ATENÇÃ O!
Nosso grupo traduz voluntariamente livros sem previsão de lançamento no Brasil
com o intuito de levar reconhecimento às obras para que futuramente sejam
publicadas. O THB não aceita doaçõ es de nenhum tipo e proíbe que suas traduçõ es
sejam vendidas. Também deixamos claro que, caso os livros sejam comprados por
editoras no Brasil, retiraremos de todos os nossos canais e proibiremos a circulação
através de gds e grupos, descumprindo, bloquearemos o responsável. Nosso intuito é
que os livros sejam reconhecidos no Brasil e fazer com que leitores que nunca
comprariam as obras em inglês passem a conhecer. Nunca diga que leu o livro em
português, alguns autores (e eles estão certos) não entendem o motivo de fazermos
isso e o grupo pode ser prejudicado. Não distribua os livros em grupos abertos ou
blogs. Além disso, nó s do grupo sempre procuramos adquirir as obras dos autores
que traduzimos e também reforçamos a importância de apoiá-los, se você tem
condiçõ es, por favor adquira as obras também. Todos os créditos aos autores e
editoras.
AVISO DE CONTEÚ DO
POR THB
Tropes do livro:
☑ amigas para amantes
☑ releitura de contos de fada
Este livro contém representatividade LGBTQ, com foco em
relacionamentos sá ficos. Além disso, aborda temas sensíveis, incluindo
a presença de doença terminal. Leitores que possam ser afetados por
esses tó picos devem considerar cuidadosamente antes de prosseguir
com a leitura.
Conteú do
Dedicató ria
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Agradecimentos
Sobre a Autora
a todos que estão fazendo o melhor para viver, alegremente
1
EU GOSTO de um bom felizes para sempre tanto quanto qualquer outra
garota, mas depois de passar por quarenta e oito iteraçõ es diferentes
do mesmo – quarenta e nove, se você contar o casamento das minhas
(ex) melhores amigas – eu tenho que dizer o brilho está se desgastando
um pouco.
Quero dizer, nã o me interpretem mal, trabalhei duro para todos os 49
desses finais felizes. Passei os ú ltimos cinco anos da minha vida
mergulhando em cada iteraçã o da Bela Adormecida, perseguindo os
ecos da minha pró pria narrativa de merda através do tempo e do
espaço e tornando-a um pouco menos merda, como um cruzamento
entre Doctor Who e um bom editor. Salvei princesas de colô nias
espaciais, castelos e cavernas; queimei fusos e abençoei bebês; já me
embebedei com pelo menos vinte boas fadas e fiquei com todos os
membros da família real. Eu vi minha histó ria no passado e no futuro e
no nunca foi ou será ; eu vi isso invertido em gênero, moderno, cô mico,
infantil, caprichoso, trá gico, aterrorizante, como alegoria e fá bula; Eu vi
isso acontecer com a floresta falante criaturas, em métrica rítmica, e
mais de uma vez, Deus me ajude, com coreografia.
Claro, à s vezes fico um pouco cansada disso. À s vezes eu acordo e nã o
sei onde ou quando estou, e sinto todas as histó rias se misturando em
um ú nico e interminável ciclo de dedos picados e garotas condenadas.
À s vezes, hesito no precipício da pró xima histó ria, exausta em algum
nível molecular fundamental, como se meus pró prios á tomos
estivessem desgastados por lutar tanto contra as leis da física. À s vezes
eu faria qualquer coisa – qualquer coisa – para nã o saber o que
aconteceria a seguir.
Mas passei os primeiros vinte e um anos da minha vida sendo Zinnia
Gray, a garota moribunda, matando o tempo até que minha histó ria
terminasse. Eu ainda estou tecnicamente morrendo (ei, nã o estamos
todos), e minha vida no meu mundo natal nã o está nas manchetes (eu
pego turnos de professor substituto entre as aventuras e passei os
ú ltimos verõ es trabalhando no Bristol Ren Faire, onde vendo a moda
medieval e efêmera mais convincente do mundo). Mas também sou
Zinnia Gray, a fodona que salta entre dimensõ es e salva a donzela, e nã o
posso desistir agora. Posso nã o ter muitos felizes para sempre, mas vou
doar o má ximo que puder antes de partir.
Eu simplesmente pulo as festas, só isso. Você sabe – os casamentos,
as recepçõ es, os bailes, as cenas comemorativas finais antes da rolagem
dos créditos. Eu costumava amá -los, mas ultimamente eles parecem
doces, tediosos. Como um ato de negaçã o coletiva, porque todo mundo
sabe que o feliz nunca é realmente para sempre. A verdade está
enterrada na pró pria frase, se você pesquisar. A versã o original era
“feliz para sempre”, o que significava algo como “ei, todo mundo morre
e vai para o céu no final, entã o realmente importa quais misérias e
desastres nos acontecem neste plano mortal?”. Corte duas palavrinhas,
cubra a lacuna com an-ly e voilà : a inevitabilidade da morte é
substituída pela promessa de uma vida infinita e cor-de-rosa.
Se Charmaine Baldwin (ex-melhor amiga) me ouvisse falando assim,
ela me daria um soco um pouco forte demais para ser uma piada e
cordialmente me convidaria para relaxar. Primrose (ex-Bela
Adormecida, agora instrutora de dança de salã o em meio período) se
preocuparia e torceria as mã os pá lidas. Ela me lembraria,
energicamente, que eu recebi uma suspensã o milagrosa e devo me
considerar uma sortuda! Com um ponto de exclamaçã o audível!
Entã o Charm poderia mencionar casualmente meus cinco anos de
consultas perdidas com a radiologia, as muitas prescriçõ es que deixei
sem preencher. Em algum momento as duas poderiam trocar um de
seus olhares, dez mil megawatts de amor tã o verdadeiro que sua
passagem deixaria meus cílios chamuscados, como se eu tivesse estado
muito perto de um cometa.
E eu me lembraria de estar sentada na recepçã o do casamento delas
enquanto elas dançavam lentamente ao som daquele cover irô nico de
Lana Del Rey de “Once Upon a Dream”, olhando uma para a outra como
se fossem a ú nica coisa no ú nico universo que importava, como se elas
tivessem uma eternidade para olhar. Eu me lembraria de me levantar e
ir ao banheiro, encontrando meus pró prios olhos no espelho antes de
espetar o dedo em um caco de fuso e desaparecer.
E ei, antes que você tenha a ideia errada, isso nã o é uma coisa de
triâ ngulo amoroso. Se fosse, eu poderia simplesmente dizer “trisal” três
vezes no espelho e invocar Charm para o meu quarto como uma
Beetlejuice lésbica. Nã o tenho ciú mes do romance delas – elas me
amam e eu as amo, e quando se mudaram para Madison para o está gio
de Charm, alugaram um apartamento de dois quartos sem nenhuma
discussã o, embora o aluguel seja ridículo.
É que elas estã o tã o felizes. Duvido que elas já tenham ficado
acordadas à noite, sentindo os limites de suas narrativas como fios
quentes pressionando sua pele, contando cada respiraçã o e se
perguntando quantos restam, desejando – inutilmente, estupidamente
– ter nascido em uma época melhor. Uma vez.
Mas nã o é assim que funciona. Você tem que tirar o melhor proveito
de qualquer histó ria em que nasceu, e se sua histó ria for ruim, bem,
talvez você possa fazer algo de bom antes de ir.
E se isso nã o for suficiente, se você ainda quer mais em seu coraçã o
ganancioso e egoísta: eu recomendo que você corra e continue
correndo.
★★★
DITO ISSO, esse final feliz em particular é um verdadeiro sucesso. É
outra recepçã o de casamento, mas esta tem shots de tequila e um
carrinho de churros, e todas as pessoas, incluindo a bisavó da noiva,
estã o dançando comigo debaixo da mesa.
Eu apareci há duas semanas, seguindo o eco distante e familiar de
uma jovem amaldiçoando seu destino cruel. Aterrissei em um quarto
palaciano que parecia ter sido roubado direto do set de uma novela e
conheci Rosa, cujo ú nico amor verdadeiro se engasgou com uma maçã
envenenada e entrou em coma. A maçã me derrubou, admito, e demorei
um pouco para pegar o jeito deste lugar – há mais traiçõ es repentinas e
gêmeos idênticos do que estou acostumada –, mas acabei conseguindo
contrabandear Rosa, passando por sua tia perversa e entrando no
quarto de hospital de seu amado, ao que ela o beijou com tanta paixã o
que ele saiu de seu estado vegetativo e a pediu em casamento. Rosa
parou de beijá -lo apenas o tempo suficiente para dizer sim.
Tentei fugir antes do casamento, mas a bisavó de Rosa arrancou o
fuso de minhas mã os e me lembrou que sua tia perversa ainda estava
por aí em busca de vingança, entã o fiquei. E, com certeza, a tia apareceu
com uma reviravolta de ú ltima hora no bolso de trá s que poderia ter
arruinado tudo. Eu a tranquei no banheiro feminino e a bisavó da Rosa
colocou um ¡CUIDADO! assinado na frente.
Já passa da meia-noite, mas nem o DJ nem os dançarinos estã o
mostrando qualquer sinal de desistência. Normalmente eu teria saído
pelos fundos horas atrá s, mas é difícil sentir pavor existencial quando
você está cheio de churros e cerveja. Além disso, o primo de segundo ou
terceiro grau do noivo tem me lançado olhares de soslaio a noite toda, e
todos nesta dimensã o sã o tã o dramaticamente, excessivamente
gostosos que passei metade do meu tempo piscando e sussurrando:
— Doce Cristo.
Entã o eu nã o fujo. Em vez disso, olho deliberadamente para o primo
de segundo ou terceiro grau do noivo e tomo um gole lento de cerveja.
Ele aponta com o queixo para a pista de dança e eu balanço a cabeça,
sem quebrar o contato visual. Seu sorriso pertence à TV durante o dia.
Dez minutos depois, nó s dois estamos mexendo no cartã o-chave de
seu quarto de hotel, rindo, e vinte minutos depois eu esqueci todas as
dimensõ es, exceto esta.
Ainda está escuro quando acordo. Duvido que tenha dormido mais de
duas ou três horas, mas me sinto só bria e tensa, como fico quando fico
muito tempo.
Fico ali deitada por um tempo, admirando a inclinaçã o â mbar da luz
da rua na pele de Diego, as costas esculpidas pela giná stica. Eu me
pergunto, brevemente, como seria ficar. Acordar todas as manhã s no
mesmo mundo, com a mesma pessoa. Seria bom, aposto. Ó timo mesmo.
Mas já sinto um leve tremor em meus membros, um peso em meus
pulmõ es como lodo depositado no fundo de um rio. Nã o tenho tempo a
perder querendo ou desejando; é hora de correr.
Pego minhas roupas no chã o e vou na ponta dos pés até o banheiro,
procurando o lenço no bolso da calça jeans. Enrolado com segurança
dentro dele está uma longa e afiada lasca de madeira, que coloco ao
lado da pia enquanto me visto. Eu posso e já viajei entre dimensõ es com
nada além de um grampo dobrado e força de vontade, mas é mais fá cil
com um pedaço de um fuso real. Tenho certeza que Charm explicaria
sobre o peso psíquico de motivos repetidos e da ressonâ ncia narrativa
entre mundos se eu pedisse, mas já nã o lhe pergunto nada.
Também nã o viajo tã o leve quanto antigamente. Hoje em dia, carrego
uma mochila disforme cheia de suprimentos bá sicos de sobrevivência
(Clif Bars, garrafas de á gua, fó sforos, remédios, roupas íntimas limpas,
um telefone celular que raramente ligo) e os detritos ú teis de 48
mundos de contos de fadas (um pequeno saco de moedas de ouro, uma
bú ssola que aponta para onde quer que eu esteja tentando ir, um
minú sculo tordo mecâ nico que canta estridentemente e desafinado se
estou em perigo mortal).
Jogo a mochila por cima do ombro e olho para o espelho, sabendo o
que vou ver e nã o querendo muito: uma garota magra com cabelo
oleoso e um queixo muito pontudo que com certeza deveria mandar
uma mensagem para a mã e dizendo que está bem, mas que
provavelmente nã o vai.
Exceto, o problema é que nã o sou eu no espelho.
É uma mulher com maçã s do rosto altas e duras e cabelo enrolado
como uma cobra de seda preta na cabeça. Seus lá bios sã o de um
surpreendente vermelho falso, pintados como uma ferida em seu rosto,
e há marcas de um rosa profundo em ambos os lados de sua testa. Ela é
mais velha do que a maioria das belas adormecidas – há linhas frias
esculpidas nos cantos daqueles lá bios vermelhos, muito vermelhos – e
muito menos bonita. Mas há algo atraente nela, uma atraçã o
gravitacional que nã o consigo explicar. Talvez sejam os olhos,
queimando de volta para mim com uma fome desesperada.
Os lá bios se movem, silenciosos. Por favor. Uma mã o se ergue para o
outro lado do vidro, como se o espelho fosse uma janela entre nó s. As
pontas de seus dedos sã o de um branco sem sangue.
Já estou no jogo de resgate de princesas há tempo suficiente para nã o
hesitar. Eu levanto meus dedos para o vidro também, mas nã o parece
haver nada lá . Posso sentir o calor de sua mã o, a leve elasticidade de
sua pele.
Entã o seus dedos se fecham como garras em volta do meu pulso e me
puxam.
★★★
VOCÊ PODE PENSAR que viagens interdimensionais sã o difíceis ou
assustadoras, mas geralmente nã o sã o tã o ruins assim. Imagine o
multiverso como um livro sem fim com pá ginas sem fim, onde cada
pá gina é uma realidade diferente. Se você repassasse as letras em uma
dessas pá ginas vá rias vezes, o papel poderia ficar fino, a tinta poderia
vazar. Nessa metá fora, eu sou a tinta, e a tinta é totalmente boa. Há um
breve momento em que estou caindo de uma pá gina para outra, meu
cabelo emaranhado ao vento que cheira a livros velhos e rosas, e entã o
alguém diz socorro e eu caio em outra versã o da minha pró pria histó ria.
Desta vez, porém, o momento entre as pá ginas nã o é breve. É vasto. É
um infinito atemporal e sem luz, como os vazios entre as galá xias. Nã o
há vozes pedindo ajuda, nem vislumbres de realidades meio familiares.
Nã o há nada, exceto o aperto de dedos em volta do meu pulso e uma
quantidade nã o insignificante de dor.
Quero dizer, nã o sei se tecnicamente – tenho – um – corpo, entã o
talvez nã o seja dor de verdade. Talvez minha convicçã o de que meus
ó rgã os estã o virando do avesso seja apenas uma alucinaçã o realmente
de merda. Talvez todos os meus neurô nios estejam apenas gritando de
pavor existencial. Talvez eu esteja morrendo de novo.
Entã o, há mais pedaços da histó ria passando por mim, mas nã o
reconheço nenhum deles: uma gota de sangue na neve fresca; um
coraçã o em uma caixa, molhado e cru; uma garota morta deitada na
floresta, pá lida como osso.
Os dedos soltam meu pulso. Meus joelhos batem contra a pedra fria.
Estou deitada de bruços, sentindo como se tivesse sido descascada e
salgada recentemente, lamentando cada cerveja e a maioria dos
churros (embora nada que eu tenha feito com Diego).
Eu tento ficar de pé e conseguir algo mais pró ximo de um cambalear
tonto.
— Está tudo bem, está tudo bem. — Levanto as mã os vazias para
mostrar que nã o quero fazer mal. A sala está girando inutilmente. —
Vou explicar tudo, mas se tiver um fuso aqui, por favor, nã o toque nele.
Alguém ri. Nã o é uma risada legal.
A sala se acomoda lentamente, e vejo que nã o é uma sala de torre
solitá ria. Parece mais um boticá rio em um videogame – uma pequena
sala cheia de garrafas com rolhas e potes de vidro, as prateleiras cheias
de livros encadernados em couro rachado, os balcõ es cheios de facas e
pilõ es de prata. Se pertencer a um mago, há certas indicaçõ es (um
crâ nio humano amarelado, correntes penduradas nas paredes) de que
ele nã o é do tipo amigável.
A mulher do espelho está sentada em uma cadeira de espaldar alto ao
lado de uma lareira, o queixo erguido, o vestido empapado nos
tornozelos como sangue. Ela está me olhando com uma expressã o que
nã o faz o menor sentido. Já conheci quarenta e nove variaçõ es de Belas
Adormecidas e cada uma delas – as princesas, os guerreiros, as bruxas,
as bailarinas pareceram surpreendidos quando uma garota doente, de
capuz e calças de moletom, aparece no meio da sua histó ria
Esta mulher nã o parece surpresa. Ela também nã o parece nem um
pouco desesperada. Ela parece triunfante, e a pura intensidade quase
me faz cair de joelhos novamente.
Ela me estuda, suas sobrancelhas levantadas em dois desdenhosos
arcos negros, e seus lá bios se curvam. É o tipo de sorriso que nã o
pertence ao rosto da Bela Adormecida: sarcá stico, lâ nguido,
estranhamente sedutor. Em algum lugar no fundo do meu cérebro, uma
voz que soa como a bisavó de Rosa diz: ¡CUIDADO!
Ela pergunta docemente:
— Por que, que fuso seria esse? — qual é quando percebo três coisas
mais ou menos simultaneamente. A primeira é um pequeno espelho de
prata na mã o esquerda da mulher, que nã o parece refletir o ambiente
ao nosso redor. A segunda é uma maçã no balcã o logo atrá s dela. É o
tipo de maçã que uma criança desenharia, brilhante e redonda,
venenosamente vermelha.
A terceira é que nã o há roda de fiar, nem fuso, nem caco de linho, nem
mesmo uma agulha de costura em qualquer lugar da sala.
Em algum lugar no fundo da minha mochila, abafado por roupas
sobressalentes e garrafas de á gua, vem um assobio minú sculo e
gorjeante, como um tordo cantando desafinado.
2
CLARO, OK. Eu deveria ter descoberto isso um pouco mais rá pido. Mas,
em minha defesa, meu cérebro foi recentemente encharcado em Sol
Cerveza, arrastado pelo espaço liminar entre os mundos e jogado aos
pés de uma mulher alta com cabelos sedosos e um sorriso perigoso.
Além disso, em cinco anos de aventuras pelo multiverso, nunca
consegui sair da Bela Adormecida. E deixe-me dizer-lhe, eu tentei.
Pendurava meu cabelo nas janelas altas e comprava maçã s de velhinhas
no mercado do fazendeiro; fui dançar até meia-noite em ponto e pedi a
meu pai que me trouxesse uma ú nica rosa da mercearia. Nada disso
funcionou. Charm teorizou sobre aglomerados de realidades
relacionadas e desenhou grá ficos que pareciam os galhos de alguma
grande á rvore interestelar. Fingi entender quando na verdade tudo que
entendi é que existem algumas regras que você nã o pode quebrar.
Mas agora, de alguma forma – meus olhos se movem para o espelho
de prata na mã o da mulher –, as regras mudaram. Ocorre-me que nã o
faço ideia do que vai acontecer a seguir. Um arrepio sobe pela minha
espinha e vibra na parte de trá s do meu crâ nio.
— Você — eu digo, e minha voz está tremendo agora, mas nã o de
medo —, nã o é uma princesa.
Suas sobrancelhas perfeitas arqueiam meia polegada mais alto, e eu
me pergunto vertiginosamente se este mundo tem linha de
sobrancelha.
— Nã o mais, nã o. — Ela toca a marca rosa na têmpora esquerda, que
de repente tenho certeza de que foi deixada pelo peso de uma coroa.
— Entã o, onde estou? — Mas é uma equaçã o simples (maçã +
espelho + realeza) com apenas uma resposta. Nã o há fusos aqui, nem
fadas, mas aposto meu pulmã o esquerdo que há sete anõ es vivendo nas
profundezas da floresta. — Quem é você?
Seu triunfo pisca muito brevemente, como se ela nã o gostasse muito
dessa pergunta.
— Você pode me chamar de Vossa Majestade, ou Minha Rainha, caso
se encontre implorando por misericó rdia.
Já ouvi mais do que algumas ameaças vilanescas, mas nenhuma foi
entregue com tanta sinceridade entediada. Minha excitaçã o diminui um
pouco.
— Certo. Legal. Bem, é uma honra. — Meus olhos deslizam para a
ú nica porta. Estou vá rios metros mais perto do que ela. — Tenho
certeza que você está se perguntando como cheguei aqui...
Seus olhos brilham, o triunfo engolido por uma fome fascinante e sem
fundo que me faz esquecer, por um momento, que estou no meio de
uma tentativa de fuga. O tordo na minha bolsa canta uma oitava acima.
— E eu adoraria contar a você sobre isso. Mas, uh, há um banheiro
que eu possa usar primeiro?
A rainha esconde a fome com facilidade praticada, como alguém
prendendo um cachorro; uma parte muito imprudente de mim lamenta
vê-la partir. Ela diz com diversã o educada: — Nã o, acho que nã o.
— Oh. — Dou um passo lateral em direçã o à saída. — Posso pelo
menos beber alguma coisa? Eu tenho essa condiçã o, veja, essa doença
misteriosa. — A Doença Generalizada de Roseville (DGR) nã o é
realmente tã o misteriosa, mas os monarcas pré-modernos geralmente
nã o estã o familiarizados com termos como “amiloidose ou dano
genético in utero”. Isso me causa muito sofrimento e um dia certamente
me matará . — Meus ú nicos sintomas no momento sã o batimentos
cardíacos acelerados e dor de cabeça, que podem ser explicados por
estar de ressaca, apavorada e, me processe, um pouquinho de tesã o,
mas mesmo assim passo a mã o dramaticamente pela testa.
A rainha parece profundamente impassível.
— Que trá gico — diz ela sem paixã o. A parte de mim que nã o está
ocupada calculando a distâ ncia entre mim e a saída e a probabilidade
de morrer em um conto de fadas que eu nem gosto fica hein. Vinte e seis
anos de doença terminal me ensinaram a antecipar e usar a pena como
arma, por mais tediosa e grosseira que pareça, mas o rosto da rainha é a
definiçã o de impiedoso. Seria gratificante se nã o fosse tã o
inconveniente.
Dou mais um passo, indo para trá s de uma cadeira.
— É , realmente é. — A rainha está me observando de uma forma que
me lembra desconfortavelmente um vira-lata magro observando um
tordo muito estú pido. — É uma histó ria triste, que vou relatar a você,
longamente e com notas de rodapé, se desejar, Sua Majestade. — Na
ú ltima sílaba, empurro a cadeira com força, fazendo-a cair entre nó s, e
corro para a porta.
Eu faço isso, as mã os batendo com força contra a madeira, os dedos
tentando encontrar o trinco...
Que é, como se vê, bloqueado.
Fico de frente para a porta por um longo momento, respirando com
dificuldade no silêncio.
— Oh, querida — diz a rainha. — Deixe-me pegar isso para você. —
Eu me viro para vê-la cuidadosamente endireitando minha cadeira,
colocando o espelho em sua bancada e tirando uma longa fita verde de
um gancho. Ela caminha em minha direçã o com um passo gingado e
descuidado que me faz pensar novamente em um gato faminto, se os
gatos usassem coroas e vestidos da cor de rins frescos.
Ela para muito perto de mim, e pode haver um atraso mínimo antes
que eu mova meus olhos da linha limpa de sua clavícula até seu rosto.
Há uma curva em seu lá bio que me diz que ela percebeu.
Seus olhos caem na minha garganta e meu cérebro salta inutilmente
para aquele conto fodido de Gaiman em que Branca de Neve é uma
vampira, e entã o, ainda mais inutilmente, para uma palestra de
graduaçã o sobre o homoerotismo inerente à literatura vampírica
ocidental.
A rainha levanta a fita verde entre nó s. Eu tenho tempo para dois
pensamentos muito breves e estú pidos (Onde está a chave? e Deus,
aquele tordo é barulhento) antes de sua outra mã o passar por mim e a
fita ser enrolada em meu pescoço.
★★★
NÃ O PARECE tã o ruim quanto os garroteamentos. A rainha mal deu um
nó na fita antes de se afastar. Mas no segundo assustado que leva
minhas mã os para alcançar minha garganta, a fita se enrolou com tanta
força que nã o consigo colocar meus dedos embaixo dela. Ela belisca
com mais força, esmagando as veias, apertando minha traqueia. Tento
gritar, mas nã o sai nada além de um chiado ú mido.
Manchas escuras florescem em minha visã o. A parte de trá s da minha
cabeça bate contra a porta. Uma das minhas unhas se prende e se rasga
enquanto tento e nã o consigo arrancar a fita, e entã o caio e penso, com
extrema irritaçã o: já estive aqui antes. Estive de joelhos em algum
castelo distante imitaçã o da Disney, lutando por ar e nã o o
encontrando. Naquela época havia uma princesa para me beijar de
volta à vida; desta vez há uma rainha para me ver morrer.
O que é besteira, porque eu nã o deveria morrer ainda. Eu deveria ter
anos, talvez até décadas, e eu serei amaldiçoada se a madrasta malvada
de outra pessoa for roubá -los. Com esse pensamento revigorante, eu me
atiro para as pernas da rainha. Exceto que seus mú sculos precisam de
oxigênio para funcionar, entã o o que eu realmente faço é cair de cara
aos pés dela.
Ouço um suspiro distante. Mã os sob meus braços, me arrastando pelo
chã o. O clique frio do metal em volta dos meus pulsos. Justamente
quando minha visã o se reduz a um ú nico ponto de luz e meus membros
ficam tã o dormentes que parecem sacos de areia molhada, a fita
desaparece.
Há um pequeno período de tempo feio aqui que consiste
principalmente em babar e engasgar e o som doentio de vô mito caindo
no chã o. Vamos pular isso.
Quando consigo enxergar novamente, encontro meus braços
algemados desajeitadamente acima da cabeça, com correntes soltas o
suficiente para chacoalhar, mas nã o o suficiente para ficar de pé ou
deitar. A rainha está esvaziando cuidadosamente minha mochila no
balcã o, examinando cada item com leve interesse e classificando-os de
acordo com algum sistema inefável de sua pró pria invençã o. As meias e
a cueca estã o empilhadas; meu telefone é mantido brevemente à
distâ ncia de um braço, como se ela estivesse considerando seu pró prio
reflexo no vidro escuro da tela, antes de ser colocado cuidadosamente
ao lado da faca.
— O que… — eu começo, mas eu tenho que parar para ofegar
roucamente entre cada palavra. — Diabos. Está errado. Com você.
A rainha nã o responde imediatamente. Ela está segurando meu
pequeno passarinho mecâ nico contra a luz; o pá ssaro agora está
produzindo um tom que só os golfinhos podem ouvir.
— Oh, você está perfeitamente bem — ela me garante sem um ú nico
á tomo de remorso. — Só teria enviado você para um sono encantado.
— Só? Jesus Cristo, senhora, eles nã o têm direitos humanos aqui? Eu
nã o fiz nada para você e você só ... você... — Desta vez é uma raiva
repentina e impotente que me sufoca. À s vezes ainda sonho com minha
pró pria morte, só que agora é uma lembrança em vez de uma profecia.
Eu sinto meus pulmõ es acumulando-se com proteínas ilegítimas, meu
pulso enfraquecendo, minha boca cheia de ar que nã o consigo mais
respirar. Nã o gosto mais nem de prender a respiraçã o na piscina ou de
enfiar a cara embaixo das cobertas; acontece que eu realmente nã o
gosto de ser estrangulada.
Eu inspiro pelo nariz e expiro pela boca, assim como meu terapeuta
estú pido me ensinou, até que eu possa rosnar:
— Apenas me bata na cabeça da pró xima vez, sua maldita psicopata.
— Anotado — ela responde friamente, ainda estudando o tordo. Por
fim, ela o joga no chã o e o esmaga casualmente com o calcanhar. Ouve-
se um pequeno e patético rangido, como vá rios ossos de dedos se
quebrando ao mesmo tempo, e o tordo fica quieto. O silêncio me deixa
gelada, com a boca seca, incapaz de acreditar que me permiti um ú nico
impulso homoeró tico em relaçã o a essa mulher.
Ela vira um olhar nivelado e profissional para mim.
— Agora, vamos conversar. Preciso de sua ajuda.
É difícil dar uma risada zombeteira quando você está algemado na
parede de alguém e eles estã o olhando para você como se você fosse
uma fechadura que eles vã o arrombar ou quebrar, mas eu me esforço
bastante.
— Realmente? Porque eu poderia jurar que você acabou de me
sufocar com uma fita má gica de assassinato.
— É uma fita de corpete, na verdade.
— Imaginei. — Posso nã o conhecer essa histó ria tã o bem quanto a
Bela Adormecida, mas ainda sou uma especialista em folclore com uma
significativa obsessã o por Grimm. Em sua versã o, chamada
Schneewittchen ou Schneeweißchen dependendo da ediçã o, a madrasta
perversa tenta matar Branca de Neve com um pente venenoso e um
corpete antes de ir para a maçã , que sã o armas de assassinato tã o
estranhas que mimha professora favorito até escreveu um artigo sobre
eles (Mirror, Mirror: Vanity as Villainy in the Western Imagination). Se a
Dra. Bastille estivesse aqui, ela provavelmente estaria perguntando à
rainha se sua escolha de ferramentas representava uma reivindicaçã o
sublimada do monopó lio masculino da violência, ao passo que tudo em
que consigo pensar é o quanto quero dar um soco na garganta dela. E
como vou escapar, e se tenho alguma chance de levar aquele espelho
comigo.
A rainha observa minha boca azeda e rosnante por um momento
antes de suspirar e arrastar sua cadeira para me encarar. Ela se senta,
seu vestido cor de rim marrom avermelhado caindo em outra curva
perfeita em torno de seus pés, seu rosto cansado sob a maquiagem.
— Por favor, entenda que farei o que for preciso para conseguir o que
preciso. — Seus olhos sã o relativamente sinceros. — Ninguém vai me
interromper. Ninguém vai te salvar. — Seu sotaque é levemente
rebarbado, suas palavras diretas, nada como a fala vagamente britâ nica
e gramaticalmente suspeita de Prim. Eu me pergunto se Charm
finalmente removeu a palavra de onde de seu vocabulá rio, e entã o
rapidamente paro de pensar, porque pensar em Charm é como pensar
em um membro amputado.
— E realmente — a rainha continua. — Nã o é um grande favor que
peço a você. Eu só preciso saber como você faz isso.
Eu curvo meu lá bio e pergunto com desdém:
— Como eu faço o quê? — Mas só há uma coisa que ela poderia
querer de mim, por mais improvável que pareça. A fome voltou aos
olhos dela, e percebo, com um calafrio repentino e profundo, que já a vi
antes: olhando para mim em todos os espelhos desde que eu tinha
idade suficiente para entender minha pró pria histó ria.
— Eu quero saber como você sai — ela rosna, e pela primeira vez sua
voz é algo menos do que perfeitamente calma. — Quero saber como
você sai do seu mundo e encontra outro.
Um batimento cardíaco de silêncio. Outra, enquanto seus olhos
perfuram os meus e meu cérebro nã o produz nada além de fios de
pontos de interrogaçã o em pâ nico (?????????). Eu tento muito nã o olhar
para o espelho dela.
— Diga-me — ela diz, imperiosa, mal controlada, e eu sinto minhas
chances de sair dessa com todas as minhas unhas e dentes diminuindo
vertiginosamente.
Engulo em seco e digo:
— Sinto muito, nã o sei o que você quer dizer — porque já vi filmes
suficientes da Marvel para saber que geralmente é desaprovado
entregar ao vilã o ó bvio as chaves do multiverso. Nã o tenho uma ideia
clara do que ela faria com a habilidade de se transformar em outras
versõ es da Branca de Neve, mas duvido que seja algo bom e, mais
importante, foda-se ela.
A boca da rainha se achata. Ela segura minha mochila do século XXI
por uma alça desgastada, com as sobrancelhas ligeiramente levantadas.
— Oh, aquilo? Ganhei de um mago em um reino longe daqui. Ficarei
feliz em desenhar um mapa para você, se quiser falar com ele. — Tudo
que eu preciso é de cerca de dois minutos livre para que eu possa
espetar meu dedo e dar o fora daqui, de preferência com aquele espelho
má gico a tiracolo. Eu gostaria de saber de onde veio e como a rainha
descobriu sobre vá rios mundos em primeiro lugar, e por que seus olhos
sã o tã o famintos, tã o familiares, mas nã o parece valer a pena demorar
para descobrir.
— Eu nã o sou — ela diz gentilmente — uma tola.
— Ok, tudo bem, você me pegou! Eu sou de outro mundo. Mas
francamente — eu chacoalho minhas correntes para ela — eu nã o vejo
por que eu deveria te contar alguma merda.
Ela se levanta da cadeira, contorcendo o rosto. O ar parece se
acumular e escurecer ao redor dela como uma tempestade pessoal.
— Porque se você nã o fizer isso, seu verme se contorcendo, seu
piolho miserável, eu darei seu coraçã o palpitante para alimentar os
pá ssaros carniceiros. Vou arrancar facas de seus ossos e usá -las para
esfolar a gordura de seu corpo ainda respirando. — Ela faz uma pausa,
talvez para apreciar sua pró pria aliteraçã o. — Eu sou a rainha. — Nã o
há sibilantes nessa frase, mas ela consegue sibilar mesmo assim.
Meus lá bios se abrem quando olho para ela, nã o destemida, mas
irritada o suficiente para causar uma boa impressã o.
— Oh, por favor, você é apenas o cara mau. A vilã , a madrasta
malvada. Você é a Bruxa Malvada do Leste, mano.
Ela abre a boca, mas eu interrompo, totalmente incapaz de resistir.
— Você vai olhar para mim e vai me dizer que estou errada? Estou
errada? — Pelo menos Charm ficará orgulhosa de mim se essas forem
minhas ú ltimas palavras.
Observo a rainha oscilando em algum precipício interno, talvez
decidindo entre os parafusos de dedo ou o alicate. Em vez disso, ela
esconde sua fú ria com cuidado. É como ver uma mulher enfiar um
colchã o em uma fronha. Ela caminha até uma estante lotada e pergunta
abruptamente:
— Qual é o seu nome?
— Zinnia Gray. De Ohio.
Ela pega um volume fino com uma lombada vermelha brilhante,
incongruente na penumbra de sua sala de trabalho.
— Você nã o vai me perguntar meu nome, Zinnia Gray? Ou eles nã o
têm boas maneiras em Ohio?
— Enquanto aqui é costume acorrentar seus visitantes à parede. —
Ela estuda meu rosto com paciência finita, uma unha batendo no livro,
até eu suspirar. — Está bem. Qual o seu nome?
Desagradavelmente, ela nã o responde. Ela se esgueira de volta para
mim e se levanta, folheando seu livro. Eu estico meu pescoço para cima,
esperando ver um livro de feitiços ou venenos, algo com prata em
relevo e couro tingido, mas a capa é de lona vermelha simples,
levemente arranhada. Tem uma fita esfarrapada colada na
encadernaçã o como um marcador e uma mancha roxa no verso, e há
algo muito, muito familiar nisso. Tipo, angustiantemente familiar. O tipo
de familiar que seu cérebro recusa a processar porque simplesmente
nã o faz sentido, como ver seu professor da primeira série no
supermercado.
Nã o consigo ler o título de cabeça para baixo e de trá s para frente,
mas nã o preciso, porque já sei o que ele diz. Este livro – esta cópia exata
deste livro, com a fita esfarrapada e a mancha de suco de uva na
contracapa – está na minha estante de cabeceira desde meu sexto
aniversá rio. É a reimpressã o de 1995 dos Contos de Fadas de Grimm,
com ilustraçõ es originais de Arthur Rackham de 1909.
Este é, eu acho, o meu limite. Eu fui sugada para uma histó ria que nã o
pertence a mim, estrangulada, acorrentada e questionada por uma
rainha, mas ver uma vilã de conto de fadas com meu livro de infâ ncia
favorito é aparentemente o lugar onde minha descrença desenha uma
linha dura na areia e diz: De jeito nenhum.
Mas o livro persiste em existir, vermelho só lido contra o branco dos
dedos da rainha, quer eu acredite nele ou nã o. Ela encontra a pá gina
que está procurando e vira o livro, ajoelhando-se diante de mim. Uma
pá gina é uma placa colorida de uma garota adormecida com a pele da
cor de chiclete mascado e sete homenzinhos reunidos ao seu redor. A
outra pá gina é um texto denso com um título em fonte falsamente
vitoriana ondulada: Pequena Branca de Neve.
— Você estava certa, é claro — diz a rainha, em tom de conversa. —
Eu sou a vilã , a madrasta, a bruxa malvada, a rainha má . — Seu rosto
está marcado por uma dor furiosa, lá bios torcidos com algo muito
sombrio para ser humor. Ela se inclina para mim, tã o perto que posso
sentir o calor de sua bochecha contra a minha, o leve movimento de
meu cabelo enquanto ela sussurra: — Eu não tenho nome.
3
A RAINHA SE afasta lentamente de mim. Ela encontra meu olhar por
um longo e tenso momento, sua expressã o feroz, mas seus olhos cheios
da dor impotente de alguém que sabe como sua histó ria termina e nã o
pode mudá -la. Eu vejo, ou acho que vejo, o leve brilho de lá grimas
furiosas antes que ela se afaste. A porta bate quando ela sai e eu me
lembro, pela primeira vez em vá rios minutos, de respirar. Suspeito que
me sentiria assim mesmo se a rainha nã o estivesse ameaçando arrancar
meu coraçã o palpitante; ela tem esse tipo de presença, uma intensidade
que engrossa o ar ao seu redor.
Eu bato minha cabeça impiedosamente contra a parede e me ordeno
a me recompor. Felizmente, ou infelizmente, já estive em situaçõ es
perigosas o suficiente para nã o perder muito tempo entrando em
pâ nico ou me arrependendo de minhas escolhas de vida ou gritando
MERDAMERDAMERDA em letras maiú sculas. Desenvolvi um sistema
simples.
O primeiro passo, que acaba sendo igualmente ú til para evitar
ataques de pâ nico e escapar de masmorras, é fazer uma lista de seus
recursos físicos. Eu tenho um livro de contos de fadas que nã o deveriam
existir neste plano narrativo, um pedaço de fuso no bolso de trá s, dois
grampos de cabelo enfiados no sapato e um nú mero finito de minutos
antes do retorno da rainha.
O segundo passo é fazer um plano. A escolha ó bvia é arrancar a farpa
do meu jeans, espetar o dedo e voltar rapidamente ao Bela
Adormecida-verso. Mas eu também poderia pegar os grampos e tentar
arrombar minhas algemas (nã o ria – uma vez que percebi quantas
vezes vá rios reis e fadas iriam me jogar em masmorras e me jogar no
tronco, etc. Passei muitas horas assistindo a vídeos do YouTube abrindo
fechaduras. Tenho apenas cerca de 50% de sucesso no mundo real, mas
descobri que fechaduras de conto de fadas tendem a se abrir ao
primeiro sinal de açã o narrativa) .
O terceiro passo é se mexer. Hesito por uma fraçã o de segundo antes
de ir para os grampos em vez da farpa. Em parte porque exigiria
algumas contorçõ es bastante desconfortáveis para alcançar meu bolso
de trá s, considerando que basta uma meia abertura para agarrar meu
tornozelo, mas também porque estou curiosa. Nã o sobre a rainha,
apesar de seus olhos famintos, seu cabelo sedoso e o jeito que ela olha
para mim, como se eu fosse algo vital, desesperadamente necessá rio
para sua sobrevivência, mas sobre todo o resto.
Eu balanço o grampo na fechadura enquanto monto uma lista de
perguntas, incluindo, mas nã o se limitando a: Como eu apareci em
Branca de Neve? Como meu livro de infâ ncia acabou em um universo
alternativo? A rainha o roubou ou se manifestou espontaneamente?
Esse espelho é algum tipo de orbe palantír/onisciente que permite que
ela espreite outros mundos? Se eu roubá -lo, poderei escapar da minha
histó ria para sempre? E, se meu salto casual pelo mundo teve alguns
efeitos infelizes e imprevistos na integridade narrativa do multiverso?
Nã o consigo parar de imaginar a apresentaçã o de slides que Charm
montaria para a ocasiã o: Entã o, há algo estranho acontecendo com o
multiverso: Dez Teorias Implausíveis. Ou Talvez, Então Você Se Sente
Atraída Pela Vilã: Todos Nós Já Estivemos Lá, Mas Este Não É O Momento,
Querida.
Mas Charm parou de responder minhas mensagens há seis meses,
basicamente por nada. A ú ltima mensagem que recebi dela tem dois
pará grafos e me chama de “uma amiga muito merda” e “uma idiota
irresponsável”, entre outras coisas. Prim deve estar influenciando ela.
Bem na hora em que meus pulsos estã o esfolados e sangrando e
meus tendõ es estã o doendo, as algemas se abrem. Esfrego a dormência
dos dedos, enfio minhas coisas de volta na mochila e coloco o espelho
cuidadosamente em cima. Sua superfície é um reflexo perfeitamente
mundano, mas parece mais pesado do que mera prata e vidro deveriam.
A porta nã o está trancada, o que significa que a rainha me
subestimou afinal. Sinto uma pontada fugaz e embaraçosa de
desapontamento.
Dou três passos no corredor quando uma mã o pesada cai sobre meu
ombro e uma voz alegre diz:
— Perdã o, senhorita.
Há um homem parado do lado de fora da porta da sala de trabalho.
Ele tem uma beleza genérica e descomplicada, como um dos
Hemsworths menores, e eu acho que, por seus calos e roupas, ele é um
lenhador ou – aha! – um caçador.
Eu levanto meu queixo em um â ngulo aristocrá tico.
— Solte-me, senhor! Eu sou a Lady Zinnia de Ohio, e a pró pria rainha
me convidou para...
Mas ele está balançando a cabeça seriamente.
— Desculpe, senhorita. De volta você vai. — Ele puxa educadamente
meu ombro como se eu fosse um animal de estimaçã o tentando escapar
de sua caixa.
— Você está enganado. — Mantenho minha voz estridente e
desdenhosa, mas minha mã o já está no bolso de trá s.
— Sua Majestade disse que se eu visse uma perdulá ria magra em
calças masculinas, nã o deveria deixá -la escapar...
O caçador para porque eu dirigi meu punho em direçã o a sua
garganta com a longa lasca afiada entre meus dedos. Ele pega meu
pulso com uma mã o mais ou menos do tamanho e formato de uma luva
de beisebol. Ele dá uma sacudida em meu braço que faz meus ossos
estalarem, e a farpa cai de meus dedos inertes.
Ele balança a cabeça novamente, estalando enquanto pega a lasca.
— Nada disso, agora. Sua Majestade também disse que eu deveria
chicotear a carne de suas costelas e deixá -la amarrada, esperando pelo
prazer dela, se você me causasse alguma dificuldade.
Tento arrancar minha mã o, mas tenho a força da parte superior do
corpo de uma boneca de papel molhada. Nem tenho certeza se o
caçador notou.
— Isso, ok, isso definitivamente nã o é necessá rio. — Eu suavizo,
deixando meus cílios caírem e meus lá bios tremerem. — Por favor,
senhor, nã o me machuque. — Isso parece uma releitura bastante
tradicional de Branca de Neve, o que significa que o caçador é um
gigante mole com um histó rico de desobedecer sua rainha.
Ele parece visivelmente dividido, como um bom garoto pensando em
quebrar o toque de recolher.
— Bem, vamos apenas prendê-la de volta, hein? Entã o ela nã o saberá
de nada. — Ele coloca um dedo conspirató rio no nariz, o que nã o é algo
que eu pensei que alguém fizesse na vida real.
— Nã o, isso nã o é…
Mas é muito tarde. Ele me puxa de volta para a sala de trabalho da
rainha e coloca as algemas de volta em meus pulsos. Ele nã o deve ser
tã o estú pido quanto parece (o que é, para ser claro, um nível muito
baixo), porque ele me revista, confisca os grampos de cabelo e joga
minha mochila fora de alcance. Ele me dá um tapinha desajeitado na
cabeça enquanto sai, parando apenas para jogar algo na lareira. Um
palito de fó sforo, talvez, ou uma longa lasca de madeira.
E entã o estou sozinha, exceto pelas cinzas do meu fuso e as perguntas
que nã o posso responder, e o pensamento friamente reconfortante de
que a rainha nã o me subestimou, afinal.
★★★
VOCÊ NÃ O IMAGINARIA QUE uma pessoa pudesse adormecer com os
braços algemados acima da cabeça e o pescoço pendurado em um
â ngulo repugnante, mas estou aqui para dizer que sim.
Eu acordo algumas horas depois para encontrar a luz oblíqua longa e
pesada através da janela e a rainha sentada mais uma vez em sua
cadeira. Ela está mexendo em algo no colo, e seu rosto parece diferente
na ausência de fome ou ó dio: mais jovem, mais suave.
Tento mexer os dedos e solto um pequeno chiado de dor.
Ela nã o olha para cima.
— Bom dia. Ou melhor, boa noite. — Acho que ela mudou para o
modo policial bom. Ela segura um pequeno objeto dourado contra a luz
antes de colocá -lo gentilmente no chã o ao meu lado. É meu tordo,
amassado e maltratado, mas inteiro mais uma vez. — É um pequeno
dispositivo inteligente. Levei a tarde inteira para consertar.
Ganhei aquele tordo de um artífice de décimo segundo nível em uma
versã o steampunk da Bela Adormecida; Duvido muito que uma bruxa
medieval mal-humorada pudesse consertá -lo. Eu tento um sorriso de
escá rnio, mas meu lá bio racha e sangra.
— Se você consertou, como é que nã o está cantando?
— Porque eu nã o quero fazer mal a você.
Eu faço um barulho de pura descrença e os olhos da rainha brilham
sob aqueles cílios baixos. Ela se move. Há um brilho prateado, uma
lufada de ar, e entã o há uma ponta perversa pressionando a pele nua
acima da minha clavícula. O passarinho começa a cantar um canto
estridente, de alguma forma ainda menos meló dico do que antes.
Aparentemente, ela realmente consertou. Nessas circunstâ ncias – com
sua faca em minha garganta – acho que minha capacidade de admiraçã o
é um tanto limitada.
A rainha arrasta a faca pelo meu pescoço, raspando minha jugular,
empurrando desconfortavelmente a carne macia sob minha mandíbula.
Meu queixo levanta com relutâ ncia. Seus olhos queimam nos meus,
desdenhosos, abrasadores.
— Quando eu ameaçar sua vida, prometo que você saberá .
Eu encaro de volta, inabalável, deliberadamente indiferente, até que a
mandíbula da rainha se contrai. Ela se recosta com um leve hnnh e enfia
a faca de volta na cortina vermelha de seu vestido. O tordo canta em
silêncio mais uma vez.
— Eu estava esperando — ela diz, com uma doçura totalmente em
desacordo com o mú sculo cerrado de sua mandíbula — que você e eu
pudéssemos começar de novo. Aqui.
Ela se levanta e gira uma chave em minhas algemas. Meus braços
caem desajeitadamente no chã o, os dedos inchados e inú teis como
peixinhos de barriga para cima no balde.
A rainha me deixa esfregando desajeitadamente meus pró prios
membros enquanto ela se acomoda ao lado do fogo. Há uma segunda
cadeira em frente a ela e uma pequena mesa cheia de comida entre elas.
— Venha. Fique à vontade.
Eu gostaria de ser orgulhosa e heró ica sobre isso, mas nã o como há
um dia inteiro e nã o é como se eu fosse a algum lugar com peixes
mortos como armas. Eu tropeço na cadeira e faço uma tentativa
desajeitada de pegar um copo de estanho. Você nunca percebe como a
á gua é boa até passar um dia de ressaca e acorrentado a uma parede.
Ela espera até que eu beba uma jarra cheia e coma três rolinhos antes
de falar.
— Deixe-me expor minha posiçã o mais claramente. — Sua voz é
séria, seu rosto cuidadosamente contrito. Ela definitivamente notou
que eu a notei; de novo, me processe; porque sua maquiagem foi
cuidadosamente reaplicada e os laços de seu vestido apertados para
que seus seios fiquem mais altos. Eu me pergunto se foi assim que ela
seduziu o pai da pobre Branca de Neve para fora de seu reino, e se ela
sabe quem ela é quando nã o está interpretando o vilã o sanguiná rio ou a
mulher indefesa. — Sou estrangeira e viú va, sem nada além de um
trono para me proteger. Mas agora sei que vou perder esse trono, junto
com minha vida. E eu… — Ela coloca uma mã o sobre o que, estou
mortificado em relatar, só pode ser descrito como seu peito arfante. —
Preciso da sua ajuda, Zinnia Gray.
Eu pulo as maçã s na bandeja e pego um quarto rolinho em vez disso.
— Novamente, se você queria minha ajuda, as algemas nã o foram um
começo incrível.
Outro pequeno flash de aborrecimento, mas sua voz continua
penitente.
— Um erro, nascido de uma grande necessidade. Desculpe.
Eu pego pã o entre meus molares.
— Entã o esse é o seu espelho. O que ele faz?
Eu quase posso ouvir seus dentes rangendo.
— Ele mostra a verdade.
— Onde você conseguiu isso? — Minha voz é casual, meus olhos em
seu rosto.
— Eu nã o consegui. Eu fiz. Uma mulher na minha posiçã o precisa
saber a verdade o tempo todo. — Há uma leve pitada de orgulho em sua
voz. Conto objetos má gicos em minha cabeça: pente, renda de corpete,
maçã envenenada, espelho, meu pró prio tordo e decido acreditar nela.
É uma pena que ela use principalmente suas habilidades consideráveis
para homicídio.
— Legal — eu digo. — Agora, posso pegar minha mochila? — A
suspeita é ó bvia em seu rosto. Viro as duas mã os com as palmas para
cima. — Nã o, sério, eu tenho que tomar meus remédios, poçõ es
má gicas, qualquer coisa, duas vezes por dia. Você deve se lembrar da
doença terminal que mencionei.
— Isso nã o foi um estratagema?
— Quero dizer, sim, foi e isso também… mas também é verdade.
Agora me dê minhas merdas, a menos que você queira que eu caia
morta nos pró ximos vinte minutos. — Isso é besteira, claro. Hoje em
dia, esqueço meus remédios por semanas a fio, abordando-os com a
culpa esporá dica que inspira as pessoas a comprar multivitaminas. É
estranho, na verdade, depois de viver tanto tempo sob um rigoroso
regime de remédios e consultas, injeçõ es e radiografias. Eu costumava
ficar visivelmente, obviamente doente de uma forma que fazia os pais
desviarem os olhos de mim nas mercearias, como se minha pró pria
existência fosse um mau pressá gio. Mas agora passo principalmente
por uma pessoa saudável, carregando a DGR como um segredo feio,
uma semente ruim na barriga. É quase um alívio anunciá -lo assim,
mesmo que seja principalmente uma mentira.
Eu estalo meus dedos e a boca da rainha se fecha – Deus, eu amo
mandar na realeza –, mas ela pega minha mochila e a joga no meu colo.
Eu faço um show de pescar saquinhos ziplock e caixas plá sticas
rotuladas com os dias da semana, disfarçadamente enfiando o espelho
mais fundo na minha bolsa.
A rainha me observa contar comprimidos na palma da mã o.
— Qual é a natureza desta... doença?
Eu engulo um pedaço de esteró ides e anticoagulantes.
— Você leu todo aquele livro de contos de fadas?
Um aceno real.
Eu faço um gesto ta-da no meu pró prio peito.
— Você está olhando para o protagonista de uma versã o
contemporâ nea sombria do conto de Aarne-Thompson tipo 410. — Meu
sorriso tem gosto amargo. — Pequena Brier-Rose.
— A protagonista?
— A personagem principal. Em 'Little Brier-Rose', a protagonista é
Brier-Rose.
A rainha respira um ah de compreensã o. Ela junta os dedos e diz
delicadamente:
— Nesse caso, imagino que você teria uma certa simpatia pela minha
situaçã o...
Eu a interrompi.
— E o livro. Onde você conseguiu isso?
Ela está visivelmente irritada agora, as arestas de seu ato inocente se
desgastando muito, mas sua voz ainda é comedida.
— Apareceu há três dias na minha estante.
— Nã o brinca.
Suas sobrancelhas baixam vá rios centímetros, em ofensa ou
preocupaçã o.
— Nã o é a ú nica apariçã o estranha nos ú ltimos meses. A cozinheira
encontrou um ovo de ouro na barriga de um ganso que abriu para o
jantar e, quinze dias atrá s, o caçador disse que encontrou um lobo na
floresta.
— Quero dizer, nã o é onde os lobos deveriam estar?
— E... — A rainha parece aflita. — Falou com ele.
— Huh. — Estou em algum tipo de mistura de conto de fadas? Chris
Pine está prestes a aparecer e cantar letras de Sondheim com um
sotaque confuso?
A rainha se recompõ e com a expressã o de uma mulher determinada a
retomar as rédeas da conversa.
— As pessoas nã o gostam de coisas estranhas. Ovos de ouro, lobos
falantes... Eles sã o vistos como maus pressá gios, pressá gios. Atos de
feitiçaria. — Seus olhos piscam. — Eles logo vã o querer uma bruxa para
queimar.
Eu faço questã o de olhar ao redor de sua sala de trabalho, com suas
caveiras e pilõ es e coisas desagradáveis flutuando em potes.
— Eles nã o terã o que procurar muito, nã o é?
Um olhar plano.
— Isso. E se acreditarmos nesse livro, as pessoas conseguirã o
exatamente o que desejam. Você entende por que eu quero sair.
E honestamente, eu entendo. Passei a maior parte da minha vida
tentando evitar o terceiro ato da minha histó ria, e o resto tentando
salvar outras belas adormecidas delas; Eu sei exatamente como é se
encontrar caminhando para um final horrível.
A diferença é o que o Dr. Bastille chamaria de uma questã o de agência
. Eu estendo meus dedos.
— Ou… e eu sei que isso é um grande salto para você — você poderia
simplesmente parar de tentar assassinar sua enteada. Isso pouparia
muita dor a todos.
O rosto da rainha achata ainda mais, sua boca uma barra vermelha
sombria.
— Ah, entendo. As galinhas já estã o voltando para casa para dormir,
entã o. Há quanto tempo Branca de Neve está em seu caixã o de vidro?
Os lá bios se separam relutantemente.
— Muito tempo.
— Desapontada. — Eu jogo a palavra para ela com o mesmo olhar
impiedoso que ela me deu.
Ela nã o parece achar isso tã o lisonjeiro quanto eu, porque diz em um
tom á spero e monó tono:
— E você sabe como minha histó ria termina?
Prefiro nã o explicar sobre as instituiçõ es de ensino superior e o
departamento de folclore.
— Branca de Neve se casa com o príncipe que se apaixonou por uma
criança morta na floresta, quero dizer, minha histó ria é caramba, mas é
dupla, talvez tripla caramba, e eles vivem felizes para sempre.
— Minha história, eu disse. — Seus lá bios se torcem em uma
expressã o que é apenas vagamente relacionada a um sorriso e sua voz
adquire o ritmo afetado da recitaçã o. — Então eles colocam um par de
sapatos de ferro em brasas…
— Você nã o precisa…
— Eles foram trazidos com pinças e colocados diante dela. Ela foi
forçada a calçar os sapatos em brasa e dançar até cair morta. — Ela olha
fixamente para mim quando termina, as linhas em ambos os lados de
sua boca como um par de parênteses sombrios.
Eu encaro de volta, tentando nã o parecer enojada.
— Claro, sim, o campesinato alemã o gostava de uma boa puniçã o. —
Ou pelo menos, os Grimms o fizeram. Havia muitas outras histó rias
flutuando no interior da Europa na época, histó rias mais estranhas,
sombrias, estranhas e sensuais, mas os Grimms nã o eram antropó logos.
Eles eram nacionalistas tentando construir uma casa moderna e
ordenada com os ossos selvagens do folclore.
— E você acha que isso é justiça? Que eu deveria morrer dançando
com sapatos em brasa? — A voz da rainha está levemente trêmula, seus
dedos se curvando nos braços de madeira de sua cadeira.
— Nã o, quero dizer, eu nã o sou uma pessoa de pena capital, minha
mã e está no movimento de aboliçã o da prisã o… — ela está em todos os
tipos de ativismo nos dias de hoje, como se toda a energia que ela
estava reservando para odiar Big A energia em meu nome foi
redistribuída para todos os outros supervilõ es modernos — mas isso
parece uma situaçã o de 'viva pela espada, morra pela espada', sabe?
A rainha me encara por um momento assassino, entã o fecha os olhos.
— Me ajude. — Nã o pensei que um sussurro pudesse soar tã o
imperioso.
— Se eu estivesse implorando pela minha vida, poderia acrescentar
um ponto de interrogaçã o e um 'por favor'.
Seus olhos permanecem bem fechados, como se ela temesse me
estrangular se visse meu rosto.
— Ajude-me, por favor. — Ela nã o consegue controlar o ponto de
interrogaçã o.
Eu me inclino para a frente sobre a mesa, fazendo uma pausa longa e
cruel antes de dizer:
— Nah.
Os olhos da rainha se abrem. Seu rosto está tã o sem sangue que seus
lá bios parecem supersaturados, um pouco irreais.
— Por quê?
— Porque eu nã o estou soltando uma rainha má no multiverso!
Porque em algum lugar na floresta agora há uma garotinha presa em
um sono encantado sem motivo, exceto sua malícia, sua vaidade. —
Estou ciente de que nã o estou mais jogando legal, que minha voz está
tremendo com o vitríolo honesto, mas nã o consigo parar. — Ela nã o
merecia isso, ela merecia crescer, conhecer um cara normal e viver uma
vida normal, apenas viver…
Eu mordo o interior da minha bochecha com força, mas é tarde
demais. Os olhos da rainha estã o acesos, seu sorriso pequeno e
vermelho.
— Oh, pequena Brier-Rose, você sente pena dela. Pobre Branca de
Neve, tã o bonita, tã o pura. — Ela balança a cabeça, fingindo pena em
seu rosto. — Você acha que esta é a histó ria dela.
A rainha se inclina mais perto da mesa, seus lá bios se afastando de
seus dentes.
— Você nã o sabe de nada, Zinnia Gray de Ohio.
As primeiras notas vacilantes do canto do tordo estã o aumentando e
eu estou me preparando para virar a bandeja de comida no colo dela e
correr quando há uma batida forte na porta.
A voz do caçador é clara e alegre.
— Minha Rainha, um mensageiro veio de nossas fronteiras. Você está
convidada para um casamento real esta noite!
★★★
A SALA FICA MUITO SILENCIOSA, exceto pelo som superficial da
respiraçã o da rainha, o tique-taque de seu pulso em sua garganta. Nó s
duas nos sentamos como está tuas desajeitadas até que o caçador
indaga em dú vida:
— Minha rainha?
Sua garganta faz um barulho pequeno e seco quando ela engole.
— Um casamento — ela repete.
— Sim, Majestade. Esta mesma noite! — O caçador também sofre de
pontos de exclamaçã o. — Devo dar ao mensageiro sua resposta ao
convite dele?
— Ainda nã o. — A rainha está empalidecendo, murchando diante dos
meus olhos. De repente, ela parece muito mais jovem, e pela primeira
vez me ocorre que toda rainha já foi uma princesa.
— Oh. — Um som arrastado do outro lado da porta, como um homem
grande arrastando os pés. — É só que ele está esperando no grande
salã o agora, e ele trouxe tantos guardas com ele para escoltá -la, e...
A rainha convoca realeza suficiente para dizer, com firmeza:
— Ofereça-lhes comida e bebida enquanto me preparo.
— Sim, Majestade.
Quando nã o há etapas de inicializaçã o subsequentes, ela acrescenta:
— Isso é tudo, Berthold.
— Sim, Majestade. — Ele caminha obedientemente pelo corredor.
A rainha ainda nã o se moveu. Sua pele é do branco acinzentado da
neve da semana passada ou de dentaduras baratas. Ela quase poderia
ser confundida com a protagonista desta histó ria se nã o fosse pela
coroa de metal frio em seu corpo, testa. Eu quase poderia sentir pena
dela se ela nã o tivesse envenenado uma criança e me acorrentado a
uma parede.
— Berhold, hein? — Eu me recosto na cadeira, tornozelos cruzados,
sobrancelhas erguidas. — Ele parece brilhante.
Ela responde distraidamente, um ombro se contorcendo em um
encolher de ombros.
— Ele tem seus usos.
— Ah, é mesmo?
Estou sendo um idiota de propó sito, talvez tentando provocá -la a
qualquer coisa que nã o seja esse pâ nico congelado, mas sua expressã o
mal pisca.
— Você tem alguma ideia de como é difícil encontrar um amante que
nã o esteja em busca do trono? Ele era... — Seus lá bios se curvam, e eu
nã o posso dizer se é o caçador ou ela mesma que ela desdenha mais. —
Gentil.
Nã o parece muito ú til lembrá -la de que ele a traiu e deixou Branca de
Neve viver, entã o nã o digo nada.
Eventualmente, a rainha se recompõ e, piscando duas vezes e
exalando fortemente. Se ela fosse uma cavaleira, imagino que abaixaria
a viseira, mas como ela é uma rainha má , ela se levanta e caminha até
sua bancada.
Leva menos de um segundo para ela virar de volta para mim.
— Cadê? O que você fez com ele?
Segue-se uma troca breve e sussurrada, na qual tento e nã o consigo
desviar de suas acusaçõ es ("Onde está o quê?" "Quer saber, sua pú stula
ladra!" "Ok, acalme seus peitos, está na minha mochila." "Acalme minha
o quê?"), e entã o ela está segurando a moldura embaçada do espelho,
sussurrando para ele. Nã o consigo ouvir as palavras, mas nã o preciso.
Talvez esteja no original alemã o, ou talvez seja a traduçã o dos Grimms:
Espelho, espelho na minha mão, quem é a mais bela do mundo?
Nas histó rias da Bela Adormecida, passei a reconhecer certos
momentos – tropos, você pode chamá -los, pontos repetidos da trama –
que têm um eco neles. Pedaços da histó ria que foram contados tantas
vezes que desgastaram a pá gina: a maldiçã o do batismo, a picada dedo,
o sono sem fim, o beijo. Você quase pode sentir a realidade suavizando
ao seu redor, nesses momentos.
Eu sinto isso agora, enquanto a madrasta perversa sussurra para o
espelho.
Nã o sei o que ela vê no espelho, mas a garganta da rainha se move
enquanto ela engole.
— É tarde demais.
— Sim. — Eu faço uma careta, sibilando por entre os dentes. — Eu
recomendo que você recuse este convite. — De qualquer forma, nunca
fez muito sentido por que a rainha má apareceu no casamento de
Branca de Neve.
Um olhar mordaz em minha direçã o.
— Você realmente acha que eu tenho uma escolha? Você acha que ela
enviou todos aqueles homens como guarda de honra?
Eu me mexo no meu assento, pisando no minú sculo verme de pena
no meu estô mago.
— Entã o puxe alguma merda de bruxa. Disfarce-se. Amarre seus
lençó is e saia pela janela. Corra.
— Isso me daria dias, talvez semanas. E mesmo que eu escapasse de
seu alcance, o que eu faria? Esconder-se em uma casinha na floresta,
apodrecendo?
A pena desaparece.
— Oh, você quer dizer como a Branca de Neve fez? Para escapar de
você?
Seus olhos se estreitam em fendas viciosas. Ela diz:
— Eu. Tenho. Que. Fugir — com pontos extras entre cada palavra.
— Foi o que acabei de dizer. — Mas eu sei que nã o é isso que ela quer
dizer. Pego, nã o muito casualmente, as alças da minha mochila.
A rainha vem em minha direçã o, o espelho ainda cerrado em uma das
mã os, o ar se tornando mais denso ao seu redor. Cabelos soltos se
erguem em uma brisa invisível, emaranhados como galhos escuros na
lua fria de seu rosto.
— Você vai me dizer como é feito. — Desta vez nã o é uma pergunta
ou uma ordem; É uma promessa.
Entã o, tudo bem, foi emocionante me encontrar em um conto de
fadas diferente, sentir pela primeira vez a possibilidade de divergir da
minha pró pria estrada triste, mas é hora de ir. Eu tropeço para fora da
minha cadeira, me afastando, correndo minha mã o livre pelas
prateleiras em busca de algo, qualquer coisa afiada. Uma faca, uma
lasca, um dente, um pedaço de osso. Nã o há nada.
A rainha está perto agora. Ela estende a mã o para o meu colarinho e o
torce em um punho fechado, nos unindo. Posso ver os ossos simples de
seu rosto sob os cremes e cosméticos, a linha dura de seus lá bios.
E nã o tenho fuso nem torre, nem rosas, nem fadas, nem belos
príncipes, mas tenho uma monarca perto o suficiente para beijar. Terá
que ser o suficiente.
Eu endireito minha coluna e inclino meu rosto de forma imprudente
para cima – e, oh Deus, eu tenho que ficar na ponta dos pés para fechar
o ú ltimo centímetro entre nó s, o que é constrangedor e
embaraçosamente quente – e a beijo.
É um beijo inegavelmente fraco: um esmagamento nã o consensual de
lá bios e dentes pelo qual eu me sentiria muito mal se ela nã o estivesse
prestes a me torturar sem consentimento. Ela se afasta, é claro — mas
nã o instantaneamente. Há um atraso minú sculo, mas crítico, um
momento que me faz pensar quanto tempo se passou desde que a
rainha conheceu alguém fora de seu controle e se ela pode nutrir um
gosto baixo por camponeses sarcá sticos e doentios.
Entã o ela está olhando e ofegando, pegando sua faca enquanto suas
bochechas ficam rosadas. Eu nã o deveria me importar, porque eu
deveria estar desaparecendo agora.
Exceto que eu nã o estou.
Nada está acontecendo. O mundo nã o está diminuindo ao meu redor,
as pá ginas infinitas do universo nã o estã o passando. Nã o funcionou, e
nó s duas estamos extremamente ferradas.
Algo desvia os olhos da rainha de mim. Ela olha mais de perto o
espelho em sua mã o e seus olhos se arregalam.
Ela solta meu colarinho e pega minha mã o. Antes que eu possa me
afastar – antes mesmo de começar a formar a palavra ei! – ela pressiona
nossas mã os contra a superfície de vidro de seu espelho.
Exceto que nã o há vidro. Apenas nossas mã os, caindo no nada.
4
ESTÁ FRIO, ENTRE mundos. Nã o há ar, mas ele passa por mim,
cheirando a geada e a primeira neve. A ú nica coisa quente é a mã o da
rainha apertada na minha, arrastando-nos para uma histó ria que nã o
pertence a nenhum de nó s.
Meus joelhos batem na terra, coberta de musgo e verde, e a rainha cai
ao meu lado com um baque surdo. Ela faz um barulho como o de ar
vazando de um pneu, e eu tiraria sarro dela se nã o sentisse o mesmo.
Minhas células estã o esgotadas, como se todo o meu corpo tivesse sido
colocado no micro-ondas recentemente, e demoro mais do que deveria
para ficar de pé e olhar em volta.
Á rvores. Ar suave e primaveril. Canto de pá ssaros extremamente
meló dico. A cena toda tem uma estranha nebulosidade, como uma
pintura pré-rafaelita ou uma velha fita VHS.
A rainha cambaleia diante de mim e abre bem as mã os em triunfo.
— Afinal, eu nã o precisava de você, Zinnia Gray. Eu me salvei, como
sempre fiz e sempre salvarei.
Reviro os olhos com tanta força que dó i um pouco.
— Oh, sim? Entã o quem é?
O sorriso vitorioso da rainha cede um pouco nas bordas. Ela segue
meu olhar por cima do ombro esquerdo, onde um caixã o de vidro está
entre as á rvores. Uma garota com um lindo cabelo preto está deitada
sob o vidro, seu rosto iluminado por um ú nico e perfeito raio de sol,
suas mã os dobradas frouxamente em torno de um buquê de flores.
A rainha fica olhando. Ela abre a boca, fecha e abre de novo.
— Eu nã o sei — ela responde.
—Você está falando sério? Bateu a cabeça?
— Nã o, eu sei quem é, mas... — A rainha engole, seus olhos fixos no
inquietante branco do rosto da garota. — Essa nã o é a minha Branca de
Neve.
— Sim, eu acho que nã o. — Enfio as duas mã os nos bolsos, apertando
os olhos para a paisagem. — Seu mundo era um pouco mais gó tico, mas
este lugar tem uma vibe 'agora em Technicolor'. — Percebo que ela nã o
entende, entã o digo maliciosamente: — Parabéns, você chegou a um
mundo diferente! Mas você ainda está na mesma histó ria.
A rainha parece atordoada, olhando para Branca de Neve com o início
da repulsa rastejando em seus olhos.
— Por que a luz está assim? — Ela estende a mã o timidamente para o
raio de sol. Algo violeta flutua em sua palma. — Há pétalas de flores
caindo sobre ela?
Eu nã o respondo porque estou ocupada me esgueirando atrá s dela.
Arranco o espelho da mã o da rainha e jogo-o de lado no tronco de uma
á rvore. Estou esperando por um estilhaço dramá tico de vidro, mas a
moldura apenas bate de forma decepcionante contra a casca e cai no
chã o, perfeitamente inteira. Há meio segundo para prender a
respiraçã o antes de nó s duas mergulharmos para o espelho.
A rainha passa por mim e eu a seguro pela cintura. Isso se transforma
rapidamente em uma luta livre, nossas roupas manchadas de musgo e
sujeira, nossa respiraçã o acelerada.
A rainha é mais forte e cruel do que eu.
— Não — ela ofega. — Eu estou... nã o — ela me prende entre os
joelhos e avança para o espelho — fica aqui!
Eu tento tirar o espelho de suas mã os, mas ela vira o vidro para
encontrar minha mã o, e ela voa através dele, voltando para aquele lugar
frio.
A ú ltima coisa que ouço é a rainha rindo.
★★★
DESSA VEZ, aterrissamos em algum lugar escuro e ú mido, como um
daqueles porõ es que nunca secam totalmente. Abrir os olhos exige mais
esforço do que deveria, e nã o sei dizer se é o DGR ou as viagens
relutantes por nenhum lugar.
A primeira coisa que vejo é o rosto de um estranho sorrindo para
mim. É um rosto bonito: sardento e com dentes separados, emoldurado
por cabelos emaranhados cor de carvã o. Seus lá bios nã o sã o vermelhos
como sangue e sua pele já viu muito sol para ser comparada à neve, mas
reconheço um protagonista quando vejo um.
— Oi — eu digo asperamente.
— Bom dia! — Deus me livre das princesas e seus pontos de
exclamaçã o.
— Dia. Onde está ... — Sento-me abruptamente, piscando para focar a
sala. Mas nã o é um quarto. É uma caverna, com chã o de areia e fogueira
bem arrumada.
A garota – mulher, na verdade, ela tem pelo menos uma década a
mais do que o querubim no caixã o – senta-se de pernas cruzadas ao
meu lado.
— Sua mulher brava? — Ela tem um sotaque borbulhante e gutural.
— Ela nã o é minha... sim, ela.
Ela gesticula com o queixo em direçã o à entrada da caverna, onde
mais de uma dú zia de homens lutam contra uma figura alta de cabelos
escuros. Parece haver muitos xingamentos de todas as partes.
— Quem sã o esses caras?
A estranho sorri com carinho para eles.
— Meus. Eles me acolheram quando minha mã e tentou me matar, e
estou aqui desde entã o. — Confessa sem grandes preocupaçõ es, como
se a tentativa de filicídio fosse uma das pequenas desgraças da vida.
— Ah. — Meu cérebro parece um queijo cheddar derretido, mas me
lembro vagamente de versõ es de Branca de Neve em que ela é adotada
por ladrõ es ou bandidos, em vez de anõ es. Espanhol, talvez? Ou
flamengo? De qualquer forma, tenho certeza de que a mã e dela dá outra
chance a ela e ela merece um aviso. — Ouça, Branca de Neve — eu
começo.
— Sneeuwwitje.
— Ouça, Sneeuwwitje...
A rainha grita da entrada da caverna.
— Zínia! Diga a esses rufiõ es para me soltarem!
Eu grito de volta sem me virar:
— Amarrem-na bem, rapazes, ela é super perigosa. — Há sons
abafados de fú ria em resposta, um aumento definitivo em palavrõ es.
Eu tento de novo.
— Você já deve saber disso, Sneeuwwitje, mas sua mã e com certeza
vai tentar te matar de novo. Entã o, se alguém aparecer com uma maçã ,
ou um pente, ou o que quer que seja, diga nã o.
Sneeuwwitje acena com a cabeça solenemente.
— Ela me deu um anel de demô nio, que me fez cair em um sono
profundo. Como você sabia?
Aperto os olhos para o couro manchado de sua roupa, os calos nas
palmas das mã os.
— Se ela já te colocou para dormir... como é que você nã o está casada
com um príncipe agora?
— Ah, eu disse a ele que nã o. Já tenho dezessete maridos. — Uma
covinha extremamente atraente aparece, apresentando um argumento
convincente de que um homem pode compartilhar um décimo sétimo
dessa mulher e se considerar sortudo. — Dezoito apenas parecia
ganancioso.
— Claro, sim — eu digo baixinho, fazendo uma nota mental distante
de que nem todas as princesas precisam ser salvas.
Alguém grita um aviso. Passos ecoam na areia. Os dedos da rainha se
fecham em volta do meu tornozelo e ela sorri ferozmente para mim, um
rastro duplo de sangue vazando de seu nariz e um espelho em sua mã o.
Eu tenho tempo para dizer, — Ah, puta que pa… — antes que o
mundo se dissolva novamente.
★★★
O PRÓ XIMO MUNDO tem a estética elegante e iluminada em azul da
ficçã o científica do futuro distante. As paredes sã o empilhadas com
caixõ es de metal frio. Rostos de cera olham fixamente de suas pequenas
janelas congeladas, mortos ou adormecidos, seus lá bios de um
vermelho doentio e venenoso.
A rainha sibila entre os dentes e nos arremessa de volta ao vazio.
Aterrissamos em uma encosta íngreme e solitá ria. Por um momento
penso que estamos sozinhas, mas entã o um galho estala. Um cachorro
de pernas longas trota por nó s, seu pelo prateado sedoso, seus olhos
fixos em algum propó sito invisível. Mais seis seguem em seus
calcanhares, um rio macio de patas, caveiras e peles de linho.
— O que… — a rainha começa, mas uma mulher aparece galopando
atrá s dos cachorros. Ela tem cabelos da cor da lua e um vestido da cor
da neve, e seus olhos se arregalam quando pousam na rainha. Por um
momento, acho que ela pode mostrar os dentes ou lançar seus cã es
contra nó s, mas entã o seus olhos deslizam para mim. Ela inclina a
cabeça, como alguém faria para um colega soldado em uma longa
guerra, e corre atrá s de seus cachorros.
Nó s duas ficamos juntas no silêncio com cheiro de pinho, sem saber
se fomos abençoadas ou amaldiçoadas. A rainha pega minha mã o quase
gentilmente desta vez, antes de levantar o espelho novamente.
Um campus universitá rio cheio de prédios comidos por hera e placas
em coreano, onde um garoto extremamente bonito oferece uma maçã a
outro garoto igualmente lindo.
Um suntuoso banquete de casamento que parece envolver sete ogros
e uma princesa em um vestido do vermelho mais rico.
Uma mulher encurvada oferecendo um pente a uma garotinha, seus
lá bios se curvando em um sorriso frio.
Posso me sentir desmoronando, me desenrolando no redemoinho
sem fim de garotas mortas e tampas de caixõ es, mã es perversas e
maçã s envenenadas. A mesma histó ria é repetida vá rias vezes, como
uma mulher parada entre dois espelhos, refletida no infinito.
E entã o outra floresta, ondulada e negra sob um céu sem estrelas.
Afasto meu braço da rainha e arranco o espelho de sua outra mã o. Ela
está muito fraca para me impedir, sua pele ú mida e gelada, seus
membros tremendo.
Ela rola de bruços ao meu lado, ofegando na lama escura de folhas e
terra.
— É aqui que você desenha a linha? — ela cospe. — É aqui que você
escolhe ficar?
Ela tem um ponto extremamente bom. A mata ao nosso redor nã o
tem nenhuma semelhança com a primeira floresta em que pousamos,
com suas pétalas de flores e o canto dos pá ssaros. As á rvores aqui sã o
nodosas e tortas, como ossos quebrados que nã o cicatrizaram bem, e a
escuridã o é do tipo que faz seus olhos doerem se você olhar para ela
por muito tempo. Encontrei algumas versõ es da Bela Adormecida que
se transformaram em horror e voltaram com novas cicatrizes e
provavelmente algum TEPT nã o diagnosticado. Charm teve um ataque
sobre isso, e na pró xima vez que saí de casa encontrei um novo canivete
e um kit de primeiros socorros em minha mochila, junto com uma nota
dizendo Não morra, cabeça dura na caligrafia chique de Prim.
Entã o, nã o, eu nã o amo a vibraçã o sombria de Grimm dessas
florestas, mas estou cansada em um nível subatô mico, meus mú sculos
tremendo e meus dentes batendo, e eu cansei de mudar de canal por
capricho de outra pessoa.
— Por que nã o? — Eu faço um esforço para rastejar para longe e
conseguir vá rios metros consecutivos antes de desabar contra minha
pró pria mochila, espelho ainda na minha mã o. — Olha, você tem que
dar um tempo. Você vai se matar nesse ritmo.
— Como se você se importasse com o meu destino. — Sua voz
escurece, sedosa e baixa. — Além de seus desejos bá sicos, é claro.
— Meus, o quê?
A rainha se ergue sobre as mã os e os joelhos apenas para me lançar
um olhar altivo.
— É um pouco tarde para fingir indiferença. Você me beijou.
Estou dividida entre explicar que meu beijo foi na verdade uma
tentativa de fuga fracassada e esclarecer que nã o há nada
especialmente vil em desejar uma mulher alta e perigosa com vibraçõ es
terríveis (quem entre nó s, etc.). Em vez disso, eu digo:
— Tanto faz. Eu só preciso de uma pausa daquele espelho, ok?
— Entã o me diga como sair dessa maldita histó ria. — A voz da rainha
é á spera, levada muito além da exaustã o, mas ainda sem vontade de se
curvar. Seria admirável se nã o fosse extremamente irritante. — Diga-
me, e eu juro que vou parar.
— Me morde.
— Agora nã o é hora para suas fantasias grosseiras! — Ela se põ e de
pé, cambaleante, e dá dois passos vacilantes em minha direçã o. — Você
nã o tem ideia de como é lutar pelo seu pró prio direito de existir. Saber
que está condenada, mas continuar lutando...
Eu jogo um maço de folhas nela.
— Para de choramingar, mulher. Você acabou de descobrir como sua
histó ria termina na semana passada. Passei toda a minha vida sob uma
sentença de morte.
A rainha está arrancando folhas molhadas de seu cabelo, dentes
brancos brilhando na escuridã o.
—Você acha que nã o? — Sua voz é um silvo estrangulado. — Posso
nã o saber sobre os sapatos de ferro, mas sempre tive um final ruim. Eu
era uma segunda filha feia com um poder misterioso, e entã o eu era
uma noiva estrangeira que nã o tinha herdeiros. Agora eu sou um rainha
que é apenas um pouco mais temida do que odiada, e meu tempo
acabou. Mas lutei com unhas e dentes para sobreviver, e nenhuma
princesinha bonita vai me impedir.
Este pequeno monó logo me deixa com duas sensaçõ es nã o
totalmente confortáveis. A primeira é a vergonha repentina e
incontrolável de minha visã o de mundo ter sido distorcida quando me
ocorre que Branca de Neve pode nã o ser a ú nica vítima aqui. A segunda
vem da palavra bonita, que a rainha tentou lançar em mim como um
tapa, mas que vacilou no meio do voo e pousou de maneira bem
diferente. Encontro-me lutando para formar uma resposta
suficientemente contundente, ou qualquer resposta.
Mas ela nem está mais olhando para mim. Ela está olhando para a
escuridã o abissal entre as á rvores com uma expressã o de sofrimento.
— Ah, mais uma nã o.
Há uma frá gil luz â mbar piscando mais perto, como uma vela segura
em um punho trêmulo. Passos apressados. A respiraçã o apavorada de
quem corre por motivos nã o recreativos.
A rainha parece inclinada a se fundir nas sombras e deixar esse
personagem passar por nó s, sua narrativa ininterrupta, mas eu fico
tonta e digo:
— Olá ?
Eu vislumbro uma jovem de pele marrom e olhos aterrorizados antes
de perceber que a lanterna a deixou cega à noite. Ela bate no meu
diafragma e caímos em uma pilha de membros e cotovelos enquanto a
rainha dá um pequeno suspiro de dor.
A garota fica de joelhos, já tentando se lançar de volta para o
emaranhado escuro da floresta, mas eu pego seu ombro.
— Ei, está tudo bem. Nã o vamos machucar você.
Ela dá de ombros para afastar minha mã o.
— Eu tenho que me esconder, ele está vindo…
— Quem? O caçador?
Ela acena com a cabeça, virando-se para olhar para trá s como se
esperasse encontrar um capanga saindo de trá s de uma á rvore. A
floresta está perfeitamente imó vel.
Eu sei que ela vai ficar bem sozinha – ela deve encontrar um bando
amigável de anõ es ou fadas em breve, e o caçador provavelmente nem a
está perseguindo –, mas ela é muito mais jovem do que as outras
Brancas de Neve que vimos, e muito mais assustada. Eu me pego
dizendo:
— Nã o se preocupe, vamos ajudá -la a encontrar um lugar seguro.
A rainha faz um barulho estrangulado de protesto e eu lanço a ela um
olhar repressivo.
— Nó s vamos?
— Eu nã o vejo porquê deveríamos. — ela bufa.
— Deus, você é a pior.
— Você acha que é um heró i, mas nã o vai me ajudar...
— Talvez se você agisse um pouco menos mal, eu consideraria isso.
A rainha avança, com as presas à mostra, mas eu levanto seu espelho
e o balanço em advertência.
— Ah-ah. Você nã o gostaria de quebrar isso, nã o é?
É neste ponto, quando o rosto da rainha é um ricto retorcido de fú ria,
seus olhos fixos em seu precioso espelho, que a jovem se empurra entre
nó s.
Ela levanta a lanterna bem alto e diz:
— Eu mesma encontrarei — por cima do ombro, ao passar por nó s.
Faço uma pausa longa o suficiente para dar à rainha uma cara de
“agora veja o que você fez” antes de correr atrá s de Branca de Neve. Eu
vasculho minha mochila com uma mã o e tiro uma caixa de madeira
surrada.
— Aqui, isso vai nos dizer para onde ir. — Abro a bú ssola e espero
que a agulha oscile até parar, nos direcionando para o nordeste.
A garota lidera o caminho, passando por raízes arqueadas e galhos
com garras, e eu a sigo sem consultar a rainha, porque ela nã o vai me
deixar perder de vista nem a mim nem ao espelho. Nã o demos dez
passos antes de ouvi-la pisando forte e resmungando atrá s de nó s.
A floresta escurece e se avoluma ao nosso redor. Urzes1 puxam
nossas roupas e criaturas pequenas e furtivas passam pelo anel
brilhante da luz da lanterna. Algumas estrelas relutantes piscam como
olhos turvos por entre os galhos, mas a lua se recusa a nascer.
A jovem Branca de Neve nunca desacelera ou hesita. Eu me pergunto
brevemente o que poderia assustar uma criança como essa, que
caminha tã o destemidamente no escuro, e decido que prefiro nã o saber.
Por fim, outra luz brilha por entre as á rvores: um par de janelas
iluminadas, quentes e convidativas, totalmente deslocadas na madeira
espinhenta e retorcida.
Aponto Branca de Neve para as janelas.
— Ok, provavelmente há alguém lá dentro que pode te ajudar. Basta
fazer o que eles dizem e ficar longe de estranhos, e você vai... ser... — Eu
me afasto, porque há uma pequena silhueta de pá ssaro em uma das
janelas, a primeira que ouvimos ou vimos a noite toda. Algo sobre a
forma dele soa um sino muito distante e improvável na minha cabeça.
Ele flutua em nossa direçã o e pousa diretamente acima de mim,
iluminado por baixo pelo amarelo trêmulo da lanterna de Branca de
Neve. Ele me fixa com um ú nico olho brilhante e inteligente e eu sei, de
repente, onde já vi esse pá ssaro antes.
Eu sussurro, baixinho e um pouco desesperadamente, porque isso é
mais do que seis coisas impossíveis e o café da manhã ainda está muito
longe,
— De jeito nenhum.
Mas o multiverso em toda sua estranheza infinita, responde: Sim, jeito
algum.
A porta da cabana se abre e uma velha aparece sob a luz do sol,
exatamente como há cinco anos, quando me sentei à sua mesa tomando
chá com uma princesa diferente da Disney.
Sinto-me tonta, subitamente incerta, como se tivesse caído no vã o
entre as histó rias e ficado presa.
— Z-Zellandine?
Zellandine, por sua vez, nã o parece nem um pouco surpresa ao me
ver. Ela aponta o queixo para dentro da cabana e diz cansada:
— Bem, vamos lá , entã o.
5
É A JOVEM Branca de Neve quem se move primeiro. Ela entra na casa
da fada com a coluna rígida e uma expressã o sugerindo que nada na
frente dela poderia ser pior do que o que está atrá s dela. Zellandine a
recebe com um aceno de cabeça de avó , gesticulando para uma cadeira
ao redor da mesa. Há uma exatidã o na forma que elas fazem contra a
luz, duas silhuetas que se repetem em mil variaçõ es de mil histó rias: a
velha acolhendo o viajante cansado, a bruxa convidando a criança a
entrar, a fada madrinha abrigando a donzela.
Entã o Zellandine se volta para nó s e a correçã o desaparece. Olhamos
um para a outra – três personagens desgarrados que saíram dos trilhos
de suas pró prias histó rias e colidiram com a de outra pessoa – antes de
Zellandine fazer uma careta como se dissesse que bagunça e balança a
cabeça em direçã o à s outras três cadeiras ao redor da mesa.
Sua cabana é exatamente como eu me lembro, cottagecore com uma
borda de bruxa, garrafas de vidro azul nas prateleiras e ervas
penduradas diante de uma lareira crepitante. A ú nica diferença é que a
mesa da cozinha agora tem quatro cadeiras e quatro xícaras de chá em
pires desencontrados.
Bebemos nosso chá em silêncio incerto, sem olhar uma para a outra.
Zellandine passa manteiga no pã o e o coloca diante de nossa Branca de
Neve, que come com a eficiência determinada de quem nã o recusa
calorias grá tis. Sob a luz mais forte da cabana, ela parece ainda mais
jovem do que eu pensava, suas bochechas ainda suavemente
arredondadas, mas ela nã o tem a confiança de olhos arregalados de
uma criança. Sua expressã o é fechada e vigilante, precoce no jeito
sombrio e estranho de uma criança que passou muito tempo pensando
em como e quando ela vai morrer. É a expressã o que estou usando em
cada uma das minhas fotos da escola.
— Você encontrará uma cama feita lá em cima — Zellandine diz a ela
gentilmente.
Os olhos de Branca de Neve cortam para as janelas iluminadas,
brilhando como faró is no mar negro de á rvores, e Zellandine
acrescenta, ainda mais gentilmente:
— Vou vigiar esta noite.
Branca de Neve acena em excessivo agradecimento, uma mã o no
peito, entã o repete o movimento para mim e – apó s um momento de
hesitaçã o – para a rainha. Os olhos da rainha se arregalam ligeiramente.
Suponho que madrastas perversas nã o costumam ser agradecidas.
Zellandine limpa as xícaras enquanto Branca de Neve sobe os
degraus para o só tã o, que tenho 98% de certeza que nã o existia na
ú ltima vez que tomei chá nesta cabana.
— Há três camas lá em cima — observa Zellandine.
A rainha faz um esforço visível para se erguer da mesa.
— Agradeço, mas receio que Zinnia e eu estamos indo. — Seu tom
aspira a uma repreensã o fria, mas chega mais perto de muito cansada.
— Oh, por Deus, dá um tempo. — Eu bato na moldura prateada de
seu espelho na mesa. — Você pode voltar para a sua prisã o logo pela
manhã . Eu prometo.
Até mesmo seu olhar venenoso está esgotado. Depois de uma longa e
pesada pausa, ela fala:
— Prometa que você nã o vai fugir nem danificar o espelho enquanto
eu descanso.
Estou tentada a revirar os olhos, mas me contenho em um olhar fixo.
— Claro, sim. Promessa de escoteira. — Eu deslizo o espelho sobre a
mesa e ela o para com dois dedos longos contra a moldura, os lá bios
ligeiramente entreabertos em choque. — Veja o que você ganha quando
você pede educadamente.
A rainha me lança um olhar sombrio e inescrutável antes de seguir
Branca de Neve escada acima.
— Desculpe por ela — digo a Zellandine. — Ela é a vilã , obviamente.
Zellandine desamarra o avental, com os dedos mais lentos e mais
velhos do que me lembro, e se acomoda na minha frente.
— Oh, nó s, vilõ es, nã o somos de todo ruins. — Um flash de humor no
azul pá lido de seus olhos.
— Nã o, ela é uma vilã legítima, nã o uma fada profeminista
incompreendida.
Zellandine faz um som muito neutro, seus olhos brilhando com
aquele humor subterrâ neo.
— Nem todos podemos escolher os papéis que nos sã o dados. Você
deveria saber disso melhor do que a maioria.
Penso com relutâ ncia em todos os outros papéis atribuídos à rainha:
a princesa feia, a rainha estéril, a monarca estrangeira. Uma série de
mulheres com poder suficiente para serem odiadas e nã o o suficiente
para se protegerem. Engulo um pedaço de simpatia inconveniente.
— Claro, ok, mas todos nó s podemos escolher o que faremos a seguir.
Uma histó ria triste nã o é desculpa para ser uma idiota. Eu deveria
saber.
Isso me parece uma vitó ria retó rica só lida, mas Zellandine a
enfraquece murmurando:
— Você deveria, sim — baixinho.
— E o que isso deveria…
— Como está a princesa? — Zellandine pergunta suavemente, até
mesmo agradavelmente; nã o há razã o para a pergunta parecer um soco.
Tento deixar meu rosto igualmente brando e agradável.
— Bem. Ela está bem. Ela está casada agora, na verdade. — Meu
sorriso parece estranho, mas nã o consigo torná -lo nã o estranho. —
Fazendo a coisa do felizes para sempre, eu acho.
Zellandine me dá um aceno com mais simpatia do que o estritamente
necessá rio.
— Entã o, quanto tempo se passou desde a ú ltima vez que você a viu?
— Um tempo. Alguns meses. — Seis meses e doze dias, mas tanto faz.
— De qualquer forma, nã o sei por que isso importa. O que importa é o
que diabos está acontecendo? O que você está fazendo aqui?
Zellandine nã o parece nem um pouco abalada com a mudança de
assunto; é irritantemente difícil surpreender uma fada profética.
— Eu poderia te perguntar a mesma coisa — ela responde
calmamente. Quando eu aperto os olhos, ela levanta um ombro. — Esta
também nã o é a sua histó ria.
— Sim, bem, isso nã o é minha culpa. Vou voltar para o verso da Bela
Adormecida assim que puder. — Nã o menciono a esperança secreta e
selvagem de nã o ter que voltar à minha pró pria histó ria. Que encontrei
uma maneira de me libertar desse ciclo interminável de garotas
amaldiçoadas e dedos picados, de perfurar as paredes de minha pró pria
trama e irromper em outras dimensõ es narrativas como um Kool-Aid
Man de conto de fadas. E se eu posso fazer um novo começo para mim
em alguma outra histó ria, o que vai me impedir de fazer um novo final
também?
Há uma pausa antes que eu possa falar através da esperança que
agora sobe pela minha garganta.
— Fui sequestrada por uma rainha má . Como você chegou aqui?
Zellandine se recosta na cadeira, me observando como se soubesse
exatamente o que eu nã o disse.
— Já aconteceu algumas vezes. Eu saio e me encontro em uma
floresta profunda que nunca vi antes, no topo de uma montanha que
nã o é minha. Certa vez, acordei e encontrei minha casa toda coberta de
doces, com pã o de mel no lugar das telhas e açú car fervido nas vidraças.
Eu penso: Oh, merda. Eu digo:
— Oh, merda. — Lembro-me do lobo falante no mundo da rainha,
minha có pia manchada de suco dos contos de fadas dos Grimms, coisas
sacudidos de suas amarras e deixados à deriva. — Você está deslizando
entre as histó rias.
Zellandine inclina a cabeça.
— Parece haver muitos contos que exigem que alguém velho e
má gico viva sozinho na floresta. Eu nã o me importo, principalmente...
amaldiçoar o ocasional príncipe altivo, deixar um ou dois belos
cavaleiros se aquecerem perto do meu fogo. — Eu verifico seu rosto em
busca de insinuaçõ es e acho que está ausente. — Mas tem acontecido
cada vez com mais frequência. E estou começando a me sentir como…
— Ela se afasta, sua mã o acariciando o interior de seu pulso. A carne ali
tem uma translucidez leitosa que nã o me lembro de cinco anos antes.
— Como manteiga espalhada em muito pã o?
— Sim, assim — ela respira. — E confesso que gostava da minha casa
na encosta da montanha. Sentimos falta disso. — Seu melro trina para
ela, mas mal percebo porque a palavra lar está chocalhando entre
minhas costelas como uma bala perdida, disparada descuidadamente.
Penso no meu telefone, totalmente carregado, mas desligado, fechado
em um daqueles bolsos internos da mochila que ninguém nunca abre.
Penso em três mã os enterradas na mesma tigela de pipoca. Eu penso no
rosto de Charm na ú ltima vez que a vi, me pedindo algo que eu nã o
poderia dar.
— Bem. — Eu limpo minha garganta, procurando por leviandade e
nã o encontro nada além de sarcasmo doentio. — Você tem que admitir,
sua histó ria meio que foi uma droga.
— Mas era minha. — O tom de Zellandine é mais agudo do que eu já
ouvi antes, cheio de pesar. Ela morde o interior da bochecha antes de
acrescentar: — Posso nã o ter escolhido, mas sempre escolhi o que fazer
a seguir.
— Muitas vezes em nome de outras pessoas, se bem me lembro.
Eu quis dizer isso como uma repreensã o mordaz, mas Zellandine está
balançando a cabeça pensativamente.
— Em detrimento deles, eu acho agora. Eu estava tentando salvar os
outros de um destino como o meu, mas talvez estivesse tirando o
direito deles de escolher, de fazer de suas histó rias o que quisessem.
Ela me dá um olhar tã o suave que eu fico na defensiva.
— Ei, eu sou nã o… nã o é assim. Estou ajudando as pessoas a
consertar suas histó rias. E se elas nã o puderem ser consertadas, eu os
ajudo a escapar.
Zellandine ainda está olhando para mim com aquela suavidade
armada.
— Oh, eu nã o acho que nenhum de nó s escape completamente de
nossas histó rias.
— Prim fez.
— Ela fez? — Eu quero zombar que eu nã o acho que Perrault ou
Disney jamais imaginaram a Bela Adormecida se casando com uma
bunda gostosa com um corte inferior e uma tatuagem de Super-
Homem, exceto que eu tenho essa sensaçã o horrível de que ela pode
estar certa. Quero dizer, eu mesmo disse: ela está fazendo aquela coisa
de felizes para sempre, eu acho.
Eu levanto minhas mã os em falsa rendiçã o, abruptamente exausta.
— Bem. Sinto muito pelo deslize narrativo. Mas estou feliz por você
estar aqui esta noite. — Minha cadeira raspa contra a madeira quando
me levanto e caminho em direçã o aos degraus.
Zellandine fala no momento em que minha mã o pousa no corrimã o.
— Eu nã o entendo o que está acontecendo comigo, ou como… — Ela
se vira, seus olhos captando o vermelho moribundo da lareira, e
naquele momento eu a vejo como ela deve ser em outras histó rias: a
fada que amaldiçoa reinos, a velha que pune viajantes ingratos, a bruxa
que espera na floresta.
Sua boca se contorce, seca e cansada, e ela é apenas Zellandine
novamente.
— Mas acho que nó s duas sabemos o porquê.
★★★
AS CAMAS SÃ O macias e quentes, cobertas de flanela e penugem, mas
eu durmo em rajadas intermitentes. Cada vez que caio na inconsciência,
sou acordada por um pequeno ruído – o arranhar de galhos pretos
esqueléticos na janela, os gritos distantes de pá ssaros noturnos – e fico
com os olhos arregalados e ofegante em uma poça de adrenalina.
Branca de Neve aparentemente está acostumada a dormir com efeitos
sonoros de filmes de terror, mas toda vez que olho para a cama da
rainha, capto o brilho branco dos olhos abertos antes que nó s duas nos
afastemos.
O café da manhã na manhã seguinte é cinza e silencioso. Eu persigo
minha aveia em círculos miseráveis, abafando a tosse catarrenta na
dobra do meu cotovelo e me recusando a me perguntar se eles soam
mais ú midos do que ontem, se minú sculos brotos de proteína já estã o
brotando ao longo de minha á rvore brô nquica como luzes de Natal
mortais.
A rainha também nã o parece muito bem. Há hematomas esponjosos
sob ambos os olhos e sua maquiagem está quase toda borrada,
deixando-a parecendo uma pintura que ficou muito tempo exposta à luz
solar direta. Vá rias sardas determinadas estã o aparecendo nos restos
de seu pó facial, formando uma constelaçã o inesperada.
Zellandine se acomoda na cabeceira da mesa e cruza as mã os de
maneira profissional.
— Nó s nã o nos apresentamos corretamente ontem à noite. Sou
Zellandine, uma velha amiga de Zinnia.
Ela olha com expectativa para a rainha, que olha, sem motivo, para
mim. Por um breve momento, vejo algo em carne viva e sangrando atrá s
de seus olhos, como uma ferida nã o costurada, antes que ela junte as
bordas de si mesma e as aperte novamente.
— Você pode me chamar de Sua Maj...
— Eva. — Eu interrompo. A rainha me lança um olhar que é mais
penetrante do que abrasador. Eu nã o gosto do conjunto vulnerável de
seus olhos, outro vislumbre daquela ferida vermelha no meio dela,
entã o eu me inclino e sussurro, — Abreviaçã o de Rainha Má .
Enquanto ela ainda está gaguejando, faço um gesto para a pobre
criança sentada ao meu lado.
— E esta, é claro, é a Branca de Neve.
Branca de Neve tem comido sua aveia em silêncio determinado,
olhando para as janelas como se esperasse que algo emergisse das
á rvores. Ao som da minha voz, ela se encolhe tanto que joga a tigela no
chã o. Ela nã o parece notar, agachada na cadeira com os olhos fixos em
mim.
— Oh, desculpa — eu digo suavemente. — Esse nã o é o seu nome?
Ela responde devagar, como se meio que esperasse que eu criasse
presas e atacasse.
— Nã o. Você nã o… — Seus olhos se estreitam, movendo-se do meu
rosto para o meu jeans e para a mochila encostada na minha cadeira. —
Você nã o é... daqui, é?
— Nã o. Sou um turista interdimensional, apenas de passagem.
Ela olha por outro longo e difícil segundo antes de dizer
concisamente:
— Meu nome é Red.
— Huh. — Existem vá rias variantes de Red no folclore ocidental;
Rosa Vermelha e Little Red, para começar, mas nã o tenho certeza do
que qualquer uma delas faria em uma histó ria de Branca de Neve. (Sim,
existe tecnicamente uma histó ria de Grimm intitulada “Branca de Neve
e Rosa Vermelha”, mas nã o tem nada a ver com a outra Branca de Neve;
sim, é muito confusa. Pegue-a com Jacob e Wilhelm.)
Bem. O nome Branca de Neve sempre teve implicaçõ es
desconfortáveis sobre padrõ es raciais de beleza; talvez neste mundo,
sua mã e a nomeou pela gota de sangue, ao invés da neve que caiu.
— Certo. — Digo da forma mais reconfortante que posso, o que nã o é
muito. — Você deve estar segura agora. Zellandine é uma fada poderosa
e vai mantê-la escondida de sua madrasta perversa.
As sobrancelhas de Red se juntam.
— Minha o quê?
— Ou mã e, ou irmã , ou quem quer que seja.
— Talvez — sugere Zellandine, com um toque de aspereza, — a
garota pudesse contar sua pró pria histó ria.
Depois de um instante, durante o qual mostro a língua para
Zellandine e a rainha suspira como se se arrependesse de cada decisã o
que a levou a estar sentada nesta mesa, Red lamenta. Sã o necessá rias
aproximadamente duas frases para confirmar que estamos muito,
muito longe das criaturas cantantes da floresta e das florestas repletas
de flores da Disney. Nó s nem estamos em um dos As fantasias
sangrentas dos irmã os Grimm, com sua moralidade violenta; estamos
em um lugar mais sombrio, selvagem e muito mais antigo, onde o vilã o
tem uma fome terrível e o heró i é aquele que sobrevive a ele.
Red, ao que parece, nã o é uma princesa. Ela é filha de um pastor de
uma aldeia pobre à beira da floresta. Todo inverno, a rainha envia seus
caçadores para capturar as crianças mais fortes e saudáveis e arrastá -
las de volta para seu covil.
— Ninguém sabe o que ela faz com eles. Ivy diz que lhes dá doces e
joias, mas Ivy é estú pida. — A voz de Red é monó tona e uniforme. — Eu
acho que ela arranca seus coraçõ es e os come. De qualquer maneira,
ninguém nunca mais os verá .
Um pequeno e consternado silêncio se segue a isso. É a rainha – Eva,
suponho, já que ela nã o é a rainha de nada por aqui, e o nome parece
irritá -la profundamente – quem fala primeiro.
— Mas por que ela faria isso?
Red dá a ela um olhar sugerindo que as motivaçõ es pessoais da
rainha canibal estã o bem abaixo de sua lista de preocupaçõ es.
Zellandine especula sobre as propriedades má gicas latentes de
coraçõ es inocentes e o poder que teoricamente poderia ser obtido por
meio da ingestã o, mas sinto falta da maior parte porque estou ocupado
sibilando para frente e para trá s com Eva. ("Espere, senhorita Moral
High Ground, você nã o pediu os pulmõ es e o fígado da Branca de Neve?"
"Sim, mas eu nã o ia comê-los! Nã o sou depravada!")
Eu silencio Eva, que ela visivelmente odeia, e volto para Red.
— E sua família, seus pais, eles simplesmente deixaram ela levar
você? — Eu considero o cabelo de Red, afastado de seu rosto em cachos
bonitos, e me lembro de meu pai trançando meu cabelo todos os dias
antes da escola, seus dedos gentis. Alguém deve amá -la. — Eles nã o
lutaram por você?
Eva faz um barulho mordaz que me diz mais do que eu gostaria de
saber sobre seus pró prios pais, mas Red responde com uma brevidade
suave e terrível.
— Eles fizeram.
Eva parece estar lutando com alguma coisa, seus lá bios se movendo
até que ela diz, quase com raiva:
— Por que vocês nã o vã o embora? Ou se escondem?
— Ela sempre encontra você — Red diz, sua voz ainda suave. — Ela
fala com a lua, dizem as pessoas, ou talvez com um espelho má gico. E
entã o… — Seus olhos se movem para a janela novamente, e desta vez o
marrom quente de sua pele fica pá lido. — E entã o os caçadores dela
vem buscá -la.
Há algo engraçado na gramá tica dessa frase, mas é só quando ouço o
barulho de muitos pares de botas na floresta, depois o baque de muitos
punhos na porta, que entendo que a ouvi mal. Ela nã o disse caçador, no
singular ; ela disse caçadores.
★★★
MEU PRIMEIRO pensamento, profundamente inú til, é: não é assim que
funciona. Deve haver uma bruxa disfarçada de velha, uma maçã cor de
sangue, um lindo caixã o na floresta. Deve haver três chances e um final
feliz. Mas, em vez disso, há punhos batendo na porta.
Uma voz estridente grita:
— Sabemos que você está aí, garotinha! Saia, ordens da rainha!
Red está fora de sua cadeira, apoiando-se contra o balcã o, os dedos se
curvando em torno de uma faca de pã o. Zellandine está se levantando,
apertando o avental com os dedos trêmulos. Apenas Eva e eu
permanecemos congeladas, como um par de manequins em uma
movimentada loja de departamentos.
Quando Zellandine abre a porta, suas mã os nã o tremem.
— Vocês devem estar enganados, bons senhores. Nã o há ninguém
aqui além de mim. — É um esforço corajoso e condenado. Ela mal diz as
palavras antes de um homem de rosto magro passar por ela, os olhos
vagando avidamente pela cabana. Mais homens aparecem atrá s dele,
todos eles têm a mesma aparência pegajosa e doentia, e todos usam os
mesmos colares amarelados. Os colares chocalham estranhamente
quando se movem, como bater de dentes. Levo muito tempo para
perceber que é isso que eles realmente sã o: dentes humanos,
amarrados em cordõ es de couro. O á cido ferve em minha garganta,
enjoativo e quente.
O líder aponta para Red.
— Venha conosco.
Ela balança a cabeça uma vez, os nó s dos dedos pá lidos ao redor da
faca de pã o, o queixo ainda erguido, e Deus, essa garota merece mais do
que essa histó ria sangrenta e brutal. Um dos caçadores saca sua pró pria
faca, que nunca teve a intençã o de cortar pã o, mas ela se transforma
abruptamente em cinzas em sua mã o. Flocos gordurosos caem
silenciosamente no chã o.
— Eu nã o convidei você para passar pela minha porta, garoto —
Zellandine resmunga atrá s dele. Mas ela está ofegante ao dizer isso, a
carne de seu rosto ficando branca e fina como casca de cebola. De volta
ao mundo de Primrose, ela parecia eterna, invencível, uma mulher que
podia transformar facas em penas com o menor movimento de seu cílio.
Mas talvez isso fosse verdade apenas em seu pró prio mundo, e as
regras sã o diferentes neste. Talvez o poder tenha um preço aqui, e ela
está pagando.
O caçador sem faca parece sentir sua fraqueza, porque ele se vira e
empurra Zellandine com força, como se ela nã o fosse uma bruxa, mas
apenas uma velha. Alguém grita, e só quando estou de pé é que percebo
que fui eu. Os caçadores estã o todos olhando para mim e a alça da
minha mochila está apertada na minha mã o, e nã o é como se eu tivesse
uma expectativa de vida estelar de qualquer maneira. Eu jogo no rosto
do líder.
A luta que se segue é breve e embaraçosa. Em menos de um minuto
estou de bruços no chã o com o joelho de alguém separando minhas
vértebras. Uma mã o rosna em meu cabelo e bate meu rosto quase
superficialmente contra o chã o. Tudo fica está tico e abafado depois
disso, minha visã o pontilhada com estrelas negras.
Existem etapas de inicializaçã o. Um baque carnudo e um grito
estrangulado. A cabeça caçador perguntando, de longe:
— E você? Vai nos dar problemas?
Uma pausa, tensa com a promessa de violência, seguida pela voz de
Eva falando uma ú nica e fina sílaba.
— Nã o.
Os caçadores saem entã o, parando apenas para dar alguns chutes
casuais em minha caixa torá cica enquanto passam.
Na ausência deles, o ú nico som é o constante respingo do meu sangue
contra as tá buas do assoalho e o gemido da porta balançando ao vento,
e, ao longe, desaparecendo rapidamente, os gritos de uma garotinha
corajosa que chegou, enfim, até o fim de sua bravura.
6
— ENTÃ O, OBVIAMENTE… — MINHAS MÃ OS caem sobre a mesa — nó s
temos que ir atrá s dela.
Espero que, se eu disser isso com autoridade calma o suficiente,
possamos pular a parte da conversa em que Eva fica reclamona e
moralmente duvidosa sobre isso, mas aparentemente nã o, porque ela
diz:
— Garanto a você que nã o — sem nem mesmo abrir os olhos. Suas
mã os estã o apoiadas no balcã o da cozinha, a cabeça baixa. Suas tranças
extravagantes estã o soltas na parte de trá s do pescoço agora, nada
como a elegante coroa preta que ela usava quando a vi pela primeira
vez no espelho.
— Quero dizer, eu concordo, idealmente haveria mais de nó s, e
Zellandine estaria consciente. — Depois que meus ouvidos pararam de
zumbir e meu sangramento nasal diminuiu para uma gosma gelatinosa,
intimidei Eva para me ajudar a pegar a fada do chã o. Nã o tenho ideia de
como a teríamos feito subir as escadas, mas felizmente nã o
precisávamos. Os degraus haviam desaparecido, substituídos por uma
cama de solteiro no canto, os lençó is já abaixados. Colocamos
Zellandine debaixo das cobertas e recebemos um sorriso pá lido em
troca. Seus dedos frios cobriram os meus.
— Você vai atrá s dela, nã o vai? — Ela perguntou resignada. Eu
balancei a cabeça. Os dedos se apertaram. — Mas depois... vá para casa.
As coisas estã o emaranhadas, as linhas estã o borradas. Você nã o pode
continuar correndo para sempre. — Meu segundo aceno foi mais um
empurrã o evasivo do meu queixo. Os olhos de Zellandine se
estreitaram. — Toda histó ria termina, Zinnia.
Ela parece estar dormindo agora, seu melro empoleirado na
cabeceira da cama, olhando para ela com um olho preocupado e depois
o outro.
— Mas você sabe o que eles dizem. — Eu dou de ombros para a
rainha. — Se os desejos fossem peixes.
Eva abre os olhos, mas apenas para olhar para mim como se estivesse
com uma dor de cabeça repentina.
— Entã o o que?
Eu considero.
— Deixa para lá . O que quero dizer é que temos que ir.
Sua boca endurece. Seus olhos se fecham novamente.
— Nã o, nó s nã o vamos.
Estou desempacotando e reembalando minha mochila, dispensando
o peso desnecessá rio. Abro o zíper de um bolso interno e coloco meu
telefone cuidadosamente sobre a mesa.
— Sabe — eu digo, tentando muito… meio, bem, um pouco… para
manter meu tom educado —, talvez nã o teríamos que ir salvar uma
criança de uma rainha canibal se você colocasse literalmente qualquer
luta, mas você escolheu ficar sentada lá enquanto o resto de nó s...
Agora Eva se vira para me encarar, os lá bios se afastando dos dentes.
— E o que isso trouxe para você, exatamente? — Ela fecha a distâ ncia
entre nó s e estende a mã o abruptamente para o meu rosto. Eu a encaro,
recusando-me a recuar ou desviar o olhar, mas seu polegar roça com
suavidade surpreendente em meu queixo. Ele sai manchado com
vermelho glutinoso. — Eu tentei antes explicar minha posiçã o, mas
talvez você nã o tenha entendido. — Sua voz vibra, cheia de emoçã o. —
Tudo o que fiz, tudo o que farei, serve a um propó sito: sobreviver.
E há uma pequena parte de mim que entende isso, e mais do que
entende. Simpatiza com ela, admira-a, até... ok, sim – deseja isso. (A
maneira como ela está agora, seus olhos brilhando com aquela fome de
vida sem fundo, seu rosto iluminado com uma intensidade que queima
além da beleza e se aproxima de algo muito mais perigoso... Nenhum
jú ri me condenaria.)
Mas eu tentei apenas sobreviver. Passei 21 anos despejando todo o
meu desejo e vontade nisso, aderindo a um conjunto de regras – mova-
se rá pido, haja duramente, nã o se apaixone, tente nã o morrer – isso me
deixou com exatamente uma amiga e zero planos. E no final, nada disso
importava de qualquer maneira. No final, era só eu e minha doença
inegociável, e a ú nica razã o pela qual sobrevivi foi porque outra pessoa
(alguém, tecnicamente) me salvou.
Entã o eu apenas olho para Eva por um tempo, em toda a sua vontade
egoísta, feroz e sexy de sobreviver, e balanço a cabeça.
— Está bem. — Mantenho pressionado o botã o liga/desliga do meu
telefone e espero a tela acender, recusando-me firmemente a pensar
por que estou ligando ou para quem posso ligar. — Mas eu vou.
Os olhos de Eva piscam.
— Por que?
— Porque…
Existem maneiras nobres de terminar essa frase (porque Red é
corajosa e inteligente e ela merece algo melhor; porque o nerd gostoso
de The Good Place estava certo, e o sentido da vida basicamente se
resume ao que devemos um ao outro) e menos nobres, maneiras
potencialmente mais honestas (porque enquanto eu estiver salvando
outras pessoas, posso esquecer, brevemente, que nã o posso salvar a
mim mesmo; porque invadir uma fortaleza do mal é mais fá cil do que
mostrar a Charm meus raios-X e vê-la entender, tudo de novo, que nã o
estou nisso por muito tempo, que ainda há um trem vindo em nossa
direçã o).
Eu termino enfadonhamente.
— Apenas, porque sim. Alguém deveria.
A expressã o de Eva permanece dura e fixa, como uma está tua de
má rmore intitulada Monarca que não se comove com os apelos do
campesinato, mas há uma estranha melancolia em seus olhos, quase
como se ela me invejasse. Como se ela desejasse que ela também fosse
uma jovem estú pida de 26 anos com a bravura imprudente de um
doente terminal, em vez do vilã o previsível fazendo a coisa
previsivelmente vilã . Penso em Zellandine me dizendo que nã o
podemos escolher nossas histó rias, mas podemos escolher o que
faremos a seguir.
Uma ideia muito ruim me ocorre entã o. Eu deslizo meus braços nas
alças da minha mochila e encontro seus olhos diretamente.
— Se você vier comigo e ajudar a salvar Red, eu lhe direi como sair
dessa histó ria. — Eu me inclino para a frente e toco na parte de trá s de
seu espelho má gico, que nunca está longe de sua mã o. — Sério.
Os olhos de Eva movem-se do espelho para o meu rosto, arregalando-
se quando ela percebe que nã o me refiro apenas a esta versão específica
desta história, mas a este tipo de história de forma mais ampla. Fora de
seu pró prio final horrível, longe da ló gica cruel de seu arco de
personagem.
Seu rosto finalmente se move, e levo um momento para reconhecer a
expressã o pelo que é. Eu a vi zombar, sorrir e mostrar os dentes em
uma dú zia de sorrisos cruéis, mas esta é a primeira vez que ela sorri
genuinamente para mim.
Sou obrigada a piscar vá rias vezes.
— Entã o. — Há um sorriso de resposta se espalhando impotente em
meu rosto. — É um acordo?
★★★
EM RETROSPECTIVA, É possível que Eva e eu tivéssemos passado mais
tempo planejando nossa tentativa de resgate.
Tudo o que realmente fizemos foi consultar o espelho má gico, que
confirmou que Red ainda estava viva (Eva olhou para o rosto de Red,
apavorado e molhado de lá grimas, com algo muito pró ximo da culpa) e
enfiou os suprimentos na minha bolsa. Á gua engarrafada e lanches,
minha bú ssola má gica legal, seu espelho má gico legal, um telefone
totalmente carregado em funcionamento e duas das facas mais afiadas
de Zellandine, que nó s – bem, eu – pretendíamos devolver. Mas depois
que atravessamos a soleira, houve um estalo leve e inaudível e uma
lufada de vento que cheirava levemente a rosas. Quando nos viramos,
Zellandine e sua cabana haviam sumido.
Nã o parecia haver nenhum lugar para ir depois disso, exceto para a
frente. Peguei minha bú ssola e pensei em Red, com seus olhos atentos e
sua boca severa, seu cabelo torcido por alguém que lutou por ela e
perdeu. A agulha girou para sudoeste e nó s dois a seguimos.
Foi uma jornada sem incidentes. A maioria das coisas – e cara, esta
floresta tinha mais do que seu quinhã o de Coisas – nã o nos incomodava,
seja por causa das facas ou porque eles estavam procurando coisas
ainda maiores e mais suculentas para comer. Por volta do almoço (meio
bolo de cenoura Clif Bar cada, que Eva considerou com curiosidade
científica, apalpando-o suavemente antes de perceber que ela deveria
comê-lo), algo horrível pousou em minha embalagem aberta. Ele rasgou
o conteú do, rasgando e gritando, longas garras piscando.
Eva o prendeu a uma á rvore com a faca no coraçã o antes que eu
pudesse gritar direito. Eu diria a você que tipo de animal era, mas nã o
tenho ideia, e olhar para ele fez meu cérebro ter cã ibras. Entã o eu vou
apenas dizer que foi ruim. Tipo, se uma cobra fodesse uma tarâ ntula e
seu bebê morresse em um poço de alcatrã o e depois fosse reanimado
por um necromante que se formou em ú ltimo de sua classe.
— Obrigada — eu disse em uma voz que era apenas duas oitavas
acima do normal.
Nã o recebi nada em resposta a nã o ser um sorriso desdenhoso do
lá bio superior de Eva. Mas nó s duas nos movemos com mais cuidado
depois disso e nos assustamos com pequenos ruídos. No momento em
que o crepú sculo caiu sobre a floresta – embora eu nã o esteja
convencida de que nunca é totalmente nã o-crepú sculo aqui; parece
existir em uma paleta limitada, variando de melancó lico a melancó lico
– estávamos trêmulas e tensas, e passei os ú ltimos quilô metros
tentando, sem sucesso, pensar em um nome engraçado para a
contraçã o do meu olho esquerdo.
Eva ergueu a mã o e eu me encolhi para trá s.
— O que, onde…
Ela estava apontando silenciosamente por entre as á rvores. Segui a
linha de seu dedo e vi: um muro alto de pedra manchado de um preto
alcatrã o viscoso. Olhei para cima através da renda escura das folhas, e
foi nesse momento que me ocorreu que Eva e eu poderíamos ter nos
preparado melhor para o que me pareceu agora uma tentativa ridícula
de uma missã o de resgate. Poderíamos, por exemplo, ter trazido
armamento de cerco, ou um pequeno exército, ou um daqueles grandes
trajes mecâ nicos da Orla do Pacífico. Em vez disso, trouxemos duas
facas de cozinha e uma variedade de objetos má gicos pouco poderosos,
como personagens de videogame correndo para a batalha do chefe sem
subir de nível.
Eu digo:
— Oh, caramba — o que realmente subestima a enormidade dos
carambas que estamos enfrentando.
Quero dizer, claro, quando alguém está procurando o covil de uma
rainha canibal, espera encontrar um certo grau de terror. Pode-se
antecipar algo parecido com a pré-reforma do castelo da Besta, com
gá rgulas e contrafortes e mais tempestades com raios do que é
estatisticamente provável. Ninguém pode antecipar o que estou vendo
agora, que é uma ruína irregular de vidro preto e ossos que faz o Portã o
Negro de Mordor parecer a Barbie Malibu Dreamhouse. As á rvores
pressionam as paredes, alcançando as ameias com dedos bajuladores.
Coisas escuras e aladas circundam as torres, gritando com vozes muito
humanas.
— Bem. — Eva faz um gesto sarcá stico para as paredes. — O que
estamos esperando?
Apó s outra breve rodada de assobios ("Isto foi ideia sua." "Eu sei!
Tem mais caveiras do que eu esperava! Me dê um segundo."), Eu me
recomponho e digo calmamente:
— Ok, tem que ser um caminho de volta.
— Eu duvido muito. Se eu construísse uma fortaleza inexpugnável
para conter minhas vítimas desesperadas, certamente nã o...
— Sim, eu sei, mas sempre há um caminho de volta. Confie em mim.
— O rosto de Eva faz uma careta engraçada, que eu só posso supor que
é sua resposta natural ao conceito de confiança, mas ela se arrasta atrá s
de mim com raiva enquanto contornamos a parede. Alguns guardas
passam por nó s ao longo das ameias, mas nenhum deles parece nos ver
rastejando abaixo deles. Eu acho que este nã o é o tipo de lugar que as
pessoas costumam tentar entrar.
Depois de menos de quinze metros andando furtivamente, uma brisa
ú mida e fétida emerge de algum lugar pró ximo e sopra sobre nó s.
Cheira a carne velha e sofrimento humano e nos leva sem muitos
problemas a uma grade enferrujada e entupida de mato cravada na
terra.
Aceno com a mã o e sussurro:
— Voilà . Um caminho de volta.
Eva semicerra os olhos amargamente para a grade do esgoto. Ela
funga.
— Deve ser legal. Ser a protagonista.
Eu dou a ela meu sorriso mais atrevido e digo:
— Combina com você. — Sai com mais sinceridade do que eu
pretendia, e os olhos de Eva fixam-se nos meus, depois se desviam.
Puxo a grade para o lado e desço pelo buraco, aterrissando com um
plop bastante repelente. A á gua (nã o é á gua) é lamacenta e fria,
escorrendo até a metade das minhas coxas. Parece um momento ó bvio
para Eva cortar e correr, mas ela pousa ao meu lado sem fazer barulho e
avança, parecendo – apenas por um momento, no escuro – um pouco
como uma heroína.
★★★
NÓ S ATRAVESSAMOS a lama por tempo suficiente para que eu comece
a me preocupar que esses esgotos funcionem como esgotos reais, em
vez de dispositivos de enredo e nã o levem a nenhum lugar ú til, mas
entã o ouvimos coisas ecoando nas paredes de pedra molhada: gritos e
sú plicas, o miserável tilintar de correntes se arrastando pelo chã o de
pedra. Os sons inconfundíveis de uma masmorra de castelo.
Há uma grade bem acima de nó s, lançando um facho de luz doentio
no rosto de Eva. Eu aceno para cima.
— Esta é a nossa parada.
Nó s deslizamos para um espaço que parece uma versã o um pouco
maior do esgoto que acabamos de deixar, exceto que há tochas
engorduradas cuspindo ao longo das paredes e celas com barras de
ferro como portas. A maioria delas está vazia, e algumas delas contêm...
peças... que me recuso a olhar por tempo suficiente para identificar.
Passamos por uma cela com ocupantes reais e vivos, mas meu coraçã o
afunda quando vejo que nã o sã o crianças.
Mas uma delas é uma mulher alta com nariz orgulhoso e pele morena
quente. Os outros estã o caídos apá ticos contra as paredes, mas esta
mulher está de pé, passando pelas barras para mexer um pedaço de
osso na fechadura. Seu cabelo está cuidadosamente torcido longe de
seu rosto.
Ela nos dá uma olhada cautelosa quando nos aproximamos das
barras, mas aparentemente nã o parecemos uma ameaça ou salvaçã o.
Ela volta sua atençã o para a fechadura, as algemas tilintando
suavemente contra as barras.
— Você é a mã e de Red, nã o é? — Nã o digo isso como uma pergunta,
porque nã o é uma.
Ao som da palavra Red, seus olhos se fixam no meu rosto.
— Onde ela está ? Quem é você? Eles a pegaram?
Eu assobio a palavra “calma” entre os dentes cerrados, assim que um
homem de ombros largos se levanta e coloca a mã o no ombro da
mulher. Ela se arrepia, relutantemente, mas seus olhos sã o um par de
facas pressionadas contra minha jugular.
Eu decido ser direto e rá pido.
— Os caçadores a levaram algumas horas atrá s.
A mulher fecha os olhos. O homenzarrã o grunhe como se tivesse
levado um golpe físico.
— Está tudo bem, vamos salvá -la. — Eu olho para cima e para baixo
na masmorra, desejando meus grampos de cabelo. — Nó s vamos, uh,
vamos encontrar um guarda e roubar as chaves...
Estou tentando confortá -la, mas a mã e de Red nã o está me ouvindo.
Ela está falando com uma voz calma para o grande homem atrá s dela.
— Parece que estamos sem tempo, amor.
Ele suga o ar por entre os dentes.
— Vai ser alto. Traga-os para cima de nó s.
— Deixe que venham. — Algo em sua voz me faz pensar em quebrar
ossos, sangue nas paredes.
O homem rasga uma bainha na bainha da camisa e retira um pedaço
de papel encerado. Ele o desenrola para revelar um monte de areia
preta granulada, que ele despeja cuidadosamente no buraco da
fechadura. Tenho a suspeita um tanto humilhante de que nã o sou
necessá rio nesta histó ria, de que tenho sorte de ter um papel com fala.
A mulher levanta as mã os e parece lembrar, no ú ltimo momento, que
Eva e eu existimos.
— Afaste-se — diz ela. Nó s fazemos.
Ela bate suas algemas contra as barras, enviando chuvas de faíscas
brancas raivosas sobre a fechadura. Uma vez, duas vezes. Todos os
prisioneiros estã o de pé agora, observando-a, murmurando uns com os
outros. Posso sentir o peso de sua esperança como uma coisa física,
incitando-a. Eu me pergunto quantos de seus filhos foram roubados.
No terceiro golpe, um filete de fumaça vaza do buraco da fechadura.
Pouco depois, encontro-me deitada de costas com um zumbido
estridente nos ouvidos. O ar cheira quente. Acho que um dos meus
incisivos está solto.
Sento-me para ver a mã e de Red passando pelos restos mutilados da
porta de sua cela, fumaça negra arrastando seus membros. Ela é
seguida de perto pelo grandalhã o (o pai de Red? Nã o quero fazer
suposiçõ es sobre estruturas familiares heteronormativas em universos
alternativos, mas a maneira como ele segue a mã e de Red sugere que
ele pertence a ela) e o resto dos aldeõ es. Eles se agrupam
silenciosamente ao redor dela como se estivessem esperando por um
comando, o que eu acho que eles estã o. A mã e de Red manda os aldeõ es
mais velhos e mais jovens para os esgotos e reú ne o resto em formaçã o
aproximada. Ela acena uma vez para mim, como um comandante
cumprimentando um novo recruta, e sai, saindo das masmorras e
entrando no pró prio castelo.
Sinto que devo fazer perguntas, como para onde estamos indo? ou o
que acontece quando os guardas aparecem? Mas a mã e de Red ainda
tem aquele osso afiado em seu punho, e a expressã o de seu pai sugere
que um batalhã o armado inteiro representaria apenas um obstá culo
passageiro.
Nã o encontramos ninguém. Subimos escadas, e depois mais escadas,
o ar esquentando conforme subimos. O fedor de carne velha das celas é
substituído por algo pior: um cheiro gorduroso e fervente, como
gordura borbulhante. No momento em que estamos acima do solo,
tenho um palpite decente para onde estamos indo. A mã e de Red abre
uma ú ltima porta e fico enojado ao descobrir que estou certo.
As cozinhas estã o vazias. As lareiras estã o abarrotadas, os balcõ es
vazios, as facas penduradas limpas e perversas em ganchos na parede.
E no canto da sala, amontoados em uma gaiola de arame como galinhas
ou cabras prontas para o abate, estã o as crianças.
Eles olham para cima quando entramos na sala, o branco de seus
olhos brilhando no escuro. A maioria deles tem a expressã o vidrada e
entorpecida de pessoas cujas glâ ndulas supra-renais e canais lacrimais
secaram há muito tempo. A ú ltima vez que vi aquele olhar no rosto de
uma criança foi no meu andar da ala infantil e, por um momento, quero
partir e correr, sem parar até encontrar um mundo no qual valha a pena
permanecer.
Uma das crianças levanta o queixo, o corpo apoiado contra o arame
como se esperasse dar um ú ltimo soco antes de esculpi-la para a mesa.
Passo meio segundo admirando a coragem dela, e entã o Red vê sua
mã e.
Toda a luta se esvai dela como tinta barata, deixando-a com a cara do
que ela é: uma menina assustada que quer a mã e. Seus lá bios formam
uma palavra que nã o sei e entã o sua mã e está de joelhos ao lado da
jaula, as mã os enfiadas no arame, e seu pai está batendo a bota contra a
fechadura de novo e de novo, e se os guardas já nã o estivessem a
caminho, eles estã o agora.
— Fique quieto. — O sussurro estrangulado de Eva chega muito
depois que o navio navegou. A fechadura se estilhaça. As crianças
engatinham para fora, algumas ainda atordoadas, outras começando a
chorar em rajadas repentinas e chocantes. Red desaparece entre seus
pais, seus braços entrelaçados, suas cabeças inclinadas juntas. A forma
deles – esta família presa neste mundo horrível de filme de terror,
cercada por todos os lados por finais ruins, ainda se agarrando
teimosamente um ao outro – faz meu coraçã o doer, entã o eu desvio o
olhar.
Quando termino de conter uma estranha onda de lá grimas, Red está
parado na nossa frente. Ela olha de mim para Eva e de volta.
— Você veio atrá s de mim.
Eu considero explicar que, na verdade, a mã e e o pai dela tinham tudo
sob controle, mas acho que deveríamos ganhar pontos pelo esforço.
— Sim.
Suas sobrancelhas sã o franzidas no meio.
— Mas você nem me conhece.
— Nã o.
— Por que? — Desta vez, por qualquer motivo, ela dirige a questã o a
Eva.
— Porque... — Eva se debate, olhando em volta das cozinhas como se
esperasse encontrar outra cobra-tarâ ntula zumbi para lutar, em vez de
terminar a frase. Seus olhos passam pelos meus. Ela termina
calmamente, com um torcer irô nico de seus lá bios que nã o é tã o
desdenhoso quanto ela gostaria que fosse. — Alguém tinha que fazer
isso.
Red a abraça entã o, o que faz o rosto de Eva fazer vá rias contorçõ es
complicadas. Ele pousa em uma expressã o fixa que me lembra uma
calculadora escolar que foi solicitada a executar muitas funçõ es
impossíveis e é reduzida a piscar ERROR na tela. Ela faz contato visual
comigo por cima da cabeça de Red, um claro pedido de ajuda que finjo
nã o ver.
Eu sempre gosto dessa parte. Os felizes para sempre que vêm depois
sã o doces demais para mim, como glacê de mercearia, mas este
momento aqui, quando você sente o alívio de um final ruim evitado, um
erro corrigido - essa é a merda boa.
(Aponto mentalmente o dedo do meio para Zellandine, porque nã o
estou fugindo, estou sendo útil, mesmo que os pais de Red nã o precisem
realmente da minha ajuda.)
Eventualmente, a mã e de Red vem buscá -la, parando para nos dar um
aceno digno.
A sala se esvazia enquanto os aldeõ es desaparecem descendo os
degraus de pedra, liderados por Red e sua família. Eu os observo partir,
ainda cheios daquele orgulho inebriante e vertiginoso.
Posso dizer pela expressã o de Eva – olhos escuros, lá bios
ligeiramente entreabertos, cabeça inclinada para trá s – que ela também
sente isso.
— É legal, nã o é? — murmuro.
— O que é?
— Ser a mocinha.
Ela bufa para mim, mas seus olhos encontram os meus. Estou
sorrindo descaradamente para ela, imaginando um pouco tonta como
seria beijá -la de verdade, de propó sito e nã o por necessidade, quando
uma voz atrá s de nó s diz clichê:
— Bem, bem, bem.
E sei que tenho poucos segundos para agir. Eu poderia correr. Eu
poderia me virar e lutar. Eu poderia espetar meu dedo na ponta da
minha pró pria faca e esperar cair desse universo de filme de terror B.
Em vez disso, faço o que sempre fiz quando estou encurralado, o que
sempre farei. Eu mando uma mensagem para Charm.
No momento em que mã os se fecham em volta dos meus braços e
meu telefone é jogado no chã o, se espatifando em uma dú zia de
pedaços de plá stico inú teis, e essa histó ria de merda me pega de novo,
consigo digitar nove caracteres e apertar enviar: atu 709 sos
7
UMA CONFISSÃ O: Eu esperava que ela fosse feia. O que é muito foda da
minha parte, mas em minha defesa, o folclore ocidental
persistentemente e falsamente equipara a aparência física de um
personagem com sua moralidade interior, entã o, era uma aposta
bastante segura que a rainha canibal do mal se pareceria com Anjelica
Huston depois que ela descascasse fora de sua má scara em The Witches.
Mas quando seus capangas puxam meus braços para trá s e me giram
para encará -la, descobri que ela nã o é nada feia. Ela é, de fato, uma das
coisas menos feias que já vi (sim, inclusive Prim, que é tã o linda que as
pessoas apertam os olhos e piscam quando falam com ela, como se
estivessem tentando conversar com o sol). A rainha é jovem e tem olhos
de corça, com cílios longos e macios e bochechas suavemente
arredondadas. Sua pele é do branco fosforescente de um anjo da
Renascença, e seus lá bios sã o de um vermelho brilhante e arterial,
como se ela tivesse acabado de comer uma tigela de cerejas frescas ou,
talvez, os coraçõ es crus de crianças roubadas.
Eu penso, inteligentemente: Hã. E entã o eu penso, um pouco mais
inteligentemente, meu estô mago afundando rá pido: eu sei quem você é.
— Você é... Branca de Neve! — Estou apontando para um bom
j'accuse! momento, mas está claro pelas expressõ es ao meu redor que
eu sou literalmente a ú nica pessoa que nã o sabia.
Branca de Neve sorri para mim. É um sorriso muito bom, doce como
a primavera, mas sua voz é puro gelo.
— Você pode se dirigir a mim como Sua Majestade.
Meus olhos se movem por conta pró pria para Eva. Ela está lutando
muito melhor do que eu, lutando contra três caçadores enquanto eles
lutam com seus pulsos nas costas. Um deles bate na parte de trá s de
suas pernas e a faz cair de joelhos. Outro enterra o punho em seu cabelo
e puxa seu rosto para cima, expondo a frá gil coluna de sua garganta. Ela
nã o se parece muito com uma rainha comparada a Branca de Neve –
seu rosto é duro e simples e um pouco velho demais, seus dentes
arreganhados em fú ria amarga –, mas olhando para ela, sinto uma
grande e estranha onda de lealdade.
— Desculpe — digo a Branca de Neve. — Eu já tenho um desses.
O doce sorriso de Branca de Neve nã o vacila quando ela ordena a
seus homens que nos despojem de nossos pertences e nos tranquem,
aguardando a puniçã o por nossos crimes contra a rainha e o país.
Entã o aqui estou eu, nas masmorras novamente. Naturalmente.
Eu vi um nú mero decente de masmorras nos ú ltimos cinco anos, mas
estas estã o entre as menos agradáveis. É o cheiro de carne de restos
humanos, provavelmente, ou talvez o burburinho gelatinoso dos
esgotos abaixo de nó s, ou talvez a extrema improbabilidade de nossa
fuga. Nossos braços estã o algemados acima de nó s e os caçadores
levaram tudo até, e incluindo parcialmente, nossas roupas. Estou
descalça e sem moletom, tremendo esporadicamente em minha
camiseta, e o vestido cor de rim de Eva sumiu. Tudo o que ela está
usando agora é uma daquelas roupas íntimas disformes e incolores que
tenho certeza de que se chamam camisola, ou talvez chemise, amarrada
na frente com uma fita verde frouxa. Deve ser pelo menos um pouco
sexy, mas apenas a faz parecer pequena e vulnerável, como algo recém
descascado.
— Ok, entã o. — Eu tusso molhado. — Isso poderia ter corrido
melhor. — A cabeça de Eva está inclinada para trá s contra a parede, os
olhos fechados. Ela nã o responde, entã o adiciono um pequeno e
insuficiente — Eu sinto muito.
Ela exala como quem conta lentamente até dez antes de responder.
— Você sente muito. — Seus olhos ainda estã o fechados. — Você me
forçou a acompanhá -la em uma missã o maluca e condenada para
resgatar uma garota que mal conheço e que nem precisava ser
resgatada. Você me prometeu uma saída e eu arrisquei tudo para
consegui-la, como sempre faço... — Ela faz uma pausa, talvez para
contar até dez novamente. — E agora vou morrer, como sempre
morreria. Mas você... você sente muito.
— Quero dizer, eu também vou morrer, a propó sito. — Bem,
provavelmente, dependendo de quã o irritada Charm está , e se ela se
lembra do índice Aarne-Thompson-Uther, e se eu consigo colocar
minhas mã os no maldito espelho novamente. — Entã o, sim, me
desculpe. Mas honestamente, parece que você está falhando em
assumir a responsabilidade por suas pró prias açõ es aqui? Tipo, talvez
se você nã o tivesse decidido matar uma criança pelo crime de ser mais
gostosa que você, tudo teria dado certo. Você poderia ter vivido até uma
idade avançada em seu pró prio mundo. — Eu tento e nã o consigo
manter um fio verde de inveja fora da minha voz. Nã o consigo imaginar
o privilégio de uma vida longa, mas sei que nã o a desperdiçaria com
uma vilania mesquinha e vagamente nã o feminista. Eu ia..
Eu quebro a frase ao meio, mas as imagens vêm de qualquer maneira,
espontâ neas: as rosas da mamã e corando na primavera, noite de jogos
em família, Charm forçando todos nó s a fazer tatuagens iguais em seu
trigésimo aniversá rio. E – talvez um dia – um lugar só meu: uma planta
de casa, ou mesmo um animal de estimaçã o, um trajeto diá rio, uma
poupança porque eu teria algo para economizar. Uma vida inteira que
eu nunca teria que deixar.
Estou respirando pelo nariz e expirando pela boca, tentando nã o
chorar, quando Eva diz com desdém:
— Você nã o sabe o que aconteceu.
Perco o padrã o da minha respiraçã o calma.
— Sabe aquele livro vermelho de contos de fadas que você
encontrou? Pertence a mim… pertenceu, eu acho, desde que você o
deixou para trá s em seu mundo estú pido. Meu pai me deu quando eu
era criança e li pelo menos cinquenta vezes e depois me formei em
folclore e li mais cinquenta vezes. Eu prometo, eu sei como a histó ria
acontece.
— Claro que sim — Eva diz para o teto. Sua voz é zombeteira, quase
presunçosa, como se ninguém pudesse entendê-la.
— Ei, eu nã o tenho nada além de tempo. — Eu tento abrir meus
braços de forma convidativa e só consigo sacudir minhas correntes. —
Se você quiser me dar um longo discurso simpá tico sobre suas
motivaçõ es, fique à vontade.
Eva responde rá pido e cruel.
— Ou talvez você pudesse apenas pensar por dois segundos
consecutivos. Minha Branca de Neve era uma garotinha bonita que
cantava para pá ssaros canoros e confiava em velhas que vendiam
maçã s. Sou uma bruxa e uma rainha que dedicou sua vida ao acú mulo
de poder. Se eu quisesse matá -la, você nã o acha que ela estaria morta?
Abro a boca e a fecho lentamente. Os contos de fadas estã o repletos
de coincidências iló gicas e buracos ó bvios na trama, mas a maioria de
nó s aprende a ignorá -los, como se você pula o degrau estridente da
escada.
— Ok, eu vou perguntar — eu digo. — Por que você nã o a matou?
Eva está olhando para mim agora, sua boca emoldurada por aquelas
linhas amargas, suas sardas como alfinetes de sangue na penumbra.
— Porque eu nã o queria. Ela era apenas uma criança e eu nã o sou um
monstro. — Uma elevaçã o desafiadora de seu queixo. — Mas eu
também nã o podia permitir que ela ficasse. Ela era a ú nica herdeira
legítima do rei, e eu falhei em dar a ele qualquer outra. Depois que ele
morreu, mas antes que ela atingisse a maioridade... eu tinha poder.
Poder real - nã o sussurros atrá s do trono ou politicagem nas sombras,
como minha mã e teve antes de mim. Só eu sentei no trono, só eu usei a
coroa. Eu era a rainha.
É o tipo de fala que a intrigante rainha louca pelo poder pode fazer
em um romance de fantasia, mas Eva nã o parece brava. Ela parece
melancó lica e triste, como uma mulher relembrando os dias dourados
de sua juventude.
— E eu sabia que tudo isso iria desaparecer no segundo em que
minha enteada se casasse. Ou talvez mais cedo, já havia rumores
desagradáveis de que eu era uma bruxa em vez de uma mulher, que eu
havia assassinado o pai de Branca de Neve.
— Mas, tipo... — Eu passo minha língua sobre meu lá bio inferior,
tentando decidir se há uma maneira delicada de perguntar e resolvendo
que nã o há . — Você matou?
Seus ombros se movem no que interpreto como um encolher de
ombros, embora seja difícil dizer neste â ngulo.
— Sim.
— Por que?
Os olhos de Eva endurecem.
— Eu já te disse. Tudo o que fiz, fiz para sobreviver. — Seus cílios
fecham. — Meu marido se casou comigo porque eu era jovem e ele
precisava de herdeiros. Quando eu falhei em dar um, ele ficou... — Uma
pausa hedionda e pesada aqui. — … Descontente.
Ai Jesus. De repente, estou farta desses mundos medievais falsos e de
suas políticas de gênero de merda, todas as histó rias bonitas que
contamos sobre mundos feios. Uma terrível simpatia sobe pela minha
garganta e se aloja ali, logo atrá s da minha língua.
— Você já usou essa palavra duas vezes. Falhar. — Eu me atrapalho
com a terminologia do terapeuta em minha sacola e saio com um
patético — Você nã o falhou.
Eva recebeu meus insultos e golpes com os dentes à mostra, mas
agora, quando minha voz é baixa e sincera, ela se encolhe.
— O que você sabe sobre isso?
Eu encontro seus olhos.
— Bem, para começar, eu nã o posso. Ficar grávida, quero dizer. — Ela
me encara por um longo tempo, seus olhos arregalados e
suspeitosamente vidrados. Eu dou a ela o meu melhor encolher de
ombros algemado, porque ela me parece o tipo de pessoa que seria
forçada a me matar se eu a visse chorar. — Corpos sã o uma verdadeira
jogada de dados, cara.
Ela engole.
— Eles... sim. — Ela engole novamente, compartimentando
visivelmente, colocando sua histó ria de volta nos trilhos. — De
qualquer forma. Os príncipes começaram a chegar antes que ela tivesse
quinze anos. Eles descansavam ao redor do meu castelo, comendo da
minha mesa enquanto cortejavam minha enteada e planejavam tomar
meu trono. Ela era tã o jovem... mas eles vieram mesmo assim. Cada
segundo filho faminto que queria um reino pró prio.
Os olhos de Eva estã o estreitados agora, sua mandíbula firme.
— Entã o eu fiz o que tinha que fazer. Eu afugentei Branca de Neve,
mandei-a correr para a floresta perseguida pelo ú nico homem que eu
tinha certeza que nunca iria machucá -la. Berthold voltou com aquele
fígado de porco, achando-se tã o inteligente, e eu o agradeci com tanta
delicadeza.
Lembro-me do rosto bonito, afável e ligeiramente estú pido de
Berthold. Suponho que se eu realmente quisesse que alguém fosse
assassinado, ele nã o seria minha primeira escolha. Ocorre-me que a
rainha devia saber que também nã o me machucaria se eu tentasse
escapar.
Eva continua com um longo suspiro.
— Eu esperava nunca mais ter notícias de Branca de Neve. Mas ela
nã o correu o suficiente, e logo houve rumores sobre uma linda garota
escondida na floresta, e os príncipes estavam circulando como malditos
abutres, e eu pensei - se ela estivesse morta, ou parecesse estar morta,
eles desistiriam. — Outro suspiro, ainda mais longo. — Parece que
subestimei o apetite deles.
Agora parece o momento de me desculpar ou simpatizar, ou,
idealmente, de acariciar o cabelo desgrenhado do rosto e pressionar
meus lá bios com ternura em sua testa. Mas estamos separadas por um
metro e oitenta e ela provavelmente me odeia profundamente.
— Olha, Eva... Vossa Majestade, eu...
— Tudo o que eu queria era poder. — Seus lá bios têm uma forma
amarga. — Eu sei como devo soar, o que você deve pensar de mim, mas
eu só quero poder sobre mim mesma. Poder para fazer minhas pró prias
escolhas e chegar aos meus pró prios objetivos.
— Chama-se agency2. — E eles disseram que meu diploma de
humanas nunca seria ú til. — É como o poder que você exerce sobre sua
pró pria narrativa.
— É o que os protagonistas têm, entã o.
— À s vezes até os protagonistas nã o entendem muito disso. Quero
dizer, você leu Little Brier-Rose naquele livro? Minha histó ria é uma
merda.
— Sim, eu li. Realmente 'suga'. — Ela pronuncia a frase com precisã o
aristocrá tica, e eu faço uma anotaçã o mental para ensiná -la palavrõ es
mais modernos, contanto que nó s duas sobrevivamos à nossa pró xima
execuçã o. — Mas pelo menos pertence a você. Seu nome está logo ali no
título. O ú nico nome que tenho é… — sua voz falha, como um fio
prendendo um prego perdido — aquele que você me deu.
E, Deus me ajude, ela parece genuinamente grata. Para um apelido
maldoso que inventei só para irritá -la. Isso me parece tã o retró grado e
terrível que me pego falando, as palavras saindo em um tombo culpado
e desesperado.
— Charm… ela é minha melhor amiga… bem, ela era, até que eu
estraguei tudo - ela diz que a chave é a ressonâ ncia narrativa.
Uma chama de esperança nos olhos de Eva, rapidamente apagada.
— A chave para quê?
Eu respiro fundo.
— Mover-se entre mundos.
Eva nã o diz nada, seus olhos queimando com a mesma fome
desesperada que me fez cair no mundo de Prim em primeiro lugar, que
me mantém pulando de mundo em mundo como uma pedra na
superfície fria do universo. Eu me vejo desviando o olhar, incapaz de
suportar a visã o de tanta esperança, mesmo de segunda mã o.
— Entã o, o universo é como um livro, certo? E cada mundo é como
uma pá gina. E se você contar a mesma histó ria vá rias vezes, pode
passar para outra pá gina. Quer dizer... devo escrever minha pró pria
histó ria? — Eva parece que abriria uma veia e usaria seu pró prio
sangue como tinta se eu mandasse.
— Nã o, nã o literalmente. — Embora o pensamento solte algo na
parte de trá s do meu crâ nio, uma pergunta que eu estava ignorando.
Continuo ignorando. — Você tem que encenar uma parte familiar de
sua trama. E entã o você pode meio que deslizar entre os mundos e ir
para outro lugar. — Charm é muito melhor em explicar essas coisas do
que eu. Sinto sua falta, de repente e ferozmente, do jeito que nã o me
permitia há seis meses e treze dias. Ou, para ser sincera, cinco anos.
Engulo um nó de ranho.
— Mas tipo, só funciona na sua pró pria histó ria, normalmente. Eu só
tinha zapeado em outras versõ es da Bela Adormecida até você e seu
espelho má gico me trazerem aqui.
— Entã o... — Eva fecha os olhos. — Precisamos do espelho.
— Acho que sim.
— Por quê? É apenas um espelho que encantei para me mostrar a
verdade.
Minhas correntes fazem um barulho desconfortável.
— Eu acho... bem, Zellandine acha que os universos estã o se
misturando? — Aplaudo meu pró prio uso da voz passiva. — Entã o seu
espelho talvez tenha escorregado um pouco para outras histó rias e
mostrando outras verdades.
Posso sentir Eva me estudando.
— É sua culpa, nã o é? Isso é o que aquela fada quis dizer. Os mundos
estã o se fundindo porque você nã o vai terminar sua histó ria.
— Desculpe-me por nã o querer ficar parada esperando a morte.
— Oh, eu entendo perfeitamente. — Seu tom se torna á cido,
triunfante. — Mas entã o, eu sou a vilã .
Nã o digo nada em minha defesa, porque nã o há muito o que dizer.
Talvez eu seja o vilã o também.
Por fim, sinto a amargura de Eva se esvaindo.
— O espelho me mostrou você, de todas as pessoas possíveis em
todos os universos. — Soa quase como um pedido de desculpas. — Por
que?
— Bem, o que você estava fazendo na hora?
— Eu estava olhando no espelho, obviamente. — Ela acrescenta, de
forma bem menos contundente — Desejando uma saída.
— Bem. — Lembro-me de estar no banheiro do hotel, fugindo de
outro felizes para sempre que nã o era meu. — Eu também. Por acaso.
Ela encontra meus olhos entã o, e algo passa suave e silencioso entre
nó s. Uma compreensã o sem palavras, uma simpatia tã o profunda que
se aproxima da simetria. Isso me fez pensar que estava errada, e o
espelho do banheiro do hotel me mostrou meu pró prio reflexo, afinal.
— Quando você me beijou... — Eva começa, e meu coraçã o faz uma
manobra que parece pular de um salto alto. — Nã o era desejo. Você
estava apenas tentando desencadear essa ressonâ ncia narrativa, nã o é?
Meu coraçã o bate de barriga.
— Sim. Nã o funcionou.
— Entã o, sem o espelho... estamos presas aqui. — Sua voz está pá lida.
— Parece que sim.
O silêncio se desenrola entre nó s. Eu deveria estar formulando planos
de fuga improváveis, mas tudo em que consigo pensar é na visã o de Red
com seus pais, o amor amarrado como um berço de gato entre os três.
Eles devem saber desde o dia em que ela nasceu que destino a
esperava, e isso nã o os impediu de se importar. Isso também nã o
impediu meus pais estú pidos e teimosos, nem minha melhor amiga
estú pida e teimosa. A ú ltima vez que falei com ela, ela disse que
precisávamos conversar, e percebi pela voz dela que nã o era sobre a
minha parte do aluguel ou sobre a roupa que deixei na má quina de
lavar até ficar mofada. Claro, eu disse, e entã o fui para o meu quarto,
espetei o dedo e sai sem deixar um bilhete.
E se eu morrer nesta versã o doentia da Branca de Neve, nunca vou
conseguir dizer a ela o quanto estou arrependida.
Se Eva me ouve chorar, ela tem a decência de nã o dizer nada.
— Eu realmente sinto muito — eu digo densamente. — Sinto muito
por você nã o ter saído da sua histó ria, mas se ajuda - pelo menos você
nã o é mais a vilã . Se é que você já foi.
Ela fica quieta por tanto tempo que acho que nã o vai responder. E
entã o, quando estou afundado em um estupor de arrependimentos e
deveres e articulaçõ es doloridas, ela sussurra:
— Obrigada.
Algumas horas depois disso, eles vêm atrá s de nó s.
Descubro que, se inclinar os ombros e torcer os braços para o lado,
consigo alcançar a mã o de Eva enquanto eles marcham pelo castelo.
Seus dedos envolvem os meus com força, e somos arrastados juntos
para o clímax de nossas histó rias.
8
SEMPRE IMAGINEI morrer em um quarto de hospital, o que é meio
engraçado porque significa que alguma parte traiçoeira do meu
subconsciente sempre quis voltar para casa antes do fim. Imaginei
minha mã e e meu pai de um lado da minha cama, Prim e Charm do
outro, e muitas drogas realmente de alta potência cantando para eu
dormir.
Nã o imaginei meus pés descalços na pedra negra. Nã o imaginei um
pá tio abafado ou uma fogueira baixa e gordurosa. Eu com certeza nã o
imaginei ninguém andando ao meu lado, seus dedos entrelaçados aos
meus como se eu fosse sua ú ltima esperança no mundo, ou ela é minha.
Minhas mã os estã o dormentes e sem sangue por causa das horas
penduradas acima da minha cabeça, mas eu nã o as solto.
Os caçadores soltam nossos pulsos e nos jogam no chã o diante do
fogo. Nó s rastejamos uma em direçã o a outra sem falar, nossas espinhas
batendo quando nos viramos para enfrentar os caçadores em círculo. A
rainha – ou Branca de Neve, ou qualquer amá lgama distorcido que ela
seja neste mundo – vem deslizando pelas fileiras com o senso de tempo
de um supervilã o. Seu cabelo ainda é preto sedoso e sua pele ainda é
aquele alabastro inquietante, mas suas bochechas parecem um pouco
menos redondas esta manhã , seus lá bios um tom menos vermelho.
Parece um bom momento para dizer algo engraçado e corajoso,
demonstrando minha resiliência arrogante diante da morte certa, mas
nada me vem à mente. Se eu tivesse meu telefone, mandaria uma
mensagem de texto para Charm em letras maiú sculas: AGORA É A
HORA, VADIA.
Branca de Neve para a poucos metros de nó s.
— Estou bastante zangada com você, sabe. Crianças nã o sã o fá ceis de
pegar. — Ela parece petulante, perturbadoramente infantil. — Eles
foram destinados a um propó sito tã o glorioso.
— O quê, jantar?
A petulâ ncia de Branca de Neve escurece.
— Eles foram feitos para manter sua rainha na juventude eterna que
melhor lhe convier. — Eva faz um pequeno ruído de entendimento ao
meu lado, e o olhar de cílios longos de Branca de Neve se transfere para
ela. — Foi minha mã e – bem, madrasta – quem primeiro aprendeu o
truque. — Ela diz isso como um segredo, embora haja caçadores por
toda parte, seus colares de dentes vibrando a cada pequeno movimento.
— Nã o sei quantos anos ela realmente tinha quando se casou com meu
pai, mas parecia apenas um ou dois anos mais velha do que eu. Eu acho.
— Um olhar duvidoso, como se tivesse passado tanto tempo que ela
nã o consegue se lembrar. — Ela poderia ter continuado para sempre se
nã o tivesse tentado roubar o coraçã o errado. — Os dedos de Branca de
Neve batem no relevo branco de sua clavícula.
— Olha. — Molhei os lá bios rachados. — Isso é super horrível e
traumatizante, e tenho certeza que você precisa de terapia, mas tipo...
Por que você se transformou exatamente no mesmo tipo de monstro?
Por que você nã o pode simplesmente relaxar e viver feliz para sempre?
— Estou falando ao acaso, tentando dar a Charm alguns segundos
extras para fazer um milagre e me resgatar, como ela sempre fez antes.
Eu me pergunto se, em algum momento nos ú ltimos seis meses, ela
parou de dormir com o celular ligado.
A cabeça de Branca de Neve se inclina, o nariz franzido.
— Nã o é realmente um felizes para sempre se acabar, é?
Acho que digo alguma coisa aqui – não é assim ou você não entende –,
mas nã o consigo ouvir por causa do barulho crescente em minha
cabeça, a bílis repentina em minha boca. É isso que tenho feito nesses
ú ltimos cinco anos? Tentando fugir do meu pró prio final? Jogando fora
todas as chances de felicidade só porque era passageiro?
Eu engulo á cido.
— Toda histó ria termina — eu sussurro. Eu nem sei qual de nó s estou
tentando convencer. Eva se mexe ao meu lado, de modo que seu ombro
pressiona o meu com força.
Branca de Neve está olhando para nó s como se fô ssemos crianças
muito pequenas; talvez nó s sejamos, para ela.
— Bem, a sua vai. Mas eu tenho algumas perguntas antes disso. — Ela
tira algo fino e prateado de suas saias e o vira para nó s. Por um segundo
confuso, acho que ela está nos mostrando uma foto na tela do telefone
— vejo dois rostos, dois pares de olhos desesperados — antes de
entender que estou olhando para um espelho.
Minha boca fica seca e arenosa. Minha mente fica perfeitamente em
branco. Eva fica muito, muito quieta.
Branca de Neve acaricia a superfície do espelho com uma unha
pá lida.
— Esse seu espelho. Isso me mostrou coisas. Outras terras. Outros
mundos, talvez. — Vejo o futuro com uma clareza impotente e feia: um
canibal imortal vagando de mundo em mundo, colhendo princesas de
suas histó rias como frutas maduras das á rvores. Ela transformou sua
pró pria histó ria em um filme de terror sangrento; o que ela poderia
fazer com o multiverso?
Ela pergunta docemente:
— Como faço para chegar lá ?
— P-por que você iria querer deixar seu pró prio mundo? — Além do
crepú sculo perpétuo e da fauna show de horrores. — Você tem uma
ó tima configuraçã o aqui. Um adorável, hum, covil e capangas leais.
Branca de Neve faz uma careta.
— Os aldeõ es estã o ficando inquietos. Eles sã o um bando cansativo,
sempre fomentando e resistindo é mais difícil e mais difícil conseguir o
que preciso. — Ela belisca a carne da garganta, onde a pele cedeu quase
imperceptivelmente. (Tenho o pensamento inú til de que o Dr. Bastille
teria um dia de campo absoluto com esta versã o da Branca de Neve. "O
medo da idade na era do medo: representaçõ es da velha no terror
popular moderno.")
Branca de Neve sorri com seu doce sorriso primaveril.
— Eles nã o sã o nada parecidos com os cordeirinhos que vejo em
outros mundos. Entã o eu vou te perguntar novamente: Como eu chego
lá ?
Nã o respondo e, para minha surpresa, Eva também nã o. Seu silêncio
me enche de um orgulho estranho e imprudente.
— Desculpe, estou tendo um déjà vu mais intenso, sabe? Sinto como
se tivesse acabado de ser interrogado sob tortura por uma rainha má
ontem.
Isso provoca uma discussã o breve e sussurrada com Eva ("Tortura é
uma palavra forte." "Bem, se a carapaça serve." "Se a carapaça serve o
quê?" "Deus, deixa pra lá ."), ao final da qual ela pigarreia e diz em voz
alta:
— Sinto muito por ter te machucado. Eu nã o deveria.
Parece o tipo de pedido de desculpas que você faz porque tem certeza
de que é sua ú ltima chance. Eu movo minha mã o para que meus dedos
cubram os dela, porque tenho certeza que ela está certa.
— Tudo bem — eu digo inadequadamente.
Branca de Neve está nos observando de perto, olhando de nossos
rostos para o lugar onde nossas mã os se tocam. Ela faz um tsk
resignado.
— Eu posso ver que vocês duas sã o terrivelmente teimosas. Eu vou
encontrar meu pró prio caminho. Eu certamente tenho tempo. — Ela faz
um gesto imperioso e um de seus caçadores dá um passo à frente,
desembainhando sua espada com um som de osso raspando enquanto
ele vem para nó s. Está tudo acontecendo muito rá pido. Achei que
poderia passar mais tempo falando besteira, pensei que Charm ainda
encontraria seu caminho através do universo para mim, mesmo sem o
espelho, porque as regras nã o se aplicam a nó s…
Mas o caçador nã o empala nenhum de nó s. Ele passa por nó s até a
beira do fogo e alcança as brasas com a ponta de seu espada. Ele extrai
um feio emaranhado de ferro. Parece o tipo de coisa que você veria em
um museu, uma massa de metal antigo com um ró tulo obscuro e
arrepiante onde se lê Scold's bridle, 17th c. ou Pêra da angústia, séc.
XVIII.
Entã o Eva soluça, á spero e repentino, e percebo que estou olhando
para dois pares de sapatos de ferro, as tiras de metal brilhando em um
vermelho opaco e infernal.
Enrolo meus dedos nos de Eva, mas sua mã o está flá cida e ú mida na
minha. Eu me viro para encará -la, ajoelhada, falando
desesperadamente.
— Está tudo bem, me desculpe, nó s vamos ficar bem. — Mas Eva nã o
está olhando para mim, nem mesmo para os sapatos. Seus olhos estã o
em Branca de Neve, que já nos esqueceu e agora está olhando para a
superfície do espelho com uma paciência arrepiante e predató ria.
A expressã o de Eva ao olhar para a rainha nã o é de pâ nico, ó dio ou
mesmo desespero. Seu rosto tem uma frieza estranha, uma qualidade
de má rmore esculpido que faz meu peito doer sem motivo.
— Ei, escute, Charm sabe que estamos aqui. Ela ainda pode nos
salvar, ok?
Os olhos de Eva movem-se lentamente para os meus, semicerrando-
os como se nó s dois estivéssemos em lados opostos de um rio muito
largo.
— Espero que sim — diz ela suavemente. Entã o, com a mesma
suavidade, ela me beija.
É seco e suave. Parece um pedido de desculpas ou uma despedida.
— Obrigada. — Ela sussurra as palavras contra meus lá bios.
A pequenina parte do meu cérebro que nã o está ocupada com a
aproximaçã o iminente da minha pró pria morte dolorosa ou com a
doçura salgada de sua boca consegue dizer:
— Por quê?
— Por me mostrar que nã o preciso ser a vilã , a madrasta malvada, a
Bruxa Malvada do Irmã o Leste. Por me dar… — Seus olhos se movem de
volta para Branca de Neve, e seus lá bios se curvam, revelando uma fina
linha branca de dentes à mostra. — Agency.
É nesse ponto que Eva começa a desamarrar a frente do vestido. Meu
cérebro se divide em duas facçõ es concorrentes, uma das quais está
torcendo e soa muito como Charm na noite das garotas no bar gay, e a
outra de que está pensando em como é triste que Eva tenha sofrido
tanto, apenas para perder a cabeça agora.
— Eva, querida, o que você está fazendo?
Ela nã o responde, puxando a fita lentamente para fora de sua
camisola. Exceto que nã o é uma fita, é? É um corpete de renda.
Um peso xaroposo se acomoda sobre meus membros. Percebo
pequenas coisas: o minuto em que o corpo de Eva se inclina para longe
do meu. O cordã o tenso de mú sculos em seu pescoço, a protuberâ ncia
em sua bochecha enquanto ela aperta a mandíbula, preparando-se para
fazer algo terrível, corajoso e estú pido. Eu alcanço ela. Tarde demais.
Eva já se lançou pelo pá tio, esfaqueando no ar como um falcã o de penas
brancas e sujas. Ela colide com Branca de Neve, e entã o há um som
estilhaçando, quebrando, como uma taça de vinho caindo. Algo corta
minha bochecha.
O pá tio cai em um silêncio entorpecido enquanto todos os olhos
olham para o chã o, para o lugar onde o espelho má gico jaz em cacos
quebrados. Vejo nossos rostos refletidos nos cacos, divididos e
duplicados, congelados em estado de choque.
Há uma grande lasca de vidro bem ao meu lado, perto o suficiente
para tocar. O rosto refletido nesta peça nã o pertence aos caçadores,
nem a nenhuma das rainhas, nem a mim. É um rosto emoldurado por
uma longa mecha de cabelo loiro descolorido, com um piercing no
septo e uma expressã o que sugere intençã o homicida, ou pelo menos
lesã o corporal grave. Os lá bios do rosto estã o se movendo, repetindo o
mesmo nome sem parar, intercalado com palavrõ es: Zinnia, Zinnia,
maldita Zinnia.
— Charm, puta merda… — Estendo a mã o para o caco e meus dedos
caem através do vidro, na corrente fria do grande nada entre os
mundos. Sinto que me inclino para dentro dela, caindo para a frente,
mas afundo os dedos dos pés nas pedras. — Eva, é Charm! Vamos!
Eva está agachada diante da rainha com sangue escorrendo de uma
narina. Ela olha para mim e a compreensã o pisca em seu rosto. Mas ela
nã o corre para mim. Ela poderia ter corrido. Eu quero isso registrado.
Ela poderia ter pegado minha mã o e corrido, e deixado este mundo sob
o polegar de sua rainha perversa por mais um século ou dois. Ela
poderia ter escolhido sobreviver, como sempre fez.
Em vez disso, ela aperta a renda do corpete entre as mã os. Ele brilha
de um verde doentio à luz do fogo.
Eva acena com a cabeça uma vez para mim, com um sorriso tristonho
e triste, como se dissesse: Bem, alguém tem que fazer isso, antes de se
levantar e enrolar a fita no pescoço de Branca de Neve.
Dedos quentes agarram meu pulso, puxando com força. A ú ltima
coisa que vejo antes de ir é Eva – minha rainha nã o tã o má , minha vilã
heró ica – caindo sob o peso de seus inimigos.
9
EU CAIO DURA, de costas, me sentindo como um pedaço de massinha
passando por um ralador de queijo. O céu acima de mim nã o é mais
baixo e roxo, mas um azul brilhante e suburbano entrecortado por
rastros de jatos. Algumas folhas de carvalho batem pacificamente umas
nas outras. A terra ú mida encharca a parte de trá s da minha camiseta.
Estou no quintal de Charm e Prim em Madison, um lugar que nã o
tinha certeza se veria de novo e do qual agora desesperadamente e
ironicamente quero sair.
— Bem, se nã o é a Pequena Miss SOS.
Sento-me, um esforço considerável, até mesmo nobre, que Charm nã o
parece apreciar nem um pouco. Ela está ajoelhada ao meu lado, o nariz
escorrendo muito, as bochechas manchadas de cinzas. Prim está do
meu outro lado, seus olhos enormes cheios de preocupaçã o. Ela tira a
sujeira do meu ombro, arranca algo do ninho oleoso do meu cabelo.
Atrá s delas está o pequeno anel de fogo de metal que elas compraram
para seu quintal microscó pico. Há um par de chinelos dentro do ringue,
ainda fumegando suavemente, emitindo cachos químicos de fumaça
azulada.
Eu dou a Charm um sorriso rá pido e tonto.
— Sabia que você descobriria eventualmente.
Uma expressã o de alívio cruza seu rosto, aparece e desaparece
novamente. Ela lança um olhar sombrio para o anel de fogo.
— Gostava desses sapatos.
— Uh. — Os chinelos sã o de plá stico rosa choque. Posso ver o adesivo
da loja do dó lar ainda preso na parte inferior do sapato esquerdo. — Eu
te devo um par?
Charme dá de ombros.
— Está bem. — Claramente nã o está .
— Ok, tanto faz. Na verdade, preciso voltar para onde estava, como
agora, entã o, se você tiver outro par para queimar, seria ó timo. E talvez
um espelho?
Charme nã o se move.
— Você nã o está esquecendo alguma coisa? — Seu tom é cordial, mas
seus olhos sã o finos e duros.
— Obrigada?
— Talvez tente, 'Sinto muito, Charm.'
— Ok, me desculpe. — Sai malcriado, audivelmente insincero. — Mas
eu realmente tenho que…
— Cale a boca e escute por um segundo? — A civilidade de Charm
desaparece; ela nunca foi uma boa mentirosa. Prim estremece quando
Charm se inclina. — Eu concordo. — Vamos recapitular nossa situaçã o?
Entã o, primeiro, eu digo que tenho algo importante para falar, e você
diz: 'Claro, querida!' Mas entã o você é o Aranha-Verso em outra
dimensã o e me deixa esperando. — Tenho a profunda suspeita de que
esse discurso foi ensaiado, mais de uma vez, com e sem slides. Prim
está rastejando para a porta dos fundos agora, deixando-me entregue
ao meu destino. — Em segundo lugar, você nã o fala comigo há seis
meses. O que é muito maduro e tranquilo. Entã o, em terceiro lugar, você
me envia um maldito nú mero de índice Aarne-Thompson-Uther -
mesmo que você tenha me dito especificamente que o sistema era,
entre aspas, "um sistema eurocêntrico" mas que 'deveria ser retirado
dos currículos de antropologia' - e falhou em responder a qualquer um
dos meus pedidos de esclarecimento. Deixando-me passar as ú ltimas
sete horas encenando freneticamente a maldita trama da maldita
Branca de Neve, cada vez mais certa de que você já mordeu uma maçã
envenenada ou foi atacada por um príncipe errante ou algo assim...
Há muito mais no discurso, a julgar pelo volume crescente e pelo
nível de agressã o, mas tudo em que consigo pensar é no pequeno e
triste sorriso de Eva pouco antes de ela enrolar o corpete em volta do
pescoço de Branca de Neve. Como se ela soubesse que a escolha a
condenaria e nã o se importasse, porque pelo menos ela estava
escolhendo sua pró pria condenaçã o.
Eu interrompo Charm jogando meus braços em volta dela. Ela
endurece, entã o me abraça de volta com tanta força que parece
vingativa.
— Você é uma merdinha, sabia disso?
Eu me afasto.
— Sim. E eu sinto muito, muito mesmo, eu sou. Mas eu tenho que
encontrar um caminho de volta para Branca de Neve agora. Eu tenho
que salvar…
Charm joga as duas mã os no ar.
— Algum estranho? E quanto a nó s, Zin? E quanto a mim, seu poço de
merda.
— Eu sei! Sinto muito, mas as pessoas precisam de mim, ok?
Charm mastiga o interior de sua bochecha antes de dizer, em uma voz
que só poderia ser medida com precisã o pela escala Kelvin:
— Isso. É o que estou tentando lhe dizer. Cabeça oca.
Um silêncio pequeno e extremamente desconfortável segue esta
declaraçã o, durante o qual Charm me observa com olhos vermelhos e
cheios de lá grimas e eu me chamo de todos os nomes ruins que posso
pensar. Parece-me que nem os heró is nem as moribundas sã o muito
bons em ficar por perto, no trabalho comum da vida: ligar de volta para
seus amigos e lembrar seus aniversá rios, ir ao médico para exames
regulares, cuidar das pessoas que você ama.
Charm se recosta, de pernas cruzadas, rasgando a grama com nojo.
— Você está tã o ocupado mexendo em outros mundos que nem se
importa com a merda estranha que está acontecendo no seu.
— Como que tipo de merda esquisita? — Eu pergunto, muito
suavemente. Mas acho que sei.
— Como uma merda de conto de fadas. Comprei uma daquelas tortas
de maçã congeladas — cale a boca, elas sã o boas — e quando a
cortamos encontramos um bando de melros. Os sapatos de Prim
viraram vidro uma noite enquanto ela dançava. As rosas de sua mã e
enlouqueceram em dezembro, florescendo enquanto ainda havia neve
no chã o.
Eu desgrudo minha língua do céu da boca e digo com cuidado:
— Isso nã o é tã o ruim, é?
— Bem, nã o é ó timo. — Charm está rasgando a grama em grandes
punhados agora, suas unhas manchadas de néon. — As aves estavam
todas mortas e em putrefaçã o. Os sapatos de Prim quebraram debaixo
dela, nove pontos, ela perdeu semanas de aula. E as rosas da sua mã e
morreram até a raiz. Ela rasgou todas elas.
— Oh.
Charm me fixa com um olho azul direto.
— É sua culpa?
— Talvez.
— Será que vai piorar?
— Uh, talvez. Sim. — Eu olho para longe dela. — Se eu nã o parar.
— Entã o… — Charm pressiona as palmas das mã os nos olhos. —
Jesus, por que você nã o para?
— Eu deveria. Eu vou! Mas… — Mas em algum lugar ao longo da
linha, Eva se tornou uma das pessoas de quem eu deveria cuidar, e ela
precisa de mim, e as leis físicas do multiverso podem ir direto para o
inferno. — Mas primeiro preciso do seu telefone emprestado.
Charm para. Ela olha para mim com uma expressã o de alguma forma
pior do que raiva, ou mesmo desapontamento. É uma espécie de
desgosto amargo e autodirigido, como se ela estivesse aborrecida por
ter se permitido ser decepcionada comigo novamente. Ela bate o
telefone na mesa de plá stico ao sair.
Levo um minuto para adivinhar sua senha (53X0, porque o Charm
ainda tem o sentido de humor de um aluno do sétimo ano), e mais um
minuto para encontrar as informaçõ es de contacto da faculdade no site
da Universidade de Ohio.
O telefone escorrega no suor pegajoso do meu rosto.
— Oi, aqui é Zinnia Gray. O Dr. Bastille está disponível?
★★★
— ENTÃ O — NOVAMENTE, HIPOTETICAMENTE — COMO O
protagonista poderia voltar à quela histó ria da Branca de Neve sem o
espelho má gico?
Dra. Bastille suspira do outro lado da linha. Parece durar muito
tempo, como se ela estivesse segurando o telefone na frente de um
ventilador de caixa.
— Bem, hipoteticamente, se você fosse meu aluno e viesse ao meu
escritó rio e me dissesse... um tanto pouco convincente como o enredo
de uma metanovela em que estou trabalhando. Eu seria legal e
moralmente obrigado a encaminhá -lo para os serviços de
aconselhamento do campus.
— Ainda bem que nã o sou mais sua aluna, hein.
— Zinnia, isso nã o é melhor. Você vê como isso nã o é melhor, certo?
Se uma pessoa aleató ria viesse ao meu escritó rio para falar sobre o
multiverso dos contos de fadas, eu provavelmente engoliria minhas
convicçõ es pessoais sobre o papel da aplicaçã o da lei na manutençã o
violenta das hierarquias de raça e classe — isso é discurso de torre de
marfim para foda-se a polícia — e chame a segurança.
— Claro, eu entendo isso, mas e se eu fosse muito convincente e
parecesse desesperada, e você fosse meio que compelida a me
aconselhar apesar de seu bom senso? — Estou tentando intimidá -la em
um papel em uma narrativa específica - a consultora
especialista/detentora do conhecimento misteriosa que oferece
conselhos sá bios ao protagonista em sua hora de necessidade e salva
seu bacon - mas posso sentir a Dra. Bastille resistindo a isso. Ela nunca
gostou muito de interpretar papéis prescritos.
Eu a ouço tirando o telefone do rosto, dizendo que vou demorar um
minuto, amor para outra pessoa. A voz de uma mulher diz algo sobre
reservas para jantar em um tom que sugere que elas já foram feitas e
quebradas antes.
Dra. Bastille suspira no telefone novamente.
— Tudo bem. Dados os parâ metros da histó ria que você acabou de
me contar, é minha opiniã o profissional que você se encurralou.
— O que isso significa?
— Significa que você está ferrada.
— Eu… ok. — A grama parece muito fria em meus pés descalços, o
céu muito alto acima de mim.
— Você disse que a ú nica maneira de cruzar para outros tipos de
contos era por meio de um determinado objeto encantado. Um
MacGuffin ú til que agora, segundo você, está quebrado. Portanto, seu
protagonista nã o tem um espelho má gico, nem o vilã o-barra-interesse
amoroso — uma tendência na ficçã o popular que acho abaixo de você, a
propó sito — Dra. Bastille prefere ignorar meu desejo suspirado —, e
nã o acho que as leis físicas deste universo permitam a criaçã o de
objetos encantados. Certo?
Estou circulando a fogueira agora, deixando a fumaça com cheiro de
plá stico queimar meus olhos.
— Eu acho que nã o.
— O que parece ser uma coisa boa, porque as andanças hipotéticas
de seu protagonista estavam causando danos substanciais ao tecido do
espaço-tempo contínuo, nã o estavam?
— Mas tipo, por quê? — Minha voz fica alta na ú ltima palavra,
oscilando perigosamente. — Por que é tã o importante se eu - quero
dizer, meu personagem - nã o apenas deito e espero que o trem a acerte?
Por que ela nã o pode fugir?
Posso ouvir um rangido familiar na linha, como se a Dra. Bastille
estivesse recostada na cadeira do escritó rio e beliscando a ponta do
nariz. Ele fazia isso com frequência em nossas reuniõ es de assessores.
— Nesta novela, você postulou as narrativas como mundos literais.
Portanto, as histó rias sã o o princípio organizador do multiverso – o que
levanta algumas questõ es sérias de construçã o do mundo, a propó sito,
de onde vêm esses versos da histó ria em primeiro lugar, já que a
existência de qualquer histó ria implica a existência de um contador de
histó rias. — Ela faz uma pausa para abordar seu encontro: Não, vá em
frente, te encontro lá. — De qualquer forma, você criou um universo que
funciona com base na trama e um personagem principal que destró i as
tramas como uma bola de demoliçã o humana. Ao se recusar a
completar seu arco narrativo, ela está comprometendo a integridade do
universo.
— Oh. — A fumaça queima meus olhos, queima o interior do meu
nariz. — Entã o é isso. Acabou.
— Parece um clímax insatisfató rio.
— Sim. Bem. — Meu nariz está escorrendo muito agora. — Obrigada
pelo seu tempo.
— Claro. — O rangido de sua cadeira, o barulho de braços deslizando
nas mangas do casaco. A voz da Dra. Bastille suaviza ligeiramente
quando ela diz: — Eu ficaria feliz em lê-lo, quando estiver pronto.
— Ler o quê?
— O... deixa pra lá . Boa sorte, Zinnia. — Ela desliga.
Eu coloco o telefone de Charm de volta na mesa de jogo e caio
lentamente de joelhos. Meus olhos estã o cheios de lá grimas para ver
muito além do verde fractal, mas procuro a grama com as mã os,
rastejando em círculos. Tudo o que encontro sã o tampas de cerveja,
algumas baratas encharcadas, pontas afiadas de bolotas. Nã o há cacos
de espelho má gico no quintal de Charm. O que significa que a Dra.
Bastille estava certo. Estou ferrada, e Eva também.
★★★
EU ANDO DE UM LADO para o outro no quintal por um tempo,
inventando e descartando uma dú zia de esquemas improváveis.
Eventualmente, me ocorre que estou fazendo o que meu terapeuta
chamaria de barganha, e essa barganha é um está gio de luto.
Charm e Prim estã o na cozinha, falando em voz baixa e tensa. Elas
param quando a porta de tela se fecha atrá s de mim. Charm me dá um
olhar inquisitivo, que eu devolvo sem expressã o até que ela se volta
para os pratos. Prim olha preocupada entre nó s duas por um momento,
mas nã o há dú vida de qual lado ela vai escolher. Ela desdobra um pano
de prato e seca uma tigela ao lado de Charm.
Ando pelo corredor até o quarto que supostamente é meu, mas que
na verdade funciona como um closet. Abro caminho entre tapetes de
ioga e papel de embrulho, sacos de lixo com roupas de inverno, um
cesto de roupa suja cheio de vestidos de veludo, taças de estanho, toda
a porcaria que nã o vendi no Ren faire antes de desaparecer. O futon está
enterrado, entã o eu sento em uma caixa de mó veis desmontados com
TRÊ S EM UM! escrito na lateral em letras borbulhantes e infantis.
Eu encaro a parede e testo as palavras na minha língua: Fim. Nã o é
um final tã o ruim, eu acho. É uma espécie de compromisso có smico
com o universo. Nã o consigo curar magicamente minha doença e
escapar de minha pró pria trama, mas pelo menos nã o caí morta aos 21
anos; Eva nã o consegue viver como heroína, mas pelo menos nã o
morreu vilã .
Nã o é exatamente felizes para sempre, mas esse é um conceito bem
idiota de qualquer maneira. Sinceramente, nem sei porque estou
chorando.
Mais tarde, muito depois de o tilintar dos pratos ter desaparecido e
as lá grimas terem deixado minhas bochechas duras e secas, a porta se
abriu. Eu suponho que seja Charm voltando para a segunda rodada,
mas é Prim. Ela passa facilmente pelos detritos e abre espaço no futon.
Nenhuma de nó s diz nada por um tempo. Ela apenas fica sentada com
sua postura perfeita e seu cabelo perfeito, e noto as linhas finas nos
cantos de sua boca, o leve enrugamento da pele sob seus olhos.
Ela nã o parece velha nem nada, apenas comum. Como qualquer outra
garota que acorda todas as manhã s e faz café um pouco mais forte do
que prefere porque é assim que sua esposa gosta, que faz compras no
mercado do fazendeiro todo sá bado, que vai se olhar no espelho daqui a
dez anos e começar a pesquisar cremes para os olhos mesmo embora
sua esposa insista que ela sempre teve uma queda por pés de galinha.
Talvez felizes para sempre nã o seja um conceito totalmente besteira,
afinal; talvez, se nã o posso ter o meu, pelo menos encontre a decência
de nã o estragar este.
Eu inalo.
— Eu sei que tenho sido uma amiga de merda. E uma idiota, e todas
essas outras coisas que Charm me chamou.
— Bem, na verdade. — Prim dá uma pequena tosse envergonhada. —
Eu enviei aquele texto.
Eu nã o digo nada, saboreando a rara sensaçã o de ter uma posiçã o
moral elevada. Prim se contorce por um minuto antes de acrescentar,
com pressa: — Eu estava chateada porque Charm foi ferida, de novo, e
ela iria continuar dando a você chances de machucá -la, e eu nã o queria
assistir.
Ok, talvez eu nã o esteja em terreno elevado, afinal.
— Eu sei. É que... acho que nã o estava pronta para falar sobre
consultas, planos de tratamento e tudo mais. Eu nã o queria ficar
preocupada, sabe? Eu queria fazer minhas pró prias escolhas, escolher
minhas pró prias consequências, viver meu pró prio...
— Zinnia — Prim interrompe, suave e gravemente. Seu olhar é muito
só brio. — Queremos adotar.
— Hum, isso é bom? Este lugar permite animais de estimaçã o?
Ela pisca para mim, e uma expressã o de grande pena cruza seu rosto.
— Nã o. Nã o. — Seus olhos se movem para a caixa de mó veis em que
estou sentada. Olho para baixo e percebo pela primeira vez que há uma
foto de um bebê de aparência feliz na frente. As letras pequenas
explicam que o conteú do da caixa pode ser usado como berço, berço e
cama infantil à medida que seu — pequeno — cresce.
De repente me sinto muito, muito jovem e muito, muito estú pida.
— Oh — eu digo fracamente.
— Essa start-up ofereceu a Charm um cargo de tempo integral no ano
passado, e ela aceitou. Portanto, o momento parece certo e eu quero
muito ter filhos, uma vez que percebi que eles poderiam ser obtidos
fora das concepçõ es heteronormativas e patriarcais de casamento. —
Lembro-me de Charm me contando no ano passado que Prim se
inscreveu para auditar algumas aulas na UW; aparentemente ela gostou
deles.
— Uau, estou tã o... — Feliz? Apavorada? Abruptamente consciente da
passagem do tempo e com medo da minha mudança de posiçã o no que
era, até recentemente, um trio de amigas? Minha voz encolhe. — Eu nã o
sabia.
— Bem, você nã o tinha como. — Prim nã o soa especialmente
simpá tico. — Você saiu quando Charm tentou te contar. Ela queria
perguntar sobre como usar este quarto, uma vez que a papelada fosse
preenchida.
— Oh — eu digo novamente, ainda mais fraca. Eu umedeço meus
lá bios. — Entã o, como está indo? Ouvi dizer que pode demorar um
pouco.
A compostura legal de Prim escorrega. Ela desvia o olhar e engole
duas vezes.
— Nó s nunca arquivamos a papelada, na verdade. Charm nã o
assinou.
Um calafrio se instala na boca do meu estô mago, uma premoniçã o de
culpa.
— Por que nã o?
A postura de Prim é imperfeita agora, seus ombros curvados.
— Ela diz que é porque nã o está pronta para desistir da cerveja, mas
acho que ela está com medo.
— Sobre o que?
Prim raramente se encaixa – você pode tirar a princesa da corte real,
mas você nã o pode tirar a corte real da princesa, ou algo assim –, mas
agora ela retruca:
— De fazer isso sem a melhor amiga dela, talvez.
A culpa chega, fria e pesada como uma pedra engolida.
— Olha, eu estou muito, muito..
Ela interrompe.
— Ou talvez ela só esteja com medo de estragar tudo, como seus pais
fizeram. Adoçã o... nã o foi fá cil para ela. — Este é um eufemismo
enorme; Certa vez, ouvi a mã e dela lamentando o comportamento de
Charm (normal, classicamente adolescente) para minha mã e. Você
pensaria que ela ficaria mais grata, não é? Mamã e olhou para ela como
se ela fosse um novo tipo de fungo em uma de suas roseiras. Eu nunca
disse a Charm, mas nã o é como se ela nã o soubesse o placar.
— Sim, eu posso ver isso.
Prim pega um fiapo invisível no futon
— Eu também estou com medo, para dizer a verdade. Minha infâ ncia
também nã o foi particularmente fá cil, mas… — Ela encolhe os ombros,
como se a pró xima coisa que diz nã o fosse tã o importante. — Gostaria
de poder falar com minha mã e.
Vou até o futon, sento tã o perto que nossos ombros se tocam.
— Ei, pelo menos nã o há fadas perversas neste mundo. — É uma
piada difícil.
Prim ri, com o mesmo esforço.
— Bem, ainda nã o. Mas eu vi aqueles sapatinhos de cristal e os
pá ssaros mortos. Este mundo nã o é tã o seguro quanto eu esperava.
A culpa dobra, ou talvez quadruplica. É uma maravilha que eu tenha
espaço para ó rgã os humanos comuns. Procuro algo reconfortante para
dizer e saio com:
— Nenhum mundo é muito seguro, na minha experiência.
Parece, inexplicavelmente, ajudar. Prim se endireita novamente e
acena para ninguém em particular.
— Nã o. O que significa que tudo o que realmente importa é quem
você tem ao seu lado. Charm e eu temos uma a outra, e se isso tiver que
ser suficiente, será . — Ela faz uma pausa, talvez por ter esgotado as
grandes proclamaçõ es. — Mas de onde eu venho, as fadas madrinhas
sã o tradicionais. Doze parece excessivo, mas se eu tivesse uma filha,
esperaria pelo menos uma.
Ela encontra meus olhos quando diz a palavra uma, sua expressã o
simultaneamente arqueada e um pouco ansiosa. Como se ela tivesse
acabado de me pedir para carregar algo grande, mas frá gil,
infinitamente precioso, e nã o tivesse certeza se estou à altura da tarefa.
Como se ela quisesse confiar em mim, mas nã o tivesse certeza se
deveria.
Tenho uma vontade absurda de me ajoelhar. Novas lá grimas se
acumulam nos cantos dos meus olhos.
— Isso seria... eu seria… — Engulo em seco. — Tipo, eu sei que nã o
tenho sido tã o confiável ultimamente, e nã o posso prometer que minha
DGR permanecerá em remissã o ou algo assim, mas seria uma honra.
Prim acena com a cabeça sem quebrar o contato visual. Seu olhar
parece uma espada tocando cada um dos meus ombros, nã o muito
gentilmente.
— Bom. — Ela inspira profundamente e tira algo do bolso. —
Conversaremos mais quando você voltar, entã o.
Eu sei que nã o estou no meu melhor – tendo sido eletrocutada em
uma dú zia de universos diferentes, levemente torturada, aprisionada,
beijada, quase executada, resgatada e castigada por praticamente todos
que já conheci –, mas isso parece uma verdadeira mudança na conversa.
— Voltar de onde?
Prim me entrega a coisa que ela tirou do bolso. É longo e prateado, e
em sua superfície capto o brilho azul de seus olhos, o brilho da
luminá ria barata acima de nó s.
É um caco de espelho longo e quebrado.
— Eu tirei do seu cabelo quando você chegou.
Eu poderia beijá -la. Eu poderia perguntar a ela por que diabos ela
demorou tanto. Eu poderia chorar, porque a esperança é muito mais
assustadora do que o desespero.
Eu dou uma respiraçã o que treme apenas ligeiramente.
— Diga a Charm que estou voltando, ok? Para sempre, desta vez. Juro.
— Eu nã o espero que Prim concorde, ou me diga para ter cuidado. Eu
seguro o fragmento de forma que reflita um pedaço irregular do meu
pró prio rosto e sussurro para ele: Espelho, espelho meu.
10
EM UM sentido objetivo e literal, nã o há como Eva ser a mais bela de
todas – seu rosto é muito quadrado e sua boca é muito larga, e ela talvez
seja um pouco velha demais – mas esse é o rosto que o espelho me
mostra quando pergunto, e o espelho nunca mente. Talvez a beleza
realmente esteja nos olhos de quem vê, e se o observador está disposto
a abandonar suas amigas e danificar o tecido do espaço e do tempo por
alguém, o espelho assume logicamente que eles passaram do ponto dos
padrõ es objetivos de beleza.
Acho que sim, porque ver o rosto de Eva torna subitamente difícil
respirar. Eu caio na direçã o dela, mergulhando no nada, me sentindo
como uma mancha de pasta de dente sendo espremida de algum tubo
có smico. Estou preparado para aterrissar em um caos infernal – um
castelo em chamas cheio de caçadores assassinos, talvez, ou uma
execuçã o pú blica –, mas me vejo em uma pequena sala caiada de branco
com muitas janelas e nenhum sangue.
Nã o parece o tipo de quarto que poderia concebivelmente existir em
qualquer lugar no castelo da Branca de Neve do Mal, ou mesmo no
mesmo mundo. A luz que entra pelas janelas é de um dourado escuro
comum, em vez do violeta malévolo do crepú sculo sem fim; o fogo na
lareira é alegre e quente e provavelmente nã o foi feito para aquecer
sapatos de ferro ou ferver sopa humana. O lugar todo me lembra muito
a cabana de Zellandine, só que um pouco mais vazia e mais nova.
Eu diria que fiz uma curva errada em nenhum lugar se nã o fosse por
Eva. A rainha – minha rainha – está sentada a uma mesinha, brincando
com algo brilhante.
Eu faço um som pequeno e embaraçoso no fundo da minha garganta,
quase um gemido; ela olha para cima.
E ela está bem. Um pouco cansada, talvez, mas nã o atormentada ou
apavorada. Há uma crosta vermelha ao redor de uma narina, mas
nenhum ferimento mortal. Ela ainda está vestindo sua camisola branca,
suja com a sujeira da prisã o, mas há uma capa simples sobre seus
ombros agora. Seus pés estã o descalços no chã o, a pele lisa e ilesa.
Um lado de sua boca se inclina. Há uma luz em seus olhos que nã o
chega a ser um brilho perverso.
— Ora, Lady Zinnia — ela fala lentamente. — Você veio me resgatar?
— Eu… — Eu olho ao redor da sala, que persiste em ser quase
agressivamente nã o ameaçadora. — Isso foi muito mais legal na minha
cabeça. Por que você nã o precisa de resgate? Lembro-me, muito
distantemente, de desejar que mais princesas se resgatassem. — A
ú ltima coisa que vi foram os caçadores vindo atrá s de você, por conta
de como você assassinou seu monarca imortal.
— Sim, bem, você saiu antes que ficasse interessante.
Ela diz isso com um piscar de olhos astuto, mas outro quilo de culpa
se instala em meu estô mago. Estou surpresa que haja espaço, neste
momento.
— Eu nã o queria. — Eu me obrigo a encontrar seus olhos. — Sair,
quero dizer.
Eva dá de ombros, performaticamente descuidada. — Por que nã o?
Eu teria.
— Mas tipo, você nã o fez. Você poderia, mas escolheu ficar. — O que
significa que um vilã o real de um livro de histó rias tem mais fibra moral
do que eu, aparentemente. — De qualquer forma, Charm me puxou pelo
espelho. Eu nã o teria deixado você lá , juro.
Eva desvia o olhar e diz baixinho:
— Eu sei. — Ela olha para trá s. — Talvez seja por isso que eu fiquei.
— A intensidade do contato visual apó s essa declaraçã o me faz pensar
que ela nã o me odeia nem um pouco, na verdade, e se o multiverso
parasse de quebrar e as pessoas parassem de nos atacar por um
minuto, poderíamos fazer muito melhor do que alguns apressados,
beijos desajeitados.
— Aqui, sente-se. — Eva gesticula para uma segunda cadeira. Ela nã o
está corando, mas sua garganta está mais rosada do que eu me lembro.
— Se você tivesse ficado mais trinta segundos ou mais, teria visto Red e
seu povo invadir o pá tio, jogar a coroa de Branca de Neve no fogo e
declarar a gloriosa revoluçã o.
Pisco algumas vezes. Nã o tenho certeza se alguma versã o de Branca
de Neve termina com uma revolta antimonarquista.
— Tá brincando?
— Nã o. Aparentemente, seus pais tinham uma posiçã o elevada no
movimento revolucioná rio, e Red os convenceu a acelerar seus planos
em nosso nome. — O sorriso de Eva é pequeno e irô nico. — Nunca me
ocorreu que a pessoa que você salvou poderia salvá -la por sua vez.
Talvez a sobrevivência seja menos solitá ria do que eu pensava.
Eu penso em Charm e Prim, que me salvaram, que ainda esperam que
eu fique por aqui e cumpra minha metade do acordo.
— Essa tem sido minha experiência, sim. — Minha voz soa grossa em
meus ouvidos.
— Eu acredito que eles vã o coroar Red como sua nova rainha em
breve. Quero dizer, ouvi uma discussã o muito densa sobre a monarquia
como uma posiçã o simbó lica em vez de política, e algo sobre um corpo
de representantes eleitos, o que parece um tanto confuso, mas… — Eva
dá de ombros — … Acho que chega perto. A menina inocente está
sentada em seu trono, a bruxa malvada está morta.
— Ela está ? Morta, quero dizer.
Eva olha para o meu rosto e depois se afasta rapidamente.
— Nã o — ela diz suavemente. — Nã o sei como a histó ria dela vai
terminar, ou se a redençã o é possível para uma criatura como aquela,
mas eu... pedi que ela fosse poupada. Eles vã o construir uma tumba de
vidro para ela para que quem quiser possa ver a prova de sua derrota. E
certifique-se de que ela ainda durma.
Tenho vontade de estender a mã o por cima da mesa e colocar minha
mã o sobre a dela, que esmago antes de lembrar que nã o sou mais uma
garota moribunda ou uma heroína. Eu coloco minha mã o sobre a dela.
— Entã o, como você veio parar aqui? Onde quer que seja.
A mã o de Eva vira a palma para cima sob a minha. Seu pescoço agora
é um tom definitivo de coral.
— Achei que nã o deveria demorar muito no castelo. Red e seus pais
pareciam gratos, mas seus amigos nã o pareciam gostar muito de bruxas
ou rainhas, entã o eu saí. E encontrei uma casinha esperando por mim
na floresta, como sempre há . — Seu sorriso desta vez parece trabalho
duro. — Entã o suponho que vou apodrecer em uma pequena cabana,
afinal. É melhor do que ser torturado até a morte.
Posso ouvir o compromisso em sua voz, o mesmo acordo medíocre
que fiz em meu pró prio mundo. Ela nã o está morta, mas ainda sem
nome e impotente, ainda presa à margem de uma histó ria que nã o lhe
pertence. Nã o é um final feliz, mas ela nã o é a personagem principal.
Encontro-me procurando desesperadamente por alternativas. Uma
voz que se parece muito com a do meu terapeuta diz: Barganhando de
novo? Eu ignoro.
— E se… talvez você pudesse... — Meus olhos caem para a mesa, onde
ela arrumou um quebra-cabeça brilhante de cacos de espelho. Ela os
encaixou cuidadosamente de volta na moldura de prata surrada, com
uma ú nica lacuna deixada para uma peça que faltava. — Você poderia
voltar para o meu mundo. Comigo. O espelho ainda funciona...
Os dedos de Eva apertam os meus, mas sua voz é melancó lica.
— E quem eu seria no seu mundo?
— Eu nã o sei, ninguém em particular, eu acho?
— Aqui eu esperava ser alguém, um dia. Isso nã o é bobo?
Eu quero sacudi-la.
— Eu nã o quis dizer literalmente ninguém, apenas tipo, nã o má gico
ou real ou o que seja. Você poderia ser uma química ou uma adivinha ou
algo assim, qualquer coisa que você quisesse. Eu ajudaria.
Ela suspira de um jeito que me lembra fortemente a Dra. Bastille.
— Eu sei. Obrigada. — Ela desliza sua mã o suavemente para longe da
minha. — Mas eu ouvi o que Zellandine disse a você. Nã o posso ir com
você e você nã o pode ficar aqui sem causar grandes danos. — Sua voz
diminui. — Nã o podemos continuar fugindo de nossas histó rias para
sempre.
— Nã o. — Nã o sei se concordo ou discordo dela. Meus lá bios estã o
dormentes.
Eva se levanta lentamente da mesa e pega um livro na estante. A capa
é de pano vermelho gasto, com uma mancha arroxeada no verso.
— Isso estava aqui quando eu cheguei, de alguma forma. Pertence ao
seu mundo, suponho. — Ela tenta dizer isso casualmente, mas vejo
como seu polegar se move ao longo da lombada.
Pego o livro com uma sensaçã o de profunda irrealidade, folheando as
pá ginas porque é isso que você faz quando alguém lhe entrega um livro
e você nã o sabe o que dizer. A arte de Rackham flutua como sombras
emaranhadas: galhos e vestidos de baile, torres e espinhos, dezenas de
contos sombrios contados tantas vezes que se tornaram realidade.
Penso na Dra. Bastille dizendo asperamente: A existência de qualquer
história implica a existência de um contador de histórias. Acho que deve
ter havido uma primeira vez que cada uma dessas histó rias foi contada,
em algum lugar no passado, séculos antes dos Grimms tentarem lucrar
com elas. Provavelmente era apenas uma pessoa comum sussurrando
através de uma fogueira ou esculpindo figuras em ossos de baleia ou
espalhando lama nas paredes de uma caverna, chamando casualmente
a existência de um novo universo.
Ocorre-me com uma onda repentina e ligeiramente histérica de
esperança que eu sou uma pessoa bastante comum, eu mesma. Que a
ú nica coisa que me impede de escrever uma nova histó ria é o fato de eu
ser ruim nisso e abandonar minha aula de redaçã o criativa depois de
três semanas, em vez de sofrer um B +. Eu me sentia constrangida e
estú pida toda vez que me sentava para escrever, muito consciente de
que estava apenas inventando coisas. Mas talvez toda histó ria seja uma
mentira até que nã o seja; talvez nã o seja eu quem tenha que contar, de
qualquer maneira.
— Você tem uma caneta? — Minha voz soa completamente normal,
como se meu pulso nã o estivesse acelerado na minha garganta, como se
todo o meu coraçã o nã o estivesse descansando no sucesso ou fracasso
desse plano extremamente incompleto.
Eva mostra uma pena aparada e um pote de tinta, olhando para mim
como se estivesse levemente preocupada com a minha estabilidade
mental. Eu me viro para o final do livro, depois do posfá cio e da nota do
editor sobre o tipo de letra, depois da videira final de Rackham. Há três
pá ginas extras no final, totalmente em branco.
Coloco a pena na pá gina e escrevo: Era uma vez...
E eu juro, o universo escuta. Sinto-o como uma vibraçã o silenciosa
nas solas dos meus pés, o dedilhar de uma corda vasta demais para ser
ouvida. As janelas chacoalham em seus caixilhos.
Acrescento mais uma ou duas frases desajeitadas sobre uma princesa
que se tornou uma rainha que se tornou uma vilã e depois,
eventualmente, uma heroína. Giro o livro de frente para Eva e o deslizo
sobre a mesa.
— Sua vez.
Ela lê a pá gina e seu rosto fica tenso e imó vel. Um mú sculo se move
em sua mandíbula.
— Nã o sei o que acontece a seguir.
Eu giro a pena.
— É a sua histó ria. Você me diz.
Nã o sei dizer se ela entende o que estou tentando fazer ou se acha
que tudo isso é algum tipo de exercício de terapia fú til, mas quando ela
pega a caneta, sua mã o está tremendo. Ela fica sentada por um tempo,
rolando a pena na ponta dos dedos e olhando para a pá gina com uma
leve carranca, antes de começar a escrever.
Leva muito mais tempo do que eu esperava. Eva faz uma pausa apó s
cada frase para fazer um pouco mais olhando e franzindo a testa. Ela
apaga pará grafos inteiros e os recomeça, muitas vezes vá rias vezes
seguidas. A certa altura, ela realmente faz um movimento como se fosse
enrolar a pá gina e jogá -la fora como um romancista em um filme ruim,
antes de aparentemente se lembrar de que está escrevendo meu livro
favorito da infâ ncia. Ela se restringe a riscar outro pará grafo.
Eu a observo, ouvindo o som que realmente nã o consigo ouvir,
esperando por um futuro que ainda nã o existe.
A noite caiu quando ela terminou. Ela nã o abaixa a caneta em triunfo
nem nada, mas sei que a histó ria acabou porque sinto isso. O zumbido
para. O ar muda. É como se alguém tivesse aberto uma porta invisível e
deixado entrar uma brisa que cheira a geada e maçã s frescas.
Eva dá um pequeno suspiro e sai da pá gina.
— Parece bom — eu digo por cima do ombro dela, e a rainha se
assusta tanto que ela engasga. Aparentemente, ela nã o tinha notado que
eu me levantei, procurando velas, perguntando três ou quatro vezes se
ela estava com fome e finalmente desistindo e ficando atrá s dela. Eu
dou um tapa forte nas costas dela. — Precisa de um título, no entanto.
Quando Eva para de tossir, ela volta ao início de sua histó ria e passa o
dedo pelo espaço vazio acima das palavras era uma vez.
— Nã o sei como chamar isso. — Sua voz é rouca e baixa. — Eu nunca
fiz isso antes.
Eu arrasto minha cadeira ao redor da mesa para que eu possa sentar
no canto dela.
— Bem, a decisã o é sua, mas os Grimm geralmente batizam suas
histó rias com o nome do protagonista.
Ela continua ao meu lado. Apenas seus olhos se movem, encontrando
os meus. Garanto a mim mesma que sã o apenas as velas que as fazem
parecer assim, brilhantes e acesas. Os olhos de ninguém estã o cheios de
luz literal; o olhar de ninguém realmente arde.
Ela escreve um nome sem falar.
Eu li a palavra, fingindo nã o notar o par de lá grimas aquosas
borrando a pá gina ao lado dela.
— Você sabe que eu estava apenas brincando quando te chamei
assim. Você pode escolher o nome que quiser.
— Eu sei. — Seu tom poderia ser imperioso, se nã o houvesse
lá grimas nele. — Como sabemos se... funcionou?
Eu nã o respondo. Eu deslizo o ú ltimo caco de espelho pela mesa,
aquele que Prim arrancou do meu cabelo, e o encaixo perfeitamente na
moldura. Nossos rostos nos olham da superfície, com fissuras e
rachaduras, mas exatamente como somos: uma mulher magra e de
queixo pontudo em uma camiseta suja e uma rainha dura e faminta com
um nú mero surpreendente de sardas.
A ú nica diferença é o que está atrá s de nó s. Nã o há paredes caídas no
espelho. Está distante e borrado, mas acho que vejo uma paisagem rica
e ondulada, uma forma de pedra que pode ser um castelo. Uma nova
histó ria, desenrolando-se à nossa volta em todas as direçõ es.
Pego a mã o de Eva e a coloco delicadamente na superfície do espelho.
Seus dedos atravessam o vidro como se fosse uma janela aberta.
Ela nã o me arrasta para o espaço entre os mundos desta vez. Ela olha
para mim com uma pergunta em seus olhos, e eu dou de ombros.
— Mais uma vez nã o pode doer, pode?
Eva sorri. Caímos juntas no vasto nada, onde meu corpo imaginá rio
luta por um ar que nã o existe, onde a ú nica coisa real é o calor da mã o
dela apertada na minha.
11
ESTE É , DEPENDENDO de como você conta, meu quadragésimo nono
ou quinquagésimo felizes para sempre, mas nã o me importo. Acontece
que ainda nã o estou farta deles.
Nã o deveria ser dia por horas, mas de alguma forma chegamos
naquele momento perfeito logo apó s o amanhecer, quando o ar se
afasta do horizonte e deixa a grama alta baixa. A luz do sol transforma a
geada em orvalho e o orvalho em névoa, que se enrola como um gato
em nossas saias. Há á rvores nos cercando novamente, mas elas nã o sã o
escuras ou emaranhadas. Eles ficam em linhas longas e organizadas,
seus galhos se espalhando baixo. Um pomar, ao amanhecer.
Eva está girando em um círculo lento e cauteloso, como se esperasse
que alguém saltasse de trá s de uma á rvore e gritasse:
— Peguem-na! — Ninguém faz. Em vez disso, a névoa se abre para
revelar um castelo de pedra pá lida em uma colina distante. Nã o é muito
grande ou grandioso; em termos de castelo, pode até ser chamado de
modesto e há uma mesquinhez nele que sugere salõ es vazios e lugares
nã o reclamados. Tronos. Mas é o suficiente para Eva, posso dizer. Sua
boca se abre quando ela olha para ele.
Um trono pró prio. Um felizes para sempre digno de uma rainha.
Tenho que me lembrar com força de que nã o sou uma rainha ou mesmo
uma princesa, e esta histó ria nã o me pertence.
Espero que Eva vá direto para o castelo, mas ela se vira para mim. Seu
sorriso é largo e jovem, quase vertiginoso. Nã o há velas convenientes
para culpar pelo brilho de seus olhos.
— É melhor do que eu imaginava.
Eu agarro meus pró prios cotovelos para nã o fazer nada estú pido,
como me jogar em cima dela.
— Sim, nã o é ruim. — Leva um momento para desgrudar minha
língua do céu da boca. — Combina com você.
Um pouco de cautela rasteja de volta em seu rosto. Seu tom se torna
arrogante, como acontece quando ela está incerta.
— Você acha que pode servir para você também?
— Quero dizer, claro. — Acho mais fá cil falar com ela se fechar os
olhos. — Mas você sabe que nã o posso ficar.
— Por causa do mal que causaria ao universo. — Há uma quantidade
lisonjeira de tristeza em sua voz.
— Sim, e porque Charm iria me matar. — E Prim esconderia o corpo,
e meus pais testemunhariam no tribunal que eu merecia isso. —
Existem essas pessoas, no meu mundo, que precisam de mim.
— Ainda bancando a heroína. — Uma nota de amargura desta vez.
— Nã o, eu preciso delas também. É só ... elas sã o a minha histó ria. E
nã o posso continuar fugindo delas. — Reú no coragem suficiente para
abrir os olhos e encontrar Eva olhando para mim com o que quer que
seja o oposto de pena — admiraçã o, talvez, ou compaixã o. Eu cavo
meus dedos em meus cotovelos.
— Entã o, de qualquer maneira. Aproveite o seu felizes para sempre.
Seus lá bios se curvam em uma expressã o triste demais para ser
chamada de sorriso.
— Sabe, acho que nã o acredito nisso.
Eu levanto minhas sobrancelhas para a perfeiçã o bucó lica que nos
cerca, uma pintura de Cézanne ganhando vida.
— Poderia ter me enganado.
Eva se aproxima um passo e me entrega o livro de contos de fadas de
capa vermelha.
— A ú ltima linha foi a mais difícil de acertar. Tentei escrevê-la da
maneira usual, mas me deu arrepios. Parecia uma promessa que nã o
poderia ser cumprida, uma histó ria que nã o poderia terminar.
Eu viro para a ú ltima pá gina do meu livro, nã o mais em branco. A
mã o dela já deve ter parado de tremer, porque as ú ltimas três palavras
estã o firmes e suaves na pá gina: Ela viveu feliz. O período é um círculo
preto enfá tico.
E entã o estou à beira das lá grimas, repentina e embaraçosamente.
Talvez porque eu tenha passado muito tempo sem comer ou dormir e
meus nervos estã o à flor da pele. Talvez porque eu tenha me
apaixonado pela (antiga) vilã e nã o queira deixá -la. Talvez porque
nunca me ocorreu que bastasse viver, tã o feliz quanto possível, pelo
tempo que você tem.
Há mais manchas molhadas na pá gina agora, distorcendo a caligrafia
perfeita de Eva. Ela é gentil o suficiente para nã o mencionar isso.
Eu ouço o passo suave de seus pés descalços, entã o o farfalhar das
folhas, como se ela tivesse arrancado algo de um galho. Quando ela
volta, ela fica perto o suficiente para que eu possa ver a bainha de sua
camisola, as pontas dos pés manchadas de grama. Se eu tivesse
coragem de olhar para cima, seu rosto estaria a centímetros do meu. Eu
nã o olho para cima.
— Entã o. Eu ficarei, você irá para casa e nó s duas viveremos felizes.
— A voz de Eva é leve e fá cil. Eu aceno para o meu livro e choro um
pouco mais forte.
Ela pega minha mã o e a vira com a palma para cima. Ela coloca algo
liso e redondo nele: uma maçã . A pele é de um vermelho vítreo e
venenoso que só existe nos contos de fadas.
Minha risada é aquosa.
— Velhos há bitos, hein? — Eu esfrego meu rosto no meu pró prio
ombro. — Vou cair em uma morte adormecida sem fim se der uma
mordida?
A respiraçã o de Eva agita meu cabelo.
— Se você tivesse, eu conheço alguém que te beijaria de volta à vida.
Nisso, nossas duas histó rias concordam: uma garota em um sono
maldito é acordada por seu verdadeiro amor. É um estranho ponto de
convergência da trama, uma ressonâ ncia que me dá arrepios. Eu
escolho ignorá -lo; parece muito com esperança.
Em vez disso, olho para Eva e levo a maçã aos lá bios. Ela observa
meus dentes se abrirem na pele e seus olhos se arregalam e escurecem
de repente, como se ela tivesse acabado de resolver uma equaçã o muito
complexa.
Eu gostaria de dizer algo sedutor e inteligente, o que talvez aumente
as chances dessa cena terminar com a gente se pegando, mas o que eu
digo é:
— Você sabe que nã o tem beijo na versã o dos Grimms, certo? Branca
de Neve vomita um pedaço de maçã .
Um dedo frio toca meu queixo, inclina minha cabeça para cima até
que eu esteja olhando diretamente para o cetim preto dos olhos de Eva.
— Esta é a minha histó ria, e vou contá -la como eu quiser. — Se
estivéssemos em um tipo de romance mais sexy, eu poderia chamar o
tom de sua voz de ronronar; Posso notar que o dedo dela ainda está
curvado sob meu queixo, que se eu ficasse na ponta dos pés nossos
lá bios se tocariam.
— Uh. — Eu engulo. A maçã está afiada na minha garganta. — Eu
realmente nã o tenho que sair neste segundo. Quero dizer, eu disse a
Prim que voltaria, e eu quis dizer isso, mas eu nã o dei a ela uma data e
hora específicas…
Nã o termino a frase, porque a rainha me beija e eu a beijo de volta.
Nem preciso ficar na ponta dos pés, porque ela se inclina para me
encontrar.
É tecnicamente nosso terceiro beijo, eu acho, mas os dois primeiros
mal contam. Eles foram conduzidos sob condiçõ es estressantes e
interrompidos por viagens pelo multiverso ou atentados contra nossas
vidas. Nada nos interrompe desta vez. Estamos na encruzilhada de
nossas histó rias, em um reino de dois, beijando-se na luz crescente de
um novo mundo. Fazemos muito mais do que nos beijar, na verdade,
mas isso é entre mim e a rainha.
Mais tarde – tipo, muito mais tarde, nã o que eu esteja me gabando –
deixamos o pomar e vagamos pelas colinas até o castelo. Nó s flutuamos
pelos corredores sem falar, nossas mã os entrelaçadas, nossos passos
lentos. Mas finalmente encontro uma escada que sobe em círculos e
uma sala redonda esperando no topo da torre mais alta.
Eva me beija mais uma vez, um breve calor contra minha bochecha.
— Obrigada — ela sussurra, e coloca algo redondo e macio em minha
mã o esquerda.
— Temos maçã s em Ohio, você sabe.
—Bom — diz ela. — Entã o você pode guardar esta para o final. — Ela
diz isso levemente, mas posso ver aquela vasta equaçã o em seus olhos
novamente. Acho que as rainhas má s nã o podem deixar de tramar.
Eva segura seu espelho má gico para me encarar. Eu apenas fico lá por
um minuto, olhando para ela, tentando me convencer de que isso é o
suficiente, que estou contente. Meu reflexo no espelho nã o o compra;
meu rosto está pá lido e afiado, fraturado pela dor.
Pelo menos desta vez, quando toco o espelho e caio no espaço entre
os mundos, nã o estou fugindo ou correndo para resgatar ninguém. Nã o
estou procurando um novo era uma vez ou esperando, secreta e
vergonhosamente, pelo meu felizes para sempre. Desta vez, estou
apenas tentando viver. Alegremente.
★★★
ABRO OS OLHOS quando meus pés tocam o azulejo frio. Estou no
minú sculo banheiro de Charm e Prim, olhando para meu pró prio rosto
no espelho do armá rio de remédios. Posso ouvir pequenos sons
domésticos através da porta: o zumbido de um aspirador, o tilintar de
uma colher.
Ainda nã o consigo abrir a porta, entã o estudo a maçã em minha mã o.
É o mesmo vermelho liso e improvável, mas este nã o é imaculado.
Parece que alguém enfiou a unha na pele, repetidas vezes, escrevendo
uma mensagem na carne branca:
MORDA-ME
Eu sorrio, um pouco dolorosamente, e entã o a voz de Eva ecoa em
meu crâ nio: Eu conheço alguém que te beijaria de volta à vida, e até o
fim. Eu paro de sorrir. Meu batimento cardíaco parece irregular, muito
distante. Eu me pergunto, distantemente, por que estou tã o surpresa.
Quando você salva alguém, à s vezes eles salvam você de volta.
Nã o sei se realmente funcionaria. Nã o sei se Eva esperaria tanto por
mim, ou se seu beijo poderia me curar, ou se quebraríamos
irrevogavelmente as regras do universo. Mas que regras estaríamos
quebrando, realmente? Uma garota infeliz cai em um sono terrível; seu
verdadeiro amor a acorda. Aquele pedaço da trama poderia pertencer a
qualquer um de nó s, nã o poderia? Parece uma brecha, um có digo de
trapaça, uma chance. Parece esperança.
Minha histó ria ainda vai acabar – toda histó ria acaba –, mas nã o sei
mais quando, nem como, nem onde. Tudo o que sei com certeza é o que
acontece a seguir, e acho que é o suficiente para mim.
Coloco a maçã com cuidado na beirada da pia e limpo a garganta.
— Ei, uh, pessoal?
O vá cuo fica em silêncio. Segue-se uma conversa abafada ("Quem
diabos era?" "Parecia que…" "Vou esfolá- la.").
Eu levanto minha voz, sorrindo para meu pró prio rosto no espelho.
— Estou em casa.
AGRADECIMENTOS
Perdi meio dia tentando criar um paralelo torturante de Branca de Neve
para esses agradecimentos (Talvez minha equipe de publicaçã o
pudesse ser comparada a sete anõ es salva-vidas? Eu poderia fazer
alguma coisa com a parte do espelho má gico?), mas falhei muito, entã o
tudo o que tenho a oferecer é esta humilde lista e muita gratidã o. Esta
histó ria deve sua vida a:
Minha agente, Kate McKean, que simplesmente nã o desiste.
Meus editores, Jonathan Strahan e Carl Engle-Laird, que confiam em
mim e duvidam de mim precisamente nos graus certos.
Meu artista da capa, David Curtis, e toda a equipe da Tordotcom, que
nã o precisou se esforçar tanto, mas o fez mesmo assim. Agradecimentos
especiais a Irene Gallo, Greg Collins, Christine Foltzer, Matt Rusin, Oliver
Dougherty, Isa Caban, Giselle Gonzalez, Megan Barnard, Eileen
Lawrence, Amanda Melfi, Dakota Griffin, Jim Kapp, Sarah Reidy, Lauren
Hougen, Rebecca Naimon, Michelle Li , Kyle Avery e todos do Tor
Ad/Promo.
A experiência de JD Myall, que me salvou de mim mesmo, e a visã o
atenciosa, paciente e generosa de EJ Beaton, HG Parry, Shannon
Chakraborty, Rowenna Miller e o restante do abençoado bunker.
Os amigos que nos acompanharam durante os primeiros anos desta
década francamente miserável, que nos prepararam um brunch e
tomaram conta das crianças e deixaram Gatorade na varanda da frente
quando ficamos doentes.
Meus irmã os, Eli e Larkin, que forneceram os memes e as noites de
cinema.
Meus filhos, que fornecem o caos, e Nick, que fornece a ordem – e o
humor, a comida e a mú sica, que é a medula da minha vida, o calor no
centro de tudo e quem é – enquanto digito isso – persuadir uma criança
de três anos a sair do armá rio da cozinha.
SOBRE A AUTORA
Ex-acadêmica e adjunta, ALIX E. HARROW é agora uma escritora em
tempo integral que mora na Virgínia com o marido e seus filhos semi-
selvagens. Em 2019, ganhou o Prêmio Hugo por seu conto de ficçã o e
publicou seu primeiro romance, The Ten Thousand Doors of January
Notas
[←1]
Designação dada a várias plantas arbustivas da família das ericáceas,
geralmente do gênero Erica.
[←2]
Agency é usado na ficção para descrever a habilidade de um personagem de ter ações
que afetam eventos na própria história.