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RBPsicoterapia
Revista Brasileira de Psicoterapia
Volume 18, número 1, abril de 2016
ARTIGO DE REVISÃO
Reflexões acerca do brincar e seu lugar no infantil
Denise Bernardia
a
Psicóloga, Especialista em Psicologia Clínica e Psicoterapia de Família e Casal, Mestranda em Psicologia Clínica
(PUC-Rio).
Instituição: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Resumo
O presente trabalho tem por objetivo promover uma reflexão a respeito da criança e do brincar na
contemporaneidade. Atualmente, observa-se que o brincar é marcado pela “era” das tecnologias. Hoje, as
crianças preferem permanecer mais tempo em frente à televisão e jogando videogame a se envolver em
brincadeiras tradicionais. Para o desenvolvimento deste estudo realizou-se uma revisão de literatura utilizando-
se como base textos de autores de referência na temática do brincar. Ainda foram analisados textos de autores
contemporâneos que pesquisam sobre esse tema. Apesar de a literatura indicar que o brincar é um importante
instrumento para o desenvolvimento infantil, atualmente ele parece não ser reconhecido pelos profissionais
como tal, já que seu uso está cada vez mais reduzido. Acredita-se, desse modo, que essa temática ainda
necessita ser discutida e ampliada entre os profissionais que atuam no contexto infantil.
Palavras-chave: Jogos e brinquedos; Criança. Psicanálise; Desenvolvimento infantil.
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Abstract
The present project has an aim to promote a reflection on child and playing in contemporary society. Nowadays,
it is observed that playing is marked through the “technologies era”. Today kids prefer to spend more time in
front of the TV and playing videogame rather than getting involved in traditional games. In order to develop
this study, a literature review was carried out using as a basis texts from reference authors in the playing
theme. Yet, texts from contemporary authors who search about this theme were analyzed. Although the
literature indicate that the play is an important tool for child development, currently it does not seem to be
recognized by professionals as such, since its use is increasingly reduced. It is believed, therefore, that this
issue still needs to be discussed and expanded between professionals working in the child context.
Keywords: Game Theory; Child; Psychoanalysis; Child Development.
Introdução
Os jogos e brincadeiras, entendidos como ato de brincar, permitem a entrada da criança em um mundo
no qual tudo pode acontecer. Nesse espaço, o imaginário é convidado a, ilusoriamente, criar personagens,
inventar histórias, divertir-se, fantasiar e satisfazer desejos.
O ato de brincar é uma atividade fundamental para o desenvolvimento da criança. Por meio da
brincadeira, ela tem a oportunidade de elaborar conflitos e fantasias inconscientes, desenvolver sua capacidade
de criatividade, aprender a controlar seus impulsos e a lidar com seus medos1. A brincadeira promove o
crescimento do indivíduo e o conduz aos relacionamentos grupais, sendo uma forma de comunicação consigo
mesmo e com os outros².
A escolha de refletir sobre esse tema foi motivada pelas vivências da autora enquanto psicóloga, no
âmbito clínico e escolar infantil. Na prática profissional com esse público, foi possível observar uma diminuição
do tempo destinado ao lúdico, o que levantou questionamentos, visto que os jogos e brincadeiras são
importantes para o desenvolvimento da criança.
A construção do conhecimento, o aprendizado e a socialização iniciam-se através do ato de brincar,
porém atualmente observa-se que os jogos e brincadeiras têm sido pouco explorados nos ambientes em que
a criança está inserida. Na atualidade, em locais como o ambiente escolar, o momento do lúdico na rotina
infantil parece ter apenas o objetivo de distrair e entreter a criança, de modo que o brincar não parece estar
sendo utilizado como um recurso que pode favorecer o desenvolvimento infantil.
O presente trabalho consiste em uma de revisão da literatura. Nele pretende-se discutir sobre o lugar
destinado ao lúdico, em especial no contexto escolar infantil. Ainda, pretende-se discutir sobre as
transformações pelas quais os brinquedos passaram, e a função que o brincar tem na estruturação do psiquismo
infantil. Para realização deste estudo, tomou-se como base textos de autores que se tornaram referência por
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desenvolverem trabalhos sobre a temática do brincar, dentre eles Sigmund Freud, Donald Winnicott e Melanie
Klein. Também foram analisados textos de autores contemporâneos que pesquisam sobre essa mesma temática.
No levantamento dos materiais, encontrou-se uma vasta quantidade de estudos sobre a temática do
brincar; desse modo, alguns critérios foram levados em consideração para a seleção do material. Foram
selecionadas pesquisas que abordavam em especial as mudanças na construção dos brinquedos e a função do
brincar na estruturação do psiquismo da criança, por acreditar ser este um importante campo a ser analisado,
visto que ao longo do tempo os brinquedos infantis sofreram intensas transformações que podem ter
influenciado na sua função estruturante do psiquismo infantil. A busca dos textos aconteceu por meio das
bases de dados disponíveis on-line: LILACS e SciELO. As palavras-chave utilizadas foram: brincar, criança, infância,
brincadeiras, desenvolvimento infantil e novas tecnologias. Com estas foram feitas diversas combinações.
As transformações da infância e do brinquedo
Na Idade Média não existia uma distinção entre a criança e o adulto, sendo esta considerada um adulto
de pequeno tamanho, executando, assim, as mesmas atividades que os mais velhos. Nesse período não se
dispensava um tratamento especial para as crianças. A infância era considerada como um momento de transição
para a vida adulta³.
Na contemporaneidade, o fato de a criança poder brincar e ir à escola sugere-nos algo natural, mas o
conceito que se tem hoje sobre a infância passou por diversas modificações. Na sociedade medieval, a ideia de
infância não existia; a criança ingressava no mundo dos adultos desde muito cedo. Assim que superava o
período de alto grau de mortalidade, e podia viver sem os cuidados da mãe e/ou ama, ela já era confundida
com adultos. A criança participava das mesmas festas, usava o mesmo estilo de roupas, brincava e jogava os
mesmos jogos que os adultos. Nesse período não havia objetos específicos para as crianças brincarem4.
A fabricação de brinquedos nasceu na Alemanha, em seus primórdios, por fabricantes não especializados,
como oficinas de entalhadores de madeiras ou de fundidores de estanho. Antes disso, o brinquedo representava
um produto secundário das diversas indústrias manufatureiras. Nesse período, os objetos usados nas
brincadeiras infantis eram pequenas peças que faziam parte da decoração das casas e eram produzidos em
madeira e cera. Posteriormente, eles tornaram-se peças maiores, produzidas também em metal, vidro e papel.
Nessa época não havia distinção de gênero entre os brinquedos produzidos para as crianças. No decorrer do
século XVIII, os brinquedos passaram a aparecer no mercado de fabricantes especializados no ramo. Antes do
século XIX, sua produção não era função de uma única indústria específica5.
Com o passar do tempo, a comercialização de brinquedos foi crescendo e ganhando espaço no cenário
mundial. Houve uma modificação gradual do brinquedo, que inicialmente era produzido em modelos artesanais
e posteriormente adquiriu um formato industrializado. Os brinquedos, que eram produtos simples e rústicos,
foram sendo substituídos por outros, produzidos em série e com materiais sofisticados6.
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Desse modo, observa-se que a concepção que se tem atualmente sobre os brinquedos passou por
diversas transformações ao longo dos séculos, assim como os conceitos de infância e do brincar. A infância foi
reconhecida há pouco mais de 200 anos. De lá para cá, vivenciamos avanços e retrocessos na concepção que
construímos com relação à criança. O modo como esta é encarada nos dias atuais ainda conserva traços que
pertenceram a outros tempos7.
A origem da palavra infância e o conceito que se tem sobre ela vêm se modificando constantemente,
devido a estímulos que levam à adultização da criança, pois “tanto quanto as diferentes formas de vestir, as
brincadeiras de criança, antes tão visíveis nas ruas das nossas cidades, estão desaparecendo”8. Atualmente a
criança vive sob o domínio de várias influências culturais, e desde cedo tem um papel “a cumprir” frente à
sociedade, como: telespectadora, colecionadora e consumidora9.
Na contemporaneidade, o brinquedo é produzido com um novo design. Esses artefatos lúdicos são
projetados com base em estudos científicos. Os jogos eletrônicos, como os videogames, apresentam-se a
serviço da ludicidade contemporânea, que exige a produção de um brinquedo racionalizado, concebido a
partir de uma avaliação do perfil infantil ao qual se destina o consumo desses objetos10.
Observamos em nossa prática com o público infantil que o envolvimento das crianças com os
equipamentos eletrônicos parece atualmente ter substituído o uso dos brinquedos. O computador, a internet,
o videogame e a televisão fazem parte da rotina diária da criança. Ainda, existem programas de televisão
específicos destinados para esse público e campanhas publicitárias que anunciam a todo o momento novidades
criadas especialmente para satisfazer as crianças, como uma infinidade de objetos eletrônicos, que se distanciam
muito dos brinquedos tradicionais, como a bola, o peão e a boneca. Os brinquedos atuais oferecidos ao público
infantil costumam ser descartáveis e rapidamente tornam-se pouco interessantes, o que faz com que,
constantemente, sejam substituídos por outros mais modernos6.
Nota-se também que na contemporaneidade o espaço disponível para a criança brincar tem sido mais
restrito. A tecnologia praticamente domina o seu dia a dia. Devido aos recursos tecnológicos disponíveis,
muitas das brincadeiras tradicionais acabaram desaparecendo11.
O aperfeiçoamento e a sofisticação da indústria tecnológica levaram à produção dos brinquedos do
século XXI quase que exclusivamente de forma automática e mecanizada, o que nos leva a questionar sua
influência na estruturação do psiquismo infantil. Um brinquedo que funciona a pilhas, em que a criança brinca
sozinha e é convidada a “apenas” apertar o play, ficando passiva nesse processo e participando como
espectadora nesse brincar, poderia ter implicações em seu desenvolvimento?
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O brincar e o desenvolvimento infantil
O jogo nasce na relação que o bebê estabelece com sua mãe, quando esta cuida dele. Trata-se
frequentemente de jogos caracterizados por sons, balbucios e verbalizações, que subentendem trocas
comunicativas12. Nos primeiros anos de vida, as brincadeiras podem ser traduzidas como formas de
autoconhecimento. Nesse período, os brinquedos utilizados pelo bebê são partes do seu próprio corpo, como
suas mãos e pés13.
As brincadeiras do bebê propiciam o conhecimento de suas possibilidades e limitações sensório-motoras,
além de possibilitar o conhecimento do outro e do ambiente. Essas brincadeiras servem de base para o
desenvolvimento cognitivo posterior14.
O brincar é uma ponte que liga o real ao imaginário. De forma inconsciente, a criança reinscreve no
mundo externo conteúdos de seu mundo interno. A brincadeira, desse modo, tem uma função importante,
uma vez que funciona como uma forma de defesa contra a ansiedade que os conteúdos internos podem
ocasionar. A atividade lúdica serve como uma descarga emocional, na qual é possibilitada a reedição dos
conflitos infantis.
Assim, o prazer que as crianças encontram durante a brincadeira ocorre não somente por esta gratificar
seus impulsos de realização de desejo, mas também pelo fato de permitir o domínio de suas angústias15. Por
meio da brincadeira, a criança tem a oportunidade de reproduzir uma experiência traumática, modificando-a
de forma que possa elaborar a experiência anterior, substituindo um sentimento desagradável pelo prazer
gerado através do brincar.
A brincadeira ainda proporciona o desenvolvimento dos aspectos sociais, devido à oportunidade de
interação. Através da brincadeira, a criança tem a possibilidade de conhecer seus próprios limites. Por meio do
brincar ela pode elaborar sentimentos, reconhecer e controlar suas emoções.
Ao brincar, as crianças superam aspectos desagradáveis da realidade. O brinquedo as ajuda a dominar
os medos instintivos e perigos internos por meio da projeção destes para o mundo exterior. Por meio dessa
projeção, a criança consegue deslocar suas angústias para fora. Na tentativa de dominar sua dor, ela desloca
os perigos instintivos e internos para o mundo exterior, o que oportuniza à criança não só vencer o medo que
estes lhe inspiram, como também estar mais preparada contra eles. As atividades lúdicas criam, desse modo,
uma ligação entre a fantasia e a realidade e ajudam a criança a dominar o medo dos perigos internos e externos15.
Os jogos e brincadeiras oportunizam à criança recriar e modificar algo que ela não tenha elaborado.
Através do ato lúdico, ela pode simbolizar seus medos e problemas, resolvendo-os em outro contexto16.
Na medida em que brinca, a criança aprende a lidar com a realidade, o que é importante para sua saúde
mental. Brincando, ela vai se introduzindo na esfera social e cultural, quando passa de um brincar individual
para um grupal, fazendo-a perceber e sentir a necessidade de estar junto, aprendendo a dividir e ceder seus
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brinquedos. É por meio do brincar que a criança estabelece essa relação com o outro. No brincar em grupo,
ela aprende a construir sua realidade social compartilhada e através disso encontra espaço para explorar, criar
e descobrir novas coisas e novos jeitos de lidar com uma mesma situação14.
Na brincadeira espontânea, a criança é livre para exercer domínio sobre seu próprio mundo, criando
diferentes formas de solucionar seus conflitos através da imaginação. O exercício da imaginação habilita a
criança a suportar mais facilmente as frustrações que encontra na realidade, aprendendo a lidar simbolicamente
com algo que a ameaça. Quando brinca, a criança se desafia a crescer e avançar para novas etapas13.
Em 1920 Freud fez referência à brincadeira criada por seu neto de um ano e meio, que fazia aparecer e
desaparecer um carretel de madeira amarrado com um cordão em volta dele. A criança, por meio da brincadeira
com o carretel, buscava dominar sua angústia em relação à ausência da mãe. Tratava-se de um jogo em que o
menino brincava de “ir embora” com seus brinquedos, representando assim o distanciamento da mãe. Através
dessa descrição é possível observar que a brincadeira pode oportunizar à criança ter fantasias em relação à
figura materna, podendo elaborar sua dor. Assim, por meio do lúdico o sujeito tem a possibilidade de se
reorganizar frente às suas angústias e ter mais autonomia, aprendendo a externalizar seus conflitos e a lidar
com a própria agressividade17.
Ao brincar, a criança não se situa apenas no momento presente. Ela também se coloca frente a seu
passado e futuro. O brincar é uma atividade terapêutica que possibilita que a criança supere situações
traumáticas, simbolizando, falando e representando conteúdos que a perturbam. O brinquedo, da mesma
forma que o brincar, não é um objeto neutro, pois ele representa a história da criança por meio de outros
objetos16.
Porém, é importante que existam condições para que o brincar aconteça:
É preciso que haja abertura para o brincar e, consequentemente, para as criações
que ele possibilita. No universo infantil, um discurso pode ser uma história, um boneco
pode ser um pai, uma casa pode ser um avião, uma caixa pode ser um telefone, de
tal forma que uma coisa pode sempre remeter a outra, em uma série de infinitas
possibilidades, cuja significação só adquire força quando alguém lhe dá um contorno,
transmitindo-lhe sentidos capazes de inscrevê-la em uma narrativa pessoal18.
A criança que brinca é favorecida em vários aspectos, já que a atividade lúdica estimula sua criatividade,
promove sua autonomia e oportuniza um maior conhecimento sobre si mesma. Na brincadeira, a criança é
convidada a dividir, ceder, esperar sua vez e vivenciar uma série de regras. Nesse ato, ela aprende a conviver
com o outro e a respeitá-lo. Entretanto, questiona-se qual espaço, hoje, é oportunizado para a criança vivenciar
esses aspectos, já que, se observarmos a rotina das crianças em um dos contextos nos quais ela está inserida,
como a escola, é possível perceber a diminuição dos momentos destinados para brincar nesse ambiente:
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Nos raros momentos em que são propostos, os jogos e brincadeiras são separados
rigidamente das atividades escolares, como o “canto” dos brinquedos ou o “dia do
brinquedo”, assim mesmo, o brinquedo apenas é encontrado nas escolas infantis,
nas classes de ensino fundamental estas alternativas são abominadas, já que os alunos
estão ali para “aprender, não para brincar”. O brincar, estando de fora do currículo
escolar, não contamina as demais tarefas escolares, sendo mantido sob controle. Só
se brinca na escola se sobrar tempo ou na hora do recreio, sendo que estes momentos
correm, permanentemente, o risco de serem suprimidos, seja por má conduta, seja
por não ter feito o dever de casa ou ainda por não ter dado tempo19.
Percebe-se, desse modo, conforme apontado por Fortuna19, que na atualidade os momentos destinados
para a brincadeira são frequentemente substituídos por outras atividades consideradas mais relevantes.
Concorda-se com as afirmações do autor, visto que, através da atuação com esse público, observamos que o
uso do brincar, que poderia ser utilizado como um recurso a contribuir no processo de ensino-aprendizagem,
dificilmente aparece atrelado a essas atividades. Não raro para manter o currículo escolar em dia, a primeira
atividade a ser retirada da rotina das crianças é “a hora do brincar”.
Esses apontamentos levantam importantes questionamentos e reflexões sobre o brincar e seu uso. Na
atual realidade, a maioria das crianças passa grande parte do seu dia no ambiente escolar, e, se não brincam
na escola, nos questionamos onde as crianças estão brincando.
Um novo jeito de brincar
O avanço na área tecnológica permitiu que as indústrias fossem aperfeiçoando seus brinquedos, criando
jogos que tudo fazem. Bonecas que cantam, trenzinhos que andam e apitam sozinhos, carrinhos movidos a
pilha e ursos que contam histórias. Como consequência, o que se percebe é um empobrecimento na forma
como as crianças brincam. Atualmente, os brinquedos têm vida própria e agem sozinhos, permitindo assim de
forma restrita que as crianças interfiram em seu funcionamento13.
O surgimento da internet e o aprimoramento dos meios tecnológicos vêm influenciando em uma série
de mudanças na vida das pessoas. Essas transformações trouxeram possibilidades em diversos aspectos. Os
avanços da tecnologia possibilitaram o aparecimento de novas formas de estabelecer relações, de se comunicar,
de trabalhar, de alcançar informações e notícias, assim como a indústria tecnológica também apresentou
novos formatos aos brinquedos, o que repercutiu na forma de brincar6.
Atualmente, há um número muito grande de brinquedos automáticos, movidos a pilha ou a bateria,
que diminuem a possibilidade da criança de fantasiar, criar e transformar esses objetos. Os brinquedos de
última geração introduzem a criança em um brincar de maneira acelerada. As imagens são instantâneas e
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exigem pressa na atuação da criança. Com regras preestabelecidas e ritmo programado, o brinquedo não dá
tempo para a criança pensar. Passiva, sem espaço para atuar, ela não exercita seus poderes para desvendar o
desconhecido13.
Apesar de novas formas de interatividade nos jogos eletrônicos surgirem a todo o momento, nota-se
que uma criança jogando videogame possui pouco espaço para criar, já que os jogos vêm com um roteiro
predeterminado. Mesmo que seja possível optar entre tarefas paralelas ou secundárias, geralmente é vivenciado
de forma solitária. Nesses jogos também é possível permanecer horas frente à tela, brincando, sem a presença
de outra pessoa. Os jogos eletrônicos parecem assim não possuir a mesma dimensão simbólica das brincadeiras
tradicionais. Esses brinquedos podem empobrecer a experiência da troca em presença6.
Entre os diversos produtos destinados às crianças, os brinquedos são os que mais seduzem o universo
infantil. A indústria de brinquedos movimenta milhões todos os anos, utilizando-se de diversos recursos para
encantar e atrair seu público, tornando as crianças consumidoras fiéis. Os brinquedos são inventados pelos
adultos, transmitidos pela mídia e vastamente comercializados, incentivando um consumo supérfluo que é
rapidamente substituído20.
Os brinquedos modernos têm o poder de atrair e seduzir o público infantil, contudo mostram-se distantes
de seu valor como instrumentos do brincar, já que desviam a brincadeira viva e ativa. Os novos artefatos da
ludicidade ainda parecem limitar a criança, que perde a oportunidade de fantasiar, interagir e criar5.
Na atualidade, o brincar é marcado pela “era” das tecnologias. Hoje as crianças permanecem mais
tempo em frente à televisão, jogando videogame e “navegando” na internet do que envolvidas em brincadeiras
tradicionais, como pular corda, brincar de casinha ou jogar bola. A televisão vem ocupando um espaço
importante no cotidiano das pessoas. As crianças acabam passando grande parte do tempo que estão em casa
em frente a esse aparelho. Existem na atualidade diversos programas criados em especial para atrair a atenção
do público infantil6.
Entretanto, o elevado uso dos equipamentos eletrônicos tem sido associado à violência observada nas
brincadeiras infantis. Em uma pesquisa realizada por Caiado & Pereira21 com acadêmicos concluintes do curso
de Pedagogia, os entrevistados destacaram a violência observada na interação entre as crianças, fato que
também observamos em nossa prática no contexto escolar infantil. Os participantes da pesquisa atrelaram a
violência nas brincadeiras ao elevado uso da televisão, do videogame e do computador.
Além de aspectos relacionados à violência, o uso do computador e dos jogos eletrônicos parece trazer
consequências a outras esferas, dentre elas a cognição humana. Em especial no que se refere à atenção, a
interação do homem com os jogos de videogame tem apontado para alterações perceptocognitivas22.
O uso desses artefatos tem sido alvo de preocupação, na medida em que tem aumentado
progressivamente o tempo que os jovens passam em contato com os jogos eletrônicos, acarretando desse
modo prejuízo no desempenho acadêmico, comportamentos de dependência, impulsividade e isolamento
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social23,24,25. O uso dos jogos eletrônicos contribuiu para um estilo de vida mais sedentário e menos ativo, o
que também pode ser apontado como um possível prejuízo para o desenvolvimento motor das crianças.
Entretanto, enquanto alguns prejuízos são atrelados ao uso dos jogos eletrônicos, cabe destacar que alguns
estudos apontam benefícios em decorrência da utilização desses artefatos26,27, como a sugestão de que o uso
dos jogos eletrônicos poderia facilitar o processo de aprendizado.
Considerações finais
O ato de brincar não é apenas uma ação espontânea de um determinado momento, ele traz a história
de cada criança, revelando seus enigmas e suas questões. É brincando que a criança revela seus conflitos, de
forma semelhante à dos adultos, que revelam esses conflitos através da fala16. Brincar, fantasiar e imaginar são
ações que antecedem o racional e que vão além da realidade. Eles são necessários para o desenvolvimento
psíquico e das capacidades criativas, sendo importantes para a ampliação das zonas de relação entre o sujeito
e o seu mundo. O brincar, desse modo, é um elemento fundamental na vida da criança27,28,29.
Contudo, através da prática profissional com crianças, em especial no contexto escolar infantil,
observamos que o tempo destinado para o brincar parece estar cada vez mais reduzido. Esse dado também é
apontado por Caiado & Pereira21 através de uma pesquisa realizada com 48 acadêmicos concluintes do curso
de Pedagogia, na qual foi investigado sobre o uso do brincar no contexto escolar. Os participantes do estudo
referiram que consideram muito pouco o tempo que é destinado para as crianças brincarem no âmbito escolar
na atualidade.
O brincar parece desse modo estar sendo mantido em segundo plano, ou usado apenas como forma de
entretenimento ou para ocupar o tempo ocioso das crianças. Os brinquedos passaram a assumir a condição
de simples objeto desprovido de valor lúdico e perdendo seu real significado. Em nossa prática observamos
que o tempo destinado para brincar costuma ser cronometrado, e, não raro, grande parte dos brinquedos
permanece exposta como objetos de decoração e enfeite. Esses artefatos são mantidos assim, fora do alcance
das crianças e também do seu real uso.
Através da revisão de literatura, observamos que muitos estudos abordam a temática do brincar e sua
importância na rotina da criança. Contudo, apesar de a literatura confirmar os benefícios do lúdico, nota-se
que o distanciamento da criança com as brincadeiras é uma realidade cada vez mais presente. O uso desses
artefatos parece estar se limitando, o que sugere que atualmente os profissionais não têm reconhecido o
poder do lúdico para o desenvolvimento infantil.
Apesar de elevado o número de estudos atuais abordando a temática do brincar, é predominante o
número de estudos teóricos sobre o tema. Em contrapartida, é reduzido o número de pesquisas que abordem
dados obtidos através de estudos de campo nos contextos em que as crianças estão inseridas na atualidade,
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sendo essa uma importante limitação. Com isso, destacamos a relevância de novos estudos empíricos sobre o
tema em questão. Acredita-se que novos estudos sobre essa temática possam contribuir para fortalecer a
importância que o brincar desempenha no desenvolvimento cognitivo, motor, social e emocional das crianças.
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Correspondência
Denise Bernardi
Avenida Marquês de Paraná nº 349, apt. 709, Centro
24030-215 Niterói, RJ, Brasil
[email protected]
Submetido em: 03/04/2015
Aceito em: 13/05/2015
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