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Ronald Robson - Contra A Vida Intelectual

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Jenifer Luara
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
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Contra a vida intelectual:

ou iniciação à cultura
Ronald Robson
1ª edição — maio de 2024 — CEDET
Copyright © Ronald Robson 2024
Reservados todos os direitos desta obra.
Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou
mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão expressa do editor.
Editor:
Felipe Denardi
Preparação de texto:
Danilo Carandina
Revisão:
Vitório Armelin
Capa:
José Luiz Gozzo Sobrinho
Diagramação:
Maurício Amaral
Revisão de provas:
Lidiane F. Gozzo
Victor Figueiredo
Os direitos desta edição pertencem ao
CEDET — Centro de Desenvolvimento Pro ssional e Tecnológico
Rua Armando Strazzacappa, 490
CEP: 13087-605 — Campinas, SP
Telefone: (19) 3249-0580
E-mail: [email protected]
CEDET LLC is licensee for publishing and sale of the electronic edition of this book
CEDET LLC
1808 REGAL RIVER CIR - OCOEE - FLORIDA - 34761
Phone Number: (407) 745-1558
e-mail: [email protected]
Conselho editorial:
Adelice Godoy
César Kyn d’Ávila
Silvio Grimaldo de Camargo

      ()


Robson, Ronald.
Contra a vida intelectual: ou iniciação à cultura /
Ronald Robson –
Campinas, SP: Kírion, 2024.
ISBN: 978-85-94090-49-2
1. Sociologia do conhecimento 2. Educação 3. Aconselhamento pessoal
I. Autor II. Título
CDD — 306-42 / 370 / 371-46

   


1. Sociologia do conhecimento – 306-42
2. Educação – 370
3. Aconselhamento pessoal – 371-46
Sumário
P    

P I: V   


Um novo modismo na cultura brasileira
Abaixo o neopentecostalismo intelectual
Didatismo kitsch, ou nas origens de um problema que poderia ter sido uma solução
A ética do egoísmo bené co
P II: A       
Ainda a teologia da prosperidade intelectual
Por que humilhar seguidores traz mais seguidores?
Cátedra virtual vs. cátedra digital
Viver de digital e o Risco-Brasil do qi
O coach e o fracasso da classe média
O juízo nal da cultura coach
A derradeira morte da metafísica
Cultura e propaganda
A última fronteira do marketing digital

P III: F , ..,   


O trabalho criador
Make it new
Cultura é algo que você faz
Aprender & ensinar & criar
Qual o problema fundamental da educação?

P IV: S 


Erudição não é sabedoria, mas...
Vida intelectual e vida esquisita
Universidade: cursar ou não cursar
Quando algo faz sentido21
Antes do imaginário, eduque o ouvido
Elogio da ambiguidade
Abandone seu lugar de fala
Lugar de fala e lugar de autoridade
Instinto quixotesco
Sobre ter certezas
Encontrar-se perdido

P V: L  


A covardia das letras
Uma outra vida
A secreta aspiração humana
O verdadeiro mal-estar da civilização
Despreocupação
A fascinação do difícil
Contra a idolatria do poeta
Mitologia pessoal como nova glori cação do poeta
Defesa da poesia impura
Docere cum delectare
Elogio da força física
Do corpo. A fatalidade da metafísica
Artes marciais
O visto e o tocado
Verso livre é ilusão tipográ ca
O dilema de Mishima
Narrativa e redenção
Oração
O Diabo
Fausto
O último enigma

N  R
Ao leitor ainda capaz de desesperar-se.
Alguém poderia pensar que esta insistência na espontaneidade, esta
preferência por ela, exclui a educação ou a relega a um posto secundário.
Creio, ao contrário, que a exige: é preciso educar a espontaneidade. Esta
se nutre de experiências, imaginações, ensaios, explorações do
desconhecido. Ora, a espontaneidade que não é educada é pobre e, pior,
paradoxalmente pouco livre, limitada pela herança, não só biológica, mas
sobretudo social. Entendo a educação como cultivo e incremento da
espontaneidade.”
— Julián Marías
Prólogo a um pan eto fragmentário

E ste livrinho é um pan eto, e por tão frágil compleição talvez não tenha
maior vida que os males que aponta, descreve e vitupera.

A rigor sequer é livro, pois surge do arranjo impremeditado de intervenções


minhas em redes sociais e blogs, às quais agora, irmanando-as a textos
inéditos, dou fecho para remediar um pouco de sua triste orfandade. Não que
não haja unidade entre os movimentos de ataque e defesa, avanço e recuo
registrados aqui. Há, sim. Como há unidade no objeto em que mira e, quero
eu, acerta.

Esse objeto é esquivo, contudo. Não é visível para a maior parte dos
brasileiros, e repare que ao dizê-lo me restrinjo aos brasileiros interessados na
discussão de ideias. É esquivo porém existente e perfeitamente identi cável: a
voga online de educação (ou autoeducação), que permitiu a disseminação da
posição política de direita, acabou por acrescentar novos males aos já
conhecidos malefícios da educação o cial brasileira e dos meios culturais de
prestígio dominados pela esquerda. Entre esses novos males se contam a
confusão de educação com doutrinação conservadora, autoridade intelectual
com riqueza nanceira, e a substituição da produção cultural autêntica pela
louvaminhice dos “clássicos”, da “vida intelectual”, das “virtudes”, e por aí vai,
tudo conjugado aos mais antigos — e aos mais novos, porque algorítmicos —
meios de autopromoção e promoção mútua de uma súcia de empreendedores
virtuais.

Ora, eu mesmo sou um empreendedor virtual. Não levanto o dedo em riste,


mas levanto os olhos e descrevo o que vejo ao meu redor.

Na tentativa de descrever o fenômeno, cerquei-o por uns tantos lados, como


quem à cata de uma galinha ora aparteia sua fuga por este anco, ora por
aquele, não saindo da refrega no galinheiro sem uns tantos arranhões e umas
réstias de cocô nas mãos. Para isso fui cunhando termos, uns mais previsíveis
(“vida intelectual como fetiche”), outros um pouco menos (“teologia da
prosperidade intelectual”, “neopentecostalismo intelectual”, “didatismo
kitsch”), à maneira de saltos desajeitados sobre a arredia ave, que permaneceu
brava, mas se deixou tocar pelo menos por algumas de suas penas. Com esta
publicação abandono o galináceo e lavo minhas mãos. Não as lavo como
Pilatos, homem mais matreiro que eu. Lavo-as como os mendigos que se
asseiam em fontes públicas, deixando à vista de todos uma porcaria que não
era só deles, mas do pó deste mundo, mundo que é um pouquinho de todos
nós.

Este ensaísmo de intervenção, com munição losó ca ligeira, prodigalizada à


queima-roupa, e retiradas estratégicas em diferentes frentes de ação, justi ca-
se menos pelo objeto de seu ataque do que por aquilo que preserva, exercita e
desenvolve: daí a iniciação à cultura a que alude o subtítulo. A cultura de que
falo não é, claro, aquela massa amorfa que interessa aos antropólogos
(qualquer documento da vida humana), nem a mera superestrutura simbólica
contra a qual os marxistas voltam as armas da crítica, nem tampouco a Kultur
dos humanistas alemães, com seu modelo formativo de homem livre. Ainda
que esta última noção esteja parcialmente pressuposta em minhas re exões (a
cultura como cultivo do que em nós é humano), insisto na verdade em seu
aspecto técnico, produtivo, artesanal. Cultura é pois aqui ars, tekhné, coisa de
espírito que age criando.

Criadores criam, faladores desconversam.

***

À frente o leitor encontrará cinco seções de textos. A  , “Vida intelectual


como fetiche”, oferece o pano de fundo das demais e deve ser mesmo lida antes
delas. “As armas do marketing & o público acuado” lida mais diretamente com
o fenômeno do marketing digital; a  , em contraponto a essa
pedagogia de fancaria, tenta sinalizar o que seria uma vida cultural mais livre e
criativa, ao passo que a   aponta algumas das “Saudáveis aporias” com
que irá se deparar quem hoje no Brasil se expuser aos riscos do espírito.

A  , a mais extensa e importante, abandona o ataque direto e, agora


pressupondo no leitor um grau um pouco mais elevado de consciência e
vigilância de si, passa ao trato particular de algumas di culdades inerentes à
criação de algo singular, único, autêntico. O chamado do mal é muitas vezes
aliciante, assim como são aliciantes a autoidolatria e autoindulgência a que os
poetas em particular e os artistas em geral se entregam com tanta facilidade.
Ofereço, lá, uma “Literatura para covardes”. A ambiguidade é intencional e
produtiva. Por um lado a rmo que em toda atividade literária há um elemento
de covardia e capitulação — e nesse sentido a literatura, toda ela, é literatura
para covardes. Por outro lado a rmo alguma bravura ou tenacidade a ser
conquistada por todo verdadeiro criador, na redação de poemas e romances
como em tudo mais — e nesse sentido a literatura vadia e deambulatória de
meu ensaísmo será literatura para covardes à revelia de sua covardia, pedra de
tropeço para aqueles que ainda temem o prazer das palavras e não se arriscam
ao livre jogo delas. Lá se verá que aqueles que se permitem sofrer uma
in uência mais profunda da cultura também necessitam vigiar-se para não
baratear o Espírito. Acossa-os os mesmos problemas que acossam o
aventureiro de marketing digital, só que num nível mais sutil e elevado de
criação.

Nenhum texto da parte  deve ser interpretado isoladamente. Assim, é de se


esperar que o leitor tolere a possível extravagância de algumas a rmações
particulares.

***

Ao abranger num olhar único os textos curtos e vários que compõem este
volume, assumo a temeridade de sugerir um baixo contínuo a soar sob suas
notas mais salientes: a conquista da naturalidade. A incompreensão ou
misti cação da vida intelectual que ataco é, se tomada por essa mirada, uma
crise de inconsciência, uma incapacidade crônica de sequer aspirar à
naturalidade, à espontaneidade educada. Está em jogo, como se vê, o problema
da genuína personalidade, ainda que bem lá no fundo — o problema de ser
incontroversamente quem se é. Paro, contudo, a poucos metros do frágil
biombo de enganos que encerra esse problema. Prometo não me aventurar até
lá, pois já nos bastou a caixa de Pandora. Orgulhosamente evito teorizar com
espírito de sistema, e a menção feita aos desa os de consecução da
naturalidade e de construção de uma personalidade autêntica objetiva apenas
instigar a atenção de quem me lê, a m de que assim me leia melhor. A
unidade deste livro depende, em uma medida bem além da usual, da
inteligência do leitor, a quem não peço boa vontade, mas do qual cobro
incômodo.

***
Não posso concluir este prólogo, que eu queria fosse bem combativo mas nem
está soando tanto assim, parece, sem dizer palavra sobre um livro célebre.

Como a rmo num dos textos, Olavo de Carvalho está na fonte de muitos
esforços educacionais independentes em ambiente online. Uns poucos desses
esforços, dirigidos por alunos seus, são respeitáveis. A maior parte, todavia,
prendeu-se a uma leitura desvirtuadíssima, por mais virtuosa que se pretenda,
do clássico livro de Pe. Antonin-Gilbert Sertillanges, A vida intelectual (1921).
Olavo a rmou que esse livro “decidiu o curso da minha vocação”. E é certo que
a reminiscência viva dessa leitura informou as suas iniciativas pedagógicas
desde a década de 1980.

Que posso dizer do livro de Pe. Sertillanges? Tenho de primeiro observar que
comentá-lo é atividade muito acima daquela a que me entrego neste
volumezinho. A distância que o separa dos cursos de “vida intelectual” e
congêneres, hoje muito comuns, é a mesma que vai entre uma gravura de
Dürer e sua cópia executada por mim. Meu juízo, de todo modo, é que esse
livro se torna útil para quem já se aplica a tarefas intelectuais, para quem já
adquiriu o hábito de satisfazer suas curiosidades, que na verdade não serão
vãs, antes necessárias. Será útil a quem chegou a se arriscar à criação de algo,
portanto. Essa pessoa poderá então ampliar sua margem de ação e alcançar
maior conhecimento e domínio de si.

Ao só aspirante a estudioso, artista, cientista, lósofo, o texto de Pe.


Sertillanges poderá engendrar vícios, à maneira de um livro de receitas de bolo
que fosse consultado pormenorizadamente por quem só conhecesse doces
através de imagens em livros, nunca os tendo provado. Por isso, em “O
trabalho criador”, o único texto em que invoco diretamente esse famoso
manual, chamo atenção para um aspecto pouco prezado dele, o qual, se bem
meditado, poupará ao iniciante equívocos e mal-entendidos.

***

Este livro vai para a estante dos volumes cujos autores teriam preferido não
escrevê-los. Se alguém porventura encontrar nestas poucas páginas
oportunidade para meditar de forma menos ligeira sobre a nalidade da
educação e da criação intelectual, ou para avaliar o quanto se deixou levar
pelos imperativos do momento e, assim, reconsiderar a possibilidade de uma
experiência mais original de sua própria capacidade de conhecer, o autor não
só se dará por satisfeito como também beberá doze latinhas de cerveja
profundamente comovido pelo sentimento de que a vida vale a pena, é bela,
graças a Deus.

São Luís,
nov. 2023–fev. 2024.
P I: V  

“Nada mais apreciável do que um bom livro de crítica. O seu autor,
colocando-se acima de todas as considerações que fazem o espírito de
roda, só olha ao mérito real, e com uma justa e acertada censura
proclama os talentos de uns, confunde a mediocridade de outros, corrige
erros que não foram notados, descobre belezas que a outros escaparam,
faz calar a opinião de tantos que se zeram juízes, sem o poderem ser, e
desmascara a petulante coterie, que se serve de meios industriosos para
dar celebridade a quem não a merece [...].”
— Frederico José Corrêa, Um livro de crítica (1878)
Um novo modismo na cultura brasileira
1. Macaqueação deslumbrada

N o mercado digital da nova direita brasileira, um dos infoprodutos de


maior rotatividade é a vida intelectual.

Talvez jamais se tenha visto tanta gente desprovida de realizações intelectuais


ensinar como se alcança alguma realização intelectual.

Na verdade, “realização intelectual” — isto é, obra, isto é: ensaio, poema,


pintura, composição musical, lme — passa ao largo da discussão. Isso é lá
coisa de “escritor”, de “artista”, de cabeludo que fala de Godard. Aqui estamos
discutindo Sto. Tomás e o que os grandes livros podem ensinar, pois diante da
vida intelectual os objetos intelectuais propriamente ditos só têm função
ancilar, são pretexto.

Incensar a vida de estudos, na mesma medida em que se é incapaz de fazer


sequer uma observação original, oportuna, sobre um poema ou lme, mostra
bem a natureza de fetiche que a vida intelectual assumiu nesse meio. O que
deveria ser o exercício acidentado e divertido de uma vocação se tornou
matéria de receituário, de lista tacanha de leituras (Chesterton e C. S. Lewis,
jamais Rimbaud ou Cortázar), de clube do livro do Bem, de aquisição de
trejeitos que identi quem essa espécie de novo rico da cultura.

O que digo parecerá estranho a muitos. Via de regra, a esquer da acusa a


nova direita de ser chucra, inculta, selvagem. Imagina que ela não leia, não se
interesse por assuntos elevados. Para o esquerdista médio, portanto, seria um
choque descobrir que existe toda uma indústria educacional de direita, que,
nada tendo a ver com faculdades privadas (mais amigas, aliás, dos burocratas
paulofreirianos do ), anda de braços dados com empresas de marketing
digital e mobiliza milhões de seguidores no Instagram e milhões de reais em
contas bancárias.
São incontáveis os cursos online, as “mentorias”, os clubes do livro, as
comunidades no Telegram, que adaptam para a vida de estudos o que antes se
praticava no âmbito da educação nanceira, da autoajuda, do treinamento
físico, da terapia de casais.

Esse boom educacional, essa ubíqua exortação ao autodidatismo, seria coisa


a comemorar, penso eu, não fosse o fato de que plataformas como a do
Seminário de Filoso a,1 a do poeta João Filho2 ou a de Rafael Falcón3 sejam
exceções, pela sua excelência, perante a completa miséria e petulância de
outros supostos educadores e supostos educandos. Assistam no YouTube a
vídeos de Guilherme Freire falando de vida intelectual, se suportarem, e
atestarão: no Brasil de hoje, ingressa-se na vida intelectual mais ou menos
como quem começa a torcer para um novo time de futebol, vestindo sua
camisa, decorando seu hino e apregoando aos quatro ventos a sua grandeza.

Esta é mais uma moda que se abate sobre nós, que somos historicamente tão
suscetíveis a modismos. Assim como o “ecletismo” de Victor Cousin pôde ser
moda no Brasil do século  ou o estruturalismo nas universidades brasileiras
de 1980, ou a ideologia da “identidade nacional” na Era Vargas, de igual modo
certa imagem embasbacada de vida intelectual começa a ser moda nas redes
sociais brasileiras nesta década de 2020. E, se é moda no meio virtual, é moda
no Brasil real.

Assisto a casos curiosos. Antes, a direita fazia chacota do doutor em loso a


que, só por isso, se intitulava lósofo. Hoje, o jovem de direita faz uma
graduação  em História, publica dois artigos em blog, proclama-se
historiador e dá cursos online.

A universidade superinstitucionalizada tem os seus ritos de sacrifício do


talento no altar da “seriedade”. A cultura antiuniversitária nem precisou se
institucionalizar para chegar a resultados análogos.

Esse pesadelo — do qual os mais talentosos necessariamente irão acordar


uma hora, da mesma forma como antes muitos despertaram de certas modas
acadêmicas — originou-se da incompreensão de algumas ideias de Olavo de
Carvalho, que por volta de 1987 começou a dar um curso — ou alguns cursos
— a que chamou “Introdução à Vida Intelectual”. Mas a distância que vai entre
esse curso e o que muitos dos seus alunos, leitores e desafetos praticam hoje é a
mesma que medeia entre o esforço desembaraçado e genuíno e a macaqueação
deslumbrada e listeia.
2. De problema losó co a mistifório

Só se estuda loso a com proveito depois que se tem matéria acerca da qual
losofar.

Se você viveu um monte de tranqueira, leu um monte de livros de história e


cção, compreendeu algo do meio político em que se encontra, talvez esteja
apto a tomar uma página de Platão como algo mais que “alta cultura”. A
loso a implica um debruçar-se sobre o conjunto dos saberes disponíveis.
Contudo, ela própria se torna historicamente um desses saberes e objeto de
meditação losó ca: meta loso a.

O velho curso “Introdução à Vida Intelectual” de Olavo de Carvalho —


remoto embrião do muito popular Curso Online de Filoso a () que
manteve de 2009 até sua morte, em 2022 — reproduz algo desse trajeto.4 Dele
se irradiariam concentricamente temas caros ao lósofo: caracterologia,
tipologia do discurso, métodos de pesquisa nas Humanidades, hermenêutica.
Mais ainda, grande parte dos esforços dele se concentraria em averiguar qual a
especi cidade da “vida humana”, com uma compreensível ênfase na natureza
da atividade cognitiva e na vocação de determinadas pessoas, os intelectuais,
em especial os lósofos. Olavo conta que o fez inspirado no conhecido livro do
Pe. Sertillanges, A vida intelectual, que, de título desconhecido e estranho à
intelectualidade brasileira (à qual repele a intensa introspecção desse ensaio),
tornou-se pièce de résistance no catálogo de várias editoras.5

Assim, como as investigações particulares passassem a orbitar em torno da


viga mestra da própria ideia de loso a, os alunos de Olavo se tornavam
lósofos em potencial à medida que viam um lósofo meditando ao vivo sobre
a natureza da atividade losó ca.6 O tema “vida intelectual” surgiu para Olavo,
portanto, como um problema losó co, primeiramente vital, a que dedicaria
estudos especializados, cursos e livros.

Desgraçadamente, muita gente ignora todo esse trajeto — em especial a


relação entre investigações particulares e investigação meta losó ca — e se
atém à sua superfície autoindulgente: prega-se a vida intelectual como uma
bandeira nobre e salvacionista, supostamente contrária à barbárie circundante,
acima da qual o pregador se posta.
Bastaria que alguém lhe sugerisse que muito marxista tem uma experiência
mais concreta dessa vida intelectual sem sentir a mais mínima vontade de
louvá-la para que se instaurasse o escândalo. Mas é a pura verdade.

3. Alta cultura a baixa altitude

Mais de uma vez, ao reagir, desesperado, à falsi cação pela qual a vida
intelectual vem passando no Brasil (de um lado premida pela politização da
esquerda, de outro pelo moralismo da nova direita), ouvi de pessoas
inteligentes e de boa vontade que, pelo menos entre a população conservadora,
o caso não era para tanta preocupação. Ora, se antes o brasileiro só discutia o
último episódio da novela das sete ou o jogo de futebol do último domingo,
não se deveria comemorar que ele agora se aplique com idêntico fervor a
criticar a esquerda, a assistir a especiais de Natal da Brasil Paralelo e a comprar
livros que lhe deem um vislumbre do que seja uma legítima vida intelectual?

É tentador responder que sim; posso dizê-lo com desembaraço, até porque já
pensei da mesmíssima maneira. Ter acompanhado a produção da nova direita
(valha a palavra, “produção”, à falta de outra melhor) nas redes sociais entre
2021 e 2023 me fez rever essa posição. É preciso corrigir a ótica pela qual
enxergamos o fenômeno: não é que a classe média conservadora esteja se
elevando às altitudes excelsas da alta cultura; é a alta cultura que está sendo
insidiosa e venalmente trazida à baixa altitude dos interesses, vícios e
banalidades que permeiam a vida de nossa classe média mal-educada.

No máximo, o que as classes com um poder aquisitivo mínimo têm


recuperado no Brasil é o caráter cosmético da educação. Gravar vídeos para as
redes sociais com uma vistosa estante de livros ao fundo se tornou questão de
etiqueta. Não que um cenário agradável, inspirador, não seja recomendável à
veiculação de determinadas mensagens. Mas quando isso se torna um preceito
tácito, quando os livros nessas estantes não diferem muito entre um canal e
outro do YouTube (sempre livros novos, das mesmas editoras, jamais velhos
alfarrábios, tranqueira caçada em sebos por leitor inveterado), é porque se
tornaram apenas parte da perfumaria que acompanha um estranho novo
propósito: não pesquisar algum fato, não criar algum artefato estético, mas,
sim, passar uma imagem de pessoa que fala com autoridade porque se
interessa pelos assuntos certos.
A alta cultura, expressão com que muitos enchem a boca para assim pairar
sobre a miséria mental brasileira, sofre nas mãos desses novos señoritos
satisfechos.

4. Educação não é manual de conduta

Como evitar que a “vida intelectual” se torne um fetiche?7

Não tenho nenhum grande preceito, mas posso dar um depoimento. Ainda
que eu não seja o melhor dos exemplos, sei que a trajetória de quase todas as
pessoas que hoje vivem de escrever não diferiu muito da minha quanto ao
seguinte.

Um dia, caiu-me à mão Borges oral (1979). As conferências de Jorge Luis


Borges reunidas nesse livrinho descortinavam um horizonte colossal em
comparação com minha vida de adolescente de pouquíssimas leituras. Cada
livro leva a muitos outros livros, e isso se aplica especialmente ao caso de
Borges. Agora queria ler o Swedenborg a que dedica um capítulo. Queria ler a
penca de autores que cita ao tratar pseudo loso camente dos temas do tempo
e da imortalidade.

Depois, passando ao volume Sete noites (1980), quis compreender mais a


fundo o budismo, tema de um capítulo, como o eram também As mil e uma
noites. O relato de como aprendeu italiano lendo todo dia uma edição bilíngue
da Divina comédia no bonde, a caminho da biblioteca onde trabalhava, me foi
um grande estímulo.

Assim, livro remetendo a livro, fui indo, e bem ou mal aqui estou. Não z
inauguração de vida intelectual, não tracei um grande plano para me tornar
um sábio. Na verdade, se algum empombado viesse me falar de vida
intelectual, o provável era que risse com deboche na cara dele. Vaza daqui,
otário!

Não teria sido a reação mais recomendável, mas ela exprimiria uma saudável
aversão a qualquer engessamento do gosto, da curiosidade, qualquer tentação
de substituir o prazer de um parágrafo de Borges por uma homilia sobre a
profunda lição moral de sei lá o quê. Pode ser que exista algum Grande Atlas
do Espírito pelo qual devamos nos guiar, mas cada um de nós no máximo
enxergará fragmentos dele. Quem proclama possuí-lo, a ponto de até vendê-lo
online, não passa de um picareta.
Cultivo até hoje — sempre cultivarei — a ojeriza daquele rapazola que fui a
qualquer tentativa de transformar a educação em manual de conduta. Quer
queira quer não, assim faz toda pessoa para a qual o termo “vida intelectual”
designe algo mais que um fetiche.
Abaixo o neopentecostalismo intelectual

E ntre as mensagens que me chegaram ao longo dos últimos anos pedindo


auxílio em matéria de estudos, uma quantidade signi cativa trazia a seguinte
frase: “Estou iniciando a vida intelectual”. Da primeira vez, achei apenas
cômico. Da segunda, achei uma estranhíssima coincidência. Mas as
ocorrências posteriores deixaram claro que se tratava já de uma expressão
corrente. Há muitas pessoas hoje, no Brasil, querendo “iniciar a vida
intelectual”.

Adler ou Dostoiévski?

Por volta dos meus 18 anos, desejei muito ler, como quem esperasse apossar-se
da chave de São Pedro que daqui da terra lhe abriria portas em uma realidade
mais elevada, o tão citado How to Read a Book (1940), de Mortimer Adler.

Finalmente o livro foi reeditado no Brasil, lá por 2012, coisa assim. Abri-o
em uma livraria, atravessei umas tantas páginas. Parecia meio cacete, e o que
havia de mais aproveitável ali era coisa que eu já descobrira naturalmente em
minha vida de leitor. A parte mais metódica, com diferentes técnicas de leitura
de um livro, achei impraticável como procedimento consciente. Imaginei o que
seria uma pessoa inveterada na aplicação de Como ler livros a livros; concebi a
imagem mais acabada do leitor fútil. Mas me ative a outra constatação: este
livro tem, vamos dizer, umas 600 e tantas páginas; é mais ou menos a extensão
de O adolescente de Dostoiévski, mas nunca li O adolescente; ora: mas é claro
que não empregarei nesse livro o tempo que poderia empregar em O
adolescente.

Devolvi o título de Adler à prateleira da livraria e esqueci que existia.

Até que vieram desgraçadamente me relembrar de sua existência.

‘Como ler livros’ antes de ler livros


Sirva de resumo: o problema da pessoa que quer “ini ciar a vida intelectual” é
que ela jamais lerá O adolescente antes de ter se “preparado” para tal, pois
acredita que antes de ler livros é preciso ter lido Como ler livros.

Neopentecostalismo intelectual

Há casos mais graves. Não raro, a pessoa interessada em ser intelectual tem
sérias de ciências no uso da língua. Cada linha, um erro de gramática. É óbvio
que essa pessoa não precisa de vida intelectual. Precisa de gramática de ensino
básico. E ela própria às vezes tem noção dessa sua carência elementar;
contudo, pensa que irá supri-la especulando sobre o Bem e a Verdade, como se
com todas as suas limitações fosse capaz de entender algo do Bem e da
Verdade.

Isso compõe uma espécie de neopentecostalismo intelectual. Os leitores


protestantes me perdoarão o emprego algo frouxo do termo, mas é proposital.
Os sintomas de neopentecostalismo intelectual serão tanto mais intensos
quanto maiores forem as de ciências da educação do indivíduo que se
reconheceu pecador em matéria de cultura. Ele não buscará compensar suas
falhas pelo caminho simples e natural do esforço de aprender, com gosto,
aquilo que não sabe. Buscará compensá-las através de um fervor, de uma
exaltação de fé nas realidades mais altas de que está apartado. Para ele o Bem e
a Verdade estão longe, muito longe, mas o culto que lhes dedica, crê
implicitamente o aspirante neopentecostal a intelectual, basta por si só para
afastá-lo um pouco da realidade decaída em que vive.

Não sabe que assim não está se afastando da realidade decaída em que vive.
Está se afastando apenas de si mesmo e inviabilizando toda e qualquer
possibilidade de deparar-se angustiosamente com o fato de que o Bem e a
Verdade, antes de se mostrarem belos, manifestam-se como uma autoacusação
da consciência que não mais suporta a ideia de viver qualquer mentira.

O novo (não) escritor sem público

Um dos problemas mais mencionados em manuais de história da literatura


brasileira quando tratam do período prévio a 1800 é a existência de escritores
sem público. Praticamente só os escritores se liam entre si, com raras exceções.
Hoje temos o problema ainda mais curioso dos aspirantes a intelectuais que
não criam produto intelectual algum e só se reconhecem entre si, enquanto
intelectuais, na medida em que partilhem relatos sobre “como iniciei minha
vida intelectual”.

Teologia da prosperidade intelectual

O espiritualismo rastaquera me leva a cunhar outro termo de teor religioso:


teologia da prosperidade intelectual. Muita gente foi levada a crer que, se você
for alguém que se dedica profundamente aos estudos, também terá dinheiro
no bolso. Muito dinheiro, entenda-se. Você terá 200 mil seguidores no
Instagram e ocasionalmente contará a uma gente entre assustada e devota
como veio a ser essa pessoa absolutamente completa, pujante, desenvolta,
“madura”.

Enquanto isso, viver lascado continuará a ser a regra entre os que produzem
a cultura que os listeus usam para adornar suas pessoinhas esfuziantes.

Escola de ressentimento

Entendo que parte do problema está no vácuo da educação escolar. A


educação escolar, no Brasil, a rigor não existe mais; o cidadão médio sai da
escola sabendo quase nada do que poderia lhe garantir algum acesso a
Machado de Assis ou Heitor Villa-Lobos. Mas ele encontra, por outro lado,
uma mancheia de slogans culturais que o farão expressar com algum conforto
o ressentimento de ter sido privado de algo que, suspeita, teria algum valor.
Ambiciona a “vida intelectual” mais ou menos do mesmo modo como
ambiciona se mudar para uma casa melhor, com jacuzzi, com área gourmet.
Algo disso reverbera o vício brasileiro de aliar cultura a dinheiro, aliar alta
cultura a elite no sentido econômico.

Por não querer ser apenas um liso, o ressentido de classe média decide
tornar-se intelectual e “formar” o seu “imaginário”, outra tendência dominante
de certo utilitarismo pedagógico, em matéria de literatura, que segue bem de
perto essa nova teologia da prosperidade.8

“Cave onde você está”


Sinto especial di culdade em expressar o que seria uma relação natural e
frutífera com os livros, as artes, a loso a. É um tipo de relação para mim
reconhecível com clareza até em pessoas cujas opiniões considero sandice.
Como chamar a atenção do aspirante a intelectual para isso? Como lhe dizer
que deve esquecer os encômios da vida do espírito e se esforçar para aprender
uma língua estrangeira, corrigir seus erros de redação, conhecer um pouco de
história da arte? Como fazê-lo entender que deve se ocupar daquilo que
verdadeiramente lhe agrada, chama sua atenção, o a ige, e não daquilo que
esteja num receituário do que é bom, moral e apropriado a um prudente
homem de bem?

Olavo de Carvalho lembrava um conselho de Jean Guitton, “Cave onde você


está”, para ensinar que a vida do espírito começa no local onde você se
encontra.9 Não ca numa alta esfera a que temos de nos elevar; ca aqui, onde
estamos agora. O universo cultural existe para darmos conta do que somos e
de onde vivemos, do que nos atinge e do que nos importa.

O que dá pujança a uma cultura nacional, ou à cultura de um indivíduo, é o


quanto nela há de amor, de interesse real por determinadas coisas, e não o
quanto foi capaz de se adequar a certa ideia do que seja cultura. A ideia de
cultura passa a prevalecer nos momentos culturalmente mais pobres, em
virtude de um paradoxo antropológico fundamental: só somos capazes de
re etir acerca de determinadas experiências quando elas já não são
automáticas para nós, quando deixam de ser naturais; e, na medida em que
percebemos esse fato, sentimos a nostalgia da naturalidade, uma ânsia de
esquecimento, de regresso a um momento prévio ao recuo re exivo posto em
marcha pelo processo civilizacional.10 Em momentos de crise, à falta de
verdadeiros intelectuais, falamos muito de intelectualidade.

Pois então:

Talvez eu não devesse me importar muito com um modismo. Talvez seja o


caso de que 80% dessas pessoas irão uma hora esquecer a vida intelectual, mais
ou menos como esqueceram os shows de rock que frequentavam antes de
cortar o cabelo e fazer um concurso público. E talvez as demais a superem em
um sentido mais saudável, deixando de mão quaisquer preocupações com
serem ou não intelectuais, ocupando-se verdadeiramente de ser alguém, de
recorrer à cultura em busca de elementos para o seu enriquecimento pessoal.
Enriquecimento pessoal não é outra coisa senão o alargamento dos meios de
fazer-se um indivíduo sólido, que sofre a cada mentira que conta para si
mesmo.

Talvez.

Mas acho muito arriscado fazer essa aposta. É melhor bater na impostura,
tripudiar dos acionistas dessa loucura, que prosperam nos nichos online
superpovoados de pessoas emocionalmente inseguras e pouco educadas. A
educação delas deveria começar por reconduzi-las a si próprias, fazendo-as ver
que a busca de conhecimento não se coaduna com nenhuma posição so cial
clara, nenhuma autoimagem reconfortante, menos ainda uma imagem de rede
social.
Didatismo kitsch, ou nas origens de um
problema que poderia ter sido uma solução

P ara uma parcela bem pequena de jovens brasileiros, especialmente os mais


ativos nas redes sociais, “educação clássica”, “trivium”, “escolástica” e coisas
similares tornaram-se menos objeto de discussão que de veneração em termos
de paideia e ideal, o que, em um primeiro momento, não é coisa em si mesma
ruim. Creio que o fenômeno mereça atenção e que se engana quem menoscaba
essas coisas, julgando-as passatempos de moleques que nunca chegarão a ter
maior repercussão: a nal, essas aspirações e referências já chegaram a receber
até divulgação jornalística. Que há de mais nisso, a nal?

Conheço pessoalmente não uma nem duas, mas várias pessoas que passam o
dia a recolher bibliogra as, a cantar para si mesmas as glórias da erudição e da
sabedoria, a entreter sonhos de uma obra intelectual, de um destino pessoal na
cultura, e que assim se tornam letárgicas e não passam à ação efetiva, a qual
não necessariamente as tornaria gênios, mas pessoas minimamente dignas da
imagem pela qual zelam. Isso ocorre porque há pessoas demais que já não
sabem para que serve a cultura e que, todavia, buscam se adequar a uma
imagem edulcorada da “vida do espírito” — e o caminho mais curto é sempre
o da imitação de determinados trejeitos e interesses. No caso, determinados
elementos colhidos em períodos históricos pretéritos que, por petição de
princípio, tomamos logo como indubitavelmente bons e universalmente
inspiradores — impulso esse no qual sobra apologética, falta dialética.

Há, portanto, muita gente desorientada (“o que devo ler?”) a buscar
orientação — o que é bom; mas há muita gente a se regozijar com a
consciência de sua desorientação (“o Brasil acabou, preciso voltar para a Idade
Média”), o que acaba subvertendo aquele primeiro e saudável impulso.

Sob esse aspecto, pouco há de novo na situação atual do Brasil: nós sempre
fomos carentes de um senso de orientação cultural capaz de estabelecer uma
tradição de ensino e erudição, com uma pedagogia apropriada e modelos
especí cos de homem bem-formado. Só o que deixou de existir foi o espaço
antes garantido (em jornais, por exemplo) a intelectuais que, pela sua
competência, de um modo ou outro acabavam funcionando como ímãs
sociais, como mínimo norte de uma bússola cultural constantemente
desorientada. Mas essa desorientação é que é a regra (à qual se soma hoje um
negativismo que vê no denuncismo da decadência uma das mais altas
nalidades da cultura). Tanto é assim, que esse espaço antes assegurado a
intelectuais o era quase que só aos tipos “letrados”, nem sempre dos mais bem
equipados para oferecer esse tipo de discernimento; lósofos, sociólogos e
cientistas, por exemplo, sempre correram por fora.

Séculos atrás, recebemos a aridez do ensino inaciano, sem maior capacidade


de disseminação social (um ensino de elite para um país sem elites na acepção
forte da palavra); pouco depois, aclimatamo-nos à matematização à francesa e
ao seu modelo positivista, no qual ainda se enxertava a “retórica” como estudo
mais ou menos reverencial das “belas letras”, e por isso mesmo irrelevante;
quando do surgimento de nossas maiores universidades, incorporamos o
modelo departamental americano, e com ele o seu carreirismo. E hoje, quando
vez ou outra professores universitários demonstram sua insatisfação diante dos
frutos desses modelos, quando surge uma geração motivada a fazer alguma
coisa, apenas reeditamos nosso atavismo histórico, que embeleza o que nos é
alheio só porque soa distante, aéreo, empíreo. No cerne desse esforço há
dessarte uma tendência à kitschização da alta cultura: achamos o trivium algo
bacana do mesmo modo como achamos a mitologia hindu algo bacana. E
apenas bacana, assim, nesse clima meio esportivo.

Pergunto: quantos dos intelectuais mais relevantes do século passado, em


escala global, foram educados tendo por base um método extraído
diretamente da Antiguidade ou da Idade Média? O leitor talvez possa citar um
caso ou outro, mas creio que buscará seus exemplos entre os intelectuais
menos representativos. Com essa ilustração, creio chegar ao cerne do
problema: a qualidade de um projeto pedagógico está em determinados
valores e métodos que não necessariamente têm algo que ver com modelos que
se mostraram e cientes no passado; têm a ver com o sentido por trás desses
valores e métodos, o qual, talvez permanente, pode ser atualizado em
contextos sociais e históricos os mais díspares, porque naturalmente mutáveis.
Uma atualização de sucesso foi a que se fez na Alemanha dos séculos  e
: classicismo e romantismo não foram movimentos literários apenas, mas
concepções inteiras de cultura que surgiram, se complexi caram e duelaram
como projetos para a nação no momento mesmo de estabelecimento da
universidade alemã. Por sinal, havia “um consenso universal entre os eruditos
alemães posteriores a 1890 de que a ideia germânica moderna de universidade
e de educação estava irrevogavelmente atada a suas origens intelectuais no
idealismo e no neo-humanismo alemães”, mas esse próprio “consenso”
abrigava divergências feias, como mostra Fritz Ringer em seu estudo clássico
da elite universitária alemã11 — fato que deveria nos fazer muito meditar.

Em síntese, a 1) tendência a introjetar uma série de posturas desprovidas de


articulação mais re nada frente à nossa situação concreta, aos nossos
problemas pedagógicos e civilizacionais, 2) a ausência de discussão da suposta
validade intrínseca dessas posturas (sejam métodos propriamente ou não), 3) a
letargia advinda de um estetismo da alta cultura, que se compraz mais no
encômio do que na prática, e 4) a própria indiferença pela análise do problema
da adequação entre o sentido da cultura e a transitoriedade das conjunturas
levam-nos, mais uma vez, a trair qualquer compromisso sério que queiramos
estabelecer com a nossa situação e seus verdadeiros anseios. Simplesmente
alongaremos nossa antitradição de didatismo kitsch, a não ser que comecemos
desde logo a submeter todas essas aspirações a alguma crítica.

Ou procedemos a essa crítica civilizacional ou nunca haverá possibilidade de


fazermos frente ao problema cujo símbolo mais surreal são os 40% de
analfabetos funcionais em bancos de nossas universidades. Só quando
deixarmos claro o que deu errado no ensino e na cultura do Brasil, e com que
régua medimos o grau de acerto ou erro, é que seremos capazes de avaliar se as
próprias réguas com que nos medimos, novas ou velhas, não estão elas
próprias adulteradas. Ou se não precisam ser adulteradas.
A ética do egoísmo bené co

H á um paralelismo entre a Teologia da Prosperidade Intelectual da nova


direita e o pragmatismo que levou a esquerda a acabar com a educação
brasileira.

De meio século para cá, a esquerda se viu na contingência de utilizar duas


ordens de argumento para dar alguma respeitabilidade a seus intentos
educacionais. A primeira: que a educação era uma ferramenta de
transformação social, de ampliação de renda. Com as presidências de
Fernando Henrique Cardoso (1995–2002) essa visão se tornou o combustível
da ampliação de acesso ao ensino superior. Os dois primeiros governos Lula
(2003–2010) colaboraram com a expansão das faculdades privadas e dos
cursos de ensino a distância. Sob Dilma Rousseff (2011–2016) viu-se a
abertura de institutos federais a torto e a direito e a distribuição irracional de
bolsas de estudo para graduandos passearem no estrangeiro.

O incremento do acesso ao ensino superior, sob a batuta de pedagogos e


burocratas de esquerda, obedeceu a um regime estritamente administrativo e
econômico não só quanto a seus ns, mas também quanto a seus meios. A
educação foi tornada nada mais que um instrumento para diminuir as
desigualdades sociais; a gerência pública da sociedade como um todo era e é o
m principal.

Muito previsivelmente, a educação se tornou um negócio interesseiro no


Brasil. E, de quebra, logo surgiu a ideia de que talvez as pessoas não lerão
Drummond, mas pelo menos terão um título universitário e estarão no
mercado de trabalho. (Estarão mesmo? Sabemos que não.) O cinismo
militante coroou com as rosas da indiferença a submissão da educação
brasileira ao arbítrio de empresários inescrupulosos, políticos arrivistas e
ativistas profundamente políticos.

A segunda ordem de argumento empregada pela esquerda na justi cação de


suas intervenções na educação veio como uma ampliação da primeira. Antes,
não seria de bom tom falar mal de Monteiro Lobato ou de Herman Melville:
mesmo a pessoa que visse com antipatia o “racismo” daquele primeiro e o
“imperialismo” deste último guardaria os seus juízos para um segundo plano;
ao primeiro plano, aquele pertinente ao trato com as coisas literárias, caberia a
excelência criativa de ambos os escritores, diante da qual o militante recuava.
Esse mesmo militante, a nal, obedecia à ordem de prioridades: “Vamos tirar a
pessoa da miséria e depois ela terá dinheiro para comprar livros e ir ao teatro”.
Se não falava nada a favor de autores como Lobato e Melville, pelo menos não
falava contra.

Ora, ocorre que a pobreza — descobre o intelectual de esquerda — é só um


aspecto, e até menor, do problema. A pobreza é uma diferença. O pobre é um
diferente desprezado por sua diferença econômica. Mas existem também as
diferenças de sexo, de orientação sexual, de cor de pele etc.

A esquerda precisava tomar alguma medida, e a medida é essa a que hoje


assistimos: acaba-se com qualquer ideal de educação, autores canônicos como
Shakespeare e Machado de Assis vão para o paredão do cancelamento e
promove-se apenas uma conduta civil típica, segundo a cartilha do
progressismo. Todas as escolas se tornam escolas cívicas, responsáveis por
formar o cidadão que “vota com consciência”, como se o indivíduo assim
formado tivesse maior acuidade analítica do aquele capaz de perceber as
nezas do estilo de Machado.

Tudo isso é uma desgraça, mas pelo menos ainda tem o mérito de uma
relativa visão comunitária, altruísta, ainda que apenas em sua forma. Eis que
hoje nossos intelectuais de bolso, na direita, desprezam justamente esse
altruísmo formal (no que até poderiam estar cheios de razão) e buscam uma
oposição de 180 graus a esse cenário que descrevi de forma panorâmica. De
caso pensado ou não, adotam uma ética do egoísmo bené co, que reza mais ou
menos por esta ladainha: “Esqueça essa besteira de fazer o bem à sua
comunidade, ao Brasil, ao mundo. Faça o seu, garanta o feijão da sua família.
Se todo mundo pensar assim, as coisas irão melhorar”.

Essa ideia remonta pelo menos à Fábula das abelhas (1723), de Bernard
Mandeville, mas tenho a impressão de que a absorvemos via Estados Unidos,
via uma baixa ética à la Ayn Rand. A cooperação entre os membros de uma
sociedade, assim, seria um efeito colateral da tentativa de cada um realizar
aquilo que é de seu estrito interesse. No campo da educação, ainda que essa
percepção não seja expressa com todas as letras, ela se faz promover por meio
da crença de que a busca exclusiva da Verdade transcende quaisquer entraves
sociais e dota o indivíduo não das ideias civis corretas, não dos preceitos de
transformação revolucionária do mundo, mas das ferramentas e da postura de
quem será capaz de “vencer na vida”.

Em matéria de educação, a esquerda brasileira num primeiro momento se


guiou por uma ideologia de transformação social e depois por uma ideologia
de transformação da própria natureza da humanidade, a negar quaisquer
conceitos de “homem”, “mulher” ou “criança”. A nova direita brasileira, por sua
vez, guia-se por uma Teologia da Prosperidade Intelectual que só reconhece da
boca para fora os valores perenes da cultura, uma vez que só lhe importam
efetivamente os valores pecuniários da incultura necessária à manutenção de
uma boa imagem virtual. O jovem de esquerda quer “um mundo melhor”; o
jovem de direita quer “ser alguém na vida”. Entre um e outro, a educação passa
à míngua.

Entendo o que haja de promoção de uma postura ativa, não acomodada


perante o Estado, num lema cafona como “Minha pátria é minha família”. Mas
sei aonde isso nos levará, pois é visível aonde já nos trouxe. Vemos esses jovens
zumbi cados que falam em construir um mundo melhor com uma fusão de
Anitta e Vladimir Safatle. Mas também vemos esses jovens zumbi cados que
falam em fazer o seu primeiro milhão enquanto postam foto de terço em cima
de livro.

Ainda está em tempo. Precisamos negar não só os preceitos educacionais da


esquerda e seu utilitarismo político. Precisamos negar também o utilitarismo
educacional de uma direita que investe tempo e dinheiro em “formações”
online que não formam ninguém, antes deformam os mais altos produtos da
cultura, tirando-os do reino do espírito e os transformando em ornamento de
personalidades tão verdadeiras quanto os estúdios muito bem planejados de
onde emitem as suas imbecilíssimas opiniões.

Aos professores e intelectuais que se viram enredados nesse meio, faço a


convocação: precisamos dar um passo atrás, de preferência até buscar outras
fontes de renda desligadas da docência online e do marketing digital, e ignorar
completamente os gurões que concorreram para esse estado de coisas.
Pensando bem, nem é tão difícil assim.
P II: A     
 
“A gente é insaciável, a gente quer vender mais. A gente é capitalista,
gosta mesmo de dinheiro para poder expandir, contratar mais gente,
chegar mais longe, fazer mais propaganda, mais anúncio para vocês não
poderem ouvir a voz de mais ninguém, ouvir só a nossa voz.”
— Italo Marsili

Dedico os textos desta seção às outras vozes.


Ainda a teologia da prosperidade intelectual

C hamo de Teologia da Prosperidade Intelectual a crença mais ou menos


implícita — mas às vezes até explícita — de que a leitura de livros, a compra de
cursos online e a dedicação a uma vida digital alinhada à alta cultura irão lhe
propiciar não só a salvação da sua alma, mas também a solvência de todas as
suas dívidas, com a possibilidade de passar férias em Cancún e casar com
alguma blogueirinha bonita.

A fé no “milênio”, na trans guração de todas as coisas deste mundo por uma


súbita efusão do Espírito, tem no mundo do marketing um modesto análogo
no indivíduo que acredita que, se seguir um passo a passo bem alinhadinho, se
não pisar muito longe da rota da prosperidade, irá se tornar capaz não de
escrever um bom ensaio sobre algum tema, não de produzir arte
minimamente interessante, mas pelo menos de convencer sua audiência de
que ele é um dos eleitos e de que possui o Grande Atlas do Espírito.

Porque, você sabe — não sabe? —, se você é pobre a culpa é sua, porque
todos esses livros ao seu redor deveriam automaticamente torná-lo rico não só
para os padrões espirituais de São Francisco de Assis, mas também para os
padrões materiais de Ícaro de Carvalho. Falar de Deus e falar de dinheiro, não
à toa, são coisas às vezes indistinguíveis em algumas paragens do Instagram, e
o protesto contra esse fato irá no máximo revelar o ressentimento e a
arrogância daquele que não partilha do pão da mesa dos ricos (já o digo como
uma prevenção irônica contra os que vierem me chamar de pobretão
rancoroso).

Não há nada de novo em car rico falando de pobre. Mas é coisa um


pouquinho nova falar de pobretões como Camões e Dante para provocar
medo e espanto em gente de pouquíssima cultura, que passa a achar que
emular esse comportamento lhe permitirá também um dia contar para outros
a sua história de sucesso, a sua teologia de bolso. E se ocultará sempre o fato
perturbador de que a alta cultura pode não só não lhe levar à riqueza e ao céu,
como pode levá-lo à pobreza e até mesmo ao inferno. Ou acha que La
Fontaine, cujas fábulas edi cantes você lê para seus lhos, foi um santinho?
Por que humilhar seguidores traz mais
seguidores?

P osso estar errado, mas parece que foi Italo Marsili quem popularizou no
Instagram a prática de humilhar seguidores. Você com certeza já viu o seguinte
procedimento: fulano abre caixa de pergunta, seguidor envia questionamento
um pouco estranho, descabido ou até inofensivo, e em resposta fulano escreve
textão dizendo o quanto aquele seu seguidor é imbecil e quão grande é a
distância que os separa. Haverá variações do procedimento, algumas até sutis
— só uma frase displicente de resposta com aquele fotão, ao fundo, de
in uencer bem-sucedido na praia ou academia —, mas o cerne é o mesmo.

Mais uma vez posso estar errado, mas parece que o fenômeno não se veri ca
com facilidade em outras paragens virtuais. É algo próprio ao contexto de
ensino, da educação a distância, e especí co do meio de católicos, de
conservadores, de gente insatisfeita com a pedagogia moderna (eu mesmo sou
tudo isso). Seria de se esperar que, contra a anomia social, contra a destruição
de qualquer escala de valores, zéssemos o el da balança pesar para o lado da
responsabilidade pessoal, da autoridade, da objetividade de atos e ideias. Só
não era de se esperar que isso pudesse tomar a forma caricata desses régulos de
stories. A gura do professor é sequestrada pela gura do mestre de
palmatória em riste, prestes a dar uma bordoada que trará engajamento.

Se eu fosse marxista, veria aí uma nova faceta da luta de classes. O mestre


vive de seu proletariado virtual. Vive de reforçar nele a crença de que só uns
pouquíssimos podem chegar à condição de capitalistas plenos. As redes sociais
propiciam essa dissonante fusão de uma imagem nostálgica de mestre
inalcançável e persona virtual ao alcance de uma mensagem direta: a
autoridade nos diz que está acima de todos, mas a rede social nos diz que
talvez possamos ser como ela.

Jamais aceite a ideia de que uma humilhação lhe é in igida para o seu bem.
A distância que ela assinala não é entre mestre e discípulo, mas entre
in uenciador e in uenciado num meio que tem muito pouco a ver com
educação. Só o algoritmo ganha com aquilo que você perde.
Cátedra virtual vs. cátedra digital

E stamos no Velho Oeste do mundo digital, o nicho de educação do


Instagram, e a vida não está fácil, você tem de se virar. Um dia as coisas
também não foram fáceis para a esquerda, décadas antes de as vacas
engordarem no Palácio do Planalto.

Ao longo do século , o intelectual de esquerda no Brasil se viu na


contingência de depender de favores, de viver da escrita jornalística, de fazer
um bico editorial aqui e ali, e de vez em quando acabar no xilindró ou
tomando um chá de exílio. Mas um dia o intelectual de esquerda resolveu ser
um professor universitário de esquerda, e descobriu que aquele insight
engenhoso de quatro parágrafos numa coluna de jornal poderia ser
transformado em graduação, mestrado, doutorado, pós-doutorado e livre-
docência.

Aquilo que Olavo de Carvalho chamou de “longa marcha da vaca para o


brejo”, em essência uma marcha para dentro do Estado, foi o meio encontrado
pela intelectualidade de esquerda para tornar-se autossu ciente. Foi algo quase
natural, espontâneo, só raras vezes feito de caso pensado e só tardiamente
gerido como estratégia política.

O aspirante a intelectual de direita hoje não sente essa opção como de


imediato viável. A cátedra universitária lhe parece distante, mas a cátedra
digital está aí para quem quiser. Contas precisam ser pagas, pessoas imploram
para ser educadas. Casa-se a necessidade com a oportunidade, surge até a
Teologia da Prosperidade Intelectual. Coisa boa aparecerá aqui e ali, é verdade,
mas a maioria dos teólogos sempre foi, é e será muito ruim.

A esquerda hoje discute um pouquinho se tornar-se tão dependente da


universidade não foi um tiro que começa a sair pela culatra: a inércia
institucional amorteceu o ímpeto criativo. De minha parte, recomendo à nova
direita que comece a discutir se tornar-se tão dependente da cátedra virtual
também não poderá conduzi-la a destino similar. A esquerda, que já esteve à
frente do processo cultural brasileiro (não só por pistolão, mas também por
reais méritos), esterilizou-se na cátedra universitária. Não corre a direita o
risco de se esterilizar na cátedra digital em tempo recorde, não por arapucas
alheias, mas por real falta de mérito?
Viver de digital e o Risco-Brasil do qi

“V iver de digital” atrai muita gente por parecer um meio de obter mais
liberdade. Eu mesmo já me peguei pensando coisas assim. A maioria dos
departamentos universitários de Humanas nos oferece uma morte lenta. Se os
professores de esquerda sempre perseguissem malvadamente os alunos de
direita, ou não tão de esquerda assim, talvez a vida universitária fosse mais
divertida. Mas não. Hoje o professor destrói seus alunos de maneira mais sutil
mas mais insidiosa: mata-os de tédio. (Esse foi um dos motivos pelos quais
optei por seguir tortuosamente pós-graduação na área de letras, não de
loso a, porque professor de loso a no Brasil em geral é muito...
professorzinho.)

Corta para o mundo digital: eis a liberdade para eu criar o que bem entender
e vender para quem bem quiser comprar. É verdade, mas também é mentira. O
cara na universidade morre de carência: quase ninguém (ou mesmo ninguém)
lhe cobra real qualidade, às vezes nem mesmo qualquer nível de
produtividade. O cara no mercado digital morre de excesso: vive de criar nos
outros a expectativa pelo infoproduto nal, aquele que se vacilar é até citado
no livro do Apocalipse.

Mas um infoproduto é substituído por outro, sua família já não frequenta os


mesmos lugares bacanas, e o esforço de pensar numa saída nanceira que seja
também estimulante do ponto de vista criativo, intelectual, pouco a pouco vai
cedendo espaço para uma postura mais cínica e mais e ciente na coleta de
likes.

E, se sopesarmos o que chamo de Risco-Brasil do  (o fato de que a leitura


de dois livros por ano já faz o cara sentir-se, com justiça, mais inteligente que
90% das pessoas ao seu redor), entenderemos como a soberba se torna o
combustível da fogueira das vaidades. Todos nós vivemos um pouquinho desse
risco. Não à toa, o estilo mais disseminado na nova direita, pelo menos na
parte menos tola, é o estelionato intelectual. A pessoa fala com um tom de
quem sabe muito, e aí quem sabe pouco acaba acreditando na pose. Não sou
tão velho, mas já vi muitos casos de gente de talento que emburreceu, crente de
sua inteligência, apenas porque era muito fácil estar acima de um meio
medíocre. Ver que os outros são uns bostas não signi ca necessariamente que
você também não seja um bosta.

Não existem soluções fáceis para o problema. Da mesma forma como,


idealmente, na cátedra digital cada um é livre para criar o que bem entender
(forjando, ao mesmo tempo, sua imagem, uma parte daquilo que quer ser ou
pelo menos parecer), também é fatal e necessariamente livre para inventar sua
própria solução para os impasses da cátedra digital. Seja ela qual for, tenho
certeza de que não prescindirá da sinceridade, esta que é o insumo mais
rentável e o mais difícil de ser transformado em produto.
O coach e o fracasso da classe média

A democracia moderna é a forma de governo que aspira a tornar a sociedade


uma grande classe média e colocá-la dentro de um shopping climatizado e
seguro. A classe média é o grupo de pessoas que atrasam faturas do cartão de
crédito, sentem-se vivas apenas nos ns de semana e reclamam da alta de
preço da mozarela. Se você reconhece nesse per l muitas das pessoas do seu
convívio, é porque você, como eu, pertence à classe média.

A classe média, contudo, é a classe menos livre. Se você é pobre, mas pobre
lascado mesmo, ninguém se importa se você faz gato de luz, água e internet.
Você está um pouco distante da justiça. Seu carro velho nunca viu um 
pago,  é uma piada, você está pronto para caminhar em qualquer rua
barra pesada da cidade às 2h da madrugada sem medo, porque esse é o seu
habitat natural.

O paupérrimo e o riquíssimo constituem os dois tipos sociais mais livres,


mais capazes de cruzar diversos meios sem se sentirem constrangidos. A
pessoa de classe média, não. Em geral, ela tem medo de se misturar com o rico
e cometer uma gafe, passar vergonha. Tem medo de se misturar com o pobre e
ser roubada. Seu espaço urbano e seu círculo de relações são deprimentes.

Temos hoje no Brasil dezenas de milhões de pessoas de classe média que se


acreditam capazes de ser o que quiserem. Claro, qualquer pessoa pode ser o
que quiser. Mas o discurso do “trabalhe para ser o que quiser, só depende de
você, faça o seu”, sem que se altere absolutamente nada das condições
concretas de vida, é o cerne da ideologia coach. Só existem coaches porque
existe classe média. Um rei e um feirante do século  não precisavam de
coaches. Eles sabiam o seu lugar, e sabiam que Napoleão seria um fenômeno
anômalo.

O indivíduo de classe média não sabe o seu lugar. Constrangido por leis e
mais leis, tem um horizonte de realizações possíveis reduzido; está habituado
ao fracasso, o qual recebe o nome ora de “realismo”, ora de “Estado”, ora de
“vontade de Deus”. E por isso mesmo ele acredita ter um Napoleãozinho
dentro de si. O coach aposta nesse Napoleãozinho.

O coach, mesmo o bom coach — o terapeuta das massas —, vive de uma


sociologia trágica.
O juízo nal da cultura coach

P elo menos desde o ensaio O narrador de Walter Benjamin tornou-se lugar-


comum a queixa de que a morte não tem, vamos dizer, vida social na
Modernidade. A morte é questão de saúde pública; não enterre seus mortos na
capela familiar; precisamos construir enormes cemitérios fora da cidade. Você
não vai morrer em casa, vai morrer entubado num hospital de referência. Não
dirá suas últimas palavras; em vez disso, ouviremos calados o Juízo Final do
médico plantonista.

Esse médico nal tem desde já sua forma provisória: o coach que lhe diz que
o fracasso nal ainda não chegou, você pode sair dessa fria, não é desta vez
que ela, a vida, acabará com você. Na cultura coach, não existe fracasso. Todo
revés é no máximo um descenso infernal passageiro em sua jornada do herói.
Mas veja: isso corresponde a uma segunda morte do narrador.

Quando jovens, certa dose de revolta contra a ideia de fracasso é


fundamental para que alcancemos algumas realizações que no mínimo
permitirão que sobrevivamos, mas talvez até nos conduzam a grandes feitos.
Você realmente precisa mandar a morte passear fora da cidade.

A velhice requer postura contrária. Você envelhece para um dia ser capaz de
contar os seus fracassos, com sinceridade para com o interlocutor e paciência
consigo próprio. Não existe nada mais que justi que a velhice, dê-lhe um real
sentido, senão isto: a admissão de que o fracasso, muitas vezes, é uma
realidade incontornável. Seu corpo é a prova disso. E mesmo o sucesso, na
esfera da produção intelectual e artística, nem sempre é algo bonito de se ver.
Você vai sucumbir, sim, à dipsomania mais extrema como Joseph Roth, na
esperança de antes escrever A marcha de Radetzky. E para muitos até essa
esperança será um luxo.

Não estou pregando o contentamento com o fracasso. Observo, apenas, que o


sucesso nem sempre depende de que “vençamos” — na verdade, nem mesmo
intelectualmente. Os pobres de espírito herdarão o Reino dos Céus.
A derradeira morte da metafísica

C atólico que sou, sei que foi a Igreja que criou o Estado laico, e que
laicidade não é ateísmo. Sei que o objetivo da cultura não é tornar você um
Fidei Defensor, mas um indivíduo de intransigência absoluta na defesa da
verdade daquelas percepções que não é capaz de esconder de si mesmo (assim
até um ateu terá vida interior rica). É por meio dessa defesa que o indivíduo
realiza moralmente, em si próprio, aquilo que é meta sicamente análogo ao
princípio de identidade. Enquanto você não se reconhecer incapaz de negar os
fatos de sua vida interior, não compreenderá o princípio de identidade. Esse é
o elo mais imediato entre moral e metafísica.

Nas redes sociais, é fácil esquecer isso. É fácil acreditar na verdade delivery.
A verdade delivery é aquela que já nos chega na embalagem de Grande Lição.
É fato que a educação supõe uma ética mínima de aprendizado, no sentido de
que a compreensão de algumas páginas de Aristóteles exige do leitor disciplina
moral (por exemplo, o cultivo da atenção e da maior valia da verdade sobre a
falsidade).

Mas a educação virtual, no meio da pretensa nova intelectualidade brasileira


(e é com ela que discuto, como antes intelectuais de esquerda brigavam dentro
do Partidão sem que alguém tivesse o cinismo de dizer calma, o inimigo na
verdade é o capitalismo — portanto, não digam que deveria me concentrar em
falar mal de Paulo Freire) — mas a educação virtual tem pressa e quer ir logo à
receita para o cultivo de almas nobres.

A metafísica vai se restringindo à moral, e esta ao moralismo exortatório, e já


não causa estranheza que um professor de loso a equipare uma live ao Livro
de Jó (o que de fato aconteceu). A nal, se é para conduzir o rebanho das boas
almas, tanto faz que um texto seja revelado ou que uma live seja gravada em
estúdio caro, com cenário planejado, bom gurino e jogo de câmera.

É uma desgraça que estejamos em vias de não compreender mais qualquer


criação do espírito que não possa de imediato ser traduzida para a linguagem
do marketing digital e do discurso coach. A metafísica sobreviveu a Kant,
Heidegger e Quine, mas nada garante que sobreviverá a mais alguns stories.
Cultura e propaganda

A mplia-se, hoje, a di culdade de diferenciar cultura de propaganda.


Quando do surgimento de novos meios de reprodução em massa de objetos
de arte (imprensa, xilogravura, vinil etc.), sempre alguém se manifestou
preocupado com a perda da especi cidade das obras em questão. A ideia
fundamental é que a reprodutibilidade se oporia à autenticidade, à “aura”,
conforme o famoso ensaio de Walter Benjamin.

Não é uma ideia de todo errada, mas perde de vista que nenhu ma
autenticidade importa se você não tem algum acesso às obras, seja direta seja
indiretamente. Não interessa a “essência” da obra tornada um misterioso
númeno kantiano, guardado em algum museu metafísico inacessível.
Kantianamente, é melhor um fenômeno reprodutível que nos traga algo
daquela essência do que não ter acesso algum a ela. Talvez eu jamais veja um
Vermeer a não ser em livros ou sites. E se não visse sequer isso...

Contudo, os meios tradicionais de reprodutibilidade trazem implícita alguma


diferenciação possível entre objeto cultural e propaganda. Um livro de Kant e
um vinil de Bach constituem-se de mídias que se diferenciam tanto da loso a
de um e música do outro quanto dos seus mecanismos de difusão social. A
fama de Kant pode servir à propaganda do livro de Kant, mas é clara a
distância entre as lições de Kant e as proezas publicitárias de um editor da
Crítica da razão pura.

Essa diferença se esvai no meio virtual. A praxe é que as grandes lições a


serem ministradas se façam acompanhar da propaganda das virtudes de quem
as ministra. A captatio benevolentiae da retórica tradicional, que muitas vezes
se fazia pela humilde con ssão do autor de incapacidade para tratar do seu
tema, foi substituída pela captatio desiderii, a instigação do desejo de fazer-se
igual àquele que se propagandeia portador das grandes lições.

Não só a cultura se torna indistinguível da propaganda, como a própria


propaganda se torna autopropaganda. Se algum vigor cultural advier dos
presentes esforços de certa camada culta da sociedade, será em grande parte
por encontrar uma saída desse impasse. Ou isso, ou qualquer “ser”, “essência”
ou “autenticidade” não será mais que produto de butique virtual.
A última fronteira do marketing digital

E ra inevitável que a crítica ao marketing digital fosse incorporada ao


próprio marketing digital. A onda agora é esconder o infoproduto e expor no
balcão uma mal-arranjada sinceridade. Vendia-se orgulho, autocelebração,
agora se quer vender humildade, falibilidade. Comunidade de esforços, não
assimetria total. “Segura a minha mão que eu te mostro”.

Quem vendia curso de vida intelectual começa a falar mal de curso de vida
intelectual. E o que oferece no lugar — ensaio, romance, curso de verdade
sobre tema especí co? Não: mais pro paganda das vantagens da formação
introdutória à vida de quem está iniciando etc.

“Fazer curso para aprender a dar cursos sobre como ganhar dinheiro dando
cursos” é a fronteira nal do conhecimento. É uma espécie de “Era uma vez...”
em loop in nito, sem que nunca se chegue à próxima palavra da história.

Não há saída à vista. Os mais talentosos, insisto (ou espero), despertarão


desse pesadelo kitsch, que se passa numa versão do mundo de Harry Potter em
que Eric Voegelin é um mago muito poderoso; outros talentos se perderão. A
culpa não será do .
P III: F , ..,
  
“O conhecimento pronto e acabado só se presta a ser memorizado; o
conhecimento não se torna em verdade nosso a menos que sejamos
capazes de reproduzir certo conteúdo como se fosse criação nossa. A
memorização é só condição negativa; a verdadeira intussuscepção ou
assimilação orgânica é impossível sem a transformação interior daquilo
que aprendemos. Todas as regras para o estudo se resumem nesta: estude
apenas para criar.”
— F. W. J. Schelling
O trabalho criador

O único motivo pelo qual você deveria se interessar por qualquer


ensinamento é a nalidade interior que depois dará a ele. Conhecimento que
não é mobilizado em algum sentido, segundo alguma meta, não é
conhecimento a nal: é dado morto, é entulho que tolhe a liberdade, é fuga ao
trabalho criador, o qual não se aparta das etapas aparentemente só passivas e
absortivas do estudo.

Parecem passar despercebidos a grande parte dos leitores de A vida


intelectual, de Pe. Sertillanges, alguns trechos do capítulo , “O trabalho
criador”. Num deles adverte que “aprender e preparar[-se] não se dão sem uma
certa dose de realização que os favorece. [...] Um órgão que se ativa cresce e se
fortalece; um órgão fortalecido se ativa de modo mais potente. É preciso
escrever ao longo de toda a vida intelectual”.12

Noutra passagem diz ainda: “Nunca se produzindo nada, adquire-se o hábito


da passividade; o medo causado pelo orgulho ou a timidez aumenta cada vez
mais; recua-se, esgota-se de tanto esperar, cai-se na improdutividade como um
broto que está amarrado”.13

A própria leitura, já tinha Sertillanges apontado em capítulo anterior, tem de


ser canalizada para a ação, tem de ser uma vitamina que previna a
improdutividade. “Lê-se unicamente para re etir, enriquece-se para utilizar,
ingere-se alimentos para viver”.14 E diz Ezra Pound à sua maneira mais ou
menos o mesmo: “O correto seria lermos para sermos mais pujantes. O
homem lendo deveria ser homem ardentemente vivo. Na mão o livro deveria
ser uma bola de luz”.15

Tudo o que se re ra ao intelecto, ao espírito, à ordem simbólica de nossos


empenhos, deve ser percebido como trabalho, como afanar-se por algo —
sempre por algo, para algo, tenha-se ou não clareza acerca do porquê desse
empenho. O motivo é razoavelmente simples, mas de fartas implicações
losó cas. É este: desde o momento em que é chamado ao mundo da
linguagem, ainda na primeiríssima infância, o ser humano precisa galgar
níveis cada vez mais elevados de complexidade no desempenho de suas
obrigações e desejos, e isso nunca se realiza sem a mobilização de tudo o que
se sabe rumo ao que ainda não se sabe inteiramente, porque ainda não
inteiramente realizado.

O que vale para a vida em geral — a vida em geral que já é simbólica, aliás —
valerá particularmente para a vida do espírito. Quer queira quer não, aquilo
que você absorve será aplicado no enfrentamento do que você ainda não
absorveu e na construção de quem você ainda poderá ser. Por isso José Ortega
y Gasset nos pedia que não tornássemos o conhecimento algo apenas dado,
apenas absorvido, espiritualmente asséptico, mera informação catalogada.
Pedia que com esse conhecimento nos atirássemos a novos riscos:
Não hieratizemos a cultura adquirida, preocupando-nos mais com repeti-la que com aumentá-la. O ato
especi camente cultural é o ato criador, aquele em que extraímos o logos de algo que todavia era
insigni cante (i-lógico). A cultura adquirida só tem valor como instrumento e arma de novas
conquistas. Por isso, em comparação com o imediato, com nossa vida espontânea, tudo o que
aprendemos parece abstrato, genérico, esquemático. Não só parece: é. O martelo é a abstração de cada
uma de suas marteladas.16

Simone Weil, grande investigadora do que poderiam signi car a ordem e a


segurança em um século de tremenda desordem e insegurança, não perdia de
vista o valor do risco. Tão importante (e até inescapável) ele é para a vida
humana, que sua ausência “suscita uma espécie de tédio que não paralisa de
modo semelhante ao medo, mas quase tanto quanto”, e assim “extenua a
coragem a ponto de ocasionalmente deixar a alma sem a menor proteção
interior contra o medo”.17 O risco nos torna cautelosos, nos põe em alerta, nos
faculta avistar, no horizonte, a novidade possível, a intervenção apropriada, a
criação que implora por ser trazida à existência. Da mesma forma que apenas
preparar-se para agir sem nunca a nal agir mata o estudo, a tentativa de criar
com total segurança, sem riscos, sem aceite da possibilidade de chegar à
elaboração de artefatos que choquem (não só aos outros, mas até a nós
mesmos), inviabiliza na base qualquer criação.

Caso você tome consciência desse fato e aceite de bom grado impor-se
desa os, aceite sentir-se obrigado a ser criativo até nos modos como
transforma angústias em fontes de interesse intelectual, estará pronto para
buscar seu caminho no universo da cultura, no qual ou o trabalho é criador, ou
então não é trabalho de forma alguma.
Make it new

M inha primeira tentação, em matéria de cultura, foi a de ser poeta. Escrevi


muita bobagem entre meus 14 e 17 anos, mas a experiência pelo menos me
deu aquela mesma disposição de espírito que sempre encontrei nas pessoas
que produziram arte ou loso a que eu admire: ou você vai lá e põe a mão na
massa, e assim faz da cultura um processo do qual você participa ativamente,
ou pode esquecer, você no máximo será um espectador frustrado, um
consumidor de manuais de coisas que você jamais construirá.

Essa percepção da cultura como processo, como empenho, é desconhecida


da maior parte dos jovens que hoje se empenham em “estudar”. Era mais ou
menos isso que eu tinha em mente quando escrevi, páginas atrás, que teria
reagido com violência a quem me chegasse, em minha adolescência, com papo
de “vida intelectual”. Teria farejado inautenticidade e caretice nessa expressão.

Toda a cultura é um esforço de a rmar-se individualmente, de dizer o ainda


não dito, de comunicar algo que você sentiu de maneira bastante especí ca, no
limite incomunicável. Se você compreender isso, também compreenderá que
aquele lema de Ezra Pound, Make it new, serve não apenas de divisa para a
poesia de vanguarda, ou de preceito estético de atualização constante dos
modelos clássicos, mas de símbolo do puro e simples processo cultural em sua
generalidade. Você quer renovar o mundo, fazer novas todas as coisas, ou do
contrário é um cadáver.

Isso nada tem a ver com ser novidadeiro, com buscar a diferença por si
mesma, o que ca claríssimo na vida de pessoas autenticamente criativas.
Causa estranheza que tanta gente que admire Olavo de Carvalho, que tenha
acompanhado por anos o trajeto criativo dele, não compreenda isso, e ache
que repetir catecismo e Platão vá nos salvar.

Recebo muitas mensagens de gente que começa a perceber o grotesco dessa


situação, mas que permanece desorientada. A estas pessoas, mando este
recado:
  .
Cultura é algo que você faz

Smarceneiro.
uponha que você queira aprender um ofício. Digamos que o ofício de
Você irá até uma marcenaria, observará como trabalha um
marceneiro, talvez se torne aprendiz dele. Construirá cadeiras, camas, cabides,
janelas; e, à medida que os construir, você se tornará um marceneiro.

Agora suponha que você apenas observe as cadeiras, camas, cabides e janelas
feitas por aquele mesmo marceneiro, e as ache perfeitos exemplos de alta
marcenaria. Você também ouve o que o marceneiro diz aos aprendizes da
o cina, anota na caderneta uma lista de preceitos da “vida de marceneiro”.
Volta para casa e percebe que em sua vizinhança há um número considerável
de pessoas carentes de conhecimentos de marcenaria. E aí você coloca na
porta de sua residência um anúncio de “Curso de vida de marceneiro”.

Ok, vocês já entenderam a parábola-piada.

***

Ainda surte efeito insistir na etimologia da palavra “cultura”, no fato de que a


pessoa “culta” é aquela que se “cultivou”? Cultivar, aí, é uma ação, muitas vezes
material; não faz sentido esperar que se torne culto aquele que não investiu
nos atos de cultivo pessoal.

Esses atos são aprendidos pela observação dos mais peritos, dos mestres em
seu ofício. Você aprende a ler um romance — “aprender a ler” é basicamente
desenvolver um instinto para aquilo a que se deve dar atenção — observando o
que um bom leitor diz a respeito de algum romance. Aprende bem mais assim
do que lendo um livro de teoria literária ou fazendo um curso fast-food de
“como ler romances”, por mais que a princípio o texto do crítico possa lhe
parecer difícil.

Você aprende a fazer loso a vendo outras pessoas fazendo loso a.


Aprende a ler um quadro renascentista vendo o que um crítico de arte diz a
respeito dele. Introjetado o ofício, você está pronto para se arriscar, pois o que
você buscava desde o início era fazer algo, ser algo, meter a mão na massa,
ainda que metendo os pés pelas mãos.

Cultura é algo que você faz à medida que vê outros a fazerem.

***

Em meu livro Conhecimento por presença, falo numa passagem do lósofo


como um “marceneiro do espírito”.18

Às pessoas que perguntam o que fazer para encontrar alguma direção nos
estudos, sinto vontade de dizer: façam o Curso Online de Filoso a de Olavo de
Carvalho, vão observar o marceneiro (de quebra, gastariam uma mixaria em
comparação com o valor cobrado por cursos suspeitos oferecidos por aí). Ou
vão estudar com Newton da Costa. Ou procurem o círculo de discussões de
Julio Cabrera, por mais insuportáveis que algumas ideias dele lhes pareçam.
Procurem os marceneiros, e naturalmente aprenderão o ofício e formarão uma
comunidade informal em torno deles.

A cultura tende a agregar pessoas, mas a criatividade delas depende de que


impeçam que a agregação, em vez de ser uma comunidade real, uma
convergência de esforços, se torne uma comunidade o ciosa, um consenso de
bandeiras. Isso ocorre quando trocam os estorços do processo cultural pelo
conforto de apenas absorverem os objetos culturais, sem que se sintam
responsáveis por eles. A nal, você só se sente responsável por aquilo em que
aplica sua vida, suas perícias e imperícias, e só dessa forma a “vida intelectual”
desce do céu das ideias e se incorpora, aqui na terra, às práticas da cultura.
Aprender & ensinar & criar

N em sempre a vontade de aprender se tornará vontade de ensinar. Por volta


de meus 20 anos isso era claro para mim. Em primeiro lugar porque eu não
pensava em ser professor, via a atividade docente quase como o oposto da
atividade criativa. Havia erro nessa minha compreensão, mas ela pelo menos
me precavia contra algumas ciladas, em particular a de crer que o único meio
de fazer algo relevante é colocar pessoas numa sala e dizer-lhes algo relevante.

É natural saber muito e mesmo assim acreditar não ter o que dizer. O
saudoso “público letrado” era composto de engenheiros, contadores e
domésticas que liam Érico Veríssimo apenas porque isso lhes fazia bem,
porque os educava divertindo. Achariam estranho que alguém, após tomar
conhecimento dessas suas leituras, os convidasse a lecionar.

Historicamente a gura do professor só de raro em raro se confunde com a


gura do escritor, tanto mais se for poeta ou escritor de cção, e todos
sabemos que nem sempre o mais sábio, ou o indivíduo mais criativo, é o
melhor professor. Recordo isso em razão de hoje ver em muita gente,
sobretudo nos mais talentosos, uma urgência super cial de dar aula. Nesse
caso, in ui menos o apelo nanceiro do mercado de ensino virtual do que a
confusão tácita de atividade cultural com atividade docente.

Não há dúvida de que o Brasil necessite hoje de professores no mais alto


sentido da palavra. Mas os professores precisam de material com que
trabalhar, e esse material não precisa ter sido escrito há mil anos. É quase o
caso de dizer que só existem professores porque antes existiram poetas,
cientistas, artistas. Você pode ler Platão não para ensinar Platão, mas para ter
maior clareza acerca de si e do seu próximo e ser também um bom padeiro,
programador, jogador de vôlei — ou quem sabe até um bom lósofo.

Para a maioria absoluta de nós, não dar aula sempre será uma opção.
Atentem a isso e se perguntem se não estão deixando de criar coisas
importantes, de se atirar a projetos incertos mas recompensadores, apenas
porque iniciar uma live é fácil. O verdadeiro ensino não é só transmissão de
conhecimento, é criação de conhecimento. E isso não é nada fácil.
Qual o problema fundamental da educação?

N ão existe nada mais difícil de meter na cabeça do novo direitista que este
fato: “O livro não educa aquele que o lê com a nalidade de educar-se”
(Nicolás Gómez Dávila). A “educação” é o resultado quase acidental da
atividade apaixonada e mais ampla de envolvimento com a vida.

Por isso, quando vejo alguém dizer que “está na hora de estudar, entender o
Brasil para reagirmos”, sinto aquele tédio morno, só levemente desesperado, da
certeza de que daí não sairá estudo algum, educação alguma, porque não
implicará prazer nenhum.

De um ponto de vista operativo, aquilo que mais facilmente esquecemos ao


tratar de educação é a liberdade. Sei que, a essa altura de nosso Brasil
apadrinhado por Paulo Freire e todas as demais “pedagogias do oprimido”,
centrar o problema pedagógico na liberdade pode parecer contraproducente
ou tão só errado. Mas o que há de condenável nas portarias do  e nas teses
universitárias de nossos pedagogos não é a ênfase excessiva na liberdade do
educando. É a incompreensão da natureza dessa liberdade.

A assimetria entre mestre e discípulo existirá enquanto existir humanidade,


isto é, transmissão de saberes de uma geração a outra. Antes de justi car-se
por um aspecto cultural de nossa vida, ela se justi ca por um aspecto
biológico: os mais velhos se encarregam do cuidado dos mais novos, e aqueles
sempre serão mais fortes e instruídos quanto aos dados básicos da
sobrevivência do que os adventícios.

Assim como há di culdades naturais em levar os mais novos da infância à


vida adulta, haverá, já num plano imaterial, di culdades em levá-los da
minoridade intelectual a uma possível maioridade. Coisa elementar: ou se
supõe que determinado ideal de ser humano é melhor que a média humana (a
começar pela suposição de que a verdade tem algum valor sobre a falsidade),
ou educação alguma é possível. A educação se destina a tornar o ser humano
mais humano, ou seja, mais divino. E é justamente essa meta que, se posta à
frente dos meios educacionais, dana toda a educação. Aí, o problema
fundamental que deveria receber mais atenção de pedagogos e de toda pessoa
interessada na circulação do saber.

Os mais talentosos, em especial, suspeitarão de qualquer educação


“enobrecedora”. Não querem o ideal da educação; querem a técnica da
educação. A oposição entre “saber humano” e “técnica” é um despiste.
Precisamente a técnica (aprendizado de uma nova língua, por exemplo) é que
molda o comportamento humano e o faz virtuoso. O aluno será conduzido da
crença vulgar no valor de uma determinada disciplina à visão interior desse
valor. Primeiro, avançará às cegas, a con ar em outrem; depois,
gradativamente, fará a escolha decisiva de educar-se.

De uma liberdade incipiente, confusa, passará a uma liberdade ativa, para a


qual os meios são os ns.
P IV: S 
Erudição não é sabedoria, mas...
“Não se deve encher a cabeça, e sim fortalecê-la.”
— Lichtenberg

L ogo na primeira a  nvivium — Seminário Permanente de


19
Humanidades, dei atenção a um verso em que Goethe descreve Fausto como
“opresso pela livralhada”. Tenho grande simpatia por esse passo do poema.

Desde a primeira vez que o li, bem antes que elaborasse qualquer re exão
mais ampla sobre o projeto humanista (um dos objetos de investigação de meu
Seminário), reconheci ali algo que me achaca de tempos em tempos: uma
vontade de abandonar o círculo estreito das bibliogra as, de desfazer-me de
minha biblioteca e viver de não mais que uns poucos volumes — numa
palavra, um cansaço da cultura como registro.

Recordo, a propósito, a a rmação de Ortega y Gasset de que a loso a é o


oposto da erudição, isto é, informação não é o mesmo que sentido. Pretendo
levar essa advertência cada vez mais a sério e proteger-me do vício da citação,
da elucubração vistosa porém não estritamente necessária. Anthony Graon
escreveu um famoso livro sobre a origem das técnicas da pesquisa erudita
moderna como a história das notas de rodapé. Talvez esteja na hora de
escrever a história da falência da pesquisa erudita moderna como a história da
substituição dos argumentos centrais pelas minúcias técnicas dos rodapés.

Grande parte das pessoas esforçadas em educar-se à margem de


universidades tem grande di culdade em lidar com a parte técnica da
pesquisa. Daí o que vemos a todo momento nesse meio: magreza de
referências (circunscritas, quase sempre, ao rol de autores conservadores,
católicos etc.) e pressa na a rmação de teses.

Por outro lado, é preciso resistir à facilidade de suprir essa carência


recorrendo à obesidade acadêmica que vez ou outra (com sorte...) ainda
encontramos em alguns departamentos universitários. Entre a cruz e a espada,
entre a fome conformada e a gula autocongratulatória, é preciso redescobrir o
caminho até o dado oportuno, o problema bem articulado, a informação de
fato instrutiva: aquilo que costumávamos chamar de sabedoria.
Vida intelectual e vida esquisita

A lgumas vezes apareceram em meu feed propagandas de cursos de


Guilherme Freire, nome de alta rotatividade nas lives, podcasts e cursos online
de “formação intelectual”. E numa dessas vezes, tão intenso foi o choque de
caretice, me senti tentado a encabeçar uma Revolta Contra o Bom-Mocismo,
entrar para uma tariqa, jurar combate eterno aos cruzados da vida intelectual.
Mas resisti. A civilização ocidental é Adolfo Bioy Casares, não é Tolkien.
Recordar esse fato ajuda a manter algum autocontrole e não cair na facilidade
de querer ser o esquisito.

Muitos jovens de direita não têm essa fortaleza e cedem (o que se há de


perdoar em parte, já que vivem nesse universo brasileiro inóspito meio
paulofreiriano, meio guilhermefreiriano). São esses jovens que passam a
adotar uma conduta atípica: interessam-se por magia, astrologia, ciências
tradicionais, vendo em tudo isso o objeto de estudo mais alto a que poderiam
aspirar e a que a realidade circundante não lhes faculta acesso, mas mantêm
não mais que indiferença — ou um respeito da boca para fora — por Proust,
Villa-Lobos ou Carl T. Dreyer.

Começam a escrever de maneira alambicada, a simular um português


arcaico, ou pelo menos maçônico, no sentido de fragorosamente brega, isto é,
falsamente hierático, para assim sinalizar sua pertença a uma confraria de
revoltados contra o mundo moderno e a pedagogia liberal que, em grande
medida, está por trás dos ideais formativos de quem se dedica a propagar a
“vida intelectual”.20

Se não é possível condenar a recusa em participar de um jogo cultural


viciado, seja aquele o cialmente em voga no Brasil (em universidades,
institutos culturais, circuito editorial), seja aquele comercializado como
caminho de virtude e riqueza nas redes sociais, também não é possível ignorar
o fato de que a substituição da paideia liberal por um currículo de sombras, de
técnicas de orientação espiritual desassistidas de técnicas de domínio da
linguagem e da autoconsciência, acabará por levar o aspirante a sábio a nada
além de desajuste social, quando não também a desajuste psíquico.
Saltar por cima dos artefatos culturais, para aproximar-se diretamente de um
pretenso sumo sapiencial, é dessas tendências que ciclicamente assolam o
Ocidente. Não negarei que a objeti cação do saber deve ser combatida; que a
separação entre saber e saber viver é uma desgraça que, no m das contas, nos
leva a não distinguir mais entre saber e não saber. Na verdade, muitos
professorzinhos de virtude poderiam nos lembrar disso, ainda que eles
próprios sirvam de amostragem do problema. O que nego são os meios
buscados pelo esquisito que não quer participar da debacle cultural brasileira
nem irmanar-se aos cruzados da vida intelectual, criando assim uma
barafunda esotérica na qual um alquimista pode se igualar em importância a
Shakespeare.

Não há gnose mais importante que o aprendizado de um pouco de latim, um


pouco de grego, um bom tanto de inglês e uma vasta experiência de romances,
poemas, pinturas, lmes e espetáculos que tenham sido postos à prova de
gostos exigentes no passado e no presente. Quem aspira a elevar-se à visão de
Deus sem passar pelos poucos elementos de divindade criados por mãos e
mentes humanas não aspira, na verdade, a conhecimento algum das realidades
últimas. Aspira, que vergonha, à manutenção da própria autoimagem de um
esquisito que não se rende ao mundo.
Universidade: cursar ou não cursar

N o Brasil, só em raras condições a universidade é em si mesma algo bom.


O que é bom é este ou aquele professor, este ou aquele grupo de pesquisa. Se
você tiver um grande interesse por determinado assunto e souber o nome de
professores universitários que possam lhe ajudar, vá atrás deles, pergunte-lhes
o que pensam ser um caminho viável de estudo. Como quem pede um
conselho mesmo. Além disso, convém informar-se sobre a grade curricular de
cada curso e privilegiar as mais enxutas, com o menor número de disciplinas
obrigatórias. Passar mais tempo em sala de aula do que em biblioteca é uma
das desgraças da graduação.

Com um mínimo de cuidado, interesse real e paciência com as eventuais


banalidades, é possível ter uma experiência proveitosa, sim, e dominar pelo
menos a técnica da pesquisa erudita, o que já é um grande benefício.

Mas é preciso saber quão ingrata é hoje a carreira universitária. Conheço


vários pós-doutores que vivem pulando de um posto de pesquisa a outro,
sobrevivendo de bolsas, sem conseguir alcançar um cargo permanente (re ro-
me às universidades mais “importantes”). E nos Estados Unidos e na Europa o
cenário é bem pior. “Por que abandonei a pesquisa universitária” já é
praticamente um novo gênero ensaístico.

Tem até seus lugares-comuns, como o “ quei pobre gastando dinheiro com
viagem para compor currículo e pagar publicação de artigo em revista
prestigiosa”. Outro sempre presente é “não quero levar 15 anos para alcançar
um salário que meus colegas de escola sem maior formação ganham em uma
semana trabalhando meio período”.

***

Tenho a impressão de que estamos entrando numa época similar ao início da


Modernidade. Falo da circulação do saber.
Muita gente excepcional formou-se nas universidades medievais, mas lhes
deu as costas em razão de seu engessamento, sua burocracia, seu papel nas
guerras de religião. Autores começaram a criar outros circuitos, como
academias ou redes de correspondência privada. O diálogo cultural mais
importante correu à margem das instituições. Quase tudo de mais relevante
que se fez entre os séculos  e  foi nas brechas, nos hiatos do poder. E
com o dinheiro de mecenas. É esse quadro que vejo surgir novamente no
horizonte da História.

Agora, o que vai ser esse novo circuito no momento não está claro. Criar
universidades melhores não é a solução, até porque ainda há universidades
boas, ou pelo menos bons departamentos. Mas isso não altera em nada o
cenário geral. O lance é ir à cata do que houver de bom nesses espaços, ter
contato com as pessoas certas e car atento às novas oportunidades. Melhor:
criá-las.

Em resumo

Caso você se decida pelo caminho universitário, tenha em mente:

1. Escolha não cursos nem universidades, mas professores, em especial


orientadores.

2. Privilegie os saberes mais técnicos: línguas antigas, orientais e germânicas,


por exemplo; lologia em geral; o conhecimento de — sei lá — poesia italiana
no século . En m: encha sua caixa de ferramentas e busque sabedoria em
outro lugar (não que você não possa eventualmente encontrá-la em alguns
professores).

3. Não se importe de participar de congressos, seminários etc. Mesmo para o


carreirista de Lattes isso raramente tem alguma valia (a não ser para
networking).

4. Lembre-se de que um bom artigo seu vale mais que 57 protestos contra o
marxismo cultural (mas sim, ele existe).

5. Mantenha sempre um pé fora da academia e nunca se esqueça de que a


qualquer momento pode largá-la e ir fazer qualquer outra coisa da vida.
Quando algo faz sentido21

Jobservando
acques Hadamard inicia seu estudo do processo criativo em matemática
que inventar e descobrir são, nessa área, atividades indistinguíveis.
Quando — ele exempli ca — Benjamin Franklin nota que os raios podem ser
canalizados até estruturas metálicas, simultaneamente descobre sua natureza
de descarga elétrica e inventa o para-raios. Essa observação esclarece um
aspecto rotineiro da prática do cientista e em especial do matemático, mas,
apercebe-se Hadamard, também de algumas outras esferas de atividade. Eu
diria mais: diria que se aplica a todas as esferas da ação humana. E
complementaria dizendo mais ainda: que isso re ete não só uma ambiguidade
prática, mas um efetivo aspecto da realidade. O real pede para ser descoberto
— nós apenas inventamos meios de efetivar a descoberta.

O livro Imerso em pensamentos: os prazeres secretos da vida intelectual, de


Zena Hitz, manifesta com a maior clareza a alegria do ato criativo, a feliz
obsessão por inventar meios de vida e de pensamento que conduzam àquele
momento de descoberta ou, idealmente, à própria vida em geral sentida como
um uxo incessante de descobertas. Se apenas levados pelo rio da vida,
seremos seixo morto em seu vau. Se levantados contra a correnteza e
empenhados em quebrar a opacidade e falta de signi cado dos elementos
rotineiros mais massacrantes, seremos não necessariamente felizes, mas sem
dúvida elemento de contradição, de quebra de expectativas já maçantes, de tão
repetitivas e tão atendidas, e a rmaremos o princípio de uma vivência mais
luminosa.

Michael Polanyi considerava especialmente problemática e valiosa a


experiência de encontrar um... problema. Pois, perguntava-se ele, como saber
que determinado elemento é de fato digno de atenção e do investimento de
energia, tempo e paciência — que é mesmo um problema? Professora
universitária de loso a, Zena Hitz mostra ter localizado em sua carreira
acadêmica um autêntico problema: a transformação de todo o mundo da
cultura, de toda a rede de signi cados que lançamos ao universo para
apreendê-lo e melhor fruí-lo, em um seixo morto atirado ao salobro e pardo
rio das Humanidades. As ideias e as obras passam a servir ao funcionamento
institucional de certos meios e ao controle do acesso a determinados espaços;
sua relação com o sentido da existência se torna recordação distante, talvez
tema para trabalho de m de semestre a ser esquecido com a mesma ligeireza
com que foi escrito.

Daí a constatação:
Nós, pro ssionais acadêmicos, perdemos contato com as origens da atividade intelectual humana básica.
Logo, perdemos a capacidade de justi car e explicar para os concidadãos ou lantropos — e até para nós
mesmos — por que nossas instituições de ensino são importantes.

Perdemos a capacidade, assim, de sermos inventivos o su ciente para efetuar


descobertas que nos justi quem e nos permitam sentir, ainda que só por um
instante, que algo faz sentido.

Por outro lado, e muito felizmente, o que Hitz encontrou ao recuperar as suas
experiências de juventude, de descoberta animada de personagens, ideias e
memórias através de livros e da educação que lhe deram seus pais, coincidiu
em alguma medida com aquilo que encontrou ao dedicar-se ao serviço
voluntário e ao ingressar em uma comunidade católica, afastando-se por
alguns anos da docência acadêmica: uma vivência mais natural da vida, o
sentimento de ser capaz de permanecer de pé frente à correnteza, não porque
seja preciso fazê-lo para alcançar certo status, progressão de carreira e
incremento salarial, mas porque é preciso viver enquanto se está vivo.
“Compreendi que não poderia viver uma vida intelectual e amar o próximo
como hobby. Eu não tinha compreendido a ordem das coisas ”, confessa-nos
Hitz. “Eu deveria amar o próximo e encontrar um modo de vida intelectual
que expressasse esse amor. Para isso, eu tinha que colocar acima de tudo a
forma de amor que assume o apático nome de caridade”.

***

Às vezes alguém se lembra de dizer que o estudo deve ser parte do movimento
geral de autoconhecimento do indivíduo; que o estudo não deve ser um
pinguim que se coloca em cima da geladeira da vida. É verdade, mas quantos
de nós realmente estamos cientes da profundidade desse fato e dos
compromissos a que nos obriga? Tudo aquilo que entra no campo do
conhecimento corre o risco de cair no campo da rotina, e tudo aquilo que é
rotineiro é vizinho do invisível. O tempo atua como uma inércia que preserva
o saber nesse nicho escuro (uma parte morna e desinteressante de nós
mesmos) e o previne de qualquer possibilidade de reavivar-se. Passamos a
frequentar o saber como quem frequenta uma repartição pública, um diretório
acadêmico, uma praça de alimentação de shopping center. O saber era saber de
que mesmo?

“Enxergamos nosso propósito apenas quando os desejos ilusórios se


dissolvem em face de uma real escolha”, escreve Zena Hitz. É bonito de dizer,
mas difícil de viver. As di culdades da vida e os vícios são caminho de
perdição, mas às vezes são também caminho acidentado, sacolejante, capaz de
dissipar a modorra do indivíduo massacrado pela rotina e levá-lo a ver com
maior clareza sua situação penosa e suas rotas de fuga.

Diz Hitz, pois bem, que “fracassar é talvez o melhor caminho para a
interioridade”. Parece uma a rmação dramática demais — quem dera fosse
mesmo. Einstein num sufocante escritório de seguros (foi esse também o
destino de Kaa), ou o matemático André Weil cheio de júbilo na prisão, a
produzir como nunca, nos mostram que toda a escala de infortúnios é
compatível com a grandeza de espírito. Geralmente nos consideramos aptos a
grandes gestos de heroísmo em situações graves (e realmente o somos); mas
geralmente não aguentamos a pequenez da vida mediana, intranscendente,
sem brilho. O gênio, seja como for, não precisa de cadeia; às vezes um simples
escritório basta, às vezes uma modesta mesa de jantar. Todos nós
experimentamos fracassos, uns menores, uns maiores, talvez não
necessariamente trágicos. Mas a atenção a esses fatos que nos condicionam e
determinam parte do que somos pode alimentar a seiva da criação, isto é, a
invenção irmã da descoberta.

Além das vicissitudes inerentes à vida e dos possíveis vícios, pesa ainda o fato
de que as mais altas aspirações humanas podem acabar agrilhoadas pela mais
agrante das fraquezas humanas: aquela pela qual uma qualidade objetiva
pode se tornar um mal subjetivo. Re ro-me à vaidade, em casos extremos, ou
tão só ao amor-próprio, que todos partilhamos e por meio do qual a verdade é
posta a trabalhar pela ilusão que temos acerca de nós mesmos. Zena Hitz
observa: “Mesmo no amor por aprender parece haver um desejo de
superioridade, um desejo de pertencer a uma elite exclusiva”. E ainda: “Algo em
nós ama o espetáculo de nossa própria ação e reduz nossas melhores
motivações a uma fantasia narcisista”.

Todos conhecemos há décadas o esquerdista que quer se adornar


socialmente com as causas sociais que defende. Nos últimos anos, passamos a
conhecer também o conservador que quer se adornar socialmente com as
causas espirituais que defende. É bom querer ser bom, estar atento à verdade,
ceder a ela mesmo sob os protestos mais veementes de nosso ego. Mas até isso
somos capazes de transformar em troféu a ser exibido num livro, numa
palestra ou numa postagem de rede social. O “amor-próprio derrota fácil o
autossacrifício”, nota Hitz.

***

“Se não deixarmos a inteligência sossegar em sua esplêndida inutilidade, ela


nunca dará seus frutos práticos.”

Ora, muitas vezes implodimos essa esplêndida inutilidade mencionada por


Hitz com o explosivo de nossos melhores sentimentos e melhores intenções.
Diante da anomia social, pregamos a hierarquia; diante do vale-tudo
intelectual e da degradação da vida universitária, pregamos a família e fazemos
guerra às instituições. E, assim, “movidos por ansiedade em relação à cultura
hostil ou por con itos internos, cada um se fecha em seu próprio viés e se
inclina a promover de forma mais rígida seus ensinamentos parciais”.
Fatalmente desse modo reduzimos “a investigação séria e o desenvolvimento
intelectual à catequese e à pregação doutrinal”, diz a autora. Nesse caso
podemos falar de utilitarismo, pois utilitarismo signi ca, bem pensadas as
coisas, nada mais que buscar em algo uma nalidade que lhe é estranha.

Que isso venha sobretudo da parte de cristãos é coisa que deveria nos
espantar. A universalidade que está na origem e no destino de toda
investigação humana deveria já servir de advertência contra quaisquer
enviesamentos utilitaristas (ainda que se trate de utilidade post-mortem). Zena
Hitz é inspiradora em sua reprimenda: “Temos que nos lembrar de que a fé
cristã tem alguns princípios básicos e oferece a perspectiva de um crescimento
livre, amplo e inde nido na compreensão e na santidade. O ensinamento
cristão não é um lago arti cial que pode ser represado, e sim uma fonte
inesgotável”.

***

O retrato que Zena Hitz faz de nossas universidades e das expectativas gerais
hoje nutridas em relação aos intelectuais, seja da parte de instâncias públicas
seja da parte do cidadão comum, é bastante desagradável, desconfortável, mas
o pior de tudo não é isso. O pior de tudo é que o tipo intelectual que
materializa essas expectativas é uma pessoa que você não chamaria para tomar
um café, pois ele poderia começar a discursar na sua frente sobre qualquer
coisa que expressasse, no m das contas, o desagrado dele pelo status quo e o
quanto está excelsamente acima daquilo que critica.

Alguém acreditará que o problema está na unilateralidade; que está no fato


de o intelectual progressista ser unilateralmente progressista e no fato de o
conservador ser unilateralmente conservador; e que, com um pouco de
exposição de um e outro a novas perspectivas e percepções, talvez começassem
a se entender e deixassem de fazer suas poses usuais de superioridade um
diante do outro. Esta é a superstição democrática da educação, que fez e ainda
fará muito mal à educação. Trata-se da crença de que a nalidade do saber é
tornar a pessoa capaz de transitar pelos mais variados debates públicos e
rmar sua posição com autonomia. É essa a forma mais insidiosa de implodir
aquela esplêndida inutilidade. Escreve Hitz: “Promover diversidade de pontos
de vista é quase tão super cial e arti cial quanto as doutrinações que se
pretende substituir. Quando debatemos um certo assunto, criamos argumentos
ainda mais e cazes em defesa daquilo em que já acreditamos”.

Essas palavras inspiram a coragem de ver que, na base de qualquer debate,


deve haver algo mais essencial; que, na base de qualquer leitura crítica do
mundo atual, deve haver algo de um propósito atemporal. É certo que
precisamos compreender como aquele tipo de intelectual utilitarista (aquele
que não resiste, por exemplo, aos afagos que a rendição à política lhe traz) se
tornou possível, mas de antemão sabendo que o trabalho crítico tem apenas
lugar acessório. Precisamos ter clareza histórica acerca de como chegamos
aonde chegamos, sim; precisamos discernir o que há de certo e o que há de
errado no modo como hoje ensinamos e nos comportamos com o universo da
cultura. Mas, mais do que isso, precisamos distinguir, ainda que vagamente, o
porquê de nos importarmos com coisas como educação, ideias, cultura.
“Precisamos de referências e modelos”, diz Hitz. Isto é: “Fantasias atraentes que
nos chamem e nos coloquem em uma direção, e nos lembrem do que já fomos,
de quem ou o que poderíamos ser. Só então o romance voltará”.

Há de voltar.
Antes do imaginário, eduque o ouvido

H á um dogma particularmente chato nos estudos literários, o qual


reverbera um lugar comum do culto que os poetas há milênios dedicam a si
próprios: a utilidade da literatura se de ne pela sua inutilidade, a sua função é
opor-se ao mundo funcional, o poeta vive apenas para a poesia, opõe “ócio” a
“negócio”. Os teóricos da literatura chegavam a falar em “literariedade”, a m
de retirar da literatura qualquer propósito externo a ela. Eu odiava esse
discurso. Mas toda a atual conversa de formação do imaginário vem me
tornando um nostálgico da arte pela arte.

Imaginário, para a maior parte das pessoas que vivem de oferecer e consumir
esse tipo de “formação”, resume-se à estrutura narrativa, é não mais que a
abstração dos dados plasticamente literários de uma obra para que se alcance
tão só o seu “enredo”. O leitor da obra literária se revela, nesse caso, não um
crítico literário, não um leitor sagaz capacitado para avaliar as continuidades e
descontinuidades formais de uma obra dentro da tradição em que se situa, mas
um intérprete de símbolos e um terapeuta.

Fala-se de um romance como se poderia falar de um lme; fala-se de um


poema (raramente, pois a fatura técnica mais explícita da poesia repele os
falastrões) como se poderia falar de um esquete publicitário para . O
objetivo, às vezes mais velado, às vezes menos, é alcançar alguma grande lição
“simbolizada” por este personagem ou aquele passo narrativo. E, como a
concepção de símbolo aí suposta é a mais frouxa e inespecí ca, praticamente
qualquer coisa pode simbolizar qualquer coisa.

Os enredos assim abstraídos, pior ainda, são forçados a caber em camisas de


força imbecis como a da “jornada do herói”. Toda — repito: toda — a literatura
é desse modo apreendida numa chave alegórica, pela qual o sentido da obra
estará em remeter a alguma outra estrutura que a ilumine. É uma verdadeira
desgraça que leitores de O senhor dos anéis (livro que, no mais, é apenas boa
obra menor numa das maiores literaturas do mundo) se sintam à vontade para
ler em Tolkien a mensagem cristã que lhes seja mais agradável,22 e, num passo
mais ousado e inconsciente, ler em qualquer outra obra símbolos cristãos ou
não cristãos, personagens que “simbolizam” o temperamento melancólico ou o
temperamento eumático, ou que “representem” as forças do Bem e do Mal, e
assim por diante. Não há limites para essa gente de imaginário bem-formado e
educação literária nula.

Como se vê, a educação do imaginário é uma versão lowbrow do


pragmatismo que sempre cerceou a literatura e tentou colocá-la a serviço de
algum ditadorzinho, alguma pedagogia, algum propósito de ocasião.23 É
verdade que o atual propósito de ocasião fala em atemporalidade e
universalidade, em educar-se para além do instante presente e elevar-se ao
diálogo com os grandes autores e suas ideias. Mas absolutamente ninguém
jamais veio a amar alguns versos de Blake ou alguma página de Hemingway
apenas porque achou necessário atravessá-los para chegar ao lugar feérico
onde as pessoas com a imaginação bem-formada conversam sobre coisas
edi cantes.

Literatura existe porque existem tempo e espaço. Anjos e demônios não


podem fazer poesia porque lhes falta a estimulação sensorial sem a qual verso
algum faz sentido. A literatura é de nascença poesia, a poesia é de nascença
mito, o mito é de nascença algo cantado e passado de pai para lho. A
literatura já fez muita gente dançar bêbada em torno de uma fogueira, já fez
muito monge taoísta tremer-se da cabeça aos pés ao acreditar ter visitado o
mundo dos imortais — tão forte foram os versos que lhe ocorreram. A
formação do imaginário pretere de saída essa componente sensorial da
literatura.

Antes de educar seu imaginário, eduque seu ouvido. Um decassílabo de


Drummond, percebido na nura de seu ritmo, desperta mais associações
formais, mais possibilidades imaginativas, que qualquer comentário abstrato
sobre um enredo de romance ou lme.

Batucar um tambor e fazer uma macumbinha lhe dará uma intuição mais
profunda da natureza da literatura do que fazer cursos de formação do
imaginário.

Adendo: origens da “formação do imaginário”

A “educação do imaginário” é outra semente lançada por Olavo de Carvalho


que caiu em terreno infértil. No segundo dos guias de estudo que elaborei para
o Seminário de Filoso a,24 escrevi o que vai abaixo, coisa breve, sobre as
re exões de Olavo acerca do assunto. Reproduzo o excerto com o único
propósito de ilustrar para um público mais amplo, não habituado às práticas
da corriola da direita virtual, como um tema de investigação losó ca pode ser
avacalhado quando transformado em programa de estudos de ampla
circulação e fácil digestão.

***

Na [Aula 2 do Curso Online de Filoia (cof)], Olavo já havia enfatizado que


determinados elementos deveriam ser incorporados à formação do estudante
como preliminares a qualquer trato direto com textos losó cos: “Como
preliminar ao ingresso nas questões losó cas, nós temos então esse duplo
adestramento, que é exatamente do que eu estou tratando nestas primeiras
aulas: o adestramento da linguagem e o adestramento do testemunho. [...] Sem
esse preliminar nada se pode fazer” [Aula 2, grifos meus]. O que Olavo então
chamou de “adestramento da linguagem” [...] e “adestramento do testemunho”
corresponde, com algumas mediações, ao que na [Aula 8] chamaria de
adestramento do imaginário e da linguagem.

Talvez em outro país, em outra época e em outro contexto educacional, um


lósofo não precisasse enfatizar para seus alunos a importância da leitura de
poesia e de prosa de cção. Mas já vimos que ele falava levando em conta as
carências do estudante brasileiro. Por isso, esforça-se para esclarecer a
importância da literatura, o tipo de experiência que nos possibilita, qual a
função que desempenha no quadro geral das Humanidades e da formação
intelectual.

Começa por notar a ginástica intelectual a que a imaginação humana é


obrigada pela literatura:
Ler literatura de cção é como se fosse um sonho acordado dirigido: você recebe uma pauta de uma
série de atividades imaginárias que você vai desenvolver. É o seu imaginário que vai produzir tudo isso
de acordo com as indicações que foram dadas pelo autor da narrativa. Na medida em que se desenvolve
a narrativa, você vai dirigindo o seu sonho para esta ou aquela direção, incorporando novas
possibilidades, novos dramas, novos con itos, novas tensões etc. [Aula 8].

A leitura de poesia, romance, epopeia e teatro concorre, pois, para uma


maior universalidade de percepção. O indivíduo vive apenas a sua própria
vida. Depende de outros testemunhos, de outras elaborações simbólicas, para
compreender experiências que não estão imediatamente disponíveis para ele. E
tanto é assim que, nota Olavo, o próprio conhecimento do próximo só é
possível se conseguirmos imaginar, como se nos fosse a nossa própria situação
concreta, aquilo que ele vive, sofre, goza, teme. A “arte de compreender as
pessoas depende inteiramente da amplitude do seu imaginário, da sua
capacidade de vivenciar imaginativamente situações que você nunca viveu
pessoalmente”, resume Olavo [Aula 8]. A literatura nos leva a atingir por meio
da imaginação um tipo de predisposição que será necessária ao trato moral
com os outros indivíduos.

O trato entre pessoas é intrínseco não só à vida social, mas também à vida
intelectual. Sempre estamos lidando com ideias ou experiências que foram
pensadas ou vividas por outras pessoas, as quais deixaram registros disso em
livros, obras de arte, nos mais variados tipos de documento. Quem se dedica às
coisas do espírito dedica-se a conviver com outros espíritos, a compreendê-los
com simpatia, ainda que para deles discordar. Isso se tornará especialmente
delicado na loso a, quando muitas vezes não temos clareza acerca das
experiências que dão a validade de uma cerrada argumentação formal.

Ora — pensa Olavo —, sem a consciência de quais dramas intelectuais


levaram determinado lósofo a escrever sua obra, jamais a compreenderemos,
caremos apenas a lidar com palavras sem lastro imaginativo na experiência
real. É necessário conhecer — ou “colecionar” imaginativamente — o maior
número possível de experiências primárias, pois quem disso carece não pode
perceber a concretude, a realidade dos dramas abstratos, intelectuais. Adestrar-
se para comunicar e resgatar a experiência real, pois, deve ser o objetivo
principal em nosso uso da linguagem, de maneira que até o mais abstruso
vocabulário losó co apresente completa correspondência com dramas
pessoais. [...]

O adestramento do imaginário pode prosseguir com um estudo mais


aprofundado da psicologia, desde que compreendida como disciplina que
auxilia o conhecimento de como vive e se comporta o homem.
Elogio da ambiguidade

N ão se deve aplicar à literatura uma vigilância similar à que se deve guardar


na vida religiosa. Se na vida religiosa certa prudência é necessária, na vida
cultural ela é de certa forma danosa. É preciso ser culturalmente promíscuo,
no sentido de se expor ao impacto de obras de todo estilo e nem sempre pias,
ou do contrário se desenvolverá uma sensibilidade estética análoga ao
moralismo em religião.

Quando você começa a ler Rimbaud ou a ver lmes de Fellini, as coisas


podem ser mais confusas do que edi cantes, e assim o esforço de car a par do
que está ocorrendo se sobrepõe à própria formulação de questões. Importa
incorporar aquelas tonalidades, construir um repertório de modulações
interiores, mencionar uma cena desconcertante numa conversa com um
amigo, para ouvi-lo a respeito, não para dizer que viu lme bacana e sacou tal
grande questão.

As coisas são assim porque a literatura, como a arte em geral, só tem um tipo
de valor: valor estético. O problema é o que se entende hoje por estética. Esta
se encontra submetida a uma visão pseudokantiana, bem rasa, que bota
estética pra cá (pirar, tomar ácido, escrever um poema) e ética pra lá (ir à
missa, almoço em família, respeite o sinal vermelho). Mas na verdade há uma
componente pedagógica inalienável em toda criação estética, ainda que se trate
de um livro que pregue abertamente o mal, delicie-se nele, como faz
Lautréamont. E as criações estéticas se permitem um tipo de ambiguidade que
só raras vezes a metafísica alcança.

A ambiguidade é boa. Deus criou as ambiguidades, o Diabo é que gosta de


ideia xa simples.
Abandone seu lugar de fala

O termo “lugar de fala”, embora da mesma cepa de “racismo estrutural” e


“teoria de gênero”, parece ter ingressado no vocabulário geral sem que seus
usuários atentassem ao seu sentido particular, o qual é particularmente nocivo.

Já vi comentarista esportivo que, para discordar de seu colega, pede licença


para o seu “lugar de fala”, que nesse caso não será mais que licença para
divergir. Por outro lado, o que é ainda mais espantoso, já vi gente conservadora
argumentar como quem falasse a partir do seu “lugar de fala” segundo o
sentido correto desse termo e da ideologia identitária do qual nasce. Chegarei
lá.

No mainstream brasileiro, Antonio Risério foi praticamente o único autor a


ter coragem de botar na praça um livro violentamente anti-identitário. O
título, por si só, é um manifesto: Sobre o relativismo pós-moderno e a fantasia
fascista da esquerda identitária (2019). Risério, talvez a melhor prosa de ensaio
hoje no Brasil, é esquerdista da velha guarda e não tolera a ignorância
autoritária de jovem que mistura funk carioca com Judith Butler.

Ele denuncia o perigo de normatizar o fechamento de cada grupo social em


nichos epistemológicos incomunicáveis, em seus “lugares de fala” (embora sua
argumentação siga outras vias). Se só negro entende negro, se só gay entende
gay, então ninguém entende ninguém. Mas, ao nos educarmos, pressupomos o
contrário disso: que sejamos capazes de nos compreender para além de
quaisquer diferenças, ou até em virtude dessas diferenças.

Tenho avô e tio negros, minha bisavó materna era lha de escravos, mas
acredito ser capaz de compreender um pouco de como vivia um nobre branco
na Normandia do século . Em minha newsletter comento a Eneida com
meus leitores,25 e como eu poderia me imaginar capaz de compreender
Virgílio se não apostasse na capacidade da inteligência de estabelecer pontes
entre diferentes “lugares de fala”?
Nas últimas eleições presidenciais, vi conservadores dizerem que, se você não
vota em Bolsonaro, é porque “não tem lhos” a serem doutrinados pelo  nas
escolas. Ou que, se você vota em Lula, é porque não pertence à “parte do país
que mais produz”. Isso não é nada mais que o conservador falando a partir do
seu “lugar de fala”, lugar esse que é o calvário de toda a tradição e educação.

Não há problema algum em ser conservador e aderir rmemente a políticas


conservadoras, como eu mesmo sou e faço. Mas essa condição não é salvo-
conduto para crer que, fora da minha posição especí ca (“pai de família” etc.),
não seja possível ter uma visão acertada das coisas. Quando o conservador faz
de sua posição um “lugar de fala”, garante que a discordância do outro não será
confrontada diretamente (com o objetivo de levar o discordante a mudar de
opinião), mas será atribuída a uma posição que é diferente da sua: cada um no
seu quadrado. Não há diferença alguma entre fazer isso e dizer, como dizem
militantes de esquerda, que só as próprias minorias sabem o que é sofrer
preconceito. O militante irá reivindicar autoridade em virtude de uma posição
social e econômica, por exemplo, o que é coisa similar ao que não poucos
conservadores têm feito.

E isso não tornará ninguém mais conservador ou cristão.


Lugar de fala e lugar de autoridade

P or mais que a ideia de “lugar de fala” se preste a muito pouco além de


acusar, na fala do outro, algum erro que nasceria de sua condição alheia à do
acusador, podemos nos perguntar o quanto haverá de verdade numa
compreensão um pouco mais ampla do problema, que, com um pouco de boa
vontade, poderia ser formulada da seguinte forma: nenhuma ideia está isenta
de marcas do seu surgimento, de traços peculiares aos indivíduos e momentos
dos quais surgiram.

Eu mesmo sou radicalmente pessoalista. Acredito até que a maior defesa da


existência de loso as nacionais está na constatação de que a vida comum do
lósofo, a língua que fala, escreve e pensa, possui meneios, jeitos próprios de
a rmar e de negar, motivo pelo qual nenhuma loso a pode ser inteiramente
traduzida de uma cultura para outra. As formas que o indivíduo imprime às
suas ideias se tornam patrimônio das pessoas que o circundam, e as pessoas
que o circundam são o que bem ou mal chamamos de nação. Mesmo as
loso as mais abstratas têm pátria. Diria até que são as que mais têm pátria.

Assim também minhas escolhas terão algum enraizamento em minhas


circunstâncias pessoais. E as divergências — se é que não as houve até aqui —
começarão a se avolumar ao apontarmos quais as circunstâncias
determinantes, e se, à maneira de sociólogos, as buscaremos no per l
econômico e pro ssional do indivíduo, ou se, já à maneira dos partidários da
ideologia de gênero, as buscaremos em sua orientação sexual, ou ainda se...
São inesgotáveis as opções.

Porém, são inesgotáveis porque é muito fácil desbordar dos limites mais ou
menos intuitivos da autoridade do indivíduo. Falo autoridade no sentido de
autoria e de responsabilidade por aquilo de que se é autor. Quando se a rma
que “só quem passa por essa situação sabe de fato o que é isso”, quer-se dizer
que a medida nal da experiência é a própria experiência. O que está muito
bem. Tanto é assim que quase tudo o que vivemos pode ser abrangido numa
única e mesma escala de virtualidade da experiência.
Explico-me. Mesmo a educação depende de uma con ança inicial mínima
que o aprendiz deposita no mestre: esta pessoa é capaz de me levar a perceber
determinadas coisas importantes. No começo, essas coisas serão importantes
como notas promissórias. Elas detêm determinado valor, mas este parece
externo, atribuído por outrem (o mestre) a elas. À medida que o aprendiz
progride, à medida que se torna capaz de perceber mais elementos da vida —
ou de uma área da ciência que lhe interessa — sem a promessa do mestre, mais
a experiência direta dos fatos se torna a medida do seu conhecimento. Toda a
educação se baseia num pacto entre discípulo e mestre, o qual tem por foro a
experiência, foro esse ao qual o discípulo aspira chegar em algum momento.

Se lá chega, é porque tem autoridade para tanto, isto é, sabe-se responsável


pelos conhecimentos de que é portador, isto é, sabe de sua obrigação à
sinceridade para com aquilo que sua experiência direta lhe revela. Esse é o seu
lugar de autoridade.

Quem hoje reivindica um lugar de fala faz o caminho oposto. Faz um


movimento de retirada da autoria, da responsabilidade da autoria, a qual é
diluída na faixa menos pessoal de suas circunstâncias. A ideia de lugar de fala
depende da substituição, se quiserem, dos elementos mais pessoais pelos
elementos mais circunstanciais da vida do indivíduo. Um talento ou uma falta
grave se torna menos importante que a cor da pele, o crime cometido ou a
caridade exercida se torna menos importante que a orientação sexual. E a fala
terá de necessariamente predominar sobre a audição.

Contudo, para compreender é preciso postar-se mais como ouvinte que


como falante. A autoridade depende em boa medida de nossa capacidade de
transitar em meio às diferentes vozes que nos chegam. Transitar: o ouvir
sempre leva ao abandono do lugar onde se está, pelo menos a um seu
abandono virtual. Quantas vezes, ao ler ou assistir a uma entrevista com
pessoa cujos talentos se centram em áreas inteiramente fora da ordem comum
de meus afazeres, não senti vontade de abandonar tudo que eu zera até então
e, de algum modo, recomeçar a vida?

Não quero aqui reivindicar nenhuma autoridade em nenhum assunto


especí co, mas quero apontar o fato de que a autoridade se solidi ca na
medida em que você se sente bene camente tentado a ser outra pessoa, a fazer
novas todas as coisas (justamente em virtude daquele ato de escuta), e ainda
assim permanece el a seus intentos básicos, aqueles que tenderão a nal a
de ni-lo como pessoa.
Diante disso, o lugar de fala representará a facilidade indulgente a que
sempre nos expomos quando habituados demais à própria voz.
Instinto quixotesco

Q ue eu conheça, a visão mais bem acabada — e de uma hilaridade cruel —


do que é nosso instinto quixotesco em estado puro, e em cegueira estonteante,
é a metade bondosa do visconde partido ao meio de Italo Calvino. É aquele
arremedo de cavaleiro nobre, altivo e de gentileza in nita, que justamente por
querer tornar o mundo um lugar sem dores o torna mais doloroso ainda. É
coisa semelhante a querer dedicar sua vida inteira a se desfazer de todas as
infelicidades sem perceber que, importante mesmo, é não deixar que as
desditas anulem os momentos de ventura — com o senão evidente de que
aquelas jamais terão término. Eu, como muitos (pelo menos espero que
muitos), tenho de diariamente dar uma surra de realismo neste meu Dom
Quixote que não cessa, quase a rasgar meu peito, de brandir sua espada contra
todas as imbecilidades e vilezas que o cercam. É claro: é bom que primeiro ele
combata as minhas próprias. E, só então, tente consertar algum detalhe do
cenário maior em que se insere.

Senão, vejamos: o mundo está aí, e aí, até não se sabe quando, cará. Já eu e
você, muito em breve, não estaremos mais aqui. Se muito, sobreviveremos na
memória dos outros, sobrevida essa na qual Jorge Luis Borges, um ateu, via
uma espécie de eternidade. Portanto o máximo que chegaremos a fazer — isso,
aliás, se nesse intuito empenharmos todas as nossas forças — é ato similar ao
de quem atravessa os escombros do que um dia fora a casa de um
desconhecido e, por estranho ímpeto de bondade, em vez de tentar pôr tudo
em ordem e reerguer o lar inteiro, encaminha-se a um canto, ergue o dedo
indicador — e o desliza levemente contra a lateral de um quadro chamuscado
sobre uma parede que ainda resiste. E então pôde um desconhecido deixar em
ordem pelo menos a posição de um objeto naquele espaço que outrora fora um
lar para outro desconhecido. Isso é o máximo que nossa bondade nos
permitirá fazer neste mundo.

Para fazê-lo, temos de conter nosso instinto quixotesco. Porque o problema


não é só o querer pôr m a todos os reais e imaginários vícios do mundo. O
problema verdadeiramente espinhoso é não perceber que o bem, a cada ação
nossa, não toma a forma pura do Bem. Agir de acordo com uma moral
consequente e equilibrada exige perceber que o bem também deve ser
moderado de acordo com as circunstâncias em que estamos inseridos. Ou
então, obviamente, não se estará fazendo o bem de forma consciente — e fazê-
lo inconscientemente é um risco, já que assim poderemos também agir de
forma má sem que o percebamos.

Se, por exemplo, a cada porcaria que lesse na imprensa brasileira eu


resolvesse escrever um artigo mostrando por que aquilo está errado, no prazo
máximo de cinco dias eu estaria completamente pinel, babando minha
bondade histérica sobre o teclado. Agir corretamente exige, en m, a
contrapartida de aguentarmos determinados graus de maldade e sandice. Fora
que combater o mal apenas por combatê-lo não equivale de forma alguma à
realização do bem com vistas eminentemente positivas. Dou um exemplo:
supondo que o cristianismo estivesse errado e nos fosse um dever moral
sermos anticristãos, se passássemos dia e noite a falar mal do cristianismo,
como desde sempre passam os militantes ateístas, jamais estaríamos livres da
religião de Cristo. Ao contrário, permaneceríamos sob sua sombra,
continuaríamos a vê-la de dentro. A mesmíssima coisa ocorreria se eu me
dedicasse a refutar premissa por premissa toda e qualquer baboseira política
com que me defrontasse: eu estaria vivendo à sombra de um outonal e
gigantesco pé de baboseiras.
Sobre ter certezas

É natural ter dúvidas sobre se a pro ssão pela qual se optou é a que melhor se
coaduna à nossa vocação, ou ao menos a que a sufoca mais delicadamente, ou
ao menos a que ainda nos permita lembrar que um dia acreditáramos possuir
semelhante coisa. É natural temer que inexista Deus, temor sem o qual o
próprio Deus tornar-se-ia injusti cado. É natural caminhar pelas ruas da sua
cidade natal, após cruzar umas duas décadas embriagado dum sentimento que
só depois você perceberia lhe ser aplicável o nome de “ostracismo”, e sentir que
você dera voltas e voltas e voltas, e só o que mudou foram as luzes dos postes
— antes calorosamente amarelas, hoje assepticamente brancas — e a saúde de
seu pulmão: porque exilar-se só tem sentido se for para retornar ao
mesmíssimo e imutável ponto de partida. É natural tomar-se por falsamente
convencido de que tudo o que você zera não passou de uma temível sucessão
de derramamentos de tempo pela janela, quando, de fato, você está
verdadeiramente disso convencido e, pior, correto de maneira inexorável. É
natural questionar-se, por vezes, de que vale possuir uma certeza que não nos
tome em seus braços e nos ponha para dormir.
Encontrar-se perdido

Q ue eu recorde, a primeira vez que deparei uma exposição compreensiva do


fato de que extensos períodos de apatia e inatividade podem ser constitutivos
da prática intelectual, uma exposição profundamente reconhecedora de sua
necessidade, foi em Sexo e caráter (1903), de Otto Weininger. O autor vai dar
no problema da desorientação, da apostasia da fé no trabalho do intelecto, ao
investigar a natureza do gênio, que ele inclusive escalona, a chegar aos cumes
do criador original, do lósofo, e por m do fundador de religião. E nota, ao
analisar vida e trabalho de gente como Goethe, ser bastante comum que a
temporadas de trabalho intenso, de redação de livros e livros de en ada, se
sigam temporadas daquilo que os antigos chamariam — Weininger não usa a
palavra, que eu recorde — melancolia.

Sob o signo de Saturno, acama-se o intelectual, como acamou-se por anos


Max Weber, julgando tudo o que produzira um quase nada, uma coisa
insubstantiva que tanto se poderia dar aos homens como aos vermes.

Do ponto de vista do sistema exposto em Sexo e caráter, que vai da biologia à


loso a da História, não há, aí, o que temer. O gênio (todo intelectual, se sério,
quer ser gênio, e torna-se gênio quem de fato o quer e leva a vontade às
últimas consequências) de ne-se entre outras coisas por não compreender o
erro intelectual senão como erro moral. Muito humano é equivocar-se, dirão.
Weininger e o homem de gênio discordam: podem tolerar com boa vontade o
erro alheio; não toleram de maneira alguma o erro próprio. É que a falha de
compreensão não é compreendida como falha apenas. É compreendida como
pecado — pecado contra o Espírito Santo, que é o Espírito da Verdade. É trair
Deus, mesmo que não se creia em Deus.

Se todo erro intelectual é um defeito de caráter, é porque não existe


conhecimento puro, a menos que por sua pureza se indique sua natureza
totalizante, a abranger todos os campos da vida (quem pensa assim, é evidente,
ao escrever sobre um nada necessariamente se achará em necessidade de
escrever sobre tudo, e isso faz Weininger, desiste e se mata, e isso faz a maioria
de nós, desiste e vai para a Igreja). Um moralista intransigente como Ludwig
Wittgenstein logo se veria posto a nu em uma compreensão como essa da
natureza do conhecimento; não à toa Sexo e caráter foi seu livro de cabeceira.

Falo de Wittgenstein muito a propósito. O autor do Tractatus Logico-


Philosophicus sabia bem que não existe sistema lógico puro (matemáticos de
tempos em tempos redescobrem o fato, de Gödel a Dov Gabbay, mas sua
verdade ainda é uma esquisitice escandalosa para a maioria dos lósofos e
pesquisadores). Weininger explica o porquê: a pré-condição de
reconhecimento pela cognição humana de qualquer discurso analítico, mais
radicalmente ainda do que no caso do método dialético, é o tempo. Para que 
implique , é necessária uma cadeia de intuições para que se perceba um nexo
de necessidade entre uma coisa e outra. Tempo requer experiência de duração,
e toda experiência de duração só nos é acessível biogra camente. Biogra a, em
nossa experiência, tem forma de autobiogra a da qual vamos
progressivamente nos apossando, aclarando-a. Isso, chego ao ponto central,
depende de uma faculdade especí ca: a memória.

Qualquer conhecimento que nos chega, mesmo o mais analítico e abstrato,


está remotamente fundamentado na recordação que temos do que zemos e
pensamos no passado. Um fato lógico é fundado pelo fato antropológico de
que somos obrigados a nos reconhecermos como somos. É preciso
sinceridade; é preciso não fugir de si. É preciso aceitar que todo erro
intelectual tem um peso moral.

E invariavelmente, se estamos mesmo a caminho de ser alguma coisa que


preste, iremos em algum momento cair; praguejaremos contra nossos erros,
lançaremos vista a tudo o que zemos e não avistaremos mais que uma árida e
extensa planície de ausências. A crise é iminente.

***

Paro, vejo livros na estante como quem vê uma condenação. Por um lado a
ameaça do despropósito; da irrelevância de prosseguir com algo que, se tanto,
irá me proporcionar meia dúzia de motivos sobressalentes para conduzir uma
conversa bem-sucedida em ocasião social qualquer. A futilidade, Deus, a
futilidade — fulminai os levianos!

Por outro lado a ameaça do tempo; da irrevogabilidade de tudo o que se faz


mal e porcamente, mas sobretudo de tudo o que não se fez. E desde cima o
peso do talento e da vocação; do chamado genuíno a que não se atendeu com a
conformidade necessária. Fiquei abaixo de mim mesmo; não me tornei o que
sou — porque o que sou é o que deveria ser, e isso ainda não sou. Serei um
dia?

Esse, o sentido da crise pessoal que sazonalmente nos ronda.

A seu respeito necessito dizer que o sentimento de desorientação não é


apenas sintoma negativo de algo positivo. É algo positivo em si mesmo, porque
é uma ação. Se inteligência é ratio, é capacidade de reconhecer adequadamente
a “razão”, a proporcionalidade em suma, entre todo e parte, e indo acima entre
esse todo e uma nova parte de um todo superior, e assim por diante — se isso é
a inteligência, ora: nada mais natural que sua atividade, ao longo do tempo,
tenha certa dinâmica “horizontal”, a par daquela “vertical”, que acabo de
descrever com muita simpli cação. Nada que chega à consciência integra-se,
de pronto, no nicho de sentido que lhe é próprio. Maturidade não é tanto saber
mais coisas que na juventude quanto ter tido tempo de assentar no local
correto coisas que se havia apreendido talvez ainda na juventude. O homem
maduro não é maior que o homem jovem; é só mais ordenado. Ordo rerum —
como leva tempo para que se revele!

Assim, passo semanas, já houve vez de ser meses, sem atinar com que fazer.
Estudar sistematicamente parece esforço baldo. Ler, vá lá — pouco sei o que
fazer além disso. Rezar é opção sempre disponível e grata. Não há desejo de
acordar cedo, não há desejo de escrever. Sigo os dias como quem caminha
mais ou menos a um metro de distância atrás deles. Cadernos começam a
parecer o que de fato são — pilhas de papel manchadas de garrancho. A
própria vida intelectual começa a parecer um luxo. A própria vida começa a
parecer, como dizer?, improvável.

Notem que não se trata de não ver sentido em nada. Ao contrário: sei haver
algum sentido em tudo; mas sei também que não consigo persegui-lo sempre,
ou pelo menos não sem antes ter de recuperar o o da meada outra vez e outra
vez e outra vez.

Hoje, discípulo que sou de um lósofo que ensina a desenvolver um alto grau
de tolerância para com o estado de dúvida, a suspender o automatismo dos
juízos até que, em algum momento, as coisas mesmas falem, sei que nesses
períodos de relativa apatia nada, radicalmente nada é inútil. Pouco a pouco,
por meios inesperados e posso quem sabe chamar mesmo de subconscientes,
padrões de reconhecimento começam a se impor. Certos dados da realidade,
insigni cantes em aparência, dão a ver a ponta de um o; que custa puxá-lo
um pouquinho? Vejo então que aquilo leva a algo, porém não sei a quê. Largo
de mão e dali a dias, muitas vezes a vir desde um ângulo muito diverso, até
excêntrico, a mesma questão — reparem que agora já falo em “questão” —
reaparece.

Pouco a pouco, sem que eu necessite de nada além de paciência — ou uma


espécie de ascetismo relaxado para comigo mesmo e tudo quanto foge às
minhas expectativas —, meu estômago, cansado de ideias fora do lugar, as
regurgita parcialmente, para que em seguida volte a degluti-las melhor. Ou,
para falar de acordo com o modo de dizer de que me vali antes: vão-se
assentando as experiências, em minha consciência, no nicho que lhes é
próprio. Tênue, mas presente, anuncia-se um vislumbre de maturidade. As
ideias estão maduras e breve cairão sobre o solo de minha atenção. E assim
volto a reconhecer que o sentido não vem numa revelação, não é sequer uma
coisa, algo estático. Pessoas plenamente realizadas (aquelas que não temem a
morte) terão muita di culdade em descrever qual foi o “feito” de suas vidas.
Elas em geral não estão pensando nisso. O sentido é mais uma consciência de
abertura, de possibilidades, do que uma meta clara. Até porque no curso de
uma vida há incontáveis metas, sempre móveis. Nem a salvação da alma será
uma meta totalizante. Será no máximo uma imagem disso, que na vida
concreta irá requerer incontáveis mediações.

A perfeita racionalização (“proporcionalização”) de nossas experiências é


coisa que só podemos conduzir até certo ponto. Para além deste, nosso eu
pensante pouco tem o que fazer; o trabalho caberá à própria unidade da
consciência do indivíduo, a qual repele, “por instinto”, qualquer fratura grave,
preferindo até mesmo um arremedo de saúde e inteireza (como no caso de
neuroses e psicoses) a perdurar tempo demais ferida em seu fundamento
orgânico. Existe um limite de afronta à inteireza da consciência; se é grave
demais, se perdura demais, a sanidade inexiste.

Weininger estava certo. A perseverança é a única vitamina que a consciência


nos cobra para manter seu bom funcionamento, sua unidade. Provida essa
condição, de tempos em tempos ela nos traz uma nova safra de intuições.
P V: L  
“Nada, na realidade, é tão estranho quanto a glori cação das artes
verbais. Parecendo, à primeira vista, lutar pela universalidade, de fato,
elas estão empenhadas, com meios sutis, em trair a função fundamental
das palavras, que é serem universalmente aplicáveis. A vitória do estilo
na literatura signi ca exatamente isso. Os poemas épicos de outrora são,
talvez, uma exceção, mas qualquer obra literária com o nome do autor na
capa não passa de uma ‘perversão das palavras’.”
— Yukio Mishima

“Acho que o trabalho do futuro consistirá em vasculhar os domínios do


mal sem deixar uma única sombra de mistério. Descobriremos as
amargas origens da beleza, aceitando a or e a raiz, o botão e a folha. Não
podemos continuar resistindo ao mal: temos que aceitá-lo.”
— Henry Miller
A covardia das letras

L er literatura, especialmente escrever literatura, pior ainda escrever poesia,


talvez seja coisa de covar des.

Um poeta, se fosse mesmo capaz de viver a sua poesia, não a escreveria. Ele
escreve porque é um incapaz, um fracassado, alguém que capitulou da vida e
correu ao colo morno e consolador das letras, ah, as benevolentes letras.

Por isso Arthur Rimbaud foi, diz Henry Miller, sumamente poeta no
momento em que parou de escrever, deu as costas à poesia e foi viver. Havia
descoberto que cada palavra escrita, cada poema publicado, é um adiamento
da vida do poeta, que se poeta mesmo seria consumido por uma espécie de
gula existencial: a vontade de tudo conhecer, fruir, consumir, experimentar até
o limite de sua destruição. Não há quem pense que só conhecemos de fato
aquilo que criamos com nossa mente e nossas mãos? Pois digo que para essa
gula só se conhece de fato aquilo que formos capazes de destruir. Rimbaud o
sabia, e também, e muito bem, Henry Miller. Levar tudo às últimas
consequências, com clara consciência de que a derradeira delas é a destruição,
é o destino próprio de todo coração que, mais forte que a vida, é no entanto
impotente, infantil, tolo, e assim acaba esmagado pelo que lhe é inferior ao
mesmo tempo que torna intoleravelmente doce tudo aquilo que seu
romantismo toca.

Nem todo escritor precisa ir tra car armas na Abissínia, eu sei. Mas a muitos
faria bem deixar de considerar-se parte da irmandade que impera
secretamente sobre o coração dos homens. Essa pretensão é a máscara do
covarde que interpõe entre si e a vida desejada os símbolos desse desejo, os
quais não concorrem para a sua realização, e sim para o conformismo diante
da própria impotência.
Uma outra vida

D anilo Kiš, escritor iugoslavo implacável consigo mesmo, apontou o


problema:
Todo escritor tem consciência, até certo ponto, de um fato: a literatura é um substituto para a vida. A
literatura é uma vida paralela. O escritor está em permanente con ito, entre o medo de se afastar da vida
real e a paixão pela escrita, o que representa uma outra vida.26

O escritor, o sério como o medíocre, ouve o chamado aliciante da coragem


fácil, que, se aceito, o fará imaginar-se um herói das letras, mesmo que seu
modelo de heroísmo romantize o fracasso e a desistência. Suas qualidades e
falhas humanas reais serão adornadas pelas qualidades imaginárias com que
um ideal literário o galardoa. Cobrará dos outros que o tratem pelo retrato que
fez — ou quis fazer — de si em sua obra, e não pela pessoa real que nele veem.
Fará a sua presença física ser precedida pela presença abstrata de sua
bibliogra a. Não tomará mais conhecimento de juízos pessoais a seu respeito:
só reconhecerá, nos outros, os possíveis autores da fortuna crítica que o
imortalizará.

Essa outra vida que cria para si sempre será fantasmática, anêmica e
fundamentalmente aleijada por uma irrealidade congênita se não o conduzir a
alguma experiência de estranhamento.

Quando olho para o passado, para o que z, quem já fui, aquilo em que já
acreditei, o dano que provoquei nos outros e a dor que in igi a mim mesmo,
reconheço-me na exata medida em que percebo já não ser em toda a linha a
mesma pessoa. A memória, por meio desse estranhamento compadecido, ou
talvez inconsolado e até mesmo revoltoso — nada como a vergonha nos
levanta tão violentamente contra nós mesmos —, preenche os interstícios de
nossa autoimagem com os detritos da vida que, queiramos ou não, sobrevivem
aos nossos atos e guardam suas marcas. A realidade dessa vida, ou dessas vidas
que nos perseguem como pegadas que deixamos na areia, nasce da estranheza
que nos causa. É uma experiência bem-vinda, mas não inteiramente agradável.
Ao contrário, o literato acovardado ou partidário de ideologias (progressistas
ou reacionárias, tanto faz) irá criar mundos ccionais que na verdade não lhe
causarão estranhamento algum. Não constituirão para ele uma outra vida;
serão apenas o prolongamento mesquinho das pobres ideias e dos estúpidos
ideais com que se embeleza e se engana todos os dias. O verdadeiro
estranhamento só poderia ser alcançado caso a literatura o expusesse ao risco
do ridículo, caso admitisse lugar, em seus escritos, para o temor de estar
errado, caso não ocultasse o fato de que a falibilidade fundamental que
constata nos outros e projeta em seus personagens o afeta igualmente. O
grande romancista sempre é, enquanto romancista, um pouquinho pessimista,
agnóstico e cético, não importa quanta fé e convicção informem as suas
opiniões. Sua literatura se alimenta daquilo que o incapacitaria para as
atividades cotidianas mais comezinhas.

A outra vida não redime a vida comum. É esta vida comum, dura verdade,
que torna tolerável aquela outra, oferece-lhe alguma desculpa. Nisso se
fundamentam a incompreensão e intolerância que o homem comum tem, com
toda justiça, para com o escritor. O escritor é um ingrato: seus direitos autorais
deveriam ser destinados a cada pobre diabo que dia pós dia carrega o fardo
bruto da realidade nas costas para que, em cima dela, inconsequentes e sem
culpa, divirtam-se os letrados. É uma injustiça espiritual que, milenar, supera
os despotismos políticos e caçoa de qualquer miséria econômica.
A secreta aspiração humana

A covardia da literatura não parece ser exclusividade sua, nem mesmo das
artes em geral. Toda atividade simbólica traz a marca — dói dizer, mas é
preciso — de uma abdicação fundamental.

De saída, a cultura apresenta um impasse moral: como conciliar a busca de


sentido no mundo material com a atividade tímida e nefelibata de construção
de universos simbólicos? Quando você vê uma igreja barroca ou ouve uma
sinfonia de Mahler, depara-se com uma parcela de experiência humana que,
incapaz de se impor como dado natural da vida, abrigou-se no sanatório
espiritual das artes, o único lugar no qual a pusilanimidade é aceita como
virtude.

O ser humano fala tanto de transcendência, tanto das altas realizações do


espírito, sem perceber que sua secreta aspiração é ser como um bicho, bicho
mesmo, absolutamente bicho, para o qual toda a realidade (mesmo a mais
elevada, divina) fosse natureza, toda vontade não mais que a expressão de uma
necessidade biológica fundamentalmente correta e sadia.

O homem sonha em perder sua liberdade e em reduzir toda imaterialidade


(cultura, símbolo) a dado material ou, no máximo, sensorial.

Mas isso a literatura nos oculta, nos adia essa percepção, maldita seja ela, a
arte de capitular.
O verdadeiro mal-estar da civilização

Snaturalmente
onhamos pois demais com a naturalidade, com sermos naturais, isto é,
nós mesmos. Em poesia, louvamos a naturalidade como grande
qualidade. Um poema não pode soar “forçado”, deve soar “natural”; uma boa
tradução seria aquela que arti cialmente se oculta, passa por natural à língua
de chegada.

No universo humano em geral, mas especialmente em suas zo nas mais


elevadas, a naturalidade é coisa que só se conquista com muito esforço. E é por
isso que todo grande criador passa períodos prolongados de tristeza. Está
ciente da culpa que contrai ao criar. É a culpa de quem faz o mundo imaterial
avançar sobre o material, adicionando mais e mais camadas de impossibilidade
àquilo que se almeja como possível. Nada freudianamente, esse é o verdadeiro
mal-estar da civilização.

Agrada-me notar que os maiores responsáveis pela sublimidade da cultura


sejam também os maiores responsáveis pela mediocridade da vida. Tanto mais
porque, em razão disso, serão os indivíduos mais sofridos, aqueles que levam
uma vida de merda, os inapelavelmente lascados, incapazes sequer de protestar
contra a própria desgraça — bem, esses, sim, que são inúmeros, é que serão a
verdadeira força ativa da vida humana.

Como a vida os esmaga, eles têm a face bem colada ao solo. São dotados da
mais invejável das liberdades, que é a liberdade de se contentar bovinamente
com o que possuem. Esses são os verdadeiros pobres de espírito.

Eu, que escrevo estas notas, e você, que as lê, só podemos entrever o sentido
dessa pobreza e desejar alcançá-la à custa de muita cultura, muito símbolo,
muita covardia. Desejamos uma impossível coragem natural, uma arremetida
para fora do mundo simbólico, uma tentativa de respirar ares puri cados de
toda pestilência civilizacional.
Despreocupação

E stou despreocupado quando não sinto a aproximação iminente de alguma


circunstância que me cobre resposta. É verdade que estamos a todo momento
respondendo a circunstâncias, mas estas, vindas do futuro, apresentam níveis
diversos de cobrança em relação a nós, e umas tantas delas parecem até mesmo
ignorar nossa existência.

Estou despreocupado, portanto, quando me comunico menos com a


dimensão futura da vida. “Não vos preocupeis com o dia de amanhã” é o
mandamento do homem tornado peixe na água, ave no ar, lírio no campo. A
marca de toda naturalidade, de toda despreocupação formal, é a atmosfera de
“Deus dará”.

O escritor, enquanto artista abstrato, é alguém incapaz de despreocupação. É


alguém ferido de dinamismo antivital. É assim que Olavo de Carvalho chama a
capacidade especi camente humana de pensar não segundo as circunstâncias
que tornam o indivíduo e seu pensamento possíveis, mas justamente segundo
as circunstâncias que não os tornam possíveis, daí a sua antinaturalidade.27
Faço o experimento do cogito porque posso ngir que toda a minha vida
consciente não depende de nada além da certeza de que essa vida existe. Mas
se o indivíduo começasse a se perguntar se ele, ao realizar o cogito num
momento, permanece sendo o mesmo indivíduo ao fazer o cogito instantes
depois, e se esse seu experimento já não supõe implicitamente a existência do
tempo e da unidade do sujeito ao longo do decurso temporal, a ponto de
poder reconhecer-se como autor do cogito num momento e noutro...

Bom, aí ele começará a retornar ao padrão usual de suas experiências e


procederá à re exão completa (termo que Olavo toma a Hugo de São Vítor).
Pela re exão completa a consciência abrange o dado apreendido, sua condição
de agente apreensor, a relação entre o modo de apreender e as condições de
apreensão do dado: o ato inteiro da apreensão. Se a re exão completa se
incorporar, após muito esforço, à moldura mental do indivíduo, ascendendo à
condição de naturalidade arti cialmente conquistada, ele já não será simples
artista ou escritor: será lósofo; ou será santo, um verdadeiro asceta do
conhecimento?
A fascinação do difícil

É fácil tudo aquilo que não opõe resistência. Opor resistência é servir de
amparo à de nição de algo. A abóboda celeste de ne a esfera de ação terrestre
porque resiste — não se desfaz, não cede a outro limite — à nossa tentativa,
por força da imaginação, de substituí-la por algo que nos sugerisse uma maior
abertura. O céu visível, ao mesmo tempo que sugere liberdade, sugere os
contornos dessa liberdade, sugere sua esfera de ação possível, e só o faz
mediante uma resistência fundamental.

Cosmos é unidade, percebam. Toda unidade só o é porque capaz de resistir


às demais unidades. O mundo em que vivemos é identi cável porque não se
submete ao nosso arbítrio. Submete-se ao arbítrio de outrem tudo aquilo que
está marcado de morte, que se equilibra na cabeça do al nete que pende no
abismo do não-mundo, não-cosmos, do que propende a não ser. Somos
escravos dos limites que o mundo e as coisas do mundo nos impõem para que
não caiamos cativos de uma escravidão muito mais insidiosa: a de não nos
de nirmos e, portanto, não sermos.

O universo da palavra, como todo universo, como toda unidade, também


constrange à limitação, resiste a nós, para que nós, de nossa parte, igualmente
resistamos a ele. O Monstro Palavra, na cção cientí ca de William Burroughs,
obrigou-nos a abdicar do céu aberto:
O que espantou vocês para dentro do tempo? Para dentro do corpo? Para dentro da merda? Eu lhes
direi: “a palavra”. “a” Palavra Alienígena. “A” palavra do Exército Alienígena “te” aprisiona no Tempo. No
Corpo. Na Merda. Prisioneiro, ganhe a rua. O imenso céu está aberto.28

O universo linguístico é manipulador e manipulável. É sobretudo


manipulador quando falamos e somos quase falados pela linguagem na
conversa cotidiana, no tatibitate das expressões consagradas, das palavras
gastas pelo uso inconsequente a que nos assedia o Monstro. É sobretudo
manipulável quando o elevamos acima dessa faixa, quando escapamos do
monstro e começamos a fazer literatura contra a facilidade, pela di culdade. A
literatura redime a linguagem ao fazer da sua opacidade não uma carência, não
uma desvantagem, mas um trunfo, a cartada nal na mesa em que só há cartas
marcadas e tudo o que se aposta possui um sentido estiolado.

Não é fácil, não é sequer prazeroso sempre. Ir além dos valores linguísticos já
compartilhados e estabilizados numa sociedade é análogo a desejar substituir a
abóbada celeste por outro limite que nos seja menos limitante, é análogo a
desejar substituir a pele que limita nosso corpo por outro órgão que não nos
separasse tanto da unidade cósmica em que estamos inseridos. Não é a pele o
órgão mais extenso do corpo, e não seria credível imaginá-la ainda mais
extensa, a envolver não só a nós mas também a todas as coisas e seres numa
unicidade indestrutível, com uma tez enganosamente macia, já que na verdade
forjada no metal impuro de tudo quanto existe? A nossa pele já foi unida à
placenta, a placenta já foi unida ao útero, e nós não esquecemos nem jamais
esqueceremos o conforto de ser uma pessoa e ao mesmo tempo mais de uma
pessoa. Ansiamos pelo útero.

Pior, nos refestelamos nessa ânsia, voltados que sempre estamos para os
afazeres da linguagem. Para plasmar novas unidades dentro da limitação do
cosmos linguístico, desenvolvemos um instinto superior, uma espécie de gozo
cifrado que não corresponde a nada que se encontre no reino puramente
animal. Não nos guiamos pela promessa de felicidade, nem pela visão de uma
recompensa imediata, mas pela pura abnegação necessária à criação de
represas contra a corrente do tempo, do corpo, da merda. A alma abrasada
pede o querosene da fascinação do difícil.

Esse é o título de um poema célebre de W. B. Yeats, assim traduzido por


Augusto de Campos:
O prazer do difícil tem secado
A seiva em minhas veias. A alegria
Espontânea se foi. O fogo esfria
No coração. Algo mantém cerceado
Meu potro, como se o divino passo
Já não lembrasse o Olimpo, a asa, o espaço,
Sob o chicote, trêmulo, prostrado,
E carregasse pedras. Diabos levem
As peças de sucesso que se escrevem
Com cinquenta montagens e cenários,
O mundo de patifes e de otários
E a guerra cotidiana com seu gado,
Afazer de teatro, afã de gente.
Juro que antes que a aurora se apresente
Eu descubro a cancela e abro o cadeado.29
É com o potro da criação que ao mesmo tempo nos guiamos pela palavra e
arremetemos contra o seu império ilegítimo. Esse caminho, que contorna “O
mundo de patifes e otários”, precisa levar a alguma estrada jamais percorrida,
“e Road Not Taken”, como a chama Robert Frost: “Two roads diverged in a
wood, and I — / I took the one less traveled by, / And that has made all the
difference”. Optar por ela é um ato moral da maior seriedade; é escolher pelo
enfrentamento à facilidade, é não resignar-se à covardia do fácil, do aceite. A
literatura, lembra Danilo Kiš, é “forma tornada difícil”.

Os limites do cosmos linguístico precisam ser expandidos por meio de


investidas rumo a fronteiras antes não vislumbradas. É certo que aquilo que
num momento é difícil pode depois se tornar fácil, gratuitamente acessível, e
que aquilo que era fácil pode se tornar difícil de recuperar numa época
posterior. A neza de um artista — isto indica o quanto ele está ciente das
condições em que cria — mede-se pela sua lucidez ao notar onde reside a
di culdade de sua época, para a partir dela reencontrar a senda até as suas
di culdades pessoais mais imprevistas, foco irradiador de pesquisas ulteriores.

Suas criações, novas unidades que constrangem e são constrangidas pelo


cosmos linguístico, pelo Universus, são as pistas que vai nos deixando para
que, de nossa parte, aprendamos a partilhar da fascinação do difícil.
Contra a idolatria do poeta

Q uando Dante tem a cara de pau, no anto iv do Inferno, de colocar-se ao


lado de Homero, Virgílio, Horácio, Ovídio e Lucano, reproduz o velho hábito
literário de fazer poesia enaltecendo o poeta, isto é, enaltecendo a si mesmo.
Geraldo Holanda Cavalcanti tem razão: “De nenhum outro agente, em toda a
gama de vocações e pro ssões, se ouviu, ao longo da história, uma tal pletora
de hiperbólicos autoelogios”.30

Às vezes o poeta se autoelogia por meio do elogio da percepção poética,


retratada, por exemplo, em “Augúrios de inocência”, de William Blake:
To see a world in a grain of sand
And a heaven in a wild ower,
Hold in nity in the palm of your hand
And eternity in a hour.

Às vezes se elogia por meio do elogio do ente “poema” ou da essência


“poesia”. Ferreira Gullar se tornaria às vezes chatíssimo quanto a isso,
especialmente na vertente poesia versus mundo prático, respeitável,
econômico. Vejam-se os versos iniciais de “O lampejo”:
O poema não voa de asa-delta
não mora na Barra
não frequenta o Maksoud.
Pra falar a verdade, o poema não voa:
anda a pé
e acaba de ser expulso da fazenda Itupu pela polícia31

E, às vezes, o poeta se elogia elogiando o poeta, diante do qual até Deus se


intimida. Desse poeta, Rilke escreveria: “[Só] Um Deus pode alcançá-lo”.

A ideia de que o poeta deve ser louvado por não pagar pedágio na estrada da
realidade — ou por pagar pedágio demais, e aí teremos o canto do poeta
incompreendido, marginal etc. — levou muita gente a desdenhar da poesia.
Talvez o caso mais célebre e radical seja o de Witold Gombrowicz, exasperado
com essa “multidão de seres excepcionais”. Para ele, a própria essência da
poesia estaria na autoindulgência. Quem escreve um poema já espera ser
louvado, está fazendo uma espécie de mimimi culturalmente nobre. O poema
é um pedido de arrego, de que perdoem o poeta e lhe paguem as contas.

Não condeno a poesia e reconheço que é possível escrever coisa signi cativa
com o velho mote do poeta vate, poeta pajé da tribo, poeta legislador secreto
do mundo, poeta que não abre loja da Havan mas abre as portas da percepção.
Mas vamos baixar a bola. Na verdade, isso é uma con ssão de impotência: se o
poeta tivesse mesmo todo esse poder, não faria tanta bravata.
Mitologia pessoal como nova glori cação do
poeta

Iassim:
ncomoda-me Brigg atts (1966), longo poema narrativo (nem tão longo
717 versos) de Basil Bunting. Bunting talvez seja mais conhecido pelas
referências que Ezra Pound faz a ele, em especial a atribuição da descoberta da
en “: densare” (“fazer poesia: condensar”) em um
dicionário alemão-italiano.

Como Pound e como Louis Zukofsky, cismou de escrever poesia de fôlego


épico, mas aquela épica tão pessoal de poetas do século . Com a rápida
perda do quadro mitopoético cristão, a poesia teve de dar seus pulos, e assim
se disseminou uma panóplia de mitologias pessoais. Ler Pound requer o
conhecimento não só de algumas culturas, mas também da vida e das
idiossincrasias de Pound. O mesmo se pode dizer de Sousândrade. E não teve
T. S. Eliot de oferecer notas de auxílio à leitura de e Waste Land?

Bunting faz o mesmo em Brigg atts, que recebeu tradução e prefácio


excepcionais de Felipe Fortuna.32 É um poema no qual, olhando para o
passado, o velho Bunting localiza num momento de 50 anos antes o ponto de
in exão de sua vida: foi quando, beijando Peggy, acabou por negar o amor
dela. A desgraça da sua vida foi negar o amor. 50 anos de remorso, 717 versos
de música contida para aplacá-lo.

Mas a coisa é críptica. A poesia não é pública. Tudo precisa ser desvendado.
A mitologia do poeta: o touro, o pedreiro, a cobra-de-vidro. E por aí vai. É um
esforço estranho a quase toda a poesia feita até o século . Você poderia não
compreender Ovídio por não saber nada sobre o deus Janus, mas Janus era e é
um dado cultural disponível. Agora, não entender nem o título do poema de
Bunting por não saber que o poeta vem de família de quacres, e que esses
dissidentes religiosos se reuniram inicialmente numa hospedagem que tinha
esse nome, e que naquela região o jovem poeta teve um encontro amoroso —
bom, isso é coisa bem diferente.
Não teria a poesia moderna criado a necessidade de ccionalização da vida
do poeta como uma espécie de compensação da perda do quadro mitopoético
tradicional (cristianismo, imaginário greco-romano, alegorias renascentistas)?
Eu não sei. Mas parece que sim, e para prejuízo de todos nós, tanto mais que o
procedimento se torna mais um meio de glori cação do poeta: agora, a sua
própria vida, nos detalhes mais anódinos, mereceria a atenção antes
dispensada apenas à cultura em geral.

A obscuridade da poesia moderna é mais um testemunho da pusilanimidade


de criadores que se pretendem justamente os mais arrojados. Henry Miller
fulminou-os com este petardo:
Os poetas modernos são ciosos do nome, mas não mostram disposição para aceitar a responsabilidade
de seu ofício. Não provam que são poetas; contentam-se simplesmente em serem chamados assim. Não
escrevem para um mundo que se agarra a cada palavra sua, mas uns para os outros. Justi cam a própria
impotência tornando-se deliberadamente ininteligíveis. Vivem trancados em seus mesquinhos egos
glori cados; mantêm-se distantes do mundo por medo de serem estraçalhados ao primeiro contato.33

É, poetas, haja saco.


Defesa da poesia impura

T alvez jamais um poeta tenha sido tão poético quanto Arthur Rimbaud. E
no entanto ele não nos cansa. Por quê? Em razão de seu segredo mais íntimo, o
seu talento mais intransferível, que o capacitava para ao mesmo tempo ser
maximamente poético ao fazer uma poesia maximamente impura. Fez-nos ver
que o mundo da poesia não cabia na obra dos poetas e convocou todos os
estilos e todos os objetos do universo a tomar parte em seu esforço quase
imoral de apurar a forma sem depurá-la de nada. Seu procedimento era
omnívoro, conforme a fome existencial de que falei e que ele tanto cantaria:
Meu gosto agora se encerra
Em comer pedras e terra.34

Pedras e terra. O mundo, em Rimbaud, salvou a poesia de si mesma: “Eu


seria de bom grado a criança abandonada no molhe voltado para o mar alto, o
jovem trabalhador, seguindo a aleia cuja extremidade toca o céu”, escreve
numa de suas Iluminações35 e o comprova o resto de sua vida.

Mas Rimbaud não foi su ciente para salvar os demais poetas de si mesmos,
razão pela qual é conveniente lembrar as palavras de Witold Gombrowicz
contra a poesia pura:
Por que não gosto da poesia pura? Pelas mesmas razões pelas quais não gosto do açúcar “puro”. O açúcar
é ótimo quando o tomamos junto com o café, mas ninguém comeria um prato de açúcar: já seria
demais. É o excesso o que cansa na poesia: excesso de poesia, excesso de palavras poéticas, excesso de
metáforas, excesso de nobreza, excesso de depuração e de condensação que assemelham os versos a um
produto químico.36

Não só isso. O poeta também é marcado por um exclusivismo: “Os poetas


escrevem para os poetas”, isto é, “o poeta se dirige apenas àquele que já está
envolvido com a poesia, ou seja, àquele que já é poeta, mas isso é como se um
padre desse seu sermão a outro padre”. E o poeta não resiste a tudo reduzir à
poesia, inclusive a própria poesia: “Os poetas ainda não compreenderam que
não se pode falar de poesia em tom poético e por isso suas revistas estão cheias
de poetizações sobre a poesia, quase sempre horripilantes por seu estéril
malabarismo verbal”.37
A crítica que se pode fazer à tradição idealista, em loso a, é
fundamentalmente a mesma que se pode fazer à poesia: na busca de
ultrapassar a realidade mais imediata, acaba na verdade descuidando do fato
de que é nela que pisamos — e assim, da mesma maneira como uma pessoa
pode ser reduzida a um descarnado sujeito transcendental, pode um poeta
trair a linguagem que lhe serve de suporte e, por meio da poesia, trocá-la por
um patoá que já não atende à nalidade comunicativa. Diz Gombrowicz:
O poeta não toma como ponto de partida a sensibilidade do homem comum, mas a de outro poeta, uma
sensibilidade “pro ssional”, e, entre os pro ssionais, se cria uma linguagem tão inacessível quanto a dos
outros dialetos técnicos; e, subindo uns sobre os outros, formam uma pirâmide cuja ponta se perde no
céu, enquanto nós camos embaixo um tanto confundidos. Mas o mais importante é que todos eles se
tornam escravos de seu instrumento, porque essa forma é já tão rígida e precisa, sagrada e consagrada,
que deixa de ser um meio de expressão; e podemos de nir o poeta pro ssional como um ser que não
pode expressar a si mesmo porque tem de expressar os versos.38

Não se alcança a educação quando ela é tornada um m absoluto em si


mesma, sem a devida fruição dos meios que conduzem a ela.

Assim também não se alcança a poesia quando se quer apenas fazer poesia,
puramente poesia.
Docere cum delectare
“Quando se escreve uma carta, sabe-se exatamente o que dizer: a ilusão de que se dirige a um público
universal é a essência das letras, e abstrata é essa essência.”
— Paulo Leminski, Catatau

A lguém dirá que a literatura é, sim, uma atividade doadora de sentido à


vida humana, e portanto está acima das acusações — ainda que parcialmente
válidas — de covardia, de ser não mais que adiamento da “verdadeira vida, /
Aquela que não é vivida” (Dante Milano). Antes, seria justamente um meio de
iniciação à vida.

Não ensina o adágio latino docere cum delectare, “de leitar ensinando,
ensinar deleitando”, que instrução espiritual e diversão mundana se reuniriam
na literatura? Assim, um bom poeta será ao mesmo tempo um bom professor e
um bom mágico de rua. Irá nos iniciar nas minúcias da língua e nos arcanos
da Verdade, mas ao mesmo tempo nos fará, quem sabe, rir. Anjos não riem. Só
ri quem está ligado à vida da carne; o riso instruído, em especial, será uma
vivência ainda mais exclusiva da condição humana.

A visão pedagógica da literatura não atina com os males do ensino. Ensinar é


con ar algo a alguém. A tradição é a mais alta forma de con ança. Podemos
guardar virtualmente quase tudo o que descobrirmos ao longo da vida caso
tenhamos a generosidade de con ar nossas experiências a alguém.

Cruzam-se aí duas ordens de circunstâncias. Uma diz respeito à vivência


direta daquilo que depois, por recurso à memória, poderei contar a alguém. E
outra diz respeito ao ato de comunicação. A comunicação implica tanto
proximidade quanto distância. Tenho de me identi car com o interlocutor e ao
mesmo tempo estranhá-lo como alguém que não sou. Tenho de con ar nele,
traindo-o. Mais ainda, na medida em que con o nele traio minha experiência
pessoal, aquela que pretendo transmitir, porque assim apago a distância que
sei existir entre aquilo que vivo e aquilo que meu interlocutor vive.

Essa distância e essa traição se agravam no caso da literatura. A experiência


dos séculos evidencia o fato de que lemos autores em sua maioria mortos, e
mortos há muito tempo, oriundos até de geogra as estranhas. A literatura
depende dessa utopia comunicativa, desse lugar nenhum onde todos se
reúnem, essa espécie de além imanente. Quanto mais reacionário for o leitor,
maior será a sua fé nessa utopia de uma civilização erigida sobre a ideia de
universalidade. Mesmo quando diz abandonar todas as quimeras e ideologias,
permanece aferrado a esse pensamento dileto, essa fábula histórica que
dotamos quase de vida pessoal, de volição, de modo que a cultura se torna
fado que, não sabemos por quê, às vezes rebenta sobre nós.

A crença de que Virgílio tenha escrito algo que diga respeito a mim mascara
o fato de que nada que eu escreva dirá respeito a Virgílio. Na literatura como
em tudo mais, os mortos exercem uma tirania sobre os vivos, tirania essa tanto
pior porque até justi cada por uma ideologia civilizacional (a da
universalidade comunicativa).

Tinha assim razão Harold Bloom em falar de “angústia da in uência”. A


consciência angustiosa desse fato nos levou a vislumbrar o gênero próprio à
vingança contra os mortos: a crítica literária. Sentindo-me amordaçado
perante Virgílio, desisto de me dirigir a ele e ergo a minha voz na direção de
meus contemporâneos e dos pósteros: posso, através da crítica, não fazer com
que Virgílio me ouça, mas fazer com que os demais ouçam Virgílio segundo a
maneira como o compreendo.39

Toda crítica, se autêntica, traz presentes a marca da traição e a mácula da


vingança. A marca da traição está na consciência de que é preciso um trabalho
analítico para penetrar o sentido da obra, para percorrer a distância entre
leitor e autor — para que, logo em seguida, ou simultaneamente, se recaia na
utopia literária, isto é, se reincida na traição da distância existencial entre
pessoa e pessoa.

A mácula da vingança está na decisão de, transcendida a imoralidade dessa


traição, atuar como um manipulador da topogra a utópica da literatura.
Imaginem que um todo-poderoso Robinson Crusoe, tão logo chegado à
inóspita ilha, começasse a reorganizá-la de cima a baixo: movendo montanhas,
abrindo e fechando clareiras, migrando animais daqui para lá, rearranjando o
clima mais tropical ou menos do local. Quem mais chegasse a essa ilha só a
conheceria pelo que dela zera Crusoe. Essa ilha é a literatura, esse Crusoe é o
crítico.
Na medida em que é o maior inimigo da história literária, é o crítico que a
move. E todo leitor que queira extirpar a covardia da literatura precisa se
tornar crítico.
Elogio da força física

Stornar
e bem que a literatura nasça da covardia, nada impede que ela possa se
a arriscada tarefa de quem, não mais mero “construtor de latrinas”
(como se chama em Ulisses ao homem civilizado), tenta fazer-se como os
peixes na água, como as aves no ar.

Para melhor compreender esse esforço, aceitemos este estranho fato: não é a
razão que individualiza o ser humano e o separa dos demais animais; na
verdade, é a força física que o torna tão particular.

Varlám Chalámov fez essa descoberta ao observar a vida de seus


companheiros de Gulag, a viver sob frio extremo e a executar tarefas
irracionais, brutais e in nitas. Escreve:
Às vezes parece, e o mais provável é que seja realmente assim, que o homem destacou-se no reino
animal, tornou-se humano, ou seja, um ser capaz de inventar coisas como estas nossas “ilhas” [de
trabalho forçado], com toda a inverossimilhança da vida nelas, justo porque é sicamente mais
resistente do que qualquer outro animal. O que humanizou o macaco não foi a mão, nem o embrião de
cérebro, nem a alma; cães e ursos comportam-se com mais inteligência e caráter do que o homem. Não
foi o domínio da força do fogo; tudo isso aconteceu depois que se concretizou a principal condição da
transformação. As outras condições permaneceram as mesmas, mas, em determinado momento, o
homem mostrou-se muito mais forte e resistente sicamente, apenas sicamente.40

A contemplação da vida dos cavalos era de particular interesse a Chalámov.


Naquele mesmo conto famoso, “O encantador de serpentes”, nota que “O
cavalo não suporta nem um mês de vida nesse inverno, em habitações geladas,
com muitas horas de trabalho pesado sob o frio intenso. [...] Mas o homem
vive. [...] Ele vive do mesmo modo como vivem a pedra, a árvore, o pássaro, o
cachorro. Porém, apega-se mais à vida do que eles. E é mais resistente do que
qualquer outro animal”.41

Já em outro conto, “Chuva”, contará como “nossos cavalos esgotavam-se e


faleciam”:
Faleciam por causa do Norte, do trabalho além das forças, da comida ruim, das surras, e, embora tudo
isso fosse dado a eles mil vezes menos do que às pessoas, faleciam antes. Então compreendi o principal:
o ser humano tornou-se humano não porque é uma criatura de Deus e não porque tem um polegar em
cada mão, mas sim porque é sicamente mais forte, mais resistente do que todos os animais e, depois,
porque conseguiu colocar seu princípio espiritual a serviço de seu princípio físico.42

O estilo desembaraçado e direto de Chalámov guarda algo dessa intuição,


que não foi coisa que lhe ocorreu de modo isolado numa narrativa, antes se
converteu num verdadeiro motivo de sua obra, uma constatação recorrente
que lhe permitirá a conclusão de que, para além de quaisquer lirismos e
quaisquer metafísicas, existe o fato bruto da humanidade, a sua consistência
corpórea, sua existência a mais material, até materialista, e nela própria há
uma dignidade que lirismo algum será capaz de expressar, que metafísica
alguma será capaz de explicar.

A naturalidade mais imediata do ser humano, a sua corporeida de, é algo tão
ou mais valioso que a sua capacidade abstrativa, cuja meta de autenticidade
sempre será pálida se comparada à força de um músculo que se contrai no
desempenho de atividades indóceis e, às vezes, verdadeiramente heroicas.
Do corpo. A fatalidade da metafísica

D as muitas meditações que o lme Crimes of the future (2022; direção de


David Cronenberg) pode inspirar, a mais sutil talvez seja a fatalidade da
metafísica. Não importa quão equivocado você possa estar: se estiver mesmo
empenhado em conhecer algo da realidade que o cerca, ou se estiver ao menos
um pouquinho empenhado em não entediar-se, acabará em algum momento
por agir segundo a compreensão — seja expressa seja só tácita — de que aquilo
que lhe chega de maneira mais imediata não basta.

Você pode ser, por exemplo, materialista. Não falo de um materialismo


losó co mais ou menos bem articulado. Hoje a maior parte das pessoas age
segundo uma visão de mundo materialista por indiferença para com as
questões fundamentais. Menos ocupado em negar a existência de qualquer
realidade extramaterial do que em a rmar um sentimento de satisfação com a
sensorialidade da vida, o homem vulgar de hoje poucas vezes é capaz do nível
de concentração e atenção requeridos para crer que não, não existe nada para
além da matéria.

“Body is reality”, lê-se numa mensagem exibida por uma  durante uma
performance sadomasoquista protagonizada por Saul Tenser (Viggo
Mortensen), o personagem que tornou a extração de novos órgãos cancerosos,
que volta e meia reaparecem em seu corpo, espetáculo público. O sexo, num
mundo que só sente alguma intensidade quando aquilo que se preza é
exteriorizado contra o decoro, só poderia se tornar a penetração em sentido
mais estrito do corpo do outro, com o só cuidado de não matá-lo, já que dor
não é mais problema — ninguém mais sente dor, pois se vive quase na
impossibilidade de sentir prazer.

Mas “Body is reality”, e inversamente toda a realidade circundante não é mais


que corpo, matéria. Mesmo assim, não nos contentamos com tão só
reconhecer o suposto fato: precisamos ir além, precisamos fruí-lo, construir-
lhe uma ética e uma estética.
Insiste-se muito, nesse lme, na ideia de “beleza interior”, de conhecimento
do que alguém verdadeiramente é. Se antes se podia crer que conhecer o
íntimo de alguém seria algo mais ou menos vago, mas mais ou menos
elucidativo, como conhecer sua “alma”, agora, propõe-nos Cronenberg numa
metáfora radical, conhecer o íntimo consistirá em conhecer como alguém é
literalmente por dentro, em suas entranhas, na conformação de seus órgãos.
Cronenberg torna a penetração — na psique e no corpo do artista, nos espaços
escuros onde este habita — um princípio formal de sua cinematogra a.

Não nos contentávamos com a aparência da pessoa, procurávamos sua


“alma”; não nos contentamos agora com o corpo visível do indivíduo,
queremos vê-lo pelo avesso, por dentro. Queremos destruí-lo para conhecê-lo.
O sexo é um devassamento. Antes devassava a intimidade da relação dos
corpos, agora devassa os corpos no sentido mais corporal possível. A
brutalidade pornográ ca é a última fantasia da imaginação, a qual não
consegue ser outra coisa senão metafísica. Sua meta é sempre além.
Artes marciais
“O ideal de nossa prática é a volta ao natural, à Natureza. Ser natural, no entanto, é extremamente difícil
e modi car um homem é quase impossível.”
— Ismenia A. Veber43

T oda atividade física requer mais esforço para ser iniciada do que para ser
concluída. Se você tem um condicionamento físico mediano, sabe que é mais
difícil chegar à décima exão do que à trigésima. Passado o primeiro
momento, o esforço se amortiza e passa a ser vivenciado psicologicamente não
como prazer, nem mesmo como desa o, mas como rotina.

Isso será especialmente verdadeiro no caso das artes marciais.

É possível apreciar cada arte segundo o menor ou maior grau de


expressividade requerido de seus movimentos. O kung fu, em particular, tem
no grau máximo de expressividade — até às custas da e ciência marcial —
uma de suas principais características, coisa muito visível nos estilos mais
populares: Shaolin, Wing Chun, Tai Chi, etc.

O aperfeiçoamento de um movimento com o propósito de torná-lo


maximamente expressivo consiste em sua mais perfeita limitação. Forma,
a nal, é limitação. Os movimentos de uma bailarina são livres na medida em
que são delimitados com a precisão requerida. Ela se move e dança, mas seu
movimento e sua dança obedecem a uma série de padrões prede nidos e
conjugados de forma mais ou menos imprevista. Arti cialidade que simula
não sê-lo.

A lapidação do corpo e a limitação expressiva do movimento aspiram à


naturalidade, pois. Um lutador deve se movimentar no ringue com a mesma
desenvoltura e despreocupação com que correria num parque acompanhado
de seu cachorro.

Nosso corpo deseja ultrapassar a força. O esforço se destina a ser dissolvido


em hábito muscular. De alguma forma, alguém poderia dizer, o corpo aspira a
ser alma, a ser exibilidade realizada. Pre ro ver de maneira oposta: é a alma
que aspira a ser corpo, é a forma que aspira a ser movimento.

Portanto, em nossa habitação física do mundo ressurge o problema da


naturalidade da experiência e de nossa covardia fundamental. Com uma
diferença marcante, contudo: a covardia na literatura pode tornar nossas vidas
mais tristes, mas a covardia física nos expõe ao risco de morte. A criança que
aprende a andar e o lutador que aprende a matar encontram maior justi cativa
moral para a sua covardia: esforçam-se para não morrer. O escritor e o leitor,
não: seu fracasso é só o desdobramento de um fracasso mais fundamental, o
fracasso de uma vida absurda e diabolicamente gratuita.
O visto e o tocado

M estre Pedro Augusto, criador do sistema de defesa pessoal Zen Chuan


Dô, certa vez me repetiu uma frase que ouvira décadas antes, quando havia
iniciado sua formação no kung fu estilo Wing Chun:
Aquilo que não é visto não pode ser defendido, e aquilo que não é tocado não pode ser quebrado.

A frase tem sabor de koan, de dito clássico e pedagógico transmitido pela


tradição budista. Tem, sobretudo, uma qualidade muito comum em
ensinamentos marciais: são parábolas de combate que visam comunicar algo
de fundamental acerca da vida.

Mestre Pedro Augusto Castro Costa morreu no dia 28 de fevereiro de 2022,


com 53 anos incompletos.

***

Toda legítima arte marcial guarda certos traços educacionais que foram
abandonados pela pedagogia das últimas décadas. Antes de mais nada,
nenhuma arte marcial pode razoavelmente equiparar aluno e professor. Há
uma discrepância qualitativa evidente entre os movimentos do mestre e os
movimentos do discípulo. E, se essa discrepância diminuir demasiadamente, a
ponto de se tornar mais uma diferença de caráter que uma diferença de
técnica, é porque chegou a hora de o discípulo se retirar e abrir o seu próprio
dojô.

A hierarquia, tornada visível no colorido das faixas, é contrabalançada pela


disposição dos discípulos de memorizar uma série de posturas e movimentos
que os levarão um pouco mais perto dos estratos superiores da técnica.

Isto é, qualquer progresso dependerá de memorização, repetição e avaliação


segundo um modelo preciso, aquele corpori cado no mestre. Queremos ser
como as pessoas que admiramos, e queremos ser capazes de movimentos
similares aos do mestre que escolhemos.
A hierarquia, a objetividade dos modelos e o aprendizado pela repetição são
marcas da educação tradicional. Nenhuma escola de artes marciais pode
abdicar desses parâmetros, ou do contrário as artes ali praticadas morrerão.

***

Mestre Pedro insistia na necessidade de estabelecimento de formas xas em


artes marciais para que, quando mais adiantado em seu aprendizado, o aluno
pudesse se livrar delas, na medida em que as dominasse. Citava a de nição que
Bruce Lee deu às formas marciais: “desespero organizado”, isto é, uma falsa
segurança, a qual levaria o lutador a iludir-se acerca de suas reais capacidades
numa situação de confronto, na qual o imprevisto impera e o homem treme.

Lee chegou a vislumbrar a abolição das formas marciais. Mestre Pedro


considerava isso coisa impossível e, pior, uma fuga da verdadeira questão: o
objetivo da xação das formas não é prender-se a elas, é livrar-se delas; aquele
que domina uma grande variedade de formas e de situações paradigmáticas de
combate está preparado para transitar, com menor perigo, por outras formas e
situações análogas. O lutador precisa primeiro construir as formas, dizia
Mestre Pedro, para depois desconstruí-las. Mestre é aquele que desconstrói.
Aquele que em toda forma é capaz de perceber o seu vazio, a sua informidade
fundamental.

Não é por outro motivo que um pintor deve dominar os princí pios do
desenho, mesmo que não os empregue rigorosamente em suas obras; que um
poeta deve dominar os princípios da métrica, mesmo que pareça escrever os
versos mais livres já ouvidos. As características dos gêneros literários, como
sistema abrangente das possibilidades de conformação de limites numa obra,
devem ser aprendidas para que em algum momento sejam esquecidas.

A naturalidade, em qualquer arte, é arti cial. Toda espontaneidade deve


morrer, a m de que o rigor macere o espírito, crie uma disposição dúctil no
indivíduo. Aquela massa amorfa será xada, até mesmo violentada para que
condiga com um molde. E por m o molde será atirado ao lixo. A
naturalidade, aquela senhora gorda, surge agora toda leveza, prontidão,
maleabilidade ativa.

***
A ideia de forma nasce da ideia de limite, e a ideia de limite nasce da linha do
horizonte: não somos capazes de ver além dela, nossas mãos não a alcançam.
Quando pensamos em limite, pensamos em linha, e a linha, mesmo quando
vista na vertical, é de algum modo compreendida por sua horizontalidade
potencial.

Percebemos partes e todos, todos como partes, porque somos capazes tanto
de concretizar quanto de abstrair os limites dados em tudo aquilo que
percebemos. Consigo compreender a porta de minha casa como um limite
entre esta e a rua. Mas também consigo compreender a porta de minha casa
como uma continuidade entre esta e a rua, como a própria possibilidade de
estabelecer uma ligação entre minha vida dentro de casa e minha vida na rua.
Limite é a realidade metafísica mais patente. “Ser” e “forma” parecem, sob esse
aspecto, realidades segundas, mais distantes.

Num confronto real, numa luta sem regras, as formas marciais se dissolvem e
resta apenas a realidade do limite: o corpo do adversário com seu espaço de
entrada e saída, de aproximação e distanciamento.

***

Formado em Wing Chun junto à Fraternidade Kung Fu (à época dirigida por


Marco Natali), Mestre Pedro mais tarde se incompatibilizaria com a política de
linhagens marciais.

Numa outra escola tradicional, mencionaria sua admiração por um


praticante chinês de kung fu. Um conhecido representante de Wing Chun no
Brasil, que o ouvia, abriu um livro, pesquisou nele o nome ouvido e disse em
seguida: “Essa pessoa que você menciona não é mestre de artes marciais. Seu
nome não consta em nenhuma linhagem”. Foi a gota d’água para Mestre Pedro:
ele próprio aprendera mais por autodidatismo que por qualquer outro meio;
não concebia que a maestria de alguém pudesse ser avaliada por aquele
procedimento cartorial.

***

Várias vezes, ao repetir formas de Wing Chun, perguntou a mestres quais eram
as aplicações daqueles movimentos. Respondiam-lhe mostrando golpes que
lhe pareciam absurdos, de uma ine ciência total; outras vezes lhe diziam que
não havia aplicações, que aqueles movimentos eram apenas “demonstrativos”.
Incomodado, começou a testar por conta própria as possíveis aplicações dos
movimentos. Incorporava-os de tal maneira ao seu repertório, àquela
naturalidade arti cial, que passava a especular acerca deles como quem os
tivesse acabado de criar. Para algumas formas encontrou aplicações
imprevistas, fortes e e cientes em luta; para outras pensou encontrar suas
prováveis aplicações, mas estas não lhe agradaram.

Numa ta , assistiu a algo decisivo. Ali, um mestre chinês fazia


justamente o trajeto que lhe interessava: retornava das formas xas às atitudes
marciais ofensivas ou defensivas de que haviam surgido. Aquele mestre
mostrava que a intuição fundamental de Mestre Pedro era correta. Que o
aspecto artístico não poderia se separar do aspecto marcial. Que o caráter
artístico estava justamente na marcialidade.

***

Jonathan Clements explica em A Brief History of Martial Arts a origem da


falsa oposição entre arte e técnica marcial. Defende que tudo o que
conhecemos como arte marcial surgiu pura e simplesmente como técnica de
matar. Na China, quando um clã de guerreiros se tornava dominante numa
dinastia, seus representantes mais eminentes aposentavam as armas e
passavam a só empunhá-las em apresentações na corte. Com o passar do
tempo, aquelas técnicas de matar se tornavam não mais que um conjunto de
adornos, ricos o quanto fossem, culturalmente estimulantes o quanto fossem,
que identi cavam certa nobreza. Grande parte das escolas mais antigas de
kung fu sobreviveu dessa forma, a ponto de alguém como Mestre Pedro ter
di culdade em reencon trar a rota original do combate. Interessava-lhe não só
a meditação, mas também o punho. Zen Chuan Dô: “O caminho do punho e
da meditação”.

***

No Zen Chuan Dô, as aplicações marciais precederam sua xação em


movimentos a serem acumulados nos taolus (ou katis), os “caminhos” ou
conjuntos de formas correspondentes a cada faixa. Nenhum movimento nos
taolus é meramente “demonstrativo”: todos têm aplicação direta em combate, e
muitas vezes aplicações de uma brutalidade marcante, bela.

Só quem tivesse experimentado extrair de meras formas a sua possível valia


em luta poderia ser capaz de formalizar em movimentos xos todo um sistema
de defesa pessoal. Sozinho, em São Luís do Maranhão, sem nenhuma tradição
marcial sólida ao seu redor, um homem conseguiu descobrir e refazer por
conta própria o caminho que todo criador marcial faz, sem que saibamos nós
muito bem como. Ao ver e ouvir Mestre Pedro, entendi qual é o processo
cultural inerente à criação das artes marciais.

Inclusive porque ele não se restringiu às ferramentas herdadas do kung fu.


Como uns bem poucos outros mestres de artes tradicionais — ocorre-me
agora o caso de Didier Beddar, na França —, Mestre Pedro não pôde car
indiferente ao jiu-jitsu e ao escândalo que foi a atuação de Royce Gracie em
três das primeiras edições do . Naquele momento, por volta de 1994, ele
estava estruturando os primeiros taos do Zen Chuan, estudando aplicações
que iam além do repertório comum do Wing Chun. Percebeu que o kung fu,
para sobreviver no Ocidente, precisaria incorporar técnicas modernas de
confronto esportivo ao acervo de defesa pessoal. Logo, seria impossível
continuar ignorando a luta de solo (sei que em certas escolas de kung fu
existem alguns golpes e chaves muito antigos que se dão no chão, mas isso
passa longe de sugerir um sistema completo de guarda baseado no solo).

Mestre Pedro foi à biblioteca da Universidade Federal do Maranhão ()


em busca de livros sobre judô. Depois, caiu-lhe à mão um livro em inglês
também sobre artes japonesas. Com o quase nenhum conhecimento que tinha
à época desse idioma e com o auxílio de um amigo, foi vencendo a leitura e
levando para a sua modesta academia — o Instituto Garras — técnicas de
projeção a serem testadas. Mas o que vinha após a projeção se tornava mais
delicado de dominar. Naquele momento, existia em São Luís um único
professor de jiu-jitsu, James Adler, ainda na faixa azul, se recordo bem. Era
uma arte quase desconhecida; e, quando conhecida, mal vista.

Mestre Pedro travou amizade com alguém que lhe apresentou algumas
técnicas e lhe emprestou um  em que Renzo Gracie ensinava defesa
pessoal. Assistiu àquelas lições incontáveis vezes, com caderno e lápis na mão.
Depois veio uma circunstância favorável: alugou o espaço de sua academia,
nas horas vagas, a um professor de jiu-jitsu que passou a dar aulas ali. Mestre
Pedro agora tinha com quem praticar a luta de solo com frequência.

Se você olhar alguém do Zen Chuan lutando, terá a impressão de que assiste
a um lutador de  que, para além disso, é dotado de grande capacidade
criativa, pois se vale de um acervo de técnicas totalmente desconhecidas ao
vale-tudo. É o kung fu a viver dentro de uma modalidade moderna de esporte
de combate.

Feliz ou infelizmente, Mestre Pedro não tinha a ambição de formar lutadores


para subir em ringue. Dizia até que quem quisesse fazê-lo, bom, que o zesse,
mas que seu interesse era educar gente. Talvez esse tenha sido um erro
estratégico para quem, nas condições mais desfavoráveis, ousou desenvolver
um sistema marcial em São Luís do Maranhão. Talvez.

***

Tive o privilégio imerecido de conhecer esse homem. Ao lembrar agora que


está morto, que não poderei mais ouvi-lo, sinto uma leve punção de desespero
que me entrasse como uma lâmina pelas costelas. Sua arte permanece, sem
dúvida, ainda que sob os cuidados de um círculo muito pequeno de pessoas.
Se o Zen Chuan desaparecesse da face da terra hoje mesmo, como ocorreu a
incontáveis estilos marciais ao longo da história, ainda assim os esforços de
Mestre Pedro estariam justi cados. Muita gente aprendeu muito com ele.
Aprendi a ver mesmo quando não sou capaz de defender, aprendi a tocar
mesmo quando não sou capaz de quebrar.
Verso livre é ilusão tipográ ca

F alei há pouco de formas marciais, e falei que o artista marcial se vale das
formas para que um dia seja capaz de abandoná-las, como faz um poeta que se
exercita nos mais diversos metros para que um dia escreva versos livres. Mas
preciso fazer um reparo: não existe verso livre. Isto é: não existe bom poema
que seja inteiramente livre em relação à métrica.

Métrica é só um outro nome para certo modo de elocução, um critério de


medição do ritmo de acentos da fala. A poesia é coisa da ordem do tempo, e é
por isso que não existe anjo poeta. Você precisa ter carne para ser capaz de
fazer poesia no tempo. Você não precisa de papel, contudo. Aqueles que
acreditam na existência desse unicórnio literário, o verso livre, deixam-se
lograr por Gutenberg: sofrem de ilusão tipográ ca. Confundem a escansão
poética com a distribuição tipográ ca da linguagem na página.

O que o chamado verso livre faz é mudar a clave de registro do poema. Um


verso, até mais ou menos o século , era uma estrutura incumbida de indicar
que as palavras nela contidas perfaziam um determinado metro: tinham 7 ou
12 sílabas, por exemplo, que o leitor esperaria encontrar também nos versos
seguintes. Esse é o único motivo para a existência de “versos”: tornar visível ao
olho o que é perceptível aos ouvidos.

O que muitos poetas modernos fazem, contudo, é libertar o verso dessa


obrigatoriedade e cobrar do ouvido do leitor algo que a mancha tipográ ca
não lhe oferece mais: quebrada a isonomia da distribuição do poema na
página, o leitor é que terá de reconstituir o padrão de registro da linguagem.

Um decassílabo, por exemplo, poderá se espraiar por três versos, não se


limitando apenas a um. Ou uma combinação ibérica tradicional, decassílabo +
hexassílabo, poderá ocupar não dois versos, mas três. Um exemplo tomado a
Ferreira Gullar:
Jamais acenderás de novo
o lume
do tempo que apagou
O que, quando lido sem ilusão tipográ ca, soará como dois versos: “Jamais
acenderás de novo o lume [10 sílabas] / do tempo que apagou [6 sílabas]”.

Alguns dos melhores sonetistas brasileiros são também autores de alguns dos
melhores poemas de verso livre brasileiros (Drummond; Odylo Costa, lho). É
gente que explora a tensão entre o registro tipográ co do poema e sua
reconstituição sonora no ato de leitura.

Festejar o verso livre em detrimento da métrica é ignorância, não menor que


a ignorância de rechaçá-lo por sua liberdade, que é só relativa.
O dilema de Mishima

É difícil descrever o que está errado no pensamento de Yukio Mishima. A


estranheza se inicia pela própria ideia de falar de seu “pensamento” — palavra
traidora para quem, com tanta intensidade, se esforçou por religar-se ao corpo,
à pátria, ao sangue, ao sexo (esforço típico de um temperamento fascista).

Em seu caso é mais dedigno falar em memória, em memória profunda de


si: veja-se o momento em Con ssões de uma máscara (1949) em que recorda
— não consigo crer que seja mentira, como deveria ser — seu primeiro banho.
Em especial como se imprimiu em sua sensibilidade de bebê a luz solar
re etida na água e na espuma do rebordo da banheira de madeira.

(Seria esse um topos japonês? Em suas memórias, Akira Kurosawa também


diz relembrar sua imersão numa banheira quando recém-nascido.)

Todo o trabalho de Mishima é, em maior ou menor grau, memorialístico


(Gilberto Freyre: “Todo grande artista é, em alguma medida, autobiográ co”).
E eu poderia repisar o fato de que a auto cção, nele, caminha a par da
autofetichização, do heroísmo banhado na histeria de quem mais se celebra
quanto mais se dispõe a ser destruído.

Tudo isso é bem verdade, mas é um daqueles fatos que melhor se


compreendem se tomados como vias, como sintomas. Como sinalização, por
exemplo, de que quem cometeria sepukku aos 46 anos talvez não tivesse
compreendido — ou seria o caso de que a compreendeu além da medida
saudável? — esta estranhíssima lição: buscar viver com a maior autenticidade e
penetração possível a vida pode levar a uma incompatibilidade essencial com a
vida. Entregar-se à vida, metodicamente, é quase negar-se a confrontar a
morte. Daí a rotina de morti cação consciente a que Mishima se entregou com
a tenacidade de um místico, não, porém, como quem se prepara para a vida
eterna, mas como quem deseja um perfeito instante mortal.

É constrangedora e mesmo aviltante a narrativa de que, adolescente,


Mishima masturbou-se vendo num livro a imagem de São Sebastião chagado
de echas. O jovem mártir quase nu, com o corpo exposto e o olhar de quem
há muito se entregara a Deus, lhe deu a primeira intuição de que algo une
beleza, morte e carne:
A sua incomparável e alva nudez irradiava sobre um fundo crepuscular. Os braços musculosos, os
braços de um guarda pretoriano habituado a retesar o arco e a empunhar a espada, erguiam-se num
ângulo gracioso e os punhos atados cruzavam-se exatamente acima da cabeça. Tinha o rosto
ligeiramente virado para o céu e os olhos abertos contemplavam com profunda serenidade a glória
celeste. Não é o sofrimento o que percorre aquele peito tenso, aquele ventre rígido, aquelas ancas
levemente descaídas, mas sim o vislumbre de um melancólico prazer, em tudo semelhante à música. E,
não fossem as echas cravadas na axila esquerda e do lado direito, dir-se-ia um atleta romano em
repouso, encostado a uma árvore sombria, no recanto de um jardim.44

A força de sua inteligência iria se voltar cada vez mais para a realidade do
corpo, para a vitalidade da vida em seu sentido mais super cial, para a
experiência da vida social em sua hierarquia mais exterior. Disso vai que a
musculação, por exemplo, estará para o corpo do indivíduo como a técnica
militar estará para o corpo da sociedade. Ou, se preferirem, considerem esta
pergunta-síntese do dilema de Mishima: como louvar a vida de homossexual e
outsider, a antivitalidade e pessoalidade levadas a níveis disruptivos, e ao
mesmo tempo louvar as tradições pátrias, a militarização da sociedade e a ética
dos samurais?

Aprende-se com Mishima que toda aquela velha arenga que opõe sistema a
caos, pensamento a sentimento, indivíduo a sociedade etc. é pouco mais que
uma expressão infeliz do procedimento racional de tudo tender a situar em
contextos (e o contexto mais simples é a dualidade, a oposição), senão até
mentira ingênua.

Pode haver sentido na musculação, em imprimir uma nalidade ótima ao


corpo (morti cá-lo), e pode haver sentido na militarização, em imprimir uma
nalidade ótima ao corpo social (colocar a morte em seu centro). O conto
“Patriotismo” (1961) é eloquente quanto a isso.

O Tenente Takeyama e sua esposa Reiko se suicidarão porque aquele, levado


a uma situação extrema — recebe ordens de reprimir seus colegas de farda
que, rebelados, reclamavam a restituição de poderes absolutos ao imperador
—, precisava selar seu amor pelo Japão e pela esposa num ato decisivo. Eles já
tinham, de qualquer modo, assumido o compromisso de provar a desgraça até
seu último trago, unidos, caso fosse necessário. Nisso consistia o próprio
matrimônio:
Antes de irem para a cama, Shinji [Takeyama] repousou seu sabre diante dos joelhos e fez à esposa uma
exortação ao estilo militar. A esposa de um soldado deve estar constantemente ciente de que o marido
poderá morrer a qualquer momento. Pode ocorrer amanhã. Talvez depois de amanhã. E perguntou se
ela teria disposição para manter a presença de espírito não importando quando isso acontecesse. Reiko
se levantou, abriu a gaveta da cômoda, retirou a adaga que ganhara da mãe, o item mais importante do
seu enxoval, e, sem dizer uma palavra, colocou-a diante dos próprios joelhos, à semelhança do que
zera o marido. Firmava-se assim um admirável acordo tácito, e o tenente não mais haveria de pôr à
prova a convicção da esposa.45

O sexo antes da morte assume signi cado transcendente: “Além de não ver
incoerências ou contradições entre sua compulsão carnal e a sinceridade de
seu patriotismo, o tenente, ao contrário, era capaz de considerá-los
inseparáveis”.46

Não só a cção, mas também o ensaísmo de Mishima se voltaria de forma


direta para o tema. Em O Hagakure — a ética dos samurais e o Japão moderno
(1967), Mishima dirá do famoso tratado moral e marcial ditado pelo guerreiro
Jocho Yamamoto no século : “O Hagakure é uma tentativa de curar o
caráter pací co da sociedade moderna com o poderoso remédio da morte”.47
Essa cura passa pela descoberta de quão belo pode ser o horrendo, de quão
sublime pode ser o mundano, ou, como em “Patriotismo”, de quão marcial
pode ser o casamento ou de quão erótica pode ser a vida militar. Isso se
resume na constatação de que “os que desejam viver e morrer horrivelmente
estão escolhendo um modo de vida belo”.48 Ou, segundo a frase mais famosa
de Yamamoto: “Descobri que o caminho do samurai é a morte”.

Mishima tinha intuído há muito tempo aquilo que o Hagakure viria a lhe
con rmar: “A suspeita que abriguei durante anos, de que havia alguma coisa
inevitavelmente covarde sob a superfície de toda a literatura, foi articulada”.
Isto é:
Estou convencido, porém, de que a arte, mantida comodamente dentro dos limites da arte apenas,
de nha e morre, e nesse sentido não acredito no que se chama habitualmente de arte pela arte. Se a arte
não for constantemente ameaçada e estimulada por coisas que estão fora de seu domínio, ela se esgota.
A arte literária tem seus materiais na vida, mas, embora a vida seja por isso a mãe da literatura, é
também sua inimiga acerba; embora a vida seja inerente ao próprio escritor, é também a antítese eterna
da arte.49

Agora com pormenores biográ cos e ousada articulação de ideias, em Sol e


aço (1968) Mishima descortinará um horizonte de experiências mais vasto
para aquilo que em seu comentário ao Hagakure não passava de uma
apreciação de ideias reacionárias e de crítica ao Japão moderno, com só um
toque distante de autobiogra a. Sol e aço, livro pessoalíssimo, será a narrativa
da descoberta da força espiritual do corpo humano quando exposto à
intempérie — a “pátria” do indivíduo se alarga e se torna o próprio universo. O
patriotismo se revela, no fundo, um vitalismo, o único por meio do qual a
oposição entre espírito e corpo, contemplação e ação poderia ser superada.

Mishima queria ter acesso a algo não mediado pelas palavras, pela
linguagem, pelo toldo civilizacional. “O que eu procurava, em suma, era uma
linguagem do corpo”, isto é, a “profundidade da superfície”, “o verdadeiro
contrário das palavras”, “a essência de alguma coisa extremamente concreta”.50

Esse “desejo de me encontrar com a realidade em algum ponto onde as


palavras não tivessem nenhum papel a desempenhar”, bem sabia, poderia
talvez produzir “uma descoberta espontânea da realidade”.51 Talvez. Mas
necessariamente o conduziria a um embate com os limites do humano, já que
ninguém pode desfazer-se inteiramente dos artifícios da linguagem e sua
necessária covardia. Aquele embate o faria redescobrir no próprio corpo a
beleza da morte.

Se a derrota para a morte é certa, que pelo menos se faça um bom combate.
O corpo heroico teria de ser marcado por “silêncio e beleza da forma”.
“Pareceu-me”, diz Mishima, “que a carne poderia ser ‘intelectualizada’ no mais
alto grau, poderia atingir com as ideias uma intimidade muito maior do que
poderia o espírito”. Dessa maneira o seu corpo, “ao mesmo tempo em que seria
produto de uma ideia, também serviria como a melhor vestimenta para
esconder a ideia”.52 O corpo ideal deveria enfrentar a morte ideal, a morte
heroica:
O que salva a carne de ser ridícula é a presença da morte que reside num corpo vigoroso e saudável; é
isso que sus tenta a dignidade da carne. Como seria cômica a elegância e garbo do toureiro se seu ofício
não estivesse intimamente associado com a morte!53

O corpo teria de passar por um processo de treinamento e apuro similar ou


até superior ao treinamento e apuro que o escritor impõe às palavras; o corpo
passaria a ser modelo, na verdade, das artes verbais. De maneira geral, a arte
repele o gratuito, o sobressalente, o imotivado. Numa obra comparecerão os
elementos que necessitam estar lá; talvez se possa até de nir a grande arte
como aquela na qual não se encontram componentes casuais. Artista da
palavra, Mishima precisou tornar-se também artista do corpo, dele removendo
tudo o que fosse arbitrário e que revelasse a sua relatividade e mortalidade
fundamentais. O corpo deveria se tornar limpo como o aço. O Sol deveria cair
sobre sua tez suada para marcá-lo como “membro de outra raça”, uma raça
portadora dos músculos que “se tornaram desnecessários na vida moderna”,
que são “tão inúteis como uma educação clássica para a maioria das pessoas”,
“alguma coisa assim como o grego clássico”.54

São Sebastião morto pela cruz; Takeyama e Reiko sacri cados pelo
imperador; o corpo humano ofertado ao Sol e posto à prova no karate e no
kendo (Mishima era mestre em ambas as artes). Mas o romance Vida à venda
(1968) oferece um contraponto.

A conciliação buscada por Mishima entre intensidade e segurança, ou, como


ele diria, entre a vida de “homem de ação” e a vida de “escritor”, têm motes
bem de nidos em sua obra. A incapacidade de extremos, marca da burguesia,
nauseia Mishima; sua reação à vida burguesa assumirá o caráter de uma reação
contra a vida tout court. Com isso se explica seu resgate do “caminho
combinado do erudito e do guerreiro” do período Edo (1603–1868); e a
fundação do grupo paramilitar “Sociedade do Escudo”.

Mas calma. Logo nas primeiras páginas de Vida à venda somos apresentados
a um jovem publicitário, Hanio, em sua tentativa fracassada de suicídio; e, ao
tomar a resolução de que aquele será seu último fracasso, anuncia num jornal:
“Vendo a minha vida. Use-a como quiser. Homem de 27 anos. Garanto sigilo.
Tranquilidade absoluta”.55

Entregar-se inteiramente à imprevisibilidade seria a solução nal de quem já


não consegue conciliar “intensidade” e “seguran ça”.
Em outras palavras, segundo o pensamento de Hanio, deve-se iniciar tudo sem nenhuma razão para se
viver a liberdade de atribuir uma razão. Para isso, “nunca, mas nunca mesmo” se deve iniciar uma
atividade movido por uma razão. Pessoas que partem desde o início para a ação por uma razão, só para
a perderem depois, seja por fracasso, seja por desespero, são apenas sentimentais. São avaros com a
vida.56

Romance de sabor pynchoniano, Vida à venda apresenta casos sucessivos de


compradores de vida que não raro perdem a própria vida, ao passo que Hanio
é que deveria morrer nas situações arriscadas em que o põem. O controle que
exercem sobre a vida comprada é precário.

Mas a sociedade secreta de assassinos e tra cantes “Asia Con dential


Service” acaba por persegui-lo e lhe in igir um medo salví co: o de não ter
controle sobre a própria morte. Entregue à total imprevisibilidade, vê-se
nalmente aferrado à vida. “Por que as pessoas prezam tanto a vida? Como
entender esse apego em pessoas que nem ao menos enfrentavam risco de
morte? Só pessoas como ele podiam se mostrar tão afeiçoadas à vida”.57

Este, que é um dos últimos romances do autor, desfaz parte do dilema de


Mishima: o “guerreiro”, quando se assume de saída vencido, talvez triunfe sem
precisar recorrer à morte.
Narrativa e redenção

C ultivamos mais interesse por histórias de redenção do que por histórias de


tenacidade e sucesso continuados. É como se o pecador mais hediondo, se
arrependido, nos parecesse mais santo que São Francisco de Assis.

A oração sincera de um matador de aluguel parece valer mais que todo o


hinário da Igreja.

Talvez nem todos estejam lembrados da parábola do lho pródigo, que irei
resumir em um espírito de irresponsabilidade teológica: jovem imprudente
recebe herança paterna, cai na gandaia, quebra a cara, para mais tarde voltar
arrependido à casa do Pai. O irmão do lho pródigo era batalhador, honrava o
Pai, mas seu coração endurecido o tornava uma espécie de scal das graças
divinas: eu, bom lho, mereço tudo e nada recebo; meu irmão não merece
nada e recebe tudo de novo, apesar de sua desonra. Não está certo, vou prestar
queixa na ouvidoria do Céu.

Quando contrastamos o lho pródigo ao seu irmão, é impossí vel não tomar
partido daquele. Mas tenho a impressão de que essa não é a contraposição que
vivenciamos com mais frequência. Não sei se conheço alguma pessoa de
grande retidão capaz de esnobar o irmão por sua prodigalidade quando este se
arrepende.

Mas conheço muitas pessoas que preferem o bêbado ostensivamente honesto


e arrependido que relembra sua vida de pecados pesados, que ainda reincide
nesses mesmos pecados, à velhinha que vai à igreja com blusa de festejo de
Nossa Senhora de Fátima, reza o terço todo dia e ajuda um mundo de gente
guiada por uma bondade quase inconsciente. Aquele tende a nos parecer mais
interessante do que esta.

Isto é, gostamos de histórias nas quais o m contraria o início em um sentido


de superioridade, seja superioridade moral ou tão só de astúcia. A
regularidade narrativa, mesmo quando nobre, nos enfastia. Mas a vida de
santidade não pode ser apenas uma boa história.
Quem está preparado para o fato de que a vida de um santo pode ser, em sua
superfície (notem bem), mais chata até do que algum romance medíocre de
adultério do século ?

***

Se você fosse um grego do culo iv a.C., ou se fosse um francês (pelo menos


um francês nobre) do m do lo xvii, compreenderia que o m apropriado
a uma história de desgraças e padecimentos é revelar que o próprio herói era
responsável por sua situação, fosse por um erro inadvertido seu, fosse pela
força do destino.

Hoje, você não precisa sequer ser cristão para descrer da verdade dessa
forma narrativa. Se você for marxista, poderá supor que um futuro redentor
revelará que o erro do herói na verdade não fora um erro, se visto da
perspectiva correta, e que a força do destino pode, sim, ser revertida pela força
humana.58

Não suportamos a ideia de que um “mito” — ou uma “fábula”, tomada em


sentido secular — possa preterir qualquer possibilidade de redenção. Estamos
viciados nas “narrativas em forma de ”, como as vê Northrop Frye a partir da
Bíblia: a uma situação inicial de normalidade (Éden) se segue um descenso
calamitoso a uma situação caótica e carente de remissão (história de Israel), a
qual será sanada por uma jornada ascendente que selará a apoteose do que se
vislumbrara no início (Cristo em sua Segunda Vinda).

Toda vez que contamos histórias pedagógicas, “mitos”, nos orientamos bem
ou mal pela perspectiva redentora. Assim fazemos mesmo quando a negamos
em narrativas mais “fabulares”: lmes que contrariam as expectativas de “ nal
feliz” o fazem, é claro, apenas porque existe uma convenção a ser contrariada.

Frye distingue dois tipos fundamentais de fábulas seculares, de “romances”:


as de descensão (de um mundo superior a este mundo ou deste mundo a um
inferior) e as de ascensão (de um mundo inferior a este mundo ou deste
mundo a um superior).

Como no folclore e nas narrativas de massa modernas não é preciso


obedecer a um critério de enciclopedismo e unidade próprio de mitologias,
podemos partir à vontade o “” e contar histórias que só tratem de sua
primeira metade, da descensão, ou só de sua segunda metade, da ascensão. A
imaginação literária dos últimos dois séculos di cilmente admite uma
restauração do “” (uma das exceções radicais seria o Faus ).

***

Os temas fundamentais de todo “romance” (a abranger não só a novelística


moderna, mas qualquer forma narrativa ccional, não didática, não
expositiva) são a viagem e o amor.

Isto é, todo romance trata de desejo, e nem poderia ser diferente: se não há
carência, não há necessidade de ir de  a ; Ulisses não retornará a Ítaca,
Fausto não fará pacto demoníaco algum, Dom Quixote cará em casa (talvez
vivesse hoje uma velhice monótona mas feliz, cercado de netos).

Você precisa viajar para ter a necessidade de sobreviver a algum perigo.

O romance moderno, contudo, cada vez mais substituiria deslocamentos


geográ cos por deslocamentos psicológicos. Sua tendência é transformar a
aventura em rotina mental, isto é, em tédio. (Borges talvez tenha sido o mais
célebre opositor dessa tendência). Daí nossa carência permanente de histórias
que falem de metamorfoses (o símbolo mais comum do desejo como mola
narrativa), de duplos, de “reconhecimentos”. Essa é a essência do romance.59

Acredito que a parábola do lho pródigo encapsule a essência do romance,


porém na moldura das narrativas em forma de , e que nisso reside sua
e cácia. Você pode ser ateu e, ainda assim, comover-se com a viagem de
retorno à casa do Pai. Você gosta de aventura e aprecia que as coisas tenham
começo, meio e m, e que a história assinale uma passagem de um mundo de
ilusões para o mundo real (“romance de ascensão”). Você é viciado em
redenção, em viagem redentora. Tão viciado, que chega a preferir o pecador
mais endiabrado que volta à casa do Pai ao santo que teve a sensatez de jamais
deixá-la.

E não teria sido o próprio cristianismo — pergunta incômoda — que nos


viciou em redenção a ponto de fazermos até dela uma ocasião de pecado, isto
é, uma ocasião de preferir o acessório (o romance) ao essencial (a verdade)?
Oração

O ração é linguagem humana ou não humana ritualizada segundo uma


fórmula de máxima proximidade com um interlocutor onisciente.

Duas são as formas de oração nas quais todas as demais se resumem: a


oração do rosário e a oração do coração (“Senhor Jesus Cristo, lho de Davi,
tende piedade de mim”).

A oração do coração é a yoga dos cristãos. Pretende tornar-se respiração,


tornar-se uma presença física no corpo do el. A repetição das palavras que o
cego de nascença disse a Jesus deve adquirir um tom de fala baixa mas
contínua, ou de preenchimento tímido do silêncio. Não pensar ou falar a
oração, mas deixar que inspire e expire junto com o sopro dos pulmões, como
se pulmões do espírito. “Senhor Jesus Cristo, lho de Davi”, inspira; “tende
piedade de mim”, expira.

A cada instante da vida o indivíduo estará fazendo o pneuma subir e descer,


entrar nele e dele sair, estabelecendo comunicação entre o eu, aqui embaixo, e
Deus, lá no alto. Esse será o aspecto vertical da oração, assim quase
intransigente para com a temporalidade. Se quiserem, podemos chamá-la
oração platônica, ou prece dos ortodoxos, pelo que contém de impaciência
para com os dados inessenciais da vida.

A oração do rosário, ao contrário, é toda compassiva, compassiva como a


Virgem, e estende um olhar de piedade ao mundo para nele recolher todos os
detritos, todas as sujeiras, e lhes dar sua nobreza, pelo menos a nobreza
possível na vida imersa em tempo. Ao percorrer as contas do rosário, o el
passa pelos momentos fundamentais da vida do Cristo e de sua Mãe; aprende
como, no tempo, é possível mover-se em direção a algo de mais alto, porém
sem deixar de sentir os pés a tocar este solo de misérias. O rosário nos chama
atenção para o aspecto horizontal da oração, para a ritualização do tempo e
uma mais rme apreensão da ideia de início e m, de sentido da humana
aventura. O que começou na Anunciação terminará no Calvário, e o que
começou na saudação de Santa Isabel terminará na coroação da Rainha dos
Céus — e o que começou na primeira conta e terminará na última será o
esforço de transformar os acasos cotidianos em fatos ordenados e prenhes de
sentido.

Oramos enviando nosso sopro ao céu e oramos ordenando nossos passos na


terra. Treinamos o espírito para que suporte a viagem pelos ares e para que
suporte os tropeços pelo solo. Mais uma vez, o difícil tem de se tornar natural,
isto é, o sobrenatural tem de ser trazido à naturalidade. A alma quer se tornar
corpo que vive pela graça de ser o que é, tão só o que é. O espírito de Cristo
quer se tornar nossa carne.

Treinemos, oremos.
O Diabo
“Pois de mim zeste poeta, e não uma mulher amada.”
— Marina Tsvetáeva

Q uando criança, tive muito medo do Diabo, e só bem tardiamente, o que é


pena, cheguei a compreender que não deveria temê-lo, mas apenas reconhecer
que a realidade do príncipe deste mundo é tão inescapável quanto a do Pai,
Filho e Espírito Santo. A recordação mais antiga que tenho de interesse por um
livro leva-me a uma gaveta, na qual envelhecia uma daquelas edições
populares, pequenas e de capa azul, do Novo Testamento, seguido ou
precedido — não recordo — dos Salmos e Provérbios na tradução Almeida.
Lia algum versículo, não entendia; mas a coisa toda tinha uma gravidade
aprazível, semelhante ao medo de, sozinho em casa (o que acontecia com
frequência), dar de cara com o Maldito. As duas coisas — aquele prazer, este
medo — se uniam, embora eu não soubesse como. Também lembro que,
criança, tomei dum opúsculo de minha mãe sobre Nossa Senhora de Fátima;
só, aprendi a rezar o terço, e assim não iria para o inferno, segundo pensava. Já
era alguma coisa.

Ao longo da adolescência, à medida que arcava com novas responsabilidades,


a impressão de que algo a meu redor pudesse ter parte com o Mal punha-me
em suspeita imediata perante todo o quadro de minha conduta. Eu chorava
como um bezerro, penitenciava-me em pensamento, depois corria ao
videogame e deixava a sensação evadir-se. O problema é que, não muito
depois, eu quase renegaria meu batismo; começara a me interessar por uma
estrovenga chamada “ loso a”; lera O lobo da estepe e decidira que, um dia,
eu também ponderaria friamente, face a um espelho, enquanto zesse a barba,
a possível sensatez do suicídio; decorara alguns versos de Rimbaud (Elle est
retrouvée. / Quoi? — L’eternité. / C’est la mer allée / Avec le soleil) e me
determinara a buscar minha própria Abissínia. Em uma palavra: as questões
realmente fundamentais, eu mas obscurecera; guardava-as ainda, sem
frequentá-las, pois conotavam medo.

Fosse como fosse, o Diabo estava lá, era uma presença enigmática, mas eu
não chegara a me tornar amigo dele, como fez Marina Tsvetáeva, essa minha
irmãzinha distante, ela que aos cinco anos de idade descobriu que a or do
mal só nasce em terreno sacro — ainda que inadvertidamente sacro —, no
qual não há lugar para sepulcros caiados. Essa poeta russa desditada,
balançada para cá e para lá pelo destino, identi ca o que existe de mais secreto,
mais íntimo, com aquele cujo nome não é de bom tom pronunciar, aquele
cujas posses e domínios só podem ser imaginados e experimentados pelas
costas do mundo.

A essa primeira identi cação ou sugestão, ela sobreporia uma segunda: a


intimidade intimidadora daquele guardião do Segredo é parelha à percepção
poética das coisas, à ideia de que a literatura abençoa e amaldiçoa
simultaneamente. Por isso, a garotinha Tsvetáeva irá sentir a presença de seu
amigo, o Diabo, no quarto da irmã mais velha: “O Diabo vivia no quarto de
Valéria porque no quarto de Valéria, disfarçada de estante para livros, vivia a
árvore do conhecimento do bem e do mal”.60 Essa criança estranha se
confortaria com sua própria estranheza ao encontrar no Diabo, que está
sempre no avesso das coisas, um sentido para o seu alheamento: “Quando eu
estava com ele, eu era a menina dele, a orfãzinha do Diabo. O Diabo tinha
vindo me ver como fora àquele quarto, um quarto secreto, vermelho — e uma
menina secreta rubra de amor, petri cada, na soleira”.61

Ela o encontra nas cartas do baralho, usadas para jogos como para
adivinhação; em expressões populares e interjeições usuais (“com os diabos!”);
em sonhos e em contos de fadas; sobretudo na poesia. Assim resumiria o seu
credo infantil:
Deus era estranho, o Diabo familiar. Deus era frio, o Diabo quente. E nenhum deles era bom. E
ninguém — mau. Apenas um deles eu amava e conhecia, já o outro — não. Um deles amava-me e
conhecia-me, o outro — não. Um deles me era imposto com visitas à igreja, estadas na igreja, com o
lustre que se duplicava, pelo sono, diante de meus olhos [...] já o outro — existia por conta própria e
ninguém sabia.62

Para Tsvetáeva, a única maneira de fugir à falência do lirismo — logo ela, que
era tão facilmente e até aborrecidamente lírica — era tornar a covardia
literária, a própria disposição de fazer literatura, uma espécie de diabolismo
universalista: a nal, “foste tu”, diz ela ao amigo, “que me protegeste de todo
lugar-comum”.63 Fazer da literatura um canto da vida, uma trincheira na qual a
platitude não abre brecha, requer que nela sintamos festivamente um
documento da Queda. Esse sentimento se irmanará à percepção de que a lírica
aspira ao decadentismo, e todo decadentismo não é mais que a adolescência
do cristianismo. Por isso Cruz e Sousa canta o destino do Cristo como idêntico
ao destino do poeta. Se este desgraçado e infeliz é “o grande Assinalado / Que
povoas o mundo despovoado, / De belezas eternas, pouco a pouco” — mais
um elogio do poeta, céus! —, é porque “Na rija cruz aspérrima pregado /
Canta o Cristo de bronze do Pecado, / Ri o Cristo de bronze das luxúrias...”.

Pelo mundo se vai ao Céu, e até do Diabo o Cristo pode fazer um caminho
para a Sua Glória.
Fausto

P ara o intelectual sangue-puro, o pacto no Fausto de Goethe não oferece


muitos atrativos: ter posses, deter poder, ser um dos grandes do mundo, ao
mesmo tempo em que supostamente conhece os arcanos?!...

Estamos dispostos, isto sim, a abrir mão de toda a riqueza do mundo em


troca da possibilidade de escrever uma obra-prima, um Fausto. O único pacto
que nos tenta é o de Adrian Leverkühn, protagonista da fábula fáustica de
omas Mann: tolera-se a condenação ao inferno caso este seja o preço a
pagar pela Beleza. O Espírito é capaz de comprar a Alma.
O último enigma

O último enigma que possivelmente iremos experimentar é a constatação de


que o mundo, com toda sua secreta geometria, revelou-se-nos a nal por
inteiro, em pleno poente da verdade, e todavia, sem compreendermos bem por
quê, o rechaçamos feito fosse ele companhia benquista mas maçante —
daquele tipo que muito nos agrada, desde que que calada e em repouso. Veja:
és jovem e queres compreender, embora pouco te ocorra perguntar com
seriedade o que diabos a nal é isso que muito queres saber. Suspeitas que algo
há que valha a pena das agruras do estudo mais rotineiro, mais denso, amiúde
desesperador. Não suspeitas no entanto que, chegado o peso dos 60, 70 anos,
tudo te a gure su ciente. Não te ocorre que Ítaca possa tornar-se próxima. E
não perguntas: não poderá a “busca da transcendência” levar-nos à recusa
indiferente de movermos ainda mais esforços em sua busca?

Com o poema “A máquina do mundo”, Carlos Drummond de Andrade


respondeu que sim:
a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.64

E assim respondeu por ter percebido que não existe “busca da


transcendência”. É este mundo que se abre para o outro — e essa abertura não
se promove com um pé de cabra.

É poema de velhice. Poema de alguém que dedicou toda uma vida a uma
atividade que não tem outro sentido senão a busca de um sentido maior, a
poesia; poema de quem não precisa mais correr em sangria rumo à mansão
almejada porque já se encontra sentado quieto na sua sala. Como se abriu a
máquina? “Abriu-se em calma pura”.65

Não é, como costumam dizer, poema em que Drummond nega ao mundo a


necessidade de um sentido não imanente. Um poema, por ser um poema, já
não poderia ser ferramenta para tal engenho. A reação do poeta à maravilha é
também maravilhosa, ainda que cansativa, e devemos compreender por quê.
Cada vez mais, noto-me desgraçadamente ridículo quando adoto condutas,
ou modos de me expressar, que suponham uma espécie de empenho abnegado
de pesquisa, de procura, de caça àquilo que constitui a substância da realidade
e de minha vida. Claro que a todo instante, se possível, devemos ter em vista
esse propósito. O abominável, quero dizer, é a arti cialidade da coisa, a
indignada recusa de ver-se na situação de quem desse as costas ao mistério e
dele se afastasse de “mãos pensas”. Pena que em tantas outras pessoas noto
modo de portar-se similar. E se — para refazer a perguntar inicial — estes
versos
baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.66

contivessem a mais sensata reação de quem se deparasse, inteiramente


translúcida e oferecida em compadecimento, com a fonte secreta de toda
existência? Caminhar pela “treva mais estrita”, por uma estrada “pedregosa”,
deixando para trás e “repelida” a máquina do mundo,67 não seria o máximo ato
de respeito que se poderia ter por ela? A nal, correr sofregamente até o
mistério é renegar todo mistério e ignorar o mote esotérico de que o segredo
protege-se a si mesmo.

O sentido derradeiro de tudo só pode se nos oferecer para que vivenciemos


esse último enigma, que talvez só não seja maior que os de Deus e da morte: o
enigma de simplesmente aceitar a natureza enigmática de tudo. Temos de
aceitar que a máquina do mundo só se abrirá, tardia e alegoricamente, se já
tivermos xado o cerne de nossas existências com força su ciente para
tolerarmos a possibilidade — digamos logo: o fato — de que ela nunca se
abrirá.

Para nós o sentido, mesmo na eternidade, será sempre precário.

***
N  R
1 sl.seminariode loso a.org.

2 poetajoao lho.com.br.

3 rafaelfalcon.com.br.

4 A quem quiser informar-se sobre os primeiros anos de atividade pública mas discreta de Olavo de
Carvalho, indico os dois primeiros capítulos do meu breve ensaio O mínimo sobre Olavo de Carvalho.
Campinas, SP: O Mínimo, 2023.

5 No momento em que escrevo, existem pelo menos quatro diferentes edições em circulação no Brasil,
todas com vendagem razoável, e uma delas com nada menos que cinco mil avaliações na Amazon
brasileira. Para efeitos de comparação, apenas um livro — um único — do terrível Paulo Coelho, que já
vendeu mais de 320 milhões de exemplares mundo afora, tem avaliações acima dessa cifra. O leitor
compreenderá que a vendagem dos livros é exponencialmente maior que o número de avaliações.

6 Cf. o que escrevi sobre a “técnica losó ca” em Conhecimento por presença: em torno da loso a de
Olavo de Carvalho. Campinas, SP: Vide, 2020, pp. 258–283.

7 Algumas outras respostas a essa pergunta se encontram na parte .

8 Cf., na parte , o texto “Antes do imaginário, eduque o ouvido”.

9 Cf. aula 9 (06/06/2009) do seu Curso Online de Filoso a. Disponível em sl.seminariode loso a.org.

10 Cf., na parte , o texto “Qual o problema fundamental da educação?”.

11 Fritz K. Ringer. O declínio dos mandarins alemães: a comunidade acadêmica alemã, 1890–1933.
Trad. Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Edusp, 2000, p. 109.

12 Pe. A.-D. Sertillanges. A vida intelectual: seu espírito, suas condições, seus métodos. Trad. Lilia
Ledon da Silva. São Paulo: É Realizações, 2010, p. 157, grifos meus.

13 Id., ibid., p. 158.

14 Id., ibid., p. 134.

15 Ezra Pound. Guide to Kulchur. Lexington (): New Directions, 2014, p. 55.

16 José Ortega y Gasset. Meditações do Quixote. Trad. Ronald Robson. Campinas, SP: Vide Editorial,
2019, p. 30.

17 Simone Weil. O enraizamento: prelúdio a uma declaração de deveres com relação ao humano. Trad.
Giovani T. Kurz. Belo Horizonte: Âyiné, 2022, p. 53.

18 Digo isso ao longo de um comentário à tese de Olavo de Carvalho de que a loso a jamais pode ser
ciência, ela se de ne por uma técnica, a “técnica losó ca”. Diferentemente do que ocorre a uma ciência,
cujos elementos devem todos remontar a um mesmo fundamento, numa técnica con uem muitas linhas
causais com diferentes ordens de fundamentos. Em loso a, os fundamentos da intepretação textual não
são os mesmos da dialética, mas tanto a interpretação textual quanto a dialética fazem parte da técnica
losó ca.
19 Para mais informações, acesse: ronaldrobson.com/convivium.

20 A descrição se aplica a muitos alunos do Instituto Cultural Lux et Sapientia (icls.com.br), a despeito
da seriedade de professores como Luiz Gonzaga de Carvalho Neto e Marcos Vinícius Monteiro.

21 Publicado originalmente como prefácio a Imerso em pensamentos: os prazeres secretos da vida


intelectual (Kírion, 2024), de Zena Hitz. Texto aqui reimpresso com cortes e adaptações.

22 O mais hilário, nesse caso, é que muitos admiradores do escritor Tolkien, ao escrever textos e gravar
vídeos de “interpretação simbólica” de suas obras, recorram não a trechos de seus livros, mas a cenas de
suas adaptações cinematográ cas...

23 Melk Ferreira, responsável pela página “A Formação do Imaginário” no Instagram


(@aformacaodoimaginario), chegou a lançar um curso de “Literatura para copywriting”. Não posso opinar
sobre seu conteúdo, que desconheço para além dos sofríveis textos de divulgação, mas não posso deixar de
apontar quão irônica é a iniciativa de usar da literatura para promover um curso destinado a pessoas que
depois formatarão a propaganda de outros cursos, os quais possivelmente tratarão de literatura para
auxiliar o estudante no trato de coisas nada literárias... É a literatura a alimentar uma cultura antiliterária.

24 sl.seminariode loso a.org.

25 Visite: ronaldrobson.substack.com.

26 Danilo Kiš. Homo poeticus. Trad. Aleksandar Javanović. Belo Horizonte: Âyiné, 2021, p. 270.

27 Olavo de Carvalho. Visões de Descartes: entre o gênio mal e o espírito da verdade. Campinas, SP:
Vide, 2013, pp. 63–67.

28 William Burroughs. Nova Express. Londres: Penguin Books, 2014, p. 2.

29 Augusto de Campos. Linguaviagem. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 175. É uma pena que
no Brasil o poema seja conhecido como “O prazer do difícil”, justamente em razão dessa (no mais) boa
tradução de Augusto, e não como “A fascinação do difícil”, tradução literal do seu título. O poema como
um todo assinala justamente a distância entre a fascinação que move o artista, a despeito das dores e
frustrações do processo criativo, e o simples prazer de fazer um artefato. É este prazer que, para o escritor,
deixa de ser manifestamente um gozo e assume a forma de leve desespero que se pode fruir. A diferença é
sutil, mas crucial.

30 Geraldo Holanda Cavalcanti. A herança de Apolo: poesia poeta poema. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2012, p. 73.

31 Ferreira Gullar. Toda poesia (1950–1999). 11ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2001, p. 356.

32 Basil Bunting. Brigg atts. Trad. Felipe Fortuna. Rio de Janeiro: Topbooks, 2016.

33 Henry Miller. A hora dos assassinos: um estudo sobre Rimbaud. Trad. Milton Persson. Porto Alegre:
, 2020, p. 48.

34 Arthur Rimbaud. Poesia completa. 3ª ed. def. Trad., prefácio e notas de Ivo Barroso. Rio de Janeiro:
Topbooks, 1995, p. 249.

35 Id. Um tempo no inferno & Iluminações. Trad. e org. Júlio Castañon Guimarães. São Paulo: Todavia,
2021, p. 79.

36 Witold Gombrowicz. Contra os poetas. Trad. Clarisse Lyra e Rodrigo Lobo Damasceno. Belo
Horizonte: Chão da Feira, 2013. (Caderno de Leituras, n. 17), p. 2. Edição online de acesso gratuito pelo
site da editora: chaodafeira.com.

37 Id., ibid., pp. 3, 4, 4.

38 Id., ibid., p. 2. Já não posso, contudo, acompanhar a injustiça que Gombrowicz comete numa
passagem à p. 3, cujo fundamento é tão correto quanto é incorreto seu juízo conclusivo: “Livros como A
morte de Virgílio de Hermann Broch ou ainda o celebrado Ulisses de Joyce se mostram impossíveis de ler
por serem demasiado ‘artísticos’. Tudo ali é perfeito, profundo, grandioso, elevado e, ao mesmo tempo,
nada nos interessa porque seus autores não os escreveram para nós, mas para o Deus da arte”.

39 O próprio Virgílio nos deu o modelo desse ato no modo como altera, na Eneida, a percepção que
seus contemporâneos tinham da cultura grega. Cf. meu posfácio ao poema: “Manhã e noite do Ocidente”.
In: Eneida. Trad., introd. e notas de Carlos Ascenso André. Campinas: Sétimo Selo, 2023, pp. 353–364.

40 Varlám Chalámov. “O encantador de serpentes”. In: Contos de Kolimá. Trad. Danise Sales e Elena
Vasilevich. São Paulo: Editora 34, 2015, p. 138.

41 Id., ibid., p. 139, grifo meu. Sobre apegar-se mais à vida: em outro conto, à p. 191, dirá que num
personagem “o instinto de autopreservação do próprio corpo era mais forte do que a vontade de morrer”.

42 Valám Chalámov, “Chuva”. In: op. cit., p. 57, grifo do autor.

43 Fundamentos de Wu Chu (Tai Chi Chuen). 2ª ed. São Paulo: Edição da Autora, 1979, p. 54.

44 Yukio Mishima. Con ssões de uma máscara. Versão e apresentação de António Mega Ferreira.
Lisboa: Assírio & Alvim, 1986, p. 44.

45 Yukio Mishima. Patriotismo. Trad. Jefferson José Teixeira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2020,
pp. 9–10.

46 Id., ibid., pp. 25–26.

47 Id. O Hagakure: a ética dos samurais. Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p. 31.

48 Id., ibid., p. 29.

49 Id., ibid., pp. 20–21.

50 Id. Sol e aço. Trad. e posf. de Paulo Leminski. 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1986, pp. 7, 23, 32, 36.

51 Id., ibid., p. 9.

52 Id., ibid., pp. 12, 16, 17.

53 Id., ibid., p. 41.

54 Id., ibid., pp. 22, 26, 26.

55 Id. Vida à venda. Trad. Shintaro Hayashi. São Paulo: Estação Liberdade, 2020, p. 15.

56 Id., ibid., p. 184.

57 Id., ibid., p. 223.

58 Cf. George Steiner. A morte da tragédia. São Paulo: Perspectiva, 2006.

59 Cf. Jacyntho L. Brandão. A invenção do romance. Brasília: Editora UnB, 2005, pp. 82–89.
60 Marina Tsvetáeva. O diabo. Trad. Aurora Fornoni Bernardini. São Paulo: Kalinka, 2020, pp. 29–31.

61 Id., ibid., p. 37.

62 Id., ibid., p. 93.

63 Id., ibid., p. 125.

64 Carlos Drummond de Andrade. Claro enigma. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 105.

65 Id., ibid., p. 105.

66 Id., ibid., p. 108.

67 Id., ibid., p. 108.

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