi, Mari! — Ele atendeu prontamente.
Já passava das nove da noite. A sensação de o estar incomodando
estava me deixando sem graça, ainda mais depois da forma como o tratei.
— Oi... Diego! — falei hesitante.
Fiquei um tempo sem saber o que dizer.
— Você está bem? — ele perguntou.
— S-sim...
Ouvi sua respiração, revelando sua ansiedade.
— Quer que eu vá ficar com você? — ele perguntou, adiantando
meu pedido.
Era tudo o que eu queria. Estava precisando de um colo, mas falei:
— Não quero te incomodar...
— Não é incômodo.
— Você quem sabe.
— Eu vou. Em quinze minutos eu estou aí.
Respirei aliviada e me arrumei. Passei um pouco de maquiagem para
disfarçar a palidez e coloquei uma camisola bonita. Diego chegou e me
encontrou um pouco melhor que a última vez em que me viu. Sentou-se ao
meu lado e nos abraçamos. Não dissemos nenhuma palavra, apenas nos
abraçamos. Tentei não chorar, mas não consegui.
— Me perdoe, Diego! Eu não devia ter falado com você daquele
jeito.
Ele beijou o topo da minha cabeça e acariciou os meus cabelos. Senti
seu peito se enchendo de ar para depois dizer:
— Esquece... É totalmente compreensível. — me apertou mais entre
seus braços — Sinto muito que tudo isso esteja acontecendo com você,
Mari. Mas vai passar, você vai voltar a ser a mesma de antes...
Eu me afastei do abraço para fitá-lo. Enxuguei os olhos e falei com a
voz embargada:
— Preciso de um transplante, Diego.
Ainda não havia dito nada a ninguém sobre isso. Ele me olhou
surpreso.
— O quê? — perguntou.
— Tenho insuficiência cardíaca e uma expectativa de vida de no
máximo três anos, sob cuidados paliativos.
Ele franziu a testa e me olhou com olhos de pena. Eu detestava ser
alvo desse sentimento. Desviei o olhar e falei:
— Se eu conseguir um coração saudável, tudo vai se resolver.
Ele acenou, concordando, mas ainda estava muito mexido.
— Sim, sim... Tudo vai dar certo. — falou depois de um tempo.
Ele segurou em minha mão e respirou fundo. Não dava para saber o
que se passava em sua cabeça. Ficamos nos olhando por um tempo em
silêncio. A enfermeira bateu à porta e entrou trazendo uns medicamentos.
Eu me recostei à cabeceira da cama, me acomodando melhor.
— Dona Mariana, hora dos seus remédios. — avisou Suzana.
Revirei os olhos.
— Sim, infelizmente! — reclamei.
Suzana era bem nova. Tinha feições orientais, era branca com
cabelos negros e lisos. Certamente era filha de imigrantes japoneses. Ela
olhou para Diego, curiosa.
— Esse é Diego, meu... Amigo. — falei, para apresentar os dois.
— Amigo não, namorado! — ele corrigiu prontamente, estendendo a
mão para Suzana — A Suzana abriu a porta para mim, mas não fomos
apresentados oficialmente. Diego Cardoso, muito prazer!
Ela apertou sua mão estendida por uns dois segundos e com timidez,
respondeu:
— Suzana Aikyo! O prazer é todo meu! — sorriu e colocou a
bandeja com os remédios ao meu alcance. — Aqui está!
— Obrigada, Suzana! — agradeci.
Ela acenou positivamente com a cabeça e apertou as laterais da saia
com as mãos.
— Se precisar, é só chamar. Com licença! — falou antes de sair.
Percebi que ficou encabulada com Diego. Que mulher não ficaria?
Ele era muito bonito. Diego trancou os lábios e olhou para mim, tentando
fingir que não havia percebido nada.
— Ela está cuidando de você direitinho? — ele perguntou.
— Sim, está. — respondi depositando o copo na mesinha ao lado da
cama, depois de ingerir os remédios.
— Que bom!
— Ela gostou de você. — comentei.
Ele me olhou confuso.
— Quem? A enfermeira? — ele quis saber.
— Sim... — falei com um risinho.
Ele revirou os olhos e meneou a cabeça.
— Você e sua mania de me fazer olhar pra outras mulheres. Sabe que
só tenho olhos para você.
Foi minha vez de menear a cabeça.
— Diego, você sabe que não temos futuro. Agora mais do que nunca!
— Mari, você vai sair dessa e voltar a ser a mulher estonteante que
sempre foi... Que sempre me deixou louco!
— Será?
— Claro, eu tenho certeza!
Olhei para ele com ternura e tentei sorrir.
— E essa história de namorado? — perguntei.
— É o que eu sou, não é mesmo?
— Diego!
— Me aceita logo em sua vida de vez, Mari! — ele implorou com
carinho.
Eu suspirei e achei bonitinho sua insistência. Pisquei os dois olhos
em concordância e ele se aproximou para me beijar. Aquele beijo doce era
tudo o que eu precisava naquele momento de vulnerabilidade. Por ora
deixaria me levar, mas tinha muitas dúvidas. Meu destino estava incerto e
não podia me comprometer com nada, nem ninguém. Espalmei seu peito o
afastando devagar.
— Você sabe que estou de repouso e não posso fazer certos esforços,
não sabe?
Ele sorriu.
— Sei sim... E estou aqui pra cuidar de você. — deitou-se ao meu
lado e avisou: — Vou trazer minhas coisas pra cá e espero por você o tempo
que precisar. — olhou em volta do quarto e depois de um silêncio,
perguntou: — Aceita ser oficialmente minha namorada?
Fui pega de surpresa. Ergui as sobrancelhas sem saber o que dizer.
— Diego, eu...
— Por favor, Mari! A gente já está junto há um ano, vamos
oficializar isso! Vamos ter um compromisso sério!
Deslizei a mão pelos cabelos dele e falei:
— Tudo bem, eu aceito, mas só porque eu sei que logo vai se enjoar
de mim.
— Nunca! Você é como o ar que eu respiro, Mari! Não vivo sem
você!
Sorri e ele beijou minha mão. Desse dia em diante Diego mudou-se
para minha casa e estávamos oficialmente namorando. Até anel de
compromisso ele arranjou. Eu morava em um apartamento amplo em um
condomínio bem-conceituado, num bairro nobre da grande São Paulo. Foi
muito bom ele ter vindo, porque a Suzana estava comigo, mas quase não
falava, parecia um fantasma perambulando pela casa. Me sentia sozinha
mesmo ela estando lá. Com ele por perto, tudo era mais suportável. Ele
acabava me ajudando com as coisas do trabalho, evitando que me
estressasse. No geral o trabalho me distraía e era prazeroso, mas eu só fazia
o que podia, sem me esforçar.
Em alguns dias eu estava bem, em outros mais debilitada. Seria uma
caminhada longa dali para frente. Vivendo um dia de cada vez. Tentando
me manter viva até um doador compatível aparecer. Minha mãe estava
muito preocupada e se ofereceu para passar um tempo comigo.
Conversávamos ao telefone nesse dia, quando cogitou aparecer por
aqui. Eu até estava com saudades dela, mas sua presença, com certeza, iria
me deixar muito estressada. Ela era muito agitada e o oposto de mim em
certos assuntos. Jamais entendeu por que sua única filha nunca quis se
casar. Queria me ver com marido e filhos. Seus netos! Sempre me
perguntava quando eu os daria a ela.
— Nunca, mamãe! Eu não quero ter filhos! — era o que eu
sempre dizia.
Ela ficava revoltada e um sermão sempre estava na ponta da sua
língua. Na conversa ao telefone, já estava me dizendo que se tivesse um
marido, não estaria sozinha num momento tão difícil. Sempre a mesma
cobrança! Por isso não queria que ela viesse. Sinceramente, não estava com
disposição para discutir com ela.
— Não precisa vir, mãe! Eu estou bem... O Diego está comigo.
Ela bufou.
— Diego! — falou com desprezo —Você ainda está enrolada com
esse garoto? Ele não sabe cuidar de você, Mariana!
— Tenho uma cuidadora, mãe!
— Um gasto desnecessário!
Respirei fundo. Era como falei, sempre uma reclamação.
— Eu realmente preciso de uma enfermeira, mãe. — falei com
firmeza.
Ela acabou concordando. Por fim, ficou de vir me visitar assim que
pudesse. Os dias foram se passando e em uma ocasião, estava me sentindo
muito fraca e isso foi perdurando durante a semana. Achei até que fosse
morrer. Não entendia a razão daquela fraqueza toda, era para eu estar
melhor, assim o doutor havia me dito. Estava insuportável aquela situação.
Os dias eram sempre iguais. Como se fosse um looping. Notei que
Diego estava meio entediado com a nossa rotina. Até tentamos ter relações,
mas foi difícil para mim. Conseguimos uma vez só, mas foi muito sem
graça, fiquei passiva demais e não gostei da experiência. Eu ficava muito
cansada e os remédios tiravam toda minha libido. Mas Diego não reclamou
de nada. Eu quem ficava constrangida. Não queria que ele passasse por isso,
era jovem, vigoroso. Isso me deixava mal.
Suzana sempre me dava um coquetel de remédios por volta das dez
horas da noite e depois disso, eu só acordava às nove quando Diego já havia
saído. Porém, numa noite, assim que Suzana colocou os remédios no criado
de canto e saiu, olhei para aquilo e resolvi não tomar. Estava me sentindo
bem e aqueles comprimidos me deixavam muito grogue, então os empurrei
para a gaveta e apenas bebi a água. Diego já havia chegado e estava
preparando algo para comer na cozinha. Podia ouvir o batuque dos
utensílios. Suzana havia se recolhido e certamente estava assistindo seus
Doramas. Fechei os olhos e tentei dormir, mas não consegui.
Depois de um tempo, Diego entrou no quarto e foi para o banheiro
tomar banho. Eu fingi estar dormindo para que ele não desconfiasse que não
havia tomado os remédios. Não queria ouvir sermão. Logo ele se deitou ao
meu lado e eu me mantive quieta. Ouvi seu celular vibrar e ele parecia estar
digitando. Acabei pegando no sono, mas dormi por pouco tempo. Acordei
com muita sede e ao me virar, Diego não estava na cama. Chamei por ele,
mas não houve resposta.
Levantei-me sonolenta, vesti meu robe de seda e com um pouco de
dificuldade me direcionei para a cozinha. Ao deslizar sutilmente pelo
corredor, fui atraída por um barulho. Estava vindo do quarto de Suzana.
Olhei para lá e percebi que a porta estava entreaberta. Me aproximei
devagar, o mais silenciosa possível e, então os vi.
Diego e Suzana estavam nus sobre a cama, grudados um no outro,
suados, gemendo. Ela de quatro e ele metendo nela por trás, enquanto
segurava seus longos cabelos negros como num rabo de cavalo e falava
palavras desconexas para excitá-la. Ela choramingava, manhosa. Nem de
longe parecia a enfermeira tímida e discreta que sempre aparentou.
Paralisei. Custei a acreditar nos meus olhos. Pisquei algumas vezes
tentando apagar aquela imagem da minha frente, mas era real. Aquilo
estava mesmo acontecendo.
Estavam tão envolvidos que não perceberam a minha presença.
Fiquei contemplando aquela cena por um tempo, sem reação. Um misto de
sentimentos veio sobre mim. A respiração foi ficando difícil, então, com
muita dificuldade, abri a porta e balbuciei:
— O que está acontecendo aqui?
Os dois então se assustaram e, abruptamente, interromperam a dança
sincronizada que faziam. Suzana deu um grito, se jogou para o lado e tentou
se cobrir com um lençol. Diego logo se levantou e veio até mim com cara
de culpado, tentando inutilmente cobrir sua ereção com as mãos. Eu fiquei
tonta e me segurei na porta.
— Mari, eu posso explicar! — ele exclamou, mas eu lhe dei as costas
e cambaleei de volta para o meu quarto.
Aquilo me chocou demais. Percebi que Diego significava mais para
mim do que eu imaginei. Fiquei ofegante e sentindo uma dor no peito. Tudo
a minha volta se apagou.
CAPÍTULO 4

Mariana Barros

Despertei um tempo depois e estava em minha cama. Suzana estava


cuidando de mim, como se nada tivesse acontecido. Ela aferia minha
pressão arterial. Fitei-a com raiva e arranquei o aparelho de meu braço.
— Saia daqui, sua vadia! — vociferei.
Ela se assustou e se afastou um pouco. Diego estava do outro lado da
cama, agora usava um pijama.
— Mari, por favor, você não está bem! Suzana precisa cuidar de
você! — ele falou, como se estivesse preocupado.
— Ah, ela precisa cuidar de mim? É isso que ela tem feito por todos
esses dias? Me dopando para vocês dois treparem sem que eu atrapalhe, não
é mesmo? — virei-me para ela e a confrontei — O que você tem me dado
pra tomar, hein? Que remédios são esses?
Ela gaguejou:
— Sa-ão apenas suas me-medicações, Dona Mariana! Eu... —
respondeu, de cabeça baixa e envergonhada.
— Mentira! Mentirosa! — gritei — Eu vou investigar e se tiver algo
ilícito aí, você pode se preparar para deixar essa carreira. Isso se não for
presa!
Suzana olhou para Diego com olhos arregalados de preocupação,
como se lhe pedisse socorro.
— Não tem nada demais aí, são só calmantes, Mari! — ele explicou.
— É mesmo? Como você sabe? Desde quando é enfermeiro?
Ele se desconcertou.
— Ela me disse...
— Claro, estavam mancomunados para se verem livres de mim, não
é mesmo? Me dando soníferos pesados, desgraçados! — retruquei.
— Não! Eu... — Suzana parecia apavorada.
— Não quero saber de mais nada! Quero que saiam daqui! Os dois!
— Mari! — Diego se aproximou de mim.
— Falei para saírem! — disse entredentes. — Vão terminar o que
começaram bem longe daqui! E desculpa por ter interrompido!
Suzana saiu apressadamente sem dizer nada. Diego tentou
argumentar:
— Meu amor...
— Não me chame de “meu amor”!
— Mari, por favor! Não podemos sair... Você não pode ficar sozinha!
Meu sangue ferveu.
— Saia daqui, Diego! — insisti.
Ele se aproximou mais, implorando.
— Mari, meu amor... Eu sei que errei, mas... Isso não significou nada
pra mim! É você quem eu amo!
Olhei para ele com decepção.
— Há quanto tempo isso está acontecendo? — perguntei com voz
embargada.
Ele estalou a língua e meneou a cabeça.
— Pra que quer saber?
— Tecnicamente somos namorados e por insistência sua. Achei que
isso fosse importante pra você.
— E é... Você sabe que sim!
— Então me responda! Há quanto tempo, Diego?
Ele soltou o ar do peito de uma vez e respondeu com hesitação:
— Foi... a primeira vez...
— Mentira! — exclamei com firmeza — Há mais de uma semana
que essa espertinha está me dando esse remédio que me deixa grogue! E
você está estranho há dias!
Ele passou uma das mãos pelo cabelo e confessou:
— Tá, foram algumas vezes... — olhei para ele com reprovação. Ele
frisou: — Mas não significou nada! Não é nada romântico... Eu juro!
Meneei a cabeça, indignada.
— O que para mim é ainda pior. — retruquei — Se você estivesse
apaixonado por ela, eu entenderia.
Ele chegou mais perto.
— Mari, escuta! O problema é que ela veio se insinuando... E eu
precisava me aliviar... Estava na seca, Mari!
Ri sem vontade.
— Seca? Que patético, Diego! Então, vai ser assim? Toda vez que eu
me encontrar debilitada, incapacitada, você vai atrás da primeira putinha
que aparecer? É assim que você quer um compromisso sério?
— Mari...
— Sai daqui, Diego! Pegue suas coisas e some da minha frente! —
tirei o anel de compromisso do meu dedo e joguei nele — Pegue essa
porcaria também!
— Mari, Por favor! Me perdoe! Vamos passar por cima disso, você
sabe que eu te amo...
— Ama coisa nenhuma! No momento em que mais preciso do seu
apoio, você me apunhala pelas costas. Se unindo a essa enfermeira das
trevas para me doparem, enquanto se divertem como dois tarados, na minha
própria casa! Nunca vou te perdoar! Saia daqui!
— Amor... Você está de cabeça quente! Pensa direitinho...
— Não tenho nada para pensar, Diego! Vá embora!
— Eu não tenho para onde ir. Quando vim pra cá, cancelei meu
aluguel...
— Se vira! Vai pra casa da sua namoradinha, novinha, gostosa e
saudável!
— Não diz besteira!
— É a verdade.
— Minha namorada é você, Mari! — falou com certa angústia.
— Não mais! — retruquei — Agora sou apenas uma colega de
trabalho e dessa vez não tem mais volta!
— Mari! — ele estava com lágrimas nos olhos.
— Diego, por favor! Me deixa em paz, não quero mais saber de
você! Por que não vai atrás da Suzana e terminam o que começaram? Ah, e
mais uma vez, me desculpe por ter interrompido!
Ele se irritou.
— Já falei que foi só uma foda idiota e insignificante!
As lágrimas inundaram meus olhos. Nunca havia me sentido tão
humilhada.
— Sim, com certeza! E exatamente por isso não vai dar certo entre
nós. — as lágrimas caíram, assim que comecei a falar — Não quero correr
o risco de ser trocada por coisas tão insignificantes assim, então, saia daqui
e não apareça mais na minha frente.
Solucei, mas fui incisiva. Diego respirou fundo e desistiu de
argumentar. Ele também estava prestes a se debulhar em lágrimas, mas
tentava se manter firme. Ele sabia que não iria me convencer naquele
momento. Então, balançou a cabeça afirmativamente e deixou o quarto.
...
Diego foi embora e tudo entre nós estava terminado. Ele tentou
contato por telefone, mas o bloqueei. Minha mãe insistiu para vir cuidar de
mim e acabei aceitando por falta de opção, mas os meus conflitos com ela
nunca se resolviam. Eu a amava, mas nós duas éramos muito diferentes. Ela
insistia para que eu me tornasse a mulher que ela sempre sonhou. Casada,
com marido e filhos. Não foi diferente dessa vez. Ela continuava insistindo:
— Tá vendo? Se tivesse marido, teria alguém para cuidar de você.
— Mãe, não precisa ficar aqui se não quiser. Não chamei a senhora!
— Não se trata disso, minha filha! Cuido de você com o maior
prazer. Não seja mal-agradecida! Falo para o seu bem. Me preocupo,
porque você está a cada dia mais sozinha, solitária! Isso não é bom,
Mariana! Precisa de uma família!
Me aborreci. Sentada, como sempre, em minha cama, recostada,
lendo meu kindle sem conseguir me concentrar na leitura por conta do blá-
blá-blá da minha mãe. Respirei fundo e falei:
— Quantas vezes tenho que dizer que não preciso de um marido e
filhos para ser feliz, Dona Regina?
Ela ergueu as sobrancelhas como se não encontrasse sentido no que
eu havia dito.
— E por acaso você é feliz? — perguntou com ironia — Você não
me parece uma pessoa feliz...
Abandonei a leitura de vez, ofendida.
— Claro que não pareço. — respondi com voz embargada — Olha só
a minha situação, mãe! Estou lutando para viver!
Ultimamente eu estava muito sensível e chorava por qualquer coisa.
Ela pareceu se compadecer, se aproximou e segurou em minha mão.
— Não se trata disso, minha filha! Não é por causa da doença. Você
nunca foi uma pessoa feliz nesse mundo que criou pra você! Isso é uma
ilusão, Mariana!
Eu odiava aquela ofensa disfarçada de preocupação. Minha mãe era
perita em fazer isso. Era assim também com meu irmão. Maurício também
não queria se casar e era um mulherengo incorrigível. Era mais novo que
eu. Uma alma livre. Curtia a solteirice como ninguém, mas era responsável
e estava se dando bem na carreira que havia escolhido. Ele era ator.
— Ilusão por quê? — questionei — É a minha vida!
Ela soltou minha mão e se levantou, começando a dobrar umas
roupas que estavam sobre a cômoda.
— Ninguém vive só, minha filha! — falou entre um suspiro.
— Eu nunca vou me submeter ao domínio de nenhum homem, mãe!
Sou dona do meu nariz, sou independente e isso nunca vai mudar.
Ela sorriu sem vontade, inconformada.
— Tá vendo? Como eu disse: Uma ilusão. Quer tanto fugir do
domínio de um homem, mas se submete a outro homem que é o seu patrão.
— O Victor não é meu patrão. Somos sócios.
— O que é pior. Um sócio majoritário que manda e desmanda em
você.
— Mãe, ele é uma ótima pessoa!
— Não estou dizendo que não é, só estou te mostrando o quanto você
é iludida. Vive debaixo de cobranças, horários, sempre viveu
sobrecarregada e agora está aí sofrendo as consequências de toda essa
pressão.
— Meu problema cardíaco não tem nada a ver com o meu trabalho, a
senhora sabe muito bem disso!
— Mas o seu trabalho contribuiu para agravá-lo. O fato é que está
passando por isso e se tivesse uma família, marido, filhos, talvez nem
estivesse tão mal.
Soprei o ar pela boca e falei:
— Mamãe, essa conversa não vai nos levar a lugar nenhum! Eu
poderia ter feito muita coisa diferente na minha vida, mas escolhi esse
caminho e não me arrependo. Sinto muito se estou te decepcionando não
sendo a filha que você idealizou.
— Não se trata de mim, meu amor! É por você mesma! Se tivesse
constituído uma família, pelo menos você teria a sensação de
pertencimento, de acolhimento e quando envelhecer, teria onde se refugiar.
No trabalho você se acha muito eficiente e insubstituível, mas quando se
aposentar, verá que isso não é verdade. Terá que se contentar com uma
mixaria como aposentadoria e terá que viver reclusa e sozinha.
— A senhora se casou, teve filhos e é uma velha que vive reclusa e
sozinha. Não vejo diferença.
Ela meneou a cabeça.
— Filha, a diferença é muito grande! Eu tenho você, seu irmão e a
sensação de ter feito o melhor da minha vida que foi trazê-los ao mundo.
Cumpri a minha missão. — ela fez uma pausa e ficou pensativa, com uma
expressão nostálgica — Seu pai se foi, mas eu tenho as lembranças... As
difíceis e as alegres. Momentos bons e os ruins também, contados através
de fotos, vídeos e muitas memórias! — ela respirou fundo e balançou a
cabeça negativamente — Ah, Mari... Não consigo entender porque você
não quer viver isso... Se ao menos tivesse tido um mau exemplo, mas nós
sempre fomos tão unidos!
Eu a entendia, mas só queria que ela me entendesse também.
— A senhora sempre soube do meu ideal de vida, que queria ser uma
mulher de negócios, nunca levei jeito para tricotar, costurar, cozinhar. É a
forma como eu escolhi para viver, não tem nada de errado nisso. Como
também não há com a sua forma de viver, ela só não é pra mim. — olhei
para ela com o queixo erguido e completei: — E quanto a envelhecer, não
se preocupe. Tudo leva a crer que não chegarei aos quarenta.
Minha mãe respirou fundo e me olhou com tristeza.
— Oh, minha filha! Não fala assim!
Desistiu de tentar me convencer. Depois disso passou a me tratar
como uma mãe comum, me dando colo e paparicando. Sei que estava
preocupada com a minha situação, embora tentasse não demonstrar. Assim
se passaram dois meses. A nossa convivência melhorou e até me acostumei
com ela em minha casa, mas já não era mais necessário. Então, quando eu
estava me sentindo melhor, ela voltou para Indaiatuba.
Retornei ao trabalho na agência sem pegar muito pesado. O retorno
me fez muito bem. Estava mais magra, mas meu organismo já estava
acostumado com os remédios e passei a me alimentar melhor. O simples
fato de me arrumar para sair fazia toda diferença. Era muito bom estar de
volta. O ambiente de trabalho me distraía. Fui recebida com flores e muito
afeto.
Me encontrei com Diego algumas vezes, mas apenas trocamos
olhares. Ele parecia tentar se aproximar, mas estava hesitante. Eu estava
disposta a não mais me envolver com ele. Fiquei sabendo que estava saindo
com uma estagiária e torcia para que desse certo entre eles. Na verdade, não
queria me envolver com ninguém, afinal de contas, se não conseguisse um
coração, minha expectativa de vida era muito curta. O futuro era algo que
não existia.
Mesmo assim, estava feliz em estar de volta e tentava pensar
positivamente. Meus colegas de trabalho foram muito generosos e
cuidadosos comigo. E assim os dias foram passando e fui levando cada
hora, cada minuto, com esperança de achar alguém compatível. Porém, se
tivesse que morrer, morreria com a sensação de dever cumprido. Não tinha
filhos, nem marido ou qualquer outra pessoa que dependesse de mim
emocional ou financeiramente. Tudo que possuía seria doado para alguma
instituição de caridade. Isso me dava paz e sossegava meu coração,
literalmente.
◆ ◆ ◆

Diego Cardoso
Mariana voltou a trabalhar. Linda como sempre. Um pouco mais
magra, mas exuberante como sempre foi. Eu era louco por aquela mulher!
Desde a primeira vez em que coloquei os olhos nela, ela me prendeu. Quase
caí para trás quando ela demonstrou interesse em mim. Nunca pensei que
conseguiria ter uma mulher daquelas. Mas de uma forma inusitada eu a
conquistei. Ela era minha.
No início não pensei que fosse me apegar tanto, mas com um tempo,
percebi que era bem mais que isso. Ela se tornou uma obsessão, não podia
perdê-la. Não havia nada na vida que eu quisesse mais que Mariana.
Ela estava magoada comigo por causa de uma bobagem. Me viu
transando com a enfermeira dela. Uma oferecida que me pegou num
momento de fraqueza e eu não resisti. Mari estava atravessando um
momento difícil, ainda está e eu sei que fui um covarde, mas não vou perdê-
la. Sei que ela vai me perdoar e tudo vai voltar a ser como antes. Vamos nos
casar e ela será mãe dos meus filhos.
Não importa o que eu tenha que fazer, mas Mariana será minha e de
mais ninguém.
CAPÍTULO 5

Leonardo Moretti

Eu dizia que 2018 seria o ano da minha vida, pois estava vivendo o
meu melhor momento. Estava muito feliz. Daniela tinha acabado de dar à
luz ao nosso caçula Davi, que veio para fazer companhia a Matteo, nosso
filho mais velho de 7 anos, e a Sarah, nossa princesinha do meio de 4
aninhos. Eu tinha três lindos filhos saudáveis e uma esposa maravilhosa!
Essa era a minha vida.
Morávamos em uma fazenda bem pertinho da cidade. Tão perto que
dava para ir a pé. Napolitana, uma pacata cidade no estado do Paraná,
famosa por suas raízes italianas, onde havia feiras e museus que contavam a
história sobre a imigração desse povo para o Brasil.
Sim, sou descendente de italianos, e trago no meu sangue a marca
registrada dos Moretti. Além das características físicas como os cabelos
pretos e nariz alongado, somos alegres, divertidos, comunicativos. Sempre
gostamos de nos reunir em família para os tradicionais almoços de
domingo, mas trabalhamos muito também. Gostamos de pegar no pesado.
Meu pai sempre dizia:
— O trabalho dignifica o homem! — era uma frase clichê, que ele
vivia repetindo e acrescentava: — Poder trabalhar é algo divino, uma
bênção!
Não sei se era algo tão divino assim, mas eu me acostumei com a lida
muito cedo. Cresci aqui e sou fazendeiro desde sempre. Aprendi com ele,
meu pai, que aprendeu com meu avô, que por sua vez aprendeu com o pai
dele, meu bisavô. Era uma vida simples, mas tínhamos tudo o que
precisávamos e queríamos, principalmente paz.
Eu tinha acabado de pagar minhas dívidas com o banco depois de
uma longa negociação e estava bem mais tranquilo. Sem a preocupação
com as pendências financeiras, resolvemos continuar uma obra que estava
parada por dois anos. Se tratava da estrutura para um hotel fazenda, um
sonho que era do meu pai e eu estava empenhado em realizá-lo. Meu velho
ainda estava vivo. Apesar de debilitado pela idade e as enfermidades, era
muito lúcido ainda. Eu queria muito lhe dar essa alegria.
Ele morava em uma casinha de madeira que ele mesmo construiu, ali
em nossas terras mesmo, logo depois que minha mãe faleceu. Não viu
sentido ficar sozinho em um casarão imenso e desde então, colocou na
cabeça que queria transformá-lo em um hotel fazenda, mas o plano nunca
foi adiante. Insisti para ele morar conosco, mas o velho é teimoso, gosta do
seu cantinho e disse que não queria incomodar. Eu não insisti, porque
estávamos sempre por perto e ele gostava de ter um pouco de
independência. E assim, mesmo com suas limitações, ele ainda conseguia
realizar algum trabalho leve e desfrutar da companhia dos netos.
Meus filhos amavam o vovô Tommaso e meu pai era o tipo de avô
que toda criança desejava ter. Tinha orgulho de proporcionar aos meus
meninos esse tipo de vida. Eles cresciam soltos pela fazenda explorando
cada cantinho. Subiam em árvores e conviviam com os animais sem
nenhuma dificuldade. Tínhamos vários. Cachorros, gatos, papagaios,
galinhas, patos, carneiros, vacas, cavalos, entre outros.
Era uma farra. Daniela, minha esposa, cuidava da casa e de suas
flores. Possuíamos uma floricultura na cidade, onde ela passava boa parte
do seu tempo, fazendo arranjos e pintando suas telas, mas só era aberta nas
quintas, sextas e sábados. Não dava para se dedicar exclusivamente só a
isso ainda.
Na fazenda, ela cultivava flores diversas, mas as que mais gostava
eram os girassóis. Cultivávamos uma pequena plantação deles e a Dani se
perdia no meio dela. Segundo ela, era uma terapia. Sabia tudo sobre aquela
flor. E realmente se tratava de uma planta fascinante. Era lindo de ver
aquele tapete amarelo a perder de vista. Eu também gostava muito. Por
várias vezes até fizemos amor no meio deles.
A primeira imagem que me vem à cabeça quando penso na Dani é do
seu sorriso lindo entre aquelas flores gigantes... Linda, em um vestido rosa
esvoaçante, os cabelos longos e castanhos balançando ao vento, os olhos
cor de folha seca brilhando à luz do sol.
— Léo, vem! — Ela me chamando e correndo para que eu fosse atrás
dela.
Vivíamos como dois adolescentes apaixonados. A cada dia que
passava eu a amava mais. A mãe dos meus filhos, a mulher da minha vida.
— Vai se arrepender, se eu te pegar! — Gritava para ela e podia ouvir
sua gargalhada ao longe, enquanto ia correndo ao seu encontro, entre as
flores.
Eu sempre me lembrava disso. Estava parado de pé na varanda da
nossa casa olhando para o horizonte, bebendo uma xícara de café. O sol
estava se pondo e era uma imagem magnífica. Entre essa, outras lembranças
surgindo em minha mente. Perto dos quarenta anos de idade, eu estava
exatamente onde sonhei que estaria, vivendo o que pensei que viveria. Tudo
perfeito, até aquele terrível dia.
— Por quê? Por que tinha que ser assim? — balbuciei entre um
suspiro.
Como disse antes, Davi era recém-nascido, estava com dois meses
apenas. Eu tinha acabado de confinar o gado no curral, porque no outro dia
bem cedo seria vacinado. Era por volta das 17h, quando cheguei em casa e
estranhei vendo Matteo com Davi no colo tentando acalmá-lo, enquanto ele
se esgoelava de fome. Tomei o bebê de seus braços e perguntei:
— Onde está sua mãe?
Ele encolheu os ombros e respondeu:
— Eu não sei, ela disse que ia regar as flores, mas até agora não
voltou.
Isso era muito estranho. Daniela sempre vinha me receber naquele
horário. Davi continuava chorando. Tentei acalmá-lo com uma chupeta. Ele
sugou por uns segundos, para logo em seguida abrir o berreiro novamente.
— E a sua irmã? — perguntei, enquanto sacudia o bebê e tentava a
estratégia da chupeta de novo.
— Está dormindo desde que tomou o lanche da tarde.
Olhei para Matteo e vi nos seus olhinhos de criança a mesma
preocupação que começava a me rondar. Ele só tinha sete anos, mas parecia
um mini homem, sempre preocupado com os irmãos e disposto a ajudar.
Era naturalmente muito responsável.
— Será que aconteceu alguma coisa com a mãe? — ele perguntou.
Sorri para disfarçar meu nervosismo, levei a mão ao topo de sua
cabeça, baguncei seus cabelos loiros e falei:
— Não, daqui a pouco ela aparece. Sabe como é sua mãe quando
começa a mexer com as flores dela. — Matteo me devolveu o sorriso e
pareceu menos tenso. Olhei em volta sacudindo Davi delicadamente e
acrescentei: — Vem, vamos alimentar o seu irmão! Tem leite reserva que
sua mãe colocou na geladeira.
Com Davi ainda no colo amornei o leite e coloquei em uma
mamadeira.
— Eu dou pra ele! — se ofereceu Matteo.
Eu concordei e pedi para que ele se acomodasse no sofá. Coloquei o
bebê em seus braços lhe entreguei a mamadeira. Davi logo começou a sugar
o líquido e se acalmou por completo. Era bem pequenininho ainda, mas
Matteo já estava acostumado a cuidar dele e o segurava com desenvoltura.
— Vou até sua mãe, talvez ela esteja precisando de ajuda. Consegue
cuidar do Davi sozinho por alguns minutos?
Matteo acenou com a cabeça dizendo sim.
— Pode ir eu dou conta! Ele logo vai dormir, não se preocupe!
— OK. Depois que ele mamar, coloque-o no bercinho. Eu volto logo.
Saí apressadamente e embreei-me para dentro dos girassóis
chamando por Daniela!
— Dani! Dani, onde você está?
Estava escurecendo, mas ainda dava para ver muita coisa. O Sol se
pondo dava uma cor avermelhada ao céu, mas assim como as sombras
vinham caindo sobre a paisagem, um manto de preocupação caía sobre mim
a cada passo que eu dava. Chamei por Daniela diversas vezes, minha voz
sendo levada pelo vento formando ecos que se ouviam ao longe, mas ela
nada de me responder. Caminhei pelos labirintos das flores por
aproximadamente quinze minutos até que a encontrei. Ela estava caída,
agarrada ao seu material de jardinagem. Empalideci.
— Dani! — gritei.
Corri até ela com o coração acelerado e me ajoelhei ao seu lado.
— Dani, meu amor... O que houve?
Ela não me respondeu, estava inconsciente. Eu a sacudi, chamei, mas
ela permanecia desmaiada. Verifiquei seus sinais vitais. Havia pulso, mas
ela não recobrava a consciência. Ainda sentado no chão, a ergui, coloquei-a
em meu colo e acariciei seu rosto. Os seios estavam cheios de leite que
molhavam o tecido branco de sua blusa. Até a jaqueta grossa de brim em
tom verde musgo estava molhada.
— Daniela, meu amor... Fala comigo! — as lágrimas já embaçavam
minha visão.
Ela abriu os olhos por um instante e, com voz fraca, balbuciou:
— Leo...
— Amor, fica comigo! Dani, amore mio [1] ! — falei num fio de voz,
desesperado.
Ela me olhou, por uns instantes, com olhos pesados, mas logo
desmaiou novamente. Beijei sua face, sua boca, na esperança que ela
reagisse, mas ela estava apagada, amolecida. Não soube o que fazer.
Lembrei-me que há alguns dias ela se queixava de dores de cabeça, mas se
recusou a procurar um médico, se valendo apenas de remédios caseiros.
Certamente, dessa vez a dor veio com mais intensidade levando-a ao
desmaio.
— Daniela, acorda meu amor! — supliquei.
Desesperado por ela não reagir, levantei-me com ela em meus braços
e marchei apressadamente até nossa casa.
— Paaai! — gritou Matteo da varanda ao me avistar, vindo ao meu
encontro — O que aconteceu com a mamãe?
— Ela desmaiou, filho! Pegue a chave da picape para o papai, vou
levá-la ao hospital.
Ele apressadamente me obedeceu e veio correndo trazendo a chave.
Abriu o carro para mim com rapidez. Acomodei Daniela no banco traseiro,
pois a picape era cabine dupla. Ela ainda seguia desmaiada. Controlei a
respiração e virei-me para Matteo.
— Pega o celular da sua mãe e ligue para sua tia Denise. Peça ela pra
vir ficar com vocês, porque eu vou levar a Daniela ao médico. Consegue
fazer isso?
Ele me olhou por um instante com um semblante de pavor. Olhos
úmidos, prenunciando um choro contra o qual ele lutava.
— Sim, mas pai... O que a mamãe tem?
— Não é nada grave. Ela só desmaiou. Logo, logo estaremos de
volta, tudo bem?
Ele me olhava com os olhos arregalados e sei que entendia que aquilo
não era nada simples, mas não me perguntou mais nada.
— Tudo bem, papai. — respondeu, obediente como sempre. — Eu
vou trancar a porta e cuidar dos meus irmãos até a tia Denise chegar.
— Isso, muito bem!
Acenei com a cabeça e entrei no carro.
— Qualquer coisa me ligue! — falei antes de sair.
Dirigi como um louco ao mesmo tempo em que rezava para tudo
ficar bem. Daniela seguia desmaiada no banco de trás. Meu coração
sambava no peito, temendo pelo pior.
— Vai ficar tudo bem, meu amor! — falei, na esperança de que ela
estivesse me ouvindo. — Volta pra mim, amor!
Cheguei ao hospital o mais rápido possível. O atendimento foi
rápido, logo os socorristas a colocaram numa maca e a levaram pelos
corredores. Eu tratei da inevitável burocracia da internação e permaneci na
recepção, aflito, andando de um lado para o outro, esperando por notícias.
Havia passado muito tempo. Liguei para casa e Denise já estava lá.
— Leo, já ia te ligar! Cheguei agora a pouco! Como está a minha
irmã?
— Ainda não sei, eles a levaram... Estou esperando... Como estão as
crianças?
— Estão bem. A Sara e o Matteo estão assistindo desenho. O Davi
está dormindo. Seu pai está vindo, estou vendo a silhueta dele se
aproximando.
— Meu pai?
— Eu liguei pra ele. Fiz mal?
— Não... Tudo bem! Assim que tiver notícias, eu ligo de volta.
Enquanto falava com Denise, levantei o olhar e vi o Dr. Bruno
Vianna vindo em minha direção com um semblante decaído e ali eu já
sabia... O pior tinha acontecido.
CAPÍTULO 6
Mariana Barros

Esperei na fila do transplante por um ano e dois meses. Foi uma


espera cansativa e desgastante. Já tinha perdido as esperanças. Já estávamos
no quarto mês de 2018. Só aguentaria até o meio do ano. Estava até
organizando minhas coisas para minha inevitável partida. Mas um milagre
aconteceu e apareceu um doador compatível.
Das trezentas e quarenta pessoas que estavam na espera, apenas dez
eram compatíveis com o doador e o meu nome era o terceiro, mas a
primeira acabou não resistindo e a segunda estava acima do peso. Então, fui
selecionada. Realmente foi um milagre!
Eu estava em minha sala pensando em como seria difícil dizer adeus.
Olhei para as paredes de vidro, de onde tinha uma visão panorâmica de toda
a agência. Contemplei a movimentação de todos que trabalhavam no
momento. Agitados e falantes como sempre. Era o meu mundo em
movimento. Queria muito viver e poder ver os planos que fizemos juntos
serem executados. Queria poder realizar os sonhos que carregava comigo
desde criança, mas tudo estava caminhando para um fim próximo e a única
opção era me conformar.
Apesar de tudo, me sentia grata por cada coisa que consegui
conquistar. Não sei se sentiria saudade ou me lembraria dessa vida aqui.
Não tem como saber como é o outro lado. Tudo o que eu posso dizer é que,
do meu jeito, fui feliz.
Lembrei-me do meu “Caderninho dos Desejos”, onde havia anotado
coisas que desejava fazer antes de completar cinquenta anos. Olhei para a
última gaveta, que mantinha trancada e abri. Lá estava ele. O peguei com
expectativa e explorei as primeiras páginas.
Eu tinha mania de fazer listas. Lista das cidades que pretendo visitar;
livros que quero ler; comidas que quero provar... Entre outras. Enfim, lá
estava ela:
Antes dos Cinquenta.
Era a lista de coisas que pretendia fazer antes de completar cinquenta
anos de idade. Me surpreendi. Muita coisa já tinha feito. Sorri de satisfação.
Comecei a ler cada item, meneando a cabeça e me conscientizando de que
era impossível realizar os que faltavam. Li em voz alta:

Correr uma maratona — sorri — (Impossível!);


Continuar o curso de pintura (sempre quis, mas...);
Escrever um livro (Hum...leva tempo! E tempo é algo
que eu não tenho);
Cantar em um karaokê — ri só de imaginar;
Fazer um safari (fora de cogitação!);
Doar boa parte do meu guarda-roupa (Isso eu
poderia fazer. Na real situação, seria todo o guarda-
roupa!)
A lista era enorme, tinha mais de cento e cinquenta itens. Com
certeza não poderia fazer mais nada do que havia ali. Mas um item em
especial, chamou minha atenção:

Conhecer o amor. Amar alguém, de verdade! Antes


dos cinquenta e continuar amando depois também.
— meneei a cabeça negativamente (Isso sim, era
impossível!)
Não me lembrava de ter colocado isso na lista, nem porque coloquei.
Com certeza devia ter uns doze anos e uma cabecinha oca quando escrevi
aquilo. Pois, na realidade, acho que nunca saberei o que significa esse
sentimento: Amor. Nem sei se posso chamar de sentimento. Acho que
estava mais para uma escolha de vida.
Você escolhe alguém para ficar obcecado por ele e anula a si mesmo.
Pelo menos esse era o comportamento de todos que diziam amar, que eu
conhecia. Era assim, ou mentirosos como o Diego, que dizia me amar e me
traiu dentro da minha própria casa. E ainda estava tentando me convencer
que me amava. Uma ova! Dispenso esse tipo de amor!
Aliás, nem quero mais saber dessa coisa de Amor. Maitê, minha
assistente, diz que sou gamofóbica[2]. Acho que sou mesmo, pois estava
mais que provado que essa coisa de compromisso não era para mim.
Sempre imaginei que era preciso aprender, com a experiência, a identificar
o real amor, sem o confundir ou disfarçá-lo com outras realidades e
sentimentos. Doce ilusão! Minha experiência só me levava a crer que essas
coisas nem existem.
Respirei fundo, fechei o caderno e desanimei. Guardei-o novamente
na gaveta e pensei em minha situação. Engoli em seco e decidi que não ia
mais chorar por causa da minha doença. Agradeci a Deus em pensamento
pelos 34 anos que vivi. Anos felizes e bem vividos e resolvi enfrentar o que
viria. Quando estava me ajeitando para sair, meu celular tocou. Quando li o
nome do Dr. Moreira, meu coração disparou. E sim, era a ligação que eu
esperei ansiosamente por dias e dias.
— Temos um doador, Mariana! — O doutor falou com animação e
levemente emocionado.
Minhas pernas tremeram, meus olhos se encheram de lágrimas. Um
misto de alegria e medo me acometeu.
— O senhor está falando sério, doutor? — perguntei com voz
embargada, ainda sem acreditar.
— Sim, querida! Já agilizando tudo. O doador teve morte cerebral,
então temos um prazo de pouco mais de 6h para te preparar. Precisa vir
imediatamente. Vou te passar as orientações.
Depois da conversa com o doutor, fui até a sala de Victor lhe dar a
notícia e logo todos estavam sabendo. Foi uma festa. Todos se alegraram
comigo. Embora eu estivesse feliz, estava com medo. Era uma cirurgia
muito delicada. Tudo podia acontecer. Um frio subiu pelas minhas costas,
mas as chances de dar certo eram de 80%. Nos reunimos de improviso no
grande espaço de circulação, onde ouvi palavras de ânimo de cada um dos
meus colegas. Até Diego ousou a falar.
Nós não estávamos mais brigados, mas não nos envolvemos mais,
embora ele tenha tentado muitas vezes. Enfim, ouvi cada um com carinho e
também falei algumas palavras. Aproveitei para me despedir, caso
acontecesse o pior. Sob protestos, todos me incentivaram a pensar
positivamente e eu concordei. Realmente estava esperançosa. Nos
abraçamos e fui rumo ao meu destino incerto.
Já no hospital, liguei para minha mãe. Ela já estava vindo ficar
comigo. Ficou radiante com a notícia.
— Ah, minha filha! Eu rezei tanto por isso, meu amor! Vai dar
tudo certo!
Tentei me preparar emocionalmente para aquele momento, mas
estava quase surtando. Victor me ajudou em tudo. Ficou responsável direto,
a quem o doutor se reportava. O grande dia havia chegado. Fui internada. A
tensão estava grande. Quando estava sendo levada para o centro cirúrgico,
mil coisas se passaram por minha cabeça.
Ali, deitada naquela maca, emoções diversas me engolfavam. Estava
feliz e triste ao mesmo tempo. Pensei na família do meu doador ou doadora.
Algo que significava minha felicidade, era a tristeza deles, os entes queridos
que perderam uma pessoa importante. Por que eu merecia uma chance e ela
não? Será que tudo aquilo daria certo?
Esse e outros questionamentos me incomodaram durante o percurso
até entrar na sala de cirurgia. Percebi toda a movimentação da equipe
cirúrgica, ainda muito tensa. Eu tremia de frio e medo. O Dr. Moreira se
inclinou para falar comigo e me acalmar.
— Mariana, tudo bem? Já vamos começar, fique tranquila!
Ele me pediu para contar até dez e em meio ao som de um bip, eu
obedeci.
— 1, 2, 3, 4... 5... 6... — foi até onde me lembro de ter ido.
Então, tudo se apagou.
◆ ◆ ◆
Acordei dois dias depois. Só então fui me situando do que estava
acontecendo. Descobri que a cirurgia tinha sido um sucesso e durou quase
cinco horas. O Dr. Moreira me disse que meu organismo estava reagindo
bem e que ele estava muito confiante. Daquele dia em diante eu teria que
tomar imunossupressores e outros medicamentos para garantir que meu
corpo não rejeitaria aquele coração. Era outra realidade. Fiquei internada
por mais sete dias e enfim, recebi alta.
Foram dias turbulentos. Aquela nova realidade mexia com meu
emocional. A recuperação era lenta e desgastante. Preferi mudar de ares e
fui para casa da minha mãe em Indaiatuba. Diego estava me cercando de
novo e eu não queria mais me envolver com ele. Nem com ele e nem com
ninguém. Precisava me reencontrar primeiro, ter certeza de que aquilo daria
mesmo certo. Toda essa experiência me deixou mais sensível. A
possibilidade de perder a vida, me fez repensar muita coisa... desacelerar.
Passei a observar mais a beleza das coisas simples e a ser grata sempre.
Seis meses se passaram e eu estava me preparando para voltar à
ativa. Seria meu primeiro dia no trabalho após a cirurgia. De pé em frente
ao espelho, olhava para a cicatriz vertical em meu peito. Mil coisas se
passavam por minha cabeça. Sentimentos atravessados. Não tinha certeza
de nada. Não sabia o que o futuro me reservava, mas estava feliz.
Era oficialmente o dia do meu recomeço. Deslizei os dedos pelo sinal
ainda avermelhado e repousei a mão sobre o meu peito. Senti o pulsar do
meu novo coração. Pensei na pessoa que foi seu dono. Tentei dar um rosto a
ela, mas era algo impossível. Não havia nenhuma informação sobre o
doador, era proibido. Respirei fundo e ainda olhando para o espelho, falei:
— Muito obrigada!
CAPÍTULO 7

Leonardo Moretti

Doze meses se passaram. Um ano do pior dia da minha vida. O dia


em que pensei que perderia a razão ao ouvir a frase: “Nós a perdemos!”.
Perdi o chão. Mesmo tendo passado um tempo considerável de dias, todo o
horror que passei ao saber que Daniela havia morrido, estava bem vivo em
minha mente, como se tivesse sido ontem.
Ainda não superei e acho que nunca vou superar essa dor. Estou
seguindo por meus filhos. Sei que eles precisam de mim e preciso ser forte.
Mas o luto não acaba. Tento colocá-lo de lado, mas ele me segue como uma
sombra e a cada dia que passa a saudade aumenta.
Davi está com um ano e dois meses. Já está correndo para todos os
lados e falando suas primeiras palavras. É um bebê esperto e muito bonito.
A Dani ficaria orgulhosa de ver o quanto ele é feliz e saudável. Ele não
sente a falta dela como os outros. Sarah foi a mais atingida. Era muito
apegada à mãe, muito nova para compreender certas coisas e sempre chama
por ela. Já perdi as contas das vezes que a expliquei que a mãe dela não vai
mais voltar. Mas outro dia ela disse que sonhou que ela voltaria e parece
acreditar mesmo nisso. Eu resolvi não a frustrar dizendo o contrário. Se
essa é a forma que ela encontrou para se conformar, não vou tirar isso dela.
Já o Matteo era um piá diferenciado. Ele sentiu muito a morte da mãe
e chorou bastante. Porém, é o único que parece ter encontrado o equilíbrio
de suas emoções. Ele estava sendo um suporte para todos nós. Pensa
positivamente e continuamente tem uma palavra de ânimo para todos. É
muito otimista e sempre acha um jeito de me consolar quando estou em
minhas crises depressivas.
Sim, infelizmente me tornei um ser amargurado e reativo. Não vejo
mais sentido em nada da vida. Se não fosse pelos meus filhos, já teria
enlouquecido. Nunca imaginei que sentiria tanto a morte da minha esposa.
Era como se um pedaço de mim tivesse sido arrancado.
Ainda estava parado de pé na varanda da nossa casa olhando para o
horizonte. O café em minha xícara já estava gelado e eu imerso em meus
pensamentos, quando vi meu pai se aproximando apoiado em sua bengala.
Virei todo o café, depositei a xícara na mesinha e fui recebê-lo. Ele sempre
vinha conversar comigo nesse horário. Conversávamos, ele brincava com os
netos, às vezes jantávamos juntos. Também era o momento dele me dar os
seus conselhos. Sentado de frente para ele na varanda, o ouvia atentamente.
— Você precisa seguir em frente, meu filho! Eu sei que está sendo
difícil, mas precisa continuar vivendo. Seus filhos precisam de um pai que
passe segurança pra eles.
— Estou fazendo o que posso, o que consigo. — respondi sem
encará-lo.
As crianças estavam brincando no quarto sob a supervisão de Matteo.
Eu e meu pai já estávamos conversando há mais de trinta minutos. Ele me
perguntou o de sempre. Sobre as coisas da fazenda, uma e outra situação
com algumas burocracias impostas aos pequenos produtores de leite,
pendências a serem resolvidas com alguns funcionários, entre outras coisas.
Como esperado, havia chegado a parte dos sermões. Quase sempre a mesma
coisa. É claro que isso me aborrecia, mas eu sabia que era só uma
preocupação de pai. Então, tentava me manter calmo, sem afrontá-lo.
— Precisa se esforçar mais, Leonardo! Tentar sorrir, se mostrar mais
otimista.
— Não tenho motivos pra sorrir... — falei em tom melancólico.
Ele meneou a cabeça discordando.
— Não seja ingrato! Você tem muitos motivos pra sorrir! Tem três
filhos maravilhosos, um teto, comida na mesa, saúde. Olhe à sua volta! Veja
tudo o que conquistou!
— Nada disso faz sentido sem a Daniela. — reclamei.
— Se ela soubesse no que você está se transformando, com certeza
desaprovaria. — ele pensou por um instante e completou em tom reflexivo:
— Talvez até saiba, não sabemos...
Me irritei.
— Não, ela não sabe. A Daniela está morta, pai! Ela não existe mais.
Essa é a verdade! E é exatamente essa certeza que está acabando comigo.
Meus filhos vão crescer sem a mãe e eu... Eu não estou conseguindo fazer
os dois papéis. Estou desnorteado.
— E nem tem que fazer. Você precisa arrumar uma mulher pra te
auxiliar e também te fazer sorrir de novo.
Meneei a cabeça em negativa.
— Não, não quero me amarrar a ninguém. Uma madrasta seria a pior
coisa que poderia dar aos meus filhos.
— Ah, nem todas as madrastas são ruins e um homem tem suas
necessidades.
Olhei para ele intrigado.
— Está falando por experiência própria?
— De certa forma sim. — respondeu apertando os lábios e
balançando a cabeça afirmativamente.
— Mas o senhor nunca se casou depois da morte da mãe. Por que eu
deveria?
— Sim, nunca me casei, mas...
— Com certeza tem as mesmas necessidades que eu. — completei.
— É diferente — com as mãos apoiadas à bengala em sua frente,
jogou a cabeça para trás com leve sorriso — Eu já sou um velho... Você está
novo ainda, vigoroso! Precisa de uma mulher.
Olhei para ele com um sorriso de canto e falei:
— Não preciso me casar para ter uma mulher, Seu Tommaso! Para
isso tem o Clube da Rubi. Já estive lá algumas vezes nos últimos dois
meses.
Ele me olhou com reprovação.
— Ah meu filho, não procure esse tipo de mulher!
Dei de ombros.
— Por que não? Até que as garotas são simpáticas!
— Você precisa de alguém que traga sentido à sua vida de novo.
Precisa se apaixonar... Ter alguém que esteja disposta a amar os seus filhos
e te ajudar a cuidar deles.
— Me apaixonar... — meneei a cabeça — Não posso colocar
ninguém no lugar da Dani. Nunca vou amar alguém como a amei. Ela é
insubstituível! Quanto as crianças, a Denise tem me ajudado.
— A Denise tem a vida dela, a família dela. Não pode submetê-la a
isso por mais tempo. Ela não reclama, mas dá para ver que está
sobrecarregada.
Revirei os olhos e estalei a língua, mas tive que concordar. Meu pai
tinha razão. Minha cunhada era prestativa e sempre se oferecia para me
ajudar, mas realmente era um fardo pesado para ela aquela
responsabilidade.
— Vou arrumar alguém, não se preocupe.
Meu pai pensou um pouco e sugeriu:
— Tem aquela moça, a tal de Cíntia. Ela já veio aqui várias vezes. Tá
precisando, coitada! Há tempos que procura um emprego estável. Está
vivendo de faxinas.
Meneei a cabeça negativamente.
— Quero ver se arrumo outra pessoa. Precisa ser alguém mais velha,
de confiança.
— Bem, ela é nova, mas é de confiança. A Daniela a contratou
algumas vezes, não se lembra?
Eu me lembrava, mas tinha algo nela que me incomodava. Talvez
fosse uma implicância boba, pois ultimamente nenhum dos meus
empregados me suportavam de tão mal-humorado que estava. Lidar com
essas questões da casa me tirava do sério.
— Sei quem é. — respondi — Logo que Daniela faleceu, ela se
ofereceu para nos auxiliar em tempo integral, mas eu recusei. Acho ela
esquisita e não sei se daria conta das crianças.
— Se ficar exigindo demais nunca vai encontrar ninguém.
— Não estou exigindo demais, pai. Só preciso de melhores
referências. Não vou colocar meus filhos nas mãos de qualquer um.
— Estela a conhece. Talvez ela possa te dar mais informações.
— Vou ver com ela amanhã. Se ela não estiver mais disponível,
Estela me disse que sempre aparecem moças precisando de emprego por lá.
Estela era dona da única pensão da cidade. Um lugar bem
aconchegante e modesto, com preços acessíveis para receber hóspedes que
procuravam um lugar mais barato durante sua estadia na cidade.
Geralmente eram jovens que vinham fazer trilhas ou visitar as grutas das
Três Marias das Águas Claras.
Eram lugares muito bonitos e considerados sagrados, onde muitos
realizavam retiros espirituais para se purificarem naquelas águas ou fazerem
toda aquela baboseira de conexão com a natureza. Diziam que eram
curados. Para mim era apenas uma boa estratégia do prefeito para atrair
turistas e movimentar a cidade.
Essas grutas eram muito famosas por aqui, mas existiam outras. Eu e
a Daniela costumávamos visitá-las de vez em quando, principalmente antes
de termos nossos filhos. Conhecíamos um lugar mais reservado e muito
bonito, dentro das nossas terras mesmo, onde passávamos horas desfrutando
da companhia um do outro. Era tão reservado que nadávamos
completamente nus nas águas transparentes. Aproveitávamos para fazer
amor, nos devorando de paixão como se fôssemos só nós dois no mundo.
Era nosso paraíso particular. Fico todo arrepiado só em me lembrar desses
momentos.
Napolitana era uma cidade pequena de pouco mais de trinta mil
habitantes, mas estava em bom desenvolvimento e os projetos culturais
eram responsáveis por grande parte desse sucesso. Tudo isso atraía pessoas
em busca de emprego. Gente vinda de comunidades vizinhas que pareciam
ter parado no tempo. Vilarejos atrasados e resilientes, que nada tinham a
oferecer à sua população mais jovem a não ser o duro trabalho nas
lavouras.
— Faz bem em arrumar alguém para te ajudar, mas precisa ser de
confiança. Escolha com cuidado. — observou meu pai.
Acenei com a cabeça concordando e tirei um maço de cigarro do
bolso da camisa. Ofereci a ele, mas ele rejeitou. Peguei um e levei à boca.
— Voltou a fumar? — Meu pai perguntou com a testa franzida.
Respirei fundo.
— Às vezes. — respondi, enquanto acendia o mesmo com um
isqueiro. — Só pra esquentar do frio.
Ele me olhou com certo desânimo, mas não disse mais nada. Ficamos
observando a noite cair e trocamos mais algumas palavras antes de nos
recolhermos.
CAPÍTULO 8

Mariana Barros

Há seis meses voltei a trabalhar. Já completou um ano do transplante.


Meu corpo está respondendo positivamente ao novo hóspede. Às vezes nem
acredito que tudo realmente deu certo. Isso sempre me emociona. Está tudo
melhor do que pensei que ficaria. Então, me sinto bem fisicamente. Porém,
psicologicamente não posso dizer a mesma coisa. Não que eu esteja triste,
desanimada, ansiosa ou com pensamentos negativos. Não é nada disso.
Me sinto revigorada e animada com o futuro, apenas não estou
conseguindo me conectar por completo no meu mundo novamente. Todos
os dias me sento à minha mesa observando tudo a minha volta. Vejo como o
dia passa e é tudo muito estranho. Pessoas vem e vão, agitadas, falantes,
correndo atrás de algo que no final do dia se resume, quase sempre, em
esgotamento mental e físico.
Meu trabalho aqui sempre foi muito frenético. Eu deixava todos
loucos e reconheço que grande parte do comportamento deles é um reflexo
de mim mesma, de como eu era. Isso mesmo. Era. Não sou mais assim.
Como disse antes, não estava mais conseguindo me encaixar em nada
daquilo. Talvez pelo fato de quase ter partido desta vida e refletir o quanto
nossa existência é efêmera, não conseguia achar um motivo para tanto
estresse, tanto desgaste. Olhei para a pilha de trabalho acumulado sobre
minha mesa (coisa que nunca havia acontecido antes) e fiz uma careta.
— Ah... Dane-se! — ignorei tudo aquilo.
Em seguida, interfonei para Maitê, minha secretária e pedi dois cafés.
— Sim, senhora. — ela respondeu prontamente.
Maitê era minha secretária há anos. Era tão eficiente que até parecia
ler meus pensamentos e eu pagava a ela o dobro que uma secretária comum
ganharia, só para mantê-la comigo. Enquanto esperava, fui pesquisar umas
coisas na internet. Nada sobre trabalho. Pesquisava uma receita de bolo.
Estava com muita vontade de comer um bolo caseiro como os que comia na
casa da minha avó quando era criança. A vontade era tanta, que arriscaria
fazer um, assim que chegasse em casa. O de laranja com calda era o meu
favorito.
Eu era péssima na cozinha, mas tentaria. Procurei por uma receita
menos elaborada e anotei os ingredientes. Depois de uns minutos, Maitê
bateu à porta e abriu. Segurava uma bandeja com duas xícaras. Sorri para
ela e gesticulei para se aproximar. Ela devolveu o sorriso, depositou a
bandeja sobre a mesa e me olhou com curiosidade.
— Para quem é o outro café? — perguntou.
— Pra você — respondi, pegando uma das xícaras — Senta aí!
Com seu jeitinho esperto, ela me olhou surpresa, mas fez o que eu lhe
pedi.
— Algum problema? — ela perguntou e percebi que ficou um pouco
tensa, pois suas mãos tremeram ao pegar a xícara.
— Problema algum, Maitê. Só quero conversar um pouco, saber
como anda sua vida, o que tem feito. — Dei o primeiro gole em meu café, a
olhei por cima dos óculos e perguntei: — Ainda está namorando o Juliano?
Maitê era uma moça bonita. Estatura mediana, olhos castanhos
claros, bem branquinha e magra. O que mais chamava a atenção nela era o
sorriso. Dentes perfeitos e brancos, o que a deixava mais simpática. Ela me
encarou admirada pela pergunta pessoal.
— Sim, estamos noivos! — Me mostrou a mão direita, e pude ver o
brilho dourado de uma aliança. — Vamos nos casar ano que vem. Ainda
não marcamos uma data. Mas já estamos providenciando tudo.
— Que maravilha, Maitê! Eu não sabia. Nossa, perdi tanta coisa! Me
conta mais como estão os preparativos...
Ela se endireitou na cadeira e se empolgou. Maitê começou a falar e
ouvia atentamente tudo que ela me contava. Seus olhos brilhavam ao falar
daquele passo tão importante. Não sei por que, mas gostei muito de ouvir.
Pela primeira vez estava conversando com minha secretária sobre um
assunto que não tinha nada a ver com o nosso trabalho. E
surpreendentemente, estava apreciando e realmente feliz por ela. Em
outras épocas aquilo nunca aconteceria. Nada me deixava mais entediada
do que assunto sobre casamento, principalmente a cerimônia em si. Sempre
via tudo como um grande comércio.
Além de nunca querer me casar por motivos que muitos diriam ser
egoístas, também não acreditava nessa instituição. Minha mãe se gabava
por ter tido um casamento maravilhoso, mas era outra época. Hoje em dia
as coisas são muito diferentes. Conheço tanta gente vítima dessa armadilha!
Oitenta por cento dos meus amigos são divorciados. Os que são casados,
estão no segundo ou terceiro casamento. No meio disso tudo já testemunhei
tanta história desastrosa! Traições, escândalos e os filhos no meio do fogo
cruzado.
Nada disso fazia sentido para mim. Inegavelmente, casamento é uma
instituição falida. Mas ainda há os que acreditam, os românticos incuráveis,
como Maitê, que depois de me detalhar como era o seu vestido, passou a
me falar sobre os vestidos das madrinhas e as flores que iriam ornamentar a
igreja. Entre outras coisas.
— O Juliano vai usar fraque. — ela falou.
Arregalei os olhos.
— Sério? — perguntei, terminando o meu café.
— Sim — ela riu, tapando levemente a boca — Eu sei, é meio brega,
mas ele fica tão lindo e eu acho que super combina com meu vestido com
saia bufante.
Ela suspirou, certamente imaginando como seria esse momento e eu
balancei a cabeça afirmativamente com um sorriso nos lábios, realmente
feliz por ela.
— Não vejo a hora de chegar esse dia! — exclamou. — Espero que
tudo dê certo!
— Vai dar. Com certeza estará tudo... — pensei em uma palavra —
Divino! — falei.
Ela sorriu e, finalmente se lembrou do café. Enquanto bebia, me
olhava como se estivesse se preparando para possíveis perguntas minhas.
Então, fiz uma pergunta um tanto indiscreta:
— Ele é o cara certo?
Depois de processar a pergunta, ela sorriu e balançou a cabeça
dizendo sim. A certeza estava lá, explícita em seu rosto ruborizado de
garota apaixonada. Até senti um pouco de inveja.
— É ele, sem dúvida. — ela confirmou.
Olhei para ela intrigada.
— Como pode ter certeza? — realmente era algo que eu queria saber.
Ela repousou a xícara no pires e deu um suspiro.
— Aí é que está! Eu não tenho certeza, Mari!
Franzi a testa, confusa.
— Ué, não entendi. — falei.
Ela meneou a cabeça e explicou:
— Não é uma questão de ter certeza, e sim de acreditar. Eu encontrei
no Juliano tudo o que eu quero e espero de um homem. Então, eu
simplesmente sei que é ele.
— Mas como saber disso no meio de tanta “oferta no mercado”?
Como saber que é aquela pessoa? A pessoa com quem quer passar o resto
da vida?
Ela me encarou de forma condescendente.
— Desculpa, mas essa pergunta não faz sentido. — falou com olhos
semicerrados — É como se perguntasse: Por que eu nasci no Brasil e não na
Inglaterra? — deu um gole no seu café e continuou: — A gente vive o que
temos que viver e vamos fazendo nossas escolhas. Em se tratando de
relacionamentos, penso que é como religião.
— Religião? — aquilo estava interessante.
— Sim. Nós escolhemos uma, acreditamos nela e nos dedicamos.
Não que as outras sejam ruins, mas sempre escolhemos a que mais se
encaixa ao que imaginamos ou esperamos que seja melhor pra nós.
Era bem coerente o que ela dizia. Aquele assunto dava margem para
inúmeros pontos de vista. Eu já tinha uma opinião formada sobre ele e nada
me faria mudar de ideia, mas ouvi atentamente seus argumentos em defesa
do casamento e achei interessante. Por fim, falei:
— Fico muito feliz por você, Maitê.
— Você vai no nosso casamento, não vai?
— Claro! Quero muito ser testemunha desse dia tão especial pra
vocês dois. Admiro, de verdade, sua forma confiante de ver a vida. — fiz
uma pausa e, em seguida, falei meio reflexiva — Eu não sou assim.
— E por que não? — me questionou, como se estivesse me
desafiando a experimentar aquilo. — Você precisa perder esse medo de se
casar!
— Não é medo, só não me vejo nessa situação. Presa a outra pessoa!
Eu não tenho medo! — protestei. — Não é medo!
— É medo sim. Você sabia que pessoas que temem o casamento
como você, na verdade só tem medo de se frustrarem, de serem
abandonadas... Ficarem sozinhas?
— Sozinha eu já estou. — falei, enquanto fazia uma careta.
— Então?
Respirei fundo e desviei o olhar para a janela.
— Ah, não sei... Estou muito confusa, sabe?
— Confusa?
— É... Não sei explicar... Minha vida está muito estranha.
— Como assim?
— É como se não estivesse mais me encaixando em nada.
— Ah, Mari! Também, depois de tudo o que você passou, queria o
quê? Passar por um transplante de coração não deve ser nada fácil. Com
certeza é algo que mexe com o psicológico.
— Realmente não é fácil. — concordei.
— Mas você tem feito terapia, não é?
— Sim, mas é complicado. Toda essa mudança, essa adaptação. E
ainda tem uns sonhos estranhos que ando tendo, que passaram a ser
constantes.
— Sonhos?
— É... Antes eu nem sonhava direito. Agora sonho com lugares que
eu nem conheço, mas ao mesmo tempo parece que conheço... Não sei
explicar.
— Que tipo de lugar? — Maitê se mostrou um pouco mais
interessada.
Tentei me lembrar.
— Ah, são vários lugares, aleatórios... Parece ser uma fazenda ou um
bosque, não sei. Sempre tem uma cachoeira, flores... Um cata-vento.
Ela ergueu as sobrancelhas.
— Cata-vento? Daqueles grandões, de energia eólica?
— Não, é um cata-vento desses que a gente costuma ver em filmes.
— Ahhh... Então não é no Brasil. Isso é coisa de gringo.
— Pois é... Eu não sei por que está acontecendo isso, mas sempre
sonho com esse cata-vento. Um cata-vento amarelo... E é sempre o mesmo
cata-vento.
— Que interessante! E as flores? Que flores são?
Curvei os cantos da boca para baixo tentando reconhecer alguma, nas
imagens que surgiram em minha mente.
— São várias. Todo tipo de flor... — respondi. Me lembrei de uma
em especial — Girassóis! — falei.
Ela arregalou os olhos e disse:
— Olha, já ouvi dizer que é muito bom sonhar com girassol! Será
que não são mensagens de um outro plano? Muitas pessoas abrem o terceiro
olho depois de uma cirurgia, ainda mais uma tão invasiva quanto essa.
Fiz uma careta e meneei a cabeça.
— Bobagem! Acho que tem a ver com a cirurgia sim, mas só penso
que eles devem ter acionado alguma terminação nervosa específica. Isso
pode ser lembranças da infância adormecidas em meu inconsciente.
— É, mas já ouvi dizer que sonhos tem significados, sim. Podem ser
proféticos, prevendo o futuro ou nos direcionando de alguma forma.
— Eu não acredito nessas coisas. Acho que é só uma resposta
neurológica mesmo.
— Pode ser, mas se te incomoda, seria bom investigar.
— Sim, claro, eu pretendo achar uma solução.
Maitê recolheu as xícaras e percebi pela sua expressão que ela
parecia estar preocupada comigo.
— Se eu puder ajudar em alguma coisa... — falou, solícita — Digo,
com isso...
Olhei para ela com leve sorriso e falei:
— Eu estou bem, mas acho que vou mesmo precisar de sua ajuda. —
ela me encarou com expectativa — Quero que me ajude a escrever uma
carta.
— Carta?
— Sim. Para a família do meu doador. A organização responsável
pelas doações me informou que posso enviar uma carta em agradecimento,
desde que mantenha o meu anonimato.
— Que legal, Mari!
— Eles também podem responder, se quiserem.
— Nossa, deve ter sido uma decisão difícil para eles!
— Com certeza. Por isso quero confortá-los de alguma forma. Talvez
isso ajude a, literalmente, acalmar meu coração.
Maitê se animou.
— Claro, ajudo sim! — levantou-se e foi buscar o seu caderno de
anotações.
CAPÍTULO 9

Leonardo Moretti

— Entendeu tudo direitinho? — perguntei.


— Sim, senhor!
Estava passando as orientações para Cíntia. Acabei por contratá-la.
Não havia mais ninguém e, por sorte, ela ainda estava disponível. Como
disse, ela já havia ajudado Daniela algumas vezes e, contrariando minhas
suspeitas, Estela me garantiu que era uma boa moça, enchendo-a de elogios.
Mais tarde descobri que minha esposa, que participava das obras sociais da
igreja, sempre ajudava a família dela, pois eram muito pobres.
Para não perder tempo, não pensei muito e lhe dei uma chance. Estela
entrou em contato com ela e, assim que conversamos, lhe dei o emprego.
Infelizmente, de agora em diante seria inevitável não me envolver nessas
questões domésticas, mas elas me aborreciam.
Cíntia se mostrou empolgada e já estava há uma semana em minha
casa. Ela trabalharia em tempo integral. Ainda estava se adaptando, mas
parecia estar gostando. Eu também posso dizer que comecei a vê-la de
forma diferente. Concluí que era só uma implicância boba da minha parte.
Ela era discreta, não falava muito e sabia cuidar de uma casa. Parecia ser
uma boa moça. Devia ter uns vinte e poucos anos, era morena, cabelos
cacheados, meio crespos.
Não era indouta, pelo contrário, era inteligente e instruída. Até me
surpreendi. Havia passado um tempo na capital, onde tinha ido tentar uma
vida melhor, mas parece não ter dado muito certo, então, acabou voltando
para a casa dos pais no interior, segundo me contou Estela. Ela também
disse que Cíntia havia trancado a faculdade de Pedagogia logo depois dos
primeiro seis meses, mas não explicou o motivo, certamente foi algum
problema financeiro. Então, fiquei aliviado. Se cursava Pedagogia, ela devia
ter vocação nessa área. Também se mostrou muito simpática e me pareceu
gostar de crianças.
Cíntia ocuparia um dos quartos do térreo. Nossa casa era grande.
Havia três quartos no andar de cima e dois embaixo. Eu ainda estava
achando muito estranho a presença dela por aqui, mas as crianças já
estavam se adaptando. Para evitar especulações e fofocas, contratei uma
cozinheira para ajudar. Era uma senhora bem branquinha de 52 anos,
também descendente de italianos, chamada Jandira. Ela iria cozinhar e
ajudar no que fosse preciso. As duas iam dividir o mesmo quarto. Mas ela
só chegaria no dia seguinte.
— Matteo, Sarah! Vamos! — Chamei.
Teria um dia cheio, mas antes precisava levá-los à escola. Graças à
Deus, eles já estavam prontos. Davi ainda dormia, mas Cíntia já estava com
sua mamadeira pronta, pois logo ele acordaria faminto. Me despedi dela e
pegamos o pequeno percurso até a cidade. Parei perto do portão da entrada
da escola e a professora da Sarah veio toda sorridente ajudá-la a descer do
carro.
— Bom dia, Leonardo! — ela me cumprimentou.
— Bom dia, Rita! — respondi com cordialidade e dei um beijo na
testa da minha filha, para em seguida sair dali o mais depressa possível.
Depois que fiquei viúvo muitas mulheres começaram a me cercar.
Nem disfarçavam. Principalmente as solteironas, mas eu fingia não
perceber. Não estou pronto para relacionamentos, nem sei se um dia
estarei. Ainda amo a minha esposa e a procuro em todas as mulheres que se
aproximam de mim, o que é frustrante, pois nunca vou encontrar.
Elas não têm nada que me lembre a Dani. Fui até o clube algumas
vezes, mas me senti estranho no meio daquelas moças, como se a estivesse
traindo. Mas ela se foi, não está mais aqui. O fato é que não consigo me
acostumar com sua ausência. E para piorar, essa semana recebi uma carta.
Sim, uma carta escrita à mão pela pessoa que recebeu o coração da
Daniela. Sei que foi uma mulher, mas não sei o seu nome, onde mora, se
tem família, nada além daquelas palavras. Aquela carta abalou minhas
estruturas. Saber que existe alguém andando por aí com o coração do amor
da minha vida, uma parte dela, é desconcertante. Certamente era alguém
que tinha uma vida, uma família, um amor... Ao menos havia o consolo de
saber que um pedacinho dela estava vivo, mas nunca saberia onde.
A vida era mesmo muito injusta! Felicidade para uns, tristeza para
outros... Nunca fui de chorar, mas chorei muito depois de ler aquela carta.
Uma miríade de sentimentos me envolveu. Nem sabia o que pensar sobre
aquilo. Li várias vezes e a guardaria com carinho, pois era o último registro
da bondade de Daniela. Ela que sempre se doava para todos, com certeza
ficaria muito feliz se soubesse que havia salvado uma vida.
A carta estava no porta-luvas do carro. Eu a peguei e já estava lendo
novamente. Me emocionei na parte que dizia:
“Olha, não sei quem você é, mas sei que, com certeza, é uma pessoa
muito especial para sua família e agora, especial para mim também. Me
sinto mal por saber que você se foi desse mundo e realmente não entendo
essa lógica do destino. De alguma forma, você está vivo, ou viva, dentro de
mim. Muito obrigada por salvar a minha vida! Agradeço também a sua
família, seus entes queridos que nesse momento sofrem com a sua ausência.
Sei que a aprovação deles foi crucial para decidir se eu viveria ou não. Se
pudesse, abraçaria todos para confortá-los de alguma forma, mas como
não posso, apenas digo de coração: Muito obrigada! Não posso revelar
meu nome, mas podem me chamar de ‘Agraciada’. É como me sinto. Mais
uma vez, muito obrigada!”
Enquanto lia, meneava a cabeça inconformado. Se eu tivesse chegado
quinze minutos mais cedo ou conseguido levar a Dani para Curitiba, ela
estaria viva. Com certeza estaria. Nunca vou me perdoar por isso. Dobrei
aquele papel e o coloquei no envelope novamente. Desta vez ele foi para o
meu bolso. Só mostraria a meus filhos, quando fossem mais velhos.
Guardaria aquela carta junto com as coisas da Daniela, pois grande
parte do que estava escrito ali era dirigido a ela. Nem sabia o que pensar.
Minha vida havia mudado drasticamente e a cada dia eu gostava menos de
como as coisas iam seguindo.
A casa que tínhamos na cidade, onde funcionava a floricultura da
Dani, ainda estava fechada. Precisava vender ou alugar aquele lugar o mais
rápido possível, pois com o abandono ela iria se deteriorar. Havia acertado
com uma imobiliária e eles me arrumariam algum negócio. Estava indo até
lá recolher as coisas da Dani e desocupar o local.
A casa era antiga, mas conservada e muito bonita. Durante uma
reforma, Dani manteve o estilo rústico, mas inseriu algumas coisas
modernas. Assim, entre as paredes brancas estavam dispostas belas
madeiras trabalhadas e algum acessório do momento, o que tornou o lugar
charmoso e aconchegante.
A casa ficava bem visível, pois na frente só havia um muro baixo e
um portãozinho de madeira. Era toda cercada por uma varanda, onde havia
muitas plantas. Na lateral direita, uma garagem para um carro. As janelas
grandes estavam bem distribuídas, embelezando toda sua extensão.
Passando a porta principal, a primeira sala era ampla e foi o espaço
escolhido para funcionar toda floricultura. Um pequeno corredor levava a
dois quartos, onde um era o ateliê de Dani e o outro era o quartinho da
bagunça, onde havia uma cama de casal comum. A cozinha ficava nos
fundos e tinha um bom tamanho.
Foi a primeira vez que entrei naquele lugar depois da morte dela, pois
não estava emocionalmente preparado para lidar com tantas memórias. Já
havia passado mais de um ano. Tinha poeira em todo ambiente, mas não
estava tão desarrumado como pensei que estaria. As plantas do jardim
estavam verdes, pareciam estar sendo cuidadas. A imobiliária, com certeza,
designou alguém para cuidar delas.
Não foi fácil entrar ali. A cada passo que eu dava, meu coração se
apertava. Tudo o que havia lá a lembrava. Daniela. Cada canto, cada objeto,
as plantas, as flores, as telas que ela pintava. Sentei-me em uma das
cadeiras, respirei fundo e olhei em volta. Projetei a imagem dela em cada
lugar. Linda, sorridente, fazendo algum arranjo de flores ou pintando algum
quadro.
“— O que foi? Por que está me olhando? Está tirando minha
concentração, Leo!”
Sorri com os lábios. Que lembrança boa! Como todas as outras que
vieram depois. Daniela sempre ali, linda, sorridente, prestativa, talentosa,
fazendo arranjos belíssimos com habilidade, para algum evento.
— Por quê? Por que você me deixou, meu amor? — perguntei, como
se ela pudesse me ouvir.
Eu sempre me lembraria dela. Fazia questão de que fosse assim, por
isso resolvi reservar um quarto em nossa casa na fazenda, só para colocar
suas coisas. Uma espécie de memorial para minha esposa amada. E muita
coisa estava ali. Levantei-me e comecei a juntar tudo o que eu queria levar.
Enchi a caminhonete com muitas coisas, mas não peguei tudo. Talvez
voltasse para buscar o resto. As telas em branco eu deixaria por ali mesmo
no cômodo usado como ateliê, mas as pintadas ou começadas e não
finalizadas, eu levaria. Uma delas me chamou a atenção.
Era uma tela que a Dani havia começado a pintar na semana em que
morreu. Seria um lindo girassol, mas estava pela metade, ou até menos. Ela
havia me dito que seria meu presente de aniversário. Segurei a tela em
minha mão e fiquei olhando para ela por um instante. Me lembrei do seu
fascínio por aquela flor e do que me disse quando começou a pintar aquele
quadro:
“— Sabia que Van Gogh fez uma série de pinturas com tema de
girassol?”
— Quem sabe você não fica tão famosa quanto ele? — foi o que eu
disse a ela.
Ela gargalhou e foi como se eu pudesse ouvir o som de sua risada
gostosa. Parei por um instante e suspirei. Passeei o olhar pelo lugar
novamente e espremi os lábios um contra o outro, tentando me conformar
com aquela situação, mas não seria fácil. As lágrimas já molhavam meus
olhos novamente. Foi então que fiz um pedido sem sentido, sem noção. Um
pedido completamente insano, para dizer o mínimo.
— Se puder voltar pra mim de alguma forma, volte Dani! Estarei te
esperando, amore mio, meu amor!
Não sei por que falei isso, mas falei. Com o quadro inacabado em
mãos, me despedi daquelas lembranças e saí.
CAPÍTULO 10

Mariana Barros

Estava dando pulos de alegria, porque na quarta tentativa de fazer um


bolo, acabou dando certo. Foi uma aventura. Agora ele estava
desenformado e intacto diante de mim. Só faltava a calda, que já estava
prontinha e uma delícia.
Coloquei a calda e as raspas de laranja do jeito que mandava a
receita. Fiquei um tempo admirando minha arte e tive que tirar uma foto.
Percebi que estava com um sorriso bobo no rosto. Como uma coisa tão
simples podia proporcionar tanta alegria?
— Muito bem, senhor Bolo de laranja, vamos ver se você está tão
bom quanto bonito! — falei em expectativa.
Passei uma cápsula de café expresso, peguei um pratinho e me servi
de uma fatia. Sentei-me à mesa e expirei. Estava cansada. Levei um pedaço
do bolo à boca e ele se desmanchou em minha língua com um sabor
incrível. Fechei os olhos em êxtase. Aquilo me fez voltar à minha infância.
— Huuummm!
Nem podia acreditar que eu mesma tinha feito aquele bolo. A cozinha
estava uma bagunça, mas tinha valido a pena. Respirei fundo e curti aquele
momento. Só uma coisa me incomodava: Estava sozinha. Seria maravilhoso
ter alguém para compartilhar. Me lembrei do meu irmão e como a gente
dividia nossas coisas. Lembrei também da felicidade da minha mãe quando
a gente elogiava sua comida.
— Bons tempos! — disse para mim mesma.
Como se adivinhasse meus pensamentos, ela me ligou.
— Oi, mãe! — atendi.
— Oi, minha filha! Como você está?
— Estou ótima! Estava pensando na senhora.
— Sério?
Contei a ela sobre minha aventura culinária e ela se surpreendeu.
Engatamos um papo de comadres como a muito tempo não fazíamos.
Contei-lhe sobre minha semana, mas não mencionei nada sobre as estranhas
sensações que vinha sentindo, para não preocupá-la. Mas ela com seu sexto
sentido percebeu que havia algo errado e me fez um monte de perguntas.
— Não é nada, dona Regina, já disse!
— Estou te achando diferente. Tem algo te incomodando com
certeza.
— Impressão sua.
— Tá bom... — ela fez uma pausa e eu sabia que não estava
convencida. — Se precisar de mim, estou aqui, meu amor!
— Pode deixar, mamãe. Mas pode ficar tranquila.
— É que eu me preocupo com você com esse coração no peito. Fico
pensando se está tudo conectado direitinho.
Tive que rir.
— Claro que está, mamãe! Meu corpo está se adaptando muito bem.
O corpo humano é incrível. — expliquei.
Ela se mostrou mais tranquila. Conversamos por um pouco mais de
tempo e encerramos a ligação. Fiquei reclusa por todo aquele final de
semana. Não levei trabalho para casa como costumava fazer. Maratonei
algumas séries, comi e dormi. Aqueles sonhos estranhos continuavam a me
atormentar. Quero dizer, ‘atormentar’ não era bem a palavra.
Eram sonhos estranhos sim, intrigantes, mas agradáveis. Lembrei-me
da conversa com minha secretária e a curiosidade me dominou. Fui até meu
laptop pesquisar sobre sonhos e seus significados. Tudo que encontrei era
muito místico e fantasioso. Sinceramente, eu não acreditava em nada
daquilo, mas achei interessante. Um artigo dizia:
— “O sonho tem papel de destaque na teoria do psicanalista suíço
Jung sobre a psiquê humana. Segundo Inácio Cunha, Ph.D. em psicologia
analítica junguiana, e organizador de um seminário sobre o pensador,
realizado em Belo Horizonte, o tipo de vida atual, estruturada na razão e
no pragmatismo, nos afastou da prática, tão comum ao longo do processo
de desenvolvimento do ser humano, que é a de prestar atenção aos
sonhos.” — li o restante da matéria e questionei: — Será?
Segundo o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, a análise dos sonhos e
de conteúdos simbólicos inconscientes e imaginação ativa, são técnicas
terapêuticas que fazem uma ponte entre os aspectos inconscientes da
personalidade com os aspectos conscientes. A terapia tem como objetivo a
superação de traumas, bloqueios emocionais de qualquer ordem.
Ele afirma que os sonhos podem trazer a ressignificação de
sofrimentos, o que auxilia em questões como ansiedade, depressão, luto,
estresse, problemas de relacionamentos, confusão mental e emocional,
transição de vida ou de carreira e etc. Eles estimulam o autoconhecimento
do ser autêntico e único de cada indivíduo. Isso foi o que achei mais
coerente. Poderia ser o que estava acontecendo comigo.
Li muitas coisas, mas, na verdade, não cheguei a nenhuma conclusão.
No final das contas era só um monte de teorias sem nenhuma comprovação.
— Isso tudo é uma grande bobagem! — exclamei, desanimada,
fechando o notebook.
◆ ◆ ◆

Na segunda-feira, cheguei ao trabalho com a animação de todas as


segundas, que nem sempre era boa. Aliás, aquele ambiente da agência
estava se tornando tedioso. De um dia para o outro me tornei uma espécie
de atração, aberração. Todos ficavam me tratando como se eu fosse de
cristal, me poupando dos assuntos e trabalhos mais exaustivos e, ao mesmo
tempo, mais interessantes. Optei por não reclamar, pois, de certa forma, eles
tinham razão. Sei que não conseguiria me doar por completo como antes.
Maitê me recebeu com um largo sorriso. Depois de passar minha
agenda da semana, ela anunciou que queria me contar uma coisa
importante. Pela sua cara, pensei se tratar de algo sobre seu casamento.
Entrei em minha sala e ela veio atrás de mim.
— O que foi, Maitê? Se for me convidar para ser madrinha, vou logo
dizendo que não tenho par. A não ser que me arrume um — falei de forma
divertida.
Ela paralisou e se colocou diante de mim. Ficou me olhando com
leve espanto e a princípio não entendi.
— Realmente seria minha madrinha? — ela perguntou, meio
surpresa.
Vi no seu olhar que aquilo era algo que ela queria.
— Bem, eu... — abri a boca para falar, mas não soube o que dizer.
— Eu só não perguntei antes, porque achei que nunca aceitaria...
Sabe como é... Você é uma pessoa importante, então o time de padrinhos já
está completo. — revelou com certo pesar, mas seus olhos brilharam de
repente, como se estivesse tendo uma ideia — Se você quiser eu dispenso
alguém... Seria uma honra...
Meneei a cabeça e logo a cortei:
— Não, eu só estava brincando, Maitê! — falei.
— Ah! Eu achei que talvez você quisesse... — ela ficou sem graça,
mas eu não podia imaginar que ela estava mesmo cogitando que eu fosse
sua madrinha.
Sorri, tentando ser o mais agradável possível.
— Infelizmente não posso me comprometer com isso, ainda estou em
recuperação e ser madrinha é uma grande responsabilidade. — expliquei.
Ela deu um sorriso educado e parecia decepcionada, mas entendeu o
meu lado. Logo voltou ao humor de antes. Ocupei o meu lugar e ela se
sentou na cadeira do outro lado.
— O que queria me dizer? — perguntei.
Ela se endireitou e começou a falar:
— Bem, é sobre os sonhos que você disse que está tendo.
Ergui as sobrancelhas, surpresa. Não esperava que ela fosse voltar
naquilo.
— O que tem os “meus” sonhos? — indaguei.
— É que eu tomei a liberdade de perguntar sobre isso com uma
prima que entende do assunto.
— Prima?
— Não falei sobre você. Pode ficar tranquila! — acudiu — Só falei
sobre aquele tipo de sonho e fiz algumas suposições, mostrando uma
curiosidade casual.
— E o que ela te falou? — perguntei, escorando o queixo com uma
das mãos, me preparando para ouvi-la.
— Bem, ela disse muitas coisas, mas... O que mais me chamou a
atenção e pareceu se encaixar no seu caso, foi quando disse que sonhar com
girassóis significa recomeços. — fiz uma careta desdenhosa, mas Maitê
continuou a falar naturalmente — E, segundo ela, quando alguém sonha
com um lugar desconhecido, geralmente significa que a pessoa está em
busca de novas experiências e aventuras na vida. Ou precise passar por elas,
mesmo que não queira. Esse sonho pode estar relacionado a uma sensação
de curiosidade e desejo de explorar o desconhecido, ou pode ser... — ela
deu um tom de mistério na voz — Um chamado!
Maitê fez os gestos de grand finale de sua explanação e, depois de se
calar, ficou esperando minha reação com um sorriso animado. Eu a encarei
por um tempo, tentando segurar o riso, mas não aguentei. Logo explodi
numa gargalhada. Ri do jeito dela e do quão absurdo e fantasioso era aquilo.
Ela fez uma careta e esmoreceu.
— Por que você está rindo? — perguntou.
— Isso não faz sentido algum, Maitê!
— Por que não?
— Ora, porque sonhos só são sonhos.
Ela meneou a cabeça, espalmou levemente as duas coxas e se
levantou.
— Então, tá! — disse sem olhar para mim — Nem vou falar o resto.
— Que resto? — quis saber — O que mais sua prima falou?
— Do que adianta? Você não acredita!
— Mas eu quero ouvir.
Ela sentou-se novamente.
— Tá bom, mas se você rir, eu vou parar.
— Eu não vou rir, prometo.
Ela limpou a garganta e continuou:
— Bem, ela acha que você deveria considerar todas as possibilidades
de interpretações desses sonhos e ouvir a voz do seu coração.
Dei um leve sorriso.
— Voz do meu coração? — perguntei, encabulada.
— É... Talvez ele esteja te chamando pra viver algo incrível. Ainda
mais que ele tecnicamente nem é seu.
Meneei a cabeça com olhos semicerrados.
— Maitê? O que você quer dizer com isso?
— Pensa comigo, Mari! Você recebeu o coração de outra pessoa.
Acho que ele está te passando mensagens. — ela voltou a se empolgar,
levando mesmo a sério tudo aquilo — Talvez exista uma missão pra você!
Fechei os olhos e sacudi a cabeça rapidamente.
— Espera, aí! — apontei para o meu peito — Você está insinuando
que esse coração tem memórias do meu doador, é isso?
— Exatamente.
— E que ele está tentando se comunicar?
— É... Talvez...
Revirei os olhos.
— Isso é a coisa mais idiota que já ouvi! — falei — Essa sua prima
não sabe de nada.
Ela me olhou esperançosa.
— Mas e se for verdade?
— Isso não existe, Maitê. O coração é só um órgão!
— Ah, Mari, eu não sei não. Minha prima é muito assertiva. Ela tem
o dom.
Expirei, desanimada e falei, enquanto começava a examinar os papéis
sobre minha mesa:
— Olha, eu agradeço o seu esforço em ajudar, mas eu não acredito
nessas coisas.
— Eu também não era de acreditar, mas hoje eu acredito. Também
acho que, mesmo você não acreditando, podia considerar essa
possibilidade.
— E o que eu posso fazer? — perguntei.
— Ah, sei lá. Se fosse eu, ia procurar por aquele cata-vento.
— Cata-vento?
— É... O cata-vento do seu sonho!!!
Caí o queixo.
— É sério isso? — perguntei.
— Claro!
— Sabe quantos cata-ventos devem existir pelo mundo?
— Com certeza muitos, mas você disse que sempre sonha com o
mesmo cata-vento, não é?
Pensei por um instante e concordei.
— É... Parece ser o mesmo.
— Então, você poderia descobrir onde ele está. Deve haver algo bem
específico perto dele pra servir de referência. Tente se lembrar. E se for aqui
no Brasil, vai ser mais fácil, porque aqui quase não tem.
Meneei a cabeça.
— É só um sonho, Maitê. Com certeza esse cata-vento não existe de
verdade.
— Mas e se existir?
Olhei para ela e não soube o que dizer.
CAPÍTULO 11

Leonardo Moretti

Era sábado. Estava consertando as hélices do cata-vento. Duas delas


haviam se quebrado durante a chuva da noite anterior. Não era nada que
comprometesse sua funcionalidade, mas estava muito feio. Precisava
arrumar, pois as crianças da escolinha do fundamental viriam na segunda-
feira para um passeio escolar.
Era comum os alunos do primário da “Tia Ivone” participarem de
uma excursão para conhecerem e interagirem com os bichinhos e outras
coisas da fazenda. Eles sempre tiravam fotos com aquele cata-vento no final
do passeio.
Esse cata-vento embelezava nossa fazenda e era quase um ponto
turístico. Muitas pessoas paravam para tirar foto dele, pois era alto e ficava
logo na entrada da nossa propriedade. Da estrada se via sua imponência. Eu
o pintei de amarelo para combinar com os girassóis e era realmente lindo de
ver.
Além de bonito, era muito útil. Girava a roda d’água, abastecendo um
gerador de energia, que por sua vez bombeava água dos poços artesianos.
Também assegurava a oxigenação para o lago dos peixes e colocava o
moinho em funcionamento. Era uma tecnologia antiga, mas muito eficiente.
— Pai, a Jandira disse que o almoço está pronto! — gritou Matteo ao
pé da escada.
— Estou indo! — respondi depois de limpar o suor da testa. — Já
terminei aqui!
Jandira cozinhava muito bem e tinha muito carinho pelos meninos,
fazendo seus gostos. Acertei em cheio em contratá-la. Não podia dizer o
mesmo de Cíntia. Ela cuidava bem das crianças, mas de uns dias para cá,
estava agindo um pouco estranho. E a culpa era toda minha.
Nos primeiros dias dela aqui, era calada, tímida. Seu foco era
somente as crianças. Porém, depois de quase dois meses, ela começou a se
insinuar para mim. Eram insinuações sutis, mas perceptíveis. Eu fingi não
perceber, mas aos poucos ela foi intensificando as investidas, até que um
dia apareceu em meu quarto completamente nua, se oferecendo.
Eu não resisti e dei a ela o que queria. Não houve sentimento algum
da minha parte. Ela até tentou me beijar, mas não permiti. Apenas a fodi
como se faz com uma puta, enquanto ela agia como tal. Parecia ser bem
experiente na arte de trepar, o que me deixou muito mal. Certamente era
isso que ela fazia na capital. Me arrependi amargamente por ter cedido.
Assim que enchi a camisinha, bateu uma depressão. Me joguei para o lado,
suado, arrasado, sem coragem de encará-la. Apenas a ordenei que saísse.
— Isso não vai se repetir! — falei e fui enfático.
Ela deixou o quarto sem dizer nada, certamente decepcionada. Ao
menos tive o cuidado de me atracar com ela entre as almofadas, no tapete
gigante que havia por lá. Não quis macular o nosso colchão. Meu e de
Daniela.
Desde então, Cíntia estava agindo diferente. Mudou completamente
de postura. Se comportava como se fosse a dona da casa. Até ordens estava
dando a Dona Jandira e ignorando as minhas. E o pior, não parou de tentar
me seduzir. Não suportando mais aquela situação, chamei-a para uma
conversa séria e a repreendi. Na verdade, a puxei pelo braço e a levei até o
meu escritório.
— O que está pretendendo com isso, hein, garota? Já disse que não
vai acontecer mais nada entre nós. Aquele dia foi um deslize, um erro. Você
me pegou num momento de vulnerabilidade.
Ela me olhou com certo cinismo, nem um pouco abalada com minhas
palavras.
— Não sei pra que tanta resistência, Leonardo. Somos desimpedidos,
moramos na mesma casa e eu sei que você gostou tanto quanto eu. Deixa de
bobagem! Estou aqui à sua disposição. Pode usar e abusar de mim. — ela
falou, desnudando os seios. — Reconheça! Eu sou, praticamente a mãe dos
seus filhos... e agora, sua mulher.
Olhei para ela sem acreditar em tamanho descaramento. Estava
mesmo convencida que ocuparia o lugar da Daniela. Meu sangue ferveu e
esmurrei a mesa.
— Recomponha-se, Cíntia! — esbravejei com voz grossa e
imponente.
Ela levou um susto e começou a fechar os botões de sua blusa
rapidamente, reagindo à minha repulsa.
— Está demitida! — falei em seguida.
Ela me encarou com olhos arregalados.
— O quê? — perguntou num fio de voz.
— Está demitida. — repeti — E não, eu não gostei de transar com
você e não te quero mais aqui.
— Mas, Leo...
— Sr. Leonardo! — corrigi.
— Desculpa! Mas não pode me demitir!
— Claro que posso!
— Mas e as crianças? — ela perguntou com olhos suplicantes —
Elas precisam de mim e eu também já me apeguei a elas! — completou
dando um tom de desespero nas palavras, parecendo, finalmente, atingida.
— Sinto muito, mas essa situação está insustentável.
— Por favor, pensa nos seus filhos!
Balancei a cabeça positivamente.
— É exatamente o que estou fazendo, pensando neles! Não quero
você perto deles!
— Mas...
— Sem “mas”, Cíntia! Você passou de todos os limites.
Ela me encarou desanimada, tremeu os lábios e abaixou a cabeça em
sinal de humildade. Não deu para saber se estava sendo sincera ou se era
uma encenação.
— Eu sei, eu só achei que... — não concluiu o que ia dizer, mas
suplicou: — Por favor, Sr. Leonardo! Me perdoa! Eu prometo que vou me
comportar. Não vou mais provocar o senhor, mas não me mande embora!
Eu não posso voltar pra casa dos meus pais. Nós somos muito pobres e
trabalhando aqui é a única forma de ajudar eles também.
Ela voltou a me olhar e pude ver seus olhos marejados. Respirei
fundo e desviei os meus. Realmente a família dela passava por
necessidades, segundo Estela havia me contado, eles trabalhavam na
lavoura e sobreviviam com muito pouco. Voltei a fitá-la com certo
desânimo. Um pouco mais calmo, ponderei minhas opções e até tive pena.
Estalei a língua e, mesmo não acreditando na sinceridade dela, resolvi dar
um a chance.
— Tudo bem, você pode ficar — ela vibrou e deu um pulinho
animado — Mas que fique bem claro que não vou aceitar suas desculpas, se
me provocar novamente.
Cíntia jurou por tudo o que pôde que não voltaria a acontecer. Desde
então, está esse clima estranho entre nós. Até o momento tem cumprido sua
palavra, mas confesso que houve noites que eu mesmo quase a procurei. Me
lembrei de sua pele morena, nua e o tesão veio com tudo. Desci as escadas
só com a calça do pijama, sem camisa e me encontrei com ela na cozinha.
Ela usava uma camisola minúscula, o que eu achei totalmente inadequado,
mas no momento foi o suficiente para me deixar entorpecido. Ela me olhou
encabulada, sem saber o que fazer. Também estava excitada.
— Deseja alguma coisa, Sr. Leonardo? — ela perguntou com olhar
penetrante, chegando mais perto — Se eu puder fazer algo por você...
Desci o olhar pelo corpo dela devagar e me senti estranho. Ela
mordeu o lábio inferior em expectativa e antes que eu respondesse, uma voz
fina me tirou daquele transe.
— Papai! — era Sarah que vinha descendo a escada.
Virei-me para ela.
— Sarah? O que faz acordada, meu amor?
Ela esfregava os olhinhos. Fui até ela e apeguei no colo.
— Posso dormir com você? — ela me pediu — Estou com medo!
— Medo? Medo de quê?
— Aquela cobra de novo.
Por duas noites seguidas, ela dizia ter sonhado com uma cobra
gigante.
— Oh, meu amor, cobra só é um animal como outro qualquer. Não
precisa ter medo.
— Quer que eu fique com você, Sarah? — Cíntia perguntou.
— Não, quero ficar com o papai! — ela respondeu, abraçando meu
pescoço.
Fui até o filtro, me servi de um copo de água e o dividi com minha
filha. Olhei para Cíntia, que não tirava os olhos de nós e falei:
— Pode ir dormir, eu cuido dela.
Ela acenou a cabeça positivamente e deixou a cozinha. Fui salvo pelo
gongo. Por pouco não ultrapassamos o limite novamente. Quando estava
subindo as escadas com Sarah no colo, ela falou:
— A Tia disse que vai se casar com você.
Tia era a Cíntia. Era assim que eles a chamavam.
— Casar comigo?
— É, ela falou que vai ser minha mamãe. Isso é verdade?
Senti um descontentamento da parte dela.
— Não meu amor, não é verdade. — respondi — Não vou me casar
com ninguém.
Isso foi há cinco dias e não sei o que fazer com relação a essa moça.
Estava bem claro que ela não havia desistido de me conquistar. Não a julgo,
pois sei que ela procura uma forma de garantir seu futuro, tendo uma casa,
um marido, estabilidade. Alguém para amar. Estela me aconselhou a dar
uma chance para ela, quando fui me queixar.
Sim, fui até Estela e contei tudo o que estava acontecendo, pois ela
tinha sido a responsável por eu ter contratado a Cíntia e precisava saber o
que estava acontecendo, além do mais, era uma amiga de longa data e eu
gostava dos seus conselhos.
Ela me disse que Cíntia era uma boa opção para recomeçar a minha
vida, pois eu não poderia ficar sem uma mulher, por vários motivos e o
principal deles era para curar esse vazio que estou sentindo desde que
Daniela se foi. Sabia que ela tinha razão, mas não sei se seria capaz de amar
aquela mulher ou qualquer outra que fosse.
CAPÍTULO 12

Mariana Barros

As coisas que Maitê havia me falado sobre a interpretação e


impressões de sua prima a respeito dos sonhos que eu vinha tendo,
mexeram comigo, apesar de não ter demonstrado. Eu fingi indiferença para
que ela não se empolgasse tanto. Maitê tinha tendência a ser intensa em
tudo que lhe interessava. Eu sempre a puxava de volta para Terra quando
começava a “viajar na maionese”. Era sempre assim. Porém, dessa vez não
pude ignorá-la.
O fato é que fiz o que ela me aconselhou e passei toda semana
pesquisando sobre o assunto na internet. Desde significados místicos dos
sonhos às explicações cientificas sobre o fenômeno. Procurei também por
aquele lugar e por aquele cata-vento que apareciam nos meus sonhos. E, por
incrível que pudesse parecer, ele estava bem diante de mim.
Sim, eu já estava olhando para a tela do meu computador, sem
reação, há vinte minutos. O cata-vento amarelo que aparecia nos meus
sonhos existia. Na foto ele surgia atrás de crianças uniformizadas com o que
parecia ser uniformes de alguma escola. Li a legenda e confirmei que se
tratava de alunos do Ensino Fundamental de uma escola numa cidade
chamada Napolitana, interior do Paraná.
— Meu Deus, isso não pode ser possível! — exclamei.
Ainda estava de boca aberta, absorta em meus pensamentos, quando
Maitê abriu a porta.
— Mari, fiz a modificação no contrato como o cliente pediu, só falta
você assinar. — disse me estendendo uma pasta — Mas ele não aprovou
nenhum dos modelos escolhidos para a campanha. E acho que nem vai
escolher. Segundo suas exigências, não existe ser humano que se encaixa!
Sem prestar atenção ao que dizia, peguei a pasta de suas mãos, ainda
com os olhos na tela do computador.
— Ele existe, Maitê! — falei.
Ela fez uma careta, sem entender.
— Já tem alguém em mente? — perguntou, achando que falava do
suposto modelo.
Olhei para ela lentamente e, como se despertasse de um transe,
sacudi a cabeça.
— Não, estou falando do cata-vento. — disse apontando para o
computador.
Ela ergueu as sobrancelhas e a princípio não entendeu sobre o que eu
falava.
— O cata-vento. — repeti.
Maitê estreitou o olhar sobre mim e perguntou surpresa:
— O cata-vento do seu sonho?
Balancei a cabeça positivamente e girei o notebook em sua direção.
Ela olhou para a tela e caiu o queixo.
— Mari! Eu não acredito! — e me olhando um pouco receosa,
perguntou: — Tem certeza de que é esse?
— Sim, não tenho dúvida. Fica no Paraná.
Ela sentou-se de frente para mim com sua animação renovada.
— Mari, que coisa incrível!
— Realmente é. — tive que concordar — Quase tive um troço
quando me deparei com ele! — falei, ainda muito encabulada.
— É surreal! — exclamou Maitê, para depois me perguntar com
olhos espertos: — Você vai até lá, não vai?
— O quê?
— Até o cata-vento.
Meneei a cabeça negativamente.
— Não, claro que não.
— Mari, você precisa ir!
Olhei para ela, confusa.
— Pra quê? O que eu vou fazer nesse lugar?
Ela tentou achar uma explicação plausível, mas não havia. Então me
disse:
— Não sei, mas tenho certeza de que vai descobrir quando chegar lá.
Olhei para Maitê tentando entender como ela conseguia encarar as
coisas com tanta naturalidade. Com o celular na mão, já fuçando tudo sobre
a tal cidade, ela tentava me convencer.
— Olha, talvez você possa chegar lá e não acontecer nada de
diferente e tudo ser uma total perda de tempo, mas também pode ser que
seu futuro esteja lá, algo importante que você tenha que fazer ou precise
saber. — ela me encarou, analisando minha reação a suas palavras. Como
eu não disse nada, continuou: — Na pior das hipóteses você pode encarar
tudo como férias, — me mostrou a tela do celular, de onde pude ver fotos
de cachoeiras e grutas — Estou vendo que tem alguns passeios turísticos
muito interessantes por lá.
Apenas sorri, achando tudo aquilo uma grande loucura.
— Vou pensar. — foi o que eu disse para encerrar a conversa.
◆ ◆ ◆

Nesse mesmo dia teria que ir ao médico para mais uma avaliação.
Aproveitei a oportunidade e lhe fiz umas perguntas.
— Você está querendo saber se um órgão pode conter as memórias
do doador, é isso? — perguntou Dr. Moreira.
— É, eu gostaria de saber se há a possibilidade de haver alguma
conexão ou algo do doador que possa se refletir em quem recebe um órgão.
O Dr. Moreira sorriu divertidamente. Até fiquei sem jeito, me
sentindo uma completa idiota por ter perguntado.
— Ah, não, não! Isso só são lendas.
Ele pegou um modelo de coração humano em tamanho real, que
havia em sua mesa e começou a me explicar algumas coisas. Até achei
interessante. Ele era bem didático.
— É claro que um órgão tem uma memória celular, mas é apenas o
reflexo de sua funcionalidade anterior. Algumas pessoas relatam ter havido
uma mudança, mas é apenas impressão. É psicológico. Na realidade, o que
acontece é o corpo reagindo a um, digamos... intruso. Algo com o qual ele
não está acostumado. Aos poucos tudo vai se adaptando. — ele me olhou
com curiosidade — Mas por que você está me perguntando isso? Por acaso
está acontecendo alguma coisa com você que não tenha me contado?
— Não, é só curiosidade... Bem, eu estou tendo uns sonhos
estranhos, recorrentes. Coisa que não acontecia antes. Eu quase nem
sonhava.
— Isso também é normal. É apenas um mecanismo de defesa do seu
corpo, não se preocupe. Ele tenta se transportar para um lugar bom, mais
confortável. Mas isso é apenas para fugir da realidade. Pode acontecer
também, às vezes, de ser um lugar ruim, porque o corpo costuma reviver
durante o sono, todo o estresse que um transplante pode ocasionar.
Dr. Moreira me explicou muitas coisas, mas confesso que nada do
que ele me disse me convenceu. Fiquei entre as duas teorias. A dele e a da
prima de Maitê. E devo admitir que a dela fazia mais sentido, levando em
conta tudo o que estava acontecendo comigo. Eu devia estar ficando louca,
mas realmente cogitei a acreditar naquela coisa mística. O fato era que a
minha vida estava totalmente sem sentido e eu precisava de respostas.
Perguntei ao Dr. Moreira se havia a possibilidade do meu doador ser
do Paraná. Ele disse que era algo que eu nunca saberia, nem ele mesmo
sabia. Tudo era muito sigiloso. Porém, deu a entender que havia a
possibilidade do coração que recebi nem, ao menos, ser de um brasileiro,
pois depois de liberada a doação por estrangeiros com residência fixa no
país, o número desses doadores aumentou consideravelmente. Geralmente
eles não possuíam família no Brasil. Achei isso muito estranho, mas o
doutor desconversou. Olhei para ele com estranheza e já ia lhe fazer uma
pergunta, quando se adiantou em dizer:
— Não se preocupe, é tudo legalizado. Também não sei se é esse o
seu caso. Provavelmente não. A única coisa que eu sei é que, nunca
saberemos quem foi.
Tentei mostrar compreensão, mas aquilo estava me consumindo.
Depois da avaliação, o doutor me disse que eu estava muito bem e me
liberou para fazer alguns exercícios físicos, além da caminhada que eu
costumava fazer.
— Só preciso que monitore tudo e anote. — disse ele — Qualquer
coisa me procure.
Saí do consultório, de certa forma, aliviada. A minha saúde estava em
dia, mas o meu eu interior muito perturbado. Passei mais uma semana
tentando decidir o que faria da minha vida, levando em conta todas as
possibilidades. Entre reuniões, trabalho duro e campanhas bem-sucedidas,
era para estar radiante, mas a cada dia que passava, me sentia sufocada,
presa como um pássaro em uma gaiola.
Não estava me reconhecendo. Não era mais Mariana Barros, a
publicitária audaz que sempre tinha sido. Passei a vida toda lutando para
chegar aonde estava e acabei por perceber que não pertencia mais àquele
lugar. Então, tomei uma decisão.
CAPÍTULO 13

Mariana Barros

Victor me olhava com uma expressão que era uma mistura de pena e
incompreensão, enquanto me ouvia atentamente. Estávamos em um dos
restaurantes que costumávamos frequentar no horário do almoço, sempre
que precisávamos conversar sobre algum assunto específico. Sentado de
frente para mim, deslizando a mão pelo copo gelado do refrigerante que
volta e meia bebericava, parecia não acreditar nas minhas palavras. Depois
de ouvir minha decisão, meu primo projetou levemente a cabeça para
frente, estreitando o olhar sobre mim, que, mesmo por trás dos óculos,
mostrava preocupação.
— Tem certeza de que é isso que quer fazer, Mari? — perguntou.
Balancei a cabeça positivamente.
— Sim, eu pensei muito e minha decisão já está tomada.
— Por que só não tira umas férias? — propôs — Tome o tempo que
precisar, mas não precisa sair da empresa. Aquela agência é mais sua do que
minha! Ela tem a sua alma, seu DNA!
— Eu sei, Victor, mas eu não posso assumir o compromisso de voltar
sem ter certeza de que isso realmente vai acontecer.
— Olha, eu passei por algo parecido. Quando Sophia morreu, tudo
perdeu o sentido. Você bem sabe o que eu e Helena passamos com tudo
isso.
— Sim, eu sei. Sei o quanto foi difícil. Acredito que não exista dor
maior que a de perder um filho.
— Com certeza não há... E ainda não superamos. — ele ficou
emocionado e se recompôs forçando um sorriso — Achei que não fosse ter
forças pra voltar. No entanto, estou aqui tentando seguir. Você também vai
superar esses conflitos internos.
Respirei fundo e meneei a cabeça. Era difícil explicar o que nem eu
mesma conseguia entender.
— O problema é que eu não me vejo mais ali... — falei, meio
hesitante — Não consigo me conectar com nada... Não estou falando só da
agência. Falo de tudo... Do mundo. Não sei o que está acontecendo comigo.
Às vezes tenho dúvidas se era mesmo pra eu estar aqui... Ter vivido...
Victor fez uma careta em discordância.
— Claro que era! Te proíbo de pensar que não merece essa segunda
chance!
Forcei-me a sorrir com as palavras dele. Victor era como um irmão
mais velho para mim. Vivia me aconselhando, apoiando e demonstrando
carinho ao seu modo. Era a relação mais saudável que tinha em minha vida.
Sempre acreditou em meu potencial e eu estava me sentindo horrível por
não corresponder às suas expectativas no momento. Mas sabia que por mais
que ele tentasse me convencer a ficar, no fundo, me compreendia. Soltei o
ar pela boca, sentindo uma espécie de aperto no peito.
— Talvez eu mereça, mas preciso ter certeza. — falei, desviando meu
olhar para a janela, de onde dava para ver a rua em seu ritmo frenético e
constante. — Ando distraída, chorosa, emotiva demais e eu nunca fui assim.
Preciso de um recomeço. — voltei a fitá-lo e completei: — Me encontrar...
— E o que pensa em fazer? — perguntou, demonstrando que estava
cedendo aos meus argumentos.
Pressionei os lábios um no outro e ergui os ombros, mostrando não
saber. E não sabia mesmo. Estava dando um tiro no escuro. Talvez me
arrependesse, mas não me perdoaria por não ter tentado.
— Dizem que o que é nosso nos atrai. — falei com esperança na voz
— Talvez seja verdade. Então, vou tentar achar minha felicidade.
Ele acenou positivamente com a cabeça e desistiu de me convencer.
O resto da conversa seria para ajustarmos os próximos passos do meu
desligamento da sociedade. Ele compraria minha pequena parte ou buscaria
por um novo sócio para assumi-la.

◆ ◆ ◆

Maitê estava me encarando com olhos arregalados. Dramática como


sempre.
— Como é que é, Mari? Você vai mesmo deixar a agência?
Ela ainda estava sem acreditar no que eu tinha acabado de lhe contar.
Eu estava andando de um lado para o outro no pequeno espaço em cima do
tapete retangular que havia em minha sala, enquanto ditava as últimas
instruções para aquele dia. Maitê estava anotando tudo, quando... Soltei de
repente... Contei a ela meus planos, pegando-a desprevenida. Precisava
contar!
— Sim, Maitê, é o que eu decidi e não tem mais volta.
— Mas Mari, essa agência não é nada sem você!
Olhei para ela, colocando as mãos na cintura, fingindo indignação.
— Não estou entendendo. Foi você mesma quem me incentivou a
tomar essa decisão.
— Sim, mas eu te aconselhei a ir até lá como um passeio, não a
abandonar tudo e ir embora para sempre — disse, fazendo um bico,
tentando se justificar.
Tive que rir.
— Nada é para sempre, Maitê. E não vou ficar incomunicável. A
princípio, estou pensando em tirar, apenas, um ano sabático. Preciso me
empenhar sem pressa nessa jornada de autoconhecimento. Se precisar de
mais tempo, quero estar desimpedida. Talvez eu volte, mas talvez não. Por
isso não posso prometer nada.
Ela me encarou, movendo o queixo, procurando as palavras certas
para tentar me convencer a desistir daquela loucura, mas parecia não as
encontrar. Olhei para ela e sorri com os lábios.
— Quando você vai? — perguntou num fio de voz.
— Em três dias, no máximo.
— Rápido assim?
— Na verdade, tem um ano que estou tentando me decidir. — falei,
finalmente me sentando na minha poltrona de estimação.
Sentada de frente para mim, Maitê me encarou com serenidade.
— Então, foi antes de termos aquelas nossas conversas. — deduziu.
Acenei afirmativamente com a cabeça.
— Sim, há muito tempo estou com essas inquietações.
Respirei fundo e alisei o braço da poltrona, enquanto olhava tudo em
volta. Cada cantinho daquela sala tinha sido pensado por mim e eu me
sentia a rainha daquele lugar. Na parede havia três placas de premiações que
recebi e na estante dois troféus.
Ao longo desses anos havíamos conquistado muitas coisas e
reconhecia que grande parte do sucesso da nossa agência se devia ao meu
trabalho duro e dedicado. Era uma equipe maravilhosa, mas fui eu quem os
escolheu e treinou cada um. Olhei para a parede de vidro e os vi em ação.
Estava orgulhosa de mim mesma, mas era como se estivesse assistindo a
um filme que contava a história de outra pessoa.
— Eu mudei muito, Maitê e preciso entender o porquê dessas
mudanças. — falei depois de um tempo.
Ela acenou positivamente, concordando.
— É... realmente mudou, — passeou o olhar sobre mim, reparando
em minha roupa, um conjunto sóbrio, composto por uma saia preta e blusa
nude, com detalhes dourados. Trajes típicos de uma executiva — mas
continua elegante como sempre.
Sorri, meneando a cabeça e voltei a olhar para os troféus.
— Este ano vamos concorrer em quatro categorias no Prêmio
Caboré. — informou Maitê — Temos grandes chances de ganhar. O evento
será em dezembro, no Dia Mundial da Propaganda.
— É, eu sei... — falei entre um suspiro.
Ela me sondou.
— Tem certeza de que vai querer perder isso? — quis saber.
Olhei-a bem nos olhos e fui sincera:
— Só são troféus, Maitê. Não vou sentir falta de nada disso.
— Sério? Logo você que sempre foi tão... competitiva!
Gargalhei.
— Talvez ainda seja, mas não é prioridade no momento — falei.
— Entendi. — Maitê falou com riso nos lábios — Mas não há nada
de errado em ser premiado. É pra isso que trabalhamos, não é?
Reconhecimento.
Ergui as sobrancelhas colocando em xeque o que ela havia dito.
— Reconhecimento... — falei a palavra compassadamente, meio
pensativa e em seguida perguntei: — Já ouviu falar em James Dobson?
Ela girou os olhos, olhando para um ponto neutro, como se tentasse
se lembrar.
— Não. Quem é?
— Um psicólogo americano, autor de diversos livros. Estou lendo
um livro dele. Recomendação da minha terapeuta.
— Por que se lembrou dele? — ela perguntou com curiosidade.
Limpei a garganta e falei:
— Em seu livro, ele conta que na faculdade, sua meta era ser o
campeão de tênis da instituição. E ele conseguiu. — Levantei-me e fui até a
estante, enquanto Maitê me acompanhava com os olhos — Dobson se
sentiu todo orgulhoso quando viu sua taça exposta num local de destaque na
sala de troféus da faculdade. — peguei uma das taças que tinha meu nome
em destaque e a ergui diante de mim, admirando-a por um breve momento,
antes de continuar — Anos mais tarde, alguém lhe enviou o tão sonhado
troféu pelo correio. Eles o haviam achado numa lata de lixo durante uma
reforma na tal escola. Então, Dobson chegou à seguinte conclusão: “Um
dia, todos os seus troféus serão jogados no lixo por alguém!”
Maitê me olhou impactada.
— Nossa, Mari. Isso foi profundo... e ao mesmo tempo desanimador!
— Sim, mas é inevitável! — falei de forma realista — Acredito que
tenha entendido que, o que eu quero dizer é que a vida é mais que isso.
Mais que colecionar troféus.
Coloquei a taça na estante novamente e voltei para a poltrona.
— Você realmente está muito mudada. — Maitê observou.
— Na verdade, estou em processo de mudança, por isso preciso ir.
Ela inclinou a cabeça para o lado e me encarou com tristeza.
— E o que vai ser de mim? — perguntou, com olhos marejados.
Sorri e abri os braços convidando-a para uma abraço. Maitê me
abraçou calorosamente.
— Mari... — Sua voz saiu embargada. — Vou sentir saudade!
— Eu também.
Nos conhecíamos há tantos anos e éramos muito próximas, mas nos
últimos meses havíamos nos tornado grandes amigas. Por isso era tão difícil
me despedir. Respirei fundo e me afastei do abraço.
— Não é segredo a minha partida, mas gostaria que os motivos
ficassem somente entre nós duas, certo?
— Pode deixar — ela levou os indicadores em forma de cruz aos
lábios e jurou: — Minha boca é um túmulo!
Sorri, mais de nervosismo, ciente da loucura que estava prestes a
fazer.
— Precisamos definir os melhores canais para realizar a campanha de
divulgação do novo perfume da L'Oréal Paris — falei, na tentativa de
mudar de assunto e deixar o ambiente menos pesado, pois as emoções
estavam afloradas ali.
CAPÍTULO 14

Mariana Barros

Mal havia juntado minhas coisas para sair, quando vi através da


vidraça, uma figura masculina bem conhecida. Sem bater e sem pedir
licença, Diego abriu a porta e foi logo me perguntando:
— É verdade que você está deixando a agência?
Olhei para ele com olhar de censura.
— Você não pode entrar aqui desse jeito! — o repreendi.
Sem se importar, ele se aproximou, devagar.
— Diz que não é verdade! — falou com tristeza na voz.
Desviei o olhar para minhas coisas e confirmei:
— É verdade... Hoje é o meu último dia aqui.
Ele sobressaltou-se.
— O quê?
— Não só vou sair da agência, como também vou para outra cidade.
— acrescentei.
— Outra cidade? Mas pra onde? E por quê?
Fiz uma careta e respondi com outra pergunta.
— O que isso importa?
— Preciso saber...
— Não lhe devo satisfações, Diego! Nós não temos nada um com o
outro. Nem se tivéssemos!
Ele se mostrou inquieto. Apertou os lábios um no outro e deu para
perceber a tensão em seu maxilar. Desviou o olhar e deslizou os dedos da
mão direita pelos cabelos curtos, como se estivesse tomando coragem para
me dizer algo.
— Eu não desisti de você, Mari. — falou, voltando a me encarar —
Eu só estava dando um tempo. Na verdade, te dando o espaço que
precisava, mas... Nunca te esqueci. — me mostrou a mão direita e o anel em
seu dedo. — Ainda uso o nosso anel de compromisso.
— E por quê?
— Porque eu sei que vamos ficar juntos.
— Diego, isso não vai acontecer. Tire esse anel do dedo e jogue fora.
Desista de mim!
— Nunca! Nunca vou desistir de você e nunca vou jogar esse anel
fora.
— Eu sei que vai. Com o tempo isso vai passar... E você vai se dar
conta de que não temos um futuro juntos.
— Pois se um dia eu desistir de você, Mariana, eu mesmo te
entregarei esse anel para que o jogue fora você mesma. Aí saberá que
desisti. Mas isso não vai acontecer.
Mantive os olhos nele por um tempo, absorvendo aquilo. Não soube
o que dizer. Diante do meu silêncio, ele insistiu:
— Só precisamos acertar as coisas...
Meneei a cabeça ainda confusa.
— Não há nada para acertar, Diego. — falei, finalmente, voltando a
juntar minhas coisas.
— Como não?
Fiz uma careta e estreitei os olhos sobre ele, abandonando o que
fazia.
— Sinceramente, não sei o que pretende com isso! — falei.
— Me dá uma chance, Mari... É só me perdoar. Você sabe que sou
louco por você e...
— Diego, nem continue! Nós dois nunca daríamos certo, por vários
motivos e eu...
— Quais motivos?
Fiz uma cara de indignação.
— Ainda pergunta? Eu quase morri e no momento em que mais
precisei de você, me apunhalou pelas costas... Não é fácil esquecer assim.
— Eu sei... Mas eu já perdi as contas de quantas vezes já te pedi
perdão. Pensei até que tínhamos superado isso. Não é possível que não veja
o quanto estou arrependido! Deixa eu te provar que posso ser diferente! Me
perdoa de uma vez!
Respirei fundo e o encarei com desânimo. Ele parecia sincero, mas
eu não conseguiria incluí-lo em minha vida novamente.
— Tá, Diego, eu te perdoo, — falei — mas não vamos mais ficar
juntos.
— E por que não?
— Eu não quero pensar em relacionamentos agora. Nem com você,
nem com ninguém! — expliquei.
Ele me encarou comovido.
— Eu amo você, Mari! — declarou.
Respirei fundo e falei:
— Sinto muito, Diego! — e sentia mesmo.
Ele esmoreceu e notei seus olhos marejarem.
— Foi bom o tempo em que passamos juntos. — falei de forma
branda, tentando amenizar as coisas — Eu gostei, de verdade!
Ele estreitou a distância entre nós e implorou:
— Vamos tentar, Mari!
— Você tem namorada. — falei.
— Namorada? Que namorada?
— Brenda.
Ele estalou a língua.
— A Brenda não é minha namorada. — explicou.
— Vocês estão saindo.
Ele sorriu ao notar um leve tom de ciúme em minha fala.
— Fofoca desse povo. Brenda é só uma amiga. — afirmou.
— E daí?
Tentei me afastar, mas ele pegou em meu pulso e me puxou para si.
— Para, Diego! — ordenei — Podem ver...
— Quem está do lado de fora não consegue ver aqui dentro. — ele
falou, repousando sua testa na minha. Bendita película!
Resisti por um tempo, mas acabei cedendo ao seu carinho, seu cheiro.
Há muito tempo não sabia o que era estar nos braços de um homem. Diego
roçou os lábios nos meus, sussurrando palavras que costumava usar para me
deixar excitada.
— Para, Diego! — falei num fio de voz, sem conseguir esconder que
estava inebriada.
Tentei me afastar, mas fui traída pelo meu corpo que insistia em se
arrepiar, me contrariando. Tudo piorou quando Diego cutucou minha
barriga com o volume no meio de suas pernas, fazendo-me sentir um frio na
espinha. Em pouco tempo nossas línguas se digladiavam entre si em um
beijo que veio de forma avassaladora. O desgraçado beijava bem e era do
que mais eu sentia falta. Seus beijos arrebatadores.
Isso durou poucos minutos e só não se intensificou, porque a porta se
abriu. Paramos de nos beijar e viramos para nos depararmos com Maitê
estagnada perto da entrada.
— Desculpa, eu achei que estava sozinha. — ela falou, sem graça.
Nós dois nos afastamos rapidamente. Eu me recompus, passando as
mãos pelas minhas roupas, totalmente constrangida. Diego virou-se de
costas, enquanto sossegava sua ereção, mais decepcionado com a
intromissão que envergonhado. Limpei a garganta e falei:
— Tudo bem, Maitê. O Diego já está de saída.
Ele virou-se para mim com olhar de indignação a ponto de protestar.
Chegou a abrir a boca para dizer algo, mas desistiu. Lançou um olhar de
reprovação para Maitê, em seguida para mim. Eu segurei a respiração pela
metade, tensa, tentando controlar a raiva de mim mesma por ter me deixado
levar por ele.
— Depois a gente conversa. — Diego falou antes de sair.
Assim que ele passou pela porta, pude respirar normalmente. Maitê
se aproximou com olhos arregalados.
— Mari! Você ainda está de rolo com o Diego?
— Não, claro que não! — fui rápida em dizer.
Ela sorriu, com certa malícia.
— Ah, entendi... Era uma despedida, né? Se eu soubesse, não teria
atrapalhado!
Revirei os olhos e joguei-me em minha cadeira.
— Nada disso! Eu quero te agradecer por ter me livrado de fazer uma
grande besteira. Diego é uma distração e não quero que nada me desvie do
meu objetivo.
— De nada, então!
Maitê sentou-se de frente para mim e perguntou:
— Falando nisso, o que, realmente você está pensando em fazer
durante esse tempo? Isso não ficou bem claro para mim.
Respirei fundo e falei:
— Escrever um livro.
Ela se admirou.
— Que chique, Mari! Que tipo de livro?
— Quero registrar cada momento de forma fiel e verossímil. Há
muito tempo quis fazer isso, mas nunca tinha vivido nada intenso o bastante
ou digno de ser eternizado em palavras. Talvez agora seja o momento.
— Ai, Mari! Estou sentindo cheiro de um best-seller!
Maitê e suas viagens! Mas confesso que isso me passou pela cabeça.
Levando em conta que tudo o que faço, faço com dedicação. Com certeza
escreveria um livro bom. Não sei se chegaria a ser uma Best-seller, mas se
chegasse a ser, seria maravilhoso!
— Quem sabe? — disse, compartilhando da animação dela.
◆ ◆ ◆

Naquele mesmo dia aconteceu a minha despedida. Foi um momento


muito especial. Agradeci a todos pelos anos que trabalhamos juntos. Fiz
questão de exaltar as qualidades deles, um por um. Alguns também fizeram
questão de me direcionarem seus discursos improvisados, porém sinceros.
Nos abraçamos, choramos e em seguida, comemos e bebemos um pequeno
Coffee Break.
Diego também estava lá, sem tirar os olhos de mim. Tentou se
aproximar, mas acho que ficou com receio de levar um fora na frente de
todos, então se manteve à distância. Depois daquele momento, passeei pela
agência para me despedir. Sabia que sentiria falta daquele cheiro de papel
sendo impresso a todo minuto, o cafezinho sendo passado de hora em hora,
o falatório e a movimentação que evitava que meus dias fossem entediantes.
Porém, deixar tudo aquilo era o certo a se fazer. Não sabia explicar como,
mas eu tinha essa certeza.
CAPÍTULO 15

Mariana Barros

Numa manhã de sexta-feira estava pronta para partir. Depois de ter


pegado meu carro na revisão, ter deixado as chaves do meu apartamento na
casa de Victor, estava liberada. Victor ficou de designar alguém para manter
minha casa limpa e cuidada na minha ausência, por isso, junto com as
chaves, também deixei algumas orientações. Com tudo pronto, vesti um
jeans confortável, camiseta branca de gola alta para esconder a cicatriz. Não
que eu tivesse vergonha dela, pois até que tinha ficado discreta, apenas
procurava evitar a enxurrada de perguntas que me eram dirigidas quando a
avistavam. Para completar o look, uma jaqueta de couro, tênis e óculos
escuros. Com o visual aprovado, era hora de ir.
Havia colocado tudo que precisava no bagageiro. Era quase uma
mudança. Enchi o banco do carona com algumas guloseimas para enganar a
fome e no compartimento ao meu lado, deixei à minha disposição uma
garrafa térmica com água. A viagem levaria mais de 15h, não daria para
chegar no mesmo dia e eu queria aproveitar ao máximo, sem pressa.
Assim, pus meu Jeep Compass em movimento e peguei a estrada
rumo à Napolitana. Uma euforia tomou conta de mim, misturada a uma
sensação de liberdade. Estava indo rumo ao desconhecido, mas sabia que
era o certo a se fazer. Não sei como, mas sabia. Eu sei, é uma loucura! Mas
quem nunca fez ao menos uma loucura na vida?
Liguei o aparelho de som, onde havia um pendrive com mais de
quatrocentas músicas e a que começou a tocar não poderia ser mais
apropriada. Epitáfio do Titãs. Levei a mão livre ao peito admirada, sentindo
cada palavra, arriscando a cantar junto com a banda.
“O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar distraído
O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar...”
Era a primeira vez que me aventurava a dirigir por um percurso tão
longo. Não via a hora de estar em Napolitana, ou melhor, estar de frente
àquele cata-vento. Precisava desvendar o porquê daqueles sonhos
recorrentes. Pelo que pesquisei, havia poucas opções de hospedagem na
cidade, mas não reservei nenhuma, pois não sabia quando ia chegar. Na pior
das hipóteses, eu dormiria dentro do carro. Já havia feito uma cama no
banco traseiro, caso precisasse.
Estava indo devagar, apreciando cada segundo. As estradas do Paraná
tinham muitas curvas e era preciso um cuidado redobrado. Fiz poucas
paradas. Apenas duas, na verdade. Uma para abastecer e almoçar, a outra
para dormir. Escolhi uma pousadinha aconchegante e com um bom preço,
em uma cidadezinha chamada Peabiru, próxima a Campo Mourão. Troquei
umas mensagens com Maitê, também foi o momento que escolhi para
contar à minha mãe sobre a minha viagem. Ela surtou do outro lado.
— Você ficou maluca, Mariana? Como assim, você resolve largar
seu emprego e sair desembestada desse jeito? Ainda mais depois de ser
transplantada?
— Eu nem sei como explicar, mamãe..., mas...
— Minha filha, você só pode estar de brincadeira. Desista dessa
loucura e volte agora mesmo!
— Eu não posso. A senhora sabe que eu nunca deixo nada pela
metade.
— Mariana...
— Mãe, me escuta!
Puxei o ar para os pulmões e comecei a contar a ela tudo o que estava
acontecendo comigo. Todas as mudanças e sensações. Nada do que eu disse
a tranquilizou, até que falei:
— Quem sabe eu possa viver um grande amor nessa aventura toda?
Assim que pronunciei as palavras, tudo mudou. Depois de meia dúzia
de perguntas, ela logo se mostrou empolgada com aquela história.
— Está falando sério? — perguntou em tom mais ameno. — Nada
de garotos sem futuro?
— Estou falando de AMOR, mãe! A senhora sabe que eu nunca amei
ninguém!
Ela se empolgou:
— Então, seria mesmo algo sério?
— Claro!
Minha mãe acabou conjecturando várias possibilidades que no final
acabavam sempre comigo casada e com filhos.
— ... Não seria maravilhoso, Mari?
Até achei graça.
— Pode ser... Por que não? — eu não gostei de nenhuma das
sugestões que ela apresentou, falei assim apenas com o intuito de deixá-la
mais calma, o que funcionou, pois logo ela aceitou a minha decisão de fazer
aquela viagem.
A conversa ficou mais leve. Contei a ela como estava sendo a
experiência de conhecer lugares lindos na terra vermelha do Paraná e ela
ficou fascinada. Prometi que a levaria comigo na próxima viagem.
Conversamos por mais alguns minutos e nos despedimos.
— Mãe, preciso dormir. Amanhã será um longo dia. — falei em meio
a um bocejo.
—Tá certo. Boa noite, meu bem! E me mande notícias! Te amo!
— Mando sim, pode deixar. Também te amo!
No outro dia, bem cedo, tomei meu café da manhã e continuei a
viagem, que estava tranquila e prazerosa. Assim, segui por toda a manhã,
rodando estrada afora. Pouco depois do meio-dia avistei as placas indicando
que meu destino estava próximo. Algumas anunciavam passeios turísticos,
como trilhas, grutas e cachoeiras. Pouco tempo depois, avistei o arco que
indicava a entrada da cidade e a placa que dizia:
BEM-VINDO À NAPOLITANA.
Um frio percorreu minha espinha. Nesse momento, a música que me
acompanhava era do Jota Quest, O Sol.
“E se quiser saber
Pra onde eu vou
Pra onde tenha Sol
É pra lá que eu vou
É pra lá que eu vou...”
As primeiras casas começaram a surgir e percebi a influência
europeia na arquitetura, sobretudo a italiana. Muitas casinhas brancas com
janelas e portas azuis, que pareciam ter mais janelas que o necessário. Fui
observando tudo à minha volta com um sorriso bobo nos lábios.
Foi estranho... Era como se estivesse voltando a um lugar já
conhecido por mim. Que sensação esquisita! Com certeza eu já devia ter
visto alguma coisa sobre essa cidade antes e não me lembrava. Essa
lembrança deve ter sido ativada durante a cirurgia, por isso eu estava
sonhando com aquele lugar. Era a única explicação lógica.
— Aqui estou, Napolitana! O que você quer comigo? — falei, quase
como um sussurro.
Estava faminta. Não havia comido muito, de tão ansiosa que me
encontrava. Então, meus olhos passaram a procurar por algum lugar para
almoçar. Alguns metros à frente, avistei um letreiro, onde estava escrito:
Cantina Babo Giuseppe. Comida italiana era uma das minhas favoritas.
Salivei só em imaginar uma bela macarronada. Estacionei e desci. Olhei em
volta e percebi a curiosidade de algumas pessoas que passavam.
Elas me encaravam sem nenhuma discrição. Certamente todos ali se
conheciam e uma mulher estranha, ainda alta e loira chamava muita
atenção. Queria ter a capa do Harry Potter para ficar invisível! Tentei
ignorar aquilo e segui para a entrada do restaurante. O lugar estava quase
vazio, mas procurei uma mesa mais reservada e me sentei.
Um senhor de meia idade veio me atender. Ele era magro, com traços
italianos no rosto. Nariz comprido, olhos claros, pele avermelhada pelo sol
e cabelos grisalhos.
— Boa tarde! — ele cumprimentou com simpatia, me estendendo o
cardápio.
— Boa tarde! — respondi e logo perguntei: — O serviço é a la
carte?
Ele me encarou, processando a pergunta e não sei se me entendeu.
— Os pratos são esses aí. — respondeu.
— Sim, estou vendo. Só quero saber como são servidos — expliquei.
— Ahh, sim! — ele acenou com a cabeça, mostrando compreensão e
explicou: — A gente trabalha com prato individual e refeição que serve
mais de um, daí!
Dei um leve sorriso, achando engraçado aquele sotaque interiorano,
carregado e misturado com a musicalidade do italiano. Olhei para o
cardápio e perguntei:
— O que o senhor me sugere? Qual a especialidade da casa?
Ele ergueu as duas sobrancelhas e falou:
— Ah, aí a senhora quem sabe... A comida é simples, mas é boa...
Tem Spaghetti, polenta, a macarronada da Nona, frango com arroz. É tudo
bão, daí! O povo gosta.
Acenei com um sorriso e logo me decidi.
— Então, vou querer a macarronada da Nona. E um suco de uva
integral pra acompanhar.
— Certo. — disse anotando o pedido num bloquinho.
Devolvi o cardápio para ele, que se afastou uns três passos de costas,
sorrindo. Esperei por uns quinze minutos. Aproveitei para ligar para Maitê
que já havia me enviado umas “duzentas” mensagens. Isso porque já
havíamos conversado na noite anterior.
— Oi, Mari! Até que enfim!
— Oi! Como está tudo por aí?
— O mesmo caos de sempre. E você já chegou?
— Cheguei sim.
— E como é a cidade?
— Ah, ainda não vi muita coisa. Vou almoçar agora, depois te conto
tudo.
— Mari...
— Sim.
Ela hesitou.
— Nada, depois eu te conto.
— Maitê...
— Não quero te aborrecer.
— Conta logo! — insisti.
— Tá bom! — ela gaguejou: — Bem, é... O-o. O Diego. Ele queria,
porque queria, que eu passasse sua localização pra ele.
— O quê?
— Pois é, ele disse que vai atrás de você.
— Como assim? Mas você não contou nada pra ele, contou?
— Não, claro que não! Mas ele disse que vai descobrir onde você
está e vai te encontrar, nem que seja no inferno.
Respirei fundo meneando a cabeça. Era só o que me faltava!
CAPÍTULO 16
Mariana Barros

A macarronada estava maravilhosa. Era uma massa caseira ao molho


bolonhesa com tomates frescos e manjericão. Comida italiana legítima.
Comi me desmanchando em cada garfada. Alguns dos poucos clientes
olhavam para mim e cochichavam. Não dei muita importância para isso,
apenas apreciei aquele momento. Comi sem pressa, enquanto pensava nas
palavras de Maitê.
O que Diego estava pensando?
Do nada ele resolveu reatar e ficou me aborrecendo, ligando e
enviando mensagens toda hora! Nunca pensei que ele faria o tipo obsessivo,
mas parecia que era o que estava acontecendo. Tive que bloqueá-lo. Maldita
hora que me insinuei para ele!
Apesar dessa história me incomodar um pouco, resolvi não pensar
mais nisso. Uma hora Diego teria que aceitar que não tinha mais volta.
Sacudi a cabeça para espantá-lo dos meus pensamentos e me concentrar no
meu cronograma de viagem. Teria que procurar um hotel. Foi o que
perguntei ao atendente, assim que paguei a conta. Carlos, esse era o nome
dele, me explicou:
— Tem um hotel muito bom, mas fica um pouco afastado da cidade.
Também tem a pensão da Dona Estela. O pessoal gosta muito de lá. Fica
mais perto do centro, perto das coisa e é bão também!
Acenei positivamente.
— Acho que prefiro a pensão. — falei com satisfação. — É perto
daqui?
— É perto. A pé é um pouco longe, mas de carro é rapidinho, daí!
Ele me explicou o endereço e anotei no meu celular. Agradeci pelo
atendimento e as informações e saí. Tentei seguir as orientações do Carlos,
mas estava um pouco perdida. Não havia muitas placas para guiar, então
passei a procurar a torre da igreja como ponto de referência. Segundo ele, a
pensão ficava próximo à pracinha da igreja católica. Saí da avenida
principal e virei à direita em uma rua estreita. Logo me vi num labirinto de
ruas e acabei por dar numa rua sem saída.
— Droga! Você dirige em São Paulo e não está dando conta de uma
cidadezinha dessas, Mariana? — falei para mim mesma.
A tarde estava nublada e eu queria achar a pensão antes que caísse
uma chuva. Manobrei o carro e, ao avistar uma senhora que passava,
abaixei o vidro para pedir mais informações. Ela sorriu e me explicou como
fazia para chegar à praça e dessa vez entendi melhor. Agradeci e segui no
caminho que ela havia me indicado.
Alguns metros à frente, avistei a igreja. Fiquei tão feliz ao encontrar
o caminho, que não tirei os olhos da torre, para não perdê-la de vista.
Acabei me distraindo e não vi a placa ao passar por um cruzamento e quase
provoquei um acidente grave. Uma picape surgiu do nada e para não me
atingir, acabou perdendo o controle, batendo num poste mais à frente.
Foi tudo muito rápido. Pisei no freio com tanta brusquidão que as
marcas dos pneus devem ter ficado no chão. Meu coração acelerou e fiquei
sem reação por um momento. Olhei em volta tentando controlar a
respiração e em poucos minutos uma muvuca já se formava. Curiosos se
juntavam para ver o que havia acontecido. Meu carro estava meio
atravessado e outros carros começaram a se juntar atrás de mim com
motoristas furiosos, buzinando e gritando para eu sair da frente.
Coloquei o carro em movimento e estacionei logo atrás do carro
batido. Analisei a situação, tentando avaliar a intensidade do estrago feito
na batida e graças a Deus não parecia ser nada grave. Somente o lado
direito havia sido danificado. Não entendi como consegui a proeza de viajar
uma distância tão grande sem passar por nenhuma intercorrência e justo ali
naquela cidade pacata isso acontecer.
Respirei aliviada, quando vi o motorista abrir a porta da picape e
descer. Ele parecia estar bem. Era um homem na faixa dos quarenta anos,
alto, forte, cabelos castanhos escuros, barba por fazer. Usava Jeans, botas,
uma camisa xadrez de mangas compridas, aberta, mostrando a camiseta
branca que vestia por dentro. Ele levou as mãos à cabeça, rodeando o carro,
analisando a situação. Deu um chute em um dos pneus e proferiu algumas
palavras, que deviam tratar-se de palavrões. Respirei fundo e desci do carro
também.
— Moço, está tudo bem? — falei ao me aproximar.
Ele continuava a olhar para o carro meneando a cabeça me ignorando
totalmente.
— Desculpa, eu não vi a placa de PARE... O senhor está bem? —
tentei de novo. — Não precisa ficar preocupado. O senhor não vai ficar no
prejuízo. Eu posso pagar...
Ele repousou as mãos nos quadris e virou-se para mim com olhos
fulminantes.
— É mesmo? — falou com ironia na voz — Pode pagar?
Ele estreitou o olhar sobre mim e estremeci. Recuei um passo, me
escorando no meu próprio carro para não cair. Não consigo explicar o que
senti ao encarar aquele homem. Ele devia ter quase dois metros de altura e
me olhava com tanta raiva que tive vontade de chorar. Devia estar tendo um
dia ruim, pois não havia explicação para uma reação tão exagerada. Não era
para tanto. Ou talvez eu estivesse sensível demais, pois no momento em que
ele cravou os olhos em mim, paralisei. Ele desceu o olhar para conferir a
placa do meu carro e continuou:
— Vocês de São Paulo se acham demais! São um bando de metidos,
egoístas! — levei a mão direita ao peito, gesto que passei a fazer com
frequência depois da cirurgia — Acham que podem comprar tudo. O que
está em jogo aqui é essa sua direção perigosa, dona! Quanto pagou pela sua
carteira?
Engoli em seco e não consegui responder. Ele possuía uma aura que
me envolveu de forma inexplicável. Parecia sugar minha alma. Vendo que
eu não respondia, estalou os dedos na frente do meu rosto com arrogância e
perguntou:
— O que foi? O gato comeu sua língua?
Ficou me encarando por um tempo, como se ainda esperasse uma
resposta.
— Não... — sussurrei. — Não comprei a minha carteira.
Nesse instante, um conhecido dele passou. Vendo a situação, reduziu
a velocidade e abaixou o vidro para perguntar:
— O que houve aí, Leo?
Ele voltou-se para o homem, agora com as mãos nos bolsos, e foi até
ele.
— Uma doida quase bateu em mim. — falou alto para quem quisesse
ouvir. — Aí, ao desviar, bati no poste.
— Nossa! Mas está tudo bem?
— Está. Eu estou, mas o carro nem tanto. Não tem nem um mês que
dei um trato nele. Trabalho perdido.
O outro sujeito estacionou do outro lado e desceu para ver o acidente
de perto. Algumas crianças estavam em volta rindo e falando alto. Umas
pessoas me olhavam com curiosidade. Era bem evidente que eu não era da
cidade e ser o centro das atenções me incomodou um pouco. O dono da
picape seguia conversando com seu suposto amigo, como se eu nem
estivesse ali. Eu me aproximei para ver de perto a situação do carro e vi que
o farol direito tinha sido totalmente danificado e a porta estava bem
amassada e arranhada. Fechei os olhos e suspirei, desanimada. Fui até o
homem e chamei sua atenção novamente.
— Moço! Moço!
Ele girou a cabeça para olhar para mim, ainda com o mesmo ar
arrogante, revirando os olhos e mastigando a língua. Peguei a carteira da
minha bolsa, retirei um cartão de visitas e estendi para ele.
— Esse é o meu contato. — falei. Minha voz saiu trêmula e me odiei
por isso! Pigarreei para ajustar e continuei: — Assim que consertar o carro,
me informe. Vou cobrir todas as despesas.
Ele deu um sorriso de desprezo, jogando a cabeça para trás.
— Fique com seu dinheiro, Dona! Meu carro tem seguro. — falou, se
afastando e me deixando com a mão estendida.
Encolhi a mão e engoli em seco.
Se o carro tinha seguro, por que ficou tão chateado?
Idiota!
— Tudo bem! — falei para mim mesma, pois ele já não podia me
ouvir.
O outro homem, a quem ele estava chamando de Luiz, se aproximou
e fez um aceno com a cabeça, meio constrangido.
— Está tudo bem? — perguntou com simpatia e certa timidez.
— Sim, está. — Respondi, mas minha expressão denunciava o
contrário.
— Sinto muito pelo que aconteceu.
— Mesmo o carro tendo seguro, faço questão de pagar. — falei com
firmeza.
— Fica tranquila, não precisa se preocupar, moça. Aquele cabeça
dura ali, nunca aceitaria.
Franzi a testa, confusa.
— O que há de errado com esse cara? — perguntei — Ele está
agindo como se eu tivesse feito de propósito! Foi um acidente!
— Claro, a gente sabe disso. Desculpa o meu amigo, ele tem passado
por dias difíceis. Mas o Leo é boa gente, pode acreditar.
Leo... Olhei para ele e já estava colocando o carro em movimento.
— Tenho minhas dúvidas. — retruquei, vendo a picape partir.
Agradeci ao outro homem e também fui para o meu carro. Respirei
fundo e contei até dez. Aquele incidente não iria tirar minha paz. Só
precisava descansar. E era isso que faria assim que chegasse à pensão.
CAPÍTULO 17

Leonardo Moretti

Quando as coisas tinham que dar errado, elas davam mesmo. Estava
passando por um dia horrível, como passaram a ser todos os dias da minha
vida, mas esse em especial, talvez fosse um dos piores. Cheguei em casa
por volta das 19:00h. Devido ao imprevisto, não pude fazer nem metade do
que pretendia fazer naquele dia. Acordei bem cedo, como sempre, e teria
que resolver alguns pepinos que se acumularam nos últimos dias. Porém,
enquanto tomava o café, antes de sair, Cíntia teve que me jogar aquela
bomba:
— Estou grávida! — falou sem rodeios.
Quase me engasguei ao ouvir aquelas duas palavras. Parei por um
tempo processando a informação. Ela nem ao menos se deu ao trabalho de
me preparar para o momento, apenas aproveitou o instante em que Jandira
havia saído para colher algumas hortaliças e soltou de uma vez.
— Como é que é? — perguntei, sentindo o rosto empalidecer.
Cíntia baixou o olhar, levou as mãos ao ventre e falou:
— Bem... Acho que sim... — havia um sorriso bobo de satisfação em
seu rosto.
— Acha? Como assim, acha? — questionei com olhos semicerrados.
— Eu sinto e... estou atrasada. Também ando tendo enjoos e uns
sintomas estranhos.
— Enjoos?
Ela balançou a cabeça positivamente. Puxei o ar para os pulmões e
me levantei, abandonando o café. Perdi totalmente o apetite e não escondi
dela o meu aborrecimento, o que a fez se retesar. Infelizmente a
possibilidade dela estar esperando um filho meu existia. Por mais que eu
não quisesse me envolver com aquela garota, não consegui resistir.
Ela se aproveitou da minha vulnerabilidade e por estarmos debaixo
do mesmo teto, tudo ficou mais difícil de ser evitado. Cíntia me provocava
descaradamente, apesar das minhas ordens para não fazer mais aquilo e
acabamos transando mais vezes. Ela era ardilosa como uma serpente. Me
provocava com roupas minúsculas e frases picantes. Uma vez até se
masturbou na poltrona da sala de frente para mim. Nesse dia eu joguei às
favas os limites que havia estabelecido e passei a dar a ela o que queria.
Acontecia sempre em momentos não programados e quando meus
filhos estavam dormindo. Ou ela invadia o banheiro enquanto eu tomava
banho, ou me acordava, já nua em cima de mim. Uma vez foi na rede da
varanda, outra na cozinha, durante a madrugada. E algumas vezes sem
proteção. Mas sempre era ela quem tomava a iniciativa.
A última vez tinha sido em seu quarto, pois ela estava sozinha, era
folga da Jandira. Nesse dia ela reclamou e quis saber por que eu nunca a
beijava. Infelizmente, eu só a usava para me aliviar. Sabia que era errado,
mas não havia outra razão. Eram só os hormônios, nada além disso. E para
piorar, depois ainda me sentia mal e tinha nojo. Nojo dela, nojo de mim.
Sempre batia o arrependimento. Mas Cíntia parecia não perceber e estava se
iludindo.
Me sentia mal por isso. Eu não gostava dela. Algo nela me
incomodava. Não sabia bem o quê. Mas como precisava dela para cuidar
dos meus filhos, tentei não dar importância a isso. Então, nesse dia fiquei
com pena e a beijei. Um beijo frio, mas ela gostou. E parecia estar gostando
da possibilidade de estar grávida de um filho meu, pois seus olhos
brilhavam ao me contar.
— Sim, estou tendo enjoos e tonturas.
— Merda! Não era para isso ter acontecido! — esbravejei.
Ela fez um bico, desfazendo o sorriso do rosto.
— Mas aconteceu. Você sabe que só você pode ser o pai!
Meneei a cabeça negativamente.
— Não, não... Pai coisa nenhuma. Não tem nada certo ainda.
Primeiro você vai fazer um exame, depois conversamos.
— Mas... Os sintomas...
— Vai ser assim, Cíntia! — gritei e ela se assustou. — Enjoo e
tontura podem ser até sintomas de câncer!
— Credo, Leo! — tremeu os lábios, ameaçando chorar. — Como
pode dizer uma coisa dessas?
Revirei os olhos um pouco arrependido e amenizei as palavras:
— Desculpa, eu não falei por mal. Olha, se estiver mesmo esperando
um filho meu, terá toda minha assistência. Você sabe o tipo de pai que eu
sou, como trato meus filhos. Não vai ser diferente com o seu.
Ela assentiu positivamente.
— Por ora, — continuei — Não posso te prometer nada além disso,
entende?
Ela desviou o olhar e sacudiu a cabeça dizendo sim. Percebi que ela
não gostou muito da minha reação, mas tentou se mostrar conformada. E foi
assim que saí de casa aquela manhã. Me amaldiçoando por ter deixado que
chegasse àquele ponto.
Puta merda! Onde eu estava com a cabeça?
Estava me sentindo um devasso, por me atracar com a babá dos meus
filhos sem nutrir nenhum sentimento por ela. Eu era um pai de família! Eu
devia, ao menos, ter respeitado a memória da Daniela! Era a casa dela. Mas
na verdade, esse era o problema, era dela que eu sentia falta. Estava oco,
vazio. Com saudade da minha mulher, de amar de verdade, de fazer amor
de verdade.
Depois disso, foi tudo dando errado naquele dia. O bezerro que tinha
nascido há uma semana e vinha apresentando problemas, acabou morrendo.
A vigilância sanitária resolveu implicar com nosso pequeno laticínio e
alguns fiscais já andavam rondando a fazenda.
Não entendia a razão dessa implicância, pois tínhamos o selo da
Secretaria Municipal de Agricultura e eles sempre realizavam a inspeção,
mas cismaram que precisávamos adquirir o registro estadual. Detestava
essas burocracias, mas era algo que precisava ser resolvido logo. Enquanto
isso, ficaria tudo parado e não poderíamos atender às demandas.
Definitivamente me encontrava numa onda de azar. Sempre surgia
um problema. A suposta gravidez de Cíntia, a meu ver, era mais um. Meu
pai, Estela e até Jandira, viviam me dizendo que eu devia me casar de novo
e que Cíntia era a mulher certa. Eles viviam me atormentando com esse
assunto. Pareciam estar mancomunados, tentando nos juntar de vez. Eles
diziam que as crianças já estavam apegadas a ela, mas eu tinha minhas
dúvidas.
Na verdade, tinha a leve impressão de que meus filhos também não
gostavam muito dela, principalmente Sarah. Talvez fosse coisa da minha
cabeça. Eles nunca reclamavam de nada, mas havia essa desconfiança da
minha parte. Por isso, já tinha resolvido demiti-la e ia procurar outra pessoa
para cuidar deles, mas essa história de gravidez mudaria tudo.
E para piorar o meu dia, uma maluca quase destruiu o meu carro.
Para me desviar dela bati num poste danificando parte do lado direito.
Ainda bem que meu carro tem seguro, se não, segundo o mecânico, seria
um prejuízo de uns quinze mil reais. Mas ainda teria que esperar a
autorização do seguro para fazer o conserto. Então, passaria a usar a velha
caminhonete do meu pai para trabalhar.
Só podia ser a Lei de Murphy! [3]Em pleno dia, tudo claro, numa rua
tranquila, do nada... Estava enganchado num poste!
Não sei de onde surgiu aquela mulher. Foi tudo muito rápido, mas eu
estava tão estressado, que perdi as estribeiras, desci do carro soltando fogo
pelas ventas. Exagerei na dose ao confrontá-la e não fui muito simpático.
Na verdade, o problema não era ela, e sim o acúmulo de todas as coisas
ruins que estavam me acontecendo nos últimos dias. Acabei descontando
nela e pela forma com que me encarou, a traumatizei. Se tivesse
oportunidade, pediria desculpa, mas nem sei quem é e, pelo sotaque não é
daqui, certamente estava só de passagem.
Mas preciso dizer: Que mulher linda!
Apesar da minha raiva, não pude deixar de reparar. Parecia uma
artista de cinema. Incrivelmente seu rosto ficou bem gravado em minha
mente. Seria capaz de desenhá-lo se soubesse desenhar. Depois que tudo
passou, fiquei com dó da moça. Por incrível que pudesse parecer, lembrar
do seu jeito amuado e assustado de me olhar, me fez sorrir. O primeiro
sorriso que dei no dia. Agora, só me acalmaria depois de abraçar meus
filhos.
Estacionei o carro desmantelado na garagem e lá estavam eles vindo
ao meu encontro. Me abaixei para abraçá-los e beijá-los e dei colo para
Davi. Eles falavam ao mesmo tempo, querendo me deixar informado de
como havia sido o dia deles. Davi balbuciava palavras na sua linguagem de
bebê, tentando participar da conversa. Eu tentava prestar atenção nos três
simultaneamente.
— Papai, o que aconteceu com a picape? — Matteo foi o primeiro a
perceber.
— É uma longa história... — respondi.
Logo Sarah foi conferir os danos também e olhou para mim com
preocupação.
— Papai... O senhor se machucou?
Sorri para ela e falei:
— Não, foi só uma bobagem. Depois eu conto pra vocês. Onde está
a Cíntia?
Seguimos para dentro de casa, enquanto eles me enchiam de
perguntas.
CAPÍTULO 18

Mariana Barros

Cheguei à pensão da Dona Estela com facilidade. Fui muito bem


recebida. Estela era uma senhora muito simpática. A pensão era simples,
mas um lugar acolhedor. Havia poucos hóspedes e pelo que entendi, alguns
moravam lá. Era como se fossem uma grande família. Depois de dar
entrada, a própria Estela me levou até meu quarto, explicando como tudo
funcionava e pedindo desculpas por outras coisas, como, por exemplo, o
funcionamento da internet.
— O moço da operadora ficou de vir hoje, mas me informaram que
tiveram um contratempo. Acho que é um problema no roteador, mas
amanhã, sem falta isso será resolvido. — falou, enquanto abria a porta do
quarto.
— Está tudo bem, não vou precisar de internet tanto assim. — falei,
tentando ser simpática também — Posso usar o meu 4G.
O quarto não era muito grande, mas tinha tudo que precisava. Uma
cama de solteiro, um guarda-roupas de duas portas, uma escrivaninha e um
pequeno banheiro. Eram móveis antigos, bem conservados. Na janela havia
uma cortina que lembrava casa de vó. O forro da cama também. Não era
nada igual ao conforto que eu estava acostumada, mas me senti muito bem
ali no meio daquelas coisas tão simples. Arrastei a mala para dentro do
quarto e sentei-me na cama conferindo o colchão.
— Por quanto tempo pretende ficar? — Estela me perguntou.
Deslizei a mão pela colcha rendada pensando sobre isso.
— Ainda não sei... A princípio será uma semana, depois vou ver o
que faço. Se continuo aqui ou se sigo viagem.
— Está de férias?
— Sim. — respondi sem muita empolgação. Ela me olhava com
curiosidade, certamente querendo fazer especulações, mas não dei abertura.
— Está tudo ótimo. Obrigada.
— Precisando de mais alguma coisa é só chamar. O café da manhã
começa às 06:00h.
— Ok. Mais uma vez obrigada.
Ela passou a chave para o lado de dentro e, sustentando um leve
sorriso, se despediu com um aceno de cabeça. Tranquei a porta e joguei-me
sobre a cama, exausta. Estava satisfeita por ter conseguido chegar ao meu
destino sem maiores problemas. Tudo estava saindo como planejado. Só
não estava melhor devido ao acidente e o encontro desastroso com aquele
troglodita chamado Leo.
Com certeza era um caipira como muitos que, certamente, haviam
por ali. Só torcia para que o povo daquela cidade fosse o menos parecido
com ele possível. Que fosse tão amigável quanto Carlos, Luiz e Estela, ou
eu teria problemas. As pessoas sempre têm a tendência a rejeitar estranhos.
O fato era que ainda estava muito abalada com aquilo. O rosto
daquele homem não saía da minha cabeça. A forma como me olhou e falou
comigo me fazia estremecer só em lembrar.
“Vocês de São Paulo são um bando de metidos, egoístas!”
— Metido é você, seu ogro! — falei, como se ele pudesse ouvir.
Novamente me veio a vontade de chorar, mas não ia deixar aquele
episódio me abater. Não mesmo! Precisava me concentrar no que eu havia
planejado. As razões que me levaram até ali. Bem, não era bem um
planejamento. Era exatamente o contrário, nada planejado. Estava mais para
uma “missão”. Uma viagem de autoconhecimento. Só precisava ouvir o que
o meu coração queria me dizer. Era até engraçado dizer isso, pois
tecnicamente aquele coração não era meu. Mas algo me levava a crer que
ele era a razão de tudo isso estar acontecendo.
Deitada como estava acabei pegando no sono e dormi por uns
quarenta minutos. Durante o curto sono, antigas imagens se confundiam
com novas. Entre elas o rosto daquele homem. Também sonhei com o
acidente, só que dessa vez eu saía ferida e aquele homem estava comigo nos
braços, gritando, desesperado.
— Amor, fica comigo! Amooor!
Me senti esvaecendo, apagando...
— Leo! Leo... Leeeo! — gritei no sonho em resposta, e aquilo se
refletiu no mundo real, não como grito, mas um murmúrio. — Leo!
Acordei de supetão, como se emergisse de um abismo e sentei-me
ofegante. Não podia acreditar que estava pronunciando o nome daquele
homem. Levei a mão ao peito e solucei. Um choro me dominou. Não estava
gostando nada dessa mulher que estava me tornando. Sensível demais!
Como um acidente bobo podia mexer tanto assim comigo e me deixar tão
abalada ao ponto de ter pesadelos com aquilo? E aquele homem? Por que a
imagem dele me atormentava tanto?
Sacudi a cabeça tentando espantar aqueles pensamentos e me levantei
para organizar as minhas coisas. Já estava anoitecendo e caía uma chuva
fina, mas não estava frio. Tomei um banho caprichado, vesti um vestido
leve e desci para a área de convivência. Estela havia me explicado que o
almoço e o jantar estavam inclusos no valor da diária como o café, mas que
era tudo muito simples e era sempre o prato do dia. À medida que me
aproximava, o cheiro gostoso de comida fresca e caseira invadiu minhas
narinas. Estava com fome e aquilo era tudo o que precisava.
Estela me avistou e veio ao meu encontro sorridente.
— Ah, querida! Você vai jantar agora?
Disse que sim com a cabeça, meio constrangida, pois alguns rapazes
me olhavam e cochichavam entre si.
— Por aqui, minha flor! — Estela me mostrou o caminho. Ficava me
perguntando se ela era naturalmente simpática ou só era mesmo algo
ensaiado, artificial. — Espero que goste da nossa comida. A Dayse arrasa
na cozinha, mas é como eu disse: É uma comida simples!
— Eu como de tudo, não se preocupe. — falei, enquanto me
acomodava em uma das mesas.
— Que bom! Hoje temos bife acebolado de fígado e filé de frango,
qual você vai querer?
Senti que ela estava me testando, mas eu realmente comia de tudo.
Apenas evitava alguns alimentos que me davam alergia.
— Quero o fígado. — respondi e vi seus olhos se arregalarem
admirados.
— Boa pedida, garota! — disse, animada. Mas eu realmente gostava
de fígado — Os acompanhamentos são os mesmos: Arroz, feijão e salada.
Vou buscar seu prato.
— Ok. Obrigada!
No salão de refeição havia alguns hóspedes que já estavam comendo.
Meu prato chegou e estava uma delícia. Comi enquanto mexia no celular
pesquisando algumas coisas. Respondi algumas mensagens e tentei espantar
os pensamentos ruins rindo dos memes que meu irmão me enviava. Decidi
procurar pelo cata-vento no outro dia.
Acordei bem cedo, me vesti de jeans, camiseta e meu velho par de
tênis. Tomei meu café por volta das 08:00h, pois me demorei a descer
respondendo a uns e-mails. Enquanto apreciava meu café com leite
revigorante, vi Estela conversando com uma moça morena, sentadas à uma
mesa perto de mim e perto da mesa delas havia um carrinho de bebê. Ouvi
partes da conversa, pois não estava prestando muita atenção, mas entendi
que ela ia fazer um exame médico.
— Você pode ficar com ele pra mim?
— Hoje, infelizmente, eu não vou poder. Eu adoraria ficar com ele,
Cíntia! Sei que o Davi nem dá trabalho, mas criança sempre requer atenção
dobrada — ela afinou a voz para se dirigir ao menino — Não é, seu sapeca?
Gostoso!
Ouvi o risinho da criança e virei-me para elas.
— Vai ser rapidinho! — a mulher insistiu — Só vou tirar sangue.
Levantei-me com curiosidade e me aproximei delas. Olhei para o
menininho e ele sorriu para mim. Fui dominada por uma emoção que não
consegui explicar. Ele me estendeu os braços e não resisti. Tive que pegá-lo
no colo.
— Olha só, ele gostou de você, Mariana! — Estela exclamou.
O pequeno Davi começou a me contar algo em sua língua e eu
concordei fingindo entender. Ele era muito lindo.
— Posso ficar com ele, se você quiser. — falei, enquanto o sacudia,
sorrindo, sem tirar os olhos dele.
— O quê? — a moça perguntou e, então percebi que estava sendo
inconveniente, pois era uma total estranha para ela.
— Bem, se você não se importar que seu filho fique comigo.
— Sabe cuidar de criança? — ela perguntou.
— Bem, eu nunca fiz isso, mas aprendo rápido.
As duas mulheres se olharam como se decidissem se confiavam em
mim.
— Tem certeza de que quer fazer isso? — a moça perguntou.
— Claro, estou com a manhã livre. — respondi.
— Então, posso mesmo confiar em vocês, né?
— Sem problemas, Cíntia. — foi Estela quem falou — Pode deixar o
Davi com a gente.
Ela respirou fundo e acabou concordando. Levantou-se, fez algumas
recomendações e se despediu do menino. Antes que a moça saísse, Estela
falou:
— Tomara que esteja tudo bem.
Ela sorriu, gostando do que ouviu e saiu. Virei-me para Estela e
perguntei:
— O que há com ela?
Ela respirou fundo e respondeu, ainda sustentando um sorriso:
— Ela vai fazer um exame muito importante. Está sentindo uns
sintomas... Não sei bem o que é.
— Nossa, então ela está doente?
— Não, é só uns exames de rotina. — desconversou. Coisa de
mulher.
— Ah, que bom. Tão nova ainda e estar doente, ainda mais com um
filho tão pequeno.
Estela sorriu.
— A Cíntia? Não, o Davi não é filho dela. Ela é a babá dele.
Ergui as sobrancelhas, admirada.
— Não? E quem é a mãe dessa fofura? — perguntei, olhando para
ele, sacudindo-o.
Estela fez uma cara de pena.
— Infelizmente a mãe dele já é falecida. O Leonardo passou por um
momento difícil.
— Leonardo?
— Sim, o pai deles. O Leo tem três filhos.
— Leo? — balbuciei.
Leonardo. Seria o mesmo Leo do meu pesadelo? O ogro mal-
educado? Engoli em seco e não tive coragem de perguntar. Estela deu um
brinquedinho a Davi e passou a mão na cabeça dele carinhosamente.
— Eu vou cuidar de uns papéis, daqui a meia hora ele precisa comer.
Enquanto isso você brinca com ele.
Ela piscou e eu balancei a cabeça concordando, mas estava intrigada.
Olhei para a criança procurando as feições daquele homem e achei os dois
parecidos, mas aquilo poderia ser coisa da minha cabeça. E foi assim que
passei as primeiras horas do meu primeiro dia em Napolitana.
Supostamente cuidando do filho do homem que pensei que nem veria mais.
Foi uma doce coincidência, pois me conectei àquele pequenininho assim
que coloquei os olhos nele.
CAPÍTULO 19

Mariana Barros

Estar com o Davi foi uma experiência incrível. Nunca havia cuidado
de uma criança. Ele era muito tranquilo e parecia gostar de mim. Não
confirmei se ele era mesmo filho daquele homem. Coloquei em minha
cabeça que não, pois não queria estragar aquele momento tão doce. Foi tão
bom, que assim que ele teve que ir embora, senti dificuldade em me
despedir. Ele era mesmo muito fofo!
Passadas as emoções da manhã, precisava me concentrar em outras
atividades. Perguntei a Estela sobre o cata-vento e ela me explicou como
chegar até ele.
— Ah, sim... Só pode ser o cata-vento da fazenda do Sr. Tommaso. É
o único amarelo que tem por aqui.
Seguindo suas orientações, parti para minha primeira aventura, rumo
à Fazenda Palomar, era assim que ele se chamava. Era perto da cidade.
Estava ansiosa para ver de perto aquele cata-vento. E lá estava eu diante
dele. Belo e imponente. Muito mais bonito que nas fotos da internet e tão
bonito quanto nos meus sonhos. Fincado entre a plantação de girassóis,
parecia ser o girassol rei. Fiquei um bom tempo olhando para aquela
paisagem, fascinada. Tirei algumas fotos e fiz alguns vídeos.
Notei que o pôr do sol se daria naquela direção, atrás dele e não
perderia a oportunidade de registrar aquela imagem tão linda. Era algo
digno de ser eternizado. Resolvi esperar. Ainda faltavam algumas horas
para o sol se pôr, então, entrei em meu carro e comecei a fazer algumas
anotações para passar o tempo. Comecei a escrever como me sentia e a
rabiscar um esboço do que seriam as primeiras palavras do livro que
pretendia escrever. Ainda não estava certa sobre o que seria, mas tinha
certeza de que aquela viagem ia me inspirar. Resolvi escrever alguns versos,
como costumava fazer quando era adolescente.
Talvez não fosse uma boa ideia ficar sozinha num lugar meio deserto,
ainda mais numa estrada de chão, coberta de cascalho. Mas não me
importei, fiquei ali intercalando minha atenção entre meu caderno, a estrada
à minha frente, o retrovisor do carro e a visão daquela fazenda tão bonita.
A sensação de já ter estado ali pulsava dentro de mim. Talvez por
causa dos sonhos, mas também não entendia por que estava sonhando com
aquele lugar. Por isso estava ali buscando respostas. Respirei fundo e peguei
o celular para verificar as horas. Com o aparelho em mãos, conferi as fotos
que havia acabado de tirar. O dedo escorregou e me deparei com uma das
fotos que havia tirado na pensão.
Claro que eu tive que registrar aquele momento. O pequeno Davi
estava em meu colo sorridente como se soubesse que teria que fazer uma
pose. Eu nunca havia estado tão perto de uma criança por tanto tempo.
Foram horas tão agradáveis, que até compreendi o desejo de algumas
mulheres em ser mãe. Sorri para foto e bloqueei o celular novamente.
Guardaria aquela lembrança com muito carinho.
Fiquei entretida escrevendo para passar o tempo. Estavam faltando
poucos minutos para o pôr do sol, quando vi pelo retrovisor, uma
caminhonete estacionada atrás do meu carro, à uma certa distância. Fiquei
intrigada e com um pouco de medo, pois não tinha visto nada se
aproximando, nem escutado barulho algum. Girei o pescoço para olhar
para trás e não vi ninguém. Preocupada, respirei fundo e me preparei para
dar a partida, caso precisasse. Sem tirar os olhos do retrovisor, ia girar a
chave quando, de repente, me assustei com batidas na minha janela.
— Aaai! — dei um grito.
Virei-me para olhar e quase desmaiei quando me deparei com a
figura de pé do lado de fora. Paralisei. Custei a acreditar que era mesmo ele.
Aquele homem de novo. Leo. Seu olhar inquiridor parecia querer perfurar o
vidro. Fiquei sem reação. Até que ele tinha coragem, pois quem estava do
lado de fora não conseguia ver o lado de dentro, não com facilidade. Ele
cobriu os olhos com a mão em formato de uma aba e se aproximou do
vidro. Deve ter visto alguma coisa, pois meneou a cabeça mostrando
chateação. Bateu novamente, exigindo que eu abrisse. Não tive como não
obedecer. Baixei o vidro sem tirar os olhos dele, puxando o ar pela boca
com dificuldade.
— Tá fazendo o que aqui? — falou ao se deparar comigo.
Levei a mão ao peito para me acalmar e reclamei:
— Que susto, moço! Isso é forma de abordar alguém?
Ele não se importou.
— O que você quer aqui? — perguntou com grosseria. Sua voz rouca
e grave me fazendo estremecer — Tá me seguindo, por acaso?
Fiz uma careta e meneei a cabeça.
— Seguindo?
— É... Isso mesmo.
Franzi a testa em sinal de indignação e perguntei:
— Por que eu te seguiria?
— É o que eu quero saber.
Levei as mãos ao volante e pressionei com força, tentando me
controlar.
— Só pode ser brincadeira! — exclamei para mim mesma.
— Ainda não me respondeu. — com os olhos desconfiados cravados
em mim, ele insistiu.
Tranquei os lábios, chateada, abri a porta do carro para sair. Ele se
afastou, me dando espaço.
— Pois fique sabendo que eu tenho mais o que fazer da minha vida!
— falei com o queixo erguido — Não tenho por que ficar perseguindo
idiotas mal-educados por aí! E não te devo satisfações!
Ele riu sem vontade.
— Mal-educado? — perguntou, como se fosse a coisa mais absurda
do mundo.
— Isso mesmo! O senhor é um grosso, um mal-educado! Eu quero
distância de pessoas assim! E não, não estou te “perseguindo”!
— É mesmo? — ele colocou as mãos nos bolsos numa postura viril,
claramente com o intuito de me desconcertar e estava conseguindo. — E o
que está fazendo aqui nas minhas terras? — Desviou o olhar por um
instante — Por acaso foi o Governo que te mandou?
— Governo?
Voltou a me fitar.
— Já disse que não tem nada irregular aqui! — alterou a voz, me
apontando o indicador — Fiz tudo o que me mandaram. Vão procurar
roubar o dinheiro de outro trouxa!
Olhei para ele com a testa franzida e não estava entendendo nada do
que ele dizia.
— O quê? Do que está falando? — perguntei, enquanto lutava com
meu próprio cabelo que, movido pela brisa, insistia em cobrir o meu rosto.
Ele cruzou os braços na frente do corpo, todo arrogante e falou:
— Não se faça de desentendida, porque eu vi você fazendo
anotações. Sei que é um dos fiscais que volta e meia me atormentam.
Achou pouco estragar o meu carro?
Caí o queixo com suas palavras.
— Eu não estraguei o seu carro. Foi um acidente! E você disse que o
carro tinha seguro. Não sei do que está reclamando...
— E tem mesmo, mas até o seguro autorizar a fazer o conserto, vou
ter que usar essa geringonça ali — ele apontou para a caminhonete — meu
trabalho vai ser prejudicado por sua culpa.
— Minha culpa? — foi minha vez de rir, sem vontade. — Ora... Não
me venha com reclamações. Eu me ofereci para pagar o conserto, o senhor
que não quis...
Ele acenou positivamente com a cabeça.
— Não quis e não quero.
— Ótimo! — concordei, me virando para entrar no carro.
— Ei, espera aí! — disse, fazendo-me voltar para ele novamente —
O que está procurando aqui? O que quer comigo?
Joguei a cabeça para o lado, incomodada com a sua insistência.
— Eu não quero nada! Nem sabia que morava aqui!
— E o que você estava escrevendo aí? — ele apontou com a cabeça
para dentro do carro, especificamente para o caderno de anotações que
estava no banco do carona.
— São coisas minhas. Coisas pessoais.
Ele gargalhou com ironia, demonstrando que não acreditava em mim.
— Conta outra! — falou.
Fiquei muito irritada e peguei o caderno. Não queria que ele visse
aquilo, mas a vontade de provar que não era uma mentirosa foi maior. Tá aí
uma coisa que me tira do sério: Ser chamada de mentirosa.
— Leia! — ordenei, mostrando a página.
Ele baixou o olhar para o caderno aberto em minhas mãos e leu em
voz alta:
— Ele é forte, imponente, e mais exuberante do que aparece em
meus sonhos. Parado diante de mim como um rei majestoso! As flores e
tudo à sua volta parecem seus súditos. Até mesmo eu. Me sinto pequena
diante dele e do fascínio que me faz sentir... — o desgraçado começou a rir
— Tá falando de mim? — perguntou com zombaria.
Fechei o caderno rapidamente e fiquei vermelha de vergonha e raiva.
Aquilo foi constrangedor. Ele me olhava de um jeito safado, com a língua
repousada no meio dos dentes.
— Claro que não! — esbravejei, o que o fez rir mais ainda. E para
me deixar mais sem graça, ele deslizou, devagar, o olhar indiscreto pelo
meu corpo e se demorou mais na direção da minha cintura, o que fez me
arrepender por estar usando uma camiseta curta que deixava minha barriga
de fora, mesmo estando usando um casaquinho — É só um poema!
Puxei as pontas do casaco na tentativa de me cobrir.
— Poema? — ele voltou a me olhar nos olhos — Temos aqui uma
romântica! Quem é o felizardo?
Abriu um sorriso exibindo dentes perfeitos. Embora fosse um sorriso
irônico, não pude deixar de notar o quanto era bonito. Leo era naturalmente
charmoso, sem nenhum esforço.
— Ninguém. — respondi — Eu estava me referindo ao cata-vento. E
estava aqui só para ver o pôr do sol e tirar umas fotos, mas agora nem quero
ver mais nada! Perdi totalmente a vontade!
Entrei no carro e bati a porta.
— Ei, não precisa ficar tão brava! O poema tá bonito... Minha filha
de cinco anos faz uns bem parecidos.
Soprei o ar pela boca, bufando de raiva. Liguei o carro e o coloquei
em movimento, querendo sair dali o mais rápido possível. E foi o que eu
fiz. Arranquei, jogando poeira nele com os pneus.
— Idiota! — falei, ainda olhando para ele através do retrovisor. —
Arrogante!
Ele nem se abalou e ainda parecia se divertir com a situação. Não
conseguia acreditar que havia mostrado o meu poema inacabado para
aquele caipira insolente. Ele fez questão de zombar! Que raiva! Fiquei
muito chateada, mas aquilo não iria tirar minha paz.
O que mais me incomodava era a forma como me comportava diante
dele. Como se fosse uma adolescente idiota. Era muita falta de sorte o cata-
vento tão procurado por mim, estar na propriedade daquele homem. Mas
ainda voltaria para ver aquele pôr do sol.
CAPÍTULO 20

Leonardo Moretti

Soquei o saco de boxe com toda força para extravasar a raiva que
sentia de mim mesmo. Pendurado no cômodo que designei para fazer
exercícios, onde se encontravam alguns aparelhos de musculação, aquele
velho saco de pancadas passou a ser o mais usado. Era nele que eu
descarregava toda tensão do dia, todo sentimento reprimido que eu tentava
não transparecer, principalmente para meus filhos... Minhas frustrações.
Frustrações que passaram a ser frequentes naquele momento da
minha vida. Uma vida que, nem de longe, era a que havia sonhado para
mim. Com as luvas em minhas mãos, travava uma luta solitária há mais de
meia hora com meu oponente inanimado. Os punhos já doíam, o suor
escorria abundante pela minha pele, enquanto pensava numa solução para o
meu mais novo problema: Cíntia. Há três dias ela havia me mostrado o
resultado positivo do teste de gravidez. Não podia acreditar que havia sido
tão imprudente. Agora teria que arcar com as consequências.
Mesmo diante da minha reação negativa, Cíntia não se intimidou.
Estava empolgada e fazendo planos. Se antes já era invasiva, tudo piorou.
Passou a se comportar como a dona da casa e estava certa de que eu
assumiria nosso “romance” diante de todos. Se ela tinha uma qualidade, era
a persistência. Não importava o que eu dissesse, ela nunca se abalava com
minhas recusas, minhas palavras rudes. Qualquer outra em seu lugar se
sentiria ofendida, mas ela não.
Meu pai e Jandira achavam que era o certo a se fazer, me casar com
ela, tentar tocar minha vida ao seu lado e me conformar com meu destino.
Mas não era o que queria. A ideia de colocar outra mulher no lugar de
Daniela, não me agradava nem um pouco. Depois de pensar muito, abracei
o saco de pancadas para que ele parasse de se balançar, controlei a
respiração e cheguei à uma conclusão: Assumiria o meu filho, mas casar
com a babá estava fora de cogitação.
◆ ◆ ◆

Mariana Barros

Com os olhos fechados, suspirei ao sentir o sabor doce e morno do


bolo mesclado se derreter em minha boca. Estela havia o tirado do forno há
poucos minutos. Eu amava um bolo caseiro! Tinha sabor de infância.
— Fique à vontade, Mariana! Esse bolo é apenas para o nosso
cafezinho da tarde mesmo!
— Está uma delícia! — Estela alargou o sorriso com o elogio — Já vi
que vou engordar, se ficar por muito tempo aqui. — falei, enquanto me
servia de uma xícara de café.
Estela me olhou com curiosidade.
— E por quanto tempo vai ficar? — ela perguntou.
Pensei por um momento. Percebi que nem eu mesma sabia a
resposta. Ela emendou outra pergunta:
— Está pensando em morar aqui?
Não havia pensado nisso, mas até que não era má ideia. Tirando os
dois embates com aquele homem, tudo o que havia experimentado naquela
semana estava sendo muito bom para mim. Visitei o museu da cidade e
gostei muito do histórico do local, as origens italianas. Senti uma certa
conexão com tudo aquilo. Eu carregava sangue italiano por parte do meu
pai, talvez fosse por isso. Também fiz dois passeios, explorando algumas
grutas junto com um grupo de turistas e fiquei realmente fascinada com
tudo o que vi. O local parecia sagrado.
Em um dos passeios, o guia nos permitiu entrar nas águas de uma
cachoeira. Era como se fosse um ritual que costumavam fazer, mas só
participava quem quisesse. Eu amei a experiência. Foi como se estivesse
recebendo uma cura, uma estranha a alegria tomou conta de mim e foi
naquele momento, exatamente naquele momento que percebi que eu não era
mais a mesma.
A Mariana com o coração danificado, a publicitária estressada, ligada
no 220, já não existia mais. Outra pessoa no meu lugar, talvez, quisesse
reencontrá-la, trazê-la de volta, mas eu não. Eu não queria aquela velha
Mariana, pois ela era mais dura e exigente consigo mesma e menos
interessante que essa nova Mariana, que parecia ser mais leve e mais feliz.
Bem, ao menos se contentava com pouco. Estava amando conhecê-la.
Ela conseguia enxergar e se emocionar com a beleza de um simples
pássaro. Porém, essa nova Mariana ainda não havia encontrado o seu lugar.
Pelo menos não até chegar em Napolitana, onde tudo, exatamente tudo, de
forma muito estranha, parecia fazer sentido.
Estela ainda esperava por uma resposta.
— Talvez — respondi — Ainda não pensei sobre o assunto, mas a
ideia de morar aqui é bem atrativa. Estou pensando em alugar um lugar para
ficar.
Ela sorriu, satisfeita com a minha resposta. Depois de uma semana
hospedada naquela pensão, percebi que Estela era naturalmente simpática e
prestativa. Não era fingimento. Ela me mostrava sinais de que seria uma
ótima amiga num futuro hipotético.
— Ah, então você vai mesmo ficar! — falou com animação.
— Não, ainda não me decidi. Só quero alugar um local para me
estabelecer por uns meses, no máximo um ano. Será que teria algo no
centro?
Ela se sentou na cadeira de frente para mim e também se serviu de
um pedaço de bolo.
— Com certeza deve ter. — ela assegurou — Posso falar com o Luiz,
o corretor, pra te auxiliar.
Acenei em concordância, enquanto levava a xícara de café à boca.

◆ ◆ ◆

Leonardo Moretti

Me envolvi com tantas coisas nos últimos dias que nem vi o tempo
passar. Algumas situações que precisavam ser resolvidas, decisões a serem
tomadas, que diziam respeito à fazenda, se arrastavam sem resolução. Devo
ressaltar que minha cabeça não era mais a mesma para os negócios como
antes. Se não fosse pelo meu pai, venderia toda nossa propriedade e me
mudaria para a capital. Não fazia mais sentido permanecer aqui.
Em Curitiba eu poderia arrumar um emprego na minha área de
atuação que era Medicina Veterinária. Poderia montar um Pet Shop. Esse
negócio estava em alta e se tornando uma febre em todo o país. Seria bom
poder recomeçar. Numa cidade grande eu poderia dar um futuro melhor aos
meus filhos, em se tratando de estudos. Com certeza, lá eles teriam mais
opções. Quanto à Cíntia, ela teria que voltar para a casa dos pais e eu não
lhe deixaria faltar nada. Nem a ela, nem ao meu filho.
Mas essa não era uma opção no momento. Não poderia deixar a
fazenda nas costas do meu velho. E se vendesse, ele morreria de desgosto.
Aquelas terras eram sua vida. Possuíamos cento e quarenta hectares que
dividimos em três partes. Quarenta estavam alugados para alguns criadores
de gado. Outros quarenta eram utilizados para plantio de alguns cereais e
árvores frutíferas e os outros quarenta eram onde morávamos, onde havia o
laticínio, o casarão que seria transformado em hotel e todo o resto. A
conhecida Fazenda Palomar. O lugar onde passei toda uma vida. Só me
ausentei de lá quando fui fazer faculdade. Mesmo assim, vinha todos os
finais de semana.
O fato era que novas dívidas se acumulavam. Muitos não tinham
noção do quanto se gastava para manter uma propriedade, mesmo sendo de
pequeno porte. Todo dinheiro extra era bem-vindo. Por isso, me alegrei
quando Luiz me ligou dizendo que havia alugado a casa. Ele disse que eu
precisaria passar por lá para assinar uma documentação e retirar algumas
coisas que ainda estavam no imóvel.
— Sim, depois das 14:00h eu passo por aí. — falei, encerrando a
ligação.
E assim o fiz. Fui ter com ele para resolver toda a burocracia e, logo
depois, segui para pegar as coisas na casa. Lá chegando, ouvi uma voz
feminina cantarolando e não pude acreditar no que via. Era ela, a bela moça
loira que ocupava meus pensamentos de vez em quando, desde que a
conheci. De forma sutil, mas ocupava.
Curiosamente, pensar nela era uma das poucas coisas que me fazia
sorrir. Também, era um pedaço de mal caminho! O corpo perfeito, com tudo
no lugar. Gostosa pra caralho! Se tinha mais de trinta anos, não aparentava.
Ela estava limpando um dos móveis, de costas para mim, quando
cheguei. Bati na porta, que já estava aberta, para anunciar minha presença e
ela se assustou. Virou-se para mim e arregalou os olhos ao me ver.
— Você? — perguntou, ao mesmo tempo em que retirava os fones de
ouvido. — O que está fazendo aqui?
Olhei em volta, detectando as mudanças que ela já havia feito e, em
seguida, voltei a olhar para ela.
— Então, foi você quem alugou a casa. — não foi uma pergunta.
Ela me olhou com a testa franzida.
— Sim, por seis meses. — respondeu.
Me aproximei dois passos, sem deixar de notar todas aquelas curvas
debaixo de uma camiseta rosa colada e um short jeans comportado.
— E o que pretende fazer aqui? — perguntei — Pelo que eu estou
vendo, não vai ser só uma moradia.
— Não é da sua conta. — falou com rispidez e senti que ela parecia
ter medo de mim.
— Claro que é. A casa é minha. — retruquei.
Ela me encarou com uma ruga no meio da testa.
— Não é não! — foi enfática em dizer, mas sua expressão se
mostrou apreensiva com a possibilidade de eu estar falando sério.
Ri do jeito que ela me olhou ao lhe mostrar a chave em minha mão.
— Como acha que entrei? — contestei — O portão estava trancado!
— Mas o corretor disse que o nome da proprietária é Daniela.
Respirei fundo e olhei para o teto.
— Essa é a minha esposa. A casa ainda está no nome dela.
— Ah... — ela acenou a cabeça em compreensão — Por que... ainda?
— Ela faleceu — respondi entre um suspiro.
Olhei em volta, as lembranças me atingindo mais uma vez.
— Sinto muito! — ela falou com pesar na voz e percebi que seu
receio se arrefeceu um pouco.
— Já tem um tempo — expliquei — mas parece que foi ontem.
Olhei para seus olhos curiosos e não quis que ela perguntasse mais
nada sobre aquilo, então estendi a mão e falei:
— A propósito, acho que não fomos devidamente apresentados.
Leonardo Moretti.
Ela olhou para minha mão estendida e em seguida a envolveu com a
sua, que perto da minha era bem pequena.
— Mariana Barros. — falou com leve sorriso. E que sorriso!
Meu Deus, que mulher linda!
Ela soltou minha mão mais rápido do que previsto, como se essa a
machucasse. Estranhei aquela reação, mas fingi não perceber. Parece que o
medo que ela sentia de mim ainda estava lá, ou talvez fosse outra coisa. Me
afastei dois passos e perguntei:
— O que está pensando em fazer aqui?
Ela deu um leve sorriso e olhou para a parede onde se encontrava
uma das prateleiras que já havia na casa. Era antiga, de madeira pura, toda
trabalhada.
— Uma livraria — respondeu com satisfação — Nada muito
sofisticado. Apenas um lugar onde os jovens, as crianças possam vir
estudar, ler alguma coisa, conhecer alguns clássicos...
A ideia me pareceu boa, mas tentei não demonstrar. No fundo eu me
lamentava ao constatar que não sobraria mais nada da minha esposa ali no
lugar que ela tanto amava. Ao perceber a minha falta de reação, Mariana
perguntou:
— Alguma objeção?
Era até divertido constatar o quanto eu a deixava desconcertada,
quando na verdade ela parecia ter o poder de colocar qualquer homem aos
seus pés, mas parecia não se dar conta disso.
— Nenhuma objeção, Mariana. Espero que seja um bom
empreendimento. Você pagando direitinho, é o que importa. Só vim buscar
umas coisas para desocupar a casa pra você.
Ela acenou positivamente em compreensão. Ia me dirigir ao cômodo
onde Luiz disse ter acumulado algumas coisas, quando ela me deteve ao me
chamar:
— Leo! — seu jeito de falar meu nome me lembrou Daniela.
Voltei-me para ela um pouco ansioso.
— Sim.
— Vi que há umas telas em branco no ateliê. Posso ficar com elas?
Eu estava querendo comprar umas para voltar a praticar um antigo hobby...
Pode incluir o valor delas no aluguel...
Pensei um pouco e acenei positivamente com a cabeça.
— Claro. Tudo bem.
Ela deu um leve sorriso e agradeceu.
CAPÍTULO 21

Mariana Barros

Preparei a casa para receber alguns móveis que faltavam. Já tinha


conseguido uma cama, um guarda-roupas, uma geladeira e um fogão de
duas bocas. O resto viria depois. Lá já havia umas prateleiras, uma mesinha
e estava ótimo, por enquanto. Levaria um tempo para deixar o lugar a
minha cara, mas estava ansiosa mesmo para montar a pequena livraria. Um
sebo, na verdade, pois boa parte dela seria composta por livros usados.
Já os havia encomendado e não via a hora deles chegarem. O Luiz
estava me ajudando com toda a burocracia que precisava ser feita para tudo
funcionar. A abertura de uma empresa, alvará, essas coisas. Meu primo
Victor conseguiu alugar meu apartamento por um ano, o que me ajudaria
com os gastos e a me manter sem precisar mexer em minhas economias que
estavam aplicadas. Queria focar nesse novo projeto e não via a hora de
começar.
Enquanto não acontecia, me aventurei a pintar uns quadros e comecei
a escrever o meu livro. Passava horas na frente do notebook me perdendo
no mundo das letras. Ainda não tinha um título, mas era uma espécie de
documentário, mesclado com minhas experiências. Me enclausurei nesse
novo mundo.
É claro que estava sempre em contato com minha família, Maitê e
meu médico, que se mostrou muito preocupado comigo, mas lhe expliquei
que estava muito bem. E estava mesmo. Nunca havia me sentido tão em
paz como nesses dias. Dez dias, para ser exata.
Só não estava plena, por causa dele: Leonardo.
Odiava a forma idiota como me comportava toda vez que aquele
homem se aproximava de mim. Ele me desestabilizava de tal forma, que eu
mal conseguia falar. E ele parecia ter o poder de estar em toda parte.
Sempre nos esbarrávamos.
Certo dia, estava no supermercado, distraída, quando de repente:
— Oi!
Ouvi aquela voz grave atrás de mim e estremeci. Virei-me e me
deparei com os olhos penetrantes de Leonardo.
Levei a mão ao peito e respondi com timidez:
— Oi!
— Te assustei? — perguntou com um sorriso.
— Um pouquinho. — respondi, tentando sorrir também.
— Quer uma ajuda?
Olhei em volta, constrangida.
— Não precisa. — falei.
Empurrei o carrinho até o caixa e ele me seguiu. Mesmo eu dizendo
que não, se prontificou a me ajudar. Foi colocando as compras na esteira e
eu desisti de convencê-lo a parar. Paguei a conta, entrelacei as alças das
sacolas em meus dedos, mas Leo as tomou de minhas mãos.
— Já disse que te ajudo. — insistiu.
— E eu já disse que não precisa.
— Que é isso? Eu te ajudo.
Ele pegou todas as sacolas, me deixando apenas com a minha bolsa
de mão. Olhei para ele desconfiada.
— O que quer comigo? — perguntei.
Ele ajeitou as sacolas em suas mãos e falou:
— Preciso conversar com você.
Franzi a testa.
— Conversar comigo? Sobre o quê?
Ele apontou para a saída e seguimos pela calçada.
— Precisamos acertar algumas coisas... — me olhou de canto e
hesitou, conferindo minha reação — Quando chegarmos... Eu te falo.
Respirei fundo e optei por não relutar. Na verdade, estava curiosa
para saber o que ele queria comigo e por que estava sendo tão gentil.
Leonardo me acompanhou até em casa. Durante todo percurso fomos
conversando em tom ameno. Senti que ele estava me sondando, mas aquilo
não me incomodou. Era normal agirem assim com uma estranha, ainda mais
numa cidade pequena como aquela.
— Queria que esquecesse a forma como te tratei quando nos
conhecemos... — ele falou, em certo momento — Aquele lance da batida,
do acidente. Não te dei as devidas boas-vindas quando chegou na cidade e
devo ter deixado uma má impressão.
Ergui as sobrancelhas, surpresa. Dizer aquilo parecia ser difícil para
ele.
— Está me pedindo desculpas, é isso? — perguntei.
Ele acenou positivamente.
— É... Eu precisava me retratar. Não quero que pense que sou um
ogro.
Eu sorri.
— Imagina, estou acostumada com grosserias. Vivi a minha vida toda
em São Paulo, a cidade do povo rude. — falei em tom descontraído.
Ele riu também.
— É, ouvi dizer... — falou. Em seguida foi enfático:— Mas é sério.
Eu fui muito mal-educado com você e quero consertar isso. O que posso
fazer para que não pense mal de mim?
Meneei a cabeça sem acreditar. Ele não fazia ideia do quanto eu
pensava nele. E para piorar, eu ainda continuava tendo sonhos onde ele
aparecia angustiado. O sonho era quase sempre o mesmo: Um acidente, eu
ferida e ele comigo nos braços, gritando, desesperado. Só que na última
vez, havia uma novidade. Ele me chamava de “Amore mio”.
Eu sei que as raízes italianas nessa cidade são muito fortes e era
normal ver um ou outro morador misturar os idiomas. Talvez por influência
dessa cultura local que acabara de conhecer, minha mente estava me
pregando peças. Mas, tudo o que eu sei é que, ouvir Leonardo Moretti me
chamando de Amore mio, enquanto chorava, mesmo que fosse em um
sonho era, no mínimo, perturbador. E agora vê-lo tão gentil e tão perto,
atiçou células em meu corpo que eu nem sabia que existiam.
Desse dia em diante, em que me acompanhou até em casa, Leonardo
sempre aparecia. Umas duas semanas mais ou menos, onde uma amizade
forte estava crescendo e até parecia que nos conhecíamos há décadas. Ele
mexia comigo, não vou negar.
Era, com certeza um dos homens mais lindos que já vi na vida. Alto,
moreno, musculoso e dono de um sorriso fascinante. Pena que ele sorria
pouco. Aquele ar rústico também o deixava naturalmente charmoso. Não
conseguia não imaginar como seria aquela truculência toda na cama.
Certamente, as mulheres que já passaram por suas mãos estavam bem
servidas.
Nossa, detestava ficar pensando nessas coisas, mas era inevitável!
Leonardo estava meio que invadindo a minha vida. E para piorar,
acabei alugando a casa dele. Sempre ele! O acidente foi com ele, o cata-
vento fica na fazenda dele, e agora a casa... Ainda tem o Davi, que depois
fiquei sabendo que era mesmo filho dele. Será que era realmente para
nossos caminhos se cruzarem assim?
Meu Deus, eu estava mesmo afetada por aquele homem para gastar a
maior parte do meu tempo pensando nisso! Mas não tinha como não ser
assim. Era muita coincidência. Há quem goste de dar explicações divinas
ou sobrenaturais quando acontece algo desse tipo, mas boa parte dos acasos
e coincidências pode ser facilmente explicada... e eu vou achar uma
explicação.
◆ ◆ ◆

Leonardo Moretti

Cíntia não reagiu muito bem à minha decisão de não me casar com
ela e estava fazendo drama. Eu até estranhei, porque, geralmente, ela era
bem controlada.
— Se você não se casar comigo, Leo... Vou abortar!
Olhei para ela com a testa enrugada, sem acreditar no que tinha
acabado de ouvir. Principalmente pela forma fria com que falou, como se
fosse a coisa mais simples do mundo.
— É sério que vai usar esse tipo de chantagem para me prender ao
seu lado? — perguntei, tentando me controlar ao máximo. Essa garota me
tirava do sério.
— Eu não quero ser uma mãe solteira! — disse com voz embargada e
pela primeira vez, ela parecia realmente afetada. — A cidade é pequena, as
pessoas falam. Acho que seria ruim até pra você...
— Estamos no século 21. As pessoas não se importam com isso e
você... Você — olhei para ela, analisando sua forma vulgar de se vestir.
Quantas vezes a pedi para ser mais discreta, mais decente! Poxa, ela
cuidava dos meus filhos. Eram crianças! Custava ela andar mais vestida na
frente deles? — Muita coisa já é dita sobre você na cidade, Cíntia. Você não
tem bem uma reputação a zelar.
Ela se ofendeu e vi suas narinas dilatando, mas logo recuperou o
autocontrole, como sempre fazia, determinada na sua missão de me
conquistar.
— Ter um filho solteira desgraçaria a minha vida, minha família! —
exclamou com olhos marejados — Meu pai me mataria!
A encarei, tentando a decifrar e estava quase certo de que aquilo não
passava de um teatro.
— Não seja exagerada. Já disse que vou dar toda assistência a
vocês...
— Não é a mesma coisa e também... — ela me fitou com olhos de
cachorrinho.
— Também o quê? — perguntei sem paciência.
— E- eu... Eu amo você, Leo! — confessou, estreitando a distância
entre nós.
Meneei a cabeça, desviando o olhar. Mais essa agora!
— Cíntia... — falei desanimado.
— Por favor, Leo! Já passou da hora de você superar sua perda. Eu
sou a mulher certa pra você.
Estalei a língua.
— Você sempre soube que eu não tenho intenção alguma de
substituir a Daniela! — falei com firmeza — Não quero outra em minha
vida...
— Mentira! Sua implicância é só comigo. Eu sei muito bem que você
vive atrás das putas do clube da Rubi.
— Estou falando de compromisso, Cíntia. Não quero me
comprometer com mais ninguém. Não me interesso por ninguém.
— E quanto àquela loira azeda? — ela se referia à Mariana e pelo
visto, percebeu o meu mais novo ponto fraco. — Eu vi o quanto parece
estar interessado nela.
Ela se referia ao fato de ter me pegado fuçando, no computador, as
redes sociais da Mari, como era chamada. Em seu perfil não tinha muita
coisa sobre ela. Só informações profissionais e estas estavam
desatualizadas. Vi que ela era uma publicitária bem-sucedida e tudo o que
tinha lá era referente ao seu trabalho. Mas nas fotos em que ela aparecia,
estava sempre linda e elegante. Porém, a última foto me chamou a atenção.
Ela estava vestida casualmente, sentada em um banco de um parque florido.
Estava linda, mas dava para perceber a aparência abatida. A legenda da foto
dizia: Seguimos...
Li também alguns comentários de incentivo, como se ela estivesse
enfrentando algum problema, uma doença talvez ou passando por um
momento difícil. Não vou negar, estava muito curioso. E sim, em todo esse
tempo, Mariana foi a única mulher que me chamou a atenção. E não estou
falando apenas de sua beleza e sensualidade. Falo do fato de alguém que eu
gostaria de conhecer, saber mais sobre ela... Saber porque abandonou tudo
para vir parar nesse fim de mundo.
Só havia trinta e um dias que eu e Mariana nos conhecíamos, mas
parecia ter mais tempo. Sim, eu contei cada dia na minha agenda. Havia
uma conexão entre nós difícil de explicar, mas não sabia se ela sentia o
mesmo, por isso não dividi isso com ninguém. Cíntia não era boba e
percebeu meu interesse, mesmo que eu disfarçasse bem.
— Você está vendo coisa onde não tem. — falei — A Mariana
alugou minha casa na cidade e é apenas uma inquilina. É inevitável que
tenhamos contato. E essa sua reclamação só prova que você nunca poderia
ser minha esposa. Não suporto mulher ciumenta!
— Eu não sou ciumenta. — ela retrucou — Só estou te provando que
você não é o que diz ser. Fica aí tentando manter uma fidelidade fingida a
uma esposa morta, enquanto é negligente com quase tudo a sua volta.
Principalmente seus filhos. Os que já tem e o que ainda vai nascer. — ela se
encolheu abraçando a barriga — Se a Daniela pode te ver de onde está, há
muito tempo está decepcionada com sua hipocrisia! Ela sabe muito bem que
você já a esqueceu, seu hipócrita!
Não acreditei que aquela interesseira havia dito aquilo. Por pouco
não dei na cara dela. Cheguei a avançar, mas ela se encolheu e eu recuei.
— Você não sabe de nada, Cíntia! — falei entredentes — Eu nunca
vou esquecer a minha esposa! — e gritei: — Lava sua boca para falar o
nome da Dani, sua ridícula!
Ela me enfrentou.
— E você é um iludido!
Eu me amaldiçoei silenciosamente por ter colocado aquela mulher
nas nossas vidas. Onde eu estava com a cabeça? Deveria ter me livrado dela
na primeira chance.
— Eu. Não. Vou. Me. Casar. Com. Você! — falei compassadamente,
olhando-a bem nos olhos.
Ela fez uma careta desdenhosa e retrucou:
— Pois então, me dê o dinheiro para o procedimento. Eu não vou ter
esse bebê.
Desgraçada! Ela sabia que minha família era composta pela maioria
de católicos tradicionais e isso seria um escândalo. Eu não me importava
para a opinião dos outros, mas isso era considerado crime entre os meus.
— Você não teria coragem. — falei.
— Quer pagar pra ver?
— Sei que você só está dizendo isso para me manipular. Não vai
funcionar, Cíntia! Sabe que eu posso até ser excomungado da comunhão se
souberem de uma coisa dessas!
— Ah, então eu posso ficar malfalada, mas você não? — Ela
questionou com voz esganiçada.
— São coisas diferentes! — esbravejei.
Antes que ela falasse alguma coisa, ouvimos o choro de Davi. Nós
dois nos abrandamos da discussão acalorada, mas ainda nos encarávamos.
— Cuide do menino! — ordenei — Eu vou buscar as crianças na
escola. Depois terminamos essa conversa.
Ela me encarou com aquela cara de quem estava sentindo um mau
cheiro, mas acenou positivamente e foi em direção à escada.
◆ ◆ ◆
À tarde fui até a cidade resolver umas coisas e aproveitei para pegar
umas caixas que haviam chegado no antigo endereço da floricultura, que
agora era onde Mariana morava. Confesso que estava mais interessado em
vê-la que qualquer outra coisa. Ainda estava chateado pela discussão com
Cíntia e precisava me acalmar. Isso precisava ser resolvido.
Conversei com meu pai e contei sobre a gravidez. Ele me aconselhou
a me casar com ela logo. Para ele poderia ser fácil, mas não para mim. Eu
não gostava dela. Como poderia me casar com aquela garota? Ainda mais
agora que Mariana passou a tomar conta dos meus pensamentos.
Nossos “encontros” passaram a ser frequentes, eu a ajudava com
algumas coisas e estávamos nos entendendo bem. Ela ainda ficava estranha
na minha presença, mas estava menos arisca e eu gostava desse seu jeitinho.
Mari era diferente. Ela tinha algo mais. O que eu não tinha conseguido
achar em nenhuma outra mulher até então.
Não era só desejo, porque eu a desejava e muito. Acho que todos os
homens da cidade também. Mas tirando fora o tesão, não sei se pelo fato de
ser uma mulher sozinha, eu queria muito estar com ela. Sei lá... Protegê-la
de alguma forma. Ainda me sentia culpado pela forma como a tratei no dia
do acidente. Eu estava estressado e fui muito grosso. Definitivamente não
foram boas-vindas.
Cheguei à porta da futura livraria e chamei, mas ela não respondeu.
Sabia que estava lá, pois a ouvia cantarolando uma música da MPB,
baixinho. O portão estava aberto, fui entrando sendo guiado pela sua voz.
Atravessei a sala principal e cheguei ao ateliê. O antigo ateliê de Daniela. A
porta estava entreaberta. Sabia que não devia estar bisbilhotando, mas a
curiosidade foi maior. Não pude acreditar no que estava vendo. Mariana
usava um vestido branco, longo e folgado. Estava sentada em uma cadeira,
de costas, na exata posição como Daniela se sentava, de frente para uma
tela.
Meu coração falhou uma batida, era como se estivesse tendo um
déjà-vu[4]. Paralisei diante daquilo. Prendi a respiração para não denunciar a
minha presença e fiquei um tempo olhando para ela. Me emocionei ao me
lembrar da minha linda esposa. A diferença era a cor do cabelo. Dani tinha
cabelos longos e castanhos, enquanto Mari era loira. Cada uma dona de sua
própria beleza e igualmente encantadoras.
Pigarreei anunciando minha presença, mas os fones a impediram de
me ouvir. Bati na porta, tentando controlar a emoção e falei:
— Ô de casa!
Ela tomou um leve susto e virou-se para mim. Levantou-se
rapidamente ao me avistar, se colocando na frente do quadro, na clara
tentativa de escondê-lo.
— Leo... Não ouvi você chegar... — falou, me encarando daquele
jeito que sempre fazia ao se deparar comigo. Linda como uma perdição! A
presença dela ali era quase uma profanação àquele lugar tão sagrado para
mim, por causa dos pensamentos libidinosos que me invadiam. — Deseja
alguma coisa? — perguntou.
“Sim, desejo arrancar esse seu vestido e te devorar contra aquela
parede ali, tentação! Meter em você até te deixar sem forças, sem dó nem
piedade. Pra ver se te arranco da minha cabeça!” — pensei.
Minha mente imaginou tudo o que eu poderia fazer com ela, em
poucos segundos. Porra, essa mulher me tirava do sério!
Limpei a garganta para espantar aqueles pensamentos, tentando me
controlar e esconder minha excitação.
— A Estela me disse que você comentou com ela que havia chegado
umas encomendas. — respondi.
— Ah, sim. Foram três pacotes. — disse.
Acenei positivamente e sorri.
— Você está pintando? — perguntei.
Ela ficou vermelha.
— Sim, eu estou me aventurando nessa arte novamente.
— Posso ver?
— Ainda não finalizei... É um projeto em andamento.
— Me deixa ver. — pedi com simpatia — Minha esposa costumava
pintar e eu gostava muito.
Ela sorriu, meio sem graça e saiu da frente do quadro.
— Já vou logo avisando que não sou profissional, estou aprendendo!
Eu já estava preparando uma gracinha para dizer a ela e deixá-la sem
graça, quando meus olhos se fixaram naquela tela. Não pude acreditar. Só
podia ser uma brincadeira de mal gosto. Estava diante do girassol de
Daniela. Era o girassol. O girassol solitário que Daniela não conseguiu
terminar e ficou pela metade. Como se tivesse o direito de fazer aquilo,
Mariana já começava a desenhar a outra parte. Não, ela não fez isso. Tinha
que haver uma explicação.
CAPÍTULO 22

Mariana Barros

Não entendi aquela reação do Leonardo. Assim que colocou os


olhos na tela que eu estava pintando, ele surtou.
— Quem te deu autorização para fazer isso? — esbravejou como se
eu tivesse cometido o maior pecado do mundo.
— Para fazer o quê?
— A pintura!
Meu Deus! Será que estava tão ruim assim?
— O girassol? — perguntei hesitante, tentando entender onde
estava a razão de tanta fúria que eu via em seus olhos.
Ele dilatou as narinas e deu as costas para mim, inquieto. Parecia
estar se controlando para não me matar. Voltou-se passando a mão nos
cabelos e apontando para o quadro inacabado, soltou:
— Essa é a tela da Daniela!
Franzi a testa, cada vez mais confusa.
— Mas você disse que eu podia usar...
— Sim, mas não essa aqui!
Olhei para a tela intrigada, procurando o que havia de tão especial
ou diferente nela. Para mim, era exatamente igual as outras cinco que ele
me permitiu utilizar.
— Por acaso você é louca? — ele continuou com seu showzinho.
Reagi.
— Alto lá! O único louco aqui é você! E eu não tenho culpa se você
tem amnésia!
— Não se faça de sonsa, Mariana! Achou que eu não me daria
conta que estava usurpando algo que não é seu?
Meu sangue ferveu. Ele estava fazendo acusações graves e injustas.
— Não faço ideia do que está falando.
Ele apertou os lábios um no outro e avançou sobre quadro,
arrancando-o do pedestal
— O que pensa que está fazendo? — gritei indignada. — Me
devolve isso, seu insolente!
— Insolente? Você que é uma sem noção! — ele estava realmente
ofendido. Olhou para o quadro e se lamentou: — Estragou a última
lembrança que eu tinha da minha esposa. Devia ter me perguntado, porra!
Estremeci com aquela voz grossa ressoando sobre mim.
— Mas você disse que estava tudo bem usar as telas... — minha voz
saiu trêmula e algumas lágrimas se juntaram nos meus olhos.
Ele me fitou como se estivesse decepcionado. E naquele momento,
todo avanço que tínhamos feito durante aqueles dias, caiu por terra. Isso
mesmo, durante duas semanas inteiras, Leo sempre arrumava uma desculpa
para aparecer por aqui. A princípio parecia estar me sondando, mas aos
poucos percebi que ele estava querendo tirar a primeira impressão ruim do
nosso primeiro encontro.
Então, me ajudou com algumas coisas, como a pintura da parede, o
conserto de alguns móveis, entre outras coisas. Ele era o tipo de homem pau
para toda obra, estilo Rodrigo Hilbert. Eu já havia mudado o meu conceito
sobre ele. Aquele medo que eu sentia no início se dissipou totalmente e até
virou admiração. Percebi que era um homem sofrido, por causa disso
associei os sonhos que vinha tendo com ele desesperado, como um pedido
de socorro e deixei que ele se aproximasse de mim.
Leonardo era viúvo e pai de três filhos. Vi o quanto era difícil para
ele ter que cuidar das crianças sem a esposa. Ele até me confidenciou
algumas de suas angústias e uma delas era não saber lidar com sua filhinha
chamada Sarah, a que mais dependia da presença feminina da mãe. Pelo
que ele me contou, ela não se dava muito bem com a babá. Eu estava até
planejando conhecer todos eles, mas ao que parecia, isso não aconteceria.
De repente, o início do que eu já estava chamando de uma amizade,
se dissolveu por completo, em segundos. Eu não conseguia entender por
que Leonardo Moretti tinha que ser tão complicado! Ele me fitou com o
meu quadro em suas mãos. Seu olhar me acusava de coisas que eu não fazia
ideia do que poderiam ser. Ainda tentei arrancar a tela das mãos dele, mas
ele estava irredutível.
— Você não vai levar esse quadro! — falei decidida.
— Claro que vou.
— Por quê? O que vai fazer com ele?
— Colocar no lugar onde ele deveria estar. Eu pensei que tivesse
levado, mas pelo visto eu esqueci.
— Do que está falando?
— A Daniela pintou esse quadro pra mim. Não chegou a terminar,
mas de todos que ela fez, este é o mais bonito. Foi um presente de
aniversário. O último.
Ele só podia ter algum tipo de demência. Comecei a cogitar que ele
estivesse tendo algum delírio.
— Você só pode estar louco. Não tinha nada nessa tela. Ela estava
em branco...
— Mentira!
Caí o queixo.
— Mentira? Está mesmo me chamando de mentirosa de novo?
— Mentirosa e…
— Tome bastante cuidado com o que vai dizer, Sr. Moretti! —
adverti.
Ele se conteve e o percebi medindo as palavras.
— Tudo bem. Eu sei que você... — disse mais calmo — Você
parece ter ambições de se tornar uma grande artista, mas não precisa
trapacear assim! Mesmo porque Daniela não era nenhuma artista famosa.
Franzi a testa e semicerrei os olhos com o que ele tinha acabado de
dizer.
— É sério isso? — perguntei.
Juro que por um instante achei que estivesse brincando, mas não...
Ele estava me acusando de falsificação, era isso mesmo?
— Você não me conhece...
— Esse é o problema, Mariana. Ninguém aqui te conhece.
Abri a boca para argumentar, mas Leonardo me impediu de dizer
qualquer palavra.

◆ ◆ ◆

Leonardo Moretti

— Sei o que está tentando fazer. — disse, olhando bem em seus


olhos.
— Sabe? — ela perguntou, se fazendo de desentendida.
Meu sangue ferveu. Eliminei a distância entre nós e esbravejei:
— Acha que pode chegar aqui, vinda não sei de onde e ferrar com
minha cabeça desse jeito, garota?
— Que jeito? Do que está falando?
Entreabriu a boca, me distraindo. Fui atingido pelo cheiro fresco do
seu hálito, me convidando a experimentar aquela boca macia. Maldição!
Recuei.
— Você não vai brincar comigo, entendeu? — esbravejei.
— Mas...
Não ouvi o quer que fosse que ela tentaria me dizer. Peguei o
quadro e saí dali o mais rápido possível.
Mariana teve a cara de pau de dizer que era a autora daquela
pintura, quando eu conhecia muito bem aqueles traços. Era exatamente
como Daniela pintava. A sensação que eu tive era que ela estava montando
um cenário de sedução para que eu comparasse as duas de alguma forma.
Com certeza só queria brincar comigo.
O problema é que eu devia estar muito mal para não me lembrar,
mas tinha quase certeza que havia levado aquele quadro comigo antes. Pelo
visto não. Me senti um lixo por deixar algo tão precioso para mim,
vulnerável e à disposição de uma pessoa mal-intencionada. Poxa, no que ela
estava pensando?
O fato era que estava errado sobre Mariana. Ela não era o que eu
pensava. O pior era que aquela mulher não saía da minha cabeça. Até
cogitei a possibilidade de me envolver com ela de algum jeito. Me
apaixonar, talvez... De uma forma muito estranha, eu me sentia bem perto
dela, por isso estava tão relutante com relação à Cíntia. Sabia que dentre
todos os motivos que me impediam de dizer “sim” para a babá e assumi-la
de vez, Mariana era o mais forte.
Meneei a cabeça decepcionado comigo mesmo, quando atravessei a
entrada da fazenda. Ainda não havia anoitecido. Assim que estacionei e saí
do carro com o dito quadro nas mãos, Sarah veio até mim e nos
encontramos na escada que dava acesso à varanda. Olhei para ela pensando
que me perguntaria o que era aquilo que eu estava carregando, mas para
minha surpresa, minha pequena me encarou e me perguntou:
— É verdade que o senhor vai se casar com a Tia?
— O quê? — Perguntei surpreso, erguendo as sobrancelhas.
— A Tia disse que vocês vão se casar e que eu vou ganhar um
irmãozinho.
Cíntia apareceu à porta e eu a recriminei com o olhar. Ela encolheu
os ombros e falou:
— Eu não contei nada. Ela me ouviu conversando com a Jandira.
Olhei para a Sara novamente e não sabia se ela estava achando boa
ou ruim aquela notícia. Seus olhinhos me olhavam de forma impassível,
com expectativa. Nem sabia o que responder. Olhei para o quadro em
minhas mãos e, em seguida fechei os olhos. A raiva que estava sentindo há
poucos minutos tomou conta de mim novamente e, por pura birra, tomei
uma decisão precipitada.
— Sim, minha filha. Eu vou me casar com Cíntia. — falei, para
logo perceber que tinha feito uma besteira.
Cíntia levou as mãos à boca para conter um grito de felicidade e
vibrou silenciosamente, mas Sarah fez um biquinho. Minha filha me olhou
com decepção e começou a chorar. Confesso que não esperava por essa
reação.
— Você disse que não ia casar com ela! — gritou, com lágrimas nos
olhos.
— Mas...
Ela não esperou que eu me explicasse e saiu correndo para o
quintal.
— Sarah, aonde você vai? Volte aqui! — gritei inutilmente, vendo-a
sumir no meio das plantas.
Escorei o quadro na mureta da varanda e já ia atrás dela, mas Cíntia
me deteve.
— Deixa, ela deve ter ido pro galinheiro. Toda vez que faz birra ela
vai pra lá.
— Mas logo vai anoitecer, não quero que ela fique solta por aí.
Cíntia me puxou pelo braço e se enroscou no meu pescoço, me
forçando a abraçá-la, enquanto eu tentava me desvencilhar dela.
— Ah, meu amor, eu sabia que você ia pensar melhor e tomar a
decisão certa! Vamos ser muito felizes, Leo!
Respirei fundo e meneei a cabeça. Pensar em me casar com aquela
mulher me deixava tonto. Fechei as mãos nos punhos dela e a afastei de
mim.
— Cíntia, depois nós conversamos...
Eu estava mais preocupado com Sarah. Não pensei que ela ficaria
tão abalada. O que estaria acontecendo que eu não estava percebendo?
Talvez eu fosse mesmo um péssimo pai, como minha consciência vinha me
acusando de ser. Me virei para ir atrás da minha filha, quando vi os faróis de
um carro se aproximando. Me coloquei em alerta, mas logo percebi que era
o carro de Mariana. Ao mesmo tempo Matteo vinha pelo caminho que
levava à casa do meu pai e os dois cachorros que estavam soltos, avançaram
para cima do carro, latindo.
— O que ela quer aqui? — perguntei baixo, para mim mesmo.
Cíntia se colocou ao meu lado, também curiosa. Mariana desceu do
carro e abriu a porta traseira retirando o que eu identifiquei como sendo
telas. Sim, todas as telas em branco que estavam na casa que ela alugou. Ela
as segurou na frente do corpo e com elas tentou se proteger dos cachorros.
Matteo se aproximou dela para contê-los e os dois conversaram por um
instante. Depois de um tempo ele apontou para mim e se aproximaram.
— O que você quer? — perguntei, incomodado.
Ela subiu os degraus da varanda, devagar, olhando tudo à sua volta.
Parou o olhar em Cíntia. Na certa julgando ou tentando identificar se havia
alguma intimidade entre nós. Finalmente me fitou e eu cruzei os braços na
frente do peito, esperando o que ela teria para dizer.
— Vim trazer as telas que estavam lá. — falou, deixando as tais
telas em branco de lado.
— Já disse que pode ficar com elas. — falei.
Ela riu sem vontade.
— Qual é o seu problema? Eu não quero mais essas telas, mas
quero a que comecei a pintar.
Olhei para ela com o a testa franzida.
— É sério isso?
— Eu pago por ela. — tentou — Pago o tanto que você quiser.
Mariana tirou uma carteira da bolsa e abriu, enquanto me
perguntava o valor.
— Esse quadro não está à venda. A Daniela o pintou pra mim.
Ela me encarou como se não entendesse. Não estava com raiva,
parecia preocupada.
— Leonardo... A sua esposa faleceu... Ela não...
— Não quero discutir, Mariana. — a cortei.
Ela meneou a cabeça negativamente e olhou para Cíntia, como se a
perguntasse o que estava acontecendo.
— É melhor a senhora sair. — Cíntia falou se aproximando de mim,
rodeando seus braços no meu braço esquerdo, marcando território.
Mariana estudou aquele gesto e deu um leve sorriso, sem mostrar os
dentes. Eu me mantive sem reação.
— É melhor mesmo você ir. — falei, optando em concordar com
Cíntia.
— Tudo bem, eu vou, mas isso não é justo. — e voltando a me
olhar, acrescentou: — Amanhã mesmo vou desocupar aquela casa. Foi um
erro ter ido pra lá.
Continuei sem saber o que fazer, apenas assisti ela nos dando as
costas e saindo.
CAPÍTULO 23

Mariana Barros

Saí da fazenda um pouco abalada. Como uma coisa tão boba podia
mexer tanto comigo assim? Eu estava por um triz de chorar. Não era só o
fato de ter brigado com o Léo, mas aquele lugar… me senti estranha
naquele lugar. O jeito que aquela moça me olhava também me incomodou.
Era a moça que deixou o Davi na pensão, a que Estela disse ser a
babá dos filhos do Leonardo. Fiquei curiosa para saber o que havia entre ele
e ela. Pareciam íntimos. Sei que tinha algo mais ali.
— Cíntia... — Me lembrei do nome dela.
Sim, esse era o seu nome. Me lembrei de Estela dizendo que iria
fazer um exame. Mas ela parecia estar bem saudável. A forma possessiva
como ela segurou Leonardo não deixava dúvidas, havia algo entre eles.
Sacudi a cabeça tentando espantar aquele pensamento.
— Se tiver, eu não tenho nada a ver com isso!
A única coisa boa de ter ido lá, foi conversar com o Matteo, o filho
mais velho dele. O menino era lindo e muito educado, bem diferente do pai.
Deve ter puxado a mãe. Sacudi a cabeça tentando pensar em outra coisa e
olhei para o painel.
— Vamos cantar!
Liguei o meu pendrive e minhas músicas favoritas começaram a
tocar. Tentei cantar junto para esquecer aquele incidente. Leonardo era um
idiota e não era digno que eu gastasse nem um segundo do meu tempo
pensando nele. Isso tudo começou errado e nunca daria certo. Estela até
chegou a me dizer que ele estava interessado em mim, e eu feito uma boba,
até pensei que pudéssemos nos envolver de alguma forma. Guiada por
aqueles sonhos sem sentido, cheguei a pensar que ele fosse a minha missão
cármica, como Maitê me fez acreditar. Mas estava mais que provado que
não podia haver nenhum tipo de envolvimento entre nós, nem mesmo uma
amizade.
Divagando por esses pensamentos e constatando que a minha estadia
nessa cidade, ou mesmo minha vinda para cá não tinha sentido algum,
estacionei debaixo da árvore que ficava na frente da minha casa, onde
sempre deixava meu carro. Havia uma garagem lá, mas além de pequena
estava cheia de tralhas ainda.
Quando estava me preparando para sair do carro, ouvi um barulho
vindo do banco de trás. Levei um susto e paralisei. Virei-me devagar e ao
ver a silhueta, gritei. Outro gritinho agudo se ouviu logo depois do meu.
Peguei o celular para iluminar e quando estreitei os meus olhos sobre a
figura, deparei-me com dois olhinhos grandes de uma menininha, que me
encaravam.

◆ ◆ ◆

Leonardo Moretti

Assim que Mariana se foi, peguei o quadro e entrei para dentro de


casa. Cíntia veio atrás de mim querendo saber se eu estava falando sério
quando disse que me casaria com ela. Não lhe dei atenção, apenas disse que
conversaríamos depois. Subi as escadas rumo ao quarto onde guardava as
coisas da minha esposa. Destranquei a porta, pois ninguém além de mim
entrava naquele quarto e eu andava com a chave. Ofegante pelo esforço
físico e pelas emoções recentes, entrei e acendi a luz.
Havia muita coisa de Daniela lá. Sempre me isolava naquele quarto
quando a saudade apertava. Me sentava, abraçava alguns objetos e chorava.
Fazia questão de manter tudo arrumado e limpo. Levaria aquele quadro para
o lugar onde ele deveria estar. Do batente da porta, passei os olhos em tudo
ali procurando um lugar adequado para ele. Queria lhe dar um lugar de
destaque. Olhei tudo em volta até que... Quase tive um troço com o que vi.
O quadro do girassol que Daniela havia pintado estava lá, bem de frente
para mim. Não pude acreditar. Me senti como se estivesse dentro de um
desses filmes que ninguém entende e que bugam a mente da gente. Uma
falha na Matrix.
— Não! — exclamei — Isso não está acontecendo!
Caminhei até ele e coloquei o quadro que estava em minhas mãos ao
seu lado. Ainda não estava acreditando. Havia diferenças, mas eram
praticamente idênticos. Como isso seria possível? Só pude chegar à uma
conclusão: Mariana estava falando a verdade.

◆ ◆ ◆

Mariana Barros

— Então, você é a famosa Sarah! — eu disse, repousando o copo de


leite com achocolatado sobre a mesa.
Sarah balançou a cabeça dizendo sim. Ela estava hesitante em pegar
o copo, mas acenei positivamente e ela sorriu. Virou quase todo o leite num
gole só. Parecia estar com fome.
— Por que está se escondendo? — perguntei, passando a mão pelos
seus cabelos castanhos.
— O papai vai se casar com a Tia e eu não gosto dela, ela é má. —
ela falou e percebi o quanto estava triste com aquilo.
— Tia? O seu pai vai se casar com uma tia sua, é isso? — perguntei,
intrigada com aquilo. Leonardo nunca mencionou que estava em um
relacionamento. Se eu soubesse, teria mantido distância.
— Não, eu chamo ela de Tia, mas eu não gosto dela. A Tia é muito
má!
— Ahhh… — acenei positivamente com a cabeça, mas não estava
entendendo nada. Era uma tia por consideração, mas ao mesmo tempo ela
não gostava dela.
— Você disse que ela é má. Por que ela é má?
Ela desviou o olhar para o copo e falou baixinho:
— Eu não posso contar. Ela disse que se eu contar pro meu pai, ela
vai furar a minha cabeça igual ela furou a cabeça da boneca...
— Cabeça da boneca? Que história é essa?
Ela fez um biquinho com os lábios franzidos e falou:
— É. Ela pegou a boneca da mamãe e fez assim ó...
Ela fez um gesto, simulando uma agressividade a uma boneca
invisível, como se mostrasse o que uma pessoa faria se usasse um objeto
pontiagudo, uma agulha talvez. Não pude acreditar no que tinha acabado de
ouvir. Segundo eu entendi, Sarah estava me confessando que sofria uma
espécie de abuso de alguém próximo. Isso era muito sério.
— Ela furou a cabeça da boneca, é isso? — perguntei com cautela.
— É... Ela furou bem feio!
Suspirei, pensando sobre aquilo.
— Ela deve ter falado de brincadeira... — tentei tranquilizá-la.
— Não, ela furou a cabeça da mamãe! — falou de forma enfática,
implorando para que eu acreditasse nela.
Fiquei confusa.
— O quê? Como assim ela furou a cabeça da sua mãe? A boneca da
sua mãe?
— Não! No meu sonho...
— Ah, você sonhou com isso?
Ela disse sim com a cabeça e depois fez um biquinho.
— Eu não quero que o meu pai se case com ela! — reclamou.
Sarah começou a chorar e parecia estar apavorada. Aquilo era um
pedido de ajuda. E pelo visto, Leonardo não estava sabendo de nada. Eu a
olhei com pena, me senti impotente diante da situação.
— Oh, minha linda, não chora!
Ofereci o meu colo e ela se sentou nele, me abraçando com carinho.
— Eu posso morar aqui com você, Mari?
Não soube o que dizer. Não queria me intrometer, mas precisava
contar ao pai dela.
— Você pode ficar aqui sempre que quiser, minha linda! — falei e ela
se apertou mais em mim.
Fiquei com ela em meu colo até ela pegar no sono. Depois que Sarah
dormiu, a coloquei na cama e liguei para Leonardo.
— Mariana?
— Oi, Leonardo eu…
— Que bom que você ligou, precisamos mesmo conversar, mas no
momento não posso... A Sarah sumiu… Já procuramos em todos os
lugares...
Ele estava angustiado do outro lado da linha.
— Ela está aqui. — falei.
Ele processou as minhas palavras por um instante e, em seguida,
esbravejou:
— O quê? Você a levou?
Seu tom de voz parecia já estar me culpando.
— Não, Leonardo, eu não a sequestrei, se é o que está pensando! Ela
entrou no meu carro sorrateiramente... Ficou escondida. Eu a trouxe sem
querer.
— Meu Deus, o que deu na cabeça dessa menina? Eu vou dar uma
surra nela! — berrou do outro lado.
— Por favor, não faça isso. Não brigue com ela.
— Como não? Onde já se viu fugir de casa desse jeito? Ela só tem
cinco anos!
— Ela está confusa, Leo. Está chateada porque você disse que vai se
casar com a tia dela...
Ouvi o seu suspiro.
— É verdade? — eu quis saber.
Ele hesitou e eu engoli em seco, entendendo aquilo como um sim.
— Não, não é bem assim — ele falou, desanimado — Ela entendeu
tudo errado. Eu vou buscá-la.
— Não... Deixe-a passar a noite aqui. Estamos nos entendendo.
Amanhã eu a levo.
Ele pensou um pouco e falou, mais calmo:
— Tudo bem, mas eu passo por ela amanhã, não precisa trazê-la.
— Combinado, então. Mas por favor, não a castigue. Eu sei que ela é
bem pequena ainda, mas escute o que ela tem a dizer. Ela me contou umas
coisas...
— Coisas?
— É... Ela está angustiada, Leo!
— O que ela falou pra você?
— Converse com ela. Não quero me envolver nas questões de vocês.
Tudo o que posso dizer é que talvez ela tenha motivos para não querer que
você se case com essa pessoa.
— Eu não posso tomar as decisões da minha vida baseado no que a
Sarah gosta ou deixa de gostar, Mariana. Ela é uma criança!
Então era verdade! Ele ia mesmo se casar!
— Tudo bem. Se entenda com ela depois. — falei com firmeza, mas
sentia um aperto no peito.
— Tem certeza de que ela não vai te dar trabalho?
— De jeito nenhum. Ela já está dormindo. Eu li a história da
princesa Sarah e ela amou!
— Sério? A mãe dela lia essa pra ela.
— Pois é, ela me falou. Eu tenho a coleção completa dessa série.
Chegou essa semana. Acho que ela vai amar conhecer todas as princesas...
Quero dizer... Eu posso emprestar pra ela, se você deixar.
— Claro. Ela vai gostar com certeza. — ele concordou.
Houve um momento de silêncio entre nós. Senti um frio na espinha e
um aperto no peito, uma saudade de algo que nunca vivemos. Pensar em
tudo o que tinha acontecido naquele dia me deixou mal. Não podia culpá-lo
pela fixação que sentia pela esposa, mas o fato de se casar com outra mexeu
mais comigo do que o mal-entendido com aquele quadro idiota. Não estava
me reconhecendo.
— Bem... Ela já comeu e tomou banho. — falei — Está usando uma
camiseta minha como camisola. Lavei a roupinha dela e amanhã ela pode
vestir.
Ele sorriu.
— Tudo bem, então. Como amanhã é sábado e ela não precisa ir
pra escola, não vou passar tão cedo.
— Combinado.
— Combinado.
— Boa noite!
— Boa noite! — ele suspirou — Mariana, muito obrigado e
desculpa por hoje, eu...
— Tudo bem... Depois a gente conversa, Leo. — falei e encerrei a
ligação, me ocupando em enxugar as lágrimas que escorriam dos meus
olhos.
CAPÍTULO 24

Mariana Barros

Ouvi o som da buzina e fui atender. Pensei que fosse Leonardo, mas
me deparei com uma mulher branca de olhos claros e cabelos castanhos. Ela
chamou do portão. No mesmo instante recebi uma mensagem dele:
“Minha cunhada vai passar para buscar a Sarah, preciso resolver
uns assuntos agora de manhã. Obrigado.”
Me aproximei, tentando reconhecê-la, mas nunca a tinha visto. Sarah
ainda tomava o seu café da manhã.
— Olá, você deve ser a Mariana. — a mulher falou, assim que me
viu
— Sim, sou eu. Pois não! — falei abrindo o portão.
— O Leonardo me pediu para passar aqui para pegar a Sarah.
— Ah, sim... Ele acabou de passar uma mensagem dizendo que viria.
— Pois é, ele teve um imprevisto essa manhã.
A olhei por um instante, imaginando que talvez fosse ela a namorada
do Leonardo. Ele disse que ela era sua cunhada e Sarah contou que ele se
casaria com a “tia”. Aquela seria a tal tia que tanto a aterrorizava? Ela era
bonita, com certeza formariam um belo casal, mas imaginar aquela
menininha sofrendo nas mãos de uma megera me doeu a alma.
— Entre, por favor. — falei um pouco tensa.
— Não, estou com um pouco de pressa. Onde está a nossa fujona?
— Tia Denise! — Sarah exclamou vindo ao seu encontro.
A mulher sorriu abrindo os braços para ela. As duas se abraçaram e a
forma como a menina pareceu gostar dela, estava claro que não era ela a
bruxa má. Sorri, aliviada.
— Oi, meu amor! Você deixou a gente preocupada. Como você está,
minha linda?
— Eu dormi junto com a Mari. Aqui é legal, me lembra a mamãe!
Denise a olhou com ternura e perguntou:
— Por que você fugiu de casa, meu amor?
Sarah se encolheu e mudou de assunto, contando sobre como tinha
gostado de dormir na minha casa, que eu tinha lido histórias para ela,
enquanto eu tive que confirmar com a cabeça. A tia não insistiu no assunto.
Depois de interagir com a sobrinha, ela me olhou, me avaliando, mas com
simpatia no olhar, diria que era um olhar de gratidão e curiosidade ao
mesmo tempo. Me estendeu a mão e falou:
— Desculpa, eu nem me apresentei. Prazer, sou Denise, irmã da
Daniela. Daniela era a mãe da Sarah.
Acenei positivamente com a cabeça e fechei minha mão na dela.
— Prazer, Mariana! Mas você já sabe disso.
Ela sorriu e desviou o olhar para a Sarah. Gostei da Denise. Ao vê-la
de perto, me senti bem. Senti algo bom emanando dela. Notei algumas
semelhanças com Sarah. Trocamos mais algumas palavras. Ela me
agradeceu por ter cuidado de sua sobrinha e nos despedimos.
Acenei com a mão para Sarah, quando ela estava dentro do carro e
ela sorriu para mim. Meu coração ficou pequenininho ao vê-la partir e pedi
em pensamento para Leonardo ter paciência com ela. Fechei os olhos e
respirei fundo. Não podia mais me envolver com nada que tivesse a ver
com aquela família, isso estava mais que óbvio.
Tinha grandes chances de me apegar a eles e eu não precisava de
mais uma carga emocional em minha vida. Quanto mais eu pensava no que
estava me tornando, mais eu estava certa de que tinha a ver com aquele
coração que agora batia no meu peito. Eu o questionei:
— Por que me trouxe até aqui, coração?

◆ ◆ ◆

Minha manhã foi tranquila. Fiz algumas tarefas inadiáveis e arrumei


algumas caixas. Pedi um marmitex, porque não quis perder meu tempo
cozinhando. Depois do almoço estava muito cansada e tomei um banho
para descansar um pouco e depois ia procurar uma nova casa. Coloquei uma
roupa confortável. Uma camiseta branca, leve e um short rosa, folgado. Era
pouco mais das 13h da tarde. Estava bebendo um copo d’água, quando ouvi
a voz do Leonardo. Comecei a me tremer.
— Ai, meu Deus! O que será dessa vez?
Respirei fundo e fui atendê-lo. Para minha surpresa ele estava com o
quadro na mão. Olhei para aquilo e revirei os olhos, cruzando os braços.
— Posso entrar? — ele perguntou.
Agora eu mantinha o portão sempre no cadeado.
— Claro. — falei com cara de poucos amigos.
Sem dizer mais nada, abri e apontei o caminho que ele já conhecia.
Ele parou diante de mim e desceu o olhar pelo meu corpo. Pareceu gostar
do que viu. Lembrei-me que estava sem sutiã e tentei me cobrir com os
braços. Leonardo deu um risinho e passou a entrada. Atravessamos a casa
em silêncio e nos acomodamos na cozinha, onde ele se sentou em uma das
cadeiras perto da janela.
— Como está a Sarah? — perguntei, enquanto pegava uma caixinha
de suco de laranja na geladeira.
— Está bem. De castigo, claro. — ele respondeu, enquanto olhava
em volta, certamente reparando as mudanças feitas.
Olhei para ele com receio.
— O que você fez a ela? — perguntei.
Ele recebeu o copo de minhas mãos e respondeu com um sorriso.
— Não se preocupe. Eu a abracei, disse o quanto a amava, expliquei
que o que tinha feito foi muito errado e a deixei uma semana sem TV. Ela
entendeu que o castigo foi justo.
Sentei-me de frente para ele e ia servir nossos copos com o suco.
— Mas você conversou com ela sobre o outro assunto? Ela parecia
estar muito mal com o casamento.
Ele fez uma careta.
— Que casamento?
— Ora, qual seria? O seu... — ele ergueu as sobrancelhas — Ela
estava muito perturbada com isso...
— Tanto quanto você está? — perguntou com um risinho de canto,
olhando para minhas mãos trêmulas, enquanto eu despejava o suco em seu
copo. — Tá até tremendo!
As palavras dele me desorientaram, piorando a situação e o desastre
foi inevitável. O copo acabou entornando e o líquido foi direto em sua
camisa branca.
— Oh, meu Deus! — gritei, tentando acudir.
Ele empurrou a cadeira para trás com o corpo e levantou-se
rapidamente. Ainda conseguiu segurar o copo, evitando algo pior.
— Me desculpa! — pedi, vermelha de vergonha.
— Está tudo bem, não se preocupe. — falou calmamente.
Fui até a pia para pegar um pano úmido e tentar limpar, mas quando
me virei, Leo já havia retirado a camisa e... Meu Deus! O que era aquilo?
Foi a primeira vez que coloquei os olhos naquela perfeição. Paralisei. O
homem tinha um físico invejável, com músculos bem definidos e barriga
tanquinho. Tudo no lugar. Sério? Onde ele arrumava tempo para malhar?
Tentei disfarçar meu deslumbramento, mas não sei se estava conseguindo.
Com a camisa nas mãos, ele analisou a mancha e se dirigiu para área
de serviço para lavá-la. Conseguiu não sujar a calça, que só recebeu alguns
respingos. Fiquei imaginando se ele a tiraria também se a tivesse sujado.
Acho que eu desmaiaria se assim fosse. Tentei me recompor e fui limpar a
mesa. A mesa, o chão e onde mais havia respingado o suco. Leonardo
lavava sua camisa no tanque. O vi a torcendo e a estendendo no varal. Me
distraí. Era sexy demais um homem como aquele realizando tarefas
domésticas. Ele voltou batendo as mãos molhadas nas laterais da calça e
falou:
— Vai secar logo. O sol está quente.
— Sim, está... Muito... Quente... — falei entre um suspiro, ainda
tentando limpar a mesa, olhando para ele de esguelha. Minha voz
denunciou o quanto estava afetada por ele e eu só queria enfiar minha
cabeça num buraco de tão constrangida.
— Algum problema? — perguntou.
Droga, ele percebeu. Tanto que riu. Leonardo adorava me ver
desconcertada. E olha que eu nunca, na minha vida inteira, fiquei assim por
causa de um homem.
— Pode olhar, Mari. — ele falou, deslizando a mão pelo seu peitoral
— Eu também acho o seu corpo bonito e até já decorei cada curva dele.
Mil vezes droga!!!
Ele se sentou novamente e eu o olhei com uma ruga na testa.
— Que ousadia é essa? — falei com a mão na cintura e o queixo
erguido. Soei mais irritada que o normal.
Ele continuou rindo e se serviu do suco de laranja.
— Por que você está tão brava? — perguntou com deboche. Nem
parecia o homem irritado do outro dia, que quase soltou os cachorros em
cima de mim por causa de um quadro bobo.
— Porque você é muito inconveniente! — falei indo deixar o pano na
pia. — E não deveria falar comigo desse jeito quando está comprometido
com outra pessoa.
— Comprometido? — ele perguntou, dando um gole no suco. — É
isso que está te chateando?
— Não estou chateada. — tentei soar firme.
Ele riu.
— Pode ficar tranquila, eu não vou me casar com ninguém, Mari. —
soltou e me deu vontade de esganá-lo, pois estava insinuando que esse era o
motivo de eu estar incomodada.
E era mesmo, não vou mentir. Mas o que mais me incomodava era o
fato dele parecer ter dupla personalidade. E as duas não gostavam de mim.
Uma me odiava e a outra zombava o tanto que podia.
— Mas a Sarah disse que você vai se casar... — falei.
— Ela entendeu errado. Ela ouviu uma conversa atravessada. —
explicou, enquanto me sentava de frente para ele novamente — É claro que
tenho a intenção de me casar um dia, mas ainda não achei uma pretendente.
— Não?
— Acho que não. Talvez... Quem sabe? Ou seja, por enquanto, sou
um homem livre!
Ele cravou os olhos em mim com tanta intensidade que me
desconcertou. Baixei a cabeça para fugir do seu olhar e fixei no quadro ao
seu lado.
— Por que trouxe isso? — perguntei.
Ele repousou as costas no espaldar da cadeira e levou o braço à borda
superior do quadro. Suspirou e falou:
— Trouxe de volta. Ele é seu.
Meneei a cabeça e ri sem vontade.
— Isso eu já sabia. — falei. — Desistiu de ficar com ele ou você é só
bipolar, mesmo?
Ele entreabriu a boca, decidindo se me respondia ou não. Eu fiquei
esperando.
— Me desculpa por ontem! — falou. Inchei o peito, meio surpresa.
Leonardo Moretti pedindo desculpas mais uma vez. Era sempre assim —
Eu fui um idiota...
— Foi mesmo! — concordei prontamente. — Se pensasse mais antes
de agir, talvez não tivesse que viver pedindo desculpas. Ainda mais quando
reconhecer um erro parece ser algo tão difícil pra você.
— Mari...
Um risinho sem graça o sacudiu. Pareceu concordar comigo.
— Tudo bem, Leonardo. Está desculpado — falei, para tirá-lo
daquele embaraço. — Você veio devolver o quadro e pedir desculpas.
Entendi. Tudo resolvido.
Ele respirou fundo e me encarou de um jeito tão profundo que senti
um frio na espinha. Leonardo provocava coisas em mim difíceis de explicar.
Perto dele eu sempre ficava tensa, nervosa e ao mesmo tempo excitada,
mole... Confusa.
— Preciso te mostrar uma coisa. — falou.
Ele tirou o celular do bolso da calça e me mostrou uma foto. Era uma
foto do quadro. Eu olhei sem muita empolgação e perguntei:
— Tirou uma foto? Então esse é o plano? Não me diga que vai se
contentar só com a foto!
Ele meneou a cabeça.
— Você não está entendendo...
Encolhi os ombros.
— É claro que eu não estou entendendo, Leonardo. Eu nunca entendo
nada que venha de você! Quer saber? Fica com esse quadro! Eu não me
importo. Pensei direito e até fiquei feliz por você ter gostado tanto dele.
Ia me levantar, mas ele segurou minha mão, insistindo em me
mostrar mais alguma coisa.
— Espera! — pediu de forma branda, enquanto eu revirava os olhos,
buscando paciência.
Sentei-me novamente e resolvi ouvir o que mais ele teria a me dizer.
— Esse quadro não é o seu. — disse apontando para a foto no celular
— Esse aqui é o que estava em minha casa. Olha direito! — Ele me
mostrou a foto de dois quadros, um do lado do outro. Mostrei-me mais
interessada. — Veja! O da direita é o que a Daniela havia pintado, o outro
foi pintado por você.
Franzi a testa, desconfiada.
— Como assim? — perguntei, pensando que ele estava brincando
comigo.
— Não entendeu ainda? Você praticamente reproduziu o quadro da
Daniela, sem nem chegar a vê-lo! — ele falou com emoção na voz.
Olhei para ele com temor.
— O quê?
— Por isso fiquei tão abalado.
— Não estou gostando dessa brincadeira, Leonardo.
— Não é brincadeira. Eu não brincaria com uma coisa dessas, Mari!
Você viu o quanto fiquei transtornado quando vi esse quadro. Só estou
querendo entender.
Nos olhamos por um tempo, tentando assimilar aquilo, como se
buscássemos juntos por uma resposta. Minha respiração foi ficando difícil e
eu não sabia o que pensar.
— Foi só uma coincidência. — falei, quebrando o silêncio. — Não
tem outra explicação!
Enquanto falava, todos os sonhos recorrentes que vinha tendo com
aquele lugar, o cata-vento, o girassol, ele comigo nos braços, vieram à
minha mente como uma explosão e fiquei enjoada.
— Pode até ser, mas é coincidência demais... Não acha? — ele
questionou.
— É só um girassol. Até Van Gogh pintou girassóis... — falei, sem
muita convicção.
E essa afirmação me deixou desnorteada. Não sei como sabia
daquilo, mas sabia.
— É... Eu sei. A Dani me disse isso uma vez. — ele falou — Mas
não acho que seja isso.
Ah, meu Deus! O que era aquilo? Olhei em volta com medo. De
repente tive uma estalo em minha mente, uma clareza súbita. Aquela era a
casa da Daniela, o cantinho dela. Será que o espírito daquela mulher estava
me influenciando de alguma forma? Eu não acreditava nessas coisas, mas
estava começando a rever meus conceitos. Levantei-me, zonza e me apoiei
na bancada. Leo veio até mim.
— Você está bem? — acudiu.
— Eu quero sair daqui... — falei, trêmula. — Quero sair dessa casa!
— Por quê?
— Sua esposa não me quer aqui...
— Calma! Não é nada disso!
— Como não? — levei as mãos à cabeça — Que explicação teria
para isso?
Surtei. Comecei a chorar e a entrar em pânico. Leo tentou me
acalmar usando palavras chaves e tentando segurar minhas mãos. Comecei
a falar coisas aleatórias.
— Eu quero sair daqui! Essa casa está mal-assombrada... O girassol...
Estou com medo. Eu vi no meu sonho... Eu...
— Mari, olha pra mim! Se acalme!
Gritei:
— Ahhhh! Ela não me quer aqui...
Ele me abraçou e eu me entreguei a um choro desesperado.
— Calma, não é nada disso! — ele falou ternamente, enquanto eu
soluçava em seu peito. — A Dani não está aqui. E se estivesse, ela amaria
você se te conhecesse e nunca te faria mal. Fica tranquila.
Eu tentava me concentrar nas palavras dele, mas as imagens
aleatórias dos meus pesadelos confundiam minha mente. Me sacudia e me
debatia. Ele não desistiu. Aos poucos foi me trazendo de volta à sanidade e
me dei conta de que estava experimentando o melhor abraço da minha vida.
Meus soluços foram diminuindo e quando estava mais que envolvida,
recobrei a razão. Me dei conta de quão ridículo era aquilo. Eu estava ali na
cozinha, agarrada a Leonardo. Ergui a cabeça de repente e me afastei do
abraço. Fiquei sem graça e tentei não encará-lo.
— Desculpa por isso. Não sei o que me deu. — falei, fungando e
enxugando as lágrimas com as mãos.
— Tudo bem, eu te entendo.
— Melhor você ir embora, Leo!
— Não vou sair daqui. — disse se aproximando mais.
— Eu quero que vá embora. — falei com firmeza, o empurrando.
Ele não se abalou. Repousou a mão esquerda na bancada, do meu
lado direito e se inclinou um pouco para nivelar nossa altura. Com a mão
direita segurou meu queixo entre o indicador e o polegar, me fazendo olhar
para ele.
— Está louca se acha que vou deixar você aqui, nesse estado. —
falou me olhando bem nos olhos. — Você acabou de surtar!
— Já estou bem.
Ele meneou a cabeça.
— Por que a mudança repentina? — perguntou.
Puxei o fôlego e expliquei:
— Só fiquei um pouco abalada com a história do quadro. Achei
estranho, mas já passou.
— Não estou falando disso. Estava há poucos minutos muito
confortável em meus braços e... de repente está toda tensa e...
— Você me incomoda. — soltei.
Ele deu um risinho. Aquele risinho de sempre com aquela barba por
fazer deixando-o ainda mais charmoso.
— Mas você gostou de me abraçar.
Tentei ser indiferente.
— Foi bom, mas não quero mais, obrigada. — falei.
— Depois, eu que sou bipolar.
Sua proximidade agora me incomodava, não sei por que, mas ao
mesmo tempo me confortava. Confusão, era isso que Leonardo era para
mim. Tentei me desvencilhar, mas ele me prendeu contra a bancada.
— Me deixa passar, Leo! — pedi. — Vá embora!
Ele não disse nada, apenas sorriu e afundou os dentes no lábio
inferior. Nossos olhares se encontraram e parecia que nossas almas se
encaravam, se reconhecendo. Aquilo me assustou. Ele sustentou o olhar
penetrante e propôs:
— Por que a gente não para com esse joguinho bobo e derrubamos
esse muro que há entre nós de uma vez por todas?
CAPÍTULO 25

Leonardo Moretti

— Muro, que muro? — Mariana perguntou, ofegante.


Meu Deus, que vontade de colocá-la numa redoma!
Ser testemunha do seu desespero só aumentou minha vontade de
protegê-la. Estela me contou que Mariana disse a ela que estava em
Napolitana para fugir do estresse da grande São Paulo, que procurava por
um lugar tranquilo onde pudesse limpar sua mente para escrever um livro.
Mas eu sabia que havia algo mais. Ela agia como se estivesse fugindo, ou
até mesmo à procura de algo. As duas situações eram perigosas para uma
mulher sozinha como ela. Ainda mais, bonita daquele jeito! Com certeza
seria um alvo certo de pessoas mal-intencionadas. Por isso eu passei a
sempre estar por perto.
Ela só precisava parar de sentir medo de mim. Eu estava quase
conseguindo ganhar sua confiança, mas joguei tudo por terra com aquela
briga idiota pelo quadro. Eu não fazia, mesmo, nada direito! Sempre
deixava meu lado bruto me dominar. Se tivéssemos conversado de forma
civilizada, tudo seria esclarecido.
— Esse muro. — respondi, desenhando com o olhar, um muro
imaginário entre nós.
Com ela imprensada entre mim e a bancada da cozinha, projetei meu
corpo sobre o dela. Ela recuou como pôde.
— Me deixa sair. — pediu — Não sei do que está falando... — tentou
me empurrar com mais firmeza, mas nem me abalei.
Com as mãos apoiadas na bancada, uma de cada lado, a encarei com
ternura. Ela espalmou as mãos em meu peito, tentando me empurrar mais
uma vez. A encarei e vi o pânico em seus olhos.
— Você tem medo de mim. — constatei — Por quê?
Ela deu um sorriso sem graça e meneou a cabeça.
— Eu não tenho medo de você. — tentou ser firme, mas seus lábios
tremeram. — Me deixa passar!
Me mantive no lugar.
— Mas tem uma cisma. — insisti.
Ela fechou os olhos, desanimada.
— Leo, vai embora, por favor! — pediu.
Dei um pouco de espaço para ela, mas sustentei meu olhar no seu.
— A quem queremos enganar, Mari? — retruquei — Há dias
estamos nesse joguinho bobo, nos torturando como dois adolescentes
idiotas. Eu quero você e sei que você também me quer.
Ela mudou de expressão, surpresa com o que eu havia dito.
— De onde tirou isso? — perguntou, tentando não me olhar nos
olhos — Eu jamais me interessaria por um tipo tosco como você.
— Tosco? — perguntei, erguendo as sobrancelhas e sorrindo.
— Isso mesmo. Tosco, rude, arrogante... Bronco! Tenho vários
adjetivos!
Eu só conseguia achar engraçado ela tentando me ofender, quando se
mostrava tão afetada por mim, principalmente quando desviava seu olhar
para conferir meus músculos, claramente fascinada.
— Não me diga! — falei, ainda com um sorriso dançando nos lábios.
— É isso mesmo. Pra falar a verdade, não me interessaria nem por
você, nem por ninguém daqui.
— Pra falar a verdade?
— Isso.
— Olha pra mim, Mari! — pedi com calma e ela voltou a me encarar
— Estamos atraídos um pelo outro, essa é a verdade.
— Está muito enganado! Não estou atraída por ninguém.
— Me prove.
— Não tenho que te provar nada. Só quero que saia.
A fechei novamente contra a bancada.
— Quer mesmo que eu vá embora? — perguntei baixinho.
— Sim. — ela respondeu, engolindo em seco.
Respirei fundo e falei:
— Tudo bem, eu vou, mas primeiro preciso ter certeza.
— Certeza do quê?
— Se eu estiver mesmo enganado e as coisas são realmente como
você diz, me peça para parar.
— Parar? Parar o quê? — ela perguntou com uma ruga na testa.
— Só me peça. — repeti.
— Mas parar o quê? Do que está fal... — calei sua boca com a
minha.
Mariana se retesou por um instante, mas nem tentou me empurrar. Na
verdade, ficou sem reação. Depois de um tempo a senti relaxando, enquanto
eu esfregava meus lábios nos seus, sugando seu sabor. Ela correspondeu.
Então, com uma mão segurei sua nuca, trazendo sua cabeça para frente.
Com a outra abracei sua cintura e colei nossos corpos. Nossos lábios
permaneciam grudados, quentes e famintos, explorando um ao outro, se
conhecendo.
Mari abriu a boca para receber minha língua e assim nos beijamos.
Era a primeira vez, desde que havia perdido minha esposa, que beijava uma
mulher por vontade própria, com paixão, com desejo. Assim, exploramos
nossas bocas por um tempo. Meu coração estava acelerado, sambando
dentro do peito. Me afastei do beijo, repousando minha testa na dela e falei:
— Parar isso... Me peça para parar, Mari!
Ela não disse nada, apenas me olhou com olhos pesados e a boca
entreaberta. Voltei a beijá-la com mais intensidade e ela correspondeu sem
relutar. As mãos que antes tentavam me empurrar, agora deslizavam pelo
meu peito como se quisesse memorizar sua forma. Porra, ela tinha o doce
sabor da luxúria. Sua boca era mais gostosa do que eu havia imaginado,
porque sim, eu imaginei. Como sonhei com esse momento!
— Leo... — ela sussurrou contra minha boca.
Mari estava trêmula nos meus braços. Eu ainda não sabia se era de
medo ou de excitação. Acho que um pouco dos dois. Deslizei minha mão
direita por baixo da sua camiseta e encontrei, pelo tato, o mamilo empinado,
endurecido pelo tesão. O belisquei e ela gemeu. Brinquei com o bico do seu
seio, entre o indicador e o polegar, fazendo-a gemer mais. Nossas bocas
permaneciam grudadas, sôfregas, se deliciando uma na outra. Eu estava tão
duro que minhas bolas doíam dentro da calça. Abandonei sua boca e fui
para o seu pescoço. Projetei o quadril sobre ela e sussurrei:
— Me faça parar, Mari! — insisti.
— Leo! — ela sussurrou ao meu ouvido. — Eu...
Enganchei minhas mãos nas laterais do short que ela usava e o desci
até os tornozelos, deixando-a só de calcinha. Mari segurou em meus
ombros, cravando as unhas nele. A ergui e a coloquei sentada sobre a
bancada, acabando de retirar seu shortinho. Abri suas pernas e desci o nariz
até seu sexo e aspirei o cheiro gostoso de mulher. Estava entorpecido. Ela
enganchou os dedos nos meus cabelos e jogou a cabeça para trás.
— Me peça para parar, Mari! — Pedi mais uma vez. — Me faça
parar ou não terá mais volta. Se quiser que eu pare, é só falar e... Eu vou
embora. — sussurrei com a voz rouca e pesada, quase grunhida.
— Não! — ela finalmente falou — Eu quero... Eu quero que fique.
Sorri e voltei a beijar sua boca, feliz com a resposta.
— Mari, preciso entrar em você, senão vou morrer aqui e agora!
Foi a vez dela de sorrir. Enganchei suas pernas em meus quadris e
com ela no colo, caminhei até o sofá e a deitei sobre ele. Enquanto ela
retirava a camiseta, eu puxei sua calcinha de algodão devagar, me
deslumbrando com a sua nudez. Era linda. Não estava tímida, ao contrário.
Estava com tanto tesão que se abriu toda para mim.
Desci para o meio de suas pernas, aspirei mais uma vez seu cheiro de
fêmea e caí de boca nela. Que delícia! Era exatamente como pensei. Tá aí
uma coisa que eu gostava: chupar uma buceta depilada. Me perdi por alguns
minutos ali, sugando, metendo a língua e alguns dedos, em busca das
terminações nervosas certas, enquanto ela se contorcia e gemia chamando
meu nome.
Ela se oferecia, esfregando seu sexo em minha boca, ansiosa por um
alívio.
— Ai, Leo! Isso, isso... Ai! Assim...
Mari parecia ser daquelas que choravam na hora do prazer. E eu
estava amando isso.
— Olha pra mim, Mari! Olha como te chupo! — ela fixou seus olhos
em mim — Está gostando?
— Sim... Estou... Vou gozar... Vou gozar, Leo!
Olhei para ela e sorri, metendo o dedo em forma de gancho, bem
fundo em sua vagina, até a parte rugosa do ponto G.
— Então goza, minha linda. Goza na minha boca, quero sentir o seu
gosto, amore mio!
Ela me encarou com olhos arregalados.
— Amore mio? — balbuciou.
— Sim... Meu amor!
Envolvi a ponta entumecida do seu clitóris com os lábios e suguei,
uma, duas, três, quatro vezes... Ela revirou os olhos como se estivesse em
transe.
— Ai, meu Deus! Uiiii! Leo, o que está fazendo?
Eu acelerei os movimentos dos dedos e da boca. Logo ela começou a
quicar de prazer e a chorar, como eu supus que faria.
— Ai, Leo... Leo!
Retirei a boca e a massageei com a ponta do polegar para intensificar
o prazer. Ela ainda estava entre espasmos e tremendo. Eu estava para perder
a sanidade de tão excitado. Meu pau doía de tão duro dentro da calça.
— Leo... O que foi isso? — falou com dificuldade, tentando puxar o
ar — Eu nunca tive um orgasmo assim!
— E estamos só começando. — falei, orgulhoso.
Me deitei sobre ela e abocanhei um dos seus seios, ficando um tempo
ali, depois pulei para o outro. Eles eram lindos. Notei uma cicatriz vertical
entre eles, mas não perguntei nada, não queria estragar o momento e minha
excitação me atrapalhava pensar em qualquer outra coisa que não fosse
estar dentro daquela mulher. Mas imaginando ter sido um momento de dor,
beijei aquela cicatriz. Arrastei meus lábios sobre toda extensão dela até
chegar ao seu pescoço e finalmente, parei em sua boca e a beijei com
intensidade.
O tecido da minha calça me impedindo de senti-la por inteiro me
irritou. Precisava arrancá-la o mais rápido possível. Sem tirar sua boca da
minha, como se lesse meus pensamentos, Mari deslizou as mãos até o cós
da calça e a desabotoou, em seguida abriu o zíper e foi empurrando-a para
baixo. Estava tão ansiosa quanto eu. Fez a mesma coisa com a cueca,
deixando-as enroscadas nos meus joelhos e libertando o meu pau, que
saltou ereto, livre e quente sobre sua pele. Ela sorriu e o segurou com as
duas mãos. Eu me arrepiei todo com seu toque.
— Posso sentir seu gosto também, Leo? — pediu, sussurrando.
Só a pergunta me deixou mais duro.
— Claro, minha linda! — respondi, adorando a proposta.
Me levantei devagar e me livrei da minha roupa, chutando-a para o
lado. Ela se sentou ficando de frente para o meu membro saliente, olhando
para ele com admiração. Ondas de calor percorriam meu corpo. Mari
mordeu o lábio inferior e segurou meu pau com uma das mãos, começando
a fazer movimentos de vai e vem. Eu estava todo arrepiado em expectativa.
Assim que colocou a boca nele, ela fechou os olhos, como se provasse da
coisa mais gostosa do mundo.
Começou pela cabeça. Sugou e sorveu o fluido que saía. Tremelicou
a ponta da língua na glande e lambeu a parte de baixo. Abri as pernas para
me equilibrar e segurei em sua cabeça, me apoiando e acompanhando seus
movimentos. Sabia o que fazia. Aquilo era bom demais! Joguei a cabeça
para trás por um instante e soltei um gemido. Voltei a olhar para ela e a
danada estava sorrindo, ciente de tudo o que estava provocando em mim.
— Safadinha! — falei olhando-a nos olhos.
Minha voz rouca e pesada a incentivou e ela intensificou os
movimentos. Mari sugou, lambeu, mordiscou, enquanto meu pau babava
em sua língua. Em seguida começou a fazer movimentos mais rápidos e
sincronizados, o metendo em sua boca, me levando à loucura. Fizemos
contato visual o tempo todo. Gostava de olhar quando fodia a boca de uma
mulher e ela era linda demais!
— Puta merda, que delícia! — grunhi. — Engole o meu pau, gostosa!
Engole tudo!
Ela acelerou os movimentos o levando fundo, quase se engasgando
com o meu tamanho. A imagem daquele rostinho lindo, me encarando com
lágrimas de emoção nos olhos e com a boca envolta do meu membro, era
algo para se guardar na memória. Ela estava gostando tanto quanto eu.
Estava bom demais, mas não queria gozar assim, não na nossa primeira vez.
— Chega, amor. Está ótimo. Vem cá!
Desci até sua boca e ela me beijou com mais vontade que antes.
— Quero você dentro de mim, Leo! — pediu.
— Terá, minha linda!
Enquanto ela se posicionava, fui até minha calça e peguei uma
camisinha na carteira. Rasguei a embalagem com ansiedade e ajustei o látex
no meu membro. Mari olhou para mim com olhos cobiçosos e desejosos.
— Tem certeza de que não quer que eu vá embora? — perguntei com
um sorriso de canto.
Ela balançou a cabeça dizendo sim, mordendo o lado direito do lábio
inferior. Me joguei sobre ela.
— Então admita que está caidinha por mim! — falei com humor e ela
gargalhou — Admita que está tão atraída por mim, quanto eu estou por
você!
Ela me olhou com ternura e acariciou meu rosto. Estava
surpreendentemente emocionada.
— Acho que é mais que uma simples atração, Leo. — falou,
hesitante.
E era mesmo. E aquilo mexeu comigo. Mexeu com nós dois.
— Eu sei... — respondi.
Busquei sua boca e nos beijamos novamente. Foi maravilhoso cada
beijo que trocamos. Eu nem me lembrava do quanto era bom beijar na boca.
Sem poder esperar mais, ajustei meu pênis em sua entrada e fui metendo
devagar. Não queria machucá-la com meu tamanho. Mari se desmanchou
em meus braços. Nos encaramos, rendidos um ao outro. Comecei os
movimentos de vai e vem. Ela choramingou e se entregou por completo.
Logo a vi gozar de novo.
A cada metida que eu dava nela, estava mais certo de que havia
encontrado meu lugar no mundo. Queria prolongar aquele momento ao
máximo. Só existia uma explicação para o que eu sentia: Estava apaixonado
por aquela mulher. Estava apaixonado e não sentia culpa alguma. Pelo
contrário. O fato de estar ali, onde tudo lembrava Daniela, era como se ela
estivesse nos dando a sua bênção.
CAPÍTULO 26

Mariana Barros

Leonardo e eu nos amamos praticamente por toda tarde. Aquilo foi


totalmente inesperado. Que homem era aquele? Uma máquina de dar
prazer. Mais que isso, ele conseguia mexer com todas as células do meu
corpo. Meu coração pulava dentro do peito de tanta alegria e eu até fiquei
preocupada devido à minha condição. Mas era o que eu sentia.
Agora estávamos em minha cama agarrados um ao outro, cobertos
por um lençol fino. Ele recostado na cabeceira entre as almofadas e eu
recostada em seu peito. Houve um momento de silêncio, onde só ouvíamos
a respiração um do outro.
— Arrependida? — ele perguntou de repente.
Ergui a cabeça e sentei-me olhando para ele.
— Não... Por quê? Você está?
Ele acariciou os meus cabelos e colocou uma mecha atrás da orelha.
— Nem um pouco. — respondeu com um sorriso nos lábios.
Nos olhamos tentando buscar respostas um no outro pelo que havia
acontecido e tudo o que conseguimos foi perceber que não havia uma
explicação. Apenas nos queríamos e tudo indicava que era só o começo de
algo bem maior. Meu Deus, eu não estava pronta para isso! Respirei fundo e
procurei ser racional. Minha voz interior gritava dentro de mim.
Foi apenas casual, como sempre, Mariana! Não crie expectativas!
Leonardo inclinou a cabeça para o lado e olhou para o meio dos meus
seios.
— E essa cicatriz, o que foi? — ele perguntou.
Instintivamente a toquei, deslizando os dedos sobre ela.
— Foi uma cirurgia cardíaca.
Ele ergueu as sobrancelhas, admirado.
— Cirurgia cardíaca?
Balancei a cabeça positivamente.
— Nossa... Não é algo simples, né?
— Não, não é.
— Nossa, e qual foi o seu problema?
— Era um problema congênito.
— Meu pai também tem uma cicatriz assim. Ele fez uma ponte de
safena. Foi um momento delicado, mas se recuperou bem.
— Sério?
Me surpreendi por saber disso.
— Sim. — ele olhou para a janela, e sorriu singelamente com alguma
lembrança — O velho é forte. Admiro muito ele. — Voltou a olhar para
mim — Mas você é tão nova ainda e teve que passar por isso...
— Era um problema que eu tinha desde criança. Não tenho mais.
Foi só o que eu disse. Não quis contar a ele que eu era transplantada.
Normalmente as pessoas me tratavam diferente quando sabiam da minha
condição e eu odiava isso.
— Que bom que está bem! — ele disse, enquanto me puxava para si,
me presenteando com um beijo doce.
— Nem acredito que estamos aqui no meio da tarde, nus em cima de
uma cama! — falei. — Isso não está certo.
— Está reclamando? — perguntou roçando a barba em meu pescoço.
Gargalhei.
— Leo, isso faz cócegas! E não, não estou reclamando. Eu estava
mesmo precisando disso.
Ele me olhou por um tempo com um sorriso de lado e falou:
— Tive uma ideia.
Fiquei curiosa.
— O que foi? — perguntei, enquanto o via se levantar e se vestir.
— Vamos. Vista uma roupa e vem comigo.
— Pra onde?
— Vai, anda logo, se não vamos perder!
Ele foi até o varal buscar sua camisa e eu me vesti. Entramos em sua
picape que já estava inteira novamente e em poucos minutos adentramos a
fazenda onde ele morava. Ele tomou um caminho diferente e oposto ao de
sua casa. Estacionou e eu desci extasiada. Leonardo queria me mostrar o
pôr do sol.
— Leo... Eu não acredito! — exclamei, levando a mão à boca.
— Não queria vê-lo? — falou satisfeito.
Olhei para ele emocionada.
— Muito.
Ele sorriu e me tomou pela mão. Subimos um morro onde havia uma
árvore frondosa e nos sentamos ali para assistir ao espetáculo. Ele recostado
nela e eu no meio de suas pernas como um casal de namorados. Eu não
cabia em mim de felicidade. Parecia ter, finalmente, achado o que
procurava. Uma emoção percorreu meu peito em ondas de euforia. Aquele
estava sendo um dia muito especial.
— É lindo! — exclamei com um sorriso tão largo que parecia que ia
rasgar os cantos da boca.
O sol se inclinava suavemente no horizonte, tingindo o céu com tons
quentes de laranja e rosa. Uma brisa suave fazia as folhas das árvores
dançarem delicadamente. O campo que se estendia à vista, banhado na luz
dourada se misturava aos girassóis e junto com as sombras que se
alongavam, pareciam uma pintura.
O canto dos pássaros e o zumbido suave dos insetos criavam uma
trilha sonora serena. O cata-vento girava preguiçosamente, unindo-se à
melodia. À medida que o dia se despedia, uma sensação de paz e calma me
envolveu. Não pude evitar as lágrimas de alegria.
— Eu sabia que seria assim... É muito lindo! — exclamei.
— Está gostando? — ele me perguntou cheirando meu pescoço.
Balancei a cabeça positivamente e me encolhi em seus braços.
— Muito! — falei, sentindo o arrepio que sua respiração me causava.
Ele mordiscou minha orelha e fungou na minha nuca mostrando que
queria mais de mim. Que aquela tarde toda nos entregando um ao outro não
tinha sido suficiente. Virei-me para ele e nos beijamos. Ficamos ali até
aquele espetáculo acabar.

◆ ◆ ◆

Leonardo Moretti

Levei Mariana para jantar conosco. Ela teve a oportunidade de


conhecer meus filhos e interagir com eles. Fiquei surpreso quando ela me
contou que já conhecia o meu caçula Davi e havia passado uma manhã
inteira cuidando dele. Eles gostaram muito dela. Sarah então, ficou radiante.
Matteo estava fascinado. Eu o entendia, pois também estava. Apenas Cíntia
ficou nos olhando torto. O tempo todo me recriminava com uma expressão
de fúria com um comportamento totalmente infantil.
Eu a ignorei. Teríamos uma conversa definitiva depois. O que eu
poderia fazer? Nunca lhe dei esperanças, ela sempre soube disso. Em todas
as vezes que ficamos, tudo acontecia por insistência dela. Eu fui um fraco
por cair no seu joguinho barato de sedução e sempre me arrependia depois.
Me sentia um lixo. Totalmente diferente do que acontecia entre mim e
Mariana. Ela parecia ter sido mandada para aquela cidade na missão de me
resgatar da minha dor. Com ela foi totalmente diferente.
— Você é a namorada do papai? — Sarah perguntou de repente e
Mariana ficou vermelha.
Sem saber o que responder, ela olhou para mim. Eu sorri encabulado
e não disse nada, apenas esperei para ver como ela se sairia daquele
embaraço.
— Sou uma amiga do seu pai. — ela respondeu, piscando para mim.
— Mas vocês estavam de mãos dadas. Só namorados andam de mãos
dadas. — Sarah insistiu. Ela virou-se para mim, esperando que eu
confirmasse. — Não é, papai?
Eu busquei o olhar de Mariana. Quando abri a boca para responder,
ela me cortou.
— Mas como eu iria namorar o seu pai sem antes pedir a sua
permissão? — Mari perguntou, deixando Sarah encabulada.
Ela fez uma carinha de satisfação, se sentindo importante.
— Mas eu permito! Eu permito! — falou com empolgação e virou-se
para Matteo, ciente de que ele também, como filho, deveria opinar — Você
também, não é Teo?
Matteo olhou para mim e se encolheu em um sorrisinho. Eu pisquei
para ele o incentivando a dizer que sim. Ele olhou para Mariana e sorriu.
— Eu acho que o papai quer ser seu namorado. — falou com timidez.
Mari ficou desconcertada.
— Vocês estão me colocando contra a parede, é isso? — perguntou
com humor.
— Se depender da minha permissão está permitido — Matteo
reforçou, agora menos retraído.
Mariana olhou para mim com olhos arregalados
— E você, não vai dizer nada? — perguntou com humor.
— Eu não. Só estou aqui assistindo vocês decidirem o meu futuro.
Todos riram. Até o pequeno Davi em sua cadeirinha, totalmente
alheio à conversa, gargalhou para Mariana, deixando-a emocionada. Ela não
esperava que fosse tão bem recebida por eles. Sem dúvida alguma,
gostaram muito dela. Ela se virou para Sarah e, passando a mão em seu
cabelo, falou em tom mais sério, porém carinhoso.
— Não, minha linda. Seu pai e eu estamos nos conhecendo e é muito
cedo pra falar em namoro. Somos amigos.
Eu concordei com ela.
— Exatamente. Estamos nos conhecendo.
Nesse instante, Cíntia apareceu com uma travessa de musse de
maracujá e a depositou na mesa bruscamente, com raiva.
— A sobremesa. Foi o que deu pra fazer de última hora — falou. E
olhando para Mariana com olhos fulminantes, acrescentou: — Desculpe por
não ter algo melhor, o senhor Leonardo não avisou que traria uma AMIGA!
— frisou a última palavra com ironia. A hostilidade em suas palavras era
visível.
Mariana sorriu sem graça, disfarçando seu desconcerto.
— Está ótimo, Cíntia. Não precisava se incomodar, obrigada!
Cíntia nada respondeu, apenas me lançou um olhar mortal e dirigiu
sua atenção para Davi, que estava todo lambuzado de sua comida.
— Vamos, vou te dar um banho! — falou, retirando-o de sua cadeira.
Ele esperneou em protesto e começou a chorar, me estendendo os
braços.
— Ele ainda está comendo, Tia! — Sarah avisou.
— Ele já comeu o suficiente! — ela retrucou.
— Deixa ele, Tia! — falei tomando-o dela. — Ainda está cedo e ele
realmente não acabou de comer. Eu cuido dele.
Olhei para ela a recriminando a pelo seu comportamento. Ela crispou
os lábios e saiu pisando duro. Sentei-me novamente com Davi em meu
colo. Olhei para Mariana e ela estava pálida.
— Tia? — ela perguntou — Então, essa moça é a Tia?
— É, o nome dela é Cíntia, mas a gente chama ela de Tia. — foi
Matteo quem respondeu.
Mariana deslocou o olhar para Sarah e as duas se olharam com
cumplicidade. Pareciam compartilhar alguma coisa que só elas sabiam.
— Sarah... — Mari falou, olhando para minha filha com uma
expressão tão profunda, que eu podia jurar que era pena.
— Eu quero mousse de maracujá. — Sarah falou, desconversando,
como sempre fazia.
— Eu também. — Matteo concordou.
— Todo mundo vai comer mousse! — eu falei, sem tirar os olhos de
Mariana que, havia mudado totalmente sua postura me deixando curioso. —
Não é mesmo, Davi?
Ele cravou os dedos em minha barba, sorriu e balbuciou:
— Pa-pai!
Nós todos rimos e aos poucos, o clima ameno voltou.
CAPÍTULO 27

Mariana Barros

Nada me preparou para o tamanho da felicidade que vivi ao lado de


Leonardo e seus filhos naquela semana. Também conheci o pai dele, o Sr.
Tommaso e passei horas conversando com ele. Era um senhor muito
simpático e me tratou muito bem. Leonardo se parecia muito com ele, mas
seu pai era mais branco e tinha olhos claros. Eles estavam organizando as
coisas para a FICUGA – Festa internacional de cultura e gastronomia.
Uma feira muito badalada que havia todos os anos, em comemoração aos
mais de cem anos de cultura italiana na cidade.
Todos se mobilizavam para que a festa fosse um sucesso. Leonardo
me contou um pouco como era a dinâmica da feira. Ela durava uma semana
e vinha gente de vários vilarejos dos arredores. Camponeses que levavam
seus produtos, artesãos, músicos, barraquinhas e mais barraquinhas com
comidas típicas. Leonardo contribuía com alguns produtos do seu laticínio,
como queijos, manteiga, alguns doces e geleias fabricados artesanalmente.
Tirando o fato de ter a Cíntia me olhando torto, estava tudo perfeito.
Ela era a tal “Tia” que Sarah temia que se casasse com seu pai. Isso me
preocupou. Sarah disse que ela era má e eu só queria acreditar que ela
estava exagerando. Que havia entendido mal alguma repreensão que
pudesse ter recebido. Mas uma coisa era certa: Havia sim, algum tipo de
envolvimento entre Leonardo e Cíntia.
Ela era a babá das crianças, era uma moça bonita, estava sempre por
ali. Ele era um homem solteiro, tinha suas necessidades e Cíntia estava
visivelmente apaixonada por ele. Eu a entendia perfeitamente e até fiquei
com pena dela. Fiquei com pena, porque Leonardo a tratava com
indiferença. Se houvesse mesmo algo entre eles, ele deveria ser mais
sensível.
Talvez eu estivesse enganada, mas se assim fosse, ele estava me
colocando em uma posição muito ruim. Estávamos curtindo um ao outro e
era muito bom, mas não havia compromisso entre nós. E certamente nunca
haveria, pois as coisas comigo eram assim. O relacionamento mais longo
que tive, se é que eu podia chamar aquilo de relacionamento, tinha sido com
Diego. Eu nunca me vi em um relacionamento sério. Não seria diferente
agora. Porém, ao pensar em Leonardo seguindo a vida com outra pessoa,
me deu um aperto no peito.
— Está tudo bem? — ele perguntou.
Tomávamos o nosso café da manhã. Ele havia passado a noite em
minha casa, como vinha fazendo de vez em quando. Nos amávamos e eu só
queria curtir aquele momento até quando fosse possível.
— Está sim. Está tudo ótimo! Obrigada pela noite maravilhosa!
Ele alcançou minha mão e me puxou para o seu colo. Cheirou o meu
pescoço e falou:
— Quero te levar a um lugar hoje.
Olhei para ele com olhos semicerrados.
— O que está aprontando?
— Não estou aprontando nada. Só quero te levar em um lugar que é
muito especial para mim, — ele respondeu com um largo sorriso nos lábios
— mas é surpresa.
Abracei seu pescoço.
— Que lugar?
— Logo você vai saber.
— Adoro suas surpresas, mas hoje é quinta-feira!
— E daí?
— Daí que a gente tem muita coisa pra fazer. Eu não arrumei nem
metade dos livros, você tem suas obrigações e ainda tem as coisas da feira.
— Não se preocupe, depois a gente faz tudo isso.
— Mas e os meninos?
— Eu planejei tudo. Denise vai buscá-los na escola e levar pra casa
dela. Eles dormiram lá essa noite e desde ontem os primos não se
desgrudaram. Eles estão bem.
Olhei para ele encabulada, mas estava preocupada.
— Não quero atrapalhar o seu relacionamento com seus filhos.
— Você não está atrapalhando nada. Eles amaram você.
— Eu sei... Eu também estou encantada com eles, mas...
Hesitei em falar.
— Ei! — ele me sacudiu de leve — O que é que tá pegando, hein?
Respirei fundo e falei:
— As pessoas já estão começando a falar, Leo... Eu...
Ele meneou a cabeça.
— As pessoas sempre falam, Mari!
— Eu sei, mas isso é ruim.
— Ah, amor... Vai se incomodar com fofocas? Cidade pequena é
assim mesmo.
— Mas eu não estou acostumada com isso. Não quero meu nome na
boca desse povo, ainda mais quando ficam inventando mentiras.
— Que mentiras estão inventando?
— Deixa pra lá. — falei me levantando.
— Mari...
Fui até a geladeira, peguei uma jarra de água e me servi um copo.
Recostei-me na bancada e olhei para ele. Ele me encarava com as
sobrancelhas erguidas, esperando uma resposta. Com o copo na mão,
respirei profundamente e antes de beber, falei:
— Estão dizendo que roubei você da Cíntia. Parece que já haviam
espalhado que vocês se casariam...
Leonardo soltou o ar pela boca, meneou a cabeça e veio até mim.
— Que bobagem! Eu já te disse que não vou me casar com ninguém.
— declarou, tirando o copo de minhas mãos e depositando sobre a bancada.
— Mas existe algo entre vocês? — perguntei engolindo em seco.
Eu não cheguei a perguntar sobre ela antes, porque não queria que ele
pensasse que eu estava com ciúmes, mas foi inevitável não perguntar agora.
E sim, eu estava. Estava morrendo de ciúmes daquela mulher.
— Não se preocupe com a Cíntia. Eu e ela não temos nada um com o
outro. Ela só é a babá dos meus filhos.
Fiquei surpresa com o que ele disse.
— Mas ela gosta de você. — deduzi.
— É... — ele fez uma careta de desânimo — Ela sempre deixou isso
bem evidente, todo mundo sabe que tem uma quedinha por mim, não faz
questão alguma de esconder. Vive dizendo por aí que vai se casar comigo,
por isso os boatos. Mas as coisas não são assim.
— Por isso a Sarah ficou daquele jeito?
— Sim.
— Mas... E você?
— O que tem eu?
— Você deu esperanças para ela?
— Claro que não. Eu até já conversei com ela. Pedi pra parar de se
iludir, mas...
— Ela age como se vocês fossem comprometidos e eu me sinto mal
por isso...
— A Cíntia é uma maluca. — ele falou com irritação — Não quero
que se estresse por causa dela.
— Não estou estressada.
Ele me olhou com olhos semicerrados e rodeou minha cintura.
— Parece até que está com ciúmes. — falou, imitando o biquinho
que eu fazia sem perceber.
— Não é ciúmes — menti — Eu só não quero ser o motivo de uma
desavença entre vocês... Interferir nos seus planos.
Ele gargalhou.
— Planos? Eu e a Cíntia? — falou, como se fosse a coisa mais
absurda do mundo.
Olhei para ele desconfiada.
— Nunca rolou nada entre vocês? — eu quis saber.
Ele pressionou os lábios um no outro e inclinou a cabeça para o lado.
— Não vou mentir, ficamos algumas vezes... — falou, desviando o
olhar e ponderando as palavras — Acontece que... Ela é insistente, mas não
rola química alguma entre nós.
Fechei os olhos decepcionada com aquela declaração. Puxei o ar para
os pulmões e tentei me controlar.
— Mas isso já faz muito tempo. — ele apressou-se em se explicar —
Ela me preparou algumas armadilhas e...
— Tá, não precisa me dar detalhes. — minha voz saiu pesada.
Imaginar Leonardo se atracando com aquela mulher me deixou sem
forças nas pernas. E pensar que eles viviam na mesma casa me angustiou.
— Tá, eu só estou sendo honesto. Você quem perguntou...
Acenei positivamente com a cabeça.
— Entendi. Obrigada por esclarecer. — falei olhando em seus olhos.
Ele percebeu o quanto aquilo mexeu comigo.
— Ei, esquece isso. — ele pediu com ternura. — Não vamos deixar a
Cíntia azedar o nosso dia, ok?
Tentei sorrir e ele me beijou com carinho.
CAPÍTULO 28

Mariana Barros

Leonardo me levou pelo caminho das grutas. Fomos de carro até a


uma certa altura, depois seguimos a pé. Eu já havia estado por ali, mas o
caminho ao qual ele estava me levando era um pouco diferente.
— Leo, que lugar é esse pra onde estamos indo?
— Calma, já estamos chegando.
Andamos por mais quinze minutos, eu estava tanto cansada quanto
ansiosa. Porém, depois de tirar algumas plantas do nosso caminho e dar
mais alguns passos, Leonardo anunciou:
— É aqui.
Ergui os olhos para olhar e quase não acreditei. Como se tivesse
surgido do nada, diante de nós estava uma linda cachoeira com águas
cristalinas e calmas. A água descia em três véus sobre as pedras distribuídas
ao longo do seu percurso. O caminho percorrido por ela levava a uma gruta
parecida com as demais que existiam nessa região, mas entre todas, com
certeza, a mais bonita.
As margens do riacho estavam cheias de plantas e flores nativas,
distribuídas de forma uniforme, formando o jardim mais belo que já tinha
visto em toda minha vida. Caí o queixo em êxtase. Puxei o ar para o pulmão
e o soltei de forma quebrada. Custei a acreditar que aquele lugar era real.
— Leo... Isso é... — procurei a palavra certa — ...Magnífico!
Ele sorriu para mim e disse:
— Sabia que você ia gostar.
Fiquei emocionada ao perceber o quanto ele se esmerava em me
fazer sentir bem. A cada dia que passava, Leonardo estava ficando mais
carinhoso, mais dedicado, e isso, além de me deixar encantada, me
assustava. Não queria me apegar a ele, criar qualquer expectativa ou
dependência afetiva. Não queria que ele tivesse expectativas com relação a
mim também. Mas algo dentro de mim gritava:
— Se Joga, Mariana! Viva esse momento!
Meus olhos marejaram de emoção. Nunca havia experimentado esse
sentimento: Euforia. Vontade de sorrir e chorar ao mesmo tempo. Leonardo
segurou a minha mão e juntos fomos nos equilibrando entre as pedras, nos
aproximando da água. Eu ainda estava deslumbrada com a beleza do lugar.
Ele ia me contando algumas coisas sobre ele. Como o encontrou há muitos
anos e que poucas pessoas conheciam o acesso. Nos sentamos em uma das
pedras e ele me abraçou com carinho.
— Nossa, é muito lindo aqui! — exclamei.
— Sim. Há muito tempo não venho aqui. — ele falou olhando em
volta, com olhos semicerrados e testa franzida tentando se proteger da
claridade.
— Por quê? — perguntei.
Ele olhou para mim por um tempo, mas, em seguida baixou a cabeça.
— Eu sempre vinha aqui com a Daniela. Nesse lugar tem muitas
lembranças...
Leonardo sempre se lembrava de sua esposa. Eu nunca sabia o que
fazer quando ele agia assim. Era evidente que ele ainda a amava. Apesar de
ficar um pouco constrangida com essa situação, achava aquilo muito bonito.
Um amor que parecia nunca acabar. Porém, percebi que de uns tempos para
cá, depois do nosso envolvimento, ele evitava falar dela. E eu que nunca
perguntava nada sobre isso, mas sempre eu ouvia, ali naquele lugar, resolvi
conhecer mais sobre Daniela.
— Como ela era? — perguntei.
Eu queria convencer a mim mesma e que era apenas uma curiosidade
e uma forma de deixar Leonardo mais à vontade para falar do seu passado.
Mas eu sabia que no fundo, eu só queria saber como era a mulher que
conquistou o seu amor. Talvez existisse algo parecido em mim. Desejei ser
amada assim, ou melhor, ser amada por ele. Pois aquele homem a cada dia
que passava tomava conta dos meus pensamentos, invadia o meu ser.
Leonardo sorriu, sem graça. Abriu a boca para começar a falar, mas
parecia ser difícil escolher por onde começar.
— A Daniela é... Era...
Ele parou, emocionado.
— Você ainda a ama, não é mesmo? — perguntei.
Ele me olhou, sem jeito.
— Pode falar sobre ela, Leo. — disse acariciando seu queixo — Não
se sinta mal por isso.
Ele olhou para mim e me lançou um sorriso singelo. Eu devolvi o
sorriso e ele segurou em minha mão. Me olhou por um instante e respirou
fundo antes de começar a falar.
— A Daniela era o amor da minha vida, Mari. Começamos a namorar
no Ensino Médio e desde essa época, sabia que seria com ela que eu ia
construir uma vida, uma família. Eu a amei de uma forma que nunca pensei
que fosse capaz de amar. Ela era a melhor pessoa que conheci. Meiga,
feminina, linda. A única que sabia lidar com meu mau-humor e meu jeito
esquentado. Despertava o melhor de mim.
Sorri.
— Ela acalmava a fera. — concluí.
Ele riu também e balançou a cabeça positivamente.
— Sim. Eu sempre fui meio bravo.
— Meio? — falei, fingindo surpresa. — Você é inteirinho bravo!
— Inteirinho não.
— Tá bom. 99,9%.
Ele fez uma careta, se inclinou e me deu um beijo.
— Mas você adora essa fera aqui. — falou com a boca sobre a
minha.
Eu gargalhei e o empurrei.
— Bobo, convencido! — falei, sentindo o sangue esquentar com sua
proximidade. — Continue... Quero saber mais. O que aconteceu?
Ele se afastou e se esticou sobre a pedra, apoiando o corpo com os
cotovelos. Virou a cabeça para cima e fechou os olhos, sentindo a brisa e os
chuviscos da água que batia nas pedras e respingavam em nós.
— Bem, nós nos casamos. Nos casamos em 2008. Esse ano
completaríamos onze anos de casados. Fora os anos de namoro e noivado,
foi uma vida inteira juntos. Só nos casamos depois que fizemos faculdade.
— Nossa, realmente é uma vida inteira. Então vocês se graduaram
primeiro?
— Sim. Apesar de ter feito faculdade, Daniela não queria seguir
carreira. O sonho dela era se casar e ter filhos e foi o que fizemos.
— Que faculdade ela fez?
— Ah... Ela cursou dois anos de Direito, mas desistiu. Não se
identificou. Então, resolveu cursar Tecnologia em Paisagismo e
Jardinagem. Assim, descobriu sua paixão pelas plantas.
— Por isso a floricultura.
— Isso. Os girassóis também. Ela era fascinada por essa flor. Sabia
tudo sobre ela.
— É realmente fascinante. — concordei.
— A Dani tinha tudo para crescer nessa profissão. Chegou até a fazer
dois projetos grandes com uma arquiteta de Curitiba, mas tomava o tempo
dela demais e ela optou por uma vida mais tranquila na fazenda, comigo e
nossos filhos.
Fiquei pensando no quanto nós duas éramos diferentes. Eu jamais
escolheria aquele caminho, a meu ver, entediante.
— Então, vocês se casaram... Como foi? — eu quis saber.
— Sim. Planejamos tudo... Nosso futuro juntos, nossos filhos. Nossa
vida não era perfeita, mas era perfeita pra mim. — ele se sentou e começou
a atirar algumas pedrinhas na água e houve um momento de silêncio entre
nós. — Eu poderia passar a tarde toda falando da Daniela e não conseguiria
falar nem um por cento do que ela significava para mim.
Vê-lo falar da esposa me trouxe um sentimento confuso. Era lindo o
amor deles, mas ao mesmo tempo sentia pena por saber que ele sofria com a
morte dela. Também sentia um pouco de inveja, não da Daniela, mas de
todas as pessoas que tinham a oportunidade de viver algo tão profundo
como aquilo. Com certeza eu não era uma delas. Mas ao mesmo tempo
desejei tanto amar e ser amada daquela forma.
O problema era constatar que não queria ser amada por qualquer
pessoa, mas por ele, Leonardo. De repente, a necessidade de ser amada por
aquele homem se tornou uma angústia, porque eu sabia que as chances
disso acontecer eram poucas, muito poucas. O amor que ele sentia pela
esposa falecida estava expresso em cada palavra que ele dizia. Era profundo
e insubstituível. Não havia como competir com aquilo. Tentei não chorar.
— Mas infelizmente ela se foi e... — ele disse, emocionado —
Preciso aceitar que acabou... Ela se foi...
Repousei minha mão na sua, tentando confortá-lo. Ele a levou até sua
boca e a beijou.
— Vamos nadar! — convidou, tentando mudar o clima.
— Nadar? Mas eu não trouxe roupa de banho.
— E quem precisa de roupa? — falou, já se levantando e tirando a
camisa. Olhou para mim, animado — Vamos!
— Está pensando em nadar sem roupa? — perguntei.
— Por que não?
Me estendeu a mão para ajudar a me levantar. Fiquei indecisa.
— Alguém pode nos ver... — Olhei em volta, preocupada.
— Ninguém vai ver nada. Quase ninguém conhece esse lugar.
— Mas e se de repente aparecer alguém?
— Aqui é uma propriedade privada. Faz parte das terras da nossa
família. Só a gente vem aqui. Vamos, você vai gostar.
Sorri e segurei em sua mão, embarcando naquela loucura.
— Já fez isso antes?
— Sim. A Dani e eu já nadamos muitas vezes aqui, completamente
nus.
Eu ri daquilo, mas gostei da ideia. Tiramos nossas roupas e entramos
na água como viemos ao mundo.
— Ai, tá gelada! — exclamei.
— Logo você se acostuma.
Mergulhei sentindo o frescor da água fria e realmente, logo me
acostumei com a temperatura. Leo mergulhou, se afastando para o lado
mais fundo e voltou dando braçadas.
— Vem! — ele chamou, repetindo o percurso.
— Melhor não. Eu não sei nadar direito.
Ele se aproximou de mim e colou seu corpo ao meu.
— Eu seguro você. — falou, depois de me beijar. — Quero te
mostrar um cantinho especial.
Fui com ele, experimentando aquela experiência totalmente nova
para mim. Não tenho palavras para descrever a paz que senti. Era como se
estivesse no paraíso. Como se só existisse nós dois. Desfrutamos do banho
gostoso e trocamos carícias. Acho que nunca me senti tão feliz. Leo me
colocou contra uma pedra que estava em um lugar estratégico para quem
quisesse se sentar e ficar na água ao mesmo tempo e falou:
— Quero te amar aqui.
Senti um frio na espinha em expectativa. Ele me beijou com paixão e
foi arrastando os lábios pela pele do meu pescoço, até parar nos meus seios,
sugando um, depois o outro, deixando os mamilos inchados e duros,
causando uma dorzinha gostosa. Estava toda arrepiada pelo friozinho e pelo
tesão. Ele me ergueu na pedra para ter acesso às minhas partes íntimas fora
da água e começou a me beijar ali. Fechei os olhos, gemendo e
choramingando, apreciando o momento.
— Leo...
— Huuum? — ele gemeu com a boca ocupada, sem parar de me
estimular.
Suas mãos habilidosas exploravam cada parte sensível do meu corpo,
ativando e intensificando o prazer. Enquanto ele me sugava, as sensações
que me invadiram foram inexplicáveis. Não só pelo prazer. Era algo mais.
Tive a estranha sensação de já ter estado ali. Como se já tivesse vivido
aquilo. Levei a mão ao peito tentando entender. Leonardo me fez gozar e,
entre espasmos, tive a certeza que sim. Eu Já tinha vivido aquilo.
— Leo... — sussurrei.
Ele amparou meu corpo mole e buscou minha boca para beijá-la.
Estava excitado, mas parecia se controlar. Segurei em seu pênis ereto e ia
introduzi-lo em mim, mas ele me deteve.
— Estamos sem proteção, amor.
— Não tem problema. — falei — Eu quero assim.
— Tem certeza?
— Sim. Eu quero te sentir dentro de mim. Preciso te sentir dentro de
mim. — pedi.
Ele pensou um pouco e falou:
— Tudo bem. Vou gozar fora, então...
— Não. — falei, quase como uma súplica — Quero te sentir por
completo.
Ele me olhou, confuso.
— Mas, Mari... Isso pode trazer consequências...
— Não trará...
— Você usa algum método?
— Mais ou menos. Eu tomo imunossupressores há um tempo.
Precisei usar depois da cirurgia... As chances de engravidar são mínimas.
— Mas Mari...
— Por favor! — insisti.
Ele meneou a cabeça, mas relaxou a expressão.
— Ah, Mari! Eu te desejo tanto!
Voltou a me beijar. Em seguida me invadiu, duro e quente, buscando
espaço dentro de mim. Senti as paredes da minha vagina se alargando para
recebê-lo e, nesse momento, percebi que aquele homem, não só penetrava
meu corpo, mas também minha alma. Leonardo começou a se mover dentro
de mim me levando à loucura. Fomos ao êxtase. Sozinhos ali naquele
paraíso só nosso, onde tudo parecia um sonho. Ele se derramou dentro de
mim como pedi e foi um momento mais que especial. Agora eu era dele,
completamente dele. Estávamos ofegantes, ainda nos recuperando daquele
momento intenso, quando ele me olhou com ternura. Não disse nada, mas
sei que estava tão mexido quanto eu. Tive vontade de chorar e segurei um
soluço.
— Ei... O que foi? — ele perguntou, acariciando meu rosto.
Deitei a cabeça em seu ombro, fugindo dos seus olhos.
— Nada — respondi — Obrigada por me trazer aqui! Obrigada!
Ele acariciou meus cabelos molhados e beijou o topo da minha
cabeça.
— Sabia que gostaria. De nada.
O que estava me incomodando era a verdade da qual estava fugindo
há dias. Estava apaixonada pela primeira vez na minha vida. Apaixonada
por Leonardo Moretti.
CAPÍTULO 29

Leonardo Moretti

Mariana e eu passamos a tarde na cachoeira, namorando,


conversando e rindo de coisas bobas. Depois que saímos da água,
esperamos o corpo secar e nos vestimos. Ela tinha levado uns sanduiches e
eu uma garrafa de dois litros de água gelada. Havia por perto um pé de
mimosa carregado, colhemos algumas e nos deliciamos com elas. Não teve
como não me lembrar das vezes que lá estive com a minha esposa.
Apesar de serem circunstâncias diferentes, eu estava igualmente feliz.
Há muito tempo não me sentia tão bem. Estava apaixonado por aquela
mulher e não podia ser indiferente a isso. Amei muito Daniela, mas
precisava seguir em frente e buscar a felicidade de alguma forma. Sabia que
nunca a esqueceria e a manteria bem guardada no meu coração. Porém,
precisava e desejava viver um novo amor. E era isso que estava
acontecendo. Estava vivendo um novo amor. Essa era a verdade. Mariana
era o meu novo Amor.
Nos sentamos na pedra fresca aproveitando os últimos raios de sol.
Olhei para ela emocionado e deslizei a mão pelos seus cabelos. Sabia que
ela estava igualmente feliz, embora fosse contida ou talvez insegura para
demonstrar o que sentia. Seu olhar dizia tudo. Era exatamente assim que
Daniela me olhava.
— Você é tão linda, Mari! — falei, deixando-a encabulada e sem
saber como reagir.
Ela fechou os olhos e suspirou, apreciando o carinho.
— Obrigada por esse dia maravilhoso! — falou me olhando nos
olhos.
Ela beijou minha mão e olhou em volta. Percebi o quanto Mariana
estava encantada com aquele lugar. Ela então me contou que tinha a
sensação de já ter estado ali. Aproveitei o momento e perguntei a ela por
que resolveu se mudar para Napolitana. Pelo que entendi, ela tinha uma
carreira consolidada e abandonou tudo para vir para cá. Ela ergueu os
ombros e, depois de respirar fundo, resolveu me contar tudo. Todas as
sensações que passou a sentir depois da cirurgia. Como sonhava com o
cata-vento e os girassóis. Aquilo me intrigou.
— Então, você sonhava com cata-vento? — perguntei, realmente
muito intrigado — Como assim?
— Eu não sei. Na verdade, eu sonhava com esse lugar. Essa região.
Minha amiga Maitê me disse que talvez seja algo que tenha a ver com vidas
passadas, mas eu não acredito nessas coisas.
— E qual seria a explicação, então?
— Não sei. Só sei que, volta e meia eu reconheço algum lugar por
aí... Mas acho que só é a minha mente me pregando peças. Porque eu
pesquisei por lugares tranquilos, com natureza, lugares que... — ela hesitou,
abraçou os joelhos e, depois de um longo suspiro, continuou a falar —
Precisava dar um tempo, sabe? Precisava de algo que pudesse me tirar
daquela vida frenética que eu costumava levar. Eu era muito negligente com
minha saúde e trabalhava até estafar. Mas estava muito doente. Depois dos
problemas de saúde, quando quase morri... Aí veio a cirurgia, fiquei muito
debilitada e cheguei ao meu limite. Não queria mais aquela vida.
— Mas por que napolitana? — perguntei.
Ela meneou a cabeça.
— Eu já pensei muito sobre isso e a única conclusão a que cheguei é
que já devo ter visto tudo isso antes, em algum lugar. Eu só acho que,
depois de todo o estresse com a minha enfermidade, a minha mente estava
procurando um lugar de descanso. Com certeza eu devo ter visto alguma
coisa sobre essa cidade. Eu trabalho com publicidade e já atendi muitas
empresas de turismo. Talvez tenha sido algo que ficou no meu inconsciente
e foi ativado de acordo com a minha necessidade, porque realmente — ela
olhou em volta — Isso aqui é o paraíso.
— Mas essa cirurgia… Você disse que toma imunossupressores, o
que que é isso?
Mariana ergueu os ombros e respirou fundo.
— Bem, essa cirurgia... na verdade foi um transplante.
Ergui as sobrancelhas e estreitei os olhos sobre ela, me mostrando
mais interessado, na verdade, surpreso com aquilo.
— Está me dizendo que passou por um transplante de coração?
Ela disse que sim com a cabeça.
— Sim, eu tive que receber o coração de outra pessoa e para meu
organismo não rejeitar o órgão preciso tomar alguns remédios que são
chamados de imunossupressores. Vou ter que tomar isso a vida toda.
Quando ela me disse isso estremeci. Olhei para a cicatriz em seu
peito e me lembrei que o coração de Daniela havia sido designado para
doação. Meu fôlego falhou ao pensar que… não, isso não seria possível! As
chances de Mariana estar carregando o coração de minha falecida esposa
eram muito pequenas, praticamente inexistentes.
Segundo informações que eu recebi quando pesquisei, o coração dela
tinha ido para o Rio Grande do Sul. Eles não podiam dar essas informações,
mas eu tinha um amigo que trabalhava nessa área e ele me disse que foi o
que conseguiu apurar para mim. Talvez o meu amigo estivesse enganado.
Olhei para Mariana e empalideci diante daquela possibilidade.
— O que foi? — ela perguntou sorrindo — Porque está me olhando
assim como se eu fosse um fantasma?
Engoli em seco.
— Só estou admirado. — falei, tentando controlar a respiração —
Um transplante é... algo muito invasivo. Deve ter sido uma experiência
intensa.
— Sim. Foi um momento muito difícil para mim.
— Você devia ter me contado que era transplantada. Teria pegado
mais leve. Eu...
Ela não gostou do que eu falei.
— Pode parar, Leo. Por isso não quis contar antes. Todo mundo me
trata como se eu fosse de cristal quando ficam sabendo da minha condição.
— Mas, Mari, realmente há restrições, você precisa se cuidar.
Ela levou a mão ao peito.
— Mas eu me cuido e estou bem, estou ótima!
Meneei a cabeça. Não quis discutir, mas estava realmente
preocupado. E ao mesmo tempo, a ideia de que Mari tinha o coração de
Daniela em seu peito, crescia dentro de mim. Ela percebeu minha angústia e
acariciou o meu rosto.
— Sério, eu estou bem. — ela reforçou.
Mariana nem fazia ideia do que realmente estava me incomodando.
Sacudi a cabeça tentando espantar aquele pensamento. Isso não seria
possível.
— Acho que já está na hora de irmos. — ela falou.
— Sim, precisamos ir. — concordei.
Nos levantamos e seguimos abraçados até à caminhonete. Olhei para
ela e aquela curiosidade só aumentava. E se fosse real? E se o coração de
Daniela tivesse encontrado o caminho de volta? Que loucura! Na verdade,
parecia mais a minha mente tentando buscar uma explicação. Eu mão
queria ofender a memória da minha esposa, assumindo que estava
apaixonado perdidamente por outra mulher, então tentava buscar uma
justificativa, uma explicação por ter colocado aquela mulher em minha
vida, quando por muitas vezes afirmei para mim mesmo que isso nunca iria
acontecer, nunca colocaria outra no lugar de Daniela. Mas agora estava ali,
rendido. Eu precisava acalmar a minha consciência.
— Você sabe quem foi que doou o coração pra você? — perguntei,
enquanto dirigia.
— Não, não é permitido saber. — ela respondeu com o olhar fixo na
paisagem a nossa volta, onde o horizonte já se mostrava alaranjado — Mas
gostaria muito de conhecer a família da pessoa que salvou a minha vida.
Sou muito grata a eles.
Senti um aperto no peito.
CAPÍTULO 30

Mariana Barros

Apesar de termos passado um dia maravilhoso juntos, Leonardo


ficou estranho depois que contei a ele sobre o transplante. Até me arrependi
por ter contado. Não que eu quisesse esconder isso dele, apenas escolhi o
momento errado. Ele ficou me fazendo um monte de perguntas e agindo
daquela forma que eu detestava, cheio de cuidados. No percurso de volta,
volta e meia ele me olhava como se eu fosse uma espécie de milagre.
— Para de me olhar assim! — pedi — Estou ficando sem jeito.
— Assim como?
— Como se eu fosse um fantasma!
Ele soprou o ar, enquanto sorria, diante do meu exagero.
— Que isso? Só estou te admirando. Você é uma mulher muito forte,
Mariana.
— Sou mesmo. O meu médico disse que eu fui a paciente que melhor
respondeu a esse tipo de cirurgia que já passou pelas mãos dele.
— E a quanto tempo tem esse transplante? — ele parecia muito
interessado.
— Pouco mais de um ano.
— Um ano e cinco meses... — ele falou, meio reflexivo.
Olhei para ele com a testa franzida.
— É... Mais ou menos isso... Como sabe? — perguntei, estranhando
aquilo.
Ele se ajeitou no assento e me olhou rapidamente, o suficiente para
não tirar sua atenção da direção.
— Não, eu não sei... — respondeu limpando a garganta,
desconversando — Foi só um chute... Eu pensei no Davi... Ele está com um
ano e sete meses...
Lembrar do Davi me fez sorrir.
— É... Posso dizer que tenho a idade dele. Nasci de novo. Tive sorte
de ter conseguido um coração. Fui agraciada.
Ele balançou a cabeça concordando.
— É... Realmente foi muita sorte.
Foi só o que ele disse. Depois ficou calado, pensativo. Eu aproveitei
aquele momento e liguei o som do carro e a voz do Michael Bolton
começou a ressoar.
“When a man loves a woman. Can't keep his mind on nothin' else.
He'd trade the world for a good thing he's found. If she is bad, he can't
see it…”
Leonardo suspirou e sorriu. Aquela tinha se tornado a nossa música.
Ele mesmo a escolheu para embalar uma de nossas noites. Desde então,
sempre a ouvíamos. O clima gostoso de romance voltou e ele segurou a
minha mão. Já estávamos nos abrasando novamente, mas resolvemos deixar
para depois. Aquele gostinho de quero mais, aquela saudade, era muito
bom. Ele parou na porta de casa e me ajudou a tirar as coisas que tinha
levado para o nosso passeio.
— Vou passar na casa da minha cunhada para pegar as crianças. —
ele falou. Mas olhou para mim, indeciso — Tem certeza de que não quer
que eu durma aqui? Eu posso levar os meninos e voltar.
— Não, não precisa. Vou tirar um tempo pra escrever e os meninos
devem estar sentindo sua falta.
Ele acenou positivamente com a cabeça.
— Tudo bem. Então, eu vou nessa.
Ele se aproximou e me deu um beijo de despedida. Mas quando
estava saindo, já próximo ao portão, voltou-se meio ansioso, com as mãos
nos bolsos.
— Mari, preciso te perguntar uma coisa. — falou, meio hesitante.
Olhei para ele com curiosidade.
— Sim. Pode perguntar. — falei.
— Quer ser a minha namorada?
Ergui as sobrancelhas e pisquei algumas vezes. Não esperava por
aquilo.
— O quê? — falei com um fio de voz.
— Minha namorada, digo, oficialmente.
Olhei para ele com incredulidade, tentando achar algo em sua
expressão que denunciasse que ele estava brincando.
— Su-sua... na-na-morada? — gaguejei. — Como assim?
— Estou falando de um compromisso de verdade — ele se
aproximou e tomou minhas mãos — Primeiro assumimos um namoro,
depois um noivado…. E quem sabe... Posteriormente algo mais sério?
Meu Deus, Leonardo estava indiretamente me pedindo em
casamento!
Fiquei muda diante de sua proposta e não sabia o que dizer. Entreabri
a boca procurando as palavras, mas elas não apareceram. Ficamos nos
olhando por um tempo. Ele sorria com expectativa, aguardando uma
resposta minha.
— Não vai dizer nada? — ele perguntou, enquanto seu sorriso se
desfazia.
Meneei a cabeça, indecisa.
— Leo… nós nem nos conhecemos direito…
Ele balançou as minhas mãos levemente, me incentivando.
— É pra isso que serve o namoro, para nos conhecermos.
Respirei fundo e o olhei. Percebi que estar com ele era tudo que eu
mais queria na vida. E não vou mentir, queria sim, um compromisso sério.
Queria estar com ele pelo resto da minha vida e era exatamente isso que
estava me assustando. Aquilo era totalmente o oposto do que eu idealizei
para mim. Sempre fui bem resolvida com as minhas convicções, minha
forma de encarar a vida. No que eu estava me tornando?
Leonardo me olhava ansioso por uma resposta.
— E então, o que me diz?
— Não sei, Leo … é tudo tão recente!
Ele me encarou com aqueles olhos profundos, deixando minhas
pernas bambas.
— Eu pensei que estivéssemos na mesma sintonia. — falou.
— E estamos. Está tudo tão perfeito, que até assusta.
Ele riu com os lábios.
— Então, qual é o problema? — perguntou.
— Leo, você tem que entender que não é uma decisão tão fácil. Você
tem três filhos e um histórico muito intenso de uma vida toda ao lado de
uma mulher que você ainda ama.
Ele coçou a testa com o polegar.
— Não é bem assim, Mari. A Daniela foi o amor da minha vida,
mas…
— Ainda é. E sempre será. Essa é a verdade. — falei com firmeza.
Ele não negou e essa confirmação me quebrou por dentro. Levei a
mão até seu peito e continuei:
— Eu entendo que é muito bom que você queira seguir adiante e
procurar alguém que faça esquecer a sua dor, mas não sei se eu sou a pessoa
certa.
Ele desviou o olhar, decepcionado.
— Isso quer dizer um não? — perguntou.
Meneei a cabeça em negativa.
— Isso quer dizer que eu preciso pensar melhor. Preciso de um
tempo.
— Tempo? Pode ser Dois minutos? — brincou.
Sorri singelamente.
— Um dia. — respondi — Só te peço um dia. Amanhã mesmo eu te
dou a resposta.
Ele devolveu o sorriso e pareceu gostar do que ouviu.
— Tudo bem. — concordou — Então, você terá vinte e quatro horas
para pensar. Amanhã nesse mesmo horário, eu venho buscar a resposta.
Acenei positivamente com a cabeça.
— Mas antes de você se decidir, — ele, ainda com suas mãos nas
minhas, acrescentou: — Quero que saiba de uma coisa — respirou fundo e
confessou: — Eu te amo, Mariana! Nunca pensei que fosse acontecer de
novo, mas... Estou completamente apaixonado por você.
Meu coração afundou no peito ao ouvir aquilo. Não soube o que
dizer. Meus olhos se encheram de lágrimas e eu tremi. Tudo o que eu sabia
era que sentia a mesma coisa por ele. Eu amava aquele homem com toda
minha alma. Como nunca havia amado ninguém. Mas não ia dizer isso a
ele. Pelo menos, não antes de me decidir.
Primeiro teria que fazer uma escolha. Uma escolha racional, sem me
precipitar, sem causar danos. Respirei fundo. Leonardo esperou que eu
dissesse alguma coisa. Talvez algo como: Eu também te amo! Mas eu não
disse nada. Apenas pronunciei o seu nome:
— Leo… — Ele entendeu o quanto era difícil para mim aquela
situação. — Não sei o que dizer... Não esperava por isso...
Ele acariciou meu rosto.
— Não precisa dizer nada agora. Amanhã... Amanhã você me diz o
que sente e qual foi a sua decisão. Adianto que seja qual for, eu vou
respeitar. Prometo. Combinado?
— Combinado. — respondi com um sorriso.
— Antes eu queria fazer mais uma pergunta.
— Sim.
Me olhou com olhos semicerrados e perguntou:
— Tem algo que te impede?
Não sabia bem qual era a desconfiança dele. Só sei que a única coisa
que me impedia de me entregar por inteiro, era o medo. Medo desse novo
sentimento, medo de confiar, medo de sofrer. Fiz que sim com a cabeça e
ele me olhou intrigado, talvez tentando adivinhar qual seria o impedimento,
mas eu não ia contar a ele sobre os meus temores. Não naquele momento.
— Sim, tem algo.
— E o que te impede? — ele quis saber.
— Amanhã. Amanhã conversaremos melhor e eu te conto.
Ele espremeu os lábios um no outro, respirou fundo e concordou.
— Tudo bem. Amanhã conversaremos.
Ele me deu um beijo casto na testa, se despediu e saiu, me deixando
com uma responsabilidade enorme nas costas.
CAPÍTULO 31

Leonardo Moretti

Saí da casa de Mariana com um aperto no coração e muito


apreensivo. Ela disse que havia um impedimento e eu só esperava que não
fosse nada grave ou difícil de contornar. Enchi a boca de ar, inflando as
bochechas e soprei, tentando me acalmar. A possibilidade dela dizer “Não”
à minha proposta, existia e eu não me aguentava em mim de tanta
ansiedade. Mas eu a entendia. Sabia que era uma decisão difícil para ela.
Ela havia me confidenciado que nunca pensou em se casar e, muito menos
ter filhos. Porém, desenvolveu um relacionamento tão saudável com meus
filhos, que era evidente sua vocação para a maternidade. Só ela não via isso.
Ou então, o novo coração que ela carregava a estava mudando. E nada
tirava da minha cabeça que aquele era o coração de Daniela.
Eu sei, era muita doideira, mas eram muitas coincidências juntas.
Tinha os sonhos que ela teve com Napolitana, o quadro que ela pintou,
praticamente idêntico ao que Dani havia pintado, seu fascínio pelos
girassóis era o mesmo... o catavento... Não tinha como não ligar uma coisa
à outra. Assim que chegasse em casa, ia pesquisar sobre isso. Precisava
saber se era possível. Embora isso não fizesse diferença para mim, pois já
estava ligado na Mariana muito antes dessa suspeita, eu só precisava ter
certeza de que ela realmente havia recebido o coração da Dani. Só não sabia
como, pois a única certeza que eu tinha era que a espantaria se tocasse no
assunto.
Enquanto buscava uma solução em minha mente, passei na casa da
Denise para pegar os meninos. Os encontrei fazendo a maior bagunça na
sala dela. Eles correram para me abraçar e quase me derrubaram.
Começaram a contar como havia sido o dia e eu não estava entendendo
nada, pois falavam ao mesmo tempo. Os primos se juntaram à narrativa,
rindo e complementando cada história.
No final, tudo o que entendi foi que fizeram muitas travessuras. Até o
Davi estava agitado, contando alguma coisa em sua língua e gesticulando.
Ele estava atrasado na fala, mas era engraçado vê-lo se esforçando para
falar. Na idade dele, Sarah já falava tudo. Depois dessa conversa
embaralhada e muitos beijos, voltaram para a brincadeira. Denise veio me
receber com um sorriso nos lábios.
— Oi. — falou.
Nos cumprimentamos cordialmente com dois beijinhos no rosto
— Oi. Deram muito trabalho? — perguntei.
— Nada... O de sempre. A energia deles nunca acaba. São saudáveis.
Nos viramos para conferir a algazarra das crianças e, em seguida, ela
perguntou:
— Onde está a Mari?
— Acabei de deixá-la em casa.
Denise se lamentou:
— Ahhh... Por que ela não veio? Estava planejando preparar algo,
um jantarzinho pra curtirmos o início da noite, batendo papo e petiscando.
O Álvaro já está chegando.
Denise e Mariana se tornaram grandes amigas e isso só reforçava
minha teoria, pois Daniela e ela eram muito unidas.
— Não deu para ela vir. — expliquei — Disse que está cheia de
coisas pra fazer ainda hoje.
— Que pena!
Olhei para o relógio em meu pulso e informei:
— Eu também não posso ficar. Estou muito cansado e louco pra
chegar em casa. Só vim buscar as crianças.
— Cansado, é? Estou vendo que a tarde foi agitada. — ela falou,
cheia de insinuações, me dando uma cotovelada de leve e piscando um
olho.
— Ah... Não começa. — falei, meio envergonhado.
— Olha, só! Ficou vermelho!
Eu gargalhei.
— Confessa. A Bela tá amansando a Fera, não é mesmo?
Denise era uma figura. Meu sorriso de orelha a orelha me denunciou.
— É... A Mariana tem sido uma ótima companhia. — declarei.
Ela me olhou com emoção.
— Que bom, Leo. — falou — Fico muito feliz em te ver assim,
sorrindo de novo. Depois de tudo o que passou, você merece ser feliz. A
Mariana está te fazendo bem.
Senti a sinceridade de suas palavras e respirei fundo, acenando
positivamente com a cabeça. A aprovação dela era muito importante para
mim.
— Obrigado, cunhada. Obrigado pelo apoio que sempre me deu e
pelo amor dedicado a meus filhos. Você é a melhor cunhada do mundo. —
ergui as sobrancelhas e a lembrei: — Sabe que sempre vai ser minha
cunhada, não sabe?
Ela fez uma careta e revirou os olhos.
— Sei, claro que sei. — falou em tom divertido.
— Bom saber.
— Eu só não consigo entender o que a Mari viu em você. — foi
minha vez de fazer uma careta. — Sério! Eu juro que não entendo. Você até
que é bonitão, mas é chato pra cacete!
Dei uma piscadela.
— Eu sei que você me ama. — falei.
Ela suspirou, olhou para as crianças e disse:
— Mas falando sério, espero que eles se deem bem com ela.
— Já estão se dando bem. — falei com satisfação — Os meninos
amam a Mariana.
— Como não amar? A Mari é muito linda, né?
— Demais! — concordei.
Denise me olhou com curiosidade.
— Como foi que começou esse lance de vocês? — perguntou.
— Pois é... Nem sei exatamente como. Eu não esperava por isso, mas
aconteceu e eu estou curtindo esse momento. É claro que o amor que sentia
pela sua irmã estará sempre aqui — apontei para o meu peito — Mas
preciso seguir adiante, Denise.
Ela me olhou com ternura.
— Eu sei. — concordou. Depois me analisou — Tá gostando muito
dela, não é?
Respirei fundo e desviei o olhar.
— Está tão óbvio assim? — perguntei.
— Você não é muito aberto, mas eu te conheço, Leo. Você olha para
ela exatamente como olhava para minha irmã.
Sorri e confesso que estava um pouco emocionado. Realmente
Denise me conhecia. Trocamos mais algumas palavras e o marido dela
chegou e insistiu para eu tomar ao menos um café. Acabaram me
convencendo e conversamos por um tempo.
Álvaro era piadista e fazia todo mundo rir com suas histórias. Imitava
um monte de celebridade, desde políticos a cantores famosos. Nesse dia,
quase me matou de rir imitando o humorista Tiririca. Ele e Denise se
davam muito bem. Depois da conversa agradável com eles, chamei as
crianças e me despedi. Mesmo protestando, eles juntaram as coisas para
irmos. Se dependesse deles, passavam a noite em claro inventando mil e
uma brincadeiras. Os fiz despedir dos primos, dos tios e seguiram para o
carro.
— Coloque o Davi na cadeirinha, Matteo! — Pedi.
Antes de sairmos, Denise falou que precisava conversar comigo
sobre a Sarah. Olhei para ela curioso e perguntei do que se tratava, mas ela
apenas falou:
— Depois. Depois conversamos com calma. Tudo que eu posso dizer
é que... Ela está muito incomodada com a Cíntia.
Meneei a cabeça instalei a língua.
— É, eu sei. — falei — Preciso apurar o que está acontecendo, mas
eu acho que é só birra mesmo.
— Acho que não, Leo. Quando tiver um tempinho, me fala e eu te
ligo.
Se Denise queria me deixar preocupado, conseguiu. Fiquei
matutando o que poderia ser, mas já tínhamos conversado. Eu esclareci para
Sarah que não me casaria com Cíntia. E assim que comecei a me envolver
com Mariana, também chamei Cíntia para uma conversa e deixei bem claro
que assumiria o bebê, mas não me casaria com ela. Ela se mostrou
compreensiva, embora estivesse sempre de cara amarrada.
Cheguei em casa e encontrei o meu pai na varanda. Nos
cumprimentamos e ele me contou o que tinha acontecido na minha
ausência. Nada de importante, só coisas triviais. Depois me perguntou sobre
o meu dia. Ele sabia que eu havia tirado um dia de folga.
— Estava com a bonitona? — perguntou.
Fiz que sim com a cabeça e ele sorriu. Eu estava tão enlevado e
apaixonado, que não conseguia esconder de ninguém mais.
— Sim. Passei o dia com a minha namorada.
Meu pai me olhou surpreso.
— Namorada? — perguntou com curiosidade— Então, as coisas
estão avançando?
Balancei a cabeça dizendo sim. Meu pai gargalhou.
— Eu sabia que tinha coisa ali. Principalmente quando você chegou
aqui reclamando dela. Eu falei: Foi fisgado.
— É... Pois é...
Ele pressionou os lábios um no outro.
— Primeiro você disse que não tinha nada, depois que não era nada
sério e agora... — falou com aquele seu jeito reflexivo — Estou vendo que
está caminhando para um compromisso.
Resolvi me abrir com meu pai e contar sobre aquele novo
sentimento. Ele me ouviu atentamente e pareceu estar satisfeito, acenando
positivamente e reagindo ao que eu contava com suas expressões
marcantes.
— Eu a pedi em namoro e se tudo der certo, em breve não serei mais
solteiro.
— Que bom, meu filho! Que bom!
No meio da nossa conversa, Cíntia apareceu do nada, como se tivesse
se materializado ali.
— Como assim pediu ela em namoro e está planejando se casar com
ela? — ela esbravejou com voz esganiçada, me fazendo levantar da mureta.
— Você não pode se casar com ela! Você tem um compromisso comigo.
Você prometeu que se casaria comigo!
Meu pai se assustou com seu rompante.
— Ficou louca? — gritei — Como você me aparece assim desse
jeito? Agora deu pra ficar ouvindo a conversa dos outros?
Ela levou as duas mãos no peito e começou a chorar. Sem se importar
com minha repreensão, ela insistiu:
— Eu estou grávida! É comigo que você precisa se casar! — sua voz
saiu trêmula.
Meu pai e eu nos olhamos e percebi que me encarava com
imparcialidade e não quis tomar partido. Apenas fez um sinal com a cabeça
indicando que ia se retirar.
— Vou me despedir das crianças. — avisou, indo em direção ao
quarto delas.
Esperei que ele saísse e voltei a encarar Cíntia, que me olhava com
olhos arregalados e molhados, tentando controlar a respiração.
— Você não pode fazer isso comigo! — suplicou.
Repousei as mãos nos quadris e soltei o ar pela boca.
— Eu não te prometi nada disso. Não inventa! — falei entredentes,
tentando manter a calma — Já conversamos sobre isso várias vezes e você
sabe muito bem o que foi acordado entre nós. Eu disse que daria toda
assistência a essa criança, mas não vou me envolver com você, Cíntia.
— Já estamos envolvidos. Ou você acha que eu fiz esse filho
sozinha?
Perdi a paciência.
— Mas eu não sinto nada por você, Cíntia! Nunca senti! Nas vezes
que tivemos relações, foi você forçando a barra. E foram experiências ruins!
Ela fez uma careta de choro e exclamou:
— Mentiiira!
Ela estava desolada. Começou a soluçar e eu não soube o que fazer.
Até fiquei com pena, mas precisava ser firme ou aquilo nunca ia parar.
— Desculpa te dizer isso, mas estou sendo sincero. — falei de forma
mais branda — Não posso me casar com você sem ter nenhum sentimento.
Pior, apaixonado por outra.
Despertei sua fúria ao dizer isso.
— Apaixonado por outra? — perguntou com indignação.
Estava com tanta raiva que suas narinas dilatavam. Me apontou
indicador e falou:
— Se você não se casar comigo, eu vou tirar essa criança!
Me aproximei mais furioso que ela e a fitei nos olhos.
— Faça isso então. — esbravejei — Eu não ligo. Mas não vou me
casar com você!
Cíntia ergueu o queixo e me encarou desafiadora. Vi o veneno em
seus olhos gelados. Ela girou a mão na frente do meu rosto e proferiu umas
palavras estranhas como se me lançasse um feitiço. Semicerrei os olhos sem
entender nada.
— Raaa! — ela gritou.
Me assustei e afastei dois passos, sentindo um arrepio na espinha.
— Que merda é essa? — perguntei com a respiração descompassada.
Ela me encarou com os olhos virados nas órbitas e falou
compassadamente:
— Ela não vai te querer. A loira azeda... Ela tem outro.
Se ela queria me desestabilizar, conseguiu.
— O quê? Como assim, outro? — eu quis saber.
— Isso mesmo que você ouviu. Você vai saber exatamente o que é
ser não correspondido. — ela analisou a minha reação e riu como uma vilã
dos desenhos da Disney. Acrescentou: — Ela não vai te querer e você terá
que se contentar comigo. Bobinho!
Tendo dito isso, Cíntia começou a gargalhar. Ela falou com uma
certeza tão grande, que tive medo. Olhei para a porta e encontrei os olhos
de meu pai, que havia escutado as últimas palavras dela e agora
testemunhava seu acesso de riso. Um riso diabólico. Ele estava tão
assustado quanto eu. Lembrei-me de Denise me dizendo que precisava falar
comigo sobre Cíntia. Percebi que realmente algo muito sério estava
acontecendo.
CAPÍTULO 32

Mariana Barros

Depois que Leonardo saiu, não consegui fazer mais nada. Só pensava
em sua proposta. Eu não tinha dúvidas quanto ao que sentia. Eu queria sim,
ser sua namorada. Não só namorada, mas sua noiva, sua esposa, sua
mulher... Pelo resto da minha vida! Eu sabia que tudo o que tínhamos
vivido nos últimos dias era só um vislumbre de como seria nossa vida
juntos. Era incontestável. Nos completávamos. Então, seria uma vida
maravilhosa!
Peguei meu “Caderninho dos Desejos” e fui ansiosa para a lista:
Antes dos Cinquenta. Com brilho nos olhos procurei pelo item que pensei
que nunca riscaria e lá estava ele:
— Conhecer o amor e amar alguém, de verdade!
Sorri como uma adolescente boba, risquei esse item e coloquei o
nome dele na frente: Leonardo. Depois desenhei um coraçãozinho na frente
do seu nome. Parecia mesmo uma garota de 15 anos vivendo o seu primeiro
amor. E Leonardo era mesmo o meu primeiro amor. Aconteceu. Como a
minha mãe sempre dizia:
“Cada panela tem a sua tampa. Um dia você vai achar a sua.”
Esse ditado popular nunca pareceu tão real, pois era assim que eu me
sentia. Como se tivesse achado a minha outra metade. Dei um gritinho e
abracei meu caderninho, quase sem acreditar que aquela era mesmo
Mariana Barros, a publicitária que enfrentava uma rotina movimentada e
cheia de desafios no trabalho e não pensava em incluir homem algum em
sua vida. Estiquei os cantos da minha boca num sorriso e suspirei.
— Ah, Leo... Você despertou coisas em mim que eu nunca havia
sentido, seu ogro maravilhoso! — falei, enquanto colocava o caderno na
mesinha ao lado.
Deitada em minha cama, tentando organizar os meus pensamentos e
tomar a decisão certa, me imaginei casada com Leonardo, vivendo com ele
e seus filhos na Fazenda Palomar. Aquilo me trouxe uma satisfação tão
grande que eu nem conseguia explicar.
— É claro que eu vou dizer SIM, seu bobo! — falei, como se ele
pudesse me ouvir.
Não havia como fugir dessa verdade: Eu queria ser dele para sempre.
Meu Deus, estava me tornando meu pior pesadelo! Pensando em casamento
e filhos. E pior, gostando muito da ideia. Se eu contasse para Maitê, ela não
acreditaria, cairia de costas, coitada. Mas minha decisão estava tomada.
Permaneci com o sorriso bobo no rosto por um longo tempo, e foi assim
que adormeci.
...
Acordei muito feliz naquela manhã. Seria o dia em que Leonardo e
eu assumiríamos um compromisso sério. Eu estava radiante e não via a hora
de estar com ele novamente. Me levantei animada, fiz o meu café
cantarolando e me preparei para enfrentar o dia. Já estava terminando de
comer, quando ouvi as palmas. Sorri, pensando ser ele.
— Não aguentou esperar até a noite? — falei.
Fui atender à porta com um sorriso nos lábios, mas para minha
surpresa não era Leonardo. Meu sorriso se desfez ao me deparar com
Cíntia. Ela se escorou no portão e me encarou de alto a baixo.
— Cíntia?
— Bom dia, Mariana! — ela cumprimentou.
Me aproximei para abrir o portão.
— Bom dia. — respondi — Aconteceu alguma coisa?
Ela olhou em volta e depois voltou a olhar para mim.
— Podemos conversar?
Fiz que sim com a cabeça e abri o portão para ela.
— Está tudo bem? — perguntei.
— Está sim. Eu vim deixar as crianças na escola. Viemos no carro do
leite, porque o Leonardo teve que resolver umas coisas hoje de manhã.
— E o Davi?
— Está na casa da Estela.
— Poderia ter trazido ele, queria vê-lo.
— Eu não vou demorar, porque o carro já vai voltar. Só preciso
conversar com você rapidinho.
Fiquei intrigada. O que aquela garota teria para conversar comigo?
Convidei-a para entrar e fomos para cozinha. Ofereci um café, mas ela
recusou. Apenas se sentou à mesa de frente para mim. Olhou com
curiosidade para tudo em volta e depois parou o seu olhar em mim. Tinha
algo em Cíntia que me incomodava, e não era só o fato dela gostar do
Leonardo. Sim, ele me contou sobre as investidas dela e o quanto era
invasiva. Eu não conseguia entender por que ele não a demitia.
— Bem, o que você quer conversar comigo? — perguntei.
Ela repousou os braços sobre a mesa e esfregou os dedos um nos
outros, decidindo como começar a falar.
— Bem... eu não sei como te dizer isso, mas acho que seja o certo a
se fazer.
Ela me encarou, hesitante. Fiquei esperando que continuasse.
— Sim, pode dizer... — acenei com a cabeça, incentivando-a a
continuar.
Ela limpou a garganta e falou:
— Eu sei que o Leonardo está interessado em você. — me
desconcertei com suas palavras e principalmente com o jeito que me olhava
— Eu o entendo. — Cíntia desceu o olhar pelo meu corpo, demonstrando
uma pitada de inveja — É uma mulher bonita, sofisticada... Qualquer
homem ficaria louco por você. — voltou a fitar meus olhos. — É óbvio que
Leonardo também ficaria.
Respirei fundo, demonstrando impaciência.
— O que você quer, Cíntia? — perguntei.
Ela se ajeitou na cadeira e falou:
— O Leonardo havia prometido se casar comigo, mas agora... Agora
tudo mudou.
Meneei a cabeça sem saber o que dizer. Ela continuou:
— É isso. Ele simplesmente mudou comigo, passou a me tratar mal,
gritando por qualquer coisa — dessa vez ela estava com lágrimas nos olhos.
— Eu sinto muito por você, Cíntia... Sei que está apaixonada por ele
e não é correspondida, mas você precisa entender... Ninguém manda no
coração. Eu tenho certeza de que se o Leonardo te amasse, te escolheria...
— Sério? — perguntou em tom irônico.
— Óbvio que sim. — fingi não ter percebido sua ironia.
— E quanto ao filho? — ela perguntou, colocando a mão sobre a
barriga — O filho ele não ama?
Estremeci diante do gesto.
— Do que está falando? — perguntei confusa, querendo afastar
pensamentos ruins. — Qual... filho?
— Eu estou grávida. — ela falou de uma vez, com amargura na voz e
ficou me olhando com os lábios contraídos e crispados.
Processei a frase me dando conta do real motivo dela estar ali.
— Grávida? — balbuciei
— Sim. Ele não te contou?
Balancei a cabeça dizendo não. Ela foi sacudida por um riso sem
humor.
— Claro, é óbvio que ele não te contaria. — falou, desanimada.
Não soube o que dizer. Meu rosto ficou quente, me dando conta do
quanto aquilo era sério, mas ao mesmo tempo desconfiei.
— Você está mesmo grávida? Grávida do Leonardo? — perguntei,
ainda com um fio de esperança de que ela dissesse que não.
Ela me olhou com olhos marejados e balançou a cabeça
afirmativamente. Desviei meu olhar e levei a mão à boca.
— Oh, meu Deus! — exclamei.
— Por isso estou aqui. — Cíntia falou — Não acho justo que você
não saiba de tudo e que o Leo te esconda isso. Quero contar o meu lado da
história antes que você aceite o que ele te propôs. Você tem o direito de
saber.
Engoli em seco, temendo o que viria depois. Como ela sabia da
proposta? Cíntia começou a falar em tom melancólico e depressivo:
— Antes de você aparecer, ele estava comigo. Já vivíamos como um
casal, só faltava oficializar. Sou como a mãe dos filhos dele, você sabe...
Depois que engravidei, ele prometeu que se casaria comigo, mas aí… ele
conheceu você e tudo se desmoronou... Ele rompeu comigo!
Ela queria que eu me sentisse culpada, mas eu não era. Se Leonardo
não gostava dela, a culpa não era minha, mas essa história de gravidez
podia mudar o rumo das coisas. Cíntia continuou a falar e dessa vez adotou
um tom de súplica em sua voz:
— O que me trouxe até aqui foi o instinto de sobrevivência, porque
se o Leonardo não se casar comigo... Vou cair em desgraça. Minha família
não vai me aceitar de volta como mãe solteira e eu não vou abortar essa
criança como o Leonardo me pediu pra fazer.
Me sobressaltei.
— O quê? Leonardo te pediu pra abortar? — perguntei indignada.
Minhas pernas amoleceram, enquanto ela balançava a cabeça dizendo
sim. Aquilo era demais.
— Sim, ele me exigiu que tirasse a criança, mas eu não vou fazer
isso... É cruel demais! — falou prontamente, tremendo os lábios e
repousando a mão em sua barriga num gesto de proteção. — Por isso estou
aqui. Eu estou aqui para apelar para o seu bom senso, Mariana. Sei que
você não precisa dele. Você é uma mulher sofisticada, estudada,
independente. Já eu... Eu não sou ninguém. O meu futuro é incerto. Eu até
tentei estudar, mas tive que trancar a faculdade, porque preciso trabalhar.
Minha família é muito pobre. — ela fungou para controlar os fluídos do
nariz e eu a olhava, absorta em suas palavras — Quando a família do
Leonardo apareceu em minha vida, eu achei que tivesse encontrado a
felicidade. E de fato encontrei. Nunca havia sido tão feliz! Amo tudo
naquela fazenda. Os filhos dele me amam como se eu fosse a mãe deles.
Me lembrei que Sarah demonstrava não gostar dela. Franzi a testa
sem entender.
— Até a Sarah? — perguntei, mostrando que sabia que as coisas não
eram bem da forma como ela falava.
— Claro. A Sarah é rebelde e não aceita quando é contrariada ou
repreendida, mas é claro que nos damos bem. Se não, eu não estaria há
tanto tempo com eles, não acha? — ela esfregou o rosto com as mãos de
forma grosseira, enxugando as lágrimas. — O fato é que Leonardo não vai
me assumir e eu não sei o que fazer. — acrescentou.
Tendo dito isso, foi dominada por um choro. Eu quem não sabia o
que fazer.
— Cíntia... Eu...
Me levantei para pegar um pouco de água para ela. Ela pegou o copo
com mãos trêmulas e bebeu um gole. Mais calma, ela me olhou e
continuou:
— Estou te contando tudo, porque você é minha última esperança. Eu
poderia te pedir para se afastar dele, mas não posso te exigir uma coisa
dessas. Mas sei que é uma mulher sensata, e com certeza tem um bom
coração. — me olhou em expectativa e perguntou: — Você não afastaria um
filho do seu pai, afastaria?
— Não, claro que não. — respondi prontamente.
Ela estava me colocando contra parede. Mas eu a entendia. Estava
desesperada.
— Mariana, só você pode me salvar, porque ele está louco por você,
apesar de ainda me procurar em algumas noites... Sabe como são os
homens. E eu, tenho até vergonha de dizer, mas eu nunca digo não, pois eu
gosto dele. Ontem mesmo, eu não resisti, mesmo sabendo que ele havia
passado o dia com você.
Meu queixo caiu.
— Está me dizendo que Leonardo te procurou ontem? — perguntei,
incrédula.
— Sim, ele sempre me procura de madrugada. Sabe como ele é...
Tem muita testosterona ali.
Meu sangue esquentou. Eu não podia acreditar que aquele homem
estivesse brincando comigo daquele jeito. O xinguei mentalmente e tentei
não demonstrar a ela o quanto aquilo me desconcertou.
— O que você quer que eu faça? — perguntei, irritada.
Ela me encarou esperançosa.
— Só você pode convencer o Leonardo ao menos a desistir dessa
história de aborto e, pelo menos, assumir esse filho.
Minha boca ficou seca e fui pegar um copo de água para mim
também. Aquilo não podia ser verdade. O Leo era um pai tão amoroso,
como ele poderia querer uma coisa dessas?
Pensar que ele estava querendo me incluir em sua vida, mas ao
mesmo tempo rejeitando o próprio filho, mexeu com minhas estruturas. E
pensar que ele estava com nós duas ao mesmo tempo, tirou o meu chão.
Minhas pernas ficaram bambas. Olhei para a Cíntia e tive pena.
— Só você, Mariana, pode colocar um fim no meu sofrimento. — ela
suplicou, ao me ver pensativa.
Sentei-me de frente para ela e segurei em suas mãos.
— Pode ficar tranquila, Cíntia. No que depender de mim, Leonardo
vai assumir você e essa criança.
As palavras saltaram pela minha boca numa promessa difícil, mas era
o certo a se fazer. Por dentro eu estava dilacerada, apavorada. Mas eu não
podia ser egoísta. Tentei me colocar no lugar dela. Com certeza ela
precisava dele mais do que eu.
Cíntia chorou um choro de alívio dessa vez.
— Ah, Mariana, muito obrigada! Muito obrigada, mesmo! Eu não
podia esperar outra coisa de uma mulher tão incrível quanto você!
Obrigada!
— Não precisa me agradecer. Eu que agradeço por me esclarecer as
coisas.
Ela sorriu com satisfação, acenando positivamente com a cabeça,
enxugou as lágrimas e se despediu, mas antes de sair, ela fez outro pedido:
— Por favor, não diga a ele que estive aqui. Nem deixe saber que te
contei sobre a gravidez. Ele me mataria.
— Não se preocupe. Não vou dizer nada. — prometi.
Me mantive firme o tempo todo, mas assim que Cíntia saiu, foi a
minha vez de chorar. Me joguei em minha cama e lá fiquei por mais de duas
horas.
— Por que, por que tinha que ser assim? — lamentei.
Todos os planos que idealizei ao lado daquele homem, enquanto
pensava se lhe diria sim ou não, pesando cada decisão, se desmoronaram
diante de mim. Leonardo não era o que eu pensei que fosse. A não ser que
Cíntia estivesse mentindo. Mentira ou não, eu não ia ficar no meio daquilo.
Era demais para mim.
— Leo... Por que fui me apaixonar por você?
Me dei conta de que havia encontrado o amor, mas não poderia vivê-
lo. Tão rápido o encontrei, tão rápido tive minha primeira desilusão
amorosa. Enquanto estava perdida em meus pensamentos, meu celular
tocou. Era Estela. Devia se tratar de algo referente à feira. Enxuguei as
lágrimas e limpei a garganta antes de atender.
— Alô!
— Oi, Mari! Tudo bem?
— Sim, e você?
— Tudo, querida! Está em casa?
— Sim. Se for sobre a feira, ainda está faltando confeccionar
algumas bandeirolas... Mas vou dar conta de tudo.
— Não, não estou ligando por isso. É que tem uma pessoa aqui na
pensão procurando por você.
Me sentei abruptamente.
— Uma pessoa? — perguntei.
— Sim. Um rapaz. O nome dele é Diego.
CAPÍTULO 33

Leonardo Moretti

Acordei animado. Tomei um banho, um café reforçado e fui enfrentar


o dia, que seria cheio. Na semana seguinte começaria a FICUGA e eu
precisava deixar tudo organizado. Peguei o celular várias vezes a fim de
mandar uma mensagem para Mariana, mas combinamos que não nos
falaríamos até a noite. Ela também estaria ocupada preparando as coisas
para a inauguração de sua pequena livraria. A inauguração seria no primeiro
dia da feira, pois as barracas ocupavam toda a praça e a rua onde ela
morava. A livraria seria uma ótima atração.
Mesmo estando muito ocupado, o tempo não passava. Passei o dia
todo muito ansioso. Depois do trabalho tirei um tempo para brincar e
conversar com meus filhos. Eles eram a minha vida e qualquer decisão
futura dependia muito do que fosse melhor para eles. Mas no horário
combinado me arrumei, coloquei minha melhor colônia e fui para casa de
Mariana.
Fui preparado para ouvir um não da parte dela, mas estava confiante
em receber um sim. Eu tinha certeza de que havia algo especial entre nós.
Otimista, planejei toda nossa noite em minha cabeça. A levaria para jantar
no melhor restaurante da cidade. Só não tive tempo de arrumar um anel de
compromisso.
Cheguei na casa de Mariana e encontrei o portão aberto. Entrei sem
fazer cerimônia e a encontrei na sala, sentada no sofá. Ela levantou-se
rapidamente ao me ver. Estava me esperando. Sorri para ela, mas ela me
encarou com uma expressão impassível. Estranhei, porque ela sempre vinha
me receber toda calorosa e logo hoje ela agia de um jeito estranho. Olhei
para ela com olhos semicerrados, achando que estava tentando me enganar,
fazendo suspense.
— Oi! — falei, me aproximando devagar.
— Oi! — ela respondeu. Parecia estar tensa. Exatamente como fazia
logo que nos conhecemos.
Senti um cheiro de comida e imaginei que ela estivesse querendo me
fazer uma surpresa. Me aproximei para beijá-la, mas ela recuou. Franzi a
testa e acendi o alerta.
— Está tudo bem? — perguntei.
Mariana acenou positivamente com a cabeça e me encarou com olhos
úmidos.
— O que houve? Por que está assim? — perguntei, desconfiado.
Ouvi um barulho vindo da cozinha e quis saber:
— Tem mais alguém aqui?
De todas as possibilidades que imaginei, nada me preparou para o
que veio em seguida. Uma voz masculina ressoou, vindo lá de dentro.
— Mari, tem pimenta do reino?
Olhei para Mariana buscando uma explicação com os olhos.
— Quem está aí? — perguntei.
Ela baixou o olhar e não me respondeu. Foi então que vi, vindo pelo
corredor a figura de um homem. Ele veio perguntando:
— Mais uns três minutinhos e estará pronto. Você vai querer o seu...
— estacou ao me ver de pé no meio da sala — ... com queijo? — completou
a pergunta sem a mesma animação do início de sua fala.
Ele fixou os olhos em mim e depois ficou intercalando o seu olhar
entre Mariana e eu, tentando arrancar alguma informação daquela cena. Era
um rapaz bem apessoado. Estava todo à vontade de bermuda e camiseta.
Olhei para Mariana e ela estava com uma expressão confusa. Sem graça
como uma criança quando é pega em alguma travessura.
— Vejo que está com visita. — falei com os olhos fixos nela, sentido
o pomo de Adão se movimentando em meu pescoço de forma tensa.
Mariana gesticulou, apontando para o cara e falou:
— Esse é o Diego, meu amigo. — virou-se para o tal Diego, que me
olhava com um finco no meio da testa e me apontou para ele — Esse é o
Leonardo meu… meu senhorio. Ele é o dono dessa casa.
Intercalei meu olhar entre os dois.
— Ah, sim. — disse o garotão, me estendendo a mão — Muito
prazer, Diego Cardoso.
Apertei sua mão com muita força e falei:
— Leonardo Moretti.
O tal Diego sentiu a hostilidade naquele aperto de mão, pois eu quis
deixar bem claro para ele que não era bem-vindo. Ele recolheu sua mão
rapidamente, mas ficou me encarando de forma desafiadora. Mariana sentiu
a tensão entre nós, limpou a garganta e falou:
— Diego, com licença, o Leonardo e eu precisamos tratar de um
assunto. Depois a gente se fala.
— Ok. Tudo bem. — ele falou, se afastando com um aceno de
cabeça. — O macarrão já deve estar cozido.
Ele voltou para a cozinha e Mariana me puxou pelo braço para fora
da casa. Ficamos parados perto do portão, de frente um para o outro.
— O que esse cara está fazendo aqui? — eu perguntei, alterado —
Aliás, quem é ele mesmo?
Ela escondeu os cabelos atrás da orelha e explicou:
— Já disse que é um amigo. Trabalhamos juntos e eu não sei por que
que ele apareceu aqui, mas chegou hoje de manhã.
— Ah, não sabe?
— Ele resolveu me visitar, só isso.
— Ele está muito à vontade para um simples amigo.
Ela respirou fundo e se escorou no batente. Eu olhei para ela e
percebi que ela estava usando uma roupa de ficar em casa, quando tinha
imaginado que a encontraria toda arrumada e produzida para curtirmos a
noite.
— O que está acontecendo, Mariana? Eu pensei que essa noite seria
especial. Passei o dia ansioso pela sua resposta.
— Eu sei...
— Agora eu chego aqui e tem outro homem em sua casa... —
reclamei — E você está tensa, distante.
Ela me encarou de queixo erguido.
— Mas eu vou cumprir o que combinamos. Vou te dar a resposta.
Quero acabar logo com isso.
Pela forma como falou, ela nem precisava continuar. Meu coração
falhou uma batida.
— Acabar logo com... isso? — perguntei num fio de voz.
Ela encheu o peito de ar e soprou pela boca.
— É não, Leonardo. A minha resposta é NÃO. — falou num fôlego
só — Não posso ter um compromisso com você. — completou.
Senti as forças das minhas pernas fugirem e me escorei do outro lado
do batente.
— Não? — indaguei, decepcionado.
Ela continuou de queixo erguido e me encarou como se estivesse
com raiva de mim.
— Exatamente. Eu pensei bem e essa é a minha resposta.
Pisquei algumas vezes, desnorteado.
— Mas por quê? — ainda estava sem entender.
— Porque não tenho outra resposta, Leonardo. É isso.
Fiquei confuso e me lembrei das palavras de Cíntia:
“Ela não vai te querer!”
Respirei fundo e perguntei:
— Mas e tudo que vivemos durante todos esses dias? Pensei que a
gente tinha uma conexão...
Ela acenou com a cabeça, concordando, mas desviando os olhos de
mim.
— Foi muito bom. — disse com lábios trêmulos — Eu gostei muito,
de verdade. Mas eu não sou o tipo de pessoa que se apega, que se
apaixona... ou se casa. Nunca fui de assumir compromisso com ninguém.
Mas você já sabia disso. Eu te disse.
Me aproximei buscando seus olhos, sentindo uma tempestade
crescendo dentro de mim.
— Está dizendo que não sente nada por mim, é isso? — perguntei
com desespero na voz.
Ela fez que sim com a cabeça e, quando finalmente me encarou,
estava com lágrimas nos olhos.
— Sinto muito, Leo. Estou triste com essa situação, mas... —
hesitou, como se pesasse as palavras e em seguida soltou tudo de uma vez:
— Não tenho sentimentos por você. Não sinto nada por você. É assim que
eu sou.
Recuei, indignado. A encarei por um tempo, respirando com
dificuldade, tentando entender o que era tudo aquilo.
— Se é assim... Então, por que deixou chegar a esse ponto? —
perguntei — Eu te pedi pra me parar! Eu te disse que não teria mais volta!
— Leo...
— Por que brincar com os meus sentimentos assim, Mariana?
Puta merda! Mariana estava me dizendo que não sentia nada por
mim, mesmo depois de eu ter aberto o meu coração para ela na noite
anterior. Eu disse que estava apaixonado, que a amava. Se já sabia que não
gostava de mim, por que me pediu um dia inteiro para pensar? Por que me
enrolar daquele jeito? Me senti arrasado, decepcionado. Dei as costas para
ela, fugindo do seu olhar, esfregando o rosto com as mãos.
— É que foi bom... Eu gostei muito. — ela falou atrás de mim.
Virei-me para ela novamente, intrigado.
— Você disse que havia um impedimento. Por acaso o impedimento
é aquele que está preparando uma macarronada na sua cozinha? —
perguntei enciumado, apontando para dentro.
— Não, claro que não.
— Então me responda, Mariana! Nunca aconteceu nada entre você e
aquele garotão ali?
Ela me encarou e vi nos seus olhos a resposta.
— E-ele era m-meu namorado. — gaguejou.
Fechei os olhos e suspirei.
— Mas isso foi há muito tempo. — ela apressou em se explicar —
Ele só é um amigo.
— Amigo...
— Olha, Leonardo...
— Tudo bem, Mariana. — falei, balançando a cabeça positivamente e
sem olhar para ela. — Eu entendi o que está acontecendo aqui. Eu entendi
tudo. Só não enrole o garoto como fez comigo, porque dá pra ver que ele
está muito apaixonado.
— Leo... As coisas não são assim...
Não quis ouvir mais nada.
— Não quero saber. Estou indo nessa. Tenha uma boa noite.
Ela não me deteve. Caminhei rapidamente até o meu carro e parei
antes de entrar, com as mãos escoradas na porta, tentando me acalmar. E
pensar que cheguei a cogitar que Mariana estava com o coração de Daniela.
Como pude me iludir assim? Definitivamente aquela mulher não era digna
de ser comparada com ela.
Como pude profanar algo tão sagrado para mim? Ainda bem que me
livrei a tempo! Agora só precisava esfriar a cabeça e pedir perdão a Daniela
por quase ter colocado outra em seu lugar. Outra que nunca estaria a sua
altura. Então, rumei para o cemitério para conversar um pouco com ela,
como costumava fazer tempos atrás.
CAPÍTULO 34

Mariana Barros

Assisti, com um aperto no peito, Leonardo entrar no carro e partir.


Não tive como evitar as lágrimas que caíram abundantes sobre meu rosto,
mas era o certo a se fazer. Fui para dentro de casa desnorteada, tentando
conter o choro, mas ele só aumentava. Diego me ouviu e veio ao meu
encontro, se mostrando preocupado.
— Mari, o que houve?
Me apoiei na parede, pois estava zonza.
— Não é nada.
— Como assim, não é nada? Olha o seu estado! O que aquele coroa
te fez?
— Nada, ele não fez nada. Eu só estou triste. Estou triste porque... —
eu não consegui continuar. O choro me dominou.
Diego estalou a língua e se aproximou oferecendo um abraço. Não
recusei. Recostei a cabeça em seu ombro e solucei.
— Desculpa, não queria que você me visse assim. — falei.
Ele ficou um tempo me amparando, até que a curiosidade o venceu.
— Você se envolveu com esse cara, não foi? — ele perguntou, já
deduzindo o que havia acontecido.
Balancei a cabeça dizendo sim e ele acariciou meus cabelos.
— Oh, Mari. Quer falar sobre isso?
Senti que ele estava se aproveitando do momento para forçar algo.
— Não. Foi um erro, mas acabou. Acabou. — falei, me afastando do
abraço. Tentando me recompor. — Só quero esquecer.
Diego segurou minhas mãos e as balançou.
— Ei, olha pra mim! — pediu com carinho — Me conta o que
aconteceu.
Me desprendi das mãos dele e caminhei até a cozinha para beber um
pouco de água, enquanto dizia:
— Já disse que não quero falar sobre isso.
Ele me seguiu, insistindo.
— Mariana, antes de qualquer coisa, eu sou seu amigo. Você sabe
que sempre fui de confiança e só quero o seu bem. Não gosto de te ver
sofrendo.
— Está tudo bem, Diego. Eu só... — peguei a água e me sentei,
procurando as palavras — Eu me envolvi com o Leonardo há pouco tempo
e... Eu não sei explicar... Eu pensei que poderia ter o controle, mas as coisas
não foram assim.
— Se apaixonou. — ele deduziu.
Não comentei nada, apenas dei um gole em minha água. Diego
balançou a cabeça afirmativamente, entendendo meu silêncio como uma
confirmação.
— Isso é novidade. — ele observou — Sempre disse que não é do
tipo que se apaixona.
— Sim, mas isso não importa. Já coloquei um ponto final nessa
sandice.
— E por quê? Por que terminaram? Está bem óbvio que o cara tá
louco por você. E se está gostando dele, o que eu perdi?
Respirei fundo e falei, tentando disfarçar o ciúme.
— Ele engravidou a babá dos filhos dele.
Diego ergueu as duas sobrancelhas, surpreso.
— Espera aí. Ele já tem filhos, está arrumando outro com a babá e
ainda se envolvendo com você? E a mãe das crianças?
— O Leonardo é viúvo e tem três filhos. Depois da morte da esposa,
contratou essa babá. O nome dela é Cíntia. Manteve uma espécie de
relacionamento com ela, mas me jurou que agora não tinha mais nada entre
eles. Ele mentiu pra mim.
— Cíntia? Por acaso é uma morena com um cabelão cacheado e
volumoso?
— Sim. Você a conhece?
— Ouvi a dona da pensão chamando uma moça com essas
características de Cíntia. Ela estava com um garotinho bem pequeno.
— Essa mesma. O garotinho é o Davi, o filho mais novo dele.
— Quer dizer que o coroa traçou a empregada e a engravidou...
— Sim.
— E pelo seu estado, ficou sabendo disso hoje.
Respirei fundo.
— É... Foi exatamente isso, e como não quero complicações pro meu
lado, coloquei um fim em tudo.
— Mas você está bem com isso?
— Claro. Nunca quis nada sério com ele mesmo. — menti.
— Então, por que o choro?
Dei de ombros.
— Ah... Eu só não gostei de ser enganada. Você sabe que quando me
decepciono não tem mais volta. — Ele se desconcertou com minhas
palavras. Indiretamente eu estava, mais uma vez, lhe dizendo que nem
adiantava tentar, eu sempre lhe diria não. Mas Diego ainda carregava aquele
anel idiota no dedo. Com certeza ainda tinha esperanças. Puxei o ar com os
lábios cerrados, mostrando chateação e completei: — E eu só estou com
raiva, não estou apaixonada por ninguém.
Na verdade, estava lutando contra vontade de chorar e só queria que
Diego sumisse da minha frente.
— É tão difícil assim pra você perdoar? — ele perguntou
Franzi a testa.
— Está me dizendo que eu devo perdoar o Leonardo? — perguntei.
Ele revirou os olhos.
— Eu quero mais é que esse Leonardo se foda! — exclamou —
Estou falando da gente, Mari.
Eu sabia que ele se referia a nós dois e aquilo já estava me irritando.
Assim que nos reencontramos naquela manhã, Diego batia na mesma tecla.
Só podia ser uma doença. Ele não desencanava. Depois que Estela me
ligou, mandei uma mensagem para Maitê, pois queria que ela me dissesse
se sabia que ele tinha vindo atrás de mim. Ela me confessou que não sabia
de nada e que a única coisa que ficou sabendo era que ele havia pedido as
contas. E até aquele momento Diego ainda não havia me explicado como
soube onde eu estava.
— Mas eu disse que te perdoava. — o lembrei.
— Da boca pra fora! Eu sei que não me perdoou.
— Diego, acho melhor você ir embora. — pedi.
— Eu não vou deixar você aqui desse jeito.
— Que jeito?
— Você passou por fortes emoções e eu não quero que fique só.
— Fortes emoções? Você sabe muito bem que já passei por coisa
pior.
Ele ia relutar, mas fui firme com ele.
— Você não vai dormir aqui, Diego. Saia, por favor!
— Mas, Mari...
— Diego, por favor!
— Mas e a macarronada?
Olhei para a travessa de macarrão sobre a bancada. Eu amava aquela
massa que ele fazia. Ele sorriu, implorando com os olhos.
— Tudo bem. — falei — Mas assim que comermos, você vai voltar
pra pensão. Aqui é uma cidade pequena e eu não quero ficar malfalada.
Ele sorriu e concordou.
— Certo, pode ficar tranquila.
Nos sentamos à mesa para comer, mas eu mal toquei em meu prato.
Minha mente estava em Leonardo. Senti remorso por mentir para ele,
dizendo que não sentia nada, quando na verdade eu estava derretendo por
dentro. Só em imaginar ele indo se consolar nos braços de Cíntia, me deu
vontade de gritar. Senti um grande alívio quando Diego saiu. Finalmente
estava sozinha e podia extravasar o que sentia. Chorei até perder as forças.
— Eu vou superar. — prometi a mim mesma.

◆ ◆ ◆

Leonardo Moretti

De pé, com os olhos fixos na lápide de mármore do túmulo de


Daniela, tentava organizar meus pensamentos. Fazia muito tempo que eu
não a visitava. Parado ali, imerso em minha tristeza, já tinha chorado como
um condenado toda minha cota de lágrimas. Pedi perdão a ela por várias
coisas. Principalmente por estar envolvido com outra mulher e não ter
cumprido minha promessa. Ainda mais uma mulher que não era digna de
ser comparada a ela, minha Doce Daniela.
Estava consciente dos meus erros, mas reconhecer isso não anulava o
fato de que eu tinha sentimentos por outra. Eu poderia usar a desculpa de
estar me sentindo assim por achar que Mariana carregava o coração da
minha falecida esposa, mas não era verdade. Eu já a queria antes de
suspeitar disso. Essa era a verdade: Eu a amava. Amava Mariana. Amava
aquela mulher que tinha acabado de me jogar no limbo.
Droga, eu a amava!
Deixei o cemitério depois de ter passado quase uma hora lá. O que
restou de Daniela estava ali. Era muito triste essa realidade. A dor daquela
perda não passava nunca e agora se juntava à outra. Eu sabia que o coração
dela ainda estava batendo em algum lugar. E se fosse mesmo no peito de
Mariana? Mas se assim fosse, por que não me ama mais? Algum resquício
devia existir, não é? Ou isso era só uma paranoia, coisa da minha cabeça?
— Ah meu Deus, acho que vou enlouquecer! — gritei dentro do
carro.
Cheguei em casa ainda cedo. Subi os poucos degraus da entrada em
passos lentos e pesados. A porta estava aberta, mas pelo silêncio, deduzi
que as crianças já estavam dormindo. Não tive ânimo para entrar. Me sentei
na mureta e procurei pela carteira de cigarros em meu bolso. Um vício que
já havia abandonado há anos, mas estava voltando aos poucos e piorando a
cada crise que eu enfrentava. Enquanto acendia o cigarro, Cintia apareceu à
porta.
— Nossa, já chegou? — perguntou com sua voz enjoativa.
— Não, ainda estou lá! — respondi, mal-humorado.
Ela deu um risinho debochado e se escorou no batente da porta. Dei a
primeira tragada e soprei a fumaça no ar, com os olhos fixos nela.
— Ela te dispensou, não foi? — ela perguntou, parecendo muito
satisfeita.
Não respondi. Ela gargalhou.
— Eu sabia. Eu sabia — falou, quase comemorando.
Semicerrei os olhos, desconfiado.
— Sabia? E por que você sabia? — perguntei.
Ela deu de ombros.
— Deduzi, ué! — respondeu.
Me aproximei dela a observando.
— Deduziu ou você fez alguma coisa? — perguntei, cismado — O
que foi que você fez?
Ela se desconcertou.
— Eu? Eu não fiz nada?
— Você fez alguma coisa!
— Eu não! Só era óbvio que aquela loira azeda só estava te
enrolando. Todo mundo via isso, só você que não.
— É mesmo?
Ela me encarou com olhos espertos. Olhos de quem tripudia em cima
da desgraça dos outros.
— Sim... — falou satisfeita — E eu adorei que ela tenha feito isso.
Adorei! Só assim você vai saber como é estar em minha pele! Ser
desprezado e humilhado! Ainda mais agora que o namorado dela apareceu!
Avancei sobre ela e fechei minha mão esquerda em seu pescoço. Ela
se retesou, deixando a pose de sarcasmo, me olhando com olhos
arregalados.
— O que sabe sobre isso? — vociferei.
— Na-da... — respondeu com a voz espremida.
A sacudi com muita raiva.
— Desembucha! — gritei perto do seu rosto.
— Eu não sei de nada... — falou num fio de voz — A dona Estela me
contou...
— Por acaso você e ele estão armando pra mim?
— Claro que não!
— Ninguém sabia que Mariana estava aqui em Napolitana e de
repente esse cara aparece! Que conveniente! E você celebrando...
— O que está insinuando? — ela parecia estar com medo.
Apertei mais a mão e falei entredentes:
— Se eu souber que você tem alguma coisa a ver com isso, eu te
mato, Cíntia! Eu te mato, entendeu?
Ela se debateu e segurou o meu braço, tentando se livrar da minha
mão.
— Leo... Para! Eu juro que eu não tenho nada a ver com isso! O que
eu poderia fazer? Eu nem conheço esse povo!
A encarei com olhos fulminantes por um tempo. O cigarro aceso
entre os dedos da outra mão, parecia drenar a minha fúria. Quase o usei
para fazê-la falar, pois sabia que ela, de alguma forma tinha influenciado a
decisão de Mariana. Mesmo que fosse com suas rezas esquisitas.
— Não acredito em você! — falei.
— Leo... Eu juro... Juro por Deus!
Estudei suas reações por um tempo, mas sabendo que não arrancaria
nada, não naquele momento, a soltei. Cíntia levou as mãos ao pescoço e
puxou o ar para os pulmões com força para recuperar o fôlego.
— Desgraçado! Você quase me matou! — falou ofegante e levou a
mão ao ventre — Se eu perder o meu filho, não vou te perdoar, Leonardo!
Não vou te perdoar!
As palavras dela me atingiram. Eu tinha me esquecido desse detalhe.
Aquela criança não tinha culpa de nada e também era minha. Depois de me
acalmar, percebi que estava exagerando, mas não tive tempo para pedir
desculpas, pois Cíntia correu para o seu quarto, me deixando atordoado.
Depois de olhar em volta, tentando me situar, também fui para o meu
e sabia que a noite seria longa. Mariana ainda povoava os meus
pensamentos.
CAPÍTULO 35

Mariana Barros

Alguns dias se passaram e eu não tive mais contato com Leonardo.


Apenas o vi uma vez, de longe, no supermercado, acompanhado por
Matteo. Eu estava com Diego e ele nos olhou de cara feia e se afastou. Os
dois estavam se estranhando, segundo o próprio Diego havia me contado.
Como a cidade era pequena, se esbarrarem era inevitável. E numa dessas os
dois bateram boca em público. Aconteceu por duas vezes.
Diego o provocou e Leonardo pegou pilha. Esquentado como era, ele
revidou e saíram no soco. Eu me sentia mal por essa situação, mas não
podia fazer nada. Quando o vi se afastando, lamentei por não poder
cumprimentar ao menos o menino, pois já estava com saudades dos filhos
dele, principalmente de Sarah que era a mais apegada a mim. E eu sentia
falta daquela conexão.
Diego resolveu ficar na cidade e estava até procurando um lugar para
morar. Queria abrir um pequeno estúdio de fotografia. Eu tentei fazer com
que ele mudasse de ideia, mas ele estava irredutível. Porém, deixei bem
claro que a única coisa que haveria entre nós seria amizade. O fracasso da
minha curta relação com Leonardo me fez voltar à ideia original, que era a
de me encontrar comigo mesma.
Tudo o que eu queria era olhar para dentro de mim e conversar com
essa nova Mariana que estava nascendo. Ela era quase uma completa
estranha para mim e enquanto eu não a conhecesse, não estaria pronta para
outras questões. De alguma forma eu sabia que precisava ficar em
Napolitana, mas a companhia de Diego não estava em meus planos. Porém,
ele me ajudou bastante com a livraria.
Estava ansiosa para inauguração, e estava perto. A praça já estava
toda pronta. As barraquinhas já estavam montadas e espalhadas ao longo de
toda sua extensão e ocupavam boa parte das ruas em volta dela. A livraria
ficava de frente para tudo isso.
Montei uma espécie de Café para atrair as pessoas e coloquei
algumas mesinhas espalhadas pela varanda. Montei também um cantinho de
leitura bem aconchegante. Tudo que seria servido, seria de graça e já estava
encomendado. Estava indecisa com algumas coisas. Com certeza Leonardo
saberia o que fazer. Não podia negar, estava sentido falta dele.

◆ ◆ ◆

Leonardo Moretti

Era o primeiro dia da FICUGA e os meninos estavam ansiosos. Meu


pai não estava diferente. Era a época do ano que ele mais gostava. Visitar a
barraca do Sr. Tommaso era tradição. Lá, além de vender nossos produtos,
ele se encontrava com velhos amigos que vinham de outras regiões e as
histórias nunca acabavam. Fiquei muito envolvido com isso no primeiro
dia, organizando tudo com a “ajuda” dos meninos. Eles gostavam de se
envolver em tudo. Também estavam empolgados para se divertirem na
feira. Porém, como Davi estava gripadinho e enjoado, resolvi não o levar.
Então, Cíntia ficou em casa com ele. Mas Sarah e Matteo não perderiam por
nada.
— Papai, a gente vai na livraria da Mari? — Sarah perguntou quando
estávamos dentro do carro.
Demorei um pouco para responder. Ela insistiu na pergunta:
— Vai ou não?
— Tem coisas mais divertidas para fazer por lá. — respondi,
deixando-a chateada.
— Ah, não! Eu quero ver os livros da Mari. Ela disse que tem a
história da princesa Aurora. Eu quero ler.
Sarah estava sendo alfabetizada e tomando gosto pela leitura. Já lia
com desenvoltura.
— Princesa Aurora? Não existe essa princesa. — disse Matteo.
— Existe sim. — ela retrucou — É a Bela Adormecida, seu bobo!
— Você que é boba! Quer ir pra FICUGA pra ficar lendo livro bobo.
Ela se irritou.
— Não é bobo nada, é legal! Não é legal, papai?
Eu ri dos dois implicando um com o outro.
— É legal sim. — respondi, deixando-a satisfeita.
— Você vai, não vai? Eu quero ver a Mari.
— Tá, depois a gente passa por lá. — falei, dando uma piscadela para
Matteo, enquanto ele meneava a cabeça.
Eles viviam me perguntando por que Mariana nunca mais apareceu lá
em casa. Eu sempre desconversava, mas depois que a poeira baixou e fiquei
mais calmo, queria mesmo conversar com ela. Precisava esclarecer alguns
mal-entendidos que surgiram durante aqueles dias. Eu perdi as estribeiras e
acabei me estranhando com o tal do Diego. Não que eu estivesse
arrependido por ter dado uns socos no infeliz, mas não queria me indispor
com Mariana. Apesar de tudo, eu gostava dela. Não podia a recriminar por
ter me dispensado, afinal de contas, ela estava sendo sincera.
Depois de me ocupar com as coisas da nossa barraca, fui levar as
crianças para se divertirem e andamos um pouco pela feira visitando outras
barracas. Nos encontramos com Denise e seus dois meninos, Felipe e
Betina. Ela insistiu para que eu deixasse Sarah e Matteo irem com eles. Os
primos não perdiam uma oportunidade de ficarem juntos e acabei cedendo.
Aproveitei para dar uma espiada em Mariana e ver como estava se saindo
com a inauguração da livraria.
Andei por poucos metros e logo a avistei. Ela estava parada na
entrada da casa recepcionando as pessoas. Usava um vestido rodado e
florido em estampas de flores rosas. Os cabelos soltos, caídos pelos ombros,
linda como um anjo. E lá estava aquele carrapato ambulante grudado nela,
como sempre. E eu nem podia julgá-lo por tentar conquistá-la. Ao
contrário, o entendia muito bem, porque também ainda estava igualmente
fascinado. Só que o idiota não se tocava que sua missão era impossível. Era
óbvio que Mariana não queria nada com ele.
Me aproximei devagar e assim que me avistou, Mariana mudou de
expressão. Apesar de ter desfeito o sorriso do rosto, pareceu gostar de me
ver. Seus olhos brilharam e eu podia jurar que aquilo era saudade. Diferente
do garotão que parecia querer me matar com os olhos.
— Oi! — falei olhando só para ela.
— Oi! — ela respondeu.
— Podemos conversar? — perguntei.
Diego se colocou em sua frente, protetivo, tentando me intimidar.
— Não, ela não tem nada pra falar com você. — foi dizendo, todo
intrometido.
Minha reação foi rir.
— Não estou falando com você. — retruquei.
— Mas eu estou falando com você. — ele falou, alterando a voz.
— O que você quer, Leonardo? — Mariana perguntou, empurrando
Diego para o lado.
— Só conversar. Não vou levar mais que dez minutos. — insisti,
ainda olhando só para ela.
— Acho melhor conversarmos em uma outra hora. — ela respondeu.
— Ouviu, né? Ela não quer conversar. Vaza daqui! — o babaca se
intrometeu de novo, se colocando entre nós.
Eu estava tentando manter o autocontrole, mas aquele garoto era
irritante demais. Olhei para ele com a testa franzida.
— A conversa é entre os adultos. Não se mete, ô pirralho! — falei
com dentes trancados. — Estou falando com ela, não com você. Saia da
minha frente!
Ele levantou o punho e cresceu para cima de mim.
— Vou te mostrar o pirralho!
Mari interferiu.
— Diego, por favor, se acalme! Parem vocês dois! As pessoas já
estão olhando — E virando-se para mim, pediu: — Leo, melhor
conversarmos depois.
— Nada disso! — falou Diego, vindo para cima de mim, me
forçando a andar para trás —Você não tem nada que conversar com esse
troglodita, Mariana! Ele só está querendo te enrolar.
Já estava perdendo a paciência.
— Saia da minha frente, garoto! — falei em baixo tom — Se não...
— Se não o quê? Vai me bater de novo como fez no outro dia?
Nos enfrentamos com o olhar.
— Até que não seria má ideia. — provoquei.
— Pois então tenta! Você me pegou desprevenido da outra vez, mas
hoje eu estou bem preparado. — ele fechou o punho em riste e ficou me
encarando de forma ameaçadora.
— Parem já, os dois! — ordenou Mariana, se colocando entre nós. —
Ninguém vai brigar aqui!
Algumas pessoas começaram a se aproximar, atraídas pela nossa
discussão. Olhei em volta e me dei conta de que, provavelmente, havia
policiamento ali. Por qualquer besteira poderíamos nos encrencar bastante.
Olhei para Diego e falei ainda em tom baixo:
— Olha, só quero tratar de um assunto com a Mariana, é melhor você
não se meter.
— E o que você quer? Arrumar um filho com ela também?
— Diego! — Mariana falou em tom de repreensão.
Ergui uma das sobrancelhas em alerta.
— Que conversa é essa? Do que está falando? — questionei.
Diego riu, debochado.
— Você sabe muito bem do que eu estou falando. A cidade toda já
sabe que você engravidou a babá. Não tem vergonha, não?
Olhei para Mariana e ela desviou olhar para o chão. Voltei a fitar o
garoto.
— Como sabe disso? — perguntei.
— Todo mundo já sabe.
Então era isso. Por isso ela me rejeitou. Como sabiam daquilo? Eu
dei ordens expressas para Cíntia não contar a ninguém, pelo menos não
antes da barriga crescer, para evitar especulações.
— Mari… — pronunciei seu nome como se tentasse me explicar.
— Some daqui, cara! — esbravejou Diego. — Todo mundo já sabe o
depravado que você é.
— Para de se meter no que não é da sua conta, rapaz! — falei no
mesmo tom.
Mariana pedia para que parássemos com aquilo. Me concentrei nela
para não perder as estribeiras.
— Então foi por isso? Foi por isso, Mariana? — perguntei, mas ela
só me olhou com um olhar triste e não disse nada, mas nem precisou dizer.
— Eu ia te contar...
— Leo... — ela pronunciou.
Diego, percebendo que a possibilidade de nos acertarmos pairava no
ar, começou a me provocar. Primeiro, ele afundou o indicador em meu
peito, me empurrando. Depois ficou me insultando e chamando para briga.
Soprei o ar pela boca tentando me controlar. Que cara sem noção!
— Não vou brigar com você, Diego, só quero conversar com a
Mariana.
— Qual parte do “Saia daqui!” você não entendeu, hein? Tá
querendo confusão? Ela não quer conversar com você.
Estava difícil me conter, mas eu não ia ceder às suas provocações.
Abri os braços em sinal de rendição.
— Se quer revidar os socos que eu te dei, fique à vontade! — falei, o
desafiando.
Ele não perdeu tempo e me deu um cruzado de direita no queixo tão
forte, que com certeza machucou a sua mão. Mariana deu um grito. Tonteei
por alguns segundos e por pouco não caí. Me equilibrei e percebi as pessoas
se juntando em volta de nós. Senti o sangue escorrer pelo canto da boca e
levei a mão ao rosto.
— Filho da puta! — gritei.
O sangue ferveu e fui para cima dele. Mariana e outras pessoas
gritavam para que parássemos. Ignorei a todos e decidi acabar com a raça
daquele infeliz. O derrubei no chão e quando ia começar uma sequência de
socos, fui segurado pelos ombros.
— Pare, Leo! Pare, por favor! — Mari gritou, aflita.
Eu era bem mais forte e ia esmagá-lo se não tivessem nos apartado.
Luiz apareceu, vindo não sei de onde e me tirou de cima dele, pedindo para
eu me acalmar. Diego se levantou, e mesmo em desvantagem, ainda me
provocava, tendo que ser segurado por outros também.
Da outra vez que brigamos não tinha sido diferente. Ele ficou me
provocando, dizendo que Mariana não me quis porque eu estava
ultrapassado. Que eu não a satisfazia como ela queria. Ficou expondo uma
suposta intimidade deles dois para quem quisesse ouvir, insinuando que
estavam juntos.
Eu sabia que tudo não passava de lorota. Mas vê-lo expondo-a ao
ridículo daquele jeito me fez reagir. Ainda mais com mentiras, pois se
houve algo entre eles, estava no passado. Eles não tinham nada um com o
outro. Como eu sabia? Estela me contou. Ela me disse que Mariana
confessou que não sabia mais o que fazer para que Diego a deixasse em
paz, que ele a traiu no passado e as coisas entre eles não tinham mais volta.
Agora estava ali se comportando como se fosse seu dono, sendo tão ridículo
quanto antes.
— Parem com isso vocês dois! — foi Luiz quem falou — Querem
passar o primeiro dia da feira na delegacia?
Ainda trocamos algumas farpas, quando Mariana me puxou pelo
braço e pediu a Luiz que levasse Diego para a pensão.
— Vem comigo, Leo! — ela falou — Precisa colocar gelo nesse
queixo.
Diego ainda gritou:
— Mari, não caia na conversa desse cara! Saia de perto dele!
Eu retruquei:
— Sim, é melhor que ela fique perto de um traidor, não é mesmo? —
gritei para ele.
Mariana o ignorou e olhou para mim, certamente tentando entender
como eu sabia daquilo, mas não disse nada. Seguimos para dentro de casa.
Havia algumas pessoas na varanda ocupando as mesas, sendo servidas e
assistidas por duas moças que ela havia contratado apenas para esse evento.
Outras pessoas estavam na parte de dentro olhando os livros. Todos nos
olharam com curiosidade, mas não disseram nada. Mariana me conduziu até
seu quarto.
— Espere aqui. Vou pegar um pouco de gelo e um analgésico. — ela
avisou.
— Não precisa.
— Precisa sim, se não vai doer e ficar inchado.
Antes de ela sair, a detive.
— Espera. — pedi.
Ela me encarou com relutância. Acariciei seu rosto devagar. Ela
suspirou e fechou os olhos.
— Leo... O que está fazendo?
— Sinto sua falta... — confessei.
Ela virou o rosto, fugindo do meu olhar.
— Para! Não podemos... — falou, tentando afastar meu braço.
— Por que não? — perguntei, trazendo-a de volta — Foi por causa
dessa história da gravidez da Cíntia? Foi por isso que você resolveu desistir
de nós?
Ela me olhou com olhos úmidos e não respondeu.
— Me diz, Mariana! — insisti.
Ela meneou a cabeça.
— Não. Não foi por isso!
CAPÍTULO 36

Mariana Barros

Leonardo me olhava, esperando uma resposta. Eu havia prometido


para Cíntia que me manteria longe deles. Isso o obrigaria assumi-la. Queria
me manter distante, não só pela promessa que tinha feito a ela. Também
prometi a mim mesma que não ia me envolver naquele imbróglio. O
desespero que vi nos olhos dela, a desesperança e o fato de ter uma criança
inocente no meio, mexeram muito comigo.
Porém, minha decisão ia além disso. Eu tinha medo, medo de viver
aquele amor complicado e sofrer. Medo de um futuro incerto ao lado de um
homem cheio de amarras e uma bagagem tão grande. Olhei para ele
procurando as palavras certas.
— Os motivos você já sabe quais são. — respondi —
Independentemente de você estar ou não comprometido com outra pessoa.
Só estou sendo honesta com o que sinto e... Como já disse... Não tenho
sentimentos por você.
Foi difícil dizer isso, mas eu disse. Ele se desconcertou.
— Então, estava só me enrolando. — não foi uma pergunta.
Levei a mão até seu peito, por instinto, comovida com sua decepção.
Tentei consertar, dizendo:
— Eu não vejo dessa forma, porque curti muito o tempo que
passamos juntos, — ele me olhou por um instante, me sondando, como se
quisesse ler meus pensamentos e depois desviou o olhar para minha mão
apoiada nele, o que me fez tirá-la rapidamente, enquanto acrescentava: —
Mas entenda como quiser. Sente-se, por favor. Eu vou buscar o gelo e o
remédio.
Saí do quarto apressadamente e pude respirar aliviada. Minhas pernas
estavam bambas. A proximidade dele provocava sensações que refletiam
em cada uma de minhas células. A vontade de tocá-lo, de pular nos braços
dele, era grande demais. Tive receio de perder a razão e dizer ou fazer algo
que me denunciasse, que revelasse como eu realmente estava me sentindo.
Precisava ser firme na minha decisão. Era o certo a se fazer, mas a tentação
era grande.
Dei uma olhada na direção da sala principal, onde estava a livraria e
vi que estava tudo sob controle. Ana e Joelma estavam cuidando de tudo.
Meu rosto esquentou ao me lembrar da briga entre Leonardo e Diego.
Estava morta de vergonha e sabia que, com certeza, a fofoca já estava
correndo solta. Fui até a cozinha, bebi um pouco de água e me recompus.
Peguei na geladeira uma bolsa de gelo, que por sorte veio em um kit
de primeiros socorros e voltei ao quarto. Quando abri a porta, me deparei
com Leonardo sentado à beira da cama com meu caderno de listas na mão.
Paralisei. Fiquei mais gelada que o gelo em minhas mãos. Ele estava tão
concentrado lendo minhas anotações que nem me viu entrar. Limpei a
garganta e falei:
— Aqui está o gelo.
Calmamente, ele girou a cabeça para olhar para mim e perguntou:
— O que significa isso?
Tentei esconder minha irritação por ter deixado aquele caderno
dando sopa. Odiava quando mexiam em minhas coisas, sobretudo nas mais
íntimas.
— Isso o quê? — perguntei.
Ele se levantou, vindo em minha direção, apontando uma página do
caderno.
— Antes dos cinquenta. — falou, mostrando o título da lista.
Engoli em seco e tentei ser indiferente.
— É... eu tenho mania de fazer listas. —respondi.
Ele sorriu de um jeito fofo, como se estivesse diante de um
caderninho de criança.
— Tem muita coisa aqui. — comentou.
— São bobagens. — dei por menos.
Ele balançou a cabeça positivamente e voltou a atenção para o
caderno.
— Isso não parece uma bobagem. — leu devagar: — Encontrar o
amor… — depois me encarou com uma das sobrancelhas erguidas — E
esse item está riscado...
— Já disse que é só uma bobagem! — falei novamente, tentando tirar
o caderno da mão dele.
Ele ergueu a mão me impedindo de o pegar.
— Me dá isso, Leo!
— Calma! — ele girou o corpo, indo para outro lado — Olha aqui...
tem o meu nome na frente!
Sem saber o que dizer, avancei sobre ele e tomei o caderno de suas
mãos. Dessa vez ele não impediu.
— Você não devia mexer no que não é da sua conta! — fechei o
caderno e o coloquei na gaveta. Olhei para ele e lhe estendi a bolsa de gelo.
— Usa logo isso antes que o seu rosto fique inchado.
Ele levantou a mão para pegar o gelo, mas não foi só a bolsa de gelo
que ele pegou. Agarrou minha mão e me levou junto, colando meu corpo ao
seu.
— Você me ama! — ele deduziu.
— Não. — neguei — Você entendeu tudo errado.
— Não entendi não. Está tudo muito claro!
Tentei me desvencilhar dele.
— Por que foi fuçar minhas coisas? — perguntei, irritada.
Ele riu de um jeito safado, rodeando minha cintura com os braços,
pressionando a bolsa de gelo em minhas costas. Senti um arrepio, mas não
foi por causa do gelo.
— Eu não fucei nada. — ele falou — Esse caderno estava aberto em
cima da mesinha. Parece até que você o deixou ali de propósito.
— Eu não. É claro que eu não faria isso. Não queria que soubesse...
Parei de falar, me dando conta de que estava me entregando. Droga,
ele me pegou!
— Soubesse de quê? — ele quis saber, mas eu nem precisei dizer
nada, meu olhar me denunciava. — Que você me ama?
Peguei a bolsa de gelo, que parecia estar ali para acalmar o fogo que
crescia em ambos, e coloquei no rosto dele. Ele fechou os olhos como se
recebesse um carinho e acariciou o meu rosto também.
— Por que está me rejeitando? — perguntou, agora com um tom
mais sério na voz — É por causa da gravidez da Cíntia?
— Não, não é por isso. — respondi prontamente, retirando o gelo do
seu rosto e, dessa vez, conseguindo me afastar — Não posso ter um
relacionamento com um homem que pede pra uma mulher abortar o próprio
filho dele.
Ele me encarou intrigado.
— Que conversa é essa?
— A Cíntia me contou tudo.
Leo balançou a cabeça, como se quisesse organizar os pensamentos.
Depois me encarou com a testa franzida.
— Do que você está falando? — perguntou.
Coloquei a bolsa de gelo na bandeja em cima da cômoda e respirei
fundo.
— A Cíntia veio aqui naquele dia em que fiquei de te dar a resposta.
O mesmo dia em que o Diego chegou. — expliquei — Ela me contou que
estava grávida. Que o filho era seu e que você a mandou abortar. Estava
desesperada.
— Abortar? E você acreditou nela?
— Ela contou em detalhes toda a situação.
— Eu nunca faria uma coisa dessas! Jamais faria isso. Até parece que
você não me conhece. Eu sou pai de três crianças, poxa! Meus filhos são
tudo pra mim! Como pode acreditar que eu seria capaz de matar um filho
meu?
— Mas ela…
— Ela mentiu, Mariana! — ele sentou-se na cama ofendido e triste
— Aquela garota é uma dissimulada! Eu disse a ela que daria toda
assistência e assumiria o meu filho. E que ela não ficaria desamparada, mas
ela colocou na cabeça que vai se casar comigo de qualquer jeito. Por isso
fez de tudo pra engravidar. Se aproveitou de todos meus momentos de
fragilidade e conseguiu. Eu fui um fraco e descuidado, mas não ia fugir da
minha responsabilidade. Nunca prometi nada além de cuidar dela e do meu
filho. E quem falou em aborto foi ela. Ela me chantageou, dizendo que se
eu não me casasse com ela, abortaria.
Sentei-me ao lado dele. Sabia que Leo estava dizendo a verdade. Ele
era um homem bom. Espalmei minha mão na sua e entrelaçamos os dedos.
— Ela me disse que você ainda a procurava, mesmo estando comigo.
Até mesmo na noite em que me fez a proposta, ela disse que vocês
dormiram juntos.
Ele estalou a língua e meneou a cabeça, muito nervoso.
— Eu vou matar a Cíntia! Nunca pensei que ela fosse capaz de
mentir tanto assim!
— Mas não é tudo mentira, não é mesmo? Ela está mesmo grávida,
não é?
— Sim, mas nunca mais tivemos nada há muito tempo. Bem antes de
eu e você nos envolvermos. — ele deu um riso nervoso — Eu devia estar
muito carente para me envolver com aquela mulher. Já pensei em demiti-la
tantas vezes, mas sempre aparece um imprevisto, algum impedimento e ela
sempre arruma um jeito de ficar. Mas isso vai mudar hoje. Vem comigo!
Leonardo se levantou e me puxou pela mão.
— O que vai fazer? — perguntei.
— Resolver tudo isso de uma vez por todas.
CAPÍTULO 37

Leonardo Moretti

Já estava anoitecendo. Eu e Mariana estávamos indo para a fazenda


confrontar Cíntia. Era inacreditável a ousadia daquela garota, agindo pelas
minhas costas, inventando um monte de mentiras. Liguei para Denise e pedi
para que ela deixasse os meninos com o meu pai. Meu pai tinha ido em sua
caminhonete com Claudinei, um dos caseiros da fazenda.
Mas Denise me pediu para que deixasse as crianças dormirem em sua
casa, pois seria difícil arrancá-los da diversão. Eu concordei e até achei
melhor, porque evitaria que eles testemunhassem uma possível e inevitável
briga.
No caminho até a fazenda eu e Mariana fomos conversando e nos
acertamos. Ela abriu o seu coração para mim e contou como estava se
sentindo durante todos aqueles dias que se seguiram depois do nosso
rompimento. A parte que mais me tocou foi quando confessou que me
amava e, não só isso, eu era o seu primeiro amor. Fiquei tão emocionado
que até a raiva que estava sentindo se aplacou.
— Então, a resposta é sim? — perguntei.
Ela sorriu e balançou a cabeça positivamente.
— Sim. Eu quero muito ser sua mulher, Leo.
Respirei fundo tentando me conter e me concentrar na direção.
— Então, abra o porta-luvas. — falei com um sorriso bobo nos
lábios.
Mariana se mostrou curiosa e obedeceu. Abriu o compartimento e
ficou sem entender, pois havia muitas coisas lá dentro.
— O que estou procurando, mesmo? — perguntou.
— Uma caixinha preta, de veludo.
Ela arregalou os olhos e começou a procurar com ansiedade. Levou a
mão ao peito assim que encontrou. O carro sacolejava e eu dividia minha
atenção entre a estrada e às reações dela. Mariana colocou a caixinha diante
de si e, com um sorriso radiante, a abriu. Seu semblante mudou ao se
deparar com o conteúdo.
— Mas isso não é um anel de compromisso... É ouro! — exclamou.
— Não é mesmo. — confirmei — É um anel de noivado, amor!
Ela me olhou confusa.
— Leo... O que você quer dizer com isso?
Sorri e lhe perguntei:
— Quer se casar comigo?
Foi pega de surpresa.
— Leo... — ela levou a mão à boca, enternecida, tentando conter um
choro.
— Comprei há alguns dias. Eu tinha certeza que a gente ia reatar
hoje, por isso queria conversar com você. — expliquei.
Ela me olhou surpresa.
— O que me diz? — perguntei de novo.
Confesso que tive medo de Mariana me dizer não ou pedir um tempo
novamente. Mas ela colocou o anel no dedo com empolgação e, com brilho
nos olhos, respondeu:
— É sim! Você sabe que é sim!
Depois de dizer isso, escorregou para perto de mim e me deu um
beijo estalado na bochecha. Assim, em poucos segundos meu mundo voltou
aos eixos novamente. Eu estava louco para tê-la em meus braços, o que
seria logo, assim que resolvêssemos os problemas com Cíntia.
Cheguei em casa com Mariana ao meu lado e fui logo gritando por
ela:
— Cíntia! Onde você está? Cíntiaaaaa!
Ela apareceu segundos depois no alto da escada.
— O que foi? O que aconteceu? Acabei de colocar o Davi pra dormir.
Ele vai acordar com essa gritaria toda!
— Precisamos ter uma conversa séria. — falei.
Ela desceu as escadas ansiosa e quando se deu conta da presença de
Mariana, seu semblante mudou.
— Mariana? — Cíntia falou, surpresa.
— Oi, Cíntia! Tudo bem? — Mari falou calmamente.
Em vez de responder ao cumprimento ela olhou para mim e
perguntou:
— O que ela faz aqui?
Me aproximei de Mariana e entrelaçamos os dedos de nossas mãos.
— Mariana agora é minha noiva. — revelei.
Ela arregalou os olhos, mudando totalmente de postura.
— Noiva? Como assim? — perguntou, indignada. A raiva
começando a ficar evidente em sua voz. Virou-se para Mariana quase a
fulminando com os olhos — Eu te disse que estou grávida! Você prometeu
que se afastaria... Eu confiei na sua palavra!
— Você só me contou um monte de mentiras! — Mariana retrucou.
— Não te disse nenhuma mentira, sua vadia! — esbravejou,
avançando sobre Mariana.
— Ei, ei! — gritei e a detive, segurando-a pelos ombros.
Ela começou a se debater. Eu a sacudi, obrigando-a olhar para mim.
— Quer dizer então, que você não disse que eu te pedi para abortar?
— perguntei.
Ela fez uma careta de choro.
— Responde! — insisti.
— É mentira dessa loira azeda! Eu não falei nada disso! Ela é uma
mentirosa!
Mariana caiu o queixo e expressou sua indignação com um:
— O queeê?
Ela odiava ser chamada de mentirosa. Agora ela sabia o quanto
Cíntia era falsa. Mariana se irritou:
— Mentirosa é você! Você me disse que o Leonardo rejeitou o
próprio filho e te pediu pra abortar, por minha culpa! Fez a maior cena,
digna de Oscar! Agora vem me dizer que eu sou a mentirosa? — ela olhou
para Cintia de corpo inteiro e com o nariz franzido, completou: — E quer
saber? Estou te achando muito magra pra quem está com quase quatro
meses de gestação.
— O que está insinuando, sua oxigenada? — Cíntia esbravejou e
mais uma vez partiu para cima de Mariana, querendo arranhá-la. Se eu não
a estivesse segurando, suas unhas teriam feito um estrago, pois o meu
braço, mesmo protegido pela camisa, já estava todo arranhado. — Até o
exame eu fiz sua ladra de homem dos outros!
Era só o que faltava! Cíntia realmente achava que Mariana estava me
tirando dela! E depois de dizer isso, ela caiu num choro exagerado, muito
agitada. Eu nunca a tinha visto assim tão desequilibrada. Parou de se
debater e foi desfalecendo em meus braços. Eu entendi o que ela estava
querendo fazer. Queria virar o jogo e se passar por vítima e minimizar o que
tinha feito.
— Por que, meu Deus? Por quê? Eu só quero dar o melhor para o
meu filho! — Se lamentou.
Mari semicerrou os olhos e meneou a cabeça, me olhando com
indignação, chegando a mesma conclusão que eu. Revirei os olhos e
conduzi Cíntia até a poltrona. Ela ficou olhando para a lareira em sua frente,
com olhos bem abertos, como se houvesse fogo ali, mas não havia. Absorta
em seus pensamentos, seguiu se lamentando:
— Eu não acredito que isso esteja acontecendo. Tudo por nada!
Tempo perdido! Primeiro aquela sonsa... Agora essa azeda!
Ouvi aquelas palavras meio confuso. Sonsa? De quem ela estava
falando? Ela parecia estar entrando em um transe. Gargalhou e chorou ao
mesmo tempo.
— Eu fiz tudo do jeito certo! — risos — Tudo que Madame me
ensinou! — choro, seguido de um gemido de lamento — Era pra eu ser
dona de tudo isso! — olhou em volta, fazendo uma careta — Mas nada dá
certo pra mim! Sou uma desgraçada!
Olhei para Mariana e ela parecia estar com medo. Eu também estava.
Cíntia não estava normal. Ela seguia falando um monte de coisas
desconexas, até que se virou para mim e me olhou nos olhos. Seu olhar
gélido, era uma mistura de frustração e raiva.
— Por que você não pode me amar? — perguntou em tom de
desespero — Por quê? Depois de tudo o que eu fiz por você! Eu cuido dos
seus filhos como se fossem meus... Me dedico a esses pestinhas remelentos
24 horas por dia... E tudo o que você me dá em troca é sua indiferença!
No momento em que disse isso, Davi chorou. Mariana olhou para
mim e falou:
— Eu vou por ele.
Assenti com a cabeça. Ela se lembrou que não conhecia a casa, pois
nunca tinha ido ao andar de cima. Mesmo quando estávamos juntos, nossas
noites íntimas sempre foram em sua casa ou em outros lugares.
— Onde fica o quarto dele? — ela perguntou.
— O segundo à direita. — expliquei.
Enquanto ela seguia para a escada, voltei-me para Cíntia. Estreitei o
olhar sobre ela, repassando em minha mente cada palavra que ela havia
dito. De todas as coisas que ela havia falado, uma martelava em minha
cabeça:
— Quem é a “sonsa”? — perguntei — De quem você estava falando?
Ela me encarou com os lábios pressionados e crispados e a respiração
pesada. Não disse nada. Apenas me encarava com aqueles olhos gelados.
— Me responda! — gritei.
Ela foi sacudida por um risinho maléfico.
— Por que pergunta se já sabe? — respondeu com outra pergunta.
Senti um frio pela espinha e esfreguei as mãos no rosto tentando me
acalmar. Aquela maldita estava se referindo à Daniela. Como assim? O que
ela queria dizer com aquilo? Um estranho pensamento tomou conta de mim:
E se aquela mulher tivesse feito alguma coisa que tenha provocado a morte
da minha esposa? Não, não... Isso não seria possível!
Ou seria?
— Eu quero que você saia agora mesmo dessa casa! — ordenei.
Ela se levantou diante das minhas palavras e me desafiou:
— Eu não vou a lugar nenhum! Eu lutei muito para estar aqui e não
vou sair! Madame disse que você está em meu destino!
Foi então que tudo se esclareceu, bem ali, diante dos meus olhos.
Cíntia já frequentava nossa casa esporadicamente, antes da morte de minha
esposa. Meu Deus! Pensar nisso me trouxe um aperto no peito, meu rosto se
esquentou e de uma coisa eu tive certeza, Cíntia tinha inveja de Daniela, de
nossa felicidade.
Ficou tudo muito claro para mim... Ela queria a vida dela, os filhos
dela, o marido dela... Meu Deus, como permiti que isso acontecesse? Por
isso sempre senti uma vibração estranha vindo dela. Será que uma simples
inveja teria o poder de desgraçar a vida de uma família desse jeito, ou havia
algo mais?
— Não quero saber de porra de Madame nenhuma! Quero que saia
agora mesmo dessa casa! — ordenei com firmeza.
— Já disse que não vou sair! — ela relutou.
Fechei a mão em seu braço e a conduzi para o seu quarto.
— Vai sair, sim. — gritei —Nem que eu tenha que te arrastar pelos
cabelos!
Ela mudou de postura e implorou:
— Mas eu não tenho para onde ir!
— Se vira! Vai pra casa dessa tal madame dos infernos!
Ela começou a chorar e colocou a mão na barriga.
— Mas Leo... E o que vai ser de mim, do meu filho?
A encarei sem me abalar. Precisava ser firme ou ela me levaria na
conversa, como sempre.
— Ah, pode ficar tranquila, porque eu faço questão de acompanhar
toda essa gravidez e não vai faltar nada para o meu filho. — falei — Mas
agora coloque só o necessário numa bolsa e saia daqui. Depois eu mando o
resto de suas coisas.
A contragosto ela obedeceu. Nesse meio tempo Claudinei havia
chegado e eu o pedi para levar Cíntia para a pensão da Estela. Ela ficaria lá
até tudo se resolver.
CAPÍTULO 38

Leonardo Moretti

Depois de todo estresse com Cíntia, subi para ver como Mariana
estava se saindo com Davi. Ele não estava mais chorando, mas certamente
estava com fome. Encontrei os dois na cama. Ele estava sentadinho em
volta dos seus brinquedos e Mariana tentando animá-lo falando palavrinhas
doces. Assim que ele me viu, esticou os bracinhos para que o pegasse.
— Papá, papai!
Me sentei e ele veio me escalando, deitando a cabecinha em meu
ombro. O beijei e fiz um carinho nele. Mari nos olhava com ternura.
— Eu troquei a frauda dele, mas estou achando ele um pouco quente.
— ela falou.
Conferi e achei que realmente estava.
— Ele está um pouco gripado e meio enjoadinho por causa dos
dentes. — falei.
— Está nascendo os dentes só agora?
— É... os dentinhos dele demoraram a sair e agora vieram tudo de
uma vez. — expliquei.
— Tadinho!
— Aí ele fica roendo tudo o que vê pela frente. A gengiva fica
irritada e ele nem consegue comer direito. — Davi ergueu a cabeça e me
olhou, sorrindo. Sabia que eu estava falando dele. Olhei para ele de um jeito
divertido e perguntei: — Não é, papai? Não é verdade que você tá
mordendo tudo?
— Tudo! — ele confirmou e gargalhou.
Nós três sorrimos. Davi estava ficando muito apegado a mim.
Dormia comigo quase todas as noites.
— Ele se parece muito com você. — Mari observou.
— Todo mundo diz isso. Meu pai diz que parece voltar no tempo
quando está com ele no colo.
— Vai se transformar num homem lindo, então! — ela brincou.
— Olha só! — mostrei admiração — Você me acha bonito? —
perguntei.
— Bonito não, lindo!
Sorri encabulado, louco para beijá-la. Deslizei minha mão e segurei
na sua. Ela me prendeu em seu olhar e ficamos assim nos olhando por um
longo tempo. Não sei no que ela estava pensando, mas eu já imaginava
nossa vida juntos. Nós cinco. Eu tinha certeza de que Mariana era a mulher
certa para mim e de novo voltei a pensar que ela trazia parte da Daniela
consigo, só precisava de uma confirmação. Porém, isso não era tão
relevante assim. Mariana era outra pessoa, outra personalidade, outro amor.
Tão intenso e verdadeiro quanto o que sentia pela mãe dos meus filhos, mas
era outra experiência.
Mariana acariciou os cabelos de Davi, que de novo repousava a
cabeça em meu ombro, entretido por sua chupeta e resmungando alguma
coisa.
— Ele deve estar com fome. — ela falou.
— Sim, eu vou fazer a mamadeira dele. Ele tem que tomar o remédio
também.
— Tetê! — Davi exclamou.
— Isso. Papai vai fazer o seu tetê e você vai ficar aqui com a Mari,
ok? — disse passando ele para ela.
— Mamá! — ele pronunciou.
Mari me encarou de boca aberta. Eu ri da situação.
— Nossa, por um instante eu pensei que ele fosse me chamar de
mamãe! — ela falou admirada.
— Pareceu mesmo! — confirmei.
— Mamãe! — dessa vez ele falou bem claro.
Ela me olhou confusa.
— Leo... O que eu faço?
Eu ergui os ombros e falei:
— Se você se sentir confortável com isso, acho ótimo ele te chamar
de mãe. Se casando comigo, é o que você será para ele. Ele não terá outra.
— Oh, meu Deus! — ela olhou para Davi, emocionada — Eu me
sinto tão bem com ele, desde a primeira vez que o vi... Como se ele fosse
mesmo meu... Não sei explicar... — Ela suspirou e olhou para mim — Está
tudo acontecendo tão rápido... Tão inesperado! Será que não estamos nos
precipitando?
Ergui as sobrancelhas concordando em parte, pois estava gostando
muito do rumo que as coisas estavam tomando. Só o fato de Cíntia ter saído
da casa, o ambiente estava mais leve e eu tinha certeza de que Matteo e
Sarah iam ficar muito felizes ao saber das novidades. Propus:
— Vamos fazer assim. Como diz aquela música do Grupo Revelação
— cantarolei: — Deixa acontecer naturalmente... Aos poucos tudo vai se
ajeitando.
Mariana sorriu e concordou comigo. Descemos para a cozinha e
enquanto conversávamos, eu preparei a mamadeira do Davi e lhe dei um
remedinho. O deitei no seu cantinho favorito do sofá, onde se ajeitou para
receber o seu leite, todo satisfeito. Ele já segurava a mamadeira sozinho,
mas fiquei perto dele para fiscalizar. Mari se encarregou de preparar alguma
coisa para comermos, pois era dia de folga da Jandira, mas ela havia
deixado algumas coisas semiprontas. Aproveitei para ligar para Denise.
Ela me avisou que já estavam em casa e estava tudo bem com os
meninos. Pedi para falar com eles e me contaram rapidamente o que
fizeram de interessante. Pedi para que se comportassem e obedecessem a tia
deles. Eles pediram a bênção e nos despedimos.
Davi ficou um tempo vendo TV e eu fiquei monitorando sua febre.
Estava baixa e logo passou. Dei um banho nele com a ajuda de Mari e logo
ele dormiu. Eram quase 20h. Descemos para a cozinha novamente e fomos
comer. Ela havia preparado uma salada e fritado uns bifes. Comemos em
clima ameno, mas resolvi explicar para ela minha situação com Cíntia e
esclarecer tudo de vez.
— Cíntia me contou que estava grávida no dia em que eu e você nos
conhecemos. Aquele dia do acidente. — falei.
— Sério?
— É... Não era para ter acontecido... Mas eu me descuidei e ela
acabou engravidando. Mas depois disso, nada aconteceu entre nós.
— Por isso você estava tão bravo naquele dia?
Disse sim com a cabeça.
— Estava uma pilha de nervos. Eu estava sendo um canalha, porque
claramente nunca gostei dela e, de certa forma a iludi. Mas nunca prometi
nada, ela sabia as condições que impus ao saber da gravidez. Não vou fugir
da minha responsabilidade, só quero que saiba disso. Vou acompanhar toda
a gestação e vou ser o melhor pai que puder para essa criança.
Mariana sorriu e acariciou minha mão.
— Não podia esperar outra coisa de você.
Levei sua mão até meus lábios e a beijei.
— E o que você decidiu? — ela perguntou, enquanto cortava um
pedaço da carne — Pra onde ela foi?
— Foi para a pensão da Estela. Depois eu vejo como vai ser.
— Espero que tudo fique bem.
— Eu também. — olhei para ela com um olhar apaixonado e falei: —
Mas agora quero falar sobre nós...
Ela mordeu o lábio inferior, repousando parcialmente o queixo em
seu ombro.
— Sobre o que quer falar? — ela perguntou sussurrando.
— Sobre o quanto senti falta dos seus beijos. — falei em mesmo tom,
acariciando seus cabelos.
Ela repousou a cabeça em minha mão e suspirou.
— Só dos beijos?
— De tudo... Tudo! — fiquei em silêncio por um instante, mas em
seguida confessei: — Eu te amo, Mariana!
Ela suspirou e também não demorou a dizer:
— Também te amo, Leonardo! — meneou a cabeça, girando os
olhos, tentando controlar as lágrimas e me olhou confusa — Isso é tão
louco, né? É tudo tão recente... Como podemos nos amar?
— O Amor é assim mesmo, quando vem, não explica nada, só invade
e toma conta de tudo. — falei.
— Mas nós nos conhecemos a tão pouco tempo...
— Ah, mas existe até... Amor à primeira vista. — expliquei.
— Será que foi o que aconteceu com a gente? Amor à primeira vista?
Uma lágrima escorreu por um dos seus olhos e eu a enxuguei com o
polegar.
— Acho que não... — eu disse, sem tirar meus olhos dos seus. —
Acho que nos conhecemos há muito tempo!
Ela me olhou com curiosidade.
— O que quer dizer com isso? — perguntou.
Encolhi os ombros dando a entender que não fazia ideia.
— Não me venha dizer que acredita nessa coisa de vidas passadas!
Ergui as sobrancelhas em interrogação.
— Não sei... Talvez... Por que não?
Ela franziu o nariz, gesto que eu amava quando fazia.
— Podemos fazer de conta que sim. — sugeriu.
— Gostei. O fato é que eu me sinto assim... Que a gente já se
conhecia. Quero crer que é assim. O tempo, Mari... O tempo é só um
detalhe.
Ela sorriu, emocionada.
— Eu também sinto a mesma coisa... Aliás... — ela hesitou.
— Aliás, o quê? — perguntei com expectativa.
Ela olhou em volta.
— Eu sinto que pertenço a esse lugar... Não sei por que... — voltou a
olhar para mim — Sinto que pertenço a você!
Foi minha vez de me emocionar.
— E pertence mesmo. — falei, possessivo, mas de um jeito doce —
Agora vem aqui!
Puxei-a para meu colo e nos beijamos. Depois fomos para o sofá da
sala e ficamos namorando, nos curtindo. Passamos um bom tempo
conversando e trocando carícias e rindo de bobagens, até que a tomei pelo
braço e fomos para o quarto. Era a primeira vez que entrava ali.
O que se seguiu depois me marcou para sempre.
Quando Mariana passou pela porta do quarto, ela empacou.
— O que houve? — perguntei, preocupado.
Ela não me respondeu. Olhou em volta e começou a chorar.
Caminhou devagar até a cama e sentou-se à beira dela. Eu a observava. Se
estivesse certo em minha teoria, ela estava tendo alguma lembrança.
Meu Deus, seria mesmo isso?
— O que foi, amor? — perguntei novamente.
— Eu sonho com esse quarto... — ela revelou — Exatamente como
ele é... — me olhou, confusa. — Como isso é possível? — perguntou.
Respirei fundo e me sentei ao lado dela. Ficamos em silêncio por um
tempo, enquanto eu decidia se lhe contava sobre minhas suspeitas.
— Talvez haja uma explicação. — falei.
— Mas eu... Nunca estive aqui antes...
Limpei a garganta, olhei nos seus olhos confusos, tomei coragem e
falei:
— Olha, eu preciso te contar uma coisa. — espalmei carinhosamente
sua mão e procurei as palavras certas. Ela estreitou os olhos sobre mim
esperando com ansiedade. — Eu não tenho certeza, mas suspeito que você
tenha recebido o coração da Daniela.
Ela me encarou, tentando processar as palavras.
— O quê? — perguntou depois de um tempo. — Do que está
falando?
— Eu doei o coração dela. Ela optou por ser doadora quando tirou
carteira de motorista... Eu não queria, mas o doutor acabou me
convencendo e a ideia de ter um pedacinho dela vivo ainda me comoveu.
Mariana levou a mão ao peito e franziu a testa.
— Está me dizendo que eu tenho o coração da sua falecida esposa e
você sabia disso?
— Não. Eu estou dizendo que doei o coração dela e SUSPEITO que
você esteja com ele.
— Mas... Por que acha isso?
— Por quê? Mari, pensa direitinho! O que te trouxe até aqui?
Ela ficou me encarando e percebi que havia entendido onde eu queria
chegar.
— Esse coração te trouxe até aqui. — continuei — Você me contou
dos sonhos, das sensações... Agora mesmo acabou de dizer que se lembra
desse quarto.
Ela desviou o olhar e se fixou em um ponto neutro.
— Mas... Será que isso pode mesmo ser verdade? — perguntou.
— Eu acredito que sim. É loucura, mas é a única explicação.
Ela meneou a cabeça desanimada.
— Se tivéssemos como provar, mas é tudo tão sigiloso! — falou.
— Pois é... É impossível termos essa informação. — concordei.
De repente me lembrei de um detalhe.
— Espera! Como não pensei nisso antes? — estalei os dedos —
Temos como provar!
— Temos?
— Sim. A carta.
— A carta? Que carta?
— Você escreveu uma carta para a família do seu doador, não
escreveu? — perguntei.
Mariana pensou um pouco e se lembrou:
— Sim, eu escrevi sim. — ela disse balançando a cabeça
positivamente. — Eu escrevi uma carta de próprio punho.
— Então... Eu a tenho bem guardada. — expliquei.
Fui até o quarto das coisas de Daniela e busquei por aquela carta com
certo desespero. Era hora da verdade. Com ela em mãos, voltei ao quarto.
Mariana me esperava ansiosa. Com a respiração acelerada lhe entreguei o
papel. Assim que ela colocou os olhos na carta, levou a mão à boca e
começou a chorar.
— Oh, meu Deus! Oh, meu Deus! — exclamou, um pouco trêmula.
— Essa foi a carta que você escreveu? — perguntei para confirmar.
Sem conseguir dizer nada, ela só balançou a cabeça dizendo sim.
Meu coração afundou no peito.
— Oh, meu Deus! — exclamei também.
Ela fungou e falou:
— Eu tenho uma cópia digitalizada em meu computador. E também
tirei uma foto dela no dia que a escrevi.
Foi até sua bolsa e pegou o celular. Procurou por um tempo e, assim
que encontrou, veio me mostrando.
— Aqui está. — disse, se sentando ao meu lado novamente.
Peguei o celular de sua mão e conferi. Era a mesma carta.
— Sou eu a “Agraciada”! — ela falou.
Fiquei por um tempo comparando as duas cartas, palavra por palavra,
totalmente extasiado. Levantei-me e fiquei andando pelo quarto, inquieto,
tentando entender aquilo. Comecei a rir de alegria, euforia, alívio. Nem sei
como explicar o que senti.
— Como isso é possível? — Mari perguntou, também tentando
entender.
— Isso é mesmo incrível! — falei, tão afetado quanto ela.
— Será que é por isso que também tenho aquele sonho? — ela
perguntou, pensativa.
— Que sonho?
— Eu sempre sonho com uma coisa ruim que acontece comigo. Não
sei bem o que é... Mas eu estou ferida e você está comigo nos braços,
gritando, desesperado, me pedindo pra acordar, dizendo: “Fica comigo,
Amore mio!”.
— Ah, meu Deus! — exclamei — Isso é surreal!
Mariana me olhou em busca de uma explicação. Sentei-me ao seu
lado, suspirei e falei:
— Esse foi o momento da morte dela e... Incrivelmente você tem
essa memória!
As lágrimas inundaram meu rosto. Nem sabia o que pensar diante
daquilo. Era um milagre.
— Mas isso não tem lógica. — ela disse, ainda muito intrigada — Eu
conversei com o médico, ele me garantiu que não há possibilidade alguma
disso acontecer.
— Tem coisas que fogem à explicação da ciência, Mari. Talvez você
tenha alguma sensibilidade. Tem pessoas que sentem as vibrações de outras
segurando seus objetos, coisas que elas usavam. Imagina se tivessem acesso
a um órgão tão importante quanto o coração!
Ela pensou por um instante.
— Verdade. — concordou — E eu não sei qual a explicação, só sei
que sinto todas essas coisas.
A carga emocional estava grande. Parecia até que Daniela estava
testemunhando aquilo e aprovando a nossa relação. Nos abraçamos e
choramos. De uma forma quase sobrenatural, o coração da Daniela deu um
jeito de voltar para mim, para sua família.
CAPÍTULO 39

Mariana Barros

Eu não conseguiria expressar em palavras o que estava sentindo


naquele momento. Depois daquela revelação, muita coisa se esclareceu para
mim. Parecia ter achado a explicação para todas aquelas sensações e
perturbações que me acompanhavam ao longo daqueles dias, desde que
havia sido transplantada. As confusões que habitavam minha mente foram
se dissipando à medida em que me dava conta do que realmente havia
acontecido.
Ainda estava trêmula diante daquela carta. A carta que eu tinha
escrito, na certeza de que nunca saberia como era o rosto da pessoa que
salvou a minha vida, me doando um órgão tão importante. Me lembro que
tentava imaginar como ela era, como era sua vida, sua família. Imaginava
que deviam estar sofrendo muito pela perda.
Desejei conhecê-los para agradecer pessoalmente. Desejei tanto, que
seu coração me guiou até eles. E eu, misteriosamente, ouvi a sua voz. A voz
do coração que batia em meu peito. Era surreal.
Ainda abraçada a Leonardo, tentava repassar toda minha jornada até
chegar ali, então me dei conta de uma coisa:
— Leo... — falei com voz embargada.
— Sim.
Me afastei do abraço para olhar em seus olhos. Ele me encarou com
um leve sorriso.
— Será que não estamos confundindo as coisas? — perguntei.
— Confundindo o quê?
— Eu te amo e não tenho dúvidas do que eu sinto, mas será que... —
levei a mão ao peito — Será que não é a Daniela? A influência do coração
dela? Será que eu, Mariana, sentiria o mesmo? E pior, será que você não
está refletindo ela em mim e...
— Ei, — ele me cortou — Claro que não...
— Mas como explicar todas essas coisas que venho sentindo? Eu
nem me reconheço mais...
— Shhh! — ele murmurou e repousou o dedo indicador sobre os
meus lábios carinhosamente. — Nada de pânico! Primeiro de tudo, quem
está diante de mim agora é Mariana Barros, a paulistana que mexeu comigo
desde a primeira vez em que coloquei os olhos nela. Foi por você que me
apaixonei. Segundo, esse coração agora é seu, não é mais da Daniela. Ele
está conectado a cada célula do seu corpo, é você quem tem o domínio
sobre ele.
— Mas ele me trouxe até aqui... Eu tenho memórias dela. Antes do
transplante eu era outra pessoa. Nunca quis me casar, muito menos ter
filhos. Agora quando vejo o Matteo, a Sara e o Davi, não consigo me ver
sem eles. Eu não entendo... Isso é forte demais!
— Sim, eu sei. Talvez tudo tenha acontecido de forma sobrenatural
ou não, mas tudo o que eu sei é que esse coração curou não só a você.
Curou nós dois.
— Nós dois?
— Sim. Curou você, não só do seu problema cardíaco, mas do
emocional, porque você conseguiu se apaixonar pela primeira vez. Me
curou, porque eu havia me fechado na minha dor e... Agora estamos aqui,
juntando nossos cacos e prontos para vivermos nosso amor, Mari. É uma
segunda chance. Não podemos desperdiçá-la.
Eu sorri reconhecendo que ele estava certo.
— Tem razão. — concordei.
Nos beijamos, ainda muito emocionados e agora, conscientes do que
representávamos um para o outro, fizemos amor.
◆ ◆ ◆

Diego Cardoso
Não podia acreditar que Mariana e Leonardo tinham reatado. E pior,
não conseguia entender por que ela estava tão envolvida com aquele caipira
daquele jeito. O jeito que ela olhava para ele, toda mole, deslumbrada.
Merda! Estava mesmo apaixonada, com certeza. Apareceu toda feliz,
agarradinha nele e nos pirralhos, nos dias restantes da feira.
Logo ela que se orgulhava de que nunca se apegava a ninguém, foi se
apaixonar logo por um cara tosco e ridículo como aquele tal de Leonardo
Moretti. Ela nunca olhou para mim daquele jeito... E eu me dediquei tanto a
ela, fiz tudo por aquela mulher, lambia o chão que ela pisava.
Vacilei uma vez, mas foi porque estava louco de tesão. E eu queria
estar com ela, mas como ela estava impossibilitada, Suzana foi um escape.
Ela se ofereceu e eu não resisti. Mas fodi aquela japinha pensando em
Mariana. Era com ela que eu queria estar. Pedi perdão várias vezes, mas ela
nunca me perdoou. Pelo contrário, usou isso para me tirar de sua vida e me
afastar de vez. Coisa que ela queria fazer há muito tempo.
Ela só usou a minha “traição” como desculpa. Maldição! Eu fiz tudo
por aquela mulher. A coloquei num pedestal, aceitei todas as condições
impostas por ela. Fiz o que pude para conquistá-la, mas nunca era o
suficiente. Nunca consegui o afeto além da cama, do sexo. Não, para mim
só migalhas de atenção! E agora estava lá, se entregando de corpo e alma
para o primeiro idiota que apareceu na sua frente.
— Maldito italiano caipira! — gritei, esmurrando uma das paredes da
kitnet que havia acabado de alugar. — Eu não acredito que esteja fazendo
isso comigo, Mariana!
Sentei-me exausto, remoendo minha raiva. Liguei o som e coloquei
minha música favorita do momento: Tem que ser você — Victor e Leo. Era
uma música antiga, mas expressava o que eu sentia. Cantei junto, enquanto
brincava com o anel em meu dedo. O anel do meu compromisso com
Mariana. Anel que eu nunca tiraria do dedo.
Que hoje eu te amo
Não vou negar
Que outra pessoa
Não servirá

Tem que ser você


Sem porquê, sem pra quê
Tem que ser você
Sem ser necessário entender.

Fiquei um tempo ali tentando pensar numa forma de conquistar


Mariana de vez, até que ouvi o som da campainha.
— Quem será?
Apesar de ter feito a pergunta, meu coração acelerou com a
possibilidade de ser ela. Fui até a porta com um sorriso nos lábios, um
pouco ansioso. Ao abrir, meu sorriso se desfez. Deparei-me com Cíntia.
Sabia o seu nome, porque já a tinha visto na pensão e vi Estela a chamando
assim. Não sabia muito sobre ela, mas o suficiente. Ela trabalhava na casa
do Leonardo Moretti e estava esperando um filho dele. Olhei para ela por
um instante com uma ruga na testa.
— Pois não? — perguntei me inclinando para analisar a rua ao nosso
redor — Posso ajudar em alguma coisa?
— Boa tarde. — ela falou me encarando de um jeito estranho. —
Você é o Diego, não é mesmo?
— Sim, por quê?
A princípio achei que ela estivesse ali para me dar algum recado.
Olhei-a de corpo inteiro. Era uma morena magra, de cabelos crespos e
longos. Usava calça jeans, blusa estampada em cores quentes e brincos de
argolas. Até que era bonita.
— O que quer comigo?
— Posso entrar? — ela pediu.
Olhei para ela desconfiado e uni as sobrancelhas em uma expressão
de dúvida.
— É um assunto do seu interesse. — ela assegurou — É sobre a
Mariana.
Ela me olhava em expectativa. Eu pensei por um instante e acenei
positivamente com a cabeça.
— Tudo bem. Pode entrar. — falei, apontando com a cabeça para
dentro.
Ela olhou ao redor e me seguiu. Saí catando algumas coisas que
estavam espalhadas pela casa e me desculpando.
— Não repare a bagunça, ainda não tive tempo de arrumar tudo,
acabei de me mudar.
Desocupei o sofá e o apontei para que ela se sentasse.
— Tudo bem, não vou me demorar. — disse, se acomodando à
beirada dele.
Cíntia estava visivelmente nervosa, apertando as mãos uma na outra.
— O que quer me dizer? — perguntei, sentando-me numa cadeira de
frente para ela.
Ela me encarou meio constrangida e falou:
— Preciso de sua ajuda.
Franzi a testa tentando imaginar que tipo de ajuda ela podia querer de
mim. Ela continuou:
— Sei que você gosta da Mariana e posso ajudá-lo.
Sacudi a cabeça, confuso.
— Espera aí, você quer minha ajuda ou me ajudar? — perguntei.
— Na verdade, podemos nos ajudar.
— Explique melhor. — pedi, me mostrando mais interessado.
Ela repousou as mãos nos joelhos e falou:
— Eu quero o Leonardo pra mim, assim como você quer a tal da
Mariana. — ela fez uma pausa e suspirou, com os lábios franzidos, como se
tentasse controlar a raiva. — Odeio aquela mulher! Ele já estava comendo
na minha mão... Estava tudo dando certo, até aquela biscate oxigenada
aparecer.
— Ei, olha como fala! — a repreendi.
Ela se conteve.
— Desculpa! — falou, para depois continuar: — O negócio é o
seguinte: Sua ex-namorada bonitona está me atrapalhando. O Leonardo está
fascinado por ela!
— Eu o entendo.
Cíntia fez uma careta e revirou os olhos.
— Eu quero que me ajude a tirar ela do meu caminho! O que acha?
Acenei positivamente com a cabeça.
— Eu estou tão interessado nisso quanto você.
— Então, eu fui até Mariana e contei que estou grávida do Leonardo.
Ela ficou muito abalada e prometeu se afastar.
— Estou sabendo.
— Eles até brigaram, mas agora estão juntos novamente.
— Também estou sabendo.
— Precisamos separar os dois de vez. Eu queria segurá-lo pelo bebê,
mas não deu certo.
— E então? Não estou entendendo que tipo de ajuda você quer. Ele
não quer assumir a criança, é isso?
— Não, ele disse que vai dar toda assistência, mas não quer
compromisso. Eu tentei fazer ele mudar de ideia, dizendo que não queria
ser mãe solteira... — eu acenava positivamente acompanhando o que ela
dizia — Até ameacei abortar se ele não se casasse comigo.
— E o que ele falou?
— Disse que não vai aceitar chantagens e que não tem intenção
nenhuma de se casar com ninguém... Exigiu o exame pra ter certeza da
gravidez.
— E você fez o exame?
— Sim, eu dei o exame a ele.
— Ao menos isso! A Mari também é aversa a casamentos. Se eles
estão mesmo juntos. Casar eles não vão.
— Mas ele disse que agora ela é noiva dele.
Meneei a cabeça e fiz uma careta.
— Que nada! Ela não vai se casar com ele. — garanti.
Cíntia sorriu diante dessa possibilidade.
— Se precisar, procure ela de novo. — falei incisivo — Chore, faça
drama. Quando ela te vir com o barrigão, sabendo que tem uma criança na
jogada, ela não vai querer atrapalhar.
Ela respirou fundo e confessou:
— O problema é que... eu não estou grávida.
Olhei para ela sem acreditar.
— O quê?
— É... Eu tenho uma amiga que trabalha no laboratório e ela me
ajudou a forjar um exame falso.
Meneei a cabeça e levei as mãos ao rosto.
— Essa não! Que burrice, garota! Como você achou que sustentaria
essa mentira?
— Eu estava pensando em fingir um aborto espontâneo, depois de
casada. Mas se eu fizer isso agora, ele vai me descartar de vez! Não tendo
nenhum vínculo comigo, Leonardo vai direto para os braços da sua
queridinha de vez. Por isso estou aqui para pedir a sua ajuda.
— Que merda! — exclamei.
— Eu pensei em continuar fingindo estar grávida, mas ele disse que
quer participar de tudo, que quer ver cada ultrassom, quer ir comigo nas
consultas.
— Nossa, até que o sujeito é dedicado! — admirei.
— Não é isso. Ele quer participar, porque está desconfiado. Esse é o
meu problema.
— Ele é esperto!
— Pois é, eu até tentei seduzir ele por esses dias, aproveitando que eu
estou no meu dia fértil pra tentar a sorte, porque se eu engravidasse ao
menos agora, teria um feto dentro da minha barriga pra mostrar pra ele no
ultrassom mesmo que não tivesse a idade compatível. Daria um jeito de
esconder o tempo de gestação, mas eu não consegui ter mais nada com ele.
Ele está enfeitiçado por aquela mulher... Há três dias me expulsou de casa.
— É, infelizmente você está em desvantagem.
— Se eu tivesse conseguido ficar ao menos uma semana a mais!
Madame disse que eu ficaria grávida nessa lua!
Olhei para ela sem entender que papo era aquele.
— Madame? — perguntei.
— Minha mentora. Ela me disse: Do rebento nascerá o amor! Eu
tenho certeza que Leonardo me amaria se eu desse um filho a ele.
Franzi a testa sem entender. Que conversa esquisita! Pensei por um
instante e falei:
— Espera aí. Você está me dizendo que se engravidasse agora, ainda
poderia tentar usar a criança, é isso?
— Sim, mesmo sendo uma gestação atrasada eu teria o que mostrar,
pra conseguir ganhar tempo e fazer ele se casar comigo. Enquanto isso
Você se aproximaria da Mariana e enchia a cabeça dela, pra fazer ela voltar
pra você. Ela ficou muito mexida quando eu disse a ela que estou grávida
do Leonardo. Eles podem brigar de novo se dermos um empurrãozinho.
— É … conhecendo a Mari como conheço, ela vai querer pular fora
dessa confusão se as coisas ficarem sérias.
— Precisamos achar uma solução urgente.
Olhei para ela e tive uma ideia.
— Então, você está no seu período fértil?
Ela acenou com a cabeça positivamente dizendo sim.
— Tem alguma ideia de como me ajudar? — perguntou.
Ergui as sobrancelhas e sorri de lado.
— Acho que tenho sim. — respondi.
— O que está pensando em fazer? — ela me perguntou.
Levantei-me e estendi a mão para ela.
— Vem! — ordenei, decidido — Vamos resolver isso!
— Resolver o quê? — mesmo com uma expressão curiosa, ela
segurou a minha mão.
— Se quer a minha ajuda, eu vou te ajudar. No que depender de mim,
essa semana você estará grávida.
Cíntia sorriu, finalmente entendendo a minha intenção. Nos olhamos
com cumplicidade e seguimos para o meu quarto. Ficamos lá por uma meia
hora. Sim, fiz o que tinha que ser feito para ela engravidar.
— Como vai ser agora? — ela perguntou, enquanto se vestia.
— Vamos fazer isso durante toda semana para garantir. E se você
engravidar, vamos torcer pra criança nascer de sete meses, então, o plano
será perfeito.
— Minha mentora pode me ajudar a acelerar a gravidez. Existe uns
rituais.
— Então a procure.
Ela assentiu e sorriu.
— Mas tome cuidado para não ser vista vindo pra cá.
— Não se preocupe, eu dou meu jeito. Estou na pensão.
— Beleza. Estou montando um estúdio de fotografia e posso te
contratar como assistente. Essa será desculpa perfeita pra você aparecer
aqui todos os dias.
— Ok. Já tenho um emprego garantido, então.
Ela se levantou ajeitando a roupa, me assistindo vestir a cueca.
Mordeu o lábio inferior e falou:
— Obrigada pela ajuda.
— Foi um p-r-a-z-e-r. — falei compassadamente.
— Eu que o diga! — ela retrucou no mesmo tom.
Pisquei com um dos olhos e ela fez um biquinho.
— Vamos, eu te levo até a porta. — falei.
Ela pegou sua bolsa e seguiu na minha frente.
— Até amanhã, garanhão! — disse ao sair.
Eu sorri do “garanhão”. Estava mole e relaxado depois de me aliviar.
Até que ela era gostosinha e sabia trepar. Aquilo era uma loucura, mas até
que Cíntia seria uma boa distração, enquanto Mariana não voltasse para
mim.
CAPÍTULO 40

Leonardo Moretti

Alguns dias se passaram. Pedi a Mariana para vir morar comigo, mas
ela preferiu esperar mais um pouco até os meninos se acostumarem com a
ideia do pai ter uma nova mulher. Eles ficaram radiantes quando souberam
que estávamos namorando, pois gostavam muito dela e eu tinha certeza de
que ela também gostava muito deles. Estava muito feliz ao ver a interação
deles, pois era o que eu mais temia diante da possibilidade de começar um
novo relacionamento, que meus filhos não aprovassem.
A notícia de que estávamos noivos se espalhou pela cidade. Muitos
nos parabenizaram, tanto pessoalmente, quanto por mensagens no celular.
Eu estava feliz. Por muito tempo achei que isso não fosse mais possível,
mas estava, estava muito feliz. Sobre Mariana ter recebido o coração de
Daniela, só contei ao meu pai. Ele ficou muito emocionado e teve certeza
de que as crianças estavam em boas mãos.
Tudo estava indo bem, até que numa manhã de terça-feira recebi uma
mensagem de texto da Estela, que dizia:
Sua noiva está te traindo. Aquele tal de Diego está na casa dela
neste exato momento. Passaram a noite juntos em sua casa e pelo que eu
soube, não é a primeira vez. Achei que devia saber.
Depois de ler aquelas palavras o sangue ferveu. Não pensei duas
vezes e abandonei tudo que estava fazendo para ir até a casa de Mariana.
Ainda era bem cedo e a livraria não estava aberta. Ela costumava abri-la por
volta das 9h00. Cheguei observando tudo. Meu coração estava agitado no
peito. Não sabia o que iria encontrar, mas estava me preparando para não
ser precipitado.
O portãozinho estava destrancado e entrei sutilmente. Passei pela
entrada dos fundos, pois a porta da cozinha estava aberta. A adrenalina
agitava meu sangue, mas fui entrando devagar, tentando não fazer barulho.
Estava tudo silencioso. Ao chegar à porta do quarto os vi. Diego estava
deitado só de cuecas, Mariana debruçada sobre o seu peito completamente
nua, coberta parcialmente por um lençol fino.
Entrei pisando leve e fiquei parado, de pé aos pés da cama, os
observando por um tempo, olhando para os dois, estudando... Tentando
entender aquela cena. Depois de um tempo, Diego se mexeu, resmungou e
abriu os olhos, como se sentisse a minha presença. Assustou-se ao me ver e
se levantou com um pulo.
— Que susto, porra! — exclamou, enquanto procurava sua roupa.
— Bom dia, dormiu bem? — falei tranquilamente.
— O que você está fazendo aqui? — perguntou, já terminando de
vestir sua calça.
— Eu que pergunto. O que você está fazendo na casa da minha
noiva?
Ele gargalhou.
— Vai bancar o corno manso? Não é óbvio o que eu estava fazendo
aqui?
Com as mãos repousadas em meus quadris lhe lancei um olhar de
reprovação e meneei a cabeça negativamente, mas não respondi nada.
Passei para o outro lado da cama e fui até Mariana.
— Saia daqui agora! — Diego esbravejou. — Como pode invadir a
nossa privacidade desse jeito?
Respirei fundo tentando me controlar.
— Eu não quero discutir com você, garoto. Estou aqui por causa da
Mariana. Somos noivos eu entro e saio daqui a hora que eu bem entender.
Você que é um intruso.
Ele ergueu os ombros indignado com a minha postura.
— Você não está entendendo o que está acontecendo, não?
Olhei para ele com a testa franzida.
— Está falando dessa ceninha montada por você? — questionei,
girando o dedo indicador ao redor do ambiente.
O fedelho se desconcertou e me encarou meio desnorteado.
— Não tem “ceninha” alguma aqui! — tentou — A Mariana não quer
nada com você ela só estava esperando o momento certo pra terminar com
essa palhaçada.
Eu o ignorei. Olhei para Mariana que, mesmo em meio à nossa
discussão acalorada, seguia presa em seu sono. Sentei-me ao seu lado e a
chamei:
— Mariana, Mariana!
Ela não respondeu. Continuou como se estivesse desmaiada.
Coloquei a mão sobre o seu ombro e a sacudi.
— Mari, acorda!
Ela seguia imóvel. virei-me para o Diego tentando controlar minha
raiva e perguntei:
— O que você deu a ela, se eu irresponsável?
Ele arregalou os olhos e fez pose de vítima.
— Eu? Eu não dei nada para ela, só tomamos umas taças de vinho.
— disse isso e riu, cheio de sarcasmo — A noite foi muito boa, só isso!
Tentei acordar Mariana mais uma vez, mas não tive sucesso. Meneei
a cabeça e estalei a língua e olhei para Diego com muita raiva.
— Nem tenta me enganar com essa historinha de traição, porque eu
sou macaco velho. — falei. — Só quero saber o que você fez com ela.
— Já disse que não fiz nada.
Eu sabia que tudo era uma armação. Assim que recebi a mensagem
de Estela, tentei pensar direito, colocar a cabeça no lugar. Estela era
fofoqueira, mas aquela não era sua forma de passar as coisas. Não me
contentei e acabei ligando para ela depois de quinze minutos de ter lido o
que ela me enviou. Assim que ela atendeu, pedi que ela me explicasse
direito aquela mensagem.
— Mensagem? Que mensagem?
— Você acabou de me enviar uma mensagem.
— Eu? Deve estar havendo algum engano, meu celular estava
carregando. Estou tão atarefada aqui que nem tive tempo para ler as que
recebi. Não te enviei nenhuma mensagem, querido. Mas posso verificar.
— Sim, por favor.
Ela demorou um pouco, certamente acessando as mensagens e depois
de um tempo, falou:
— Não querido. Não tem mensagem alguma.
— Por acaso aquele tal de Diego ainda está por aí?
— O Diego? Não. Ele agora alugou um cantinho pra ele. Tá
montando um estúdio, até contratou a Cíntia! Ela estava toda feliz. Mas
por que você quer saber dele?
— Nada... Era por isso mesmo, quero saber se a Cíntia estava
mesmo se ajeitando. Quanto à mensagem, eu devo ter me enganado.
Entendi tudo. Certamente Cintia e Diego estavam juntos nessa para
separar Mariana e eu. Agora ele estava ali se esforçando para criar uma
historinha ridícula, achando que me enganaria. Tentei acordar Mariana mais
uma vez, mas ela parecia estar sob um encantamento. Senti seus sinais
vitais e os batimentos estavam lentos.
— Me fala logo o que vocês fizeram com ela ou vou chamar a
polícia!
Ele me olhou assustado, mas não disse nada. Impaciente, fui até a
cozinha e revirei o lixo. Lá estava a prova do crime, uma cartela de Valium.
Voltei para o quarto com ela em minhas mãos.
— Qual foi a quantidade que você deu pra ela?
Ele franziu a testa e ficou olhando para a cartela em minha mão.
— Eu…eu… Eu não sei... — gaguejou.
Se eu não estivesse tão preocupado com Mariana, ia socar aquele
moleque até ele perder a razão.
— Puta merda, Diego! — esbravejei, tentando pensar no que fazer —
Você quer matar a Mariana, por acaso? Ela é transplantada! Precisa de todos
os cuidados, seu irresponsável! É assim que você diz que a ama?
Ele engoliu em seco e olhou para cama com preocupação.
— Ela... Ela logo vai acordar — disse, tentando ser positivo.
Sentei-me ao lado de Mariana novamente e a chamei. Dessa vez falei
perto do seu ouvido.
— Amor, está me ouvindo? Sou eu, o Leo... Está me ouvindo?
Dessa vez ela gemeu. Foi um gemido tão profundo como se lutasse
consigo mesma para emergir à superfície. Olhei para Diego com olhos
fulminantes e perguntei:
— Que idiotice! Armar essa cena patética, achando que eu cairia
nisso! As portas abertas, o acesso fácil pra chegar até aqui. Tudo muito
manjado.
Diego me encarou com desprezo.
— Não se gabe tanto por ter descoberto esse detalhe. — falou com
sarcasmo — Seria muito bom se você tivesse acreditado, mas eu sabia que
não era tão ingênuo assim. — me olhou com arrogância e falou
compassadamente: — Tudo o que eu precisava era de uma noite. Só uma
noite com a minha amada Mariana.
Acendi o alerta. Ele riu do desespero estampado em meu rosto.
— O que quer dizer com isso? — perguntei aflito. — O que você fez
a ela além de dopá-la?
Ele se fez de desentendido.
— O que eu fiz? Deixe me ver... — segurou o queixo com uma das
mãos como se estivesse tentando se lembrar. Fez uma careta e soltou o ar
pela boca — Ah, melhor não contar.
Meu rosto esquentou, a respiração se descompassou
— Me responde, miserável! Você abusou dela?
Ele ergueu as duas sobrancelhas deixando uma dúvida pairando no
ar.
— Me responde, canalha! — gritei.
Ele deu um risinho cínico e enquanto vestia a camisa, falou:
— Isso você nunca saberá.
Me levantei, indo até ele lhe apontando o indicador.
— Eu vou te colocar na cadeia, miserável!
Ele pôs as mãos diante de si, pronto para se defender.
— Calma, vai ficar tudo bem, tio! — o cinismo estava o tempo todo
impresso em sua voz irritante — Quer dizer, isso se ela não engravidar, né?
Aí teremos um problema.
Perdi o controle.
— Desgraçado! — gritei com desespero na voz.
Ele conseguiu o que queria, talvez esse era o plano desde o início:
Colocar dúvidas em minha mente. Canalha, mil vezes canalha! Fui para
cima dele com tudo. O agarrei pela gola da camisa e o empurrei até a
parede.
— Calma, cara! Vamos conversar! — implorou, o covarde.
Ele sabia que não ia escapar de minhas mãos e não ia mesmo. O
primeiro soco foi no meio do estômago. Ele gemeu, se contorcendo. O
segundo no meio da cara. O terceiro no olho. Diego não conseguiu se
defender, como sempre. Eu não ia parar. Estava prestes a dar uma surra bem
dada naquele infeliz, quando ouvimos Mariana tossindo. Voltamo-nos para
ela. Foi o que o salvou.
— Mari! — exclamei, preocupado.
Larguei Diego, que se contorcia e gemia de dor, e corri até ela.
Sentei-me novamente ao seu lado e acariciei os seus cabelos. Ela abriu os
olhos lentamente.
— Leo... — balbuciou.
Respirei aliviado ao ouvir sua voz.
— Estou aqui, meu amor! — falei, segurando em sua mão.
— O que aconteceu? — ela perguntou com voz fraca.
Olhei para Diego com fúria, ainda sedento por acertar as contas com
ele.
— É o que eu estou querendo saber também. — respondi.
— Você só dormiu um pouquinho a mais do normal. — foi Diego
quem falou, já se recuperando dos golpes.
Mari olhou para ele confusa.
— Diego, o que você está fazendo aqui? — ela perguntou.
Fixei os olhos nele, quase o fulminando.
— Ele já está de saída. — falei.
Ele massageou o nariz que sangrava um pouco, mas estava sorrindo,
satisfeito com sua façanha.
— É uma pena que você não se lembre! — o desgraçado soltou.
— Saia daqui! — gritei. — E nunca mais chegue perto da Mariana.
— Você não manda em mim, coroa. Vou, porque não tenho mais nada
para fazer aqui. — e antes de sair falou: — Obrigado pela noite
maravilhosa, Mari!
Mariana me olhou com curiosidade e certo pavor. Olhou para si
mesma e notou que estava completamente nua sob o lençol.
— Leo, do que ele estava falando? Por que eu estou assim?
— Não se preocupe, não foi nada. Ele só tentou me fazer acreditar
que vocês passaram a noite juntos.
— O quê? Mas eu...
— Fique tranquila. Foi algo muito malfeito, eu percebi logo.
Ela me olhou aflita.
— Mas o que aconteceu?
Olhei para ela com tristeza e perguntei:
— Você não se lembra de nada?
Ela sentou-se, repousando as costas na cabeceira da cama e tentou
puxar pela memória.
— Bem, o Diego apareceu ontem à noite. A livraria estava aberta, eu
não tive como não o deixar entrar. Ele disse que queria conversar comigo.
Eu disse que não, mas ele insistiu e eu acabei cedendo.
— E o que ele queria?
— Me deu os parabéns pelo noivado, me ofereceu sua amizade e
disse que não ia mais se meter entre nós, que eu merecia ser feliz... Depois
ele se ofereceu para fazer um suco de laranja com umas laranjas da
fruteira... Bebemos o suco... Ele me falou que estava montando um estúdio
e... Não me lembro de mais nada.
— Não se lembra dele ter tocado em você?
— Como assim? — ela se apavorou — Ele tocou em mim?
— Não sei... Não se lembra dele ter tentado?
— Não, não me lembro. — ela me olhou assustada — Acha que ele
teria coragem de abusar de mim assim?
— O desgraçado insinuou que sim.
— Meu Deus!
— Se ele fez mesmo isso, ele vai pra cadeia, pode apostar!
CAPÍTULO 41

Mariana Barros

Ainda estava sentada naquela cama olhando para Leonardo. Minha


cabeça dava voltas, não só pelo efeito da droga ainda em meu organismo,
mas pelo pânico que tomava conta de mim. Estava desnorteada. Eu não
podia acreditar que Diego tinha feito aquilo comigo. Eu o recebi em minha
casa acreditando que, em nome da amizade que existia entre nós, de tantos
anos, ele estava sendo sincero.
Quando me envolvi com ele, sempre deixei claro que não haveria
nada mais sério entre nós. Era só sexo e não ia passar daquilo. Ele era muito
novo para mim e além de não ter sentimentos por ele, nem conseguíamos
ter uma conversa decente sobre nenhum outro assunto. Ele só falava de
videogames, filmes idiotas e super-heróis.
Uma mulher como eu, que tive que amadurecer mais rápido pelas
circunstâncias da vida, sempre precisou de um homem mais forte, e não
estou falando de força física, falo de caráter. Obrigatoriamente, esse homem
tinha que ser alguém que eu admirasse e desejasse estar com ele de verdade,
além da atração física.
Leo era tudo isso e muito mais. A cada dia ao lado dele eu me
surpreendia. Ele me amava. Era um amor sincero, verdadeiro. Totalmente
diferente do que Diego dizia sentir por mim. O amor do Diego era egoísta,
paranoico… E a prova disso era o que ele estava fazendo comigo, me
colocando numa situação mais do que complicada.
Se Leonardo tivesse acreditado na farsa montada por ele, nosso
noivado já estava acabado. Mas não satisfeito com isso, Diego ainda
colocou um obstáculo entre nós. Deixou a entender que tivemos relações,
ou seja, tudo levava a crer que ele abusou de mim sem nenhum tipo de
proteção.
— Talvez não tenha acontecido nada. — Leo falou, tentando me
animar.
Olhei para ele segurando um choro.
— Deus te ouça! — eu disse sentindo um nó na garganta, apertando
sua mão.
Tentei ter esperança, mas eu estava ali, nua, vulnerável. Tinha um
cheiro de sexo impregnado em meu corpo, não havia como negar. Sabia que
Leo também havia notado isso, mas não quis comentar. Talvez fosse só
resquícios deixados por ele, por ter se abraçado comigo, pois havia passado
a noite ali. Ou era o cheiro dos lençóis suados
— Vou tomar um banho. — falei.
Ele acenou positivamente com a cabeça.
— Quer ajuda? — perguntou ao perceber que eu ainda estava meio
grogue.
— Quero. Quero, sim.
Fomos para o banheiro. Leonardo e eu já estávamos há dias nos
relacionando sem proteção também, porque eu desejei assim. Com trinta e
cinco anos, estava na idade limite para ter um filho e, contrariando tudo o
que eu pensava antes, queria muito ter um filho dele. Nos casaríamos
depois, numa data mais adequada para minha família estar presente, mas
um filho poderia vir antes. Já havíamos conversado sobre isso algumas
vezes e ele estava mais empolgado do que eu.
Mesmo com a inibição dos imunossupressores, havia a possibilidade
de uma gravidez normal. Conversei com meu médico e ele me encorajou a
tentar. Disse que, como eu estava bem e não havia nenhum outro
empecilho, minhas chances de engravidar eram altas e até diminuiu a dose
dos remédios.
Fiquei tão feliz ao saber disso. Mas agora… Ah, meu Deus! Havia a
possibilidade de, numa possível gravidez, o filho não ser do Leo. Isso nos
afetou demais. Ali, debaixo daquele chuveiro, tentei imaginar o que se
passava pela cabeça do meu noivo. Ele estava ao mesmo tempo triste e
preocupado comigo. Pegou a esponja e me lavou. Não dissemos nenhuma
palavra, apenas sentimos. Nos abraçamos e eu me entreguei ao choro.
— Estou com medo, Leo! — confessei.
— Eu estou aqui, meu amor. Fique tranquila!
Notei pela sua voz que ele também chorava.
— Por que o Diego fez isso? — questionei — Por quê?
Leo deu um suspiro e meneou a cabeça.
— Precisamos denunciar esse pilantra! — sugeriu — Se ele abusou
de você, precisa pagar. Ter relações com uma vítima desacordada, seja lá
pelo que for... Efeito de alguma bebida, ou alguma droga, configura estupro.
Eu desanimei.
— Eu sei, mas talvez não tenha acontecido nada, né? Talvez ele
esteja blefando...
Ele suspirou.
— Que assim seja, mas... Pode ter acontecido e precisamos denunciá-
lo diante dessa possibilidade.
— Mas agora já é tarde. Com esse banho, não teríamos prova. Eu
teria que passar por exames de corpo de delito, não é?
— Mas pode ser feito um exame interno e também tem a roupa de
cama.
— Mas se fizermos isso, será muito estresse, amor! — falei — Eu
seria exposta, as fofocas iam rolar soltas, sabe como é o povo dessa cidade.
Ele me olhou relutante, mas acabou concordando comigo.
— É... Eu sei que as especulações gerariam várias interpretações... O
povo gosta de inventar. — ele me olhou com ternura e acariciou meu rosto
com os polegares — Se é assim que você quer, vamos manter isso só entre
nós. Vamos superar.
Eu tentei sorrir e ele me beijou. Era tudo o que precisava. Seu
carinho, seus beijos. Terminamos o banho e eu fiz uma ducha íntima para
me limpar de qualquer possível vestígio que possa ter ficado. Eu não havia
notado nada diferente dos meus próprios fluidos vaginais, mas talvez Diego
tivesse me limpado com alguma coisa.
Voltamos para o quarto, onde Leo me secou e penteou os meus
cabelos. Olhamos para minha cama e tivemos a mesma ideia de retirar
aqueles lençóis. Busquei uma roupa de cama limpa e ele me ajudou a
colocá-la. Eu ainda estava muito abalada com aquela situação e não
conseguia disfarçar. Leo segurou em minha mão e levou a me deitar.
— Vem cá, vou te fazer uma massagem.
Me deitei de bruços e ele pegou um hidratante começou a espalhar
pelas minhas costas. Eu amava quando ele fazia isso. Fechei os olhos e
tentei pensar positivo e que tudo ficaria bem. Depois de uns quinze minutos
me massageando, ele me virou de frente e agora mais relaxada, me
entreguei a ele.
Leonardo sempre me virava do avesso na cama, mas nesse dia ele
degustou meu corpo com paciência e devoção. Beijou cada parte dele como
se carimbasse sua marca, como se quisesse deixar claro que eu era inteira
dele. Me penetrou devagar e senti um arrepio. Começou a se mover.
Arqueei as costas apreciando cada estocada que ele me dava.
— Leo... — choraminguei.
— Eu te amo, Mariana! Não importa o que aconteça, eu estarei do
seu lado, meu amor! Nunca se esqueça disso.
Nesse mesmo dia eu liguei para Diego e exigi que me falasse a
verdade, que me contasse o que realmente havia acontecido, mas tudo o que
consegui foi chateação.
— O que você fez comigo, Diego?
— Você não se lembra? — ele perguntou com deboche — Poxa,
pensei que você se lembraria!
— Diego, por favor! Me conta o que aconteceu! — implorei com
lágrimas nos olhos, mas tudo o que consegui foi ouvir sua gargalhada.
— Não vou contar nada, Mariana. Você vai ter que viver com essa
dúvida.
—Como pode ser tão cínico? E você dizia que me amava...
— Amava não, amo! Mas você me desprezou e preferiu o “Incrível
Hulk”! Então, seja feliz ou infeliz com seu gigante! Não me importo
mais.
— Eu vou ser muito feliz. E não quero mais olhar na sua cara,
Diego! Nunca mais me dirija a palavra, seu cretino!
Chorei muito depois daquela ligação, mas não havia o que fazer, a
não ser aceitar o que o destino me reservava. Eu passei a morar com Leo na
fazenda. Ele não quis me deixar sozinha na cidade, mas eu ia todos os dias
para abrir a livraria. Os dias foram passando e, como eu suspeitava, depois
de um mês e meio comecei a sentir os sintomas.
Fiquei sem chão. Fiz o teste e deu positivo. Estava grávida. O
momento que era para ser de alegria, foi de muita dor. Apesar de ter me
garantido seu apoio, percebi uma mudança em meu noivo. Ele não
conseguiu disfarçar.
Foram dias difíceis para mim. Eu não consegui ficar empolgada com
a gravidez, como a maioria das mulheres ficam. Leonardo também não se
mostrou interessado em nada a respeito daquele bebê. Só podia ser um
castigo por ter falado tantas vezes que não queria ser mãe! Nem contei para
minha família ou amigos. E para piorar, contrariando as nossas suspeitas,
Cíntia estava mesmo grávida. Grávida de uma menina.
Desde que ela tinha sido mandada embora, apareceu duas vezes na
fazenda. Uma para buscar o resto de suas coisas e outra para acertar os dias
trabalhados. Leo tinha deixado bem claro que não a queria na fazenda
depois das mentiras que inventou, mas eu sentia que eles pareciam estar se
aproximando.
Para Cíntia, Leo estava dando toda assistência. Até a implicância que
ele tinha por ela desapareceu por completo. Enquanto para mim, a cada dia
se mostrava mais frio. Até nossa intimidade foi prejudicada. Cheguei a
sugerir fazermos um exame de DNA, pois dava para ser feito antes do bebê
nascer, mas ele se mostrou relutante e não quis fazer. O medo do resultado
ser negativo o impediu de tentar. Insisti, mas tudo o que ele disse foi:
— Eu vou criar o seu filho como se fosse meu, Mariana. Serei o pai
dele, não se preocupe.
“Seu filho?”
Aquilo me magoou demais. Não entendia por que Leo agia assim. Eu
sei que era difícil para ele, mas... poxa vida! Eu não tinha culpa de nada e
também era difícil para mim. Tudo piorou quando a barriga começou a
crescer. Estava entrando na 17ª semana e diferente de Cíntia, minha barriga
estava bem saliente. Estava pesada e muito cansada e todos sabiam que eu
estava grávida. Quando Diego soube, apareceu para nos atormentar. Eu
estava na livraria quando ele chegou exigindo saber a idade do bebê,
insinuando que era o pai.
— Sai daqui, Diego! Já disse que não quero mais falar com você.
— Como pai dessa criança, tenho meus direitos e vou sim, fazer parte
da vida de vocês!
— Nunca. Esse filho não é seu, é do Leonardo, meu noivo.
Ele riu, debochando.
— Todo mundo sabe que aquele corno não está nem aí pro seu filho!
E sabe por quê? Porque ele sabe que não é o pai. Ele falou isso em alto e
bom som pra quem quisesse ouvir, lá no bar do Carlos, numa rodinha de
amigos, tomando cerveja.
— O quê? — balbuciei, sem acreditar.
— Isso mesmo que você ouviu.
Meus olhos se encheram de lágrimas ao ouvir aquilo. Leo não teria
feito isso comigo.
— Mentira! — gritei.
— Verdade. Todo mundo está sabendo disso.
Eu e Diego discutimos feio e eu o expulsei da livraria. Deixei bem
claro para ele que se tentasse se aproximar de mim novamente, chamaria a
polícia. Em retaliação o desgraçado ameaçou espalhar para toda cidade que
o filho que eu esperava era dele.
Nessa noite eu não voltei para casa. Fechei a livraria mais cedo e
desliguei o celular. Meu bebê parecia sentir a minha angústia, pois estava
muito inquieto dentro de mim. Não sabia se era menino ou menina, porque
não queria fazer o exame de ultrassom sozinha e tinha certeza de que Leo
não iria comigo. Essa situação estava insuportável e eu precisava tomar
uma decisão.
Estava quase adormecendo, quando ouvi batidas no portão. Demorei
para reagir. Ouvi a voz de Leonardo chamando o meu nome. O encontrei
aflito do lado de fora.
— Mari, o que aconteceu? Estava morrendo de preocupação. Estou
ligando e só cai na caixa postal.
Abri o portão para ele e entramos.
— Está tudo bem. Eu estava aqui, descansando um pouco... Não
aconteceu nada.
— Poderia ter avisado. Por que não voltou pra casa?
Fui até a cozinha beber um pouco de água.
— Vou ficar aqui.
Ele me olhou, confuso.
— E por quê? — perguntou.
Olhei para ele com lágrimas nos olhos e repousei a mão sobre minha
barriga e me escorei na bancada.
— Isso não vai dar certo, Leonardo. Eu vou voltar pra São Paulo.
— O quê? Como assim, voltar pra São Paulo?
— É isso. Não posso viver assim... Eu sei que você se esforçou, mas
não está conseguindo cumprir a promessa que me fez. Você rejeita o meu
filho e eu estou sofrendo muito com isso.
— Mas eu já disse que vou criá-lo como se fosse meu!
— Esse é o problema. Você tem certeza de que não é. Tem certeza de
que ele não é seu. Quantas vezes nós tivemos relações! Mesmo assim, você
acha que o Diego é o pai, mesmo diante da possibilidade dele não ter feito
nada! As chances dele ser seu são bem maiores, mas você o rejeita e nem
quer saber a verdade através de um exame. Sinto muito! Eu queria que tudo
fosse diferente, mas não dá! Não quero, não posso viver assim.
Ele se aproximou com lágrimas nos olhos.
— Mari. Eu não posso viver sem você.
— Pensasse nisso antes de espalhar por aí que não é o pai do meu
filho.
— Como sabe disso? — perguntou, me dando a confirmação que
Diego não mentiu.
— Então é verdade! — lamentei.
Ele meneou a cabeça e ficou me olhando com olhos tristes.
— Eu estava bêbado! Não pensei direito.
— Mas agora todo mundo está comentando por aí... Eu nem sei mais
como encarar esse povo!
Ele sentou-se à mesa e segurou a cabeça com as mãos. Ficou em
silêncio. Eu sabia o quanto estava desnorteado. Começou a chorar. Sentei-
me do outro lado e fiquei pensativa.
— Eu entendo que isso está sendo muito difícil pra você. Então, o
melhor que eu posso fazer é criar essa criança sozinha. — falei — Eu vou
embora. Case-se com a Cíntia. Ela está esperando um filho seu. Tente fazê-
la feliz.
Leonardo ergueu a cabeça e me olhou com indignação.
— Não, não! — falou com desespero na voz — Eu quero ficar com
você. Nós vamos nos casar e seremos muito felizes. Os meninos estão tão
contentes com o novo irmãozinho!
— Isso não vai dar certo, Leo. Eles podem até estar, mas você não.
— Não, as coisas não são assim... Me perdoa, meu amor! Eu sou um
idiota! — Ele segurou em minhas mãos. — Olha, eu vou fazer o exame.
Não quis fazer antes, porque existe um pouco de risco ao realizar esse tipo
de exame com o bebê ainda na barriga...
— Sabemos que não foi por isso...
— Tá, eu sei que o medo de saber uma verdade indesejável me
impediu também, mas agora, mesmo se o resultado disser que eu não sou o
pai, não importa. Essa criança é minha. Eu sou o pai e vou amá-la como
amo meus três filhos. E a partir de hoje vou mudar.
— Sério?
— Sim, meu amor. Eu prometo! Quanto aos boatos, não se preocupe!
Vamos desmenti-los e enfrentar qualquer engraçadinho que ousar se meter
em nossa felicidade.
Me emocionei com as palavras dele. Ele veio até mim e se ajoelhou
em minha frente. Colocou a mão em minha barriga e prometeu:
— De hoje em diante tudo vai ser diferente, meu amor! — Olhou
para minha barriga e começou a conversar com o bebê. — Meu filho, aqui é
o seu pai. Me perdoe, meu amor! Eu te amo e nada vai mudar isso. Não
importa o que aconteça, eu sempre vou ser o seu pai.
— Leo, eu... — me emocionei.
— Vamos pra casa, amor! Eu prometo que tudo vai ser diferente.
Nos abraçamos e um peso enorme saiu de minhas costas.
CAPÍTULO 42

Leonardo Moretti

Eu estava me comportando como um idiota, insensível. Apesar de ter


prometido a Mariana que a apoiaria se ela engravidasse por aqueles dias e
assumiria toda a responsabilidade de pai, levando em conta a possibilidade
da criança não ser minha, não foi o que fiz. Prometi que a assumiria, mas...
Não sei o que me aconteceu. Desde o dia em que soubemos que ela
estava grávida, não consegui cumprir minha promessa. Tudo dentro de mim
gritava que aquele filho não era meu. E para piorar, o desgraçado do Diego
não perdia oportunidade de me atormentar.
— Está mesmo disposto a criar um filho que não é seu? — ele me
disse em certa ocasião.
Estávamos em um posto de gasolina. A vontade de incendiar aquele
moleque gritou dentro de mim. Já me via pegando a mangueira do
combustível e o encharcando de gasolina. O isqueiro já estava em meu
bolso. Me assustei com o prazer que senti ao imaginar a cena. Aquele cara
já havia ultrapassado todos os limites. Não respondi nada, apenas contive a
minha raiva e o ignorei.
Percebi que tudo o que ele queria com essas provocações, além de
me desestabilizar emocionalmente, era me fazer perder o controle e dar uma
surra nele em público. Tudo isso para que eu fosse preso. Era tão idiota que
até deixou isso escapar. Mas eu não daria esse gosto a ele. Porém, uma
coisa ele conseguiu: Alimentar a dúvida dentro de mim. Puta merda, isso
estava me matando.
Como eu detestava aquele cara! Aquele topete ridículo, o jeito
malandro, o tom sarcástico sempre presente em sua voz. Tudo nele me
irritava. Nas poucas vezes que nos esbarramos, ele sempre insinuava ser o
pai daquela criança. Fiquei cego de ciúmes e até cheguei a pensar que,
talvez, não tivesse sido uma armação. Talvez Mariana tivesse mesmo
cedido a um desejo momentâneo. Afinal, eles já tinham sido namorados.
Mas guardei para mim essa suspeita. Minha cabeça não pensava direito. A
dúvida, aquela dúvida maldita estava me cegando e destruindo tudo de
bonito que construímos até ali. E acabando com tudo o que pensei viver ao
lado de Mariana.
Porém, naquele dia, ou melhor, naquela noite, diante da possibilidade
de perder Mariana de vez, me desesperei. Notei que ela estava triste há dias,
principalmente quando inventei uma desculpa esfarrapada para não ir com
ela no exame de ultrassom.
Ela ficou tão desanimada que desmarcou tudo e não se envolveu com
nada a respeito da gravidez. Aquelas coisas que as mulheres fazem:
enxoval, chá revelação... Essas coisas que mostram o quanto estão felizes.
Mariana abandonou tudo isso. E eu sabia que era por minha culpa.
E naquela manhã, a manhã do dia em que me caiu a ficha, ela estava
mais distante que o normal. Tentou não transparecer para as crianças e as
tratou como sempre. Elas até conseguiram arrancar dela um sorriso, mas
quando se deparava comigo, ela se fechava. Voltou a se comportar como
quando nos conhecemos. Com receio, temor.
— Eu vou para a livraria. Vou abrir mais cedo hoje. — ela me avisou
depois de dar um beijo em cada um dos meninos. — Nos vemos mais tarde.
Acenei positivamente com a cabeça.
— Ok. — respondi.
Ela me olhou com olhos tristes, como se fosse me dizer mais alguma
coisa, mas desistiu. Percebi o quanto estava sofrendo. Eu a amava. Amava
tanto que tinha certeza de que perderia a razão se ela me deixasse. Que
Deus me perdoe pelo que vou dizer, mas o que sentia por ela era tão forte
que tinha a sensação de que, se a própria Daniela aparecesse novamente em
minha vida, por algum milagre, eu escolheria Mariana. Essa era a verdade.
Esse sentimento crescia a cada dia e isso me dava medo. Mariana se tornou
o meu mundo.
Por isso não fazia sentido o meu comportamento. Estava sendo
egoísta rejeitando o filho que ela esperava, apenas pela possibilidade de ele
não ser meu, enquanto ela abraçava os três filhos que tive com o Daniela
como se fossem dela. Ela os amava como a própria mãe deles os amaria.
Davi já a chamava de mãe e era isso que ela era para ele, sua mãe.
Me desprezei por isso, por achar que aquela criança inocente em seu
ventre era uma barreira entre nós. Ouvi-la dizendo que voltaria para São
Paulo, tirou o meu chão. Como eu estava sendo burro! Não poderia permitir
uma coisa dessas. Mas tudo seria consertado. Desde que fui buscá-la
naquela noite, muita coisa havia mudado. Eu finalmente a tratei como
deveria ter sido desde o início, minha mulher, mãe do meu filho. Isso
mesmo, meu filho. Era um menino.
Passei uma borracha naquela nuvem negra que me dominava, que
escondia a felicidade que estava bem diante de mim e me entreguei de
corpo e alma àquela nova etapa de nossas vidas. Enrico era meu. Sim,
coloquei o nome do meu avô nele. Enrico Moretti.
Mari não podia estar mais feliz ao testemunhar o quanto eu havia
mudado. Mesmo assim, optamos por fazer o exame para saber se eu era
mesmo pai daquela criança e o envelope estava sobre a cama, em nossa
frente. Não contamos a ninguém sobre isso, apenas marcamos e fomos até a
capital com o pretexto de comprar coisas para o bebê. Agora estávamos ali
no quarto, ansiosos e esperançosos. Mas antes de abrir aquele envelope,
resolvi dizer umas palavras para Mariana:
— Amor, eu quero que saiba que mesmo que eu não seja o pai
biológico do Enrico, nada vai mudar. Ele é meu. Vou amá-lo do mesmo
jeito que amo o Matteo, a Sarah e o Davi. Só te peço para que isso fique só
entre nós, se o resultado for negativo, pode ser?
Ela disse sim com a cabeça e segurou em minha mão.
— Mas ele é seu, amor... Eu sinto isso.
Acenei positivamente, tentando controlar a respiração.
— Como eu disse... Não importa o resultado, ele é meu.
Ela se emocionou com as minhas palavras e não conseguiu dizer
mais nada. Sem perder mais tempo, peguei o envelope com mãos trêmulas e
o abri. Com o resultado em mãos, corri os olhos ansiosos por cada letra
daquelas informações técnicas até me deparar com a parte mais importante.
Engoli em seco e olhei para Mariana com olhos inundados de lágrimas.
— O que diz? — ela perguntou.
Tremi os lábios e hesitei em dizer alguma coisa, por medo de
tropeçar nas palavras.
— E então, Leo? — Mari estava a ponto de ter um treco. — Fala!
Qual o resultado?
Comecei a sorrir como um bobo.
— Eu... Eu sou o pai. — falei com alívio na voz. — Cem por cento
de compatibilidade, amor! O Enrico é meu filho!
Mariana levou as mãos ao peito.
— Oh, meu Deus! Eu sabia! Eu sabia! Eu te disse!
Levantei-me e a puxei para meus braços girando-a no ar. Gargalhei
de felicidade. A beijei com intensidade e a abracei com força, enquanto ela
sorria também. Coloquei-a no chão e ergui as mãos para o céu.
— Ah, meu Deus, muito obrigado! Obrigado, meu Deus! —
exclamei.
— Ah, Leo, não sabe o peso que tirei das minhas costas! Agora tudo
vai ser diferente.
— Sim, meu amor, tudo vai ser diferente! — concordei.
Ajoelhei-me diante dela e enchi sua barriga de beijos. Ela foi
dominada por um choro, mas de alívio e alegria. Estava feliz. Nós dois
estávamos. Um peso enorme saiu das minhas costas também. A dúvida
infernal se dissipou completamente. Enrico era mesmo meu filho. Sangue
do meu sangue, um verdadeiro Moretti. Nos abraçamos e ficamos um bom
tempo assim sem dizermos nada, apenas desfrutando daquela felicidade que
agora estava completa.
Depois de um tempo, a peguei no colo e coloquei sobre a cama.
— Quero mimar e paparicar a mãe do meu filho como se faz a uma
rainha. — falei.
— É mesmo? — ela me encarou, empolgada. — Gostei disso.
— Sim. Quero recuperar todo esse tempo perdido. Fui um imbecil,
mas agora vou ser um papai babão.
Mari se recostou na cabeceira da cama e eu me deitei em seu colo.
Ela levantou a blusa para deixar sua linda barriga de fora e eu fiquei ali por
um bom tempo a acariciando, beijando e conversando com Enrico.
— Papai está tão feliz, meu filho! Me perdoe, meu amor! Você é
meu, garoto!
Mari sorria satisfeita me assistindo conversar com ele, acariciando
meus cabelos. Estava plena e relaxada como sempre deveria ter sido.
Conversamos por um bom tempo, planejando algumas coisas, quando, de
repente, ouvimos a voz de Jandira gritando. Nos assustamos.
— Meu Deus, o que foi isso? — Mari perguntou.
— Foi a Jandira. — falei.
— Foi um grito de dor. Será que ela se acidentou?
Ao longe, ouvimos a voz dela me chamando.
— Seu Leonardo, corre aqui! Seu Leonardo!
Nos levantamos apressadamente e corremos para o andar de baixo.
As crianças também ouviram e estavam perguntando o que havia
acontecido. Davi, que estava na sua soneca acabou acordando.
— Eu cuido dele, pai. — falou Matteo.
Sarah se juntou a nós e descemos juntos.
— Papai, por que a Jandira está gritando? — ela perguntou.
— Não sei, meu amor. Vamos falar com ela.
Jandira apareceu ao pé da escada, inquieta.
— Vocês precisam ver isso. — disse com fôlego curto.
Estava trêmula e pálida. Franzi a testa diante daquilo e perguntei:
— O que aconteceu, mulher? Por que está gritando? Viu um fantasma
a essa hora do dia?
— Pior que isso, seu Leonardo! Venham ver!
Mariana e eu nos olhamos sem entender nada. Jandira seguiu pelo
corredor e nós fomos atrás dela.
CAPÍTULO 43

Leonardo Moretti

Seguimos Jandira até seu quarto. A cada passo, a curiosidade


aumentava mais. Durante o pequeno percurso fiquei imaginando o que
poderia estar causando tanto espanto naquela mulher. Pensei em se tratar de
algum animal peçonhento, uma cobra, escorpiões. Me lembrei dos sonhos
que Sara sempre me contava, onde havia uma cobra provocando muito
medo nela. Jandira ia se explicando:
— Eu resolvi dar uma faxina geral no meu quarto hoje. Há dias eu
estava querendo fazer isso e como não estava tão atarefada, resolvi tirar um
tempinho pra fazer uma boa limpeza. Estava tudo muito sujo, precisei
arrastar uns móveis do lugar. Nossa, tinha muita sujeira!
Matteo e Davi se juntaram a nós. Entramos no quarto e Jandira
continuou a falar:
— Já limpei boa parte, como podem ver.
— O que houve, Jandira? — perguntei, impaciente. — Vá direto ao
ponto.
Ela acenou positivamente com a cabeça, ajeitou seu avental, limpou a
garganta e olhou para a velha cômoda perto da janela.
— Bem, quando arrastei aquele móvel, essa cômoda que quase não
tiro do lugar de tão pesada, eu ... Quando eu tava empurrando ela, o meu pé
afundou numa tábua solta do assoalho. Aí, eu me abaixei pra olhar direito e
percebi que o buraco é uma espécie de compartimento. Vejam!
Ela se aproximou do local e retirou a tábua. Assim que olhou para o
que havia dentro do buraco, fez uma careta e depois olhou para nós,
novamente com olhos esbugalhados.
— Eu me deparei com isso. Veja o senhor mesmo!
Me aproximei para ver do que se tratava, seguido por Mariana,
enquanto Jandira fazia o sinal da cruz. Os meninos também se
aproximaram, curiosos. Dentro daquele buraco havia umas coisas estranhas.
Abaixei-me me equilibrando nos calcanhares para ver de perto o que era
aquilo e quando fui pegar um daqueles objetos para analisar, a mulher me
repreendeu:
— Não! O senhor não devia tocar nisso, é bruxaria!
Mariana, ao entender do que se tratava, deu um grito e se afastou.
Sarah se assustou, mas se colocou ao meu lado, vencida pela curiosidade.
Assim que viu o que era, se mostrou admirada.
— Nossa, são as bonecas da Tia. — falou — Ela esqueceu de levar.
Olhei para minha filha com estranheza.
— Você já tinha visto isso? — perguntei.
Ela fez um biquinho e disse sim com a cabeça.
— Já. As bonecas da Cíntia. Eu vi ela uma vez mexendo com elas,
mas ela não me deixou brincar e disse pra não falar nada pra você, porque
você ia brigar com ela.
— Foi isso que você falou aquela vez? — perguntou Matteo.
— É! Ela é adulta, não pode brincar de boneca, não é papai?
— Isso não é boneca, Sarah! — Matteo falou. — Isso é magia negra.
Eu vi num filme.
Eu olhei para eles sem saber o que dizer. Mariana me olhou assustada
e sentou-se em uma cadeira que havia por perto. Jandira levou as mãos à
boca e, com expressão de pânico, perguntou:
— Então, essas coisas são da Cíntia?
— A Cíntia é uma bruxa? — Sarah perguntou.
— Matteo, tire a Sarah e o Davi daqui. — ordenei.
Ele me obedeceu prontamente e saiu levando Sarah consigo, que
relutava em ir. Davi saiu correndo atrás deles, completamente alheio ao que
acontecia. Olhei para aquele buraco novamente e falei:
— Jandira, me traga uma sacola.
Ela me olhou assustada.
— Senhor, o senhor vai mesmo tocar nisso? Ouviu o menino. É
magia negra!
Soltei o ar pela boca.
— Como quer que eu tire essa porcaria daqui? — questionei, irritado.
— Preciso pegar!
— Eu sei, senhor... Mas não é assim que se faz, primeiro temos que
jogar urina, depois chamamos um padre, um pastor ou alguém que saiba
desfazer o trabalho… Se não…
Franzi a testa.
— Urina? Tá falando sério? — perguntei, rindo sem humor. — Que
bobagem!
— Mas é verdade, senhor! E tem que ser urina de homem pra
funcionar, daí.
— Está dizendo que eu tenho que mijar nessas coisas?
— É... — ela me olhou constrangida — Pode ser o Claudinei.
Sacudi a cabeça negativamente e revirei os olhos.
— Isso são crendices! — exclamei.
— Mas senhor, é perigoso!
— Vai ficar tudo bem Jandira, não se preocupe. Agora me traga uma
sacola de lixo e luvas.
Ela desistiu de me convencer e assentiu. Em seguida saiu
apressadamente. Mariana me olhava com olhos arregalados.
— Amor, o que realmente é isso? — ela perguntou.
Soprei o ar pela boca e falei:
— Isso é Vodu.
— O quê? Pensei que isso só existisse nos filmes!
Corri as mãos pelos cabelos, tentando organizar os pensamentos,
buscando uma solução. Estava óbvio o que tinha acontecido ali. Cintia usou
bruxaria para me influenciar de alguma forma e tudo indicava que ela tinha
uma boa prática.
— Infelizmente muitas pessoas praticam esse tipo de coisa nessa
região. — expliquei.
— Será que foi mesmo a Cíntia que fez isso?
— Só pode ser. Quem mais teria feito? E a Sarah viu ela mexendo
com isso.
Jandira voltou com a sacola e as luvas, mas logo saiu dizendo que ia
preparar algo para as crianças comerem, mas eu sabia que só estava louca
para sair dali. Vesti as luvas, me abaixei e comecei a destrinchar aqueles
objetos estranhos. Um se tratava de uma foto envolta em outras coisas. Era
uma foto minha. Estava desbotada, o que me fazia pensar que há muito
tempo ela estava ali. Amarrado a ela havia uma cueca, que eu supus ser
minha também. Fios de cabelos, um frasco com um líquido estranho dentro
e um papel. No papel havia algo escrito e mesmo deteriorado, dava para se
ler a frase:
“Ele será meu.”
Abaixo da frase estava a assinatura de Cíntia e uma data. Meu Deus!
Senti arrepios quando percebi que se tratava de uma data anterior à morte
de Daniela. Dois meses antes, para ser exato.
— O que tem aí? — Mari perguntou com certo receio.
— Um feitiço de amarração, feito para mim.
Ela me olhou, horrorizada. Senti uma pontada na cabeça ao pensar
sobre aquilo. O estresse tinha feito minha pressão arterial aumentar, com
certeza. Não disse nada. Continuei a explorar. Peguei as bonecas. Eram
duas. Elas eram horrorosas, pareciam miniaturas de múmias descabeladas.
Em uma, no lugar que seria a testa, tinha a letra D maiúscula escrita e uma
agulha cravada em sua cabeça. Na outra boneca era a letra M e a agulha
estava cravada na direção da barriga. O que mais me impactou foi um
frasco com os nomes dos meus três filhos. Até os meus filhos?
— Isso não pode ser real! — exclamei, inconformado.
Mariana se aproximou devagar e se abaixou ficando ao meu lado.
— Oh meu Deus! — ela exclamou — Eu me lembrei que Sarah me
falou sobre isso, que a Cíntia a ameaçou dizendo que ia furar a cabeça dela.
Olhei para ela com expressão de alarme.
— O quê? Quando foi isso? — perguntei.
— Naquela vez que ela fugiu. Eu não disse nada, porque achei que
não devia me meter.
Eu e Mariana ficamos nos olhando, tentando entender e chegando às
mesmas conclusões. Ela se levantou e começou a massagear a barriga,
inquieta. Minha respiração começou a ficar difícil. Aquelas bonecas tinham
as iniciais D e M. Eram as iniciais dos nomes das duas mulheres que eu
amava. Quando me dei conta do que se tratava tudo aquilo, joguei-me para
trás, largando os objetos como se me queimassem as mãos. O terror me
engoliu. Nem em meus piores pesadelos fui capaz de imaginar algo assim.
Não estava preparado para aquilo.
Tudo levava a crer que aquela bruxaria maldita tinha provocado o
AVC em Daniela. Eu não poderia dizer com certeza, mas tudo levava a crer
nisso. Agora o alvo era Mariana. Ela começou a se tremer e a chorar. Tirei
as luvas, me levantei e fui até ela para abraçá-la.
— Leo... Estou com medo! — ela falou contra meu peito
Eu também estava, mas tentei não transparecer.
— Fique tranquila, meu amor!
— Será que vai acontecer alguma coisa com o nosso bebê?
— Não, claro que não, amor. Não se preocupe, não vai acontecer
nada. Esse tempo todo essa mandinga não teve efeito nenhum sobre mim.
— Como pode saber?
— É bem óbvio, caso contrário eu estaria apaixonado por ela. E é
você que eu amo!
Beijei sua testa com carinho. Ela se agarrou mais em mim e notei o
quanto estava tensa. E eu, apesar de me mostrar tranquilo, estava muito
preocupado. Tentei animá-la:
— Olha, é melhor você descansar um pouco. Tenta se distrair com
coisas positivas. Olhe para o lado bom: Hoje é o dia que as coisas ruins
estão deixando nossa casa. Vai ficar tudo bem. Mas antes preciso acertar as
contas com aquela infeliz da Cíntia.
— O que vai fazer, amor?
— Vou confrontá-la.
Ela me olhou com preocupação.
— Não tome nenhuma decisão de cabeça quente, amor. Vamos
pensar primeiro no que fazer.
— Sim, serei cauteloso.
— Eu sei que as coisas precisam ser esclarecidas, mas não se esqueça
que ela está grávida de uma filha sua. — ela me lembrou.
Estalei a língua ao pensar sobre isso.
— Mais essa agora. O que vai ser dessa criança com uma mãe
dessas?
— Temos que achar uma solução.
— De uma coisa eu sei. Não vou permitir que ela crie a minha filha.
De jeito nenhum.
— Concordo com você e estou aqui para te apoiar.
Segurei em suas mãos e a agradeci com um olhar e um suspiro.
— Mas isso terá que ser resolvido depois. — falei — Agora vamos
nos concentrar em como resolver isso aqui. Precisamos nos livrar dessas
coisas.
Me afastei dela e coloquei as luvas novamente. Peguei aqueles
objetos com cuidado e os coloquei na sacola de lixo junto com as luvas.
Depois os deixei em um canto e empurrei a cômoda para o seu lugar
novamente. Mari me olhou com desânimo.
— Isso é tão cruel! — ela falou — desejar a morte das pessoas desse
jeito!
Concordei com um aceno de cabeça. Ela sugeriu:
— Precisamos olhar todos os cantos dessa casa, amor. Principalmente
o quarto da Daniela. Eu sei que ele sempre fica fechado, mas talvez a Cíntia
tenha achado um jeito de entrar lá.
Daniela. Será que foi mesmo aquilo que provocou a morte dela?
Pensar nisso me trouxe um desconforto no peito. Mari parecia ter
pensado a mesma coisa, pois perguntou:
— Você acha que... ? — ela hesitou.
— Daniela? — deduzi o que ela queria saber.
Ela falou com cautela:
— Sim. A agulha está na cabeça da boneca... Você contou que ela
teve um AVC...
Sacudi a cabeça tentando afastar aquela lembrança, que agora,
inevitavelmente, se apresentava lincada àquele ritual macabro.
— Não sei o que pensar. — falei — Só acho que se não foi o que
provocou, com certeza contribuiu para a morte dela.
Mariana se sentou na cama, pensativa.
— Que loucura! — exclamou — Isso é desumano!
Respirei fundo e comecei a andar de um lado para o outro dentro do
quarto. À medida que meus pensamentos iam se ajustando diante daquela
realidade, mas agoniado eu ficava. Mariana me olhava aflita com as mãos
sobre a barriga, esperando o que eu faria sobre aquilo.
— Disse que vai confrontá-la. Como será isso? — perguntou.
— Estou pensando ainda. A Cíntia me deve uma explicação. —
estava revoltado — Coloquei aquela infeliz dentro da minha casa, perto dos
meus filhos e ela trouxe o mal pra perto deles! Desgraçada! Por isso a Sarah
sempre estava tendo pesadelos... Eu, feito um idiota a ignorei. Todos
correndo riscos! Eu devia ter prestado mais atenção, mas não... Estava
sempre imerso nas minhas dores e não enxergava nada a um palmo do meu
nariz. E eu … eu sempre me senti estranho perto dela. Entorpecido,
enjoado, como se uma nuvem me envolvesse. Agora eu sei que era esse tal
de feitiço tentando me pegar, mas o amor que eu sentia por Daniela me
impedia e depois... Veio você … Meu Deus, que loucura! Eu tinha que ter
percebido! O que mais ela pode ter feito que eu não saiba?
Sentei-me ao lado de Mariana e ficamos em silêncio.
— Você vai até ela? — ela perguntou depois de um tempo.
— Não. A Cíntia tem que vir aqui se explicar para mim. E hoje
mesmo. Vou falar pro Claudinei ir buscá-la.
— Mas se ele chegar lá assim, de repente, ela pode ficar desconfiada.
— Vamos inventar alguma desculpa. Vou pedir pra que ela ajude nos
preparativos do aniversário de dois anos do Davi.
— Se você quer que ela venha agora, acho melhor fazer outro tipo de
apelo.
— Outro tipo de apelo?
— Sim. Ligue pra ela e faça com que ela pense que quer vê-la por
outros motivos.
Ergui as duas sobrancelhas, curioso.
— Está sugerindo que eu finja interesse?
— Exatamente. Afinal de contas, era tudo que ela queria, não é?
conquistar você, desde o início. Pelo que eu entendi ela quis tirar todos os
obstáculos. Sua esposa, seus filhos e agora eu e o meu filho. Faça com que
ela pense que conseguiu e ela virá.
Ponderei por alguns segundos.
— É uma boa ideia — concordei.
Sem perder tempo, peguei o celular em meu bolso e fiz a ligação.
Coloquei no viva voz. Depois do primeiro toque, Cíntia atendeu:
— Alô, Leo?
CAPÍTULO 44

Leonardo Moretti

Só de ouvir a voz daquela mulher, meu sangue ferveu. Mas tentei não
demonstrar minha raiva.
— Oi, como você está? — falei.
— Estou bem.
— E a bebê?
— Estamos bem.
Limpei a garganta e procurei bem as palavras.
— Preciso... te ver.
Ela deu um risinho e perguntou:
— Me ver? E o que quer comigo?
Olhei para Mariana e ela me incentivou a continuar.
— Nada em particular... — respondi — Só preciso te ver. Conversar
sobre umas coisas.
— Umas coisas, é? — houve uma pausa — Que coisas? — já estava
toda manhosa na segunda pergunta.
— Venha e saberá — respondi lhe dando esperanças.
— Tudo bem. Amanhã eu vou, então.
— Amanhã? Não! Tem que ser hoje. Agora. — falei com muita
ansiedade. Mari me pediu calma. — Quero dizer, eu gostaria que fosse
agora.
— Agora?
— Sim.
Ela se calou por um tempo, certamente pensando sobre a proposta.
— Tudo bem. — falou — Eu posso ir, mas a Mariana não vai se
chatear. A última vez que estive aí ela pareceu não gostar muito.
— Não, Mariana não tem que opinar em nada aqui. Pra falar a
verdade, não estamos muito bem. — menti.
— Não? E por quê? — ela pareceu ficar mais animada.
Tentei pensar em algo.
— Bem... parece que não vai dar muito certo esse nosso
relacionamento. — pisquei para Mari e ela sorriu — Sabe como é…
estamos tendo uns problemas… não convém dizer por telefone.
— Nossa, eu sinto muito por vocês. Pareciam tão felizes! — ela
falou como se realmente lamentasse.
Quase a xinguei por ser tão falsa!
— É, pois é... As coisas nem sempre são o que parecem.
— Então você quer que eu vá agora?
— Isso mesmo.
— Mas agora eu estou trabalhando.
— Peça ao idiota do seu patrão pra te liberar. Ele sabe que você está
esperando um filho meu e precisamos ajustar algumas coisas.
Ela pensou mais um pouco e falou:
— Tudo bem, eu vou falar com ele. Vou inventar uma desculpa.
— Não venha na sua moto. Pode ser perigoso — tentei mostrar
preocupação para ser mais convincente — Pegue um Uber, eu pago a
corrida.
— Tudo bem, em poucos minutos eu estarei aí.
Encerrei a ligação e olhei para Mariana.
— Será que ela desconfiou de alguma coisa? — perguntei.
— Acho que não. Até eu estava quase acreditando!
Revirei os olhos.
— Não gosto de mentir, mas temos que ter toda cautela. Essa mulher
é perigosa e só agora me dei conta disso.
—Verdade. E agora que, com certeza, está pensando que o feitiço deu
certo, virá para o golpe final.
Suspirei de preocupação.
— Precisamos nos preparar. — concluí.

◆ ◆ ◆

Mariana Barros

A conversa com Cíntia não fez muito bem ao Leonardo. Os minutos


que se passaram foram de total tensão para ele. Eu nunca o tinha visto tão
inquieto. Parecia um tigre enjaulado dentro daquele quarto. Não dava nem
para mensurar o que ele estava sentindo diante de tudo aquilo. Tudo levava
a crer que a morte de Daniela tinha a ver com aquela magia. Eu nunca
acreditei nessas coisas, mas meu mundo de crenças estava sendo virado de
cabeça para baixo diante de tudo que eu estava vivendo nos últimos meses.
E eu tinha certeza de que aquela coisa continha uma espécie de
poder. Não sei como explicar, mas indiretamente Cíntia havia “matado” a
esposa de Leonardo. A mãe do seus filhos. Senti uma angústia tão grande
diante daquela informação que tive vontade de gritar, mas apenas chorei.
Uma agonia tomou conta de mim. Afinal de contas, era inegável que o
coração de Daniela influenciava no meu emocional e era como se ela
mesma estivesse expressando sua dor através de mim.
— O que você está pensando em fazer quando ela chegar? —
perguntei.
— Vou confrontá-la e tirar dela toda a verdade. Infelizmente,
provocar a morte de uma pessoa em ritual espiritual não é crime, caso
contrário ela ia apodrecer na cadeia. Mas eu juro que de alguma forma ela
vai pagar.
— Cuidado Leo, não se deixe envenenar pela raiva. Lembre-se que
ela é só uma pobre coitada que se apaixonou por você e essa foi a maneira
que achou pra te conquistar... Talvez nem saiba o tamanho do absurdo que
fez.
— Não a defenda, Mariana. Eu sei que está fazendo isso porque ela
está grávida, mas isso não é motivo pra não ser duro com ela. E sim, ela
sabe muito bem o que fez. Não tem nada de inocente.
Me calei. Ele tinha razão.

◆ ◆ ◆

Leonardo Moretti

Peguei a sacola com aquelas coisas e levei para sala. Pedi para
Jandira levar as crianças para o quarto de TV e ficarem por lá. Eu e Mariana
esperaríamos na sala. Coloquei a sacola na mesa de centro, em cima de uma
bandeja e esperei. Ouvimos quando o carro chegou, me levantei e fui até a
varanda. Mari ficou na sala. Já tinha deixado um dinheiro com o Claudinei
para pagar o táxi. Cíntia desceu do carro, aparentemente ansiosa, me
olhando com um sorriso dançando nos lábios, iludida. Usava um vestido
branco, folgado, estilo hippie.
Eu a encarei de forma impassível, analisando cada um dos seus
movimentos. Um filme se passou pela minha cabeça. Aquela mulher,
aparentemente inofensiva, se aproveitou da bondade de Daniela e entrou em
sua casa cobiçando tudo que lhe pertencia, incluindo o marido e os filhos.
Minha Doce Daniela tinha sido vítima do mal.
Cíntia matou a minha esposa!
Nada me convenceria do contrário. Meu peito doeu ao pensar
naquilo. Tudo poderia ter sido diferente.
Tentei forçar um sorriso e estendi a mão convidando-a a entrar.
— Que bom que você veio. — falei com satisfação.
Isso mesmo. Satisfação e alívio. Finalmente colocaria um ponto final
naquilo. Ela segurou a minha mão e apoiando o outro braço na barriga,
perguntou:
— Oi, o que você quer comigo?
— Primeiramente quero te mostrar uma coisa.
Ela afastou a cabeça e ergueu a sobrancelhas mostrando curiosidade.
Assim que a entramos na sala e ela se deparou com Mariana sentada no
sofá, seu sorriso se desfez. Cíntia recolheu sua mão da minha e paralisou,
sem reação.
— Mariana? — perguntou surpresa.
— Boa tarde, Cíntia. — minha noiva respondeu calmamente.
— Pensei que não estivesse aqui — falou, completamente sem graça.
Mari sorriu singelamente e explicou:
— Também estou esperando por você.
— Esperando por mim? — perguntou, mostrando certo incômodo.
Me olhou confusa e engoliu em seco. — O que está acontecendo? Onde
estão as crianças?
— As crianças estão no quarto, vendo TV. — respondi
tranquilamente — E não está acontecendo nada. Sente-se por favor.
Acomodei-me ao lado de Mariana e apontei a poltrona à nossa frente
para que Cíntia se sentasse. Nós nos entreolhamos, enquanto Cíntia estava
atenta, estudando nossas reações a fim de conseguir algumas informações.
Segurei a mão de Mariana entrelaçando nossos dedos. Ela alisou meu
antebraço e sorriu com os lábios trancados acenando positivamente, me
incentivando a começar aquela conversa.
Cíntia mudou de expressão ao perceber que eu havia mentido sobre
não estarmos bem e se remexeu, incomodada.
— O que vocês querem comigo? Por que eu estou aqui? — seu tom
de voz já mostrava um pouco de estresse.
Ela podia até tentar aparentar, mas de burra não tinha nada. Aliás,
sempre me questionei do porquê uma moça tão desenvolta e articulada estar
trabalhando como babá. Mas é claro que depois que descobri suas
verdadeiras intenções, tudo se aclarou. Olhei bem em seus olhos e falei:
— Eu te chamei aqui porque estou pensando em montar um quarto
para minha filha. Gostaria que ela viesse morar comigo.
Ela franziu a testa e deu um leve sorriso.
— Está me dizendo que quer que eu volte a morar aqui?
Recostei minhas costas na almofada atrás de mim e, simulando uma
calma que estava longe de existir, falei:
— Não. Seria só a menina.
Ela pareceu confusa.
— Só a menina? O que quer dizer com isso? Está querendo tirar a
minha filha de mim, é isso?
Cruzei os braços na frente do corpo numa postura intimidadora.
— Exatamente. Quero ter a guarda total da criança.
Ela me olhou boquiaberta e balançou a cabeça rapidamente em
indignação.
— E posso saber por quê? — perguntou.
— Claro. — Disse calmamente e a encarei por um tempo, em seguida
falei: — Chegamos à conclusão que você não é uma boa influência para ela.
Ela deu um risinho de deboche.
— O quê? E por quê? — perguntou com a testa franzida.
— Você sabe muito bem o porquê.
Ela encolheu os ombros.
— Do que está falando?
— Falo disso aqui.
Me inclinei e abri a sacola que estava na mesa à nossa frente. Cíntia
arregalou os olhos e se retesou. Eu despejei o conteúdo da sacola na
bandeja, enquanto conferia sua reação. Ao se deparar com aquilo, levou as
mãos à boca e deu um grito que ecoou pela casa. Jandira e os meninos
apareceram no alto da escada, atraídos por ele. Antes que perguntassem
alguma coisa, ordenei que voltassem. Jandira fez o sinal da cruz ao notar a
presença de Cíntia. Cercou os meninos e os arrastou novamente para dentro
do quarto.
— Vamos, vamos continuar vendo o filme. — ela falou.
Voltei-me para Cíntia, que ainda estava com expressão de horror e
ordenei:
— Quero que me conte o que significa isso.
— Mas o que é isso? — desconversou.
— É o que eu quero que me responda. — falei.
— Eu?
— Sim, você. Me responda! O que é isso, Cíntia?
Ela se fez de inocente.
— Mas eu não sei o que é isso! — respondeu, levando as mãos ao
peito.
— Ora, não finja que não sabe.
— Eu juro, juro que não sei.
Ela até daria uma boa atriz. Outra pessoa juraria que estava falando a
verdade.
— Não sabe? — foi Mariana quem perguntou — Então, por que se
assustou?
Ela se fez de desentendida e deu de ombros.
— Ah, porque... porque isso é... feio!
Revirei os olhos diante de sua dissimulação.
— Para com esse teatro. — esbravejei — Sabemos muito bem que
isso te pertence. Até seu nome tá aí. Quero que me explique detalhadamente
o que é tudo isso. O que foi que você fez?
Ela segurou a barriga e cresceu os olhos sobre mim, mas não disse
nada.
— Vamos, Cíntia! Estou esperando uma explicação! Seja lá o que
tenha feito, quero que desfaça! Agora!
Seu semblante mudou completamente. Ela trancou os dentes e sua
respiração foi ficando pesada. As narinas dilataram. Parecia estar se
transformando. Mariana apertou meu braço com medo daquilo.
— Você não devia ter mexido nisso! — falou entredentes.
Estreitei os olhos sobre ela.
— Por quê? — eu quis saber — Por que não deveria mexer? Achou
mesmo que ia conseguir alguma coisa com essa porcaria? Achou que
usando isso me faria cair aos seus pés?
Ficamos um tempo duelando com o olhar. Ela riu, dissimulada. Eu
tentava me controlar, considerando que ela estava grávida, mas a vontade de
voar no seu pescoço estava grande.
— Você condenou todos nós à desgraça mexendo nisso, seu imbecil!
— esbravejou.
— É mesmo? — Inclinei a cabeça e semicerrei os olhos, mostrando
que suas palavras não me intimidavam. — Pois veja o que eu faço com
isso!
Me levantei decidido. Peguei a bandeja com aquelas coisas e joguei
na lareira.
— Não! — Cíntia gritou.
Não havia fogo, mas ia providenciar um bem rápido, pois tudo o que
eu precisava estava à mão. Ela tentou me deter, mas Mariana a segurou.
Joguei o álcool e risquei o fósforo sem hesitar. Cíntia se debateu e se soltou
de Mariana, arremetendo-se sobre mim.
— Desgraçado! Você não devia ter feito isso! — berrou.
Eu a segurei, enquanto ela socava meu peito, desesperada. Seu
objetivo era passar por mim e arrancar os objetos do fogo. Eu a mantive
firme, enquanto ela chorava e uivava como uma alma condenada ao inferno,
olhando para o fogo, como se o seu bem mais precioso estivesse se
queimando ali, ou como se sua vida dependesse daquilo. Seu rosto se
retorceu, como se estivesse sendo possuída. Mari me encarou, horrorizada.
Aquela mulher estava ficando louca. Aquilo era pior do que eu pensava. Eu
chamaria um padre para abençoar minha casa depois, mas naquele
momento usei as forças que tinha. Comecei a rezar um Pai Nosso.
— Pai nosso que estás no céu, santificado seja o Seu nome... Venha a
nós o vosso reino...
Mariana, emocionada, me acompanhou na oração. Eu era católico,
frequentava a missa aos domingos, mas nunca dei muita importância a esse
papo sobre fé. Via tudo isso como uma experiência social, mas agora ali,
diante daquilo, agradeci pelas aulas de catecismo as quais minha mãe me
obrigou a frequentar.
Cíntia continuava se debatendo e chorando, desesperada. Mariana se
aproximou sem parar a oração e nos olhamos aflitos. Agimos por instinto.
Repetimos aquela reza o quanto foi necessário. Cíntia se debatia querendo
arrancar seus objetos do fogo, dizendo frases de lamento, desconexas. À
medida que aquilo queimava, um peso saía de minhas costas. Mari estava
soluçando e rezando, muito impactada com tudo. Me preocupei por ela, mas
pude ver alívio em seu rosto também.
O mal estava sucumbindo. Cíntia parou de se debater e começou a
desfalecer em meus braços. Desmaiou. Mari me olhou preocupada.
— Ela está passando mal, Leo! — falou — Olha!
Cíntia estava sangrando. Me preocupei. A amparei em meus braços e
percebi que estava pálida. Aquilo, aquela coisa toda a atingiu de alguma
forma.
— A bebê, Leo. Deve estar nascendo. Temos que levá-la pro
hospital. — Mari falou.
— Jandira! Jandira! — gritei.
Ela prontamente me respondeu e apareceu descendo as escadas e eu
fui logo dizendo:
— Vamos levar a Cíntia ao hospital. Minha filha está nascendo.
Cuide das crianças.
— Oh, meu Deus! Não se preocupe, vou cuidar deles. Mandem
notícias!
Com Cíntia nos braços, corri para o carro. Mariana veio atrás de mim
e seguimos para o hospital.
CAPÍTULO 45

Mariana Barros

Seguimos rumo à cidade. Cíntia acordou no meio do caminho e


parecia estar sentindo dor. Quando se deu conta da sua situação começou a
chorar compulsivamente. Eu estava com ela no banco de trás, tentando
acalmá-la, mas estava inconsolável.
— Minha filha, vou perder a minha filha! — reclamou.
— Vai ficar tudo bem, Cintia! — tentei animá-la.
— Não vai, não. Tudo por culpa de vocês! Vocês nos amaldiçoaram!
— Claro que vai. — falei calmamente — Sua filha vai nascer e tudo
vai dar certo.
Minhas palavras não fizeram efeito. Ela chorava como uma criança
quando faz birra.
— Ahhhh, eu vou morrer.
Leonardo dirigia o mais rápido que podia. Volta e meia ele conferia o
retrovisor atento a nós duas. Enrico resolveu dançar dentro da minha
barriga e a situação toda estava me deixando preocupada. Cíntia seguia
gemendo e reclamando.
— Estamos quase chegando, Cíntia. — Leo avisou. Ele estava sério,
compenetrado — Tente se acalmar.
Seu tom de voz era severo, porém preocupado. O celular de Cíntia
começou a tocar em sua bolsa. Eu o peguei para conferir. Era o Diego.
— Alô. — falei.
— Mariana? — ele falou surpreso ao ouvir minha voz.
— Diego?
Cíntia segurou em meu braço e balbuciou:
— Diego! Eu... Tenho que falar com ele.
— Onde está a Cíntia? — ele perguntou.
— Está aqui. — respondi olhando para ela, que se contorcia sem
condições alguma de atender. — Mas não pode falar agora.
— Preciso saber onde ela colocou a agenda... Por que atendeu o
celular dela?
— Diego, estamos levando a Cíntia para o hospital. Acho que o bebê
vai nascer.
— O quê? Como assim?
— Depois você fala com ela.
— Mas...
Sem dar maiores explicações, desliguei o celular e tentei ficar firme
até chegarmos ao hospital.
— Aguente firme, Cíntia. — falei, tentando me colocar no lugar dela
e ao mesmo tempo com muito medo.
Já no Pronto-socorro, Cíntia finalmente estava sendo examinada pelo
médico. Leo e eu estávamos na recepção esperando por notícias, quando
vimos Diego entrar pela porta. Ele se aproximou de nós se mostrando
preocupado, perguntando como ela e o bebê estavam.
— O que está fazendo aqui? — Leo foi logo falando. — Ninguém te
chamou.
— Calma, Leo. — falei, segurando em seu braço e me colocando em
sua frente. — Estamos em um hospital. Não briguem aqui.
— Eu só quero saber como está a Cíntia. — Diego explicou.
— Você quer importunar, isso sim!
— Leo, por favor, pare! Você também, Diego! — os chamei para um
canto mais reservado — Não comecem com o showzinho de vocês! Estou
cansada de tanto brigarem!
— Eu tenho culpa desse cara viver me perseguindo? — Leo
reclamou — Onde eu estou, ele tem que aparecer!
Diego meneou a cabeça e riu sem vontade.
— Acha que o mundo gira em torno de você, não é mesmo,
Wolverine? — falou, provocando — Eu tenho coisas mais importantes pra
fazer da minha vida, cara!
— Não parece!
— Agora mesmo tenho dois compromissos. Desculpa te decepcionar.
— Diego falou com aquele risinho de canto que deixava Leonardo furioso.
— Então, vaza daqui! — Leo falou em tom baixo e firme, lhe
apontando o indicador.
— Amor, por favor! Se acalme! — pedi.
Ele se abrandou e olhou para mim.
— Esse moleque já passou dos limites. Quer se meter em tudo que
diz respeito a nós! Eu não posso mais permitir que me afronte desse jeito.
Diego apressou-se em dizer:
— A Cíntia é minha funcionária e é por ela que eu estou aqui. Agora
ela é mais responsabilidade minha que sua!
— Mas ela está esperando uma filha minha! Isso aqui não tem nada a
ver com o trabalho de vocês.
Diego o encarou, afrontoso. Os dois começaram a se estranhar como
dois galos de briga.
— Quer mesmo me convencer que está preocupado com a Cíntia,
Leonardo? — Diego questionou — Você não está nem aí pra ela. Sempre a
tratou com desprezo e não! — ele alterou a voz — Essa filha não é sua!
Pela forma como falou, Diego parecia estar falando sério.
— O que disse? — Leonardo perguntou, puxando uma grande
quantidade de ar para os pulmões.
— Isso mesmo que você ouviu. EU sou o pai dessa criança! A
menina não é sua!
Diego repetiu a última frase com muita intensidade e a informação
nos paralisou. Leonardo girou a cabeça tentando conter a raiva, mas eu
sabia que ele ia explodir.
— Ora, seu...
Ele grudou Diego pela gola da camisa e o empurrou até o canto da
parede. Diego resistiu.
— O que vai fazer? Me bater por dizer a verdade?
Nesse momento alguns funcionários perceberam a briga dos dois e se
aproximaram. A atenção de algumas pessoas na recepção se voltou para
nós.
— Senhores, por favor, aqui não é lugar para isso! — falou um rapaz
da administração — Não podem ficar discutindo ou brigando aqui!
Leonardo soltou a camisa do Diego e se afastou um pouco, sem tirar
os olhos dele.
— Nos desculpe, não vai voltar a acontecer e, vamos tentar falar mais
baixo. — falei ao funcionário, que lançou um olhar em cada um de nós e se
afastou. Virei-me para Leonardo e implorei, tentando tirá-lo de perto do
Diego. — Por favor, Leo. Pare com isso! Está todo mundo olhando pra
gente.
Ele revirou os olhos, jogando a cabeça para trás.
— Não quero saber... Que olhem! Ele vai ter que se explicar.
— Não te devo satisfação alguma. — Diego falou.
— Pare você também, Diego! — ordenei. — Já estou cansada disso!
— Tá, eu tô de boas, o leão aí que precisa se adestrado.
— Olha aí! — Leo apontou para Diego — Ele não para de provocar.
— Leo, olha pra mim. — Pedi. — Olha para mim, Leo! — Ele tentou
fixar os olhos atordoados em mim, se arrefecendo um pouco. Tentei
acalmar a fera, acariciando seu rosto — Não caia nas provocações do
Diego, entendeu? Ele só quer te desestabilizar.
— Mas você ouviu o que esse sujeito disse, Mariana? Ele afirmou
que é o pai da filha da Cíntia.
— Sim, eu ouvi. Não vamos discutir isso agora.
— Eu não falei nenhuma mentira. — Diego soltou.
— Diego! — o repreendi.
Leo o encarou novamente com olhos fulminantes.
— Então, quer dizer que todos os meus filhos agora são seus? É isso,
seu miserável? — perguntou, indo para cima dele de novo.
— Senhores, se continuarem a discutir, vou ter que pedir que se
retirem. — falou novamente um dos funcionários.
Garantimos fazer silêncio. Leonardo esperava uma resposta. Diego
meneou a cabeça e olhou para o chão. Sugou o ar entre os dentes e eu sabia
que era assim que reagia quando tinha que dizer algo difícil de ser dito.
— Não. — respondeu, engolindo em seco.
— Não, o quê? — eu perguntei.
Ele olhou para nós e confessou:
— O filho da Mari não é meu. — Meneou a cabeça, mordendo os
lábios, deu um risinho e desviou o olhar.
Olhei para Leonardo e ele piscou os dois olhos. Para nós, aquela
informação não fazia mais sentido, era só uma confirmação. Diego voltou-
se para mim, olhando bem em meus olhos, com arrependimento.
— Não aconteceu nada entre nós aquele dia. — revelou — Eu jamais
faria isso com você, Mariana!
Estremeci por dentro e me apoiei em meu noivo. Ele poderia ter
evitado todo o sofrimento que passei naqueles dias e isso me magoou
bastante. Mas de nada adiantava ficar remoendo aquilo.
— Sabemos que o filho é meu. — Leo disse com orgulho.
Diego balançou a cabeça positivamente.
— Mas a filha da Cíntia, não. — Diego falou com queixo erguido e
parecia estar falando a verdade.
— O que quer dizer com isso? A Cíntia ficou grávida antes mesmo
de eu conhecer a Mariana! — Leonardo falou.
Diego abriu a boca para falar, mas fomos interrompidos pelo
médico. Nos aproximamos dele para fazer as perguntas e ouvir o que ele
tinha a dizer.
— Como ela está, doutor? — Diego se apressou em perguntar.
O médico, um senhor de pouco mais de cinquenta anos, respondeu:
— A paciente sofreu um deslocamento parcial de placenta, teve
sangramento, mas já estabilizamos. A pressão Arterial estava um pouco alta
e já estabilizamos também. Infelizmente o bebê não é maduro suficiente,
então ela vai ter que ficar em repouso total até chegar pelo menos à
trigésima semana, o que equivale a ao sétimo mês, para o retirarmos.
— Como assim sétimo mês? — Leo perguntou. — Quanto tempo
tem essa criança?
— Bem, é uma gestação de cinco meses, mais ou menos. — o doutor
respondeu com firmeza.
Nos entreolhamos. Diego estava falando a verdade. Ele colocou as
mãos nos bolsos e olhou para o chão. Leonardo esfregou o rosto com as
mãos tentando espantar a raiva que lhe acometeu quando aquela verdade o
atingiu e se afastou. O médico sem entender muito a nossa reação, nos
informou que iria liberar nossa entrada para ver a paciente. Acenei
positivamente com a cabeça. O Doutor retribuiu o gesto e se retirou. Fui
atrás de Leo, mas ele me deteve dizendo que ia ao banheiro.
— Preciso ficar sozinho por um tempo. Não vou demorar. — falou
com voz embargada.
Sabia que ele ia se esconder para chorar. Não gostava de demonstrar
fraqueza em público. Fiquei com pena. Leo estava sobrecarregado demais e
aquele dia estava testando nossas emoções.
CAPÍTULO 46

Mariana Barros

Leonardo saiu pelo corredor com passos apressados e eu fiquei


olhando-o sumir por lá, tentando adivinhar o que se passava em sua cabeça.
Voltei para perto do Diego e o olhei com decepção. Ele parecia
envergonhado.
— Como pôde fazer isso? — o questionei.
Ele optou por se calar.
— Explique essa história direito! — ordenei.
Ele sacudiu os ombros e não me encarou, mas respondeu:
— A Cíntia me pediu ajuda. Ela queria reconquistar o Leonardo... E
eu queria você de volta! Por isso fui lá e... a engravidei. Achei que seria um
bom plano... — ele pronunciou as palavras sem se dar conta do absurdo que
falava.
— A engravidou? Sério isso? E depois? O que ia acontecer? —
perguntei horrorizada — Acharam que o Leo ia se vangloriar por ser o
primeiro pai de uma gestação que duraria um ano?
— Ela só queria ganhar tempo. Vocês a estavam pressionando,
desconfiando que a gravidez era mentira...
— E era mesmo, pelo que estou vendo.
— Tá... — ele estalou a língua — Enfim, ela disse que tem uma
senhora que a ajudaria amadurecer o feto pra nascer aos sete meses... Não
sei bem como é... Ela a chama de Madame. Nem sei quem é. Elas
conversam pelo celular, mas Cíntia confia muito nela. Ela garantiu que a
menina nasceria no prazo certo.
— E você concordou com isso?
— No início sim, mas depois eu... Não sei... — respirou fundo —
Não me senti confortável com isso. Fiquei em dúvida...
— Dúvida? — eu estava realmente horrorizada — Diego, é a sua
filha! Consegue entender isso? Você sempre disse que queria ser pai! É esse
tipo de pai que quer ser?
Ele trancou os lábios e me olhou com olhos marejados.
— Não! Claro que não! Mas... Eu queria ser pai dos SEUS filhos. Era
isso que eu queria!
Soprei o ar pela boca, saturada de sua insistência.
— Você sempre soube que eu nunca quis ter filhos. — disse,
aborrecida com tudo aquilo.
Ele meneou a cabeça, inconformado.
— Mas agora parece ter mudado de ideia, não é? — ele olhou para
minha barriga e percebi que segurava um choro — Era pra esse filho ser
meu!
— Mas não é. — retruquei.
Ele franziu a testa e me olhou bem nos olhos.
— O que você viu nesse cara? — perguntou com voz aguda pela
indignação.
Falei com firmeza:
— Eu me apaixonei por ele.
— Como? Você vivia dizendo que nunca se apaixonava e foi se
apaixonar logo por esse troglodita?
— Não foi nada planejado. E “esse troglodita” é um pai maravilhoso,
um homem bom, honesto! — falei com voz embargada — E não mude de
assunto! O que vocês fizeram foi horrível! Ficaram de armação pra cima da
gente. Ninguém pode obrigar o outro a gostar de ninguém, Diego. Mas
agora, trazer um bebê ao mundo para esse fim, usar uma criança inocente,
nessa trama sórdida? Isso foi o pior!
Ele ficou me encarando com lábios trancados e crispados.
— Eu... — tentou dizer algo, mas hesitou.
Consegui atingi-lo com minhas palavras. Ele desabou. Sentou-se
numa das cadeiras dispostas no corredor e não conseguiu conter as
lágrimas. Percebi que ele estava sofrendo com aquela situação. Respirei
fundo e sentei-me ao seu lado. Olhei na direção contrária para ver se
Leonardo estava vindo, mas nada dele ainda. Já estava preocupada. Depois
de um tempo em silêncio, Diego falou:
— No início eu não pensei direito, mas depois que a barriga da Cíntia
foi crescendo, eu... — jogou a cabeça para trás, escorando-a na parede —
Quando senti ela se mexendo pela primeira vez, eu tive a certeza de que
lutaria por ela. A minha filhinha. Me dei conta de que jamais permitiria que
o Leonardo tirasse mais nada de mim. Eu contaria a verdade e foi o que eu
fiz. Então, não me julgue. Só quero que elas fiquem bem. Eu só quero a
minha filha.
O observei enquanto desabafava e vi algo mais.
— Sente alguma coisa pela Cíntia? — perguntei.
Ele respirou fundo e demorou um pouco a responder.
— Não sei... Eu estou confuso.
— Confuso por quê?
— Eu gosto dela e... Sei lá... É bom quando a gente fica junto. Não é
só sexo. A gente fala sobre a bebê e meio que planeja o futuro dela. Se vai
ser médica ou uma advogada... — ele sorriu — A Cíntia é uma garota
sofrida, Mari. Sofreu abuso de um tio quando ainda era criança... E os pais
dela batiam muito nela.
— Sério?
— Sim. Ela sempre foi rejeitada. A única coisa que deseja é ser
amada. Nisso nós nos identificamos.
— Mas isso não é motivo pra destruir a vida das pessoas com
mentiras e forçá-las a nada.
— Eu sei. Estou arrependido.
— Vocês dois poderiam se amar e serem felizes, mas... O problema é
que você colocou na cabeça que tem que fazer eu me apaixonar por você e
isso nunca vai acontecer, Diego!
— Por que não? Por que você nunca pôde me amar e agora morre de
amores por esse cara que conheceu há poucos dias? Quando você dizia que
era assim, que nunca se apegava a ninguém, eu até entendia e me
conformava, mas agora, vendo como você fica com ele, me sinto um lixo,
desprezível.
Olhei para ele e me lembrei que aquela Mariana de quem ele falava
não existia mais.
— Mas há uma explicação. — falei.
— Claro que há. Eu sou um merda. Essa é a explicação.
Me aproximei do seu ouvido e revelei:
— Eu recebi o coração da esposa dele.
— O quê? — Diego me olhou com a testa franzida. — O que disse?
— No transplante. Eu recebi o coração da Daniela.
Ele paralisou, me olhando com curiosidade.
— Espera, aí! Eu acho que entendi errado. Você disse que...
— Recebi o coração da Daniela. — completei — Eu sei, é estranho,
mas foi isso que aconteceu. Foi o coração dela que me trouxe até aqui.
Diego caiu o queixo. Apontou para a direção do meu peito.
— Está me dizendo que o coração da falecida esposa do Leonardo
está dentro de você, é isso?
— Exatamente. Então, não se sinta tão mal por isso. Se eu estivesse
com o meu velho coração pifado, nem ele teria chance.
— Então foi por isso que você se apaixonou por ele?
— Com toda certeza. — confirmei.
Na verdade, eu não tinha essa certeza. A sensação que me dava era
que, mesmo se tivesse conhecido Leonardo antes de ser transplantada, me
apaixonaria por ele instantaneamente. Ele tinha tudo o que eu esperava
achar em um homem. Porém, deixei essa informação apenas para mim.
Diego meneou a cabeça e riu, abobalhado. Ficou pensativo por um
tempo e finalmente falou:
— É... realmente foi uma luta desleal. Que loucura!
Olhei para ele um pouco apreensiva e pedi:
— Não conte nada a ninguém. Ninguém sabe disso além de
Leonardo, o pai dele e eu. Agora você.
Eu não devia ter contado a ele, mas sabia que se sentiria melhor
sabendo a verdade. Já estava visivelmente aliviado. Aproveitei para
aconselhar:
— Tente recomeçar com a Cíntia. Vocês vão ter uma filha... A
família que você sempre quis.
Ele estalou a língua.
— Ah, mas eu não tenho chance com ela também. Aquela é outra que
é doida por esse Leonardo!
— Eu não sei não. Acho que as coisas não são bem assim. Quando
você ligou e eu disse o seu nome, os olhos dela brilharam, mesmo sentindo
dor.
Ele sorriu e ficou refletindo. Me calei o deixando com seus
pensamentos. Avistei Leonardo vindo e fui ao seu encontro.
— Você está bem? — perguntei.
Ele disse sim com a cabeça e percebi seus olhos inchados.
— Leo, eu conversei com o Diego...
Ele meneou a cabeça negativamente.
— Não quero saber... Não quero falar sobre isso.
— Mas, amor...
— Estou me sentindo o cara mais idiota do planeta, Mariana! Eu só
quero sair daqui!
— Mas precisamos ver a Cíntia.
— Não posso vê-la — ele apontou para a direção onde ficava os
quartos. — Ela está correndo risco, não pode se estressar, se eu me
encontrar com ela agora sou capaz de matá-la com minhas próprias mãos.
— Calma!
Tomei-o pelo braço e saímos por uma porta lateral que dava acesso a
um pequeno jardim. Nos sentamos em um dos bancos. A noite estava
caindo, trazendo aquela tristeza do fim da tarde. Leonardo colocou a cabeça
entre as mãos e se lamentou:
— Eu não posso acreditar nisso! Eles se uniram pra nos enganar,
Mariana. Aquela infeliz nunca esteve grávida e mesmo assim foi te
importunar, fazendo drama, dizendo que ia abortar a criança se eu não me
casasse com ela. Me colocou contra parede mais de uma vez… Não bastou
as bruxarias que fez? Que merda!
— Eu estou chocada tanto quanto você com tudo isso!
— Ela ainda se uniu ao seu “amiguinho”, inventando um monte de
mentiras.
— Eu sei. O que fizeram não tem perdão. — falei.
— Os dois merecem ir pra cadeia, isso sim!
— Com se não bastasse, a Cíntia ainda conseguiu esconder o tempo
de gestação.
Leo meneou a cabeça.
— E eu não desconfiei de nada. — falou — Como eu ia imaginar
uma coisa dessas?
— E o trabalho que tivemos para explicar a Sarah que ela teria uma
irmãzinha. Ela estava tão empolgada!
— O que esses dois tem na cabeça? O que ela pensou que ia
acontecer? Que eu não ia desconfiar de nada?
Respirei fundo.
— Segundo Diego, estavam só ganhando tempo, amor. Ela precisava
de um bebê na barriga.
Ele respirou fundo, cansado de todo aquele estresse.
— Hoje, definitivamente, foi um dia de grandes revelações. —
lamentou.
Nos abraçamos e ficamos um tempo assim, dando força um ao outro.
Leo conseguiu se acalmar e resolvemos entrar novamente. Diego
continuava no mesmo lugar. Nos sentamos para esperar por um tempo, até
que um enfermeiro veio até nós, avisando que podíamos entrar para ver a
Cíntia. Leonardo respirou fundo e se levantou.
— Não sei se posso fazer isso. — falou para mim.
— Vamos lá. — pedi — Tente se controlar. Precisamos resolver isso
de uma vez por todas.
Ele acenou positivamente.
— Tudo bem. Quero mesmo saber melhor sobre essa história.
Diego e Leonardo evitaram de se olharem e seguimos o enfermeiro
até o quarto onde Cíntia estava. Entramos juntos e assim que ela avistou o
Diego, começou a chorar.
— Diego! Diego!
Ele foi até ela, estranhamente emocionado. Os dois se abraçaram.
— Eu quase a perdi, quase perdi a nossa filha! Eu quase a perdi,
Diego!
Ele a olhou com carinho, acariciando seu rosto e eu vi sentimento ali.
Conhecia bem o Diego. Talvez ainda não tivesse se dado conta, mas estava
apaixonado.
— Vai ficar tudo bem. — ele disse confiante — O doutor falou que
vai ficar tudo bem.
Leo limpou a garganta para chamar a atenção deles. Diego e Cintia se
afastaram do abraço e nos olharam constrangidos.
— Podem explicar o que está acontecendo aqui? — Leonardo
perguntou.
Houve um momento de tensão e silêncio. Os dois se olharam, como
se decidissem quem falaria.
— Pode contar. — Diego falou para ela.
Cíntia se virou para nós e confessou:
— O Diego é o pai da minha filha. — ela falou com certo alívio na
voz.
Leonardo os encarou de forma impassível e não disse nada.
— Diego já nos contou, Cíntia. — eu falei.
Ela acenou positivamente com a cabeça e colocou as mãos na
barriga, fazendo uma careta de choro. Diego segurou em sua mão e beijou
sua testa. Ela começou a falar:
— Eu estou muito arrependida por tudo o que eu fiz a vocês... Eu
tentei fazer o Leonardo se apaixonar por mim de formas erradas, usando
forças que eu pensei que fossem poderosas, mas o amor verdadeiro é bem
mais forte... Hoje eu sei o quanto ele é forte, pois é o que eu sinto pela
minha filha... E eu tenho certeza de que foi por causa desse amor que eu
ainda estou viva. Era pra eu ter morrido. O amor que eu sinto por minha
filha e pelo Diego... Me salvou.
— Por mim? — Diego perguntou surpreso.
Ela disse sim com a cabeça.
— Me desculpe... — ela continuou — Eu me apaixonei por você,
Diego... Desde que soube da gravidez, mas você vivia falando na Mariana,
por isso não contei nada. Madame disse que seria assim: Com o filho virá o
amor... Lembra?
— Cíntia... eu... — ele ficou abobalhado.
— Eu te amo, Diego!
Ela confessou bem ali, na nossa frente. Diego estava muito
emocionado. Não soube o que dizer.
— Eu... Eu... — olhou para mim, sondando a minha reação. Eu sorri
para ele singelamente. Ele voltou a olhar para Cíntia e também confessou:
— Eu... eu também te amo, morena!
Os dois se beijaram sem nenhum constrangimento. Deu para perceber
o quanto já se conheciam intimamente, com certeza não era o primeiro beijo
que trocavam, mas o primeiro conscientes de que se amavam. Leonardo e
eu assistimos a tudo, imóveis, sem entender muito bem o que era tudo
aquilo. Parecia que tudo estava se ajustando. Cíntia virou-se para nós e
pediu:
— Preciso que me perdoem para poder seguir. Quero recomeçar.
Eu olhei para ela e só consegui sentir pena, então falei:
— Da minha parte está perdoada.
Olhei para meu noivo e ele ainda estava muito quieto.
— Leo? — o chamei.
Ele ergueu os braços diante de si e começou a aplaudir.
— Que coisa linda, não é mesmo? Os pombinhos apaixonados! —
falou com ironia — Estou quase chorando!
O cutuquei, mas ele me ignorou. Cruzou os braços na frente do peito
e continuou:
— Um simples pedido de perdão não vai resolver nada, Cíntia. —
apontou o indicador para ela e alterou a voz — Você matou a minha esposa,
você se infiltrou na minha casa e atormentou os meus filhos com suas
porcarias!
— Eu, eu não matei a Daniela! — Cíntia falou com voz chorosa —
Eu só... só atraí a doença... Se ela tivesse se tratado...
Leonardo se indignou.
— Ainda tem o descaramento de dizer isso, sua vagabunda? — ele
esbravejou.
— Leo, se acalme! — pedi, segurando em seu braço.
Ele sacudiu o braço para se livrar da minha mão.
— Não, ela vai me ouvir. — ele retrucou, se aproximando da cama
— A Daniela te ajudou, ajudou sua família. Ela doou roupas, alimentos... E
como você a pagou? Com suas bruxarias! Agora pede perdão? Como se
tivesse apenas pisado no meu calo? É isso mesmo? Pensa que sou tão idiota
assim? Acho que você não tem noção do que fez!
— Eu tenho... — ela falou num fio de voz. — Estou arrependida...
Eu tenho noção sim, Leonardo!
— Não, você não tem! — a voz grossa de Leo ressoou pelo quarto
como um trovão.
— Ô, vai com calma, amigo! — Diego pediu — Estamos em um
hospital.
Leonardo virou-se para ele:
— E você é outro sem noção! Vocês dois são! O casalzinho do ano!
Que lindo! Se merecem! — ele bateu palmas mais uma vez — Parabéns!
Longa vida ao casal!
Diego e Cíntia se olharam com olhos tristes, cientes de que Leonardo
estava até pegando leve com eles. Leo continuou:
— Eu vou esquecer tudo o que fizeram, mas com uma condição: —
ele parou de falar, fazendo um suspense, intercalando o olhar de um para o
outro — Quero que desapareçam das nossas vidas. Sumam dessa cidade e
eu não quero nem ouvir falar sobre vocês, caso contrário, vou achar uma
brecha na lei pra colocar os dois na cadeia. Vocês me entenderam?
Eles disseram sim com a cabeça.
— Eu só tenho dó dessa criança... Então, vou dar um conselho:
Sejam pais de verdade! Ame a filha de vocês e a eduquem da forma correta.
Instrua essa criança pelo caminho do bem, caso contrário, tudo o que
fizeram de ruim vai voltar sobre ela. Aliás, o fato de você estar nessa cama
de hospital, mostra que o mal já está começando a cobrar o seu preço. Que
Deus tenha piedade da filha de vocês!
CAPÍTULO 47

Leonardo Moretti

Depois de toda aquela turbulência as coisas pareciam estar se


encaixando. Fiz uma limpeza geral na casa. Limpeza de água e sabão e
espiritual também. O Padre Nelson veio nos ajudar. Durante essa limpeza
ainda descobrimos uma coisa aqui e ali, das mandingas da Cíntia e
queimamos tudo. Eu não acreditava que tudo aquilo realmente havia
matado minha esposa, mas com certeza contribuiu para que o pior
acontecesse, nos trazendo influências ruins.
Mas tudo já havia passado. Cíntia e Diego foram embora da cidade.
Foram morar no interior de São Paulo. Ele mesmo me disse. Depois
daquele dia no hospital, passados alguns dias, ele me procurou. Eu estava
saindo do cartório, quando o ouvi chamar o meu nome:
— Leonardo!
Respirei fundo e revirei os olhos, antes de me virar.
— Pois, não! — falei, o encarando com cara de poucos amigos.
Ele me olhou com olhos espremidos por causa do sol e perguntou:
— Tudo bem?
— Por que não estaria? — retruquei.
— Que bom! — disse balançando a cabeça positivamente. Estava
com as mãos nos bolsos e foi a primeira vez que não o vi ajeitando aquele
topete.
— O que quer comigo? — perguntei, querendo me livrar logo
daquela situação.
Ele coçou o queixo e mordeu o canto da boca.
— Bem, eu e a Cíntia vamos embora, achei que quisesse saber.
Puxei o ar para os pulmões e me lembrei que ela estava em repouso
total por causa da gravidez de risco. Eu não era tão ruim assim, apesar de
tudo que ela tinha me feito, a criança era inocente. Também não desejava
nenhum mal a eles.
— Como ela está? — perguntei.
— Está bem. Está em repouso parcial, com tudo controlado. A Hanna
está bem também, desenvolvendo normalmente.
— Hanna?
Ele sorriu.
— É. Foi o nome que a Cíntia escolheu e eu gostei também.
Ergui uma sobrancelha e concordei
— É um bonito nome. — falei com um sorriso singelo.
Ele me olhou sem graça e disse:
— Bem, eu só queria te dar essa informação e pedir desculpas pelos
transtornos. Não me orgulho da forma como agi. Queria passar uma
borracha em tudo isso, pode ser? — fiz uma expressão de “tanto faz!” e
acenei positivamente com a cabeça. Ele completou: — Fui infantil e
irresponsável... Não vai se repetir.
“Infantil? Irresponsável?”
Fala sério! Eu não queria mais brigar, por isso não joguei na cara dele
o que realmente foi que ele fez ou sairíamos no tapa, como sempre. O que
Diego vinha fazendo estava longe de ser algo infantil. Beirava o terrorismo.
Aquele moleque me atormentou como o próprio Diabo. Sacudi a cabeça
para espantar a raiva que estava dando o ar da graça e optei por ignorar
aquilo.
— Ok. Sem ressentimentos — falei, aceitando suas desculpas,
tentando acreditar na sua promessa de não nos importunar mais.
Ele estendeu a mão e fiquei em dúvida se a apertava ou não. Acabei
retribuindo o gesto para me mostrar superior àquela rusga. Antes de se
despedir, Diego falou:
— Preciso que faça algo por mim.
Franzi a testa. Ele estava mesmo me pedindo um favor? Era só o que
me faltava!
— Diga! — falei sem muita animação.
Ele tirou um anel que estava em sua mão direita e o estendeu para
mim.
— Quero que entregue isso a Mariana
Olhei para ele intrigado e perguntei:
— Mas o que é isso?
— Entrega ela e ela entenderá.
— Tudo bem.
Fiz uma careta, peguei o objeto de sua mão e o coloquei no meu
bolso.
— Mande lembranças minhas para Mariana. Diga a ela que estou
feliz por ela e que eu estou muito bem também. Finalmente encontrei o que
tanto queria. Ela saberá o que é. Espero, de coração, que vocês sejam muito
felizes.
— Já somos. — enfatizei.
— Que bom! Estamos indo para São Paulo. Atibaia. Arrumei um
bom trabalho lá.
— Boa sorte pra vocês. — foi a última coisa que falei.
Ele acenou positivamente e se afastou. Pude respirar aliviado ao
saber disso, assim não teria que me preocupar com aquele sujeito sempre
nos rondando. Eu nunca confiaria nele. O vi se afastando e coloquei um
ponto final em tudo aquilo.
Respirei fundo.
— Vida que segue. — falei para mim mesmo.
Olhei para aquele anel em minha mão e quase o joguei fora, mas
estava curioso para saber o que aquilo significava. Quando e o entreguei a
Mariana, ela sorriu e foi exatamente o que ela fez, o jogo no lixo.
Eu não entendi nada, mas logo ela explicou:
— Era um anel de compromisso que o Diego insistia em usar na
esperança de que eu voltasse para ele. Ele me disse que no dia em que
desistisse de mim oficialmente, me entregaria esse anel e eu fiquei
encarregada de jogá-lo fora.
Aquilo era uma ótima notícia. Um problema a menos.

◆ ◆ ◆

Tivemos o aniversário do meu pequeno Davi e isso foi um marco


para aquela nova etapa. Mariana finalmente contou a sua mãe que estava
grávida e que ia se casar. Não sei bem por que não havia contado antes, pois
a notícia trouxe muita alegria para minha sogra. Minha sogra! Outro desafio
que teria pela frente: Conhecê-la. Mariana me confessou que era o sonho
dela ver a filha casada e com filhos. Se for por falta de filhos... Criança é
que não falta! Veio a dúvida. Será que ela estaria disposta a adotar os meus?
Era o que eu queria saber.
Regina viria conhecer nossa família e cuidar da Mariana no
puerpério. Fiquei torcendo para ela não se assustar com uma família tão
grande caindo em seu colo de repente. Segundo Mariana, ela iria amar tudo
isso. E ela tinha razão. Regina era uma mulher encantadora. Fiquei nervoso
na hora de conhecê-la, mas não poderia ter sido melhor. Nos demos bem de
cara. Ela era divertida e bem-humorada. Fui com Mariana buscá-la na
rodoviária e, assim nos apresentamos, foi amor à primeira vista.
— Mari! — exclamou ao ver a filha.
Ela quase esmagou Mariana de tanto beijar e abraçar. Mari ficou até
envergonhada por ser tratada como uma criança, mas não conseguiu
esconder sua satisfação e alívio por sua mãe estar com ela num momento
tão importante.
— Olha só pra você! — se dirigiu a mim — Tão bonitão! Minha
filha sempre teve bom gosto!
— Mãe! — Mari exclamou, toda vermelha.
— Eu também tenho muito bom gosto, minha sogra.
Nos abraçamos e ela começou a tagarelar, demonstrando o quanto
estava feliz.
— Meu Deus, minha filha! Você está tão linda com esse barrigão!
No caminho, Regina e eu tivemos a chance de conversar bastante
para nos conhecermos. Ela era uma senhora de 55 anos, muito bonita ainda.
Percebi logo de onde vinha a beleza de Mariana. Rimos muito com sua
história sobre aquela viagem. Contou como quase entrou em outro ônibus
numa parada e várias situações hilárias. Nunca tinha visto Mariana rir tanto
como agora.
— Ah, dona Regina, só você mesmo. — ela falou.
Regina começou a perguntar sobre várias coisas. Sobre minha
família, a cidade, a fazenda, meus filhos.
— Oh meu Deus, eu estou tão empolgada. Sempre quis ter netos, mas
os meus filhos, os dois, resolveram me torturar. Essa aqui — apontou para
Mari — Já cansou de me dizer que nunca se casaria. Mas eu sabia que a
minha oração era forte, eu sabia.
— Estou começando a acreditar nisso também, mamãe.
— Ah minha filha, estava com tanta saudade! Mas ainda vou puxar
sua orelha. Onde já se viu? Eu queria ter acompanhado a gravidez desde o
início! Ah, mas no casamento eu faço questão de fazer parte de todos os
preparativos. — avisou Regina.
Mariana se derreteu. Ela realmente precisava disso. Estava gostando
muito de ser paparicada. Ainda mais no finalzinho da gravidez, que estava
muito sensível.
— Meu Deus, que coisa linda! — disse Regina ao avistar a entrada
da fazenda.
Depois de conhecer todos os membros da família, ela ficou
emocionada. Promoveu todos os meus filhos para seus netos e já foi e
exigindo ser chamada de Vó. Me agradeceu por ter conseguido conquistar o
coração de pedra da filha. Mari e eu nos olhamos e sorrimos. Não contamos
a ela sobre Mari ter recebido o coração de Daniela, isso não era mais tão
importante, pois depois de um tempo, aquela sensações que ela sentia,
foram desaparecendo. Era como se aqueles eventos fossem apenas para
levá-la até mim. Com o único objetivo de nos unir.
Assim que nosso filho nascesse, nos casaríamos oficialmente. E
Enrico nasceu em uma manhã de sexta-feira de parto natural. Sim, Mariana
quis assim. Foi um parto tranquilo. Estávamos tomando café, reunidos à
mesa da cozinha, numa conversa agradável, quando Mari falou:
— A bolsa! Acho que é bolsa se rompeu!
— Ah meu Deus, vai nascer! — exclamou minha sogra.
Então, começou a correria. Todos falando ao mesmo tempo, até as
crianças ficaram eufóricas, porém Mariana estava plena, tranquila. Pegou
sua bolsa e fomos para maternidade. Eu estava mais aflito que ela. O
obstetra perguntou se eu queria participar do momento do parto e eu disse
que sim.
Vesti uma roupa especial e seguimos para sala de parto. Foram
seguidos todos os protocolos. Verificaram sinais vitais, pressão arterial, a
dilatação. As contrações começaram. Mariana começou a se contorcer,
sentindo cada uma. Eu me coloquei ao seu lado, segurando sua mão.
— Está sentindo muita dor? — perguntei.
— Só um pouquinho.
Ela era muito forte. Apesar do médico a ter liberado para tentar a
gravidez, uma gestação em uma pessoa transplantada sempre é de alto risco.
E depois de tudo que ela passou, eu só podia concluir uma coisa: Estava
diante de um milagre. Mariana era um milagre, o meu milagre.
— Te amo! — falei com lágrimas nos olhos.
— Também te amo! — ela sussurrou.
Em seguida apertou minha mão e fez uma careta sentindo mais uma
contração, mas o sorriso não abandonou seu rosto. A equipe se
movimentava para realizar tudo, enquanto minha missão era acalmá-la.
— Logo, logo vai passar — falei. — Tem certeza de que quer tentar o
parto normal?
Ela disse que sim com a cabeça.
— Vai dar tudo certo, então. — falei.
O doutor entrou na sala, animado. As enfermeiras o informaram da
situação.
— Dilatação em 8, doutor. — uma das enfermeiras comunicou.
— Maravilha! — ele exclamou e virando-se para nós, perguntou: —
Prontos para conhecer o Enrico?
Dissemos que sim e ele começou a conduzir tudo. Mari cooperou
bastante, seguindo tudo que o médico orientou. Em poucos minutos o
chorinho do Enrico invadiu o quarto. Ele foi colocado nos braços dela, que
chorava e sorria ao mesmo tempo. Era um menino belo, forte. Eu tinha
certeza de que ela estava experimentando a maior emoção de sua vida. Eu
também estava. Mesmo já tendo passado por aquilo três vezes, era como se
fosse a primeira vez. Parecia estar tendo um déja-vu. A emoção era a
mesma. O amor era o mesmo. Daniela... Mariana. Os dois amores da minha
vida, o mesmo coração.
CAPÍTULO 48

Leonardo Moretti

Mariana e eu nos casamos assim que Enrico completou três meses. A


Celebração foi ao estilo italiano com uma baita festa em nossa fazenda
mesmo. Muita comida, muita bebida e as nossas músicas tradicionais que
não poderiam faltar. Convidamos nossos amigos mais chegados. Os amigos
de Mariana e sua família também vieram. O Padre Nelson se ofereceu de
bom grado para realizar a cerimônia, que foi muito linda.
Mariana estava linda no seu vestido de noiva longo e rendado, porém
simples. O corpo dela já tinha voltado ao que era antes, parecia até estar
mais bonito. Estava radiante. Como adorno dos cabelos, optou por uma
coroa de flores do campo, o que ficou muito bom e realçou sua beleza
natural. Ela não quis nada sofisticado. Também, aquela mulher ficaria linda,
mesmo se usasse um trapo! Mas o que mais chamou a atenção foi o seu
buquê. Um lindo arranjo com sete mini girassóis. Mais tarde, em nosso
quarto, ela me explicou que eles representavam a nossa família. Cada um de
nós.
— Mas nós somos seis! Por que sete?
— Quis homenagear a Daniela. — respondeu com emoção — Ela
salvou a minha vida e me deu uma família. Não sei como, mas de uma
forma sobrenatural me trouxe até aqui... Até vocês... Ela é muito especial
pra mim!
Não preciso nem dizer como fiquei ao ouvir isso, sem contar o que se
seguiu depois. Aliás, nossa lua de Mel em Curitiba, dispensa comentários.
Foram só três dias, mas foram intensos. Mal saímos do quarto. Só
parávamos para comer e para Mariana amamentar o Enrico, que, claro, teve
que ir conosco, mas não atrapalhou em nada.
Mas voltando à festa, conheci o Victor, primo de Mariana. Um
sujeito simpático que se mostrou muito interessado no projeto do hotel
fazenda. O hotel que começamos a construir, cujo projeto estava parado.
Ele incentivou a continuarmos, nos dando algumas instruções muito
valiosas. Também se ofereceu para ajudarmos no que fosse preciso,
principalmente na parte financeira, pois segundo ele, tinha um dinheiro
parado e gostaria de investir. Fiquei de pensar em sua proposta e mais tarde
lhe daria uma resposta.
Também tive a oportunidade de, finalmente, conhecer a tão famosa
Maitê, de quem Mariana sempre falava. Ela era muito simpática e
conversamos por um bom tempo. Eu até a agradeci por ter incentivado
Mariana a se aventurar na viagem até Napolitana. Não podia ignorar que
ela, de certa forma, era responsável pela felicidade que eu estava vivendo
agora. Ficamos de ir ao seu casamento também.
Maurício, o irmão de Mariana, era uma figura. Estava se preparando
para entrar numa dessas novelas do horário nobre. Alguns dos presentes o
conheciam de algum projeto na TV. Então, estava tendo seu momento
celebridade, principalmente com as adolescentes. O cara era boa pinta e
parecia levar jeito para coisa. Ele se parecia com aqueles atores
australianos, loiros, do tipo que as mulheres se encabulam. Até a Sarah se
encantou por ele.
— Cara, esse lugar daria ótimos takes pra uma produção! Cenas
românticas... Essas coisas. — Maurício sugeriu, enquanto conversávamos,
mal sabendo que sua irmã e eu já tínhamos vivido muitas dessas “cenas”
por ali. — O público gosta dessas coisas, já até estou tendo umas ideias. —
concluiu, formando um retângulo com as mãos, como se estivesse
enquadrando as imagens.
— Se estiverem dispostos a filmarem por aqui, ficarei honrado em
ceder a propriedade para isso. — falei.
Ele ficou empolgado. Conversamos um tempo sobre isso e depois
circulei, cumprimentando a todos. Depois de dar atenção aos convidados,
avistei meu velho pai sentado no seu lugar de sempre, contemplando tudo
ao seu redor. Talvez ele nem percebesse o tamanho do sorriso de satisfação
que estava em seu rosto. Fui até ele e sentei-me ao seu lado.
— E aí senhor Tommaso, aproveitando a festa?
Ele disse que sim com a cabeça e sorriu.
— O que está achando de tudo isso? Há muito tempo não tínhamos
uma festa assim, não é?
Ele balançou a cabeça positivamente.
— É verdade. Nem me lembro quando! — falou com saudosismo —
Acho que foi quando eu ainda conseguia dançar.
Nós dois rimos. Olhamos para a movimentação das pessoas, as
rodinhas das conversas, dos risos. As crianças que corriam soltas, brincando
e interagindo uma com as outras. Matteo, como sempre, supervisionando
tudo. Enrico dormia num carrinho perto da minha sogra, que não
desgrudava dele. A verdadeira Vovó coruja.
— Está feliz, pai?
Ele respirou fundo e falou:
— Ah meu filho, a minha felicidade é contemplar a sua felicidade. E
sim, estou muito feliz!
Ele olhou para Mariana que agora estava se divertindo, dançando
com o seu irmão.
— Gosto muito dela. Ela te faz bem, te faz feliz, meu filho! A
valorize e cuide dela. — ele me aconselhou, repousando a mão em meu
ombro.
— É bom saber o quanto o senhor gosta da Mariana.
— Ah, não posso reclamar das noras que você me deu.
Espalmei sua coxa sorrindo com os lábios e um pouco emocionado.
Foi nesse momento que decidi aceitar a proposta do Victor e tocar o projeto
do hotel, mas não contaria nada a ele ainda, faria uma surpresa.
— Pensei que nunca mais viveria isso, meu pai — falei, sem tirar os
olhos da minha mulher, que agora rodopiava segurando as mãos de Davi.
Ela sentiu o peso dos meus olhos e virou-se, sorrindo, ainda se
movendo ao som de uma música do Michael Teló. Devolvi o sorriso,
totalmente encantado por ela. Ela acenou para mim, me chamando.
— Léo, vem!
Meu Deus! Ela fez exatamente como Daniela costumava fazer. Era
como se a imagem das duas se confundissem, se misturassem. Acenei de
volta.
— Vai lá, meu filho. — meu pai falou — Aproveite a festa do seu
casamento. E tome mais um pouco daquele caldinho de camarão com
castanhas — aconselhou, piscando com um olho só — Pra ajudar nessa
noite.
Gargalhei e lhe dei um abraço. Depois fui para os braços de minha
linda esposa. Dançamos por um bom tempo, até os pés doerem. Mas ainda
tinha muita coisa para acontecer. Eu tinha preparado uma surpresa para
Mariana. Com a ajuda do Maurício, meu cunhado, montei um karaokê para
nos divertirmos e em especial para que ela pudesse realizar um dos itens da
sua lista: Cantar em um karaokê; Ou pagar mico em um karaokê, tanto faz!
Quando se deu conta do que estava acontecendo, Mari arregalou os
olhos e caiu o queixo.
— Eu não acredito que fizeram isso! — protestou.
Maurício lhe entregou o microfone e ela começou a rir, se recusando
a cantar. Tudo estava sendo registrado para rirmos no futuro.
— Não, eu não vou pagar esse mico! — ela se negou.
Todos começaram a incentivá-la a cantar.
— Canta! Canta! — disseram em coro.
Ela empunhou o microfone e meneou a cabeça. Depois de muitos
risos e argumentos sem sucesso, ela tomou coragem. Olhou para mim e me
apontou o indicador.
— Você me paga! — disse, só movendo os lábios.
Por fim, escolheu uma música da Paula Fernandes chamada Um Ser
Amor e a cantou para mim. Resolveu me fazer uma linda homenagem que
mexeu com todas as minhas estruturas.
“Amar alguém
É viajar pra terra onde ninguém vai
Amar alguém
É deixar fluir os sentimentos
Ser capaz de amar
Amar simplesmente.”
Ela tinha uma linda voz. Me surpreendi. A letra e as notas daquela
música foram invadindo o meu ser, me desestabilizando e me derrubando.
Rebulindo meus sentimentos como a própria letra dizia: Feito um vendaval
em mim, varreu as nuvens da minha solidão!
Nem preciso dizer que chorei. É, eu chorei, mas todo mundo chorou
também. Foi um dia maravilhoso, o dia do nosso casamento. É muito bom!
Muito bom amar de novo!
EPÍLOGO

Mariana Barros Moretti

Três anos depois...

— Mamãe, a vovó já chegou! — avisou Davi — O Enrico vai com a


gente?
— O Enrico está dormindo, meu amor! — respondi.
— Mas ele tem que ir. A vovó disse que ele vai.
Minha mãe veio morar em Napolitana e estava amando essa fase de
sua vida. Estava residindo onde funcionava a Livraria. Agora era Livraria e
Café, onde ela vendia seus quitutes de confeitaria. Se tornou um dos pontos
de encontro mais movimentados da cidade.
O hotel finalmente estava pronto e sempre cheio. Não dávamos conta
de tantas reservas. Meu primo fez um projeto de paisagismo digno de
grandes resorts. Muita coisa foi modificada. A estrada para se ter acesso ao
hotel era outra, muito linda, por sinal. Palomar Hotel já estava incluso entre
os passeios turísticos da cidade. Meu sogro não poderia estar mais feliz. Ele
passou a ficar sempre por lá, distraindo os turistas com suas histórias e
tirando fotos com eles.
As atividades aumentaram e o trabalho também. Leonardo teve que
montar um escritório na cidade para ter uma logística melhor para atender
seus clientes. Não sei como ele conseguia dar conta de tantos
compromissos! Além de tudo ainda era pai e marido em tempo integral. E
que pai! Sempre envolvia seus filhos em suas atividades, aproveitando cada
momento com eles. Eles viviam pendurados nele. Era lindo de ver. Matteo
já era seu braço direito. Já estava um rapazinho muito lindo. Demorou um
pouquinho, mas também acabou se acostumando a me chamar de mãe.
Como Marido, não tinha o que reclamar do Leonardo. De vez em
quando eu precisava acalmar a fera que existia dentro dele, mas sei que era
só o seu instinto protetor. No mais, estava tudo bem entre nós. A cada dia
mais apaixonados e felizes.
Quanto a mim, minha vida se resumia em cuidar da minha casa, que
ficou linda depois de uma reforma. Cuidar das crianças, das minhas plantas
(que virou uma paixão!), cuidar do marido... Sim, eu me tornei o meu maior
pesadelo! Fui de Gamofóbica à uma pessoa que tinha medo de ficar só e
não ter ninguém para dividir a vida. Não me vejo mais sem meus queridos,
meus filhos, meu marido. É por eles que eu vivo. Hoje eu entendo a minha
mãe.
Falando nela, ela acabou levando todos com ela. O Enrico foi
dormindo mesmo. Agora inventou de carregar os meninos todos os finais de
semana para que Leonardo e eu tivéssemos nosso momento a sós, sem
interferências. Disse que quer mais netos. Minha mãe sai com cada uma!
Leonardo estava amando tudo isso e sempre inventava alguma moda.
Antes de irem, vieram se despedir. Meus filhos. Eu realmente me
sentia mãe deles. Sarah, então, ficou muito apegada a mim. Principalmente
depois de ter ouvido uma conversa entre mim e Leonardo e descobriu que
eu tinha recebido o coração da mãe dela. Sempre me lembro desse dia. Sua
reação foi inusitada.
— Eu sabia. Sabia que você ia voltar!
Sarah era uma menina muito intuitiva, aquilo me surpreendia.
— Querida, mas eu não sou a sua mãe! — tentei explicar.
— É sim, agora você é. E se você tem o coração dela, vai me amar
como ela me amaria!
Ela me abraçou muito emocionada e eu me emocionei também.
Leonardo e eu ficamos sem saber o que fazer. Foi um momento muito
significativo. Apenas pedimos a ela que não contasse a ninguém. Desde
então, nos tornamos inseparáveis. A única concorrente à altura era a vovó
Regina e Sarah sempre ficava empolgada para as aventuras que ela
preparava para eles.
— Mamãe, esse vestido está bonito? — ela perguntou sorrindo,
segurando a saia do vestido, se balançando.
Estava na fase dos vestidos de princesa.
— Está lindo, meu amor!
Eles saíram com a minha mãe e eu fiquei esperando Leonardo chegar.
Enquanto ele não chegava, estava sentada em frente ao meu laptop
escrevendo o último capítulo do meu livro. A janela aberta me dava a visão
do cata-vento. O pôr do sol estava começando. Um filme se passou em
minha cabeça. A forma como cheguei aqui procurando por ele, tentando
entender o que era tudo aquilo. Foi surreal!
Se eu não tivesse recebido o coração de Daniela, com certeza estava
morta. Não tinha como ser diferente. Nunca teria vivido a minha melhor
fase da vida. E pensando bem, se o meu coração fosse perfeito, sem
nenhum problema, no ritmo que estava levando a minha vida, eu também
estaria “morta”. Morta entre aspas, porque com certeza também não estaria
vivendo a melhor fase da minha vida. Estaria atolada no trabalho correndo
atrás de uma carreira, colecionando troféus que só serviriam para ficar
empoeirados em um estante. Engolida na solidão, tomando uma taça de
vinho, enquanto olhava para eles, me perguntando:
— Que sentido tem a vida?
Não estou dizendo que todas as pessoas que buscam crescer
profissionalmente não têm uma vida. Nem todos são obcecados por
trabalho. Mas eu era. Eu, Mariana Barros, era uma pessoa que vivia para
dar vida a COISAS e “coisificava” tudo o que tinha VIDA ao meu redor. É
triste assumir isso, mas era a verdade.
Essa inquietação sempre me acompanha me fazendo refletir sobre a
natureza fugaz dos momentos que vivemos. Essa experiência singular
mudou a maneira como vejo o mundo e a vida, deixando um anseio
constante por um entendimento mais profundo de quem realmente sou.
Então, para mim, o sentido da vida é viver. Viver é uma dádiva. Eu
tive uma segunda chance. Porém a pergunta agora é outra:
— Por que ainda estou aqui?
Agora tudo era diferente. Eu entendo que o controle não está em
minhas mãos. Eu sou parte de um todo e só preciso dar o melhor de mim ao
que realmente importa para dar sentido à minha vida. Então, tudo passou a
fazer sentido para mim. A guinada de cento e oitenta graus pela qual passei,
ainda me espantava. Agradeço todos os dias por essa segunda chance que a
vida me deu. Não poderia estar mais feliz.
Eu ainda continuo à procura de mim mesma.
Essa foi a última frase do meu livro. Tudo o que vivi desde que
recebi o coração de outra pessoa, as sensações, a dor, o medo, a incerteza...
Toda minha experiência, estava relatada ali. Me despi de tudo o que me
bloqueava e me entreguei àquela escrita. Estava ansiosa para compartilhar
com todos como ouvi A VOZ DO MEU CORAÇÃO. Eu ainda não sabia,
mas depois de lançado, meu livro, que foi intitulado de A Procura, veio a se
tornar um best-seller. Maitê tinha razão!
Fechei o laptop e a brisa que entrava acariciou meu rosto. A noite já
caía.
Paz... Calma! Era o que eu sentia. Abri a gaveta à minha direita e
olhei para aquele aparelho do tamanho de uma caneta que me mostrava dois
tracinhos. Não sei o que Leo estava preparando para mim, mas eu tinha uma
grande surpresa para ele naquela noite. Estava ansiosa.
Ouvi a maçaneta do quarto girando e fechei a gaveta rapidamente.
Leonardo abriu a porta sorridente, segurando uma garrafa de vinho e duas
taças.
— Achei você! — disse ao me ver.
Sorri de volta e fui até ele, ajeitando meu vestido. Olhei para as
coisas em suas mãos e perguntei:
— O que o senhor está aprontando?
Ele me olhou de um jeito sexy e falou:
— Uma noite inesquecível! Hoje vou te mostrar meus talentos de
gogoboy!
Dei uma gargalhada.
— É sério, vou dançar pra você — confirmou, colocando as coisas
que trazia na cômoda ao lado.
Me puxou para si, rodeando minha cintura com os braços.
— Eu vou adorar ver esse homem gigante rebolando para mim! —
falei de forma divertida, erguendo as sobrancelhas.
— Estou sentindo que está me subestimando.
— Claro que não. Sei que você é muito bom no Fandango, mas tenho
minhas dúvidas quanto a essas danças mais sensuais.
Ele riu daquele jeito que eu amava, me encarando com aquele olhar
cheio de promessas.
— Vou te surpreender! — avisou, cheirando meu pescoço.
— O que mais você planejou para nossa noite?
Ele se desprendeu de mim e foi até a garrafa de vinho para abri-la e
começou a explicar:
— Primeiro vamos fazer um brinde às conquistas desse mês. Como
sempre à saúde dos meninos, à um novo cliente que fechei essa semana, que
vou atendê-lo por pelo menos por dois anos.
— Que notícia boa, amor!
— Não é?
— E o que mais?
— Bem, por fim, o mais importante: Um brinde ao anjo chamado
Dona Regina que tem nos proporcionado esses momentos maravilhosos!
Serviu as duas taças e veio até mim novamente.
— Depois do brinde, vamos para o banheiro tomar um bom banho e
começar os trabalhos da noite. Vamos descer e comer o risoto que você
tanto gosta.
— Da cantina do Carlos?
— Sim, mas te quero só de lingerie. E depois do jantar tem a
sobremesa. Imagina onde quero degustá-la!
— Não! — gargalhei.
— Siiim. — disse insinuativo — Tenho um lugarzinho especial pra
você degustá-la também.
Mordi o lábio inferior, já ficando úmida e sentindo minhas partes
íntimas latejarem.
— Não vejo a hora! — falei de forma sexy.
Ele me olhou faminto e lambeu os lábios. Estávamos quase nos
atracando, mas nos contivemos.
— Vamos com calma. — ele falou e eu concordei — Agora, vamos
brindar. — completou, me entregando a taça.
A recebi e fiquei um tempo olhando para ela. Limpei a garganta para
começar a falar.
— Bem, quanto ao brinde, falta uma coisa para comemorar.
Ele me olhou com curiosidade.
— Uma coisa? — perguntou — O quê? Não me diga que terminou o
livro!
— Sim, eu terminei.
— Que maravilha, meu amor! Então, vamos brindar a isso também.
— Sim, mas não era disso que eu estava falando.
— Não?
— Não. Era de uma outra coisa.
Ele ergueu as duas sobrancelhas. Olhei para ele com olhos brilhantes
de expectativa e respirei fundo.
— O que é então? — perguntou.
— O problema é que não posso comemorar.
Ele franziu a testa confuso
— Não entendi. É algo para comemorar, mas você não pode
comemorar?
Sorri e expliquei:
— É porque eu não posso beber.
— Não pode beber? — perguntou compassadamente.
Ele parou por um tempo, me encarando. Peguei a taça de sua mão e
coloquei em cima da cômoda junto com a minha. Segurei suas mãos me
preparando para lhe contar. Nem precisei. Ele entendeu tudo. Seu olhar se
iluminou.
— Ah meu Deus não me diga que...
Eu disse sim com a cabeça e levei sua mão ao meu ventre.
— Oh, meu Deus, Mari! Eu vou ser pai de novo?
— Eu fiz o teste hoje. — fui até a gaveta para pegar a canetinha do
teste — Está aqui.
Leonardo conferiu o resultado e falou:
— Positivo.
Ficou me olhando com uma expressão neutra.
— Você gostou dessa notícia? — perguntei um pouco insegura, pois
não havíamos planejado nada.
— Ah, meu amor! Claro que gostei. Eu estou muito feliz, Mari!
Como nunca pensei que pudesse voltar a ser!
Ele se ajoelhou e beijou a minha barriga. Estava realmente muito
alegre. Depois de expressar sua alegria, ele se levantou e, com olhos
marejados, fitou os meus, que também estavam úmidos de emoção.
— Muito obrigado! Obrigado por amar esse bronco, arrogante! —
falou com voz embargada — Só quero que saiba que ele também te ama
muito! — um soluço de emoção me sacudiu — Você me salvou, Mari. Me
salvou de uma vida amargurada e depressiva. Curou as feridas que eu trazia
em mim, que achei que nunca seriam cicatrizadas.
Ele acariciou meu rosto e me beijou. Depois desse momento
profundo entre nós, foi até o aparelho de som e colocou a música Corazón
Partío de Alejandro Sanz e começou a se requebrar no ritmo do Flamenco.
— A dancinha vai ser agora? — perguntei.
— Não, agora não.
— E quando é que você vai dançar pra mim?
Ele riu e falou:
— Era só uma brincadeira.
— Ah não, agora eu quero meu gogoboy! — protestei.
— Ainda não estou pronto pra esse tipo de performance. Talvez em
um outro dia. Mas podemos dançar juntos agora. — me estendeu a mão —
Vem! Vamos comemorar!
Me puxou pela mão, me fazendo rodopiar e seguir o seu ritmo.

Tiritas pa' este corazón partío'


(Para este corazón partío')
Tiritas pa' este corazón partío'
(Pa' este corazón)

— Mas essa música está falando de um coração partido! — reclamei.


— Isso mesmo! Era assim que eu estava e você também. Dois
corações partidos.
— O meu estava partido literalmente.
Ele sorriu, sem perder o gingado.
— Mas nós reparamos tudo. Vamos sempre consertar — explicou. —
Agora, apenas sinta o ritmo, amor. Me entregue suas emoções e deixa que
eu faço todo resto.
— Ai, Leo...
O acompanhei em sua dança sensual, já totalmente embebida.
Enquanto explorávamos o corpo um do outro, ele começou a beijar meu
pescoço, arrastando a boca pela minha pele, me fazendo arrepiar. A música
nos embalava.
— Amor da minha vida... Minha mulher! — ele sussurrou em meu
ouvido, mordendo minha orelha.
Gemi. Ele começou arrancar minha roupa, enquanto me conduzia até
nossa cama.
— O que vai fazer comigo? — perguntei, excitada.
— Tudo que você gosta e outras surpresas. A noite só está
começando, amor.

¿Y quién me va a entregar sus emociones?


¿Quién me va a pedir que nunca la abandone?
¿Quién me tapará esta noche, si hace frío?
¿Quién me va a curar el corazón partío'?

Fim
Agradecimentos

Olá, obrigada por ter chegado até aqui. Espero que tenha aproveitado
essa jornada da Mariana até encontrar o amor. Que Mari e Leo tenham
encontrado um lugarzinho no seu coração. Se gostou, lembre-se de avaliar a
leitura, isso conta muito para mim. Caso seja a sua primeira vez lendo um
livro meu, seja bem-vindo(a) ao meu mundo! E te convido a conhecer as
outras histórias que estão no meu perfil na Amazon. Lembrando que todas
estão disponíveis no Kindle Unlimited.
Gostaria de agradecer, primeiramente a Deus, pois sem Ele eu não
sou nada. Se respiro e vivo é por sua permissão. Foi ele quem colocou em
mim toda a minha essência e a inspiração de criar, vem d’Ele. Agradeço a
minha família, que sempre tem me apoiado e são a minha base. Amo vocês!
Agradeço a minhas amigas e assessoras Val e Liah por me ajudarem neste
início de jornada, aprendo muito com elas. E em especial, quero agradecer a
todas as minhas leitoras e leitores também. Vocês são minha motivação para
escrever. Beijos!
Até a próxima!
REFERÊNCIAS:
Andando nas Nuvens | James Dobson.
https://www.otempo.com.br/entretenimento/magazine/sonhos-
mitos-e-arquetipos-1.897729
[1]
Significa “Meu amor” em italiano.
[2]
Gamofobia é o medo de casamento e compromisso. É caracterizada por sentimentos de medo
excessivo e persistente de estar em um relacionamento, assumir um compromisso ou se casar.
[3]
Lei de Murphy é um adágio ou epigrama da cultura ocidental que normalmente é citada como:
“tudo que puder dar errado, dará”, uma visão pessimista que em muitas ocasiões acaba fazendo
sentido.
[4]
É a sensação de já ter visto ou vivido uma situação que está acontecendo no presente.

Você também pode gostar