SERTÃO VERDEJANTE
Numa das planícies no encosto da serra de Bom-bocadinho, no município de
Cuité, no Estado do Paraíba, ergue-se a fazenda Canôas, de propriedades de Antônio Joca,
com uma Casa Grande que conta quase dois séculos, representando fielmente no presente a
morada do vaqueiro de outrora. As paredes são de taipa, já esburacadas, estando a frente
voltada para o nascente com duas portas e uma janela. O seu velho travejamento de arueira
ainda está encascado. As emendas na cumieira, nas terças e nos frechais são feitas com finas
tiras de couro crú, em parte já despregadas, o mesmo acontecendo ao amarramento de
algumas ripas. Sua janela e portas apresentam marcas de ferro de gado, traçadas por mão de
vaqueiros que deixaram naqueles sinais a lembrança de rezes sumidas.
O piso é de barro batido, havendo ladrilho de grandes pedras calcáreas apenas nos
alpendres.
Na grande sala de frente, estão o buzio de chamar trabalhadores, uma estampa de
Cristo desprovida de moldura, uma calendário, uma vara com o ferrão para cima, encostada
num recanto. O ferro da fazenda e o da ribeira do Curimataú encabados, em sabugos de milho,
bem à vista, no alto de uma parede lateral. No meio da sala, na parte superior, há um jirau
com couro cortidos, um par de botas e um grande chifre pendurado!
O alpendere fronteiriço é apoiado em robustos esteios, vendo-se esticada entre
eles, para evitar a polia uma longa corda de laçar gado feita de couro crú. Peias, cabrestos,
chocalhos e cabaços estão pendentes de tórnos. Num brabo depara-se uma rústica balança
com travessão e conchas de madeira, pendentes estas de quatro relhos, cada uma. É ainda a
mais fiel de redondeza, com seus pêsos de pedra.
Na sala de jantar, há um pesado banco de arueira um pote d´água sentado numa
cantareira, uma pedra grande de amolar junto a uma gamela.
Num quarto ao lado, estão guardadas as cangalhas, os urús, alguns machados,
ferro de cova, enxadas, gancho e espêtos de cortar e assar facheiros e Xique-xiques, e um
cavalete com três selas.
Além do alpendre, há um estaleiro onde ás vezes põem a secar bode ou um couro
espichado em varas.
O pátio de Canôas, atepetado de relva, sombreado de baraúnas e umburanas, tem
como guardião o tetéu, a sentinela vigilante que anuncia, em notas estridentes, qualquer
silhueta que se projete nos arredores de velho casarão, defendido também por “Cação”, um
cão amigo.
A tarde desmaia o panorama e o terreiro vai ficando cheio de gado, ovelhas,
cabras, alguns cavalos e jumentos que ainda pastavam...
O rebanho de cabra, tendo à frente um bode de grande cavanhaque exalando
catinga de mijo, é conduzido ao coqueiro por gritos da meninada.
Chiqueiro cabra... ê ô... ê ô..., chiqueiro cabra...
Num grupo de ovelhas há um benteví pousado num cordeiro branco. Carneiros,
pais de chiqueiro, correm atrás dos novos, defendendo as marrãs...
O vaqueiro Paraguai aboia chamando as vacas ao curral para enchiqueirar os
bezerros.
A noite vem cobrindo Canoas com seu manto negro, enfeitado de trêmulas
estrelas...
Hora da ceia. Há na mesa de Antônio Joca, coalhada adoçada com rapadura e
misturada com farinha de milho, café e queijo de manteiga. Depois, uma ligeira palestra.
Segue-se o repouso em redes de grandes varandas.
Ouve-se, ao longe, o cantar nervoso da cobra cascavel, o canto dos tetéus, o sopro
exquisito dos jumentos espantados com almocréves que conduzem fumo, rapadura do brejo
para o Trairí, caminhando às pressas, pelas veredas de Canôas com um mole, para se livrarem
do posto fiscal de Malhada da Cruz, próximo ao boqueirão do Japi...
Mal desponta o dia, Antônio Joca e Paraguai, já estão na ordenha, no velho curral
de esqueléticos estacas a pique, encimadas por cardeiros.
Lavadeiras ciscam o escremento do gado e em vôos certeiros pousam no dorso
das vacas...
Bezerros de cauda levantada escaramuçam na redondeza do curral, enquanto
outros berram, insistentemente, numa orquestração silvestre, como uma saudação à natureza
florida.
Os preguiçosos anuns descem do joazeiro e equilibrando-se com suas pesadas
caudas, pipilam anunciando o amanhecer.
Galinhas correm por entre as malvas á procura de insetos...
As serras, que molduram aquela paisagem pitoresca, ainda dormem sob uma
cobertura de fumaça.
Simpáticos componêses passam com suas escuros potes para se abastecer d´água
na cacimba do riacho, cujos leitos estão cheios de basculhos, capins e carrapichos.
Adiante, um açude arrombado, em cujos poços os sapos coaxaram durante a noite,
festejando as primeiras águas.