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Democracia Hackeada - Martin Moore

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Avenida Recife, 841 — Jardim Santo Afonso — Guarulhos, SP

CEP 07215-030 — Tel.: 0 xx 11 2379-1019


contato: [email protected] — www.editorahabito.com.br
/editorahabito @editorahabito

DEMOCRACIA HACKEADA
© 2018, de Martin Moore
Título do original: Democracy Hacked: How Technology is Destabilising Global Politics
Copyright da edição brasileira ©2022, Editora Hábito
Edição publicada com permissão contratual da Oneworld Publications (Londres, Inglaterra)

Todos os direitos em língua portuguesa reservados à Editora Hábito.

PROIBIDA A REPRODUÇÃO POR QUAISQUER MEIOS, SALVO EM BREVES CITAÇÕES, COM INDICAÇÃO
DA FONTE.

Todas as citações foram adaptadas segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, assinado em
1990, em vigor desde janeiro de 2009.

Todos os grifos são do autor.

Editor responsável: Gisele Romão da Cruz


Editoras-assistentes: Amanda Santos e Aline Lisboa
Tradução: Sandra Martha Dolinsky
Revisão de tradução: Andrea Filatro
Revisão de provas: Elaine Freddi
Projeto gráfico e diagramação: Claudia Fatel Lino
Capa: Arte Hábito
Conversão para Epub: Cumbuca Studio

1. edição: jul. 2022

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Moore, Martin
Democracia hackeada : como a tecnologia vem desestabilizando a política global / Martin Moore. --
São Paulo, SP : Editora Hábito, 2022.

ISBN 978-65-84795-10-5

1. Comunicação e política 2. Democracia 3. Política - Aspectos sociais 4. Redes sociais on-line -


Aspectos políticos I. Título.

22-110342 - CDD-321.8

Índices para catálogo sistemático:


1. Democracia : Ciências políticas 321.8
Eliete Marques da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9380
Para Jojo
Sumário

Introdução

Parte 1: Hackers
1. Indivíduos: o modelo livre-extremista
2. Plutocratas: o modelo Mercer
3. Estados: o modelo russo

Parte 2: Falha de sistemas


4. As eleições do Facebook
5. Anarquia na Googlesfera
6. A insustentável leveza do Twitter

Parte 3: Futuros alternativo


7. Democracia de plataforma
8. Democracia de vigilância
9. Democracia re-hackeada

Agradecimentos
Introdução

Há uma fotografia antiga, colorida, mas desbotada, batida no outono de


1974, que mostra a minha família acomodada dentro de um Triumph
conversível laranja. Estou no banco traseiro, com 4 anos de idade, usando
um chapéu estilo Davy Crockett, de pele e cauda de guaxinim. Aparento
sentir frio e certo mau humor. O meu pai e a minha irmã mais velha se
espremem comigo no mesmo banco, enquanto o meu irmão caçula, ainda
bebê, está sentado no colo da minha mãe, no banco do passageiro da frente.
Colado à porta do carro vê-se o cartaz da campanha do meu pai para a
eleição prestes a acontecer. Era a segunda eleição dele como candidato — a
primeira fora apenas sete meses antes — de modo que saímos para distribuir
panfletos, bater de porta em porta e tentar conquistar os eleitores. Duvido
que eu tenha sido de grande ajuda, mas o meu pai estava determinado a
passar toda a campanha batendo em cada porta de seu distrito eleitoral.
Quando — ou melhor, se — alguém abrisse a porta, ele apresentava seus
argumentos e ouvia o que as pessoas desejavam de um candidato. O roteiro,
se é que podemos chamá-lo assim, era de autoria dele mesmo; a única
orientação que recebera do escritório central era um guia nacional de
campanha política contendo uma série de declarações gerais do partido.
Aquele mundo está acabando. Não digo isso como uma espécie de slogan
ostentado por homens-sanduíches anunciando “O fim está próximo”. Mas a
democracia dos partidos estabelecidos há tempos, da hierarquia rígida e dos
partidos de centro enfrenta um colapso. A ideia de que devemos confiar o
trabalho de instruir as pessoas acerca das notícias e da política a um grupo
exclusivo de veículos de comunicação está desaparecendo. O conceito de
representação política esporádica por meio de eleições ocasionais vem
perdendo a legitimidade. E a ideia de que podemos ignorar a política na
maior parte do tempo — e, em troca, ser ignorados — está se desbotando
em um passado cor de sépia.
Quase meio século depois, a campanha política é algo praticamente
irreconhecível. As campanhas oficiais são alimentadas por uma central que
as supre de montanhas de dados dos eleitores, submetidos a modelos
algorítmicos complexos e usados para o envio de mensagens direcionadas
com precisão milimétrica aos eleitores mais cobiçados. Você não é mais um
morador anônimo da Avenida Belvedere, 43. Centenas de “pontos de dados”
o conhecem porque capturam tudo o que você compra, quanto ganha, o que
lê, ao que assiste, quem conhece e o que lhe interessa. Misture tudo isso com
dados de pesquisas eleitorais, e qualquer candidato saberá se deve rodeá-lo
de atenção, pedir-lhe uma doação ou talvez mesmo desencorajá-lo a sair
para votar. As campanhas não oficiais — disputadas por indivíduos e
organizações abastados, por grupos de pressão e por nós, o grande público
ignaro — mudaram ainda mais. Todos nós agora temos acesso a tamanho
arsenal de ferramentas digitais que podemos levantar as armas e lutar por
uma mensagem própria no mesmo campo de batalha.
A vitória de Donald Trump em 2016 já foi desconsiderada por muitos
uma confluência peculiar de circunstâncias, um acontecimento bizarro
inserido na lógica dos “cisnes negros” que não se repetirá.1 Todavia, as
surpresas políticas estão se tornando a norma. Antes da eleição de Donald
Trump, houve a derrocada do indiano Narendra Modi, em 2014, a vitória
espantosa de Rodrigo Duterte nas Filipinas, em maio de 2016, e a votação do
Brexit um mês mais tarde. Depois de Trump ocorreram a ascensão de
Emmanuel Macron, em 2017, o sucesso registrado em dois dígitos de Jeremy
Corbyn na eleição do Reino Unido no mesmo ano e a ascensão do
Movimento 5 Stelle — M5S na Itália, em 2018. Seria possível dizer que há
boas razões materiais para a raiva das pessoas contra o establishment político
e sua frustração com a ordem financeira global e neoliberal. Ou que essas
surpresas são uma resposta contínua à quebra econômica global de 2008 e
aos fantasmas gêmeos da mudança climática e da migração em massa.
Contudo, já houve raiva e frustração similares antes, com consequências
políticas bem mais previsíveis. Não, essas surpresas políticas — e virão mais
— não podem ser compreendidas sem o reconhecimento da transformação
fundamental dos nossos ambientes de comunicação.
A revolução nas comunicações digitais — o colapso dos veículos de
comunicação e a ascensão de plataformas tecnológicas hegemônicas como
Google, Facebook e Twitter — vem maltratando as nossas eleições,
derrubando candidatos convencionais e matando afogados os partidos de
centro. Mais ainda, vem reestruturando a política, corroendo as instituições
existentes e remodelando o papel do cidadão. Ela está criando aberturas
para quem antes não tinha nenhuma, espaços em que é possível se esquivar
das normas, leis e práticas estabelecidas, e oportunidades para a trapaça e a
distorção. Para termos alguma possibilidade de determinar o tipo de sistema
político que emergirá desse turbilhão, precisamos começar tentando
compreendê-lo.
As insurreições políticas de 2011 foram o primeiro sinal relevante da
escala de ruptura, embora os governos democráticos tirassem conclusões
equivocadas. Em todo o norte da África e Oriente Médio, cidadãos usaram
ferramentas digitais como Facebook e Twitter para incubar protestos e
coordenar ações coletivas contra governos autoritários e autocráticos.
Observando o desenrolar dessas revoluções, os governos democráticos, bem
como quem fazia funcionar as plataformas digitais, se felicitaram
mutuamente. Erraram ao presumir que suas ferramentas eram
inerentemente democratizantes, quando a tecnologia apenas permitia novas
maneiras de alcançar objetivos políticos. Aqueles que enxergaram quão
poderosas poderiam ser essas plataformas em termos políticos e usaram as
ferramentas digitais para correrem atrás de seus objetivos alvos políticos
obtiveram benefícios desproporcionais. Não importava se os alvos eram
democráticos, autocráticos ou anárquicos.
Governos autoritários, morrendo de medo do que aconteceu naquele
ano, tiraram uma lição bem diferente da Primavera Árabe e procuraram
abrandar e domesticar a rede. Na Rússia, o governo de Vladimir Putin quis
impor a soberania digital, exigindo que todos os dados pessoais de cidadãos
russos fossem mantidos dentro do país e obrigando todos os blogues com
mais de 3 mil visitantes por dia (pouco maiores que uma conta decente do
Instagram) a se registrarem como organizações de mídia regulamentadas.
No Irã, o presidente Rouhani deu início à construção de uma internet
nacional completa, incluindo sites domésticos locais próprios, com a
chancela do governo, sendo que o primeiro estágio se encerrou no fim de
2017. O governo chinês já contava com o Grande Firewall e o Grande Shield
para policiar a rede, mas ampliou e aprofundou seus métodos de controle,
promovendo experiências com sistemas ainda mais invasivos, como o Social
Credit.
O ano de 2016 deveria ter sido um sinal de alerta para nós. Os velhos
sistemas democráticos têm a mesma propensão a serem manipulados.
Não se trata de uma questão política partidária, embora haja quem o
interprete assim. O ano de 2016 deixou claro que quem buscava
conscientemente subverter o status quo e usou ferramentas digitais com esse
objetivo teve sucesso muito maior do que em qualquer outro ponto ao longo
do meio século precedente. Por isso os três tipos de “hackers” que
distorceram com sucesso a eleição norte-americana de 2016 — indivíduos,
plutocratas e estados estrangeiros — devem ser vistos não como anomalias,
mas como modelos para o que virá a seguir. Interpretá-los como modelos
nos permite compreender como eles fizeram o que fizeram, o que os ajudou
nesse sentido e como outros podem fazer a mesma coisa, quer isso
signifique o emprego de memes como ferramentas de guerra, a coleta de
vastos conjuntos de dados dos eleitores ou o desenvolvimento
de sofisticados métodos para segmentação comportamental, quer implique o
envenenamento com informações falsas da fonte de água democrática. Esses
métodos, como o ecossistema digital de modo geral, não são exclusivos de
uma convicção política particular, embora funcionem melhor para quem
ocupa os extremos do que para quem se posiciona no centro, para os
desejosos de transgredir princípios e convenções políticas e para os
dispostos a ignorar normas éticas.
Nenhum dos hackers conseguiria fazer o que fez se a política não tivesse
migrado para o on-line. Obtemos informações políticas on-line, curtimos e
juntamo-nos a campanhas políticas on-line, doamos para causas políticas
on-line, subscrevemos petições on-line e alguns de nós chegamos a votar
on-line. Já vimos “a primeira campanha eleitoral no Reino Unido a investir
quase todo [seu] dinheiro em comunicação digital”, de acordo com o diretor
da campanha oficial Vote Leave, favorável ao Brexit, depois do referendo de
2016. Hoje é raro encontrar uma consultoria política que não se venda com
base em sua própria habilidade de lidar com dados, comunicação digital e
redes sociais. A Cambridge Analytica alcançou a infâmia global pela
quantidade de dados pessoais digitais que coletou e usou para selecionar
eleitores, mas é pouco provável que tenha sido a única.
Esses modelos poderiam ter permanecido distintos para os Estados
Unidos não fosse pelo fato de a política migrar não só para o on-line, mas
também para um punhado de plataformas digitais transnacionais. Técnicas e
ferramentas pioneiras nos Estados Unidos podem ser experimentadas com
facilidade na Inglaterra, Alemanha, Índia, Malásia ou no Brasil. Ainda que o
contexto político de cada país seja diferente, as mesmas plataformas de
comunicação predominam em quase todos os cenários. Entre elas, três se
sobressaem: Facebook (e as subsidiárias WhatsApp, Instagram e Messenger),
Alphabet (sobretudo Google e YouTube) e Twitter. Juntas essas plataformas
se converteram na esfera pública virtual, ainda que a um mundo de distância
do imaginado pelo filósofo alemão Jürgen Habermas, responsável por
popularizar a expressão.
Das três, o Facebook se tornou a plataforma preferida de quem almeja
um cargo político. Não é difícil entender por quê. Em 2018 o Facebook tinha
bem mais de 2 bilhões de usuários ativos e, em alguns países, era quase
sinônimo de internet. Em toda a Ásia do Sul e Leste, por exemplo — na
Tailândia, em Taiwan, no Sri Lanka, em Singapura, na Malásia, em
Mianmar, no Laos e na Indonésia — mais de 8 em cada 10 usuários da
internet também estavam presentes no Facebook.
Os sistemas democráticos começaram a sentir essa força em 2012,
quando o Facebook se transformou na máquina de propaganda mais
poderosa do mundo. Não aconteceu devido a um grande plano
maquiavélico, ou porque Mark Zuckerberg acalentasse a ambição de ocupar
o cargo de presidente dos Estados Unidos. Foi mais banal que isso.
O Facebook necessitava justificar sua valorização e custear a própria
ambição de conectar o mundo. Para isso, potencializou seus pontos fortes
mais valiosos — alcance, atenção e informação pessoal — para produzir as
ferramentas que permitiriam às empresas anunciantes segmentar os
consumidores com exatidão e eficiência sem precedentes. Não era a intenção
da plataforma de rede social que as mesmas ferramentas fossem utilizadas
por partidos, ativistas ou extremistas políticos, ou por quem estava
determinado a semear o caos político. Como os cientistas que
desenvolveram a fissão nuclear sem preverem a amplitude assustadora da
destruição na qual mais tarde ela seria empregada, os engenheiros do
Facebook se limitaram a arquitetar o serviço de publicidade mais eficiente
que puderam.
Seja como for, talvez esses engenheiros argumentassem, que não foi o
Facebook quem desenvolveu o modelo publicitário, baseado em vigilância e
dirigido ao comportamento, responsável por impulsionar conteúdos e
comunicação em rede. Foi o Google que fez isso. Desde 2000, o Google
criara com todo cuidado a maior, mais rápida, mais sofisticada, mais
automatizada e mais absurdamente complicada superestrutura publicitária
de que se tinha notícia. A coisa toda foi construída de modo a minimizar o
envolvimento humano e a maximizar o poder latente dos algoritmos e do
mercado. A coisa toda era interconectada de modo tão fantástico que um
anúncio podia ser direcionado a qualquer um, onde quer que essa pessoa
estivesse no mundo, onde quer que ela estivesse na web, via a mensagem
com maior probabilidade de induzi-la a clicar, ao custo mais baixo possível.
Do ponto de vista do anunciante, parece fabuloso. Do ponto de vista da
democracia, a perspectiva de um propagandista, seja qual for sua convicção,
de conseguir atingir o eleitor mais suscetível (ou vulnerável), no momento
mais oportunista com a mensagem mais provável de instigar uma reação, é
bem menos atraente. O sistema era tão abrangente e isento de atrito que não
conseguia distinguir com facilidade um anúncio vendendo creme para o
rosto de outro vendendo o fascismo.
Quanto mais rápidos e mais virtuais se tornaram a nossa comunicação
política e os nossos sistemas de informação, mais leves eles ficaram,
esvoaçando o tempo todo para manter o compasso da nossa atenção
inconstante. À medida que consumimos informações e notícias com mais
rapidez, deslizando a tela do Twitter, mergulhando no Instagram, entrando e
saindo do WhatsApp, perdemos a noção do que tem e do que não tem
substância. Ao mesmo tempo, por trás de tudo isso, os nossos mecanismos
necessários, imperturbáveis, mas falhos para dar as notícias e separar o que
tem peso do que não tem, murcharam e secaram.
Quando começaram a avaliar a extensão da ruptura política causada
pelas plataformas digitais nos anos posteriores a 2016, os governos
democráticos patinaram ao tentarem encontrar maneiras de reagir. Alguns
alimentaram a esperança de que o mercado agisse como mecanismo de
autocorreção. Outros resolveram que era hora de o Estado entrar em campo
e assumir maior controle da rede. A verdadeira questão é: Para onde irão as
democracias a seguir? Com base no modo como reagiram até agora, temos a
impressão de que se fragmentarão em três direções: rumo à democracia de
plataforma, à democracia de vigilância, e à democracia digital reformatada —
“re-hackeada”. Na primeira, as plataformas digitais se tornarão ainda mais
poderosas que hoje, a ponto de passarem a ser portas de entrada não só para
serviços comerciais, mas também para serviços públicos como assistência
médica, educação e transporte. Nesse cenário, trocar a plataforma digital no
futuro pode ter um efeito maior sobre a vida dos cidadãos do que trocar-lhes
o governo eleito. No segundo cenário, o Estado atribuirá muito mais poder a
si próprio, de modo a ter capacidade bem maior de observar, estimular e
direcionar os cidadãos. Nesse modelo, muitas das liberdades de que os
cidadãos desfrutam hoje ficarão necessariamente bem mais restritas. Essas
duas direções — rumo a um governo enfraquecido ou a um Estado todo-
poderoso — há muito são vistas como fragilidades inatas da democracia.
Ainda em 1861, no início da Guerra Civil norte-americana, Abraham
Lincoln perguntou ao Congresso se havia “em todas as repúblicas essa
fraqueza inerente e fatal”. “O governo, por necessidade, deve ser forte demais
na defesa das liberdades de seu povo”, indagou ele, “ou fraco demais para
manter a própria existência?” A revolução das comunicações digitais e a
ascensão das gigantes de tecnologia conferem urgência a essa questão mais
uma vez.
Existe uma terceira direção, rumo à democracia “re-hackeada” para a era
digital. Quem deseja seguir nesse sentido precisará repensar o que o termo
democracia — “talvez a palavra mais promíscua no mundo dos assuntos de
interesse público” — quer dizer de fato e quais de seus aspectos necessitam
de proteção. Resolvido esse problema, as pessoas precisarão reformar
radicalmente seus sistemas políticos atuais e redistribuir o poder de forma
tal que desagradará muita gente ocupando cargos eletivos. Isso significará
eleger líderes políticos dotados de prudência, bravura e perspicácia.
Estamos em uma “encruzilhada crítica”, como chama o estudioso das
comunicações Robert McChesney. Um número crescente de pessoas vem
reconhecendo que os sistemas políticos democráticos não funcionam mais
como deveriam. De semelhante modo, temos constatado que as plataformas
digitais, que imaginávamos sustentarem e aprimorarem esses sistemas, na
verdade os corroem e os remodelam pouco a pouco. Governos democráticos
e estrategistas políticos chegaram tarde a essa constatação, motivados pela
evidência crescente de abuso político de suas plataformas. No entanto, ao se
inteirarem desse abuso, apesar da compreensão limitada, eles reagiram
coletivamente e mais que depressa. “Um pequeno aprendizado”, escreveu o
poeta Alexander Pope em 1709, “é coisa perigosa: / Beba de uma vez ou não
prove do manancial piério.” Assim acontece com as reações dos governos a
essa encruzilhada crítica. Alguns farejam os perigos da ruptura digital e
disparam na direção errada. Outros investem mais responsabilidade nas
plataformas, confiando que elas descobrirão como corrigir a política na
esfera digital. Seguir em qualquer uma dessas direções acelerará a extinção
da democracia liberal e inaugurará uma nova era política: talvez mais
eficiente e conveniente, mas também menos tolerante, indulgente e livre.
Podemos enveredar por um caminho diferente, em que permitimos à
democracia progredir de modo a se beneficiar da tecnologia digital, mas sem
ser por ela dirigida, um caminho em que renovemos a fé das pessoas na
eficácia dos sistemas políticos democráticos. Mas isso só será possível se
agirmos agora.

1 O matemático, estatístico e escritor Nassim Nicholas Taleb chama de “cisnes negros” os

acontecimentos improváveis de grande impacto, posteriormente submetidos a racionalizações


simplistas. [N. do T.]
Parte 1

Hackers
Indivíduos: o modelo livre-extremista

Danem-se as regras! Somos fortes — nós caçamos!


Se houver uma fera, iremos atrás dela até abatê-la! Fecharemos o cerco e a encheremos de
pancadas e mais pancadas!
William Golding, O senhor das moscas

Nas semanas que antecederam as eleições de setembro de 2017 para o


Bundestag, o parlamento da República Federal da Alemanha, um grupo de
extremistas alemães conspirou on-line para promover o apoio ao partido de
extrema-direita Alternative für Deutschland (AfD) e eliminar os votos para
seus oponentes tradicionais. Mais de 5 mil deles eram membros de um canal
de bate-papo da internet, privado e anônimo, chamado Reconquista
Germania. Nele discutiam como usar a tecnologia a fim de coordenar suas
atividades, como sequestrar a pauta das mídias sociais, assediar políticos
consagrados, atacar a mídia tradicional, sincronizar investidas contra as
redes sociais e promover a normalização de linguagem e imagens de ódio
prejudiciais ao debate político.
Quando estava pronto para agir, no início de setembro de 2017, o grupo
anunciou em publicamente que “declarava uma guerra de memes contra os
degenerados do parlamento”.1 “Blitzkrieg2 contra os velhos partidos!”, gritou
on-line um dos integrantes do grupo. Outro conclamou ao ataque contra os
escritórios do veículo de imprensa alemão Der Spiegel. Em um canal
separado da internet chamado #Infokrieg ou Infowar, havia salas de bate-
papo dedicadas ao desenvolvimento de propaganda política extremista e à
discussão de estratégias para manipular o Twitter. Paralelamente, em um
imageboard3 on-line do site 4chan, usuários alemães construíram uma
biblioteca de imagens incendiárias com slogans prontos para serem
disseminados pelas mídias sociais. Em uma seção do subfórum alemão
denominado “meme jihad”, relatou o site Buzzfeed, membros postaram links
de vídeos do YouTube explicando como viralizar conteúdos extremistas.4
Algumas das imagens usavam anime japonês e muitas incluíam a
personagem Pepe, o sapo, enquanto outras faziam deliberada referência à
imagística nazista e antissemítica. Em local diferente do mesmo site, como
descobriram pesquisadores do Institute for Strategic Dialogue (Instituto
para o Diálogo Estratégico – ISD em inglês), os membros compartilhavam
“recursos para operações psicológicas” a serem utilizados durante a
campanha eleitoral alemã de 2017, “tais como um ‘passo a passo de como
manipular narrativas’ com link para os manuais estratégicos do serviço de
inteligência britânico sobre fraude e perturbações”5.
Embora em número limitado, esses extremistas conseguiram causar um
impacto danoso e distorcido à eleição alemã. Derrubaram um político
ambicioso, promoveram “vídeos patrióticos” ao topo das exibições via
YouTube e manipularam as mídias sociais repetidas vezes. “Nas duas
semanas de arrancada final da eleição”, o ISD descobriu, “não se passou um
só dia em que a hashtag #AfD não estivesse entre os dois top trending na
Alemanha”. O objetivo era não apenas mobilizar a extrema-direita, mas
também militarizar o discurso político on-line, sufocar outras vozes e
reprimir os eleitores dos partidos tradicionais. No começo de setembro,
antes que se intensificasse a atividade desses grupos, o AfD ocupava o quinto
lugar nas pesquisas. Ficou em terceiro na eleição, tendo recebido 13,3% dos
votos, superando a maior parte das pesquisas e expectativas e permitindo a
um partido da extrema-direita entrar no Bundestag pela primeira vez desde
1961.
Se fosse um feito singular, poderíamos ignorá-lo e presumir que não se
repetirá em nenhum outro lugar. Todavia, as estratégias e técnicas haviam
sido empregadas antes de setembro de 2017 e continuam sendo desde então.
Tornaram-se parte de um conjunto de ferramentas utilizado por ideólogos,
mercenários e pela infantaria política na tentativa de hackear a política e as
eleições democráticas. Embora essa caixa de ferramentas venha sendo
adotada com entusiasmo e vigor pela extrema-direita, não é exclusiva de um
país ou de uma ideologia política específica. Na verdade, muitos dos
métodos são simples e acessíveis a qualquer um com tempo e propensão.
Como chegamos aqui? Como nos encontramos em um lugar no qual
processos e normas democráticos degeneraram em conflito aberto de um
extremo ao outro das plataformas digitais? Um lugar no qual candidatos em
campanha negociam manuais de guerras psicológicas, discutem técnicas de
espionagem de código aberto e conversam sobre batalhas de memes; um
lugar no qual as pessoas produzem no quarto em que dormem exércitos de
computadores interligados para ataques cibernéticos, e no qual candidatos
on-line correm para “se apoderar da narrativa política” ou para inundar a
esfera pública digital da própria perspectiva hipersectária.
A fim de compreender para onde devemos ir, precisamos seguir o fio da
meada de volta até antes dos ciclos eleitorais de 2016-17, antes do
desenvolvimento das redes sociais, antes até da invenção da World Wide
Web. Retorne por esse caminho e descubra que ser capaz de navegar pelas
normas e valores atuais da sociedade, de coordenar a ação coletiva com
rapidez e de corroer as estruturas de poder existentes foram coisas forjadas
no interior das estruturas originais da internet. Claro, na época não existia a
ideia de que agir desse modo era algo político — no sentido atribuído ao
termo pelo mundo real. Apenas era assim que se fazia as coisas na rede.
O ciberespaço existia apartado do mundo real — o espaço físico da
existência humana. No ciberespaço, as decisões eram tomadas de maneira
diferente; as comunidades se autogovernavam e criavam as próprias regras;
Estados e corporações exerciam pouco controle. Dos primeiros
colonizadores do ciberespaço, um pequeno número previu que a população
virtual logo concorreria com a do mundo real, ou mesmo a suplantaria.
Poucos pensaram que as práticas e crenças de governo dessas comunidades
on-line se cristalizariam em ideologias. E teria sido anátema para eles
imaginar que essas comunidades on-line algum dia começariam a brigar
umas com as outras, ou que essas batalhas respingariam na política
tradicional, ou, ainda — Deus nos livre!, — que os sistemas democráticos
poderiam, em consequência, ser derrubados. De fato, quem subscreveu aos
ideais do ciberespaço — os engenheiros, os idealistas e os donos de grandes
terras digitais no mundo dos DeLorean e dos Space Invaders da década de
1980 — se caracterizava pelo otimismo digital. O futuro que eles
conceberam era uma utopia.

Em novembro de 1984, em uma velha base militar junto a Rodeo Lagoon, ao


norte de São Francisco, 150 hackers se reuniram para uma conferência de
três dias organizada por Stewart Brand e Kevin Kelly. Fazia mais de uma
década que Brand publicara a última edição do icônico Whole Earth
Catalog, em 1971, e ele acabava de embarcar no projeto novo de catalogar o
mundo florescente do software de computador. O Whole Earth Catalog
original, organizado por Brand a partir de escritórios localizados em Menlo
Park entre 1968 e 1971, era uma miscelânea repleta de dicas contraculturais
do tipo “como fazer” acompanhadas de uma pitada de consumismo e utopia
tecnológica, tudo isso amarrado em um enorme volume impresso.
Conseguia combinar de tudo um pouco, desde como consertar um
Volkswagen até o cultivo da própria maconha, passando pela confecção de
um estojo de pele de veado para acondicionar a nova calculadora Hewlett-
Packard. Era como uma versão primitiva da rede hiperconectada, só que
impressa. Ou, como disse Steve Jobs, fundador da Apple, em 2011: “Era uma
espécie de Google em versão brochura”.
Para alguém que teve influência tão profunda no mundo moderno,
impressiona como Stewart Brand é pouco conhecido fora do Vale do Silício.
Em três décadas, ele conseguiu por três vezes reunir segmentos culturais
aparentemente díspares e dar coerência à voz de uma nova geração: no fim
da década de 1960, com seu Whole Earth Catalog; na década de 1980 por
meio da conferência de hackers e do Whole Earth’Lectronic Link; e na
década de 1990 com a revista Wired (mais uma vez organizada junto com
Kevin Kelly). Brand sintetizou, tanto em quem era quanto no que fez, a
“ideologia californiana” de aspecto contraditório — como definida por
Richard Barbrook e Andy Cameron em 1995 — do casamento entre a
geração alternativa livre de preocupações relativas à inovação tecnológica e o
empreendedorismo de livre mercado.6
Quando organizou a primeiríssima conferência de hackers em 1984,
Brand queria saber como os ideais que conseguira concatenar no Whole
Earth Catálogo se aplicavam ao mundo dos computadores. Investigava se o
espírito dos Merry Pranksters7 da década de 1960, que captara e imprimira
em papel, refletia-se na ética e sensibilidade da crescente comunidade de
geeks convertidos ao empreendedorismo. Em particular, tentava descobrir se
esses hackers adotavam a “Ética Hacker” descrita em um novo livro de
Steven Levy.8 O autor, que também esteve presente na conferência —
observando muito nervoso os participantes folhearem seu livro recém-
impresso — identificara seis princípios éticos, desde “O acesso a
computadores [...] deve ser ilimitado e completo” até “Os computadores
podem mudar a sua vida para melhor”. Houve identificação com todas. Mas
a que melhor traduzia a ideologia hacker, que mesclava cada um dos geeks a
um coletivo maior e se provaria a mais revolucionária, era a segunda: “Toda
informação deve ser livre”. Como Fred Turner escreve em From
Counterculture to Cyberculture [Da contracultura à cibercultura]: “Como a
energia mística que deveria circular entre as comunidades do movimento ‘de
volta à terra’, unindo seus integrantes uns aos outros, a informação deveria
circular abertamente entre a comunidade de hackers, libertando-os ao
mesmo tempo para agirem como indivíduos e unindo-os em uma
comunidade de mentalidades semelhantes”.9 “Informação”, conforme
descrita por Levy, refere-se a código, e “livre”, a seu fluxo pelo sistema
computacional, não a quanto ele custa. De fato, alguns dos hackers da
conferência enfatizaram que “livre” não significava que estavam impedidos
de cobrar pelo próprio trabalho. Brand tentou fazer essa distinção quando
disse aos participantes que, “de um lado, a informação pede para ser cara,
pois é muito valiosa. [...] Por outro lado, ela quer ser livre e gratuita, pois o
custo para obtê-la está se tornando cada vez menor”. Todavia, como
acontece com ideias poderosas, essa distinção logo se perdeu, restando
apenas a convicção de que “toda informação deveria ser livre” como o
primeiro princípio constante do catecismo dos cidadãos da internet, ou
internautas.
Quando a comunidade hacker surgiu, na década de 1970 e início da de
1980, John Perry Barlow escrevia letras para a banda Grateful Dead e mexia
com gado na empresa Bar Cross Land and Livestock Company, em
Wyoming. Você jamais imaginaria que, entre escrever letras de música e
administrar uma fazenda de gado, Barlow se tornaria um migrante precoce
do ciberespaço. Não fosse por Steward Brand, é provável que isso não tivesse
acontecido. No entanto, logo depois da conferência dos hackers, Brand e
Larry Brilliant abriram o Whole Earth ‘Lectronic Link, ou WELL. Era
basicamente um bulletin board primitivo, baseado em comandos de texto,
no qual os assinantes podiam postar tópicos para outras pessoas
responderem. Enquanto Brilliant resolvia a questão da tecnologia, Brand
congregava a comunidade. Dada sua rede social generosa, essa comunidade
acabou sendo composta por uma mistura eclética de hackers, jornalistas,
escritores, músicos e letristas. De maneira muito parecida com as
comunidades da década de 1960, Brand quis que a sua fosse aberta, irrestrita
e se autogovernasse. Barlow se sentiu cativado por ela de imediato, tendo se
juntado a David Gans, do Grateful Dead, no WELL em 1987. O ciberespaço,
achava Barlow, era um território novo, inexplorado, uma “fronteira
eletrônica”. Ali ele teve a oportunidade de experimentar “o gesto nobre,
humano em essência, de saltar para o interior da vastidão inexplorada”, de
partir rumo ao oeste em busca de ouro e glória: coisa que seus pais e avós
tinham feito no mundo físico, mas que até então fora negada à geração dele.
Agora, “outra fronteira se escancara à nossa frente”, escreveu Barlow cheio de
entusiasmo. “Essa fronteira, do mundo virtual, oferece oportunidades e
perigos como nenhuma outra. Ao cruzá-la, estamos nos envolvendo com o
que provavelmente se provará o evento tecnológico mais transformador
desde que o homem aprendeu a dominar o fogo.”
Barlow foi de tal forma arrebatado pela ideia do ciberespaço como terra
inexplorada na qual ele e seus companheiros de aventuras poderiam se
estabelecer que chegou a se ofender quando o velho mundo se intrometeu
no novo. Em 1990, quando uma pequena editora de jogos quase fechou
depois que o serviço secreto norte-americano fez uma batida em seus
escritórios e acessou seus e-mails à procura de um documento (que não
estava lá), Barlow e mais duas pessoas do WELL abriram a Electronic
Frontier Foundation — com o intuito de proteger as liberdades civis no
ciberespaço. Seis anos mais tarde, quando o governo dos Estados Unidos
tentou aprovar uma lei que puniria a troca de mensagens “obscenas ou
indecentes” entre menores de 18 anos, Barlow redigiu sua famosa
Declaração de Independência do Ciberespaço. “Governos do mundo
industrial, gigantes enfadonhos de carne e aço, eu venho do ciberespaço, o
novo lar da mente”, escreveu ele em tons “jeffersonianos”. “Em prol do
futuro, peço a vocês do passado que nos deixem em paz. Vocês não são bem-
vindos entre nós. Não têm soberania onde congregamos”.10 Apesar da
gravidade das palavras, Barlow as rabiscou no curso de uma noite em Davos,
em pleno Fórum Econômico Mundial, entre passos de dança com pós-
graduandos.11 Ele publicou seu texto on-line da Suíça e, apesar da era pré-
redes sociais, a mensagem viralizou. Mesmo naquele estágio inicial de
evolução, a ideia de que a rede era um mundo novo a ser governado por seus
habitantes segundo regras diferentes das do velho mundo exercia grande e
irresistível fascínio. A mensagem era tão poderosa que deu à luz o segundo
princípio do catecismo da rede — a de que os habitantes do ciberespaço
deviam ser soberanos na própria terra.
Não muito tempo depois de Barlow apresentar essa declaração, como ele
previra, aconteceu uma corrida do ouro na internet. Empreendedores
digitais, blogueiros e exploradores de jazidas correram a ocupar a terra
recém-descoberta. Em meio a comerciantes, gente que se autopromovia e
inovava, havia pioneiros querendo estabelecer novas comunidades. Alguns
deles usaram como ponto de partida os primeiros bulletin boards das
décadas de 1980 e 1990, embora cada comunidade se definisse pelas
propensões pessoais de seus fundadores e por quem escolhesse nela se fixar.
Alguns sites evoluíram do formato baseado em texto dos bulletin boards
para os weblogues iniciais, como o Memepool (1998); outros se
distinguiram por dar às pessoas a liberdade de postarem imagens e texto,
como o Fark (1999) e o Something Awful (1999). Houve um site criado
poucos anos mais tarde, no verão de 2003, por Chris Poole, o “discutível”.
Chamava-se 4chan e tinha um aspecto igualmente básico e caseiro, apesar
de algumas características distintas, as quais, mais tarde, viriam a fazer toda
a diferença.

É impossível explicar o impacto político subsequente da comunidade 4chan


e dos métodos que seus membros conceberam sem entender como o site
opera. Sua arquitetura e seu funcionamento são indissociáveis tanto do
modo como ele foi politizado quanto do impacto político que causou a
seguir.
O 4chan é um imageboard. Significa que, para adicionar alguma coisa ao
site, você precisa publicar uma imagem (ou vídeo), em torno da (ou do) qual
pode acrescentar comentários. As pessoas podem, então, responder à
postagem com um comentário ou outra imagem e o respectivo comentário.
Não existem outros modos de resposta. Não se pode, por exemplo, curtir
uma publicação como no Facebook, ou lhe dar um voto positivo como no
Reddit, ou retuitá-la como no Twitter. Se ninguém responder nada, sua
postagem desaparece rápido — muito rápido, na verdade — sob as
postagens posteriores que vão sendo feitas. Em 2011, um estudo acadêmico
descobriu que a maior parte dos threads permanecia na home page apenas 5
segundos, e no site, menos de 5 minutos.12 Quando as postagens
desaparecem, é para sempre. Vez ou outra, threads memoráveis são
capturados por outro site — a Encyclopedia Dramatica —, mas inexiste
qualquer arquivo oficial (decisão tomada na origem com o intuito de poupar
espaço no servidor). Sua publicação só volta a subir se alguém responder,
transportando-a de novo para o alto da página. As postagens são anônimas
— sem pseudônimos; são anônimas de fato. Há um espaço onde quem posta
consegue acrescentar um nome, mas poucos o fazem, preferindo que lhe seja
atribuída uma ID alfanumérica aleatória a cada thread específico, aliada ao
nome default conferido a cada usuário — “Anonymous”. Se a pessoa
participar de nova discussão, recebe nova ID. No começo do site havia uma
página chamada /b/ para publicações aleatórias. Representava, e continuou
sendo assim na maior parte da primeira década do 4chan, “o coração do
website”.13
O biólogo evolucionista Richard Dawkins cunhou o termo “meme” em
1976. Pelo que escreveu o autor, designava a informação que se propaga pela
cultura humana feito um vírus, “como genes que se espalham pelo acervo
genético”. Enquanto se disseminam, evoluem e passam por mutações. De
fato, o termo em si se desenvolveu de modo a ser aplicado a imagens — com
frequência acompanhadas por texto — que se difundem, ou viralizam, on-
line. A estrutura do 4chan era incrivelmente adequada para a produção
desses tipos de meme. Imagens publicadas no site evoluíam ou morriam. Os
memes eram julgados exclusivamente com base em seu conteúdo, não em
seu contexto (pois não havia nenhum) ou autor (pois esse dado era
desconhecido). Reproduziam-se os bem-sucedidos. “A piada”, disse Chris
Poole a um entrevistador em 2009, “está em que uma publicação no 4chan é
a republicação de uma republicação de uma republicação. [...] É a
sobrevivência do mais apto. Ideias transportadas para o dia seguinte são
dignas de ser repetidas.”14 Sem o constrangimento da própria persona da
vida real ou das normas da sociedade, os usuários podiam experimentar em
total liberdade. Como ninguém poderia ser dono de um meme, o caráter
intrínseco de sua produção e adaptação era colaborativo — a partir de uma
verdadeira tempestade de ideias. Essa estrutura, desde que associada a uma
comunidade grande o suficiente, estava fadada a criar conteúdo viral. E a
comunidade, iniciada com 20 amigos de Poole, chegou a 3,2 milhões de
usuários em 2008 e a 9 milhões em 2011. Grande número de usuários
significava muitas postagens e a evolução frenética de imagens. Em 2010, o
cientista da computação do MIT Michael Bernstein e seus colegas
descobriram que os usuários do 4chan adicionavam 400 mil postagens por
dia. Quatro em dez não recebiam nenhuma resposta, e a vida útil média de
um thread não atingia os 4 minutos. O site se convertera, nas palavras de
Poole, em uma “fábrica de memes”. De acordo com Whitney Phillips, que
estuda a “trolagem” on-line desde 2008, entre 2003 — ano da fundação do
4chan — e 2011, cada meme criado na internet (ou ao menos por ela
amplificado) brotou da página /b/ do 4chan ou de endereços a ele
relacionados.15 Fenômenos globais como imagens engraçadas de gatinhos e
o Rickrolling (o ato de publicar o link de um vídeo de Rick Astley cantando
“Never Gonna Give You Up”, ou “Nunca vou abrir mão de você”, em
português) surgiram no 4chan, bem como negócios lucrativos como
ICanHasCheezburger e 9GAG.16 Em certos sentidos, a estrutura do 4chan se
conformava perfeitamente ao modelo de inovação do Vale do Silício —
experimentar, testar, desenvolver. Ou, para roubar o etos condutor original
do Facebook, seja rápido e quebre coisas. De semelhante modo, esse método
resultou em memes confeccionados sob medida para a economia da atenção
das redes sociais — garantindo o envolvimento das pessoas e sua reação.
Ainda assim, fosse o 4chan uma simples fábrica de memes, sua influência
política teria sido limitada. Foi a cultura do site, aliada à produção de
memes, que lhe conferiu poder de destruição.
Narrativas de como tudo começou são vitais para o estabelecimento da
cultura. Sergey Brin e Larry Page, do Google, são engenheiros meio nerds,
mas brilhantes, e o Google é conhecido como a empresa de engenheiros
meio nerds e brilhantes. O Twitter foi montado em São Francisco por um
grupo de jovens de 20 e poucos anos, caóticos e insones, incapazes até
mesmo de decidir que propósito ele teria. Uma década depois de sua
invenção, isso ainda não tinha mudado muito. Com o 4chan não foi
diferente. Chris Poole — meio que um cruzamento entre Ferris Bueller e seu
amigo grandalhão Cameron Frye — tinha 15 anos em 2003, morava com os
pais e passava grande parte do tempo na internet. Poole era fã de animes
japoneses e publicava com regularidade em um site denominado Something
Awful (subfórum do Anime Death Tentacle Rape Whorehouse). Dando
vazão à curiosidade, deparou-se com um imageboard japonês popular — o
2chan — cujas velocidade e criatividade ultrapassavam tudo o que havia nos
Estados Unidos na época. Assim, como ele próprio conta, Poole pegou o
código do 2chan e usou para construir o 4chan. Fez algo que sabia ser de seu
agrado — e de outros como ele, presumiu. Poole não estava interessado em
se tornar líder da comunidade, mas em participar dela. Acontece que havia
muitos usuários como ele mundo afora, que não se ofendiam com coisas
como o Anime Death Tentacle Rape Whorehouses.
A cultura do 4chan é tóxica, e de propósito. A necessidade de chocar para
ser notado, a desinibição criada pelo anonimato e a predominância de
rapazes jovens e competitivos no site levaram rapidamente a uma cultura
consciente de ser ela própria ofensiva, dada a romper tabus e a transgredir.
Como qualquer um podia postar no site e toda postagem era anônima, o
único modo de criar uma comunidade distinta era por meio de atitude e
comportamento. O caráter ofensivo, voltado em especial contra mulheres,
judeus, a comunidade LGBT e os não brancos, transmitia uma mensagem
bem clara: se você se ofendia com misoginia, antissemitismo, homofobia ou
racismo, não era bem-vindo. Isso também explica o uso que faziam de
termos como “bicha” e correlatos para descrever pessoas (“bicha nova”,
“bicha velha”, “veado inglês”) e referências frequentes a estupro e assassinato.
Usuários argumentam que a linguagem usada tinha como objetivo causar
impressão e não devia ser levada a sério. Quem faz isso, alegam eles,
desconhece a “lei de Poe” da internet. Esta declara “que é difícil distinguir
extremismo de sátira ao extremismo em discussões on-line a menos que o
autor indique sua intenção com muita clareza”.17 Ou, em outras palavras,
desprovida de contexto, a linguagem poderia ser ou irônica ou séria. Tudo
aquilo era apenas “farra”, como diriam os usuários, conhecidos como
4channers.
“Farra” aqui é lulz (adaptado de lol), o termo usado com mais frequência
para descrever a cultura da comunidade 4chan (e seus genitores). Isso
também explica por que essa subcultura tóxica não permaneceu em um
canto isolado da web, mas se espalhou e acabou infectando quase toda a
esfera pública on-line. Os falantes de alemão e de inglês britânico entendem
melhor o sentido de lulz que os norte-americanos. Em alemão, a palavra
Schadenfreude é a melhor comparação — significa “sentir prazer na aflição
alheia”. Em inglês, é rir às custas de alguém. No 4chan, significava jogar
pedras em alguém de fora da comunidade, depois desfrutar coletivamente
da reação angustiada ou raivosa. Quanto mais nocivo o ataque e quanto
mais emocional a reação, maior o lulz. Por definição, trata-se de uma forma
destrutiva e niilista de prazer. De novo, no entanto: a estrutura do site ajuda
a explicá-la. Quando se verifica como eram poucos os laços comunitários
unindo os usuários do 4chan e quão dissociados eles estavam uns dos outros
na vida real, começa-se a entender por que a destruição coletiva se tornou
um aglutinador tão essencial. Já lhe aconteceu de conspirar com um grupo
de pessoas para fazerem algo que você sabe que vai contra as regras ou
rompe convenções sociais? A maioria de nós já fez isso, ao menos uma vez
na vida. Se também lhe aconteceu, você sabe que, realizada a façanha, você
se torna cúmplice de seus coconspiradores e partilha com eles um laço
comum, mesmo que vocês mal se conheçam.
Em busca do lulz, a comunidade 4chan desenvolveu uma série de
métodos e técnicas que tinham ao mesmo tempo grande efetividade e
enorme capacidade de expansão. Coordenavam incursões contra outras
comunidades, inundando um vídeo do YouTube com comentários ou
imagens, indo para cima de alguém no Twitter ou manipulando votos em
uma publicação on-line — o que ficou conhecido como “brigading” (ou
“formação de brigadas”, em português). Apoderavam-se de informações
muito pessoais do perfil de alguém com conta no Facebook ou no MySpace
e as enviavam para todos os contatos, ou apenas publicavam na web —
procedimento conhecido como “doxxing” (neologismo surgido a partir de
docs, em inglês). Em uma investida inicial bastante conhecida, um 4channer
encontrou no MySpace uma estudante de ensino médio que não tornara
privadas as suas fotos — incluindo algumas em que aparecia nua.18 Ele e
seus companheiros então publicaram o dossiê particular da moça —
pegaram todas as suas fotos nua, postaram em toda parte da conta que ela
mantinha no MySpace e as enviaram para todo o mundo que constava no
catálogo de endereços dela, incluindo seus professores e seus pais. Apenas
por farra, ou lulz. Técnicas como, por exemplo, a DDoS (Distributed Denial
of Service), foram publicadas nas páginas do 4chan para que os integrantes
do site pudessem se juntar aos ataques coletivos. A DDoS acontece quando
quantidades absurdas de solicitações são feitas a um servidor a ponto de
provocar o colapso temporário do sistema. Um usuário do 4chan sugeria um
site e, se outros usuários concordassem em que ele deveria ser atacado,
passavam todos para um canal IRC (basicamente uma janela de mensagens
instantâneas em grupo) e planejavam a investida. Também encontravam
grande prazer em manipular sistemas on-line. Em 2009, a comunidade
4chan manipulou os 21 primeiros lugares da enquete Time 100 Reader Poll,
com Chris Poole como vencedor. Em cada caso, descobriram que,
trabalhando como coletividade, eles eram capazes de provocar o caos para
em seguida recuar e cair na gargalhada. Como mais tarde disse um meme
anônimo: “Porque nenhum de nós é tão cruel quanto todos nós juntos”.
Até quase 2007, a maior parte dessas ofensivas acontecia em pequena
escala: indivíduos atacavam por impulso, adolescentes aprontavam com
pessoas ou organizações contra os quais os 4channers se posicionavam
(enviando pizzas ou táxis indesejados, páginas de fax inteiramente pretas ou
fazendo trotes). De vez em quando a comunidade unia esforços para
praticar uma boa ação (como mandar flores ou doações via crowdsourcing).
Duas coisas desviaram a comunidade e seus métodos para um estágio muito
maior: a mídia tradicional e a Igreja da Cientologia. Em 27 de julho de 2007,
a Fox News publicou uma reportagem em que os usuários anônimos do
4chan eram descritos como “hackers sob o efeito de esteroides” e uma
“máquina de ódio da internet”. Como Whitney Phillips demonstra em sua
cuidadosa análise do papel da mídia tradicional na construção da reputação
dos Anonymous, essa e outra cobertura posterior semelhante fizeram o
deleite do 4chan. Infâmia era justamente o que os usuários do site
desejavam. A cobertura televisiva promoveu o trabalho deles, levou novatos
para a comunidade e atribuiu aos usuários poderes mágicos para manipular
a rede. Quanto mais a mídia tradicional fazia sensacionalismo a respeito do
4chan e o declarava a fonte de todo mal, mais a comunidade ria das
afirmações empoladas e melodramáticas acerca deles, ao mesmo tempo em
que desfrutavam da crescente reputação.
A investida contra a Igreja da Cientologia começou como diversas outras
que a precederam. Em 15 de janeiro de 2008, às 7h37 da noite, um usuário
do 4chan publicou a imagem do logo da Igreja e lhe deu o título simples de
“Ataque contra a Cientologia?”. O catalisador foram as tentativas da Igreja de
censurar um vídeo constrangedor exibindo Tom Cruise, divulgado por um
membro da igreja e publicado no website Gawker. A despeito do ceticismo
entre alguns membros do 4chan, o ataque proposto rapidamente ganhou
apoio. Dada a escala da operação, a notícia ultrapassou os limites do site —
chegando a outros canais de imageboards. O coletivo adotou o nome antes
atribuído de maneira automática pelo 4chan a seus usuários: Anonymous.
O objetivo era reunir um pequeno exército de invasores aptos a lançar
ataques por DDoS aos websites da Cientologia. O mais impressionante do
processo — e isso é sintomático no caso de várias incursões do tipo — foi a
acessibilidade do armamento. A maior parte dos participantes, descobriu a
jornalista Parmy Olson, usava um serviço on-line disponível com livre
acesso para quem quisesse, projetado para ajudar a submeter websites a
testes de resistência. “Só alguns apoiadores do Anonymous eram hackers
habilidosos”, escreve Olson. “Muitos outros não passavam de jovens usuários
da internet com vontade de fazer algo mais que perder tempo no 4chan ou
no 7chan”.19 Transcorridos quinze dias, havia participantes em mais de 140
canais diferentes de 42 países. O “Project Chanology”, como ele foi
apelidado, respingou da internet para as ruas, com protestos na frente de
centros de Cientologia em mais de 100 cidades espalhadas pelo mundo. Isso
continuou de forma esporádica ao longo de 2008 até acabar aos poucos.
O Project Chanalogy mostrou que não era difícil instigar a ruptura digital
coordenada — sobretudo por meio de ato coletivo sincronizado. “Se
podemos destruir a Cientologia”, escreveu o autor da postagem original com
excesso de entusiasmo, “podemos destruir o que quisermos!”
No ano seguinte ao Project Chanalogy, Bill O’Reilly, da Fox News,
chamou o site de “extrema-esquerda”. Uma percepção equivocada da cultura
e das motivações do 4chan e outros tantos da mesma espécie. A comunidade
não se posicionava na extrema-esquerda; na verdade, não era política em
nenhum sentido tradicional. A maioria dos que acessavam o site estava à
procura de seus méritos como entretenimento obscuro, ou querendo
participar de brincadeiras mal-intencionadas. Contudo, a comunidade
acabou mesmo se tornando altamente politizada, primeiro entre 2008 e
2011, depois nos anos subsequentes a 2013. Essa politização aconteceu, em
parte, como consequência da estrutura do 4chan. A pesquisadora Jessica
Beyer, que analisou quatro comunidades on-line para seu livro Expect Us,
descobriu que outras comunidades — apesar da similaridade demográfica
de seus membros — não chegavam nem perto de se politizarem com a
facilidade do 4chan. Beyer atribui esse fato à anonimidade do 4chan, à
relativa falta de moderação (os “zeladores” do site via de regra eram
ignorados) e à ausência de espaços pequenos ou íntimos. Não há lugar ali
para o qual se possa ir a fim de estabelecer uma conversa particular, ou de
hospedar o bate-papo de um grupo restrito (sem precisar sair do site e
recorrer a um canal de bate-papos). O resultado era que, quando alguém
sugeria um ataque ou coisa parecida, se pessoas suficientes gostassem da
ideia, elas aderiam — adotando técnicas e funções específicas, dependendo
da atividade. “Se alvo e propósito não repercutissem entre pessoas
suficientes”, escreve Beyer, “nada acontecia.” A censura — como no caso do
vídeo de Tom Cruise — violou a primeira ética hacker, de que a informação
deveria ser livre, e, como consequência, repercutiu no mesmo instante entre
a comunidade. Um ato político, mas não no sentido tradicional de
“esquerda” contra “direita”.
A convicção de que “toda informação deve ser livre” também motivou a
Operation Payback [Operação Retaliação], que começou como uma
vingança pelos ataques contra o The Pirate Bay, um site de
compartilhamento de arquivos, em 2010, e se metamorfoseou em retaliação
em benefício do WikiLeaks. Este site, e em especial seu fundador, Julian
Assange, captaram o espírito dos hackers da Anonymous, embora Assange
não tenha surgido do 4chan. “Julian Assange exalta tudo o que é importante
para nós”, dizia uma postagem da Operation Payback. “Ele despreza e luta
contra a censura o tempo todo [e] provavelmente é o troll mais bem-
sucedido de todos os tempos.”20 Vingando-se das empresas financiadoras
que suspenderam as doações para o WikiLeaks, o coletivo lançou ataques de
DDoS contra a MasterCard, a Visa e o PayPal, derrubando os dois primeiros
websites e deixando lento o terceiro. Depois disso, o “ativismo hacker” teve
um aumento vertiginoso e se fragmentou. Várias publicações declararam
2011 “o ano do ataque digital”. Foi o ano em que o Anonymous se tornou
um fenômeno não só norte-americano, mas global. Ao grupo amorfo foi
atribuído crédito por ajudar tunisianos e egípcios a subverterem os
respectivos governos na Primavera Árabe, a se apoderarem do canal do
Playstation da Sony e a ajudarem a estabelecer as bases do movimento
Occupy. Partes da imprensa tradicional liberal começaram a escrever sobre o
assunto em termos afetuosos, como uma espécie de Robin Hood digital.
A The Atlantic foi capaz até de falar em “fascínio misterioso e inescrutável do
hacker do século XXI”.21 A antropóloga Gabriella Coleman, tendo passado
anos pesquisando o Anonymous, acabou admirando esses “trapaceiros” e
suas palhaçadas: “Essa admiração nasce do fato de que a criminalidade
revela os limites do monopólio do Estado sobre a violência e o estado de
direito”.22
Isso passava muito longe da reputação de niilista, apolítico e tóxico que o
4chan tinha em 2008. Em vez de promover incursões em função do lulz, as
“bichas moralistas de internet” — como os hackers ativistas do Anonymous
eram conhecidos no 4chan — agiam em nome de uma causa. Não mais por
diversão. Agora estavam comprometidos. No 4chan, os membros mais
antigos não andavam nada satisfeitos. Em parte como consequência do
sucesso do Anonymous, o site que o gerara se tornava cada vez mais popular
e atraia montes de novos usuários, aos quais chamavam de noobs (novatos)
em tom depreciativo. Em agosto de 2012, ele contava com mais de 22
milhões de visitantes únicos.23 O pessoal das antigas “vivia esbravejando
contra a inundação de ‘bichas novas’ e ‘veados veranistas’”, escreve Whitney
Phillips. “O câncer”, como se referiam aos recém-chegados, estava tomando
o controle. O conteúdo do 4chan — em termos de memes — tornara-se
ainda mais popular. O 9GAG, que reunia memes engraçados (e menos
ofensivos) do 4chan e de todo lado da web, afirmou ter 65 milhões de
visitantes mensais naquele verão.24
O voo do Anonymous partindo do 4chan até chegar ao Occupy e outras
causas radicais, combinado com o influxo de novatos e a normalização dos
memes, provocou uma guinada reacionária. Quem ficou para trás no 4chan
reagiu contra os “veados com causas”, os noobs e os fofos Advice Animals.
Eles se fecharam e passaram a proteger mais seu território, mostrando-se
mais agressivos com forasteiros e mais intransigentes. Esses usuários,
embora simpatizando com o primeiro princípio dos frequentadores iniciais
da internet — toda informação deve ser livre — estavam cada vez mais
motivados pelo segundo — somos soberanos. Como já era de se prever, dado
o caráter do 4chan e sua busca pelo prazer à custa dos outros, a soberania se
expressava como intolerância contra os “outros”. Os “outros” podiam ser
negros, ou gays, ou judeus, ou muçulmanos, ou mulheres. A linguagem
discriminatória era inerente ao 4chan desde seus dias iniciais, mas se
cristalizava em ideologia. Um estilo reacionário se fundiu em política
reacionária. Isso podia ser visto na ascensão da página /pol/ (abreviando
“politicamente incorreto”) do 4chan, ultrapassando a /b/ (das publicações
aleatórias).
À medida que o 4chan disparava, afastando-se ainda mais do centro,
alguns de seus membros inauguravam outros sites, em que copiavam
estrutura e abordagem do 4chan, mas eram ainda mais extremos. “Sempre
fui fã do 4chan, já que, no fundo, sou um troll”, escreveu mais tarde o
autoproclamado neonazista Andrew Anglin. “Na época [2011-12] a /new/
estava se tornando inteiramente nazista [a página /new/ precedeu a /pol/], e
assim me interessei por Hitler e percebi que, por meio desse tipo de sistema
nacionalista, a alienação podia ser substituída pela comunidade em um
sentido real, ao passo que o autoritarismo permitiria à tecnologia se
desenvolver em uma direção benéfica, em vez de destrutiva, para as
pessoas”.25 Em julho de 2013, Anglin lançou o Daily Stormer, um site de
extrema-direita batizado em homenagem a Der Stürmer, jornal de
propaganda nazista do período entre guerras. Como o 4chan, ele
possibilitava que os usuários se mantivessem anônimos ao postarem. Anglin
criou ainda a “Memetic Monday” para incentivar membros a desenvolverem
memes de propaganda de direita (aprendendo com o “Caturday” do 4chan,
que disseminava imagens engraçadas com gatinhos, as chamadas lolcats).
Também como o 4chan, Anglin organizou ataques contra outras
comunidades ou indivíduos, pedindo aos membros do seu site — os
“Stormers”, como os chamava — para empreenderem investidas
coordenadas. Em 2014 ele os mobilizou para perturbarem a vida da
parlamentar britânica Luciana Berger, depois que um supremacista branco
responsável por atacá-la foi sentenciado a quatro semanas de prisão. O site
chegou a oferecer um manual do usuário para agressores e um esconderijo
de imagens antissemíticas.26 Naquela semana, Berger recebeu mais de 400
mensagens abusivas pelo Twitter. Em outubro de 2014, Frederick Brennan,
outro usuário do 4chan, inaugurou o 8chan como “alternativa ao 4chan
simpática à liberdade de expressão”.27
No entanto, apesar da guinada reacionária, não havia nenhum sinal — até
então — de que os usuários participariam da política tradicional; e com
certeza não havia nenhum indício de que usariam o próprio peso, como
comunidade, para apoiar o candidato de um dos principais partidos na
eleição norte-americana de 2016. De fato, embora as atitudes políticas dos
membros do canal se tornassem mais pronunciadas na época, isso só serviu
para ilustrar quanto elas eram discrepantes. Alguns usuários se declararam
neonazistas, outros, etnonacionalistas, paleoconservadores,
neorreacionários, tecnolibertários, anarquistas nacionais ou
sobrevivencialistas. Todo um novo conjunto de membros — que pode ou
não ter se sobreposto ao primeiro — tem sido rotulado de “Manosphere”
(algo como Homenosfera, em português) e inclui ativistas dos direitos dos
homens, artistas da sedução, antifeministas, os “celibatários involuntários”
(ou incels, em inglês) e “homens cuidando da própria vida”.28 É bem possível
que alguns membros dessas comunidades tenham se envolvido
voluntariamente na campanha eleitoral norte-americana de 2016, mas é
pouco provável que o coletivo do canal promovesse mobilização do tamanho
e da extensão que aconteceu sem que ele fosse atraído a participar da
campanha.

Foi em 2014 que o website Breitbart, de Steve Bannon, começou a cortejar


essas comunidades a fim de incentivá-las a participar para valer da
campanha eleitoral que se aproximava. Em certo sentido, não surpreende o
fato de Bannon e o Breitbart considerarem essas comunidades e as
respectivas técnicas úteis para a causa deles. Eles estavam comprometidos —
como o fundador Andrew Breitbart definira — a destruir o establishment
político e midiático. Haveria melhor maneira de derrubar o establishment
que alistando as pessoas e as técnicas mais destrutivas da net? Os integrantes
do 4chan e sua descendência tinham se mostrado de enorme efetividade
para produzir imagens poderosas a serem disseminadas pelas redes sociais e
para coordenar ataques contra aqueles de quem não gostavam. Os dois
poderes podiam ser de extrema eficácia durante uma campanha eleitoral. No
entanto, em outro sentido, o recrutamento dessas comunidades e suas
técnicas para uma campanha democrática é surpreendente. Tratava-se de
grupos que se definiam pelo preconceito e pela agressão — alguns se
descreviam explicitamente como neonazistas da extrema-direita. Eles não
estavam interessados em diálogo construtivo ou processo democrático; eram
motivados por todo o caos, a ruptura e o sofrimento que conseguiam causar.
As únicas crenças ideológicas coerentes que uniam essas comunidades
niilistas — além do lulz — era que a informação deve ser livre e eles,
soberanos — on-line. Todavia, Breitbart e Bannon usariam essas mesmas
convicções para recrutá-los na campanha eleitoral norte-americana
seguinte.
A princípio, nos idos de 2007, Steve Bannon ficara curioso com o poder
dessas comunidades. Na época ele contou ao jornalista e escritor Joshua
Green que fora contratado para ajudar a administrar um negócio on-line
que vendia itens virtuais para jogadores multi-players — como os
participantes do jogo World of Warcraft — por dinheiro de verdade.29 Os
jogadores detestavam empresas como essas e faziam de tudo para expulsá-
las. A empresa em si fracassou, mas Green escreve que “Bannon estava
fascinado com o que descobrira tentando construir o negócio. [...] Um
submundo cuja existência ele desconhecia, povoado por milhões de jovens
intensos” cujo poder coletivo era capaz de destruir negócios. Antes de 2012,
o Breitbart teria penado para alistar esses usuários em sua causa. Só depois
que o Anonymous cresceu a ponto de ultrapassar os limites do 4chan (e
depois de alguns dos envolvidos serem processados pelo FBI), é que essa
subcultura se tornou mais reacionária, em parte como resposta a
normalizações de aspectos da “trolagem”, e em defesa da sua soberania
(entendendo-se “soberania” como qualquer coisa, desde a supremacia
branca, passando pela manipulação dos direitos dos homens). Mesmo assim,
estava longe de ser inevitável que se mobilizassem em apoio a qualquer
partido ou candidato em particular. Como uma página do 4chan —
“invasions” (/i/) — revelara de modo memorável aos usuários no ano de
2008: “Não somos seu exército pessoal, não nos voltaremos contra seu ou
sua ex, nem contra qualquer outra pessoa sem a motivação de uma boa farra
(lulz)”.
Antes de 2014, o Breitbart praticamente ignorava o 4chan e sites de
comunidades como o Reddit. Entretanto, no outono daquele ano, ele viu
uma oportunidade de atrair membros dessas comunidades para sua cruzada
política. A oportunidade surgiu com a #Gamergate. Considerando que em
seguida a #Gamergate se tornou, nas palavras do Buzzfeed, um “fenômeno
de internet difuso, multifacetado e de difícil concatenação”, seria necessária
uma tese de doutorado para descrevê-la por completo.30 Em essência,
diferentes usuários on-line do 4chan e da comunidade gamer se
convenceram de que o jornalismo dedicado aos videogames era antiético.
Usaram então essa certeza para justificar ataques on-line brutais e
persistentes — incluindo múltiplas ameaças de estupro e morte — contra
jornalistas mulheres e desenvolvedores de jogos.31 O episódio, embora
sórdido, poderia ter permanecido de certa forma isolado se o Breitbart — e
depois Bannon e a campanha de Trump — não procurassem canalizar a
raiva e o amargor dos gamers visando fins políticos. O Breitbart fez isso
apresentando a batalha como um front em uma guerra cultural muito maior
e enquadrando os usuários dos canais como guerreiros em favor da
liberdade, defendendo seu território contra forasteiros indesejados e os
ditames sufocantes do establishment. Isso potencializou, em outras palavras,
as duas únicas crenças políticas que uniam essas subculturas — a liberdade
de informação e a soberania. A esquerda, conforme caricaturada pelo
Breitbart, era contrária à liberdade (condição expressa pela noção de
“politicamente correto”) e à soberania (sendo pró-imigração, pró-minorias e
pró-igualdade de gênero).
Foi Milo Yiannopoulos, incendiário recém-recrutado pelo Breitbart, que
em setembro de 2014 invadiu as guerras on-line #Gamergate e procurou se
tornar o campeão do movimento gamer. Para isso, ele inverteu a narrativa.
Em vez de apontar para o assédio, o doxxing e a provocação por parte dos
gamers ativistas, pintou-os como vítimas de “um exército de programadores
e candidatos políticos aos quais classificou como sociopatas e feministas,
instigados por blogueiros norte-americanos especializados em tecnologia e
dolorosamente adeptos do politicamente correto”.32 Ele afirmou que
ameaças de morte enviadas on-line a mulheres “não são tudo isso que
andam dizendo”, que tuítes repletos de ódio e violentos contra mulheres
nada mais eram que “descorteses” e que candidatos estavam incitando “uma
histeria de ameaças de morte”. Os artigos de autoria de Yiannopoulos,
ofensivos e provocativos de propósito, politizavam conscientemente a
#Gamergate, retratando-a como sintomática de um fenômeno cultural
muito maior, em que um estabelecimento convencional corrupto procurava
destruir uma comunidade on-line livre, adepta da autogestão. Ele atiçou o
ódio de tal forma que as batalhas on-line se agravaram a ponto de até Chris
Poole, fundador do 4chan, resolver banir o debate #Gamergate do site.
O furor migrou então para o 8chan, onde as publicações saltaram de 100
para 4 mil por hora.33
No entanto, o apoio de Yiannopoulos às #Gamergaters em 2014 foi
apenas o prelúdio de um apelo ainda mais flagrante empreendido pelo
Breitbart aos sites 4chan, 8chan e Reddit. Em 27 de outubro de 2015, o
Breitbart inaugurou uma nova seção, ou coluna, chamada de Breitbart Tech.
Seu lançamento equivaleu a um manifesto para os membros dessas
comunidades. “Os leitores”, disse Yiannopoulos em um vídeo inaugural,
“estão cansados de serem chamados de trolls, assediadores, misóginos,
abusadores, tudo porque discordam das opiniões dos jornalistas. [...]
Permaneceremos ao lado dos usuários dos nossos canais que preferem
manter o anonimato, dos membros do Reddit contra os moderadores
autoritários. Defenderemos os gamers contra qualquer um estúpido o
suficiente para combatê-los.” A isso se seguiu um convite de Yiannopoulos
para quem estava no 4chan, no 8chan e no Reddit, bem como aos que
jogavam on-line, não só para se tornarem leitores do Breitbart, mas para
participarem de um movimento: “Juntem-se a mim [...] no enfrentamento às
grandes empresas de tecnologia, ao governo, aos especuladores, aos que
guerreiam por justiça social e a todos mais que quiserem se interpor entre
vocês, a liberdade de expressão e a verdade.” Não se tratava de uma proposta
para conseguir leitores regulares para o noticiário sobre tecnologia; tratava-
se de um convite para se juntarem às guerras culturais do lado do Breitbart.
Caso o convite de Yiannopoulos não fosse bem sinalizado, acompanhava o
artigo inaugural uma ilustração de Ben Garrison, cartunista cult do 4chan.
Além disso, em outro lance, com o intuito de mobilizar os usuários contra a
esquerda, um texto separado apresentou os progressistas como inimigos do
anonimato. “Centros da cultura do anonimato, como o reddit (sic), o 8chan
e o 4chan, são objeto de narrativas particularmente tenebrosas”, escreveram
Yiannopoulos e seu colega Allum Bokhari. Autores e críticos progressistas
alegavam eles, viam os autores de comentários anônimos como “malfeitores
perigosos carentes de punição”. Por extraordinário que pareça, comparavam
os “dissidentes anônimos de hoje” aos autores dos Artigos Federalistas34 —
incluindo Alexander Hamilton, James Madison e John Jay (que
originalmente escrevia sob pseudônimo).35
No dia em que a seção Breitbart Tech foi lançada, o artigo mais
importante do site principal era uma entrevista exclusiva com Donald
Trump. Tendo atraído os usuários dos canais de imageboard, os membros do
Reddit e os gamers para o site, o Breitbart quis deixar claro que o candidato à
presidência estava do lado deles. “Com a exceção da sra. Clinton e do
escândalo envolvendo seu e-mail”, começava a introdução da entrevista,
“poucos candidatos à presidência de ambos os partidos sentiram a
necessidade, durante a campanha, de discutir tecnologia em detalhes. Isso
muda hoje, com Donald Trump dando uma entrevista exclusiva para o
Breitbart Tech sobre hacking, guerra cibernética e inteligência artificial.” No
alto do texto aparecia um desenho de Trump como o Exterminador
encarnado por Schwarzenegger, um ciborgue completo, incluindo o boné
com os dizeres “Make America Great Again”. Desse ponto em diante, o
Breitbart se apresentou como amigo e aliado dos usuários dos canais 4 e
8chans, dos membros do Reddit e dos gamers. Alegou trabalhar com eles na
defesa do fundamentalismo da liberdade de expressão e do anonimato
contra quaisquer tentativas, da parte dos progressistas à esquerda, de
removê-los.
O modo de apresentar a questão como uma luta pela liberdade contra as
forças obscuras do controle não foi acidental. O Breitbart não estava
recrutando voluntários para uma campanha eleitoral tradicional, mas
convocando soldados de infantaria para uma guerra cultural que alcançaria
o ponto crítico em novembro de 2016. Para mobilizar essa coleção dispersa
de loucos por lulz insatisfeitos, o Breitbart precisava lhes conferir certa
coerência. Fez isso criando um inimigo comum. Também necessitava
convencê-los de que esse inimigo representava uma ameaça direta ao
mundo que chamavam de seu. Vocês correm perigo, advertiu Breitbart: se
não declararem guerra, serão atropelados por gente que não entende nada
de memes, pelos novatos, pelos guerreiros da justiça social e pelas feminazis
do politicamente correto que destruirão seu mundo e se apoderarão de suas
liberdades. A campanha eleitoral que se aproximava era apresentada não
como oportunidade para debater e discutir as políticas e as promessas de
partidos e candidatos, mas como uma guerra. O inimigo nessa guerra era “a
esquerda” e, como ela se apoderara da corrente de pensamento dominante,
significava que precisavam batalhar para subverter essa corrente. “A razão
pela qual lutei na guerra dos memes”, explicou um autor de postagens
frequentes na página /pol/ e no 8chan para Ben Schreckinger, da revista
Politico, “é que, como disse Andrew Breitbart, estamos em uma guerra literal
contra a esquerda. Existe uma Guerra Fria ideológica acontecendo agora
mesmo, e a vitória determinará o destino da civilização ocidental.”36
Apresentar a próxima campanha eleitoral dos Estados Unidos como uma
guerra racionalizava a adoção de métodos e táticas que, apesar da
efetividade brutal, eram anátemas para o processo democrático. Significava
incentivar um exército on-line a desenvolver memes políticos que criavam
narrativas hiperpartidaristas, distorcidas ou falsas, que distraíam e
obscureciam o debate substancioso, que buscavam desmoralizar o eleitorado
e enfraquecer o comparecimento às urnas, e que destroçavam candidatos e
críticos. Os usuários dos canais de imageboard, os membros do Reddit e os
gamers hackearam pesquisas de opinião, fizeram incursões contra
comunidades opostas, expuseram dados pessoais sigilosos de jornalistas,
assediaram críticos, manipularam mídias sociais e atormentaram a mídia
tradicional. Usaram ferramentas e plataformas digitais para fazer com a
política o que o Vale do Silício tinha feito com a economia e a sociedade
para causar ruptura. Em prol da campanha Breitbart/Trump, converteram a
eleição norte-americana em uma guerrilha ininterrupta na qual os
participantes presumiam a má-fé alheia e em que o respeito às normas
sociais desapareceu. Breitbart, Steve Bannon e Donald Trump atraíram essas
comunidades para a causa deles e atribuíram a esses métodos um papel
fundamental na campanha. Agindo assim, não apenas vandalizaram o
processo democrático como também — dado o sucesso eleitoral que
alcançaram — forneceram um modelo a ser imitado por outras campanhas.
Os envolvidos na insurreição de Trump estavam cientes de que alguns
desses métodos eram mais adequados para situações de conflito que para
campanhas democráticas. Jeff Giesea não atua como soldado nem como
publicitário. Passou a maior parte da vida profissional no Vale do Silício,
trabalhando com o bilionário da tecnologia Peter Thiel, da Thiel Capital
Management, investindo e vendendo start-ups da internet. Em 2014,
contudo, ele se convenceu de que a civilização ocidental estava sendo
ameaçada e decidiu fazer algo a respeito. Baseado em seu conhecimento das
redes sociais, Giesea tinha consciência do poder dos memes, sobretudo
como meios de propaganda de conflito. Em um artigo de 2015 para o
periódico Defence Strategic Communications, intitulado “É hora de nos
envolvermos com a guerra dos memes”, Giesea escreveu: “Para muitos de
nós do mundo das redes sociais, parece óbvio que táticas de comunicação
mais agressivas e os combates mais amplos por intermédio de “trolagem” e
memes são um modo necessário, de baixo custo e fácil de ajudar a destruir a
capacidade de atração e o estado de ânimo dos nossos inimigos comuns”. Os
obstáculos para a utilização de memes, argumentava Giesea, eram
conceituais e práticos. Conceitualmente, as pessoas necessitavam
compreender que a guerra de memes podia “ser vista como uma versão
‘nativa digital’ da guerra psicológica” e costumava vencer a batalha das
narrativas e das ideias. Na prática, ela carecia de investimento e software.
Embora Giesea estivesse falando sobre o uso de memes contra o Estado
Islâmico, mais tarde ajudaria a aplicar essa abordagem em uma versão bem
mais doméstica. Em 2016, trabalhando com o ativista Mike Cernovich, da
nova direita para os direitos dos homens, e outros apoiadores de Trump, ele
constituiu a MAGA3X, uma campanha de mobilização pró-Trump em cima
de memes e flash mobs. Entre outras ferramentas disponíveis para os
correligionários de Trump, a MAGA3X fornecia um “gerador de memes”
que simplificava o processo do 4chan para os menos habilidosos com as
técnicas requeridas, um “gerador de postagens desmotivacionais” para
desencorajar pessoas a apoiarem outros candidatos e um banco de imagens
emblemáticas às quais bastava acrescentar uma legenda.37
Possibilitar que os apoiadores de Trump participassem da guerra de
memes complementava a produção de memes políticos pela geração
mergulhada neles no 4chan e no 8chan. Conquanto seja extremamente
difícil medir a geração e disseminação desse produto específico pelos canais
citados, considerando o caráter efêmero das postagens e a maneira como
elas sofrem mutações e se propagam, há evidências de que a “fábrica” de
Chris Poole produziu uma quantidade enorme de memes políticos, e que
alguns deles foram os mais virais — e influentes — da campanha. Essas
evidências vêm de quatro fontes: das declarações dos canais em si; de um
estudo acadêmico que coletou mais de 8 milhões de publicações no 4chan
em meados de 2016; do número de pessoas que viram e compartilharam
memes comparado com outros conteúdos políticos; e dos relatórios e
análises de organizações noticiosas.
A vitória tem mil pais, disse John F. Kennedy, e a vitória de Trump na
eleição não foi diferente. “Na verdade, elegemos um meme para presidente”,
um usuário do 4chan postou na noite da eleição.38 Outro escreveu: “Não
acho que seja possível a uma imagem expressar o nível de presunção que
estou sentindo neste momento” (ilustrando as palavras com uma imagem do
sapo Pepe). Em pouco tempo, muitos usuários do 4chan se referiam à
“Primeira Grande Guerra dos Memes”, adaptando imagens da Primeira
Guerra Mundial. Membros do 4chan estavam longe de representarem casos
isolados na reivindicação dos créditos pela vitória de Trump na eleição. Isso
ignora a superabundância de outros fatores que levaram a essa vitória, e
esconde o fato de que a influência das subculturas dos chan era mais
negativa que positiva. Todavia, é verdade que eles geraram uma quantidade
enorme de imagens políticas originais durante a campanha. O estudo
acadêmico “Keks, Cucks and God Emperor Trump”, tendo coletado
postagens no 4chan de junho a agosto de 2016, encontrou mais de 1 milhão
de imagens únicas publicadas na página /pol/. A maior parte delas,
descobriu o estudo, “ou era conteúdo original, ou obtido de páginas /pol/
exteriores”. Alguns dos memes mais abjetos também foram rastreados até o
4chan ou o 8chan, incluindo Pepe, o sapo, You Can’t Stump the Trump e
uma imagem de Hillary Clinton com a estrela de Davi.39
Uma das razões que explica a dificuldade para seguir o rastro desses e de
outros memes é a maneira como eles foram disseminados via redes sociais.
Se os memes tivessem permanecido nas profundezas de sua subcultura,
pouca influência teriam sobre o eleitorado como um todo. De igual modo,
era improvável que o eleitorado tuitasse ou compartilhasse memes
diretamente do 4chan. Portanto, os memes tinham de passar por um
“processo de lavagem” via grandes plataformas de redes sociais e sites de
notícias. Isso foi feito por intermédio de uma rede de apoiadores de Trump
nas mídias sociais. Era possível confiar que eles compartilhariam os memes
com seu vasto universo de apoiadores — pessoas como Mike Cernovich,
Anthime Gionet (também conhecido como Baked Alaska), Jack Posobiec e
Paul Joseph Watson — bem como por meio de contas fake do Twitter e do
Facebook.40 Os memes também eram postados em páginas públicas do
Facebook como GodEmperorTrump e em alguns sites de notícias como o
Breitbart na mesma plataforma. Um meme em que se lia “Lembra daquela
vez em que os republicanos brigaram, bateram em eleitores democratas
inocentes, destruíram propriedades e incendiaram bandeiras americanas?
Nem eu” foi compartilhado mais de 500 mil vezes a partir da página do
Breitbart no Facebook. Essas imagens eram tão populares que, no caso do
Breitbart, ultrapassaram muito os links para artigos. Um estudo do Tow
Center da Universidade Columbia descobriu que, enquanto “as imagens
totalizavam apenas 5% do total de postagens do Breitbart em 2016 [...], elas
responderam por metade das postagens mais compartilhadas da página”.41
Como acontecia com os gatinhos engraçados e as imagens do Advice
Animals antes deles, as imagens de que tratamos agora — todas elas uma
discreta peça de propaganda — “sequestravam a atenção das pessoas” com
sucesso, na expressão da estudiosa das mídias sociais Danah Boyd, e
provocavam uma reação. Só que dessa vez, no lugar de provocarem um
sorriso ou uma risadinha, levavam à ridicularização de um candidato
político ou à difamação da oposição.
Outro caminho dos chans até as correntes dominantes foi pelo Reddit, a
pretensa “página inicial da internet”. O Reddit era o oitavo site mais popular
dos Estados Unidos em novembro de 2016 e, para 7 a cada 10 de seus
usuários, uma fonte regular de notícias.42 Em 2016 os usuários dos canais
deram um jeito de manipulá-lo. Fizeram-no por meio de um dos fóruns, ou
subreddits, do site, chamado the_donald. Esse subreddit foi criado pouco
depois que Donald Trump anunciou sua candidatura, em junho de 2015.
Nos primeiros seis meses, foi um espaço bastante desanimado em que
algumas poucas centenas de usuários podiam compartilhar notícias pró-
Trump. Então, em dezembro de 2015, foi descoberto pelos usuários da
página /pol/ do 4chan. “A página /pol/ nos encontrou e tem dado uma
tremenda energia e alguns conteúdos fantásticos”, contou o moderador do
the_donald ao jornalista Jason Koebler, que passou meses monitorando o
subreddit.43 Esses usuários, somados aos que levaram consigo, fizeram
crescer o número de assinantes do subreddit para 40 mil até o fim de
fevereiro de 2016. Era uma comunidade pequena, em se tratando de Reddit.
Muitos subreddits têm milhões de assinantes. No entanto, por uma
combinação de atividade frenética e coordenação de votos para postagem no
fórum, os membros do the_donald conseguiram impulsionar suas histórias
para a página inicial do Reddit com regularidade (quatro vezes só em
fevereiro). Para pôr em perspectiva o que estou dizendo, considerando que
os usuários do Reddit tendem a começar da página inicial do site, chegam ao
número de cerca de 5 milhões de pessoas por dia. Para efeito de
comparação, no mesmo período, o website do New York Times recebia
menos de 3 milhões de visitantes isolados por dia. O subreddit the_donald, e
por extensão os canais, tinha tomado de assalto a “página inicial da internet”.
Em junho, o Reddit alterou o modo como o site funcionava para “impedir
que uma comunidade qualquer domine a composição da página”.44
Contudo, a essa altura, o subreddit tinha mais de 170 mil assinantes, e, em
julho de 2016, o próprio Donald Trump se associou ao site para uma sessão
de perguntas e respostas.
O subreddit the_donald serviu a muitos propósitos úteis. Era um canal
para a “lavagem” de memes, onde eles podiam ser pegos e compartilhados
por usuários regulares com mais facilidade, sem as conotações sórdidas de
compartilhar algo do 4chan ou do 8chan. Podia ser uma fonte de
propaganda e refutação para a campanha de Trump. Os membros da equipe
de Trump disseram à Politico que monitoravam o Reddit diariamente à
procura de imagens, vídeos e tendências, repassando os mais poderosos para
o diretor de redes sociais ou outros integrantes do time.45 Como acontecia
com os próprios 4chan e 8chan, podia ser um recurso utilizado como espaço
para coordenar a ação coletiva, fosse pelo voto a favor de postagens no
Reddit, fosse examinando vazamentos de e-mails, fosse manipulando
pesquisas de opinião on-line. Foi aqui que os usuários assinantes do Reddit,
também chamados de Redditors, caíram em cima das 20 mil páginas de e-
mails de John Podesta em outubro de 2016, separando-as com todo cuidado
em 22 partes, procurando com desespero algo incriminatório e publicando o
que quer que encontrassem.46 Isso incluiu as declarações falsas de que a
campanha de Hillary Clinton coordenava uma rede de pedofilia a partir de
uma pizzaria, de que o Comitê Democrático Nacional planejara
antecipadamente as revelações de assédio sexual de Trump e de que a eleição
seria fraudada.47 Também foi ali que, em conluio com o 4chan,
coordenaram a distorção das pesquisas de opinião on-line sobre os
primeiros debates presidenciais Clinton—Trump.48 Links para as pesquisas
on-line foram divulgados no Reddit e no 4chan, e os usuários incitavam as
pessoas a “votarem”. Eles então inundaram as pesquisas com votos manuais
e automatizados, de modo que Donald Trump “venceu” o debate de acordo
com Time, a CNBC, Fortune, The Hill e outros. Em contrapartida, a pesquisa
por telefone da CNN, envolvendo 521 espectadores, descobriu que Trump
perdeu por ampla margem. Uma pesquisa da empresa Public Policy Polling
com 1002 espectadores do debate concluiu que ele perdeu por 51% a 40%.49
Ainda assim, isso não impediu que Trump tuitasse uma imagem de 10
enquetes on-line — todas em que saiu “vencedor” — e escrevesse: “Uma
enorme honra. As pesquisas envolvendo o debate final estão conosco, e o
MOVIMENTO é vitorioso!”.50
O movimento on-line lançou mão de outras técnicas que haviam se
popularizado desde os primeiros dias do 4chan, como ataques a outras
comunidades on-line e assédio e exposição de dados pessoais sigilosos
daqueles com os quais se indispunham. Na análise da atividade do 4chan
durante o verão de 2016, Gabriel Emile Hine e pesquisadores colegas seus
encontraram evidências a sugerir que “os usuários da página /pol/ estão
perpetrando ataques na tentativa de incomodar a comunidade de usuários
do YouTube [grifo do autor]”. Descobriram isso olhando como os picos de
atividade nos comentários do YouTube estavam em sintonia com os threads
postados em /pol/. Anteriormente, as investidas tinham sido organizadas via
canais de IRC — e ainda podiam ser, mas em 2016 estavam acessíveis
também alternativas convencionais, como o Periscope.51 Na noite de 17 de
outubro, os nomes e endereços de 50 jornalistas supostamente anti-Trump
foram publicados no 8chan, junto do comentário de que o autor anônimo da
postagem não “perdoaria se mandassem fast-food, livros sagrados, catálogos
de pornô gay, tijolos, encanadores de emergência, chaveiros, acompanhantes
transgêneros ou cocô de urso congelado um atrás do outro para a casa de
ninguém”.52 Os jornalistas se viram convertidos em alvo dos apoiadores de
Trump ao longo de toda a campanha. Uma pesquisa realizada pela Liga
Antidifamação descobriu que pelo menos 800 jornalistas receberam tuítes
antissemitas entre agosto de 2015 e julho de 2016.53
O objetivo dessas atividades era chamar a atenção — positiva ou negativa,
não importava. Chamar a atenção, sobretudo quando levava à cobertura da
mídia tradicional, significava controlar a agenda da campanha. E a mídia
tradicional invariavelmente mordia a isca. As principais empresas de
notícias publicavam com regularidade relatos indignados sobre memes
ofensivos, o assédio a jornalistas ou as tentativas de manipulação das redes
sociais. Em certo sentido, era inevitável, considerando que o
comportamento se adequava ao critério de que, desde a lista de 12 pontos de
Galton e Ruge publicada em 1965, isso tem sido considerado de interesse
jornalístico (por fatores como imprevisibilidade, raridade e caráter
inusitado).54 O interesse jornalístico ganhava reforço significativo quando a
campanha de Trump, ou o próprio Donald Trump, amplificava essa
condição. Trump tuitou e distorceu pesquisas relacionadas a debates, a
imagem da estrela de Davi de Hillary, Pepe, o sapo e o vídeo You Can’t
Stump the Trump. Todavia, como no caso da cobertura do 4chan feita pela
Fox News em 2007, a indignação da mídia, mesmo sem querer, atendeu com
exatidão os planos do coletivo de canais, que soltava gritos de alegria toda
vez que as empresas noticiosas tradicionais promoviam suas proezas. O coup
de grâce, do ponto de vista deles, foi quando a própria Hillary Clinton
apresentou um discurso em Nevada, em agosto de 2016, dizendo que Trump
“transita em teorias de conspiração obscuras, extraídas de páginas de
tabloides de supermercados e dos confins da internet” e quando a campanha
dela publicou “uma explicação” para Pepe, o sapo.55
Não existem e jamais existirão evidências conclusivas de que o coletivo de
canais influenciou o resultado da eleição norte-americana de 8 de novembro
de 2016. Podemos, no entanto, indicar alguns de seus efeitos sobre a
campanha e a maneira como ela foi divulgada. O coletivo produziu parte da
propaganda política mais memorável e viral de 2015-16, sobretudo na forma
de memes que se disseminaram muito além das fronteiras do 4chan e do
Reddit. Muitos desses memes pretendiam demonizar e ridicularizar pessoas,
provocar indignação ou raiva visceral, ou apenas chamar a atenção da mídia.
Alguns eram manifestamente falsos, calculadamente perversos ou
explicitamente preconceituosos. Outros eram mais ambíguos — projetados
de propósito para provocar uma reação explosiva naqueles que os
interpretavam como racistas, antissemíticos ou misóginos. Outros ainda
propagandeavam teorias da conspiração alucinantes, invariáveis na
atribuição de culpa ao establishment.
Ao longo da campanha, esse coletivo discrepante e anônimo usou
métodos e técnicas aperfeiçoados ao longo da década anterior. Poucos
exigiam grande inteligência ou habilidade. Dependiam de reações
coordenadas de usuários múltiplos, ocorridas muito depressa e
disseminadas via múltiplos canais de mídia sociais tradicionais — do Reddit
ao Twitter, passando pelo Facebook e pelo YouTube. No estudo que
empreenderam sobre manipulação da mídia e desinformação on-line, Alice
Marwick e Rebecca Lewis se referem a eles como “brigadas organizadas” e
“grupos ágeis e interligados”.56 Como vimos acontecer com o Reddit, um
número de certa forma pequeno de usuários consegue causar um efeito
distorcido significativo.
A comunidade dos canais chan, embora dispersa, conseguiu dar uma
falsa impressão de sentimento e apoio populares em favor dos candidatos,
em especial quando se tratava de Trump — tanto nos debates quanto por
meio da manipulação de hashtags (como a #HillarysHealth), likes e
pesquisas (veja, por exemplo, como um chamado às armas durante o debate
do partido republicano de fevereiro de 2016 colocou a frase “Is Ted Cruz the
Zodiac killer” [Ted Cruz é o assassino conhecido como Zodíaco”] entre as
mais consultadas no Google.57 Talvez mais importante ainda, esses usuários
geraram caos, confusão e medo e derrubaram os muros do discurso político
aceitável. No entanto, apenas poucos anos antes da eleição, não havia
nenhum indício de que esses usuários causariam tamanho impacto. Claro,
os canais se tornaram mais reacionários depois de 2011, mas ainda não
havia então nenhum sinal de que se envolveriam tanto com a política
tradicional. Na verdade, muitos membros ficaram com raiva pelo fato de o
Anonymous passar a ser tão mainstream e apegado a suas “causas”. Foram
ficando cada vez mais politizados ao longo dos anos 2013 e 2014, em
especial durante a #Gamergate, mas essa politização na época foi canalizada
para o Breitbart contra os progressistas e “a esquerda”. Sem as ferramentas
digitais disponibilizadas para eles e sem as técnicas de coordenação coletiva
que tinham desenvolvido, permaneceriam como uma subcultura
minoritária dispersa. Com as ferramentas e as técnicas, combinadas ao
mecanismo de distribuição das redes sociais, foram capazes de criar o caos
no processo democrático. E em seguida exportaram os métodos além-mar.
Naufragaram as tentativas iniciais de empregar técnicas similares fora do
país. Alguns dos que ajudaram a semear o caos e a discórdia — em especial
na extrema-direita — durante a campanha de Trump quiseram fazer a
mesma coisa na França na primavera seguinte. Eles fracassaram, sobretudo
pela ausência de conscientização cultural. Usuários do 4chan não franceses,
por exemplo, inventaram o falso boato de que o candidato Emmanuel
Macron, do partido En Marche!, estava tendo um caso com a filha da
esposa, sem levar em conta que os franceses sempre adotaram uma postura
blasé em relação à vida pessoal de seus políticos. Criaram uma versão de
Marine Le Pen, da Frente Nacional, como Pepe, o sapo, sem se darem conta
de que chamar alguém de nacionalidade francesa de sapo é há tempos um
insulto antifrancês. Depois, nos dias que antecederam a votação em si,
quando os usuários da extrema-direta dos Estados Unidos e de todo o
mundo tentaram promover o vazamento de e-mails de Macron, não
computaram no cálculo o hábito de evitar notícias políticas nas 48 horas
anteriores a uma eleição. Acima de tudo, americanos procurando promover
o sentimento nacionalista francês (com muita coisa escrita em inglês) nunca
tiveram a probabilidade de alcançar sucesso.
A extrema-direta teve mais sucesso na Alemanha, onde suas atividades
davam a impressão de serem conduzidas pelos próprios alemães — por meio
do Reconquista Germania, por exemplo. Como descrito no início deste
capítulo, esse grupo usou canais Discord, vídeos do YouTube e contas falsas
em mídias sociais para planejar e executar uma ação coordenada com o
intuito de promover o AfD. No entanto, cave abaixo da superfície, e a
semelhança de técnicas, linguagem e imagens disponíveis para os usuários
de canais não germânicos se torna rapidamente evidente. Isso inclui a
utilização de memes e sua disseminação (considerando também números e
estilos específicos), as incursões coordenadas e a criação e sincronização de
contas do Twitter. Um vídeo postado na página Kraut /pol/ do 4chan e
descrito como de visualização obrigatória exibia trechos de Rules for
Radicals [Regras para radicais] de Saul Alinsky — as mesmas regras que
Andrew Breitbart exortava os insurgentes nos Estados Unidos a adotarem.
Quando o Buzzfeed enviou uma mensagem para o controlador de uma
conta no Twitter de um canal AfD, o ativista anônimo respondeu com uma
linha de argumentação que poderia ter saído diretamente do plantel de
Bannon/Breitbart: “Você precisa ter em mente que a Alemanha não é livre”,
escreveu o controlador. “A mídia mentirosa está tentando perpetuar suas
ideias de marxismo cultural e promover o genocídio dos brancos”.58 Um
extenso trabalho da organização de campanha Hope not Hate [Esperança,
não ódio], que contou inclusive com a infiltração durante um ano da direita
alternativa, encontrou vasta coordenação e aprendizado compartilhado
entre países europeus e os Estados Unidos. No mês posterior ao das eleições
na Alemanha, em outubro de 2017, os austríacos ficaram chocados ao
descobrirem uma campanha difamatória induzida por memes no Facebook
contra o líder do Partido Popular Austríaco, Sebastian Kurz. As imagens,
que se supunha terem sido postadas por membros da equipe de campanha
da oposição social-democrata, visavam ridicularizar Kurz e associá-lo a
teorias conspiratórias. As calúnias fracassaram, e Kurz passou a ocupar em
seguida o posto de chanceler.
Também as atividades on-line respingavam no mundo real. Martin
Sellner, líder do Movimento Identitário na Áustria, posicionado como “nova
direita”, criou um aplicativo para “visualizar, organizar e unir a maioria
silenciosa” insatisfeita com a questão da imigração. O Patriot Peer deixava
seus membros verem quem estava por perto e também usava o aplicativo,
permitindo que participassem de eventos e manifestações para competir
com outros usuários, ganhar pontos e se tornarem um “top Patriot”.
O objetivo do aplicativo, disse Sellner em um vídeo de apresentação no
YouTube, era “romper a barreira de proteção do politicamente correto e pôr
fim ao isolamento da maioria silenciosa”. Seu sonho era “um oceano de
pontos verdes [representando os Patriots] a cobrir o ocidente”. “Nunca mais
haverá uma eleição”, o infame hacker neonazista Andrew “weev”
Auernheimer escreveu depois da eleição norte-americana, “em que a
‘trolagem’, a ação de hackers e a política da extrema-direita não
desempenhem papel algum”.
A direita alternativa adotou e disseminou com entusiasmo esses métodos,
mas seus integrantes não foram os únicos a empregá-los. Os ultradireitistas
tomaram emprestado e adaptaram técnicas antes utilizadas pelo coletivo
hacker Anonymous e associadas ao radicalismo de esquerda em 2010-11.
Extremistas religiosos também usaram essas técnicas e outras semelhantes.
De igual modo, no final de 2016, o conflito político on-line tinha se
propagado muito além da extrema-direita, permeando as plataformas de
mídia social. Membros do parlamento britânico disseram que a eleição de
2017 no Reino Unido foi a pior que tinham vivenciado em termos de
maldade. “Tivemos abusos como ninguém nunca vira antes”, declarou o
parlamentar Ian Lavery ao Committee on Standards in Public Life. “O
assunto é tórrido; o abuso acontece 24 horas por dia, sete dias da semana.
Não é coisa da qual você consiga simplesmente se afastar. Quando vai para
casa, está lá com você e seus filhos. Um abuso constante.”59 Isso incluía
“questões tangíveis de ameaças de morte, obscenidade, difamação e calúnia,
crime contra o patrimônio, homofobia, sexismo, antissemitismo e ameaça de
abuso sexual”.60 Eleições democráticas e eventos políticos mundo afora
estavam se tornando sinônimos de batalhas campais entre grupos
partidários, ataques cibernéticos e guerras de mensagens. A campanha
política on-line, em outras palavras, estava parecendo menos uma
deliberação democrática e mais uma guerra de informações.
Essa transgressão e essa destruição deliberada das normas democráticas
na esfera digital têm sido impulsionadas por aqueles que prezam a liberdade
e a soberania on-line mais que tudo. Por essa razão, seria possível chamá-los
de livre-extremistas. A liberdade, no entanto, mesmo nas sociedades mais
libertárias, nunca é absoluta. Por exemplo, em parte alguma é considerado
legítimo prejudicar outras pessoas na busca da liberdade — exceto no
contexto da guerra. Presume-se que, por isso, muitos livre-extremistas
justificam o próprio comportamento alegando estarem envolvidos em uma
guerra virtual contra quem tem valores diferentes e procura lhes tolher a
liberdade. Todavia, a consequência é um espaço on-line irrestrito, agressivo,
violento e hiperpartidarista, no qual os processos democráticos de debate,
respeito, civilidade e conciliação são vítimas dos danos colaterais.
Quando os hackers e os prospectores originais partiram para explorar o
ciberespaço e estabelecer comunidades, não lhes ocorreu reproduzir as
estruturas e proteções da democracia do mundo real. O ciberespaço não
tinha fronteiras como os países, então por que recriar sistemas políticos
nacionais? Ele era infinito, razão pela qual deveria haver espaço mais que
suficiente para todo o mundo. De igual modo, por que fixar quaisquer
parâmetros de discurso? Por que não deixar a verdade e a falsidade lutarem
em um espaço livre e aberto, como o poeta John Milton escreveu de modo
tão memorável em Areopagitica, em 1644? Desde que a informação fosse
partilhada livremente e os “gigantes enfadonhos de carne e aço” deixassem
em paz os povos das fronteiras do ciberespaço, esse novo mundo, pensavam
eles, cuidaria de si próprio.

1 HAMMERSTEIN, Konstantin von; HÖFNER, Roman; ROSENBACH, Marcel. Right-wing activists take

aim at German election. Der Spiegel, 13 September 2017.


2 Ataque relâmpago. [N. do R.]
3 Fórum de discussão baseado na postagem geralmente anônima de imagens. [N. do T.]
4 SCHMEHL, Karsten; MBOUNDZA, Saba; LYTVYNENKO, Jane; BRODERICK, Ryan. Trolls are trying to

hijack the German election by copying Trump supporters. Buzzfeed, 4 September 2017.
5 DAVEY, Jacob; EBNER, Julia. The Fringe Insurgency: Connectivity, Convergence and

Mainstreaming of the Extreme Right. Institute for Strategic Dialogue, 2017.


6 BARBROOK, Richard; CAMERON, Andy. The Californian ideology. Mute, 1 September 1995.

7 Ou “Os arruaceiros felizes”: assim ficou conhecido o grupo de amigos e colegas do escritor Ken

Kesey, autor de “Estranho no Ninho”, que na década de 1960 resolveu residir em um ônibus escolar
de 1939 pintado com cores psicodélicas e abastecido de LSD e outras drogas. [N. do T.]
8 LEVY, Steven. Os heróis da revolução: como Steve Jobs, Steve Wozniak, Bill Gates, Mark Zuckerberg

e outros mudaram para sempre as nossas vidas. São Paulo: Évora, 2012.
9 TURNER, Fred. From Counterculture to Cyberculture: Stewart Brand, the Whole Earth Network,

and the Rise of Digital Utopianism. Chicago: University of Chicago Press, 2006.
10 BARLOW, John Perry. A Declaration of the Independence of Cyberspace. Electronic Frontier

Foundation, 8 February 1996. Disponível em: www.eff.org/cyberspace-independence. Acesso em:


28 set. 2021, 19:12:21.
11 BARLOW, John Perry. Is cyberspace still anti-sovereign? California Magazine, April 2006.

12 BERNSTEIN, Michael; MONROY-HERNÁNDEZ, Andrés; HARRY, Drew; ANDRÉ, Paul; PANOVICH,

Katrina; VARGAS, Greg. 4chan and /b/: An Analysis of Anonymity and Ephemerality in a Large
Online Community. Proceedings of the Fifth International AAAI Conference on Weblogs and
Social Media. Menlo Park, CA: AAAI Press, 2011.
13 POOLE, Christopher “moot”. The case for anonymity online. TED Talk, February 2010.

14 POOLE, Chris. Interview. Fimoculous, 18 February 2009. Disponível em:


http://fimoculous.com/archive/post-5738.cfm. Acesso em: 29 set. 2021, 14:57:43.
15 PHILLIPS, Whitney. This Is Why We Can’t Have Nice Things: Mapping the Relationship Between

Online Trolling and Mainstream Culture. Cambridge, MA: MIT Press, 2015.
16 ICanHasCheezburger é um site muito popular de imagens e vídeos; já o 9GAG é humorístico e faz

uso abundante de vídeos, imagens e memes. [N. do T.]


17 MILNER, Ryan M. The World Made Meme: Public Conversations and Participatory Media.

Cambridge, MA: MIT Press, 2016.


18 BEYER, Jessica L. Expect Us: Online Communities and Political Mobilization. New York: Oxford

University Press, 2014.


19 OLSON, Parmy. Nós somos Anonymous: Por dentro do mundo dos hackers. São Paulo: Novo

Século, 2014.
20 COLEMAN, Gabriella. Hacker, Hoaxer, Whistleblower, Spy: The Many Faces of Anonymous. New

York: Verso, 2014. O termo troll designa a pessoa cujo propósito é atiçar os ânimos dos membros de
uma comunidade digital. Faz isso por meio de mensagens controversas ou irrelevantes. Consegue,
então, interromper discussões pertinentes e impor o conflito geral. [N. do T.]
21 ESTES, Adam Clark. “The hacks that mattered in the year of the hack”. The Atlantic, 28 December

2011.
22 COLEMAN, Gabriella. Hacker, Hoaxer, Whistleblower, Spy: The Many Faces of Anonymous. New

York: Verso, 2014.


23 CONSTANTINE, Josh. The future of memes: 4chan hits 22m monthlies, unveils new API.

TechCrunch, 6 September 2012. Disponível em: https://techcrunch.com/2012/09/05/4chan-api/.


Acesso em: 1 out. 2021, 16:50:29.
24 CONSTINE, Josh. TechCrunch’s picks: the 10 best startups from Y Combinator’s S12 Demo Day.

TechCrunch, 22 August 2012. Disponível em: https://techcrunch.com/2012/08/21/best-of-yc-demo-


day/. Acesso em: 1 out. 2021, 16:55:57.
25 ANGLIN, Andrew. Southern Poverty Law Center. Disponível em:
https://www.splcenter.org/fighiting-hate/extremist-files/individual/andrew-anglin. Acesso em: 4 out.
2021, 09:15:19.
26 DYSCH, Marcus. Neo-Nazi gave out internet abuse tips in campaign against MP. The JC, 30 October

2014.
27 CHIEL, Ethan. Meet the mand keeping 8chan, the world’s most vile website, alive. Splinter, 19 Abril

2016.
28 The international alternative right. Hope Not Hate, 2017. Disponível em:
https://alternativeright.hopenothate.com. Redirecionamento para:
https://hopenothate.org.uk/blog/right-response/. Acesso em: 4 out. 2021, 10:26:26.
29 GREEN, Joshua. Devil’s Bargain: Steve Bannon, Donald Trump and the Storming of the White

House. London: Scribe UK, 2017.


30 BERNSTEIN, Joseph. The disturbing misogynist history of Gamergate’s goodwill ambassadors.

Buzzfeed, 30 October 2014.


31 Para um embasamento cultural da #Gamergate e uma boa explanação sobre o assunto, v. NAGLE,

Angela. Kill All Normies: Online Culture Wars from 4chan and Tumblr to Trmp and the Alt-
Right. Winchester: Zero, 2017.
32 YIANNOPOULOS, Milo. Feminist bullies tearing the video game industry apart. Breitbart, 1

September 2014.
33 CHIEL. Meet the man keeping 8chan, the world’s most vile website, alive.

34 Compostos por 85 ensaios, o documento ratificou a constituição norte-americana ao registrar o

resultado de reuniões que ocorreram na Filadélfia em 1787, tratando de posicionamentos teóricos


sobre questões e deveres coletivos, individuais, sociais, econômicos e culturais. [N. do R.]
35 BOKHARI, Allum; YIANNOPOULOS, Milo. Why online anonymity frightens progressives. Breitbart,

27 October 2015.
36 SCHRECKINGER, Ben. World War Meme. Politico Magazine, March/April 2017.

37 GIESEA, Jeff. It’s Time to Embrace Memetic Warfare. Defence Strategic Communications, 1:1, p.

67-75, com a complementação de entrevista via Skype.


38 OHLHEISER, Abby. We actually elected a meme as president: how 4chan celebrated Trump’s victory.

Washington Post, 9 November 2016.


39 HINE, Gabriel Emile; ONAOLAPO, Jeremiah; CRISTOFARO, Emiliano de; KOURTELLIS, Nicolas;

LEONTIADIS, Ilias; SAMARAS, Riginos; STRINGHINI, Gianluca; BLACKBURN, Jeremy. Kek, Cucks, and
God Emperor Trump: A Measurement Study of 4chan’s Politically Incorrect Forum and Its Effects
on the Web. Proceedings of the Eleventh International AAAI Conference on Weblogs and Social
Media, Menlo Park, CA: AAAI Press, 2016.
40 HARKINSON, Josh. Meet Silicon Valley’s secretive alt-right followers. Mother Jones, 10 March 2017.
41 RENNER, Nausicaa. Memes trump articles on Breitbart’s Facebook page. Columbia Journalism

Review, 30 January 2017.


42 BARTHEL, Michael; STOCKING, Galen; HOLCOMB, Jesse; MITCHELL, Amy. Seven-in-ten Reddit

users get news on the site. Pew Research Center, 25 February 2016. Disponível em:
http://www.journalism.org/2016/02/25/seven-in-ten-reddit-users-get-news-on-the-site/. Acesso em:
5 out. 2021, 15:04:02.
43 KOEBLER, Jason. How r/the_donald became a melting pot of frustration and hate. Motherboard, 12

July 2016.
44 Let’s all have a Town Hall about r/all. Reddit, 16 June 2016. Disponível em:
https://www.reddit.com/r/announcements/comments/4oedco/lets_all_have_a_town_hall_about_ral
l/. Acesso em: 5 out. 2021, 16:00:03.
45 SCHRECKINGER, Ben. World War Meme. Politico Magazine, March/April 2017.

46 V. “Podesta emails MAGAthread”. Reddit, 17 October 2016. Disponível em:


https://www.reddit.com/r/The_Donald/comments/57vefh/podesta_emails_magathread/. Acesso em:
16 maio 2018. Atualmente a página exibe o alerta de que r/the_donald foi banido do Reddit. [N. do
T.]
47 V. “DNC planning to fake Trump ‘assault’ scandal all the way back in May”. Reddit, 14 October

2016. Disponível em:


https://www.reddit.com/r/The_Donald/comments/57iv9k/dnc_planning_to_fake_trump_assault_sc
andal_all/. Acesso em: 16 maio 2018. E “New James O’Keefe video: rigging the election”. Reddit, 17
October 2016. Disponível em:
https://www.reddit.com/r/The_Donald/comments/57y384/new_james_okeefe_video_rigging_the_e
lection_video/. Acesso em: 16 maio 2018. Atualmente a página exibe o alerta de que r/the_donald
foi banido do Reddit. [N. do T.]
48 COUTS, Andrew; POWELL, Austin. 4chan and Reddit bombarded debate polls to declare Trump the

winner. Daily Dot, 27 September 2016.


49 CNN/ORC International poll, 26 September 2016. Disponível em:
http://i2.cdn.turner.com/cnn/2016/images/09/27/poll.pdf. Acesso em: 5 out. 2021, 17:49:43. Voters
nationally say Clinton won debate 51/40. Public Policy Polling, 26 September 2016. Disponível em:
https://www.publicpolicypolling.com/wp-
content/uploads/2017/09/PPP_Release_PostDebatePoll_92616.pdf. Acesso em: 5 out. 2021,
17:52:41.
50 TRUMP, Donald J. @realDonaldTrump, Twitter, 27 September, 2016. Disponível em:

https://twitter/com/realDonaldTrump/status/780796008854876160. Acesso em: 16 maio 2018.


Página não localizada em 5 out. 2021. [N. do T.]
51 MARANTZ, Andrew. Trolls for Trump. New Yorker, 31 October 2016.

52 KAVANAUGH, Shane Dixon. Trump fans dox «anti-Trump» journalists. vocativ, 18 October 2016.
53 Anti-Semitic Targeting of Journalists during the 2016 Presidential Campaign. Anti-Defamation

League, 19 October, 2016. Disponível em:


https://www.adl.org/sites/default/files/documents/assets/pdf/press-center/CR_4862_Journalism-
Task-Force_v2.pdf. Acesso em: 6 out. 2021, 11:45:55.
54 GALTUNG, Johan; RUGE, Mari Holmboe. The Structure of Foreign News: The Presentation of the

Congo, Cuba and Cyprus Crises in four Norwegian Newspapers. Journal of Peace Research, 2:1, p.
64-90, 1965.
55 Transcript: Hillary Clinton’s full remarks in Reno, Nevada. Politico, 26 August 2016; KOZLOWSKA,

Hannah. Hillary Clinton’s website now has an explainer about a frog that recently became a Nazi.
Quartz, 13 September 2016.
56 MARWICK, Alice; LEWIS, Rebecca. Media Manipulation and Disinformation On-line. Data &

Society Research Institute, 15 May 2017. Disponível em:


https://datasociety.net/pubs/oh/DataAndSociety_MediaManipulationAndDisinformationOnline.pd
f. Acesso em: 6 out. 2021, 15:58:56.
57 SANDERS, Sam; FIROZI, Paulina. #MemeOfTheWeek: Ted Cruz and the Zodiac Killer. NPR, 26

February 2016.
58 SCHMEHL, Karsten; MBOUNDZA, Saba; LYTVYNENKO, Jane; BRODERICK, Ryan. Trolls are trying to

hijack the German election by copying Trump supporters. Buzzfeed, 4 September 2017.
59 LAVERY, Ian. MP, audiência pública. Review of Intimidation in Public Life, 14 September 2017.

60 MCLOUGHLIN, sir Patrick, MP, presidente do Partido Conservador, apresentação da Review of

Intimidation in Public Life, 8 September 2017.


Plutocratas: o modelo Mercer

A luta pela sobrevivência do homem como ser responsável na Era das Comunicações não
há de ser vencida na origem da comunicação, mas aonde ela chega.
Umberto Eco, Travels in Hyperreality [Viagens pela hiper-realidade]

Nos últimos dias de agosto de 2017, um superiate de 203 pés singrou o lago
Union, em Seattle, onde permaneceu atracado por mais de uma semana. Sua
presença desencadeou protestos esporádicos, inclusive de um barco
utilizado em protestos — o Endeavour — que ostentava um “frango Donald
Trump” inflável. Nada indicava quem seria o proprietário do superiate.
A embarcação batizada de Sea Owl só fora concluída em 2013, fabricada nos
Países Baixos de acordo com especificações detalhadas e precisas. Apesar do
tamanho considerável, fora preparada para atender sobretudo o proprietário
e sua família, abrigando ainda uma tripulação composta por 18 integrantes.
Contava com diversas amenidades comuns em superiates: banheira de
hidromassagem, elevador, cinema, piano Steinway de meia cauda. Mas havia
também vários toques pessoais: afrescos nas paredes, um quarto de dormir
com tema de pirata, um lustre do artista Dale Chihuly e, pintado no teto da
biblioteca, o Philosophiae Naturalis Principia Mathematica, de Newton.1
O sistema de segurança a bordo “talvez seja o mais elaborado já instalado
em um iate”, atestou o construtor da embarcação à revista Yachting.2
Compreendia dispositivos para reconhecimento de impressões digitais e
pelo menos dois cômodos seguros, fechados por portas de aço reforçado.
O proprietário, Robert Mercer, deixou claro para o estaleiro que a
privacidade e a segurança do iate eram cruciais.
Descrever o superiate de Mercer não se resume a um exercício de
assombro diante de alguém rico e famoso. A empreitada nos revela que
Robert Mercer se qualifica como um plutocrata; mostra como a privacidade
e a segurança são importantes para ele; e coloca em mais absoluta evidência
como sabemos pouco sobre o dono desse barco. Descobre-se mais acerca do
Sea Owl com algumas pesquisas na internet do que sobre Robert Mercer em
meses de investigação. Ele não dá entrevistas; não faz declarações públicas;
não faz discursos (a exceção ocorreu em 2014, quando aceitou um prêmio
por serviços prestados à computação — citado em quase todos os artigos a
seu respeito). Nunca exerceu um cargo público nem concorreu a eleição
alguma. Não escreveu sobre sua visão política, e inexiste registro de como
vota. Em outras palavras, há pouquíssimos dados a seu respeito (e a ironia
desse fato se tornará bem visível mais adiante).3 Todavia, por intermédio de
seu patrocínio, Mercer consegue distorcer a esfera pública, subverter a
responsabilidade e desestabilizar a legitimidade democrática. Além disso
tudo, concebeu um modelo que outros plutocratas podem copiar.
A trajetória profissional de Mercer tem sido dominada por dois ramos de
atividade: da programação de computadores e do investimento financeiro.
Nascido em San José, Califórnia, no verão de 1946, Robert Mercer ficou
fascinado pelos computadores desde o instante em que soube da existência
deles. Adolescente, antes mesmo de ter acesso a uma máquina, escrevia
programas de computador com papel e caneta. Depois de se diplomar em
física e matemática, prosseguiu e fez doutorado em ciência da computação,
disciplina relativamente nova em 1972. Junto a outros pioneiros na ciência
da computação, ingressou na IBM, onde permaneceu durante os vinte e um
anos seguintes. Seu trabalho na empresa, sobretudo no que diz respeito à
linguística computacional, tem sido descrito como “revolucionário”. Em
1993, Mercer foi recrutado pela Renaissance Technologies, um fundo de
hedge que evita as abordagens habituais ao investimento financeiro. Em vez
de se servir da inteligência e da experiência humana para decidir onde
investir, a RenTech (como é conhecido no setor) utiliza a inteligência de
máquina e grandes volumes de dados. Coleta quantidades enormes de
informação do mundo inteiro e desenvolve programas de computador
capazes de garimpar padrões inesperados e potenciais oportunidades de
investimento. Raros são os seus empregados com formação no sistema
bancário ou financeiro; eles costumam ser físicos, biólogos e engenheiros.
A abordagem não conformista tem funcionado surpreendentemente bem.
A RenTech ganhou fortunas identificando e potencializando oportunidades
com base na análise de dados que outras empresas deixaram passar. Mercer
se tornou executivo-chefe da RenTech em 2010, renunciando em 2017.
O pouco que sabemos sobre as políticas dele vem do que amigos e
colegas dizem, da empresa política que ele mantém e de seus investimentos
na área.4 Pelo que amigos e colegas têm dito, Mercer é visto como uma
espécie de anarquista libertário raivoso. Patrick Caddell, que trabalhou para
Mercer, relatou à escritora Jane Mayer, da New Yorker, que ele “é um
libertário — despreza o establishment republicano. [...] Acha que os líderes
são patifes corruptos e arruinaram o país”. “Bob e Rebekah Mercer [a filha
do meio] nutrem profunda e duradoura inimizade contra o establishment
político”, escreveram Kenneth Vogel e Ben Schreckinger em artigo de 2016
para o Politico. “Querem explodir tudo e começar do zero”, contou-lhes um
colaborador anônimo de Mercer. A maioria parece concordar que eles são,
como revela o título da investigação convincente e fascinante empreendida
por Vicky Ward em 2017, “bilionários de arrasar”. As conferências ou
cerimônias políticas em que Mercer tem sido avistado (mas sem dizer nada
em caráter oficial) abrangem desde as organizadas pelos irmãos Koch e sua
rede de patrocinadores de direita até aqueles que negam as mudanças
climáticas e os que defendem a volta ao padrão ouro (uma propensão
particular de Mercer, que parece não ver justificativa para um banco
central).
Em suma, Robert Mercer e a filha politicamente ativa Rebekah aparentam
ser antigoverno, antiestablishment, antimídia tradicional, anti-impostos e
negacionistas das mudanças climáticas. Se esses pontos de vista fossem
apenas pessoais e a influência dos Mercers no sistema político se igualasse à
de todo o mundo, boa sorte para eles. Ou se eles tivessem corrido atrás de
seus objetivos pelas vias democráticas — como se candidatando, ou
participando do ativismo de eleitores comuns, não representariam perigo
algum para o processo democrático. Contudo, Robert Mercer não escolheu
agir como cidadão comum, não se candidatou nem agitou as eleições a
partir da base. Em vez disso, optou por usar seu conhecimento fenomenal de
dados em enormes volumes e sua riqueza considerável para fazer tudo o que
podia e dinamitar o sistema político.
Mercer está longe de ser o primeiro bilionário a tentar desvirtuar a
política democrática para fins próprios. Charles e David Koch, libertários e
conservadores, donos da maior fatia da segunda maior empresa privada dos
Estados Unidos, a Koch Industries, passaram décadas usando sua tremenda
fortuna para conduzir políticos para a direita.5 Assim, o que Mercer tem de
diferente? E por que as democracias — não os Estados Unidos apenas —
deveriam se preocupar com o que ele conseguiu realizar em 2016?
A diferença está na maneira pela qual Mercer procurou alcançar seus
objetivos. Em vez de apoiar um partido ou candidato, ou mesmo bancar a
própria candidatura, ele surgiu para usar sua fortuna sobretudo com o
intuito de sabotar o sistema político existente. De novo, por si só isso não
constitui uma novidade completa. No entanto, Mercer fez seus
investimentos políticos no momento exato em que as plataformas digitais e
de dados inauguravam novas oportunidades na política. Essas
oportunidades lhe possibilitaram navegar dentro dos limites da lei em torno
das proteções legais, regulatórias e embasadas em princípios que as
democracias construíram para se defenderem contra a influência indevida
de indivíduos poderosos não eleitos. Inexiste qualquer motivo que impeça
outros plutocratas, adotando abordagem similar, de agir de igual modo.
Mercer não é nenhum gênio da política — já atingiu sua cota de
investimento em candidatos excêntricos e projetos bizarros (custeando a
coleta de grandes quantidades de urina com o intuito de prolongar a vida,
por exemplo). Mas suas habilidades particulares e seu timing são tamanhos
que ele foi capaz de transformar o ambiente político norte-americano. Ao
fazê-lo, expôs debilidades fundamentais da democracia digital. A maneira
como ele abordou seus objetivos políticos tinha grande paralelo com a
maneira como abordava seus investimentos financeiros. Em vez de investir
em um indivíduo ou problema único, Mercer aplicava seus recursos em uma
série de projetos diferentes, os quais, apesar de separados, eram
complementares. Como qualquer bom administrador de fundos de hedge,
em outras palavras, ele elaborou um portfólio de investimentos. Contudo,
diferentemente do portfólio financeiro, Mercer visava um retorno político.
Duas linhas de investimentos feitos por Mercer tiveram grande influência
no processo político de 2016; a primeira foi em mídia digital, e a segunda, na
campanha eleitoral profissional orientada por dados. Na mídia, ele fez o
investimento mais importante em 2011. Foi na visão de um indivíduo cuja
personalidade — em termos de extravagância e extroversão — não poderia
ser mais distinta da de Mercer. Eles partilhavam apenas do ódio contra a
política existente e as instituições de mídia e a ânsia por destruí-las.

Andrew Breitbart não nasceu um animal político. Após a confortável


infância de classe média alta em Brentwood, Califórnia, um lar não político,
ele era, como escreveu mais tarde, “um liberal por default”. Só depois dos 20
anos se converteu, por força de um programa de rádio, em um conservador
reacionário e libertário. Desse momento em diante, como muitos
convertidos tardios, Breitbart foi evangélico. Para ele, tudo era uma questão
política. Gênero era uma questão política, geração era uma questão política,
etnia era uma questão política. Acima de tudo, no entanto, ele via a cultura
como questão política. E não apenas isso, mas ela fora dominada pelo que
ele chamava de “Complexo Midiático Democrata”. Para Breitbart, “a arte, o
humor, a música, o teatro, a televisão, os filmes, a dança” tinham se tornado,
no fim do século XX, instrumentos de propaganda esquerdista. Ele explica
como aconteceu essa tomada de poder em sua autobiografia muito agradável
de ler, mas um pouco indigesta, lançada em 2010 com o título Righteous
Indignation [Justa indignação]. Nela, Breitbart consegue de algum modo
traçar uma linha de Rousseau a Marx, de Gramsci a Lukács e até a escola de
Frankfurt, uma coleção de intelectuais e acadêmicos formados na Alemanha
entre as duas guerras mundiais. Ele parecia acreditar que a escola de
Frankfurt era a ruína dos Estados Unidos. Tendo fugido da Alemanha de
Hitler, esses acadêmicos — Max Horkheimer, Theodor Adorno e Herbert
Marcuse entre eles — se mudaram para a costa oeste e, argumenta Breitbart,
imediatamente puseram em prática um plano insidioso para pouco a pouco
destruir os Estados Unidos e o american way of life, preparando o terreno
para o comunismo. Travestiram seu plano de “Teoria Crítica” e
excursionaram pelo país nas décadas de 1950 e 1960, convertendo as massas
de jovens estudantes impressionáveis que então impulsionaram a revolução
contracultural dos anos 1960 e na sequência povoaram os níveis superiores
da mídia, da academia e do governo. Uma teoria e tanto, baseada em muitos
saltos históricos e cognitivos. Uma vez construída, no entanto, conferiu a
Andrew Breitbart — e àqueles que lhe seguiram as pegadas — um contexto
no qual justificar os próprios atos subsequentes e cosmovisão. As dimensões
histórica e teórica dessa hipótese — por tênue e egocentrada que ela seja —
permitiram a Breitbart e sua turma descartarem o sistema inteiro de mídia
contemporânea como corrupto.
Do mesmo modo que enxergava a política em tudo, Breitbart também a
via como uma batalha campal. Para ele, política e guerra eram quase
sinônimos. E era uma guerra que a direita estava perdendo, na sua opinião –
mas não porque ela professasse convicções incorretas. Nada disso. A direita
estava perdendo porque não adotara as táticas maquiavélicas da esquerda e
por limitar suas atividades à esfera política. Para vencer, precisava levar a
luta para além da política e da cultura, e aprender a usar as técnicas da
esquerda para se defender. Ganhar essa guerra no campo de batalha da
mídia tradicional seria impossível, uma vez que essa mídia, na cosmovisão
de Breitbart, fora confiscada por marxistas culturais esquerdistas (mesmo
que isso pareça muito estranho aos leitores, digamos, do Wall Street Journal).
Portanto, a direita precisava achar um novo território no qual travar sua
guerra. Por isso Breitbart considerava que a internet — e as plataformas
tecnológicas predominantes — apresentava uma oportunidade tão grande.
Essa nova terra ainda necessitava ser conquistada. O objetivo da direita,
acreditava ele, deveria ser ocupar o novo território e, no processo, produzir a
destruição da mídia que nos fora legada. “Temos o poder de desenredar o
Complexo”, escreveu Breitbart, “e destruir a esquerda institucional. Não será
fácil. Exigirá tempo e esforço, e haverá falsas arrancadas e obstáculos na
estrada, mas o faremos porque temos de fazê-lo.” As ideias de Breitbart
podem parecer excêntricas e marginais, mas, graças a sua audácia e ao
dinheiro de Robert Mercer, logo ocuparam o mainstream.
No verão de 2009, a estudante de jornalismo de 22 anos Hannah Giles e o
ativista conservador de 25 anos James O’Keefe visitaram diversos escritórios
norte-americanos da ACORN, organização sem fins lucrativos que defendia
pessoas de baixa renda em causas como moradia de baixo custo e registro de
eleitores. Giles se passou por prostituta e O’Keefe, por seu gigolô.6 Juntos,
perguntaram à equipe da ACORN como podiam manipular o sistema em
benefício próprio — usando a casa deles como prostíbulo, inclusive. Sem
que os atendentes soubessem, o casal portava câmaras escondidas. A farsa
toda era uma cilada, concebida para gravar os empregados da ACORN
oferecendo conselhos ilegais ou antiéticos. Embora não conseguissem
registrar nada ilegal, os dois filmaram a equipe dando orientações
evidentemente comprometedoras. Como parte de uma estratégia de mídia
planejada com detalhes, Andrew Breitbart passou os vídeos editados para a
Fox News depois de uma semana organizando essa entrega. Ao mesmo
tempo, publicou transcrições e áudios em um dos websites que levavam seu
nome, todos objeto de intensa promoção nas mídias sociais.7 Para
impulsionar a narrativa para além do ecossistema de mídia direitista e
mantê-la nos novos círculos, Breitbart e a Fox declararam que a mídia
tradicional estava ignorando o assunto e atacando os jovens que tinham
arquitetado a cilada (ambos os argumentos se baseavam em interpretações
muito subjetivas das evidências).
Dias depois de os vídeos serem publicados, a Câmara dos Deputados
aprovou o decreto de suspensão da concessão de fundos para a ACORN. “A
ACORN violou sérias leis federais”, afirmou o deputado republicano Eric
Cantor, “e a Câmara votou hoje para assegurar que os dólares do
contribuinte não mais sejam utilizados no custeio dessa organização
corrupta”.8 A ACORN perdeu os contratos de financiamento federais bem
como muitos contratos particulares e, em novembro de 2010, abriu falência.
Estabelecida em 1970, com escritórios em 75 cidades e 400 mil famílias
associadas, ela foi destruída de fato em setembro de 2009, ao longo de
quinze dias. Na sequência, a investigação independente de um escritório de
advogados, embora criticasse a governança e a prestação de contas da
instituição, concluiu que “não existe nenhuma prova de ato ilegal ou de
outra natureza praticado por empregado da ACORN”.9
Não apenas o “furo de reportagem” envolvendo a ACORN trouxe
exposição nacional aos sites de Breitbart como ratificou as convicções e o
modus operandi de seu fundador. A “esquerda institucional” podia ser
derrubada pelo uso de uma mistura vigorosa de revelações de fatos
vexaminosos, entretenimento e indignação. A receita: encontrar o ponto
fraco de uma instituição à qual você se opõe — no caso, os jovens
empregados da ACORN. Reúna provas que sustentem uma perspectiva
facciosa particular — como o mau uso dos dólares dos contribuintes.
Disponha tudo isso de modo a provocar indignação no público — por
exemplo, o fato de os nossos protagonistas (Giles e O’Keefe) serem brancos e
a maior parte dos vilões (a equipe da ACORN) ser composta por mulheres
negras, estimulando uma reação furiosa da esquerda e a contrarreação da
direita. Embrulhe a história de modo que ela se conforme com a gramática
das investigações jornalísticas — câmaras escondidas, gravação granulada e
tremida, e narração do protagonista. Publique a gravação editada como uma
grande revelação em meio a enorme alarde, em seguida promova seu
trabalho o máximo que puder. Enfim, para que a história prejudique tanto a
instituição em si quanto a velha mídia, declare que qualquer grande veículo
de imprensa que deixar de cobrir a história — ou não lhe dar destaque — de
propósito a ignora por razões facciosas. O método era não apenas eficaz
como também barato. James O’Keefe disse que a operação ACORN inteira
custou menos de 2 mil dólares, “o preço do aluguel de um carro mais a
gasolina e comida”.10 Andrew Breitbart concebera de que maneira, no novo
ambiente das mídias sociais, notícias podiam ser transformadas em arma
política com poder para destruir instituições da sociedade civil e corroer a
confiança na mídia tradicional ao mesmo tempo.
Claro, Breitbart estava longe de ser o primeiro a usar ciladas como forma
de produzir notícias. A imprensa sensacionalista britânica as fabricava havia
anos. Em 1991, o News of the World de Rupert Murdoch contratou Mazher
Mahmood, que se vestiu de falso xeique para enredar celebridades,
treinadores de futebol americano e políticos inadvertidos em suas
armadilhas, dizendo coisas incriminatórias diante das câmaras. Ele
trabalhou para o News International e seu sucessor durante mais de duas
décadas antes de ser preso por conspirar com o intuito de perverter o curso
regular da justiça. Nem o método Murdoch nem o método Breitbart são
jornalismo conforme se ensina nas faculdades. Esse tipo de jornalismo não
tem a ver com a abordagem das histórias de mente aberta, ou com se almejar
o princípio da objetividade. Tem a ver com algo que se parece mais com um
promotor preparando uma tese de acusação — à caça de evidências que
deem sustentação a seu discurso e, não menos importante, que destrua seu
adversário. É um jornalismo que começa e termina com um objetivo
político.
A diferença de Breitbart e seu furo jornalístico envolvendo a ACORN foi
saber escolher o momento oportuno. No fim de 2009, as mídias sociais
haviam se tornado tendência dominante. O Twitter, lançado em 2006, tinha
quase 8 milhões de usuários no final de 2009 — incluindo a maior parte dos
jornalistas das mídias tradicionais. O Facebook contava com mais de 300
milhões de perfis ativos, tendo partido de 50 milhões dois anos antes.
O YouTube, adquirido pelo Google menos de três anos antes, fornecia mais
de 12 bilhões de vídeos todo mês nos Estados Unidos.11 Ou seja, quando
Andrew Breitbart publicou as transcrições, os áudios, os vídeos e as matérias
na mídia, em setembro de 2009, dispunha das plataformas pelas quais
impulsioná-los.
Ajudou o fato de Breitbart saber o que fazer. Não era um ingênuo no que
dizia respeito à internet. Ele aprimorara suas técnicas ao longo de mais de
uma década com dois dos inovadores mais talentosos da área de notícias de
internet. Trabalhara desde 1995 com Matt Drudge, fundador e editor do
Drudge Report, com quem aprendeu a explorar a rede em busca de pepitas
de ouro na forma de caça-cliques. Em 2005, colaborou com Arianna
Huffington para lançar o Huffington Post, onde aprendeu a usar a análise
crítica de comentários e de mídia para alimentar a indignação e influenciar
o ciclo de notícias. Talvez mais ainda que Drudge ou Huffington, Breitbart
acreditava ser uma criatura da matriz das comunicações modernas, nunca
mais à vontade do que ao manter múltiplas conversas em múltiplas e
diferentes telas. “Sinto-me completo neste ambiente”, disse ele à jornalista
Rebecca Mead, da New Yorker, em uma entrevista reveladora de 2010.
“Necessito disso para me tornar aquilo em que precisava me tornar. Com a
internet, tenho comunicação sem fim com um elevado número de pessoas.
Sempre travando uma nova guerra, uma nova batalha.”12
Breitbart foi perspicaz o suficiente para ver que muitos dos métodos
eficazes na velha mídia não funcionavam tão bem no magnífico mundo
novo das plataformas tecnológicas. Os jornais da época das notícias
impressas conseguiam um furo e faziam tudo o que tinham ao alcance para
mantê-lo sob controle: em alguns casos, chegavam a esconder pessoas em
quartos de hotel durante dias até o momento da publicação. Então, de uma
hora para outra, um único veículo divulgava o artigo como “Exclusivo!”. Até
a linguagem utilizada pela mídia impressa — exclusivo — era sintomática do
desejo que tinham de manter uma narrativa vinculada a determinado
veículo. Breitbart percebeu que, na era digital, para dar impacto a uma
história, ele precisava fazer o contrário. Em vez de guardá-la para si, era
preciso disseminá-la o máximo que pudesse. Era necessário achar pessoas
que pudessem publicar perspectivas diversas em seus blogues. E era
fundamental impulsionar os vídeos por meio de influenciadores das redes
sociais. “A chave é a ubiquidade”, escreveu ele. “Ubiquidade tem a ver com
aumentar o pedaço de pizza para todo o mundo, difundir as histórias, os
canais de distribuição, os recursos ao redor de modo que o movimento
[conservador] inteiro possa se beneficiar, porque a parte que nos cabe da
praça pública só faz crescer toda vez que divulgamos algo de enorme
impacto.”
Breitbart escreveu seu manual sobre como destruir o “Complexo
Midiático Democrata” durante um voo de costa a costa em 2010. Pouco
depois o livro foi disponibilizado on-line. Menos de um mês antes de seu
lançamento oficial, em abril de 2011, o autor falou em uma conferência
conservadora no Ritz-Carlton em Palm Beach, Flórida. Foi onde conheceu o
bilionário que transformaria seu manifesto e seus métodos de animosidade
pessoal em cruzada nacional.

As doações de caráter político de Robert Mercer, até então, tinham sido


esporádicas e ecléticas. Os favorecidos partilhavam convicções políticas,
embora carecessem de qualquer abordagem consistente à mudança. Quando
Mercer se encontrou com Andrew Breitbart na Flórida, em 2011, conheceu
alguém que não só compartilhava seu rancor contra a “esquerda
institucional” como tinha um método pelo qual sabotá-la. Ele vira o barulho
causado por Breitbart com a utilização inteligente das plataformas digitais e
pouquíssima subvenção (criou seu site Big Government com 25 mil dólares
emprestados do pai). O bilionário deu-lhe então a oportunidade de levar sua
empreitada bem mais longe, investindo 400 vezes o montante inicial — 10
milhões de dólares. Na mesma hora, Breitbart se pôs a trabalhar,
preparando-se para relançar sua família de websites. Contudo, foi incapaz de
ver os frutos de sua obra, pois faleceu em março de 2012, dias antes da data
marcada para o lançamento do mais novo site. O novo Breitbart.com seguiu
em frente mesmo assim, com o amigo e colega do fundador, Steve Bannon
— determinante para assegurar o investimento de Mercer — no leme.
Bannon conhecera Breitbart em 2005, após exibir sua cinebiografia de
Ronald Reagan. Breitbart teria se aproximado de Bannon depois do filme,
abraçando-o e dizendo: “Irmão! Precisamos transformar a cultura”.13 Os dois
ficaram amigos e, em fevereiro de 2010, Breitbart mudou-se para o escritório
de Bannon em Westwood, Los Angeles.
Com os 10 milhões recebidos de Mercer, Bannon e um grupo seleto de
partidários de Breitbart se esforçaram furiosamente para transformar o
Breitbart.com de um blogue de fundo de quintal no “Huffington Post da
direita”.14 No verão de 2012, eles já estavam publicando centenas de histórias
em diferentes seções — ou “colunas”: Big Government, Big Hollywood, Big
Journalism e Big Peace.15 E tinham elevado a audiência a quase 3 milhões de
usuários mensais por volta do fim de setembro. Mesmo assim, poucos viram
o site atingir os objetivos de Andrew Breitbart, ou durar muito tempo após a
morte dele. “Comentei na época em que Andrew morreu”, relatou um
integrante da equipe de Breitbart ao Buzzfeed em outubro de 2012, “que
terão de fechar isso aqui, ou será nossa ruína. Acho que eu tinha razão.” Um
ano depois e apesar do grande número de novas contratações — muitas
provenientes do rival de direita Daily Caller —, o Breitbart.com ainda
precisava se destacar entre os competidores on-line e estava fracassando no
propósito de seduzir a agenda dos veículos de mídia. De acordo com uma
pesquisa de 2014 feita pela empresa especializada Pew, o Breitbart.com não
figurava entre as dez principais novas fontes de informação de eleitores
conservadores.16
Entretanto, ele continuou a crescer e até se expandiu internacionalmente,
graças a mais investimentos. No começo de 2014 abriu agências no Texas e
em Londres, com planos de se estender para a Califórnia, a Flórida, o Cairo
e Jerusalém.17 Fundamental para o crescimento de sua plateia foi o uso das
técnicas criadas pelo visionário que o fundou: desenvolver artimanhas para
chamar a atenção — como vídeos gravados com câmaras escondidas e
submetidos a pesada edição; enxergar tudo como uma questão política —
em especial a cultura; encontrar notícias controversas, com potencial para
causar divisões, em uma das principais colunas do site — como a
denominada Big Journalism — e então apresentá-las em um arcabouço
faccioso e emocional ao extremo com o intuito de provocar reações; publicar
apenas notícias que rendessem várias “pernas” — threads e narrativas
múltiplas capazes de se estender por ciclos consecutivos de notícias; e então
empregar a máquina de propagação do sentimento de revolta das mídias
sociais para dar um caráter ubíquo às notícias.
Na segunda metade de 2014, o Breitbart começou a ficar mais à vontade
com suas provocações. De repente se prontificou a defender a polícia depois
que integrantes da corporação dispararam contra Michael Brown; apoiou
gamers do sexo masculino durante a #Gamergate, em detrimento das
mulheres que eles tinham atacado on-line; e publicou uma torrente contínua
de histórias anti-imigrantes. Estes relatos apresentavam os imigrantes como
criminosos e alegavam que eles vinham tomando para si os empregos e a
assistência social dos Estados Unidos, além de custarem uma fortuna para
serem educados e ainda disseminarem enfermidades como o Ebola.18
A abordagem do site condizia com o que o sociólogo Stan Cohen identificou
nos anos 1970 como a mídia “dos maus elementos e do pânico moral”.19 Os
veículos midiáticos — no caso, o Breitbart — pegam um incidente
particular, como os tumultos de Ferguson, e o apresentam como prova da
corrupção material e moral da sociedade. Determinados grupos — os maus
elementos — são então sistematicamente culpados por essa corrupção.
A narrativa é repetida com frequência suficiente para que assuma o padrão
de uma lenda popular, uma verdade fundamental acerca da sociedade.
O foco sobre os imigrantes como a raiz dos problemas norte-americanos
se torna mais pronunciado no Breitbart no começo de 2015, a partir do
momento em que o site buscou convertê-lo em uma das questões decisivas
para a eleição nos Estados Unidos. Em julho, o Breitbart fora tão bem-
sucedido no cultivo do tema que, de acordo com um estudo do Southern
Poverty Law Center, superou o Daily Mail como veículo mais citado pelo site
neonazista Daily Stormer. No mesmo mês, links para o Breitbart a partir do
site nacionalista branco Stormfront dispararam, subindo para mais de 300
em um mês na segunda metade de 2015. O Breitbart “se converteu de
verdade de website conservador básico para isso que vemos aí”, disse o
proprietário do Daily Stormer para uma rádio sueca, “ou seja, os artigos que
ele publica sobre os negros nos Estados Unidos e sobre os muçulmanos na
Europa constituem basicamente material que se leria no Daily Stormer”.20
Ao longo de 2015, o Breitbart viu seu volume de tráfego crescer.
A indignação deliberada que provocava e sua abordagem politicamente
divisionista geraram enorme reação on-line. Em plataformas de mídia social
como o Facebook, em que reação significava envolvimento e envolvimento
queria dizer atenção, sua plateia atingia grandes alturas. Em julho, a
audiência do Breitbart no Facebook compartilhou, curtiu ou comentou mais
que no perfil do New York Times. No curso daquele ano, o Breitbart avançou
de 100 mil curtidas na página do Facebook para pouco menos de 1,5
milhão. No fim do mesmo ano, como escreveu Alexis Madrigal na The
Atlantic, a página do Breitbart atingira 10 milhões de interações por mês.21
A presença do site nas redes sociais também o ajudou a crescer como fonte
de notícias. No outono de 2014, algo em torno de apenas 3% da audiência
geral de notícias provinham do site.22 Por volta de julho de 2015 o número
dobrara para 6%, e o site recebia quase 19 milhões de visitantes ao mês.23
Até o fim de novembro subiu para quase 8%. No comando do site, Steve
Bannon compreendeu quão importantes tinham sido as redes sociais para
esse crescimento. “O Facebook foi o que impulsionou o Breitbart para uma
audiência maciça”, declarou ele ao Bloomberg em 2016. “Conhecemos o
poder que ele tem.”24
A ascensão cada vez maior do Breitbart não foi devida apenas ao namoro
do site com a extrema-direita. Ele também conseguiu subverter a mídia
tradicional. Fez isso graças a uma narrativa em cuja elaboração Steve
Bannon desempenhara papel decisivo. Vemos de novo aqui o sucesso
notável dos investimentos de Robert Mercer na conformação do ecossistema
da mídia digital de acordo com seus objetivos. Em 2013, seguindo conselho
de Bannon, a Mercer Family Foundation começou a apoiar o instituto
Government Accountability Institute (GAI), com Peter Schweizer ocupando
a presidência.25 Nesse ano, a família doou um milhão de dólares ao GAI,
seguido de outro milhão em 2014 e mais quase 2 milhões em 2015.
Acompanhando a doação da família, Rebekah, filha de Robert Mercer,
passou a integrar o conselho do instituto. A meta ostensiva do GAI era
“expor o favoritismo e a corrupção” na política. Na prática, isso significou
uma investigação de dois anos e a exposição de fatos comprometedores
relacionados aos Clintons.
Quando os Mercers investiram no GAI de Schweizer, pouca dúvida
restou de quais seriam a abordagem e as conclusões do presidente do
instituto. Schweizer escrevera meia dúzia de livros entre 2005 e 2013, cinco
dos quais atacavam as elites liberais constituídas e o establishment político.
Os títulos dos livros já dão uma ideia do tom das obras, bem como do ponto
de vista do autor: Extortion: How Politicians Extract Your Money, Buy Votes,
and Line Their Own Pockets [Extorção: como os políticos tiram seu dinheiro,
compram votos e enchem os próprios bolsos] (2013); Throw Them All Out:
How Politicians and Their Friends Get Rich off Insider Stock Tips, Land Deals,
and Cronyism That Would Send the Rest of Us to Prison [Fora com todos eles:
como os políticos e seus amigos enriquecem com informações privilegiadas
sobre o mercado de ações, a comercialização de terras e um favoritismo que
significaria cadeia para o resto de nós] (2011); Architects of Ruin: How Big
Government Liberals Wrecked the Global Economy — and How They Will do
It Again if No One Stops Them [Arquitetos da ruína: como governos liberais
grandes e ineficientes demais destruíram a economia global — e como farão
tudo de novo se ninguém os impedir] (2009); Makers and Takers: Why
Conservatives Work Harder, Feel Happier, Have Closer Families, Take Fewer
Drugs, Give More Generously, Value Honesty More, Are Less Materialistic and
Envious, Whine Less... and Even Hug Their Children More than Liberals
[Produtores e compradores: por que os conservadores trabalham mais, são
mais felizes, mais próximos da família, se drogam menos, são mais
generosos, valorizam mais a honestidade, são menos materialistas e
invejosos, choram menos... e até abraçam mais os filhos que os liberais]
(2008); e Do as I Say (Not as I Do): Profiles in Liberal Hypocrisy [Faça o que
eu digo (não o que faço): perfis da hipocrisia liberal] (2005). Era evidente,
portanto, que Schweizer jamais escreveria um livro que considerasse os
políticos liberais como um todo honestos e dignos de confiança. Claro, em
2015, a HarperCollins publicou outro livro de Schweizer: Clinton Cash: The
Untold Story of How and Why Foreign Governments and Businesses Helped
Make Bill and Hillary Rich [O dinheiro dos Clintons: a história não contada
de como e por que governos e negócios estrangeiros ajudaram a deixar Bill e
Hillary ricos]. Baseava-se em material desenterrado por uma equipe de
pessoas que trabalhavam com Schweizer no GAI levantando inúmeras
dúvidas sobre doações para a Fundação Clinton e as conexões dessa
instituição.
O investimento de Mercer no GAI tirou proveito de outra importante
fragilidade da mídia comercial tradicional: sua crescente incapacidade de
sustentar investigações longas e caras. O Clinton Cash foi o produto de mais
de dois anos de pesquisa, grande parte das quais na dark web, contendo uma
legião de fios narrativos e conexões de rede a se espalharem mundo afora.
A história combinava perfeitamente com a máxima de Andrew Breitbart
sobre tramas e narrativas múltiplas. Não lhe faltavam pernas para correr, e
muito. Schweizer e Bannon também se certificaram de que o relato surgisse
primeiro na mídia liberal. Sabiam que sua credibilidade entre o pessoal de
centro e da esquerda aumentaria demais se a origem fosse de grandes
veículos da velha mídia. Por essa razão o GAI concedeu acesso avançado
exclusivo aos três pilares da mídia tradicional dos Estados Unidos — o New
York Times, o Washington Post e a Fox News. Funcionou. Quando o livro
Clinton Cash foi publicado, em maio de 2015, todos os três se atiraram de
cabeça na história.
Com isso, no verão de 2015, o Breitbart não apenas legitimava a virulenta
retórica anti-imigração da extrema-direita como elaborava e conectava por
links narrativas publicadas na mídia tradicional do centro e de centro-
esquerda. Ou seja, agia como uma ponte digital. Muitos sites da extrema-
direita agora apontavam seus links na mesma direção, incluindo o Daily
Stormer, o Stormfront e o 4chan. Ao mesmo tempo, conectavam-se por links
com os pilares do establishment midiático dos Estados Unidos: o New York
Times e o Washington Post. Tudo isso combinado com a copiosa publicação
de narrativas e a estratégia de mídia social deliberadamente provocativa era
o mesmo que alimentar o Breitbart on-line com combustível de foguete.
O estratagema atingiu todas as principais mensurações de algoritmos das
plataformas tecnológicas: relatos recentes, relevantes e regulares com links
tanto a partir da web aberta quanto nas redes sociais a gerar altos níveis de
envolvimento em todo o espectro político.
Um investimento maior da parte de Mercer fortaleceu o Breitbart e
consolidou a distorção do ecossistema noticioso digital antes da eleição de
2016. Tratava-se de um pretenso “fiscal de mídia” chamado Media Research
Center (MRC). Ora, há duas maneiras muito diferentes de gerir um
organismo de fiscalização de mídia. A primeira é dar às pessoas as
ferramentas e a informação de modo que elas possam tirar conclusões
próprias acerca de diferentes artigos ou veículos de notícias. A segunda parte
da premissa de que toda mídia que existe é parcial e corrupta, e passa-se o
tempo todo colecionando evidências para prová-lo. O MRC adotou a
segunda abordagem. Desde sua fundação em 1987 ele apresentou a mídia
tradicional como uma única entidade coerente — a MSM (de Main Stream
Media, em inglês) — uma entidade preconceituosa e inverídica em essência.
Como Brian Montopoli escreveu para a Columbia Journalism Review em
2005, o “MRC insiste em fingir que existe uma ampla conspiração por perto,
retratando-se diligentemente como voz no deserto a lutar contra um sistema
corrupto”.26
Mesmo antes de descobrirem o Breitbart, os Mercers apoiavam o MRC.
Rebekah Mercer juntou-se ao conselho da instituição em 2010, e a Politico
relata que a fundação da família doou ao centro mais de 10 milhões de
dólares.27 O apoio dos Mercers suplementou o orçamento já considerável do
MRC (cuja receita anual entre 2010 e 2014 ficou acima de 14 milhões de
dólares em média), o que permitiu que ele fizesse todo o possível para
arruinar a confiança na mídia tradicional e convencer o público de que toda
mídia herdada por nós só dizia mentiras. “Todo o mundo hoje sabe que as
mídias noticiosas têm uma agenda liberal por causa do MRC”, disse o
locutor de uma rádio ao fundador e presidente do MRC, Brent Bozell, em
2015. “O senhor se sente bem-sucedido?” Sim e não, respondeu Bozell:
“Sim, a maior parte dos norte-americanos hoje entende essa realidade, e o
Media Research Center merece o crédito, mas ainda nem todos
compreendem isso”.28 Se o MRC foi ou não responsável, o fato é que
trabalhara incansavelmente durante quase três décadas para desacreditar a
imprensa e as emissoras dos Estados Unidos. A consequência foi que muita
gente, em especial à direita, tratava com desconfiança, se não descrença, os
relatos da vasta maioria da mídia ao centro e à esquerda, deixando-a aberta
para um site como o Breitbart, que estava em íntimo alinhamento com suas
crenças políticas sectaristas.
No início de 2016 o Breitbart sustentou uma posição no ecossistema das
mídias noticiosas que era impensável apenas três anos antes. Como revela
uma pesquisa seminal do Berkman Klein Center, de Harvard, o Breitbart se
tornara “o nexo da mídia conservadora”.29 Ancorado em um mapa de rede
representando 2 milhões de notícias publicadas durante a campanha
eleitoral norte-americana, o Breitbart era de longe a maior estrela no
universo direitista. Nos 18 meses até a eleição, ele foi mais compartilhado no
Facebook, objeto de mais tuítes no Twitter e de mais publicação de links na
Web aberta do que qualquer outro site de direita. Era ainda mais influente
uma vez que, como o estudo demonstra, o ecossistema noticioso da direita
estava muito mais contido e voltado para dentro que o da esquerda. Relatos
críticos sobre candidatos de direita passavam pelo filtro dessas lentes, se
noticiados.
Em um espaço de tempo extremamente curto, a família Mercer
transformara a paisagem da mídia política por intermédio de seus
investimentos em mídia digital. Incubara uma rede de mídia hiperfacciosa
de direita, cujo público em grande parte estava isolado das fontes de notícias
tradicionais. Seu novo site — o Breitbart — dominara essa rede apenas
quatro anos depois de lançado e estabelecera a própria agenda política. Além
de tudo isso, subvertera a mídia tradicional e inflamara a parcialidade e a
desconfiança. Seria difícil argumentar que os Mercers não tinham
percorrido um longo caminho no sentido de atingir um de seus objetivos
evidentes — apoderar-se da narrativa política e pouco a pouco destruir a
mídia tradicional.
No entanto, tivessem os investimentos da família ficado restritos à mídia
digital, sobretudo ao Breitbart, ao MRC e ao GAI, é provável que você
pudesse afirmar que a influência dos Mercers equivalia ao de um magnata
da imprensa do início do século XX, como William Randolph Hearst, lorde
Beaverbrook ou lorde Northcliffe. Cada um deles exercera influência
considerável sobre políticos contemporâneos. Após a Primeira Guerra
Mundial, por exemplo, o primeiro-ministro britânico David Lloyd George
buscou o apoio de Northcliffe, que respondeu: “Não tenho a intenção de
usar os meus jornais e a minha influência pessoal [...] a menos que conheça
de maneira definitiva e por escrito, e possa aprovar conscientemente, a
constituição pessoal do governo”. Mas a busca de ruptura política pelos
Mercers foi além da mídia digital e incluiu outro investimento em 2013.
Embora complementar, transportou-os para um novo e inexplorado
território. Trata-se dos 5 milhões de dólares que Robert Mercer investiu no
que mais tarde se tornaria uma empresa de notoriedade global, a Cambridge
Analytica.

Quando subiu ao palco em Hamburgo, em março de 2017, Alexander Nix


parecia ter usado Don Draper, o publicitário interpretado por Jon Hamm na
série de TV Mad Men, como modelo.30 O executivo-chefe da Cambridge
Analytica (CA) vestia terno preto, gravata preta e camisa cinza. Até seu
cabelo penteado para trás brilhava com o produto que o mantinha no lugar,
ao estilo de Draper. O look condizia com o tema de sua fala, “De loucos a
matemáticos”,31 em que ele discursava para a plateia sobre a revolução na
política e na comunicação comercial. Dizia que passamos da época das
mensagens de cima para baixo e entramos na era em que elas acontecem de
baixo para cima, da época em que adivinhávamos a mente do público para a
era em que — graças aos “dados em grandes volumes” — sabemos como é a
mente desse público. Nix expôs então, de modo muito proveitoso, o que
considera serem dados em grandes volumes (big data). Entre eles se incluem
todos os fatos básicos — quantos anos temos, onde moramos, quanto
ganhamos — mais os dados sobre como nos comportamos: aonde vamos, o
que compramos, que mídia consumimos. Somam-se também as nossas
atitudes e o que nos move — paixões, preconceitos e preferências políticas.
Criar uma comunicação persuasiva hoje, de acordo com Nix, significa juntar
“a maior quantidade de dados em que for possível pôr as mãos”. Foi isso
exatamente o que fez a CA, que Nix conduziu até ser suspenso em 2018.
A empresa afirmava ter mais de 5 mil pontos de dados sobre mais de 230
milhões de eleitores norte-americanos, os quais podia usar para traçar
perfis, construir modelos e definir alvos durante as campanhas eleitorais.
“Os dados orientam tudo o que fazemos”, dizia seu slogan.
Por volta de 2018, só quem evitava as notícias como quem foge da praga
não ouvira falar em Cambridge Analytica. Uma longa investigação
conduzida por Carole Cadwalladr, do Observer, expôs os métodos utilizados
pela empresa para a coleta de dados em massa a partir do Facebook, sua
disposição para cogitar a utilização das artes ocultas da manipulação
eleitoral e sua propensão — em comum com outras consultorias políticas —
a superestimar a própria capacidade. Importunada por alegações de
comportamento ilegal e antiético, a empresa fechou em 2018. Quanto aos
efeitos que causou na eleição de 2016 nos Estados Unidos, após a breve lua
de mel inicial em que ganhou grinaldas pela vitória de Trump, os críticos
passaram vários meses derramando água fria em suas afirmações e na
utilização que a CA teria feito — ou não — dos chamados métodos
“psicográficos de desenho de perfil”. Até a própria empresa atenuou a
relevância de seu papel dizendo não ter tido tempo para implementar
algumas de suas abordagens mais sofisticadas quando trabalhara na
campanha de Trump e que não pudera fazer o desenho psicográfico de perfil
da maneira adequada. Parte da água fria era bem-vinda e absolutamente
válida. Nenhuma organização ou método virou a eleição. E sempre se deve
ficar com o pé atrás ao ouvir histórias sobre inovações tecnológicas que
seriam responsáveis por ganhar eleições (quem ainda se lembra do
superalgoritmo Ada de Hillary Clinton?).
Todavia, quem faz pouco caso do papel desempenhado pela CA na
eleição norte-americana de 2016 deixou de considerar seus aspectos mais
interessantes e significativos. Ao focar em descobrir se a CA venceu ou não a
eleição para Trump (não venceu) e na aplicação do desenho psicográfico de
perfil (que a empresa pode ou não ter aplicado de maneira parcial), as
pessoas deixaram de notar os dois papéis mais importantes que ela
desempenhou. O primeiro foi como veículo de coleta de enormes
quantidades de dados pessoais do eleitorado. Esses dados colocaram os
Mercers na posição privilegiada de conceder patrocínio e poder —
desafiando até a máquina já estabelecida do Partido Republicano. O segundo
foi o papel da CA como laboratório para a condução de experimentos com
os dados dos eleitores a fim de descobrir o que funcionava. Esses
experimentos, bem como os dados e o conhecimento adquiridos, não só
forneceram informações para a abordagem da empresa, mas também
podem propiciar informações para a abordagem de qualquer um que tente
usar dados e plataformas digitais com objetivos políticos.
A Cambridge Analytica parecia uma empresa estranha na qual investir.
Era britânica, não norte-americana — derivada dos Strategic
Communication Laboratories (SCL). Não tinha nenhuma experiência em
campanhas eleitorais dos Estados Unidos. Não contava com nenhuma
conexão com os principais partidos políticos norte-americanos.
Não dispunha nem mesmo de uma compreensão detalhada das nuanças do
sistema político dos Estados Unidos. Todavia, dizem que Robert Mercer
submeteu muitas empresas a uma triagem antes investir. Então por que a
Cambridge Analytica?
Em 2012-13, quando Mercer analisava em que empresa dedicada à
política deveria aplicar seus investimentos, dois pontos principais
distinguiam a CA das concorrentes. O primeiro era o compromisso com os
dados. Ela adotava na política uma abordagem semelhante à da RenTech em
relação às finanças. Coletava o máximo de dados que podia, confiando-os
então a cientistas da computação, cientistas do comportamento e
engenheiros de software para analisá-los e encontrar padrões. Mercer
sempre adotara uma abordagem purista aos dados. Na IBM, ele e seu colega
Peter Brown tinham empregado abordagem idêntica quando criaram um
software de tradução de línguas. Em vez de tentarem ensinar para um
computador as regras de determinada língua, como se faria com uma
criança, eles transferiram para a máquina livros pesados de textos
equivalentes — um em francês e o outro em inglês — e deixaram o
computador decifrar por si mesmo as regras. Contrariando as expectativas
de seus pares, deu certo, e a abordagem se converteu em base para o Google
Tradutor e para as abordagens subsequentes à tradução via computador.
O segundo traço distintivo da CA era a experiência de seu fundador em
comunicações estratégicas para influenciar a mudança comportamental. Em
termos práticos, isso significa que os SCL, dos quais a CA surgiu,
aconselharam governos e militares acerca de como convencer as respectivas
populações a fazerem alguma coisa. O fundador dos SCL, Nigel Oakes,
descreveu para uma revista especializada em 1992 a abordagem, às vezes
chamada de operações psicológicas ou “psy-ops”, dizendo que “usamos as
mesmas técnicas que Aristóteles e Hitler. [...] Cativamos as pessoas em nível
emocional de modo a levá-las a concordarem em nível funcional”.32
A empresa SCL Elections declarou em janeiro de 2013 ter mais de quinze
anos de experiência amealhada em 35 eleições no mundo todo. “Até o
momento”, dizia seu website em 2013, “dispomos de um recorde sem igual
de 100% em gestão de eleições”.33
Para alguém tão desencantado com a política de Washington, D.C. como
Mercer, a distância da CA do circuito que girava em torno da capital federal
também teria sido uma vantagem, em vez de desvantagem. Pelo fato de ela
ser britânica, não levaria consigo a bagagem ou os preconceitos das
empresas políticas norte-americanas. Sem vínculos com os partidos
políticos estabelecidos, conseguiria manter seus dados e metodologias
distintos e separados.
Ainda assim, a ênfase da CA em dados pessoais estava longe de ser
singular em 2013. Após a vitória eleitoral tecnologicamente sofisticada de
Barack Obama no ano anterior, fazer campanha valendo-se de dados era a
grande novidade. Em 2012, “medíamos e testávamos tudo”, disse tempos
depois Jim Messina, diretor da campanha de Obama. Com mais de 100
pessoas compondo seu time digital, Obama experimentara usar mensagens
sob medida e direcionadas para grupos específicos, levando seu estrategista
chefe, David Axelrod, a chamar de “pré-históricos” os esforços tecnológicos
anteriores, levados a cabo em 2008.34
Há não muito tempo as campanhas democratas funcionavam quase sem
nenhum dado dos eleitores. A coleta e a utilização de dados pessoais do
eleitorado em campanhas políticas constituem prática surgida nos anos
1970, que cresceram na virada do século e se transformaram em bola de
neve desde então. Na década de 1970, quando as consultorias políticas
profissionais explodiam para todo lado nos Estados Unidos, o mesmo
aconteceu com o interesse pelo potencial dos dados do eleitorado. No fim da
década de 1990, Sasha Issenberg escreveu no influente estudo The Victory
Lab [O laboratório da vitória] que os cientistas políticos vinham realizando
testes de controle randomizados dos eleitores. E na época em que George W.
Bush competiu com Al Gore, em 2000, os republicanos tinham criado um
banco de dados denominado “Voter Vault”, que segmentava os eleitores e
ajudava o partido a decidir em quem mirar. Depois da derrota eleitoral de
2004, os republicanos decaíram tecnologicamente. Mesmo em 2012, apesar
do investimento de Mitt Romney, a sofisticação da operação deles com
dados ficou bem atrás da de Obama. O sistema usado em 2012, denominado
ORCA e que se supunha ser de última geração para levar as pessoas a se
registrarem como eleitores, sofreu um fracasso lúgubre no dia da eleição.
Em vários sentidos, quando se trata do uso de dados pessoais, as
empresas privadas têm vantagens distintas em relação aos partidos políticos.
Podem fazer trabalhos tanto comerciais como políticos — significando que
não há tempo ocioso entre eleições. De igual modo, o conhecimento e a
experiência adquiridos com o trabalho comercial podem ser empregados em
campanhas. Como Alexander Nix disse a sua plateia em Hamburgo, pode-se
vender um candidato da mesma forma que se vende um dentifrício. As
empresas privadas também são menos limitadas por processos políticos e
membros de partido. Tendem ainda a atrair menos fiscalização do público (a
Cambridge Analytica foi uma notável exceção).
Tornara-se também muito mais fácil e barato para grupos, candidatos e
consultorias políticas reunir e armazenar dados pessoais em períodos de
campanha eleitoral. Existe uma indústria multibilionária nos Estados
Unidos que coleta e vende enormes quantidades de informação on e off-line
sobre o que as pessoas fazem, compram e pensam. Empresas como Acxiom,
Experian e Datalogix acumulam oceanos de dados de consumidores, na
maior parte dos casos sem o conhecimento dos próprios.35 Um relatório da
Federal Trade Commission de 2014 descobriu que o banco de dados de uma
empresa especializada em coleta e venda desse tipo de conteúdo “contém
informação acerca de 1,4 bilhão de transações de consumidores e mais de
700 bilhões de elementos agregados”; contudo, os indivíduos não têm quase
nenhum conhecimento do que é coletado ou de como isso é comercializado
(existem poucas restrições para a utilização de dados pessoais nos Estados
Unidos, em contraste com a Europa). Em uma era digital, a partir do
momento em que você reúne quantidades massivas de dados pessoais com
propósitos políticos, pode empregá-los para fazer duas coisas. Pode analisá-
los a fim de decidir quem é seu alvo e como o atingir. Também pode, desde
que possua detalhes de contato das pessoas, ter acesso direto a cada eleitor.
Antes, o único modo de entrar em contato com alguém era na casa das
pessoas — batendo na porta, deixando um panfleto na caixa de correio,
enviando-lhes uma carta ou, se estivesse com sorte, dando-lhes um
telefonema (na expectativa de conseguir falar com a pessoa certa). Com o
endereço de e-mail dessas pessoas, acesso ao perfil delas nas redes sociais ou
ao seu número de celular, as campanhas de repente contam com meios
alternativos — e mais diretos — de estabelecer contato com o eleitorado.
Mercer não foi o primeiro a reconhecer o poder dos dados pessoais para
alguém agindo fora de um partido político, ou a investir em uma empresa
que os armazene. Os irmãos Koch tinham chegado lá antes dele. Investiram
em uma empresa aberta pelo principal responsável pela área de tecnologia
da John McCain em 2011, Michael Palmer. Nos quatro anos seguintes,
segundo a Politico, os Kochs investiram mais de 50 milhões na
organização.36 Em 2015 dispunham de dados mais valiosos e tinham um
perfil melhor de eleitores que o Partido Republicano – o GOP. O GOP ficou
tão preocupado com os dados acumulados pelos Kochs que, de acordo com
um republicano, declarou guerra contra eles. Em atitude bastante incomum,
a chefe da equipe do Republican National Committee, Katie Walsh, fez uma
declaração pública atacando a tomada de poder. “Penso que é perigoso e
errado”, disse ela, “permitir que um grupo de indivíduos muito forte e
contando com farto financiamento, sem necessitar prestar contas a ninguém,
tenha o controle sobre quem pode acessar os dados quando, por que e
como”.37
Apesar de os irmãos Kochs e os Mercers terem feito os primeiros
investimentos estratégicos em dados de eleitores, a abordagem adotada por
eles não é difícil de copiar. Qualquer plutocrata com recursos e propensão
para isso pode desenvolver sistemas adequados, considerando a
disponibilidade de dados pessoais. Claro, uma coisa é dispor de dados; como
utilizá-los é o que faz toda a diferença. Tendo reunido sua montanha de
dados, a Cambridge Analytica empregou equipes de cientistas de dados,
físicos, cientistas do comportamento e engenheiros de software para juntá-
los, dissecá-los e buscar padrões. Foi aí que ela desempenhou seu segundo
papel crítico nas campanhas políticas dos Estados Unidos — como um
laboratório experimental para análise e teste de enormes quantidades de
dados pessoais a fim de descobrir como influenciar o comportamento do
eleitor.
Descobrir como influenciar o comportamento do eleitor, ou fazer uma
“análise comportamental”, conforme denomina a CA, era fundamental para
a abordagem diferenciada da empresa. Basicamente, significa analisar
montes de dados pessoais e então calcular, com base nos resultados, como
levar alguém a fazer algo — como votar ou não votar. Isso é muito diferente
de tentar mudar a cabeça de alguém. Em seu livro esclarecedor A mente
moralista,38 Jonathan Haidt descreve de que maneira os nossos cérebros não
racional e racional são como um elefante e seu passageiro. Gostamos de
pensar que o passageiro toma as decisões e avisa aonde o elefante deve ir,
mas, na realidade, ele passa a maior parte do tempo tentando decifrar em
que direção o elefante está seguindo. Quando candidatos procuram nos
convencer de que sua política é a certa, apelam para o passageiro. Quando
fazem apelos viscerais ou emotivos, dirigem-se ao elefante. Há séculos, os
pensadores políticos se preocupam com a influência danosa do nosso
cérebro irracional e associam racionalidade com livre-arbítrio. Ao mesmo
tempo, propagandistas políticos bem-sucedidos há muito sabem que a
propaganda é bem mais eficaz para provocar uma reação do que para mudar
a cabeça das pessoas. Mao Zedong enxergava a propaganda como um modo
de mobilizar, e não de converter, grandes quantidades de pessoas.
A “Cambridge Analytica”, asseverava a organização em sua página inicial,
“usa dados para mudar o comportamento do público”, não para transformar
a cabeça das pessoas. Em outras palavras, visava o elefante, não seu
passageiro. A maneira como tentava fazer isso era acumulando perfis
detalhados de cada indivíduo, combinando dados de tudo o que encontrava,
desde informação demográfica básica até hábitos de navegação em rede, de
vida social e de consumo. Tecia tudo isso com dados primários que coletava
por meio de pesquisas e votos, e usava o resultado obtido para agrupar
pessoas por personalidade e pelas questões às quais elas mais davam
importância. Fabricar comunicação política sob medida para os indivíduos
com base em sua personalidade, defendia a CA, tinha probabilidade muito
maior de provocar uma reação comportamental que a comunicação baseada
em fatores menos íntimos. As análises posteriores à campanha eleitoral
revelaram uma obsessão por saber se os “psicográficos” tinham vencido a
favor de Trump, e se a CA era ou não cheia de charlatães, esquecendo de
formular uma pergunta mais fundamental: É factível hoje, tanto em sentido
teórico quanto prático, influenciar o voto por meio da personalidade das
pessoas? Em caso positivo, a estratégia destrói o ideal democrático do eleitor
racional?

Tentativas de definir e medir personalidade remontam a mais de um século.


O psicanalista Carl Jung desenvolveu uma série de “arquétipos” psicológicos
que acreditava serem universais. A partir do trabalho de Jung, mãe e filha
desenvolveram um teste, o Myers-Briggs, para oferecer às pessoas um modo
prático de avaliar a personalidade. O teste, embora usado por muitos anos,
constituía essencialmente um produto de tentativa e erro, não baseado em
estudos científicos. Só na última década do século XX, depois de muita briga
distante da realidade, os pesquisadores chegaram a um consenso em torno
do modelo de cinco grandes fatores — os chamados “Big Five” —
considerado a medida mais coerente e precisa da personalidade humana. Os
cinco fatores são: abertura para o novo (até que ponto você está aberto a
ideias, pessoas, experiências), responsabilidade consciente (quão
responsável, organizado e controlado você é), extroversão (quão sociável e
comunicativo você é), amabilidade (quão descontraído e confiante você é) e
neuroticismo (quão ansioso ou apreensivo você é). A pontuação da pessoa
em cada um desses cinco fatores dá um bom indício de quem ela é de
verdade. Nascemos com a maior parte desses traços de personalidade e eles
permanecem basicamente iguais ao longo da nossa vida adulta. Eles são, se
você preferir, o que o torna quem você é.
A partir do momento em que os estudiosos chegaram a um consenso
acerca da personalidade, contavam com uma base sobre a qual edificar
pesquisas. Os estudos então decolaram em muitas e variadas direções.
Pesquisadores examinaram como a personalidade afeta a duração da vida
das pessoas, suas perspectivas profissionais, conquistas educacionais e seu
potencial de rendimentos. Alguns estudiosos também começaram a
observar como a personalidade influencia as nossas atitudes e os nossos
comportamentos políticos. Claro, essa ideia — de que a personalidade afeta
a política — não era nova. Lá atrás, em 1950, Theodor Adorno e colegas
tentaram determinar que características individuais formavam a
“personalidade autoritária”. Em 1960, no clássico estudo American Voter [O
eleitor norte-americano], Angus Campbell e coautores descobriram que a
personalidade era crucial para ajudar as pessoas a desenvolverem fidelidade
política. Todavia, faltou a Campbell e outros o arcabouço teórico para
explorar como a personalidade afeta a política. O teste de personalidade Big
Five o forneceu.
A princípio, havia muitos resultados conflitantes. Contudo, logo algumas
descobertas claras começaram a aparecer. A primeira e mais fundamental é
que existe de fato uma conexão entre personalidade, atitudes e
comportamento político. Determinados traços de personalidade têm íntima
relação com as convicções políticas das pessoas, seus pontos de vista em
certas questões e como elas se envolvem com a política. Por exemplo, é
possível prever, com base na personalidade de alguém, se essa pessoa terá
uma identificação explícita com um partido e quão intensamente partidária
ela será. Em outras palavras, pode-se dizer se existe alguma probabilidade de
uma pessoa se juntar ao Partido Democrata como também se ela apoiará o
movimento Occupy. Ou, de semelhante modo, se ela se associará aos
republicanos e se irá mais longe ainda apoiando o Tea Party. Outros aspectos
de personalidade são igualmente indicativos de perspectivas e persuasão
políticas. Se alguém é consciencioso ao extremo, é maior a probabilidade de
que seja mais conservador.39
Outros estudos se voltaram para a conexão entre características de
personalidade e questões políticas específicas. Em 2014, Aina Gallego e Sergi
Pardos-Prado publicaram uma pesquisa investigando se havia alguma
relação entre atitudes para com a imigração e tipo de personalidade.40
Descobriram que havia uma conexão, mesmo quando uma delas está
associada a outros fatores. Se você atinge pontuação elevada em
amabilidade, é provável que tenha uma atitude positiva em relação aos
imigrantes e à imigração. Se pontua baixo nesse quesito e alto em
neuroticismo, é provável que tenha uma opinião negativa acerca da
imigração.
Dessa vez os pesquisadores dispunham do arcabouço — o modelo Big
Five — e começavam a achar correlações, mas ainda lutavam para conseguir
a quantidade de dados pessoais necessária para documentar as conexões
entre personalidade e política. O estudo de Gallego e Pardos-Prado se
concentrou nos Países Baixos, em parte porque a imigração é um assunto
político controverso por lá, mas também porque foi ali que conseguiram
obter os dados. Desde 2007 o projeto MESS nos Países Baixos pesquisou em
torno de 5 mil domicílios e disponibilizou para análise os dados coletados.
Outros estudos não tiveram tanta sorte. O levantamento de dados pessoais
suficientes para possibilitar a análise da personalidade de alguém e sua
correlação com convicções políticas pode ser um processo exaustivo e caro.
Um dos testes mais conhecidos — o Revised NEO Personality Inventory
[Inventário de Personalidade NEO Revisado] — contempla 240 questões.
Ele foi simplificado — por exemplo, há uma versão de 50 questões —,
embora a simplificação signifique necessariamente o sacrifício de alguns
detalhes e nuances pessoais. Na prática, isso quer dizer que a pesquisa de
personalidade tem sido feita com frequência em amostras relativamente
pequenas envolvendo pessoas com tempo para preencher longos
questionários (essa é a razão pela qual muitas pesquisas se baseiam em
estudantes universitários). Jeffery Mondak e Karen Halperin, bastante
criativos, usaram dados coletados de integrantes de júri em 19 comarcas
selecionadas de maneira aleatória, combinados com os resultados de outras
pesquisas via telefone e via questionários apresentados e respondidos com
papel e caneta.41 Mesmo os melhores dados coletados em pesquisa ficam
longe do ideal. Dependem da percepção que as pessoas têm do próprio
comportamento, e não de seu comportamento real. Existe ainda a tendência
de enfeitar alguns aspectos do próprio caráter e esquecer ou camuflar outros.
Além disso tudo, é difícil — se não impossível —, com base apenas em um
questionário, pôr a personalidade de alguém no contexto de sua rede social,
de modo a compreender a dinâmica entre as duas coisas. Do que os
pesquisadores necessitavam de fato não era mais dados pessoais aos montes,
mas desses dados combinados com conexões pessoais e dados
comportamentais. Felizmente, uma plataforma digital estava prestes a lhes
prestar esse favor.
Em junho de 2007, David Stillwell acabava de se formar entre os
primeiros da turma de psicologia da Universidade de Nottingham.
Permaneceu em Nottingham para concluir seu mestrado, seguido de um
doutorado, razão pela qual lhe sobrou algum tempo livre durante o verão.
O Facebook lançara fazia pouco tempo seu aplicativo, e Stillwell, conhecedor
do básico sobre codificação por conta de uma especialização ainda no
ensino médio, considerou a possibilidade de criar um aplicativo. Tinha
curiosidade em saber se, combinando as respostas dadas em um aplicativo
de perguntas sobre personalidade com dados de perfil do Facebook,
conseguiria relacionar a personalidade da pessoa a atitudes e
comportamentos particulares. Produziu o aplicativo e compartilhou-o com
alguns amigos. Estes ficaram tão encantados que o compartilharam com
amigos deles, responsáveis por repetir a prática. Em questão de meses o teste
viralizara e centenas de milhares de pessoas o haviam completado.
A princípio, considerando que seu trabalho pretendia ser apenas um projeto
pessoal, Stillwell não coletou nenhum dado; contudo, depois que outros
pesquisadores lhe disseram como o teste poderia ser um recurso valioso,
decidiu mudar as condições de uso do aplicativo e — com o consentimento
dos usuários — pôs-se a capturar os resultados do teste. Quando parou, em
2012, dispunha de dados de personalidade de mais de 4 milhões de pessoas
e também os dados do perfil no Facebook de cerca de um terço delas.42
No início, Stillwell e colegas usaram os dados para ver que tipos de
personalidade curtiam diferentes produtos de consumo. Qual a
personalidade de alguém que gosta de Coca comparada com a de alguém
que gosta de Pepsi? Mas então resolveram examinar a questão no sentido
inverso. O que você curtia no Facebook poderia revelar aos pesquisadores
como você era como pessoa? Acabou-se descobrindo que sim. Baseados no
que as pessoas curtiam no Facebook, os pesquisadores puderem dizer, com
alto grau de precisão, seus traços de personalidade, opiniões políticas,
religião, sexualidade e etnia. Usaram as curtidas do Facebook uma vez que
foi isso que coletaram, embora — como escrevem no artigo que prepararam
em 2013 e muito citado — existam vários outros rastros on-line que podem
ser utilizados. “A migração humana para [o] ambiente digital possibilita
basear essas previsões em registros digitais de comportamento humano”,
escrevem os autores, chegando a dizer: “É improvável que prognósticos
similares estejam limitados ao ambiente do Facebook”.43 Stillwell e colegas
tinham demonstrado que, graças às desajeitadas pegadas digitais que todos
deixamos hoje em dia, reunir dados pessoais para predizer a personalidade e
perspectivas políticas de alguém deixou de ser tarefa dispendiosa e
exaustiva. Na verdade, tornou-se algo de uma facilidade assustadora.
O artigo de Stillwell e seus colegas foi publicado em abril de 2013.
A Cambridge Analytica foi criada no fim daquele ano em Delaware. Desde o
início, a empresa correu para coletar dados pessoais, on e off-line, e analisá-
los utilizando o modelo dos cinco fatores, entre outros critérios. Como
revelado posteriormente, ela recolheu parte desses dados graças a um
aplicativo do Facebook desenvolvido por Aleksandr Kogan, colega de David
Stillwell em Cambridge. No entanto, também reunia dados e
comportamentos do eleitor em cada campanha em que trabalhava. Em 2014,
a CA esteve envolvida em 44 campanhas em todos os Estados Unidos.44
A empresa disse ter administrado campanhas de mensagens psicográficas
que eram sua marca registrada em favor de candidatos republicanos em três
disputas pelo Senado, trabalhando para um comitê político de John Bolton.
Em seguida, atuou nas campanhas presidenciais de Ben Carson e de Ted
Cruz. Como Alexander Nix declarou ao escritor e jornalista político Sasha
Issenberg em 2015: “Seu comportamento é dirigido por sua personalidade;
na verdade, quanto mais você puder compreender a personalidade das
pessoas como um condutor psicológico, mais poderá começar a realmente
estabelecer uma conexão com o porquê e o como elas tomam suas decisões.
Chamamos isso de microssegmentação comportamental, a nossa verdadeira
‘receita secreta’, se você preferir. É o que estamos trazendo para os Estados
Unidos”.45
Utilizar a personalidade das pessoas como forma de lhes enviar
mensagens políticas sob medida era impossível, em sentido conceito e
prático, antes de 2013. Até a década de 1990 não havia consenso em relação
a como definir e avaliar a nossa personalidade. A partir de então, os
pesquisadores começaram a demonstrar as conexões entre personalidade e
convicções políticas. Só nos anos mais recentes temos sido capazes de
coletar dados pessoais suficientes para associar atitudes e comportamentos
específicos a tipos de personalidade. E só a partir de 2013 tem sido possível
usar esses dados pessoais para predizer personalidades e segmentar
mensagens políticas baseadas em tipos de personalidade. Assim, parece um
pouco tacanho fixar-se em saber se essa abordagem estava ou não em vigor
na época da eleição norte-americana, em vez de tentar entender sua eficácia
e seu emprego potencial na política do futuro.

Em 2016, não foi apenas nos Estados Unidos que um plutocrata investiu em
tecnologia inovadora para se apoderar de dados pessoais e influenciar o
comportamento dos eleitores. Do outro lado do Atlântico, outro homem de
negócios muito rico, Arron Banks, financiava a companha não oficial para
convencer o público a votar pela saída da União Europeia. De modo geral,
Banks era o oposto extremo de Mercer: loquaz enquanto Mercer era quase
mudo; falastrão e cheio de contar vantagens enquanto Mercer era discreto; e
acessível enquanto Mercer era valentão e reservado. Contudo, eles tinham
dois pontos comuns. Ambos reconheciam o poder impressionante dos
dados e das plataformas digitais dos quais procuravam tirar partido, e ambos
abominavam o establishment político. Em seu diário triunfalista de
campanha, Banks escreve como ficou satisfeito por estar tentando algo que
nunca fora experimentado na Grã-Bretanha e que vinha conferindo a sua
campanha um entendimento sem precedentes do eleitorado. “Ao usar a
tecnologia da pesquisa de opinião via redes sociais — uma novidade no
Reino Unido — desenvolvida nos Estados Unidos”, disse ele, o grupo
Leave.EU compreendia “com exatidão o que passava pela cabeça das
pessoas, onde elas moravam e como votariam”.46 Eles eram capazes, afirmou
Banks, com base no uso de inteligência de máquina, de mudar as manchetes
nas redes sociais “de modo a refletirem a disposição mental da audiência até
20 vezes por dia”. Na data marcada para a votação em si, o grupo Leave.EU
conseguira juntar “um milhão de seguidores on-line e um banco de dados
enorme”. Após a vitória da campanha do Leave, Banks se convenceu de que
os responsáveis por esse resultado tinham sido os dados e a tecnologia
empregados. Quando “implementamos essa tecnologia no leave.eu,
alcançamos níveis sem precedentes de engajamento. 1 vídeo 13m
visualizações. A IA [inteligência artificial] venceu a disputa pela saída”.47
Depois de estabelecida em 2013, a Cambridge Analytica se tornou
ferramenta vital na campanha de Mercer para atingir o establishment
político com uma bola de demolição. De início a CA foi usada nas primárias
presidenciais. A família Mercer doou 11 milhões de dólares para um fundo
eleitoral em apoio a Ted Cruz, o candidato republicano mais odiado pelo
respectivo partido. Cumprindo seu papel no acordo, a campanha de Cruz
contratou a CA. A empresa então, como fizera em campanhas anteriores,
orquestrou um exercício maciço de coleta de dados — incluindo “uma
superamostragem em nível nacional de até 50 mil” pessoas submetidas a
questionários todo mês. Combinando-a com dados disponíveis para
consulta livre, bem como dados que eles tinham reunido por meio de
aplicativos, determinaram quais eleitores estavam mais receptivos e, com
base na personalidade deles, elaboraram mensagens capazes de atraí-los
diretamente. Alguém com pontuação elevada em neuroticismo, por
exemplo, podia receber a fotografia de um ladrão invadindo uma casa
qualquer acompanhada por uma citação de Cruz dando apoio à propriedade
de armas para proteção pessoal.48
De um total de 17 candidatos, incluindo figuras bastante conhecidas e
altamente respaldadas como Jeb Bush e Marco Rubio, Ted Cruz venceu a
convenção do partido em Iowa. E isso a despeito de sua plataforma radical
que propunha a volta ao padrão ouro e negava a mudança climática. Cruz
seguiu em frente até se tornar o maior rival de Donald Trump. À medida
que a popularidade de Cruz minguava e a de Trump crescia, também os
Mercers mudaram o foco para o candidato anti-establishment em ascensão.
Em agosto de 2016, Trump se livrou de Paul Manafort como gerente de sua
campanha e levou Steve Bannon e a Cambridge Analytica para a disputa.
Até o dia da eleição, a CA coletara dados para campanhas presidenciais
consecutivas durante quase dezoito meses.
Por volta de 9 de novembro de 2016, já se justificava a satisfação dos
Mercers com o retorno do investimento. Por meio de indivíduos e
organizações que os apoiavam, tinham conseguido reconfigurar a esfera
pública digital, subverter a confiança na mídia tradicional, criar um novo
centro de gravidade hiperpartidário nos noticiários de direita e montar um
enorme banco de dados de eleitores norte-americanos, com o qual podiam
desafiar o poder do Partido Republicano e testar métodos experimentais
para modificar o comportamento do eleitorado. Deveríamos nos preocupar?
Talvez aceitar, isso sim, ou mesmo aplaudir os investimentos de Robert
Mercer. Afinal, eles tinham sido de uma eficácia assombrosa para auxiliá-lo
a atingir seus objetivos. Outros plutocratas gastam tanto dinheiro quanto ele
— ou mais — e conseguem exercer bem menos influência. No entanto, as
democracias passaram décadas, séculos até, em alguns casos, edificando
proteções contra indivíduos e interesses superpoderosos.
Plataformas digitais e de dados oferecem a indivíduos e organizações
meios para contornar princípios democráticos e a legislação, além de
levantarem a possibilidade de as eleições serem “compradas”. Dinheiro gasto
no apoio de campanhas orientadas por dados consegue ser escondido com
facilidade muito maior. Dados pessoais podem ser coletados, comprados,
combinados, analisados, modelados, usados e vendidos como um bem de
consumo. As empresas são capazes, se assim optarem, de tirar vantagem de
leis e regulamentações distintas mundo afora e tratar dados em offshore
como fazem com o dinheiro. De fato, a melhor maneira de pensar em dados
pessoais, em especial na política, é como moeda virtual — e paralela. Os
dados podem outorgar poder a um candidato ou partido, como o dinheiro.
São capazes de fornecer conhecimento detalhado dos eleitores, das questões
que consideram importantes e de como alcançá-los. Graças às redes sociais,
permitem que as campanhas mapeiem a personalidade das pessoas, seu
caráter, esperanças e temores, e então preparar mensagens sob medida
sabendo que seu público se identificará com elas. Um plutocrata com uma
quantidade prodigiosa de dados de eleitores, combinados com inteligência
analítica, consegue distribuí-los como faz com o dinheiro, escolhendo
franquear o acesso a um candidato e a outro não. Trata-se de mais uma fonte
de poder e clientelismo. Contudo, é muito difícil acompanhar a distribuição
desse clientelismo devido, em parte, à disposição das plataformas
tecnológicas de conspirarem com a falta de transparência.
A utilização de dados pessoais e plataformas digitais não tem como evitar
a ameaça a princípios e práticas democráticas existentes, sobretudo nos
Estados Unidos, onde a decisão jurídica na ação Cidadãos vs. Comissão
Eleitoral Federal afastou a maior parte das restrições remanescentes
envolvendo gastos com eleição. Existe agora uma gigantesca assimetria de
informação entre campanhas e eleitores individuais. A Cambridge Analytica
alardeava ter mais de 5 mil dados de cada eleitor; a i360, dos irmãos Koch,
declarava 1.800. O envio de mensagens políticas é mais eficaz, conta-nos a
teoria das comunicações, quando o receptor não percebe que ele é seu alvo.
Erguemos barreiras cognitivas ao sabermos que uma mensagem política faz
publicidade em vez de divulgar notícias, por exemplo, ou ao vermos um
anúncio não direcionado para nós. No entanto, hoje a assimetria vai muito
além disso. Graças aos rastros que deixamos no nosso passado digital, as
campanhas conseguem analisar a nossa personalidade e descobrir o que nos
faz vibrar. Com essa informação podem tentar evitar, se assim estiverem
propensas, o passageiro racional no nosso cérebro e ir direto para o elefante
emocional.
As democracias dependem de uma imprensa livre e heterogênea. Nela,
conforme rege a teoria, os cidadãos encontram notícias e informações aptos
a auxiliá-los na escolha de quem apoiarão. Contudo, pelo que consta, Mercer
e outros fizeram um esforço consciente e persistente no sentido de destruir a
confiança das pessoas na mídia tradicional — não em um veículo de
imprensa específico, ou em um jornalista, ou em um artigo, mas na mídia
inteira que não compartilhava do ponto de vista deles. Para isso, esses
plutocratas se dispuseram a apoiar uma abordagem às notícias que não as
considerava como uma tentativa de relatar os acontecimentos do dia da
forma mais íntegra possível dentro do tempo disponível, mas como uma
ferramenta para correr atrás de objetivos políticos. É o jornalismo como
busca de poder em vez de em busca da verdade.
Por esse ponto Mercer e outros que adotaram táticas semelhantes, como
os livre-extremistas descritos no capítulo anterior e os russos no capítulo
seguinte, representam o maior perigo aparente para a democracia. No anseio
nietzschiano de destruir o sistema atual, parecem dispostos a transformar
princípios e normas democráticos em danos colaterais. A melhor ilustração
disso aconteceu em novembro de 2013, quando o autor e historiador Ronald
Radosh perguntou a Steve Bannon o que ele queria dizer quando se
descrevia como “leninista”. “Lenin queria destruir o Estado e essa também é
a minha meta”, respondeu-lhe Bannon. “Quero causar a ruína disso tudo e
destruir todo o establishment de hoje.”49
Os plutocratas poderiam contrapor que eles, como as plataformas do Vale
do Silício, estão provocando a ruptura de um sistema que precisava ser
rompido; estão destruindo um “sistema corrupto” para criar outro novo e
melhor. Essa racionalização poderia ser justificada se eles estivessem
fazendo tudo às claras e prestando contas de seus atos. Todavia, agem por
fora do sistema, sem jamais serem eleitos ou buscarem a aprovação
democrática. Fazem o que fazem porque querem e por terem os recursos
financeiros necessários. E o fazem de tal modo que torna a responsabilização
quase impossível. Em muitos períodos da história recente, eles não seriam
capazes de usar o dinheiro que têm para sustentarem divisões, conflitos e
anarquias. No entanto, a revolução no sistema de informação global lhes tem
conferido uma oportunidade única proporcionada pelas plataformas
digitais. “A internet é a primeira coisa que a humanidade construiu e não
compreende”, disse Eric Schmidt, ex-presidente executivo do Google, “o
maior experimento em anarquia que já tivemos.”50 Onde Mercer liderou,
outros se seguirão.
1 GAUERT, Cecil. Sea Owl — the personal and enchanting 62m feadship. Boat International, 18

February 2017. A obra citada, em latim no original, é Princípios matemáticos da filosofia natural.
[N. do T.]
2 Hmmm. We can’t see missile lanchers... Yachting, 6 June 2013.

3 O autor escreveu para Robert Mercer, mas não obteve resposta.


4 Informações baseadas em registros públicos e relatos de pontos de vista dos envolvidos, entre os

quais se incluem, sem se restringir a (em ordem alfabética por autor): ACL. Robert L. Mercer
receives the 2014 Lifetime Achievement Award. Association for Computational Linguistics, 15
October 2014; CONFESSORE, Nicholas. How one family’s deep pockets helped reshape Donald
Trump’s campaign. New York Times, 18 August 2016; DELEVINGNE, Lawrence. Have Mercer! The
money man who helped the GOP win. CNBC, 4 November 2014; GOLD, Matea. The Mercers and
Stephen Bannon: how a populist power base was funded and built. Washington Post, 17 March
2017; GRAY, Rosie. What does the billionaire family backing Donald Trump really want? The
Atlantic, 27 January 2017; KUTNER, Max. Meet Robert Mercer, the mysterious billionaire benefactor
of Breitbart. Newsweek, 21 November, 2016; MALLABY, Sebastian. More Money than God: Hedge
Funds and the Making of a New Elite. London: Bloomsbury, 2011; Jane Mayer on Robert Mercer &
the dark money behind Trump and Bannon. Democracy Now!, 23 March 2017; MAYER, Jane. The
reclusive hedge-fund tycoon behind the Trump presidency. New Yorker, 27 March 2017; MIDER,
Zachary. What Kind of Man Spends Millions to Elect Ted Cruz? Bloomberg, 20 January 2016;
VOGEL, Henneth P.; SCHRECKINGER, Ben. The most poswerful woman in GOP politics. Politico, 7
September 2016; WARD, Vicky. The blow-it-all-up billionaires. Highline, 17 March 2017; ZARROLI,
Jim. Robert Mercer is a force to be reckoned with in finance and conservative politics. NPR, 26 May
2017.
5 Conforme documentado em: MAYER, Jane. Dark Money: How a Secretive Group of Billionaires Is

Trying to Buy Political Control in the US. London: Scribe UK, 2016.
6 O’KEEFE, James; GILES, Hannah. ACORN Prostitution Investigation — Part 1. Push Back

Now/YouTube, 10 September 2009. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?


v=9UOL9Jh61S8. Acesso em: 21 out. 2021, 15:21:22.
7 LAMBRO, Donald. BREITBART: The politicized art behind the ACORN plan. Washington Times,

21 September 2009.
8 House votes to strip funding for ACORN. Fox News, 17 September 2009.

9 HARSHBARGER, Scott. Proskauer, 2009 (artigo removido da web).

10 V. “Acorn Investigation” in Project Veritas. Disponível em: https://www.projectveritas.com/acorn/.

Acesso em: 6 maio 2022. 17:54:19.


11 Internet 2009 in Numbers. Pingdom. Disponível em:
https://royal.pingdom.com/2010/01/22/internet-2009-in-numbers/. Acesso em: 17 maio 2018. [Esta
fonte não está disponível no período da publicação desta obra em língua portuguesa. Contudo, foi
decidido por mantê-la para compreensão do leitor. (N. do E.)]
12 MEAD, Rebecca. Rage machine: Andrew Breitbart’s empire of bluster. New Yorker, 24 May 2010.

13 GREEN, Joshua. Devil’s Bargain: Steve Bannon, Donald Trump and the Storming of the White

House. London: Scribe UK, 2017.


14 RAINEY, James. Breitbart.com sets sights on ruling the conservative conversation. Los Angeles

Times, 1 August 2012.


15 Big Government (“governo grande”, em inglês) é expressão pejorativa para se referir a um governo

grande demais e ineficiente. Breitbart parece ter adotado o “Big” para dar títulos aos demais sites que
criou, dedicados à crítica conservadora aos artistas que apoiavam o Partido Democrata (Big
Hollywood), aos veículos da imprensa que ele pretendia suplantar (Big Journalism) e à cobertura de
questões de segurança nacional (Big Peace). [N. do T.]
16 MITCHELL, Amy; GOTTFRIED, Jeffrey; KILEY, Jocelyn; MATSA, Katerina Eva. Political Polarization

and Media Habits, Section 1: Media Sources — Distinct Favorites Emerge on the Left and Right.
Pew Research Center, 21 October 2014.
17 KAUFMAN, Leslie. Breitbart News Network plans global expansion. New York Times, 16 February

2014.
18 Veja, por exemplo: TATE, Kristin. Report: lice, scabies, disease at children’s immigration shelter on

Texas airbase, 2 June, 2014; TATE, Kristin. Illegal immigrants treated better than homeless in US, 17
June 2014; MAY, Caroline. Report: more than half of Central American immigrants on welfare, 8
July 2014; SHAPIRO, Ben. 8 reasons to close the border now, 8 July 2014; DARBY, Brandon. Leaked
CBP report shows entire world exploiting open US border, 3 August 2014; BOYLE, Matthew. Experts:
Ebola could cross unsecured US border, 8 August 2014; Breitbart News. Border States of America:
New documentary to highlight insecure border, rampant lawlessness in America, 13 October 2014;
LEE, Tony. Professor: Illegal immigrants make «American Dream” more difficult for all, 1 December
2014.
19 COHEN, Stanley. Folk Devils and Moral Panics: The Creation of the Mods and Rockers. London:

MacGibbon & Kee, 1972.


20 HANKES, Keegan. Breitbart under Bannon: how Breitbart became a favorite news source for neo-

Nazis and white nationalists. Southern Poverty Law Center, 1 March 2017. Para qualificar o tipo de
website que o Breitbart deixara de ser, o proprietário do Daily Stormer usa a gíria bastante ofensiva
cuckservative (aqui traduzida para “conservador”), junção de cuckold, “corno”, com conservative,
“conservador”. [N. do T.]
21 MADRIGAL, Alexis C. What Facebook did to American democracy. The Atlantic, 12 October 2017.

22 MALONE, Clare. Trump made Breitbart great again. FiveThirtyEight, 18 August 2016.

23 Breitbart News. Politico: Breitbart audience 18,7 million “conservative firebrands”. Breitbart, 10

July 2015.
24 GREEN, Joshua; ISSENBERG, Sasha. Inside the Trump Bunker, with days to go. Bloomberg, 27

October 2016.
25 GREEN, loc. cit., 2017.

26 MONTOPOLI, Brian. Propaganda clothed as critique. Columbia Journalism Review, 23 March

2005.
27 VOGEL, Henneth P.; SCHRECKINGER, Ben. The most powerful woman in GOP politics. Politico, 7

September 2016.
28 Media Research Center. Battle Tested, Battle Ready. Annual Report, 2015.

29 FARIS, Rob; ROBERTS, Hal; ETLING, Bruce; BOURASSA, Nikki; ZUCKERMAN, Ethan; BENKLER,

Yochai. Partisanship, Propaganda, and Disinformation: Online Media and the 2016 US Presidential
Election. Berkman Klein Center, 16 August 2017.
30 NIX, Alexander. CEO, Cambridge Analytica — Online Marketing Rockstars Keynote OMR 17.

OMR/YouTube, 10 March 2017. Disponível em: https://youtube.com/watch?v=6bG5ps5KdDo.


Acesso em: 25 out. 2021, 11:28:47.
31 Em inglês, “From Mad Men to Math Men”. O título da palestra contém referências explícitas à série

citada. [N. do T.]


32 MEYER, Josh. Cambridge Analytica boss went from “aromatics” to psyops to Trump’s campaign.

Politico, 22 March 2018.


33 SCL Elections, 26 January 2013. Disponível em:
https://web.archive.org/web/20130126021428/http:/sclelections.com/. Acesso em: 25 out. 2021,
16:40:31.
34 PAULSON, Steve. Former presidential advisor reveals how Obama changed the campaign.

Wisconsin Public Radio, 16 September 2015.


35 Data Brokers: A Call for Transparency and Accountability. Federal Trade Commission, May 2014.

Os consumidores “em grande parte não têm consciência de que há empresas coletando e usando
essa informação”, p. iv.
36 ALLEN, Mike; VOGEL, Kenneth P. Inside the Koch data mine. Politico, 8 December 2014.

37 WARD, John. The Koch brothers and the Republican Party go to war - with each other. Yahoo!, 11

June 2015. Inclui a citação à “guerra total”.


38 HAIDT, Jonathan. A mente moralista. Rio de Janeiro: Alta Cult, 2020.

39 V., em especial, BAKKER, Bert N.; ROODUIJN, Matthijs; SCHUMACHER, Gijs. The Psychological

Roots of Populist Voting: Evidence from the United States, the Netherlands and Germany. European
Journal of Political Research, 55:2, p. 302-20, 2016; BARBARANELLI, Claudio; CAPRARA, Gian
Vittorio; VECCHIONE, Michele; FRALEY, Chris R. Voters’ Personality Traits in Presidential Elections.
Personality and Individual Differences, 42:7, p. 1199-1209, 2007; COOPER, Christopher A.;
GOLDEN, Lauren; SOCHA, Alan. The Big Five Personality Factors and Mass Politics. Journal of
Applied Social Psychology, 43:1, p. 68-82, 2013; GERBER, Alan S.; HUBER, A. Gregory; DOHERTY,
David; DOWLING, Conor M.; HA, Shang E. Personality and Political Attitudes: Relationships across
Issue Domains and Political Contexts. American Political Science Review, 104:1, p. 111-33, 2010;
GERBER, Alan S.; HUBER, Gregory A.; DOHERTY, David; DOWLING, Conor M. Personality and the
Strength and Direction of Partisan Identification. Political Behavior, 34:4, p. 653-88, 2012;
MCCRAE, Robert R.; JOHN, Oliver P. An Introduction to the Five-Factor Model and Its Applications.
Journal of Personality, 60:2, p. 175-215, 1992; MONDAK, Jeffery J. Personality and the
Foundations of Political Behavior. New York: Cambridge University Press, 2010.
40 GALLEGO, Aina; PARDOS-PRADO, Sergi. The Big Five Personality Traits and Attitudes towards

Immigrants. Journal of Ethnic and Migration Studies, 40:1, p. 79-99, 2014.


41 MONDAK, Jeffery; HALPERIN, Karen D. A Framework for the Study of Personality and Political

Behaviour. British Journal of Political Science, 38:2, p. 335-62, 2008.


42 V. KOSINSKI, Michal; MATZ, Sandra C.; GOSLING, Samuel D; POPOV, Vesselin; STILLWELL, David.

Facebook as a Research Tool for the Social Sciences: Opportunities, Challenges, Ethical
Considerations, and Practical Guidelines. American Psychologist, 70:3, p. 543-56, 2015. Com a
suplementação de entrevista telefônica com David Stillwell, 11 October 2017.
43 KOSINSKI, Michal; STILLWELL, David; GRAEPEL, Thore. Private Traits and Attributes are Predictable

from Digital Records of Human Behavior. Proceedings of the National Academy of Sciences,
110:15; p. 5802-5, 2013; V. também YOUYOU, Wu; KOSINSKI, Michal; STILLWELL, David. Computer-
Based Personality Judgments Are More Accurate than Those Made by Humans. Proceedings of the
National Academy of Sciences, 112:4, p. 1036-40, 2015.
44 SELLERS, Frances Stead. Cruz campaign paid $750,000 to «psychographic profiling» company.

Washington Post, 19 October 2015.


45 ISSENBERG, Sasha. Cruz-connected data miner aims to get inside US voters’ heads. Bloomberg, 12

November 2015.
46 BANKS, Arron. The Bad Boys of Brexit. London: Biteback, 2016.

47 BANKS, Arron in @Arron_banks, Twitter, 30 January 2017. Disponível em:


https://twitter.com/arron_banks/status/826092291467132928?lang=en. Acesso em: 21 maio 2018.
48 HAMBURGER, Tom. Cruz campaign credits psychological data and analytics for its rising success.

Washington Post, 13 December 2015.


49 RADOSH, Ronald. Steve Bannon, Trump’s top guy, told me he was «a leninist”. Daily Beast, 22

August 2016.
50 TAYLOR, Jerome. Google chief: my fears for Generation Facebook. Independent, 17 August 2010.
Estados: o modelo russo

Serão empreendidos esforços nesses países para tumultuar a autoconfiança nacional, tolher
as medidas de defesa nacional, aumentar a inquietação social e industrial, estimular todas as
formas de desunião.
George Kennan, telegrama ao Departamento de Estado, 1946

Vladimir Putin exibiu um sorriso sarcástico ao ouvir a jornalista Megyn Kelly,


da NBC, relacionar múltiplas alegações de interferência russa em
democracias estrangeiras no Fórum Econômico Internacional de São
Petersburgo em junho de 2017. Os especialistas dizem que “não se trata de
um fator apenas, mas de uma centena deles apontando para a Rússia”,
relatou Kelly para o presidente russo. “É a retórica, são as marcas digitais
exclusivas, são os endereços de IP, o malware, as chaves de criptografia, os
trechos específicos dos códigos...”. Putin esperou a tradução pelos fones de
ouvido antes de retrucar: “Que marcas digitais exclusivas?”, perguntou,
provocando risos na plateia. “Do que você está falando? Endereços de IP
podem ser inventados, você sabe que existem muitos especialistas capazes de
inventá-los ou reformulá-los, sabe que uma das nossas crianças consegue
fazer isso”. Então, em um aparte desnecessário e levemente sinistro, Putin
referiu-se à filhinha de Kelly. “Sua menina”, disse ele, “com 3 anos de idade,
consegue perpetrar um ataque desses.”1
A refutação de Putin pareceu extraordinária tendo em vista o tamanho e
os detalhes dos registros de ocorrência contra a Rússia. Além de hackear
quase 20 mil e-mails do Partido Democrata nos Estados Unidos, sem falar
na conta Gmail de John Podesta, diretor da campanha de Hillary Clinton, a
inteligência russa fora acusada de hackear partidos, políticos e ministros de
governo em toda a Europa. Presumia-se que grupos russos, descritos como
Advanced Persistent Threat [Ameaça Persistente Avançada], APT 28 e APT
29, tinham hackeado o Comitê Democrático Nacional. Ambos foram
culpados por invasões cibernéticas na Alemanha, Noruega, França e
Dinamarca. Supôs-se que em 2015, na Alemanha, o APT 28 hackeou a
chanceler Angela Merkel e 15 colegas dela do Bundestag. No mesmo ano e
ao longo de 2016, o APT 28 foi acusado de hackear e-mails e servidores dos
ministérios da defesa e do exterior dinamarqueses. No início de 2017, a
inteligência norueguesa acusou o APT 29 de hackear o ministério do
exterior e o serviço de inteligência (o PST), bem como o Partido Trabalhista
Norueguês. Em maio de 2017, pouco antes de se abrirem as urnas para a
eleição francesa, a equipe de campanha de Emmanuel Macron declarou-se
vítima de uma invasão “maciça e coordenada”. O APT 28 mais uma vez foi
culpado, agora pela empresa de ciberinteligência Flashpoint.2
Além disso tudo, supunha-se que as invasões fossem apenas a ponta do
iceberg. Eram vistas simplesmente como um elemento da guerra de
informação muito mais ampla que a Rússia travava para destruir as
democracias mundo afora. Isso incluía o emprego de pessoas para publicar
artigos, postar em blogues e tuítes direcionamentos para a promoção de
divisão, desarmonia e discórdia políticas em outros países. Fábricas de
desinformação como a Internet Research Agency [Agência de Pesquisa da
Internet], localizada na Rua Savushkina, 55, em São Petersburgo, foram
acusadas de buscar deliberadamente destruir a confiança nos sistemas
democráticos, de disseminar inverdades maldosas por plataformas como
Facebook, YouTube, Instagram e Twitter, e de promover conflitos entre
grupos sectários. Ademais de suas extensas atividades durante a eleição
norte-americana, esses trolls e robôs russos foram acusados de interferir
durante a campanha para o referendo do Reino Unido em relação à União
Europeia, nas eleições nacionais subsequentes da Holanda e da França, e no
referendo sobre a independência da Catalunha. Um estudo encomendado
pelo Partido Democrata e publicado em janeiro de 2018 examinou
afirmações de que 19 países — dos Estados Unidos aos países bálticos —
tinham sido submetidos à interferência russa ativa.3
Essas campanhas desiguais de guerra da informação recebiam então
oxigênio e credibilidade dos veículos noticiosos internacionais da Rússia, o
RT (Rússia Today) e o Sputnik. Na Itália, antes de um voto de referendo
fundamental no fim de 2016, o La Stampa noticiou que o RT transmitira
uma gravação ao vivo dos “manifestantes anti-Renzi [Matteo Renzi, então
primeiro-ministro italiano] concentrados em Roma” para 1,5 milhão de
espectadores via Facebook. Na verdade, eles tinham ido às ruas a favor de
Renzi. Na Alemanha, antes da eleição de setembro de 2017, o RT deu plena
voz ao AfD. No Reino Unido, depois do envenenamento de Sergei Skripal,
em março de 2018, com uma substância que ataca os nervos chamada
Novichok, um colunista trabalhando para o Sputnik alegou que talvez os
responsáveis fossem os britânicos. “Considerando seu inveterado propósito
antirrusso”, escreveu Finian Cunningham, “as autoridades britânicas têm
muito mais interesse em ver Skripal envenenado que o Kremlin jamais
teve”.4
Putin, no entanto, negou repetidas vezes qualquer envolvimento ou
interferência nociva da parte do Estado russo nos negócios de outros países.
Via de regra, fez isso com uma indiferença despreocupada e confiante. Antes
de rejeitar as afirmações de Megyn Kelly, ele — ou quem falasse em seu lugar
— negara qualquer envolvimento da Rússia com o Brexit. “Não era assunto
nosso”, disse ele em São Petersburgo em junho de 2016. Afirmações de que a
Rússia hackeara partidos políticos franceses não se baseavam em fatos, disse
Putin em Versailles, ao lado de Emmanuel Macron. Reagindo à acusação da
Dinamarca, Dmitri Peskov, seu porta-voz, respondeu: “A Rússia não faz
ataques hackers”. Depois que o conselheiro especial norte-americano Robert
Mueller denunciou a Internet Research Agency diretamente, Peskov
declarou: “Não há nenhum indício de que o Estado russo esteja envolvido;
não há nem pode haver”. Toda vez que uma nova alegação pipocava, Putin
ou seu porta-voz a rejeitava, dizendo não haver nenhuma prova relacionada
à interferência ao Kremlin e indagando que motivo o Estado russo poderia
ter para fazer esse tipo de coisa.5
As negações de Putin se pareciam com recusas descaradas e flagrantes de
reconhecer a montanha crescente de evidências. Todavia, em pelo menos
um sentido, ele tinha razão: havia pouquíssimas conexões diretas entre o
Kremlin e os muitos e variados esforços de hackear ou manipular as
democracias ocidentais. Antes de 2018, as agências de inteligência norte-
americanas tinham feito inúmeras afirmações, mas apresentado poucas
provas técnicas. Quando a Associated Press quis saber do chefe de segurança
cibernética francesa, Guillaume Paupard, quem hackeara a campanha
presidencial de Emmanuel Macron em maio, a resposta que ouviu fazia eco
à declaração de Putin a Megyn Kelly: a invasão pré-eleição francesa, disse
ele, “fora tão genérica e simples que poderia ter sido empreendida por
praticamente qualquer pessoa”.6 As operações na rua Savushkina, 55, eram
custeadas por Yevgeni Prigozhin, empresário da área de restaurantes e
serviços de bufê. Apesar de conhecido como “chef de Putin”, ele não
mantinha relações formais com o governo russo.
Por que é tão difícil vincular o Kremlin a uma campanha de guerra de
informação agressiva, multifacetada e global? Presumindo a
responsabilidade da Rússia no caso, qual a motivação de Putin para tentar
prejudicar as democracias mundo afora? E por que a Rússia adotou essa
abordagem — empregando pirataria cibernética, desinformação e
propaganda propositalmente desagregadora para destruir a confiança nos
sistemas políticos de outros países? A maioria das pessoas foi convencida
pelas evidências de que o Estado russo estava no comando de uma ampla
interferência em Estados estrangeiros, mas coçou a cabeça tentando
compreender sua motivação e a base lógica que explicasse o modus operandi.
Entender por que Putin agiu como agiu, por que adotou os métodos que
adotou e para onde a guerra de informação russa poderia estar levando
implica investigar o passado da Rússia soviética, explorar as forças que
moldaram a experiência e a cosmovisão de Putin e mapear a ascensão da
nova Rússia nacionalista que emergiu após a virada do século XXI.
Acabamos descobrindo que Putin e seus serviços de inteligência não
perceberam, como faria um vilão onisciente a acariciar seu gato nas histórias
de James Bond, de que modo utilizar a tecnologia moderna para manipular
eleições democráticas. Em vez disso, ele e seu regime retrocederam para
uma perspectiva global mais característica do século XX que do XXI — uma
perspectiva soviética obscura e paranoica que enxerga conspirações contra a
Rússia provenientes de todas as direções. Como reação a essas
“conspirações”, Putin e sua corte adotaram abordagens e métodos que lhes
eram familiares por causa do passado. A diferença é que as abordagens e os
métodos deles — muitos de notória semelhança com os da época da Guerra
Fria — funcionavam bem melhor no mundo do Facebook, do Instagram, do
YouTube e do Twitter. Se antes as operações levavam meses ou anos para
serem preparadas e desenvolvidas, na era digital demoram horas, minutos
até. Se antes a propaganda e a desinformação exigiam premeditação
detalhada e planejamento completo, eles agora podem ser programados para
funcionar em contas de redes sociais. Se antes o serviço de inteligência
soviético costumava ter um enorme trabalho para cobrir o próprio rastro e
evitar que fosse descoberta a fonte das ações, o anonimato e a
impossibilidade de imputação constituem características intrínsecas das
plataformas tecnológicas modernas. Não que os russos tenham descoberto a
fórmula para fazer política na rede; o fato é que seus métodos testados e
provados são muito mais eficazes agora do que costumavam ser.
Explicar motivações e métodos russos tranquiliza e perturba ao mesmo
tempo. Tranquiliza saber que a Rússia não descobriu como manipular as
democracias. Mas é perturbador saber quanto a tecnologia moderna é eficaz
para abalar a política — em especial a política democrática. Ainda mais
nefasto é constatar que outros Estados têm visto o impacto político causado
pela Rússia ao empregar essas plataformas e chegado à conclusão de que a
guerra da informação será uma característica do mundo do século XXI. Para
alguns Estados, como na Escandinávia, isso significa edificar defesas
próprias contra a ação de hackers e a desinformação. Para outros, significa
desenvolver capacidades ofensivas, desde exércitos nacionais de robôs até
hackers patrocinados pelo Estado. Talvez venhamos a considerar 2016 como
o ano em que a Rússia deu o primeiro tiro em uma corrida armamentista de
informação global, em que o nosso espaço digital está em permanente
estado de conflito, em que Estados travam batalhas em plataformas virtuais e
em que a política democrática se torna vítima de danos colaterais.
Antes de nos martirizarmos pelo futuro, precisamos entender como
chegamos aonde estamos hoje. Precisamos investigar por que a Rússia agiu
como agiu, e o que a levou a considerar justificável sua ofensiva de
informação contra o Ocidente. Para responder a essas perguntas, temos de
retroceder cinquenta anos, até o auge da Guerra Fria, um tempo em que a
informação fora de fato convertida em arma.
O lago Negro é um lindo acúmulo de águas glaciais aninhado na floresta da
Boêmia, próximo à fronteira tcheca com a Alemanha. Em “Ballad of the
Black Lake” [“Balada do lago Negro”], o poeta Jan Neruda chamou-o de
“local de repouso dos nossos heróis tchecos” e “assembleia de antigos
deuses”. Pouco depois das 2 horas da manhã de uma noite límpida, quase no
fim de maio de 1964, Ladislav Bittman e sua pequena equipe de
mergulhadores vestiram o equipamento de mergulho e nadaram até o fundo
do lago. Ali, entre 4 e 9 metros de profundidade, depositaram quatro caixas
de metal. Em seguida, cobriram-nas parcialmente de lama para dar a
impressão de estarem ali havia anos. Cada caixa estava repleta de papéis —
todos em branco. Seis semanas mais tarde, Bittman retornou ao local, dessa
vez acompanhado de integrantes do núcleo jornalístico da TV Czechoslovak
a fim de gravarem um filme sobre lendas do lago tcheco. A equipe de TV
não sabia do mergulho noturno anterior, nem quem era o verdadeiro
empregador de Bittman. Pouco depois de iniciarem a filmagem, Bittman e
outros quatro mergulhadores “descobriram” as caixas. A partir desse
instante, ele escreveu mais tarde, “o carrossel de propaganda partiu a toda
velocidade”.7
Aos 32 anos de idade na época, Bittman integrava o serviço de
inteligência tcheco, trabalhando no “Departamento D”, seu departamento de
desinformação ou “propaganda enganosa”. O departamento funcionava
como satélite do Departamento para Medidas Atividades da KGB e fora
criado — como outros na Europa Oriental — com o intuito de ajudar a
União Soviética a perturbar e dividir os Estados Unidos e outros países da
OTAN. A “fábrica de desinformação” tcheca, como a chamava Bittman,
organizou centenas de campanhas na década de 1960, como fizeram os
escritórios correlatos na Europa Oriental e aquele do qual ela se originou,
em Moscou. Cada departamento desses, embora detentor de certo grau de
autonomia, trabalhava em favor de um conjunto de narrativas desenhadas
pelo Kremlin. O alvo da propaganda era voltar a opinião pública contra os
líderes e as políticas dos principais inimigos do bloco oriental — os Estados
Unidos e seus aliados —, desacreditá-los, intensificar a discórdia e a
desconfiança e criar divisões entre eles e a comunidade internacional. As
operações poderiam utilizar quaisquer métodos que funcionassem —
falsificações, boatos, grupos de fachada, narrativas inventadas — com uma
única condição: não se poderia chegar a sua fonte seguindo-lhes os rastros.
As caixas do lago Negro foram içadas — devido às preocupações de que
talvez contivessem explosivos — e não foram abertas, mas transportadas
direto para Praga. A descoberta em si provocou grande interesse público,
graças em parte à filmagem dos mergulhadores emergindo do lago e levando
consigo misteriosas caixas lacradas — registro gravado de maneira muito
prestativa pela equipe de filmagem independente. A história causou
sensação internacional quando o ministério do interior anunciou que as
caixas continham documentos nazistas da Segunda Guerra Mundial.
Não era verdade; as páginas estavam em branco. Sem revelar nenhuma das
páginas em público, o ministério então providenciou na surdina que
documentos nazistas reais fossem transferidos de Moscou e substituíssem
aqueles em branco dentro de cada caixa. O processo levou meses, já que
muitos apresentavam notas em cirílico rabiscadas nas margens. Cada página
precisou ser laboriosamente removida ou examinada antes que se tornasse
pública. Até que em setembro, com grande ostentação, o ministério abriu as
portas a uma grande entrevista coletiva para órgãos de imprensa, aos quais
concedeu acesso aos documentos.
Era a “Operação Netuno” em andamento. Foi a campanha de
desinformação mais bem-sucedida da Tchecoslováquia na Guerra Fria. Fora
projetada para desacreditar o governo da Alemanha Ocidental, abrir feridas
dolorosas envolvendo o recente passado nazista da Alemanha e prolongar o
julgamento de crimes de guerra nazistas. A maior parte desses objetivos foi
atingida. Esta foi também uma das raras ocasiões em que uma operação de
desinformação teve transmissão internacional pela TV. Uma farsa
inteligente, bem planejada e bem executada, digna de um romance de John
Le Carré. Essa foi uma entre centenas de operações, a vasta maioria
alcançando sucesso bem menor.
Inteligência, propaganda e desinformação eram inerentes ao sistema
soviético, e sempre foi assim desde sua criação. A Cheka, ou “Comissão
Extraordinária”, foi criada por Lenin imediatamente após a revolução de
1917 com o objetivo de proteger o novo regime da contrarrevolução.
Vigilância e coleta de informação eram essenciais para o atendimento de
suas funções originais. Ainda em 1923, Felix Dzerzhinsky, um terrível
ideólogo bielorrusso de nascimento, indicado por Lenin como o primeiro
dirigente do serviço, inaugurou um escritório dedicado à desinformação.
Sucessor da Cheka, o NKVD usava falsidades, invencionices e difamações
para ajudar Stalin a arquitetar e executar o expurgo soviético e julgamentos
públicos na década de 1930. Mas foi a KGB, “neta” da Cheka de
Dzerzhinsky, que investiu enormes quantidades de tempo, energia e esforços
na coleta, produção e disseminação de propaganda e desinformação. Como
descreveu um ex-general de divisão soviético, a desinformação era “o
coração e a alma” do serviço secreto, seu modo de continuar a travar a
Guerra Fria quando a destruição mutuamente assegurada impedia o
confronto militar direto com os Estados Unidos ou seus aliados.8 Tão
importante era a desinformação — em todas as suas formas — que em 1958,
quando a KGB estabeleceu um Departamento para Medidas Ativas em
Moscou, esta era uma de suas principais responsabilidades. Uma vez
instaurado o departamento em Moscou, unidades satélites foram montadas
em toda a Europa Oriental no início dos anos 1960, entre elas a de Bittman.
Em consequência dos recursos e da atenção a eles dedicados, os serviços
de inteligência soviéticos se tornaram muito habilidosos. A fim de terem
sucesso, trabalharam muito. A desinformação precisava ter alguma base em
fatos ou corresponder a uma crença de ampla aceitação. Deveria combinar
com narrativas predominantes na população-alvo, tirar partido dos
preconceitos do povo e alimentar desconfianças inatas. Para ser crível, tinha
de parecer oriunda de fontes confiáveis — de preferência, a certa distância
do local em que de fato se originou. Para causar impacto, devia ser
disseminada o mais longe possível e ser repetida com regularidade.
A reiteração da mesma notícia — ainda que inteiramente fabricada —
acabaria penetrando na mente das pessoas e adquirindo um senso de
veracidade. O sinal definitivo de sucesso era quando alguém passava a crer
no que se desejava que essa pessoa acreditasse, mas achando que tudo não
passava de conclusão própria. Os russos tinham inclusive um termo para
isso: “controle reflexivo”. Distância e inadmissibilidade eram cruciais para o
sucesso do controle reflexivo. Como disse Felix Dzerzhinsky a todos os
integrantes do serviço secreto: “Todo membro da Cheka precisa de coração
apaixonado, cabeça fria e mãos limpas”.
O propósito da propaganda e da desinformação da Guerra Fria soviética
era debilitar e desmoralizar o inimigo, limitar seu poder de causar danos à
URSS e semear divisão entre a população. Para os soviéticos, qualquer coisa
que abatesse o vigor de seus oponentes, em especial os Estados Unidos,
aumentava a força e a sustentabilidade da União Soviética e fomentava o
sentimento pró-soviético no exterior. Debilitar o inimigo significava
identificar e explorar vulnerabilidades em seu sistema, abrindo e ampliando
as feridas políticas e as fissuras sociais, destacando hipocrisias e acentuando
o sectarismo. Isso significava ser oportunista, tirar vantagem de crises
políticas e acontecimentos programados como eleições e referendos, e
promover personalidades desagregadoras e grupos extremistas. Toda
propaganda deveria operar no sentido do objetivo de longo prazo de
destruir a legitimidade do governo adversário e a integridade de seu sistema
político. Essa era, e tinha a intenção de ser, a busca da guerra via outros
meios. Era a guerra psicológica, segundo a definição de Jacques Ellul em seu
eminente estudo de propaganda de 1962: “Nela [na guerra psicológica] o
propagandista lida com um adversário estrangeiro cuja moral ele procura
destruir por meios psicológicos, de modo que o oponente comece a duvidar
da validade de suas convicções e atos”.9
A KGB, por exemplo, tinha plena consciência das divisões raciais nos
Estados Unidos. Da década de 1960 até meados da década de 1980, lançou
mãos de fossem quais fossem os meios possíveis para provocar e inflamar
essas divisões. Sabemos disso graças a cópias de arquivos da inteligência
secreta surrupiados da Rússia pelo arquivista Vasili Mitrokhin, da KGB,
pouco depois do fim da Guerra Fria. Após o assassinato de Martin Luther
King, em 1968, a KGB espalhou boatos de que ele fora executado por
racistas brancos com o apoio de autoridades norte-americanas. Em
setembro de 1980, um memorando forjado pelo Conselho de Segurança
Nacional e endereçado ao presidente vazou para diversas estações de rádios
afro-americanas e um grupo seleto de jornalistas norte-americanos.
O memorando falso propunha o apoio norte-americano ao apartheid da
África do Sul, a vigilância de líderes negros norte-americanos, mais “um
programa especial pensado para perpetuar divisões no movimento negro”
dos Estados Unidos. O objetivo da desinformação era duplo — incitar o
ódio contra o governo entre norte-americanos negros e desacreditar o
conselheiro linha-dura de segurança nacional antissoviético, Zbigniew
Brzezinski. Antes das Olimpíadas de 1984 em Los Angeles, agentes
soviéticos posicionados em Washington enviaram cartas, propositalmente
da Ku Klux Klan, para os comitês olímpicos dos países africanos e asiáticos.
“As Olimpíadas — só para brancos”, diziam as cartas. “O prêmio mais
cobiçado para um verdadeiro patriota norte-americano”, continuavam, “seria
o linchamento de um macaco africano.” Essas falsificações tinham o intuito
de constranger os Estados Unidos e fomentar o ódio racial na véspera das
Olimpíadas (que a Rússia decidira boicotar).10
Muitas dessas campanhas fizeram sucesso apenas limitado, ou passageiro.
De vez em quando, uma ou outra “colava” e se mostrava bem mais
duradoura. Na Índia, em 1962, o oficial da inteligência soviética Ilya
Dzhirkvelov fora instruído pelos empregadores — a KGB — a ajudar no
lançamento de um jornal. Chamado The Patriot, o jornal tinha a intenção de
ser um veículo para propaganda ou desinformação soviética, dada a
dificuldade habitual de se inserir determinadas “notícias” na imprensa não
soviética. Nos anos 1960 e 1970, ele publicou ocasionalmente artigos críticos
aos Estados Unidos e a favor do não alinhamento. Mas só depois de duas
décadas de sua criação o jornal desempenhou seu papel mais efetivo — e
destrutivo — para a KGB. Em julho de 1983, o Patriot publicou uma carta —
ostensivamente de autoria de um cientista e antropólogo norte-americano
— contendo a falsa afirmação de que o vírus da AIDS se originara em
experimentos do Pentágono para desenvolver novas armas biológicas.
A KGB plantou a carta como parte de uma operação concebida com todo
cuidado, chamada “Operação Infekção”. A princípio a carta foi bastante
ignorada, porém dois anos mais tarde um semanário soviético, o
Literaturnaya Gazeta, publicou um artigo mais longo sobre a história da
AIDS em que se referia às afirmações veiculadas pelo Patriot.
Avance rápido para seis meses depois, abril de 1986. Uma multidão de
representantes da mídia soviética e uma quantidade cada vez maior de
veículos de imprensa internacionais começaram a retomar a história e a
reportá-la como notícia — sendo os mais notáveis a TASS (agência noticiosa
oficial do governo soviético), o Pravda (jornal oficial do Partido Comunista)
e a agência de notícias Novosti (o segundo serviço noticioso oficial). Ao
embuste foi então concedido um novo — e internacional — estímulo, graças
a uma reportagem publicada em setembro por Jacob Segal em Harare,
Zimbabwe, intitulada “AIDS — sua natureza e origem”. Segal era um
biofísico alemão oriental de 76 anos estabelecido em Berlim (apesar de a
mídia soviética se referir repetidas vezes a ele como pesquisador francês,
supõe-se que para lhe conferir maior credibilidade). O artigo de Segal
bastou para fazer viralizar a notícia, então publicada por jornais do Cairo a
Buenos Aires.
Como acontece em toda desinformação bem-sucedida, alguns elementos
da história tinham fundamento. Na década de 1980, duas organizações
governamentais norte-americanas empreendiam pesquisas para encontrar a
cura para a AIDS em Fort Detrick, endereço do centro de pesquisa e
desenvolvimento de guerra biológica do Exército de 1943 a 1969. O resto
fora inventado. Contudo, isso bastou para a KGB fabricar uma narrativa
desagregadora e corrosiva que subsistiu por décadas. Um estudo de 2005
descobriu que mais de um quarto dos afro-americanos acreditava que a
AIDS fora produzida em um laboratório do governo norte-americano.11
Muitas outras tentativas soviéticas de distorcer, dividir e tumultuar a
política dos adversários tiveram impacto bem menor. Sobretudo no caso das
diversas tentativas de interferir nas eleições norte-americanas. Desde ofertas
para ajudar, por parte do embaixador soviético, nas campanhas presidenciais
de John F. Kennedy e Adlai Stevenson em 1960 (recusadas), passando pelos
oferecimentos russos fracassados de subsidiar a campanha presidencial de
Hubert Humphrey em 1968, até os esforços empreendidos para inviabilizar
Ronald Reagan durante as primárias em 1976, as tentativas soviéticas de
influenciar as eleições norte-americanas tiveram efeito bastante escasso.
Inclusive em 1982, quando Yuri Andropov, o extrovertido presidente da
KGB, disse a seus agentes que “era dever de todo oficial de inteligência
estrangeira, quaisquer que fossem os limites de sua alçada ou departamento,
participar de medidas ativas” para desacreditar as políticas da administração
Reagan, seus esforços conseguiram bem pouco efeito.
O mais difícil de tudo era disseminar e amplificar a propaganda em larga
escala. O acesso ao público estrangeiro era controlado pela mídia doméstica
— TV, rádio e jornais. Se os soviéticos queriam exercer alguma influência,
tinham de publicar no exterior. Por isso fundaram e subsidiaram jornais
como o Patriot na Índia, e passaram a cultivar relações com jornalistas,
editores e acadêmicos. Mas esse foi um processo longo e trabalhoso, com
muitas oportunidades de fracasso. Mesmo quando a inteligência soviética
conseguia fazer publicar alguma coisa em um veículo de imprensa
estrangeiro, difundir a mensagem causava tensão idêntica. Podia-se contar
com fontes de notícias russas oficiais, como a TASS e a Novosti para
republicarem os relatos, mas elas eram vistas com desconfiança por quem
estava fora do bloco soviético. Agentes da KGB sofriam pressão para
participar de extensas campanhas de envio de correspondência para os
jornais, passando-se por trabalhadores contrariados. Mas, outra vez, isso
exigia um trabalho exaustivo e tinha sucesso apenas esporádico. Plantar uma
narrativa que saltasse da mídia impressa para o broadcasting era coisa rara a
ponto de se poder considerá-la em extinção. Portanto, os soviéticos
anteriores à internet reconheciam que a desinformação, se tivesse de
funcionar, precisava fazer parte de uma estratégia de longo prazo. Como
escreveu Ladislav Bittman: “Uma única ação secreta [...] não consegue
oscilar o equilíbrio de poder, [mas] a produção em massa de medidas ativas
terá efeito cumulativo importante ao longo de um período de várias
décadas”.

Na época da eleição norte-americana de 1984, Vladimir Putin estava na


KGB havia quase uma década, tendo sido recrutado durante seu quarto ano
na Universidade de Leningrado. Ali permaneceria até 1990, quando saiu
para trabalhar com o prefeito da cidade (mais tarde rebatizada de São
Petersburgo). Voltou a chefiar o serviço de inteligência russo (mais tarde
chamado de FSB) em 1998 e sucedeu Boris Yeltsin na presidência em 2000.
Antes de se tornar líder, portanto, Putin passou grande parte da carreira
dentro dos serviços de inteligência, ou pelo menos intimamente conectado a
eles. Poucos chefes de Estado contemporâneos se comparam ao presidente
russo em termos de experiência ou conhecimento em operações secretas.
Adolescente, Putin não tinha a menor dúvida do que fazer da própria
vida. O serviço secreto soviético o fascinava de tal forma que sua primeira
tentativa de trabalhar para ele aconteceu em 1968, ainda com 16 anos. Como
escreve Masha Gessen em sua fascinante biografia do presidente russo, era
uma época em que os programas de televisão e os livros populares
apresentavam a KGB como algo emocionante e glamouroso. O encarregado
de recrutamento que atendeu o adolescente aconselhou-o a ir para a
universidade ou se alistar no Exército; o serviço secreto entraria em contato
caso precisasse dele. Putin acatou o conselho e foi aceito na Universidade
Estadual de Leningrado, onde estudou direito. No quarto ano, o serviço
secreto foi até a universidade e o recrutou.
Em seus anos de formação — desde que Putin se candidatou pela
primeira vez a um posto na KGB até completar 30 e poucos anos —, a
inteligência soviética viveu seu apogeu em atividade internacional. Sob a
liderança de Yuri Andropov, o serviço aumentou significativamente o
planejamento e a execução de medidas ultramarinas ativas. Andropov tinha
especial inclinação por teorias da conspiração, vendo os Estados Unidos por
trás de quase toda atividade antissoviética. Acreditava que os desertores da
União Soviética não a haviam abandonado de verdade, mas tinham sido
vítimas de sequestro por parte da CIA. Achava que a Primavera de Praga de
1968 fora orquestrada por Washington. Os grupos de direitos humanos não
passavam de organizações de fachada tentando destruir a URSS. Em
resposta a essas aparentes ameaças, o presidente da KGB preparou uma série
de intervenções estrangeiras ambiciosas, até mesmo inconsequentes. Entre
elas, um golpe de Estado na Grécia, a interferência na investidura do
príncipe Charles em Gales e a sabotagem de um grande oleoduto na Áustria.
Cada uma dessas intervenções acabou sendo abandonada por medo de que
fosse possível seguir-lhes o rastro até a Rússia. Todavia, várias outras
medidas foram efetivadas, como o envio de armas para o IRA, o grupo
separatista basco ETA e a Facção Alemã do Exército Vermelho, além de
tentativas de difamar políticos norte-americanos. Para Andropov, qualquer
coisa que causasse desacordo e inquietação de políticos fora da Rússia
favorecia o país, desde que nenhum rastro apontasse para ele. Ou seja,
Andropov adotava táticas de guerrilheiros, reconhecendo a crescente
assimetria de poder entre a União Soviética e o Ocidente, mas a usando em
benefício próprio.
Putin era um produto da KGB de Andropov. Na época de seu ingresso no
serviço secreto, em meados da década de 1970, a perspectiva e os métodos
de resposta de Andropov estavam firmemente estabelecidos. Na juventude e
no início de carreira, Putin também enxergava tudo como uma tramoia
contra a Rússia. Fora treinado para acreditar que interferir nos sistemas
políticos de outro povo era uma reação natural e justificada, desde que
ninguém o pegasse. Depois que deixou o serviço secreto em 1990, essa
perspectiva majoritariamente conspiratória das relações internacionais foi
ainda mais incentivada por interferência política concreta dos Estados
Unidos na Rússia. Nos anos 1990, os Estados Unidos e outros países
interferiram à vontade nas políticas domésticas russas. Após a reeleição de
Boris Yeltsin como presidente, em 1996, a revista Time chegou a publicar
uma matéria de capa — “Yanks to the Rescue” — com o subtítulo “The
secret story of how American advisers helped Yeltsin win” [“Ianques em
resgate: a história secreta de como conselheiros norte-americanos ajudaram
Yeltsin a vencer”]. O papel dos conselheiros foi sem dúvida exagerado, mas o
artigo reafirmava a impressão de Putin de que, na política internacional,
todo país faz de tudo, desde que não o comprometa — inclusive interferir
em eleições. Eram esse pano de fundo e essa visão paranoica das relações
internacionais que estruturavam o pensamento de Putin em 2011, época em
que sua liderança e o regime russo por ele estabelecido sofreram uma
ameaça mortal.

A avenida Sakharov, batizada em homenagem ao dissidente soviético e


vencedor do Prêmio Nobel da paz Andrei Sakharov, corta Moscou de norte
a leste em direção à Praça Vermelha. Em 24 de dezembro de 2011, com 5
graus negativos de temperatura, ela foi palco do maior protesto ocorrido na
Rússia desde o fim da Guerra Fria. Cem mil pessoas se reuniram para
protestar contra as recentes eleições parlamentares e o retorno iminente de
Vladimir Putin à presidência. Cartazes pediam uma “Rússia sem Putin” e o
comparavam a Muammar Gaddafi, ditador líbio morto dois meses antes.
A manifestação na avenida Sakharov daquele dia não foi a primeira, mas foi
a maior e causou um efeito profundo.
Para Putin, o protesto mostrou quão perto ele e seu governo estavam de
sofrer o mesmo destino de Mubarak no Egito, Bem Ali na Tunísia e Gaddafi
na Líbia. Como aconteceu com a dita “Primavera Árabe”, o foco da
incipiente “Primavera Eslava” era Putin na condição de líder: ela condenava
sua “democracia administrada” e pedia que ele caísse. Como no Egito e em
toda parte, ela estava sendo organizada e coordenada por meio das
plataformas de rede social norte-americanas. Mais de 50 mil pessoas
subscreveram ao comparecimento à avenida Sakharov pelo Facebook, de
modo que, ao longo de todo o dia, hashtags em cirílico se tornaram
tendência no Twitter — incluindo o apelido dado pelos manifestantes a
Putin, #ботокс (#botox). As mídias sociais foram fundamentais para o
incremento e a coordenação das revoluções em toda a África do norte e no
Oriente Médio. Esses protestos começaram pequenos, mas logo se
transformaram em uma bola de neve até arrastarem consigo o líder e o
respectivo governo.
Putin poderia ter interpretado as manifestações de dezembro conforme
elas se apresentavam. Poderia tê-las visto como expressão espontânea da
raiva do povo contra o que parecia ser um sistema eleitoral manipulado.
Não foi assim que ele, ou seu governo, as encarou. Putin afirmou estar
convencido de que tinham sido orquestradas pelos Estados Unidos.
Especificamente, disse acreditar que tudo começa com a secretária de Estado
norte-americana, Hillary Clinton, que “lhes [aos manifestantes] deu um
sinal”, Putin relatou à TV estatal russa dias após os primeiros protestos. “Eles
ouviram esse sinal e começaram o trabalho ativo.” O sinal, asseverou Putin,
fora coordenado via ONGs financiadas pelos Estados Unidos na Rússia. “É
inaceitável”, ele reclamou, “quando dinheiro estrangeiro custeia processos
eleitorais”.12 Putin vê os protestos — na verdade, a onda de tumultos globais
de 2011 — como parte de um plano articulado pelos Estados Unidos para
ampliar sua hegemonia. E as principais plataformas tecnológicas norte-
americanas, acreditava ele, eram parte desse plano. Isso ficou evidente com o
uso pelos manifestantes de mídias sociais norte-americanas para se
organizarem em vez de utilizarem a plataforma de mídia social produzida na
própria Rússia, a VKontakte.
Antes de 2011, Putin não se concentrara na internet. Apesar de ter
extrema consciência do poder político da mídia, preocupara-se em controlar
a mídia tradicional dentro da Rússia em seus dois primeiros mandatos. Para
os russos, isso significava a televisão, razão pela qual Putin obtivera o
controle de canais de televisão independentes, como a NTV, e estabelecera
uma nova transmissora de notícias internacionais sob as rédeas
governamentais, a Russia Today (mais tarde rebatizada de RT para ocultar as
origens). Em termos táticos, ignorar a internet fazia sentido; ela contava com
apenas 2% de penetração na Rússia em 2000, quando Putin subiu ao poder, e
16% em 2008, quando ele alterou o próprio papel para primeiro-ministro.
Todavia, na ausência de controle estatal, a internet russa vicejava. Um
mecanismo de busca local chamado Yandex cresceu mais rápido que o
equivalente norte-americano, o Google. A plataforma VKontakte, que Pavel
Durov fundou em 2006 aos 22 anos, logo se converteu no website mais
popular da Rússia.13
O sucessor de Putin na presidência, Dmitri Medvedev, foi o primeiro a se
envolver de verdade com a internet, embora a visse como um simples
mecanismo para o crescimento econômico e como um modo de atrair a
geração web da Rússia. Em junho de 2010, o presidente Medvedev, em uma
camisa azul de colarinho aberto, blazer azul e calças jeans, assistia de olhos
arregalados a Steve Jobs demonstrando o mais recente iPhone. Faltavam
poucos dias para o lançamento do iPhone 4 e Medvedev estava no Vale do
Silício em uma visita rápida de três dias. Da Apple o presidente russo seguiu
para se encontrar com Eric Schmidt no Google, e depois para o Twitter a fim
de se reunir com Evan Williams e Biz Stone, quando postou seu primeiro
tuíte a partir do endereço @KremlinRussia. O líder interino russo já tentara
encampar as ferramentas das plataformas tecnológicas, começando um
videoblogue em 2009 — o que lhe valeu o apelido de “Blogger-in-Chief ” —
e, na sequência, criando em 2011 a própria página no Facebook. Foi nessa
página, em 11 de dezembro de 2011, que Medvedev condenou os protestos
em Moscou do dia anterior. Duas horas depois, mais de 3 mil pessoas
tinham publicado comentários em sua página, a maior parte negativos ou
desrespeitosos. “Maluco, você está de brincadeira?”, dizia um comentário.
“Cai fora, vergonha para o país”, disse outro, e “Seu tempo já ficou para
trás”.14
Dezembro de 2011 provou para Putin que a abordagem de Medvedev
fora um fracasso espetacular, e que a internet, em especial as plataformas
tecnológicas norte-americanas, agora representavam um grave perigo para o
Estado russo. Medvedev adotara essas plataformas e procurara utilizá-las de
modo convencional. Suas tentativas foram um tiro pela culatra, e ele acabou
vendo as ferramentas sendo usadas contra si e contra o sistema político que
comandava. Era o tipo exato de ameaça temida por Putin ao subir ao poder,
mais de uma década antes. Em setembro de 2000, ele aprovou uma nova
“doutrina de informação de segurança” contemplando a advertência
explícita contra “uma deformação do sistema de informação de massa [na
Rússia] devido à monopolização da mídia bem como à expansão
descontrolada do setor de mídia estrangeiro no espaço de informação
nacional”. Se esse “espaço de informação” se desenvolvia desse modo,
alertava a doutrina, havia o perigo de que “serviços especiais estrangeiros”
usassem o sistema de mídia dentro da Rússia “para impor danos à segurança
nacional e à capacidade de defesa, e para disseminar desinformação”. Putin
acreditava ser exatamente o que os Estados Unidos estavam fazendo naquele
momento: derrubando o regime russo em parceria com as principais
plataformas tecnológicas norte-americanas ao espalhar falsas informações e
provocar dissensão.15
Como acontece com a maior parte das teorias de conspiração, havia um
fundo de verdade em torno do qual Putin pôde construir sua tese. Em maio
de 2009, por exemplo, Hillary Clinton lançou uma iniciativa relacionada à
“diplomacia do século 21”, a partir da qual o Departamento de Estado norte-
americano se dispunha a auxiliar grupos da sociedade civil ao redor do
mundo a transformarem a política usando a internet e as mídias sociais.
“Precisamos construir novas parcerias de baixo para cima”, disse Clinton
para uma plateia em Nova York, “e utilizar toda ferramenta à nossa
disposição” para dar o pontapé inicial em “Sociedade Civil 2.0”.16 No mês
seguinte, o Departamento de Estado norte-americano pediu ao Twitter que
retardasse os trabalhos de manutenção em sua rede a fim de que o serviço
permanecesse aberto a manifestantes contrários ao governo no Irã, durante
a campanha eleitoral do país. Tempos depois, falando no Marrocos ainda no
mesmo ano, Clinton apoiou financeiramente o plano do Departamento de
Estado referente à “Sociedade Civil 2.0”, incluindo subvenções para o
Oriente Médio e o norte da África.17
Dezenove meses depois, alguns membros do Departamento de Estado
pareciam estar apreciando bastante a primeira onda de revoluções no
Oriente Médio. Alec Ross, conselheiro-chefe de Clinton para a inovação
junto ao Departamento de Estado, disse em uma conferência do Guardian
em Londres, no mês de junho, que a internet se tornara o “Che Guevara do
século XXI”. Facebook e Twitter estavam conferindo às pessoas o poder de
desafiar regimes autocráticos. “Acho isso divertido”, disse Ross, “e será uma
revolução muito louca nos próximos anos, o que definitivamente acredito
ser uma coisa boa.”18 A atitude de Ross pode não ter sido típica de um
funcionário do governo norte-americano, e seu deleite escondeu o medo
com que a administração norte-americana reagiu à onda inicial de
manifestações antigoverno. No entanto, era condizente com a interpretação
de Putin. Ademais, não há dúvida de que a ameaça a Putin e seu regime no
fim de 2011 acabou se revelando genuína. Além dos protestos de massa,
existia uma rivalidade crescente entre as elites políticas russas. Este “é o
momento exato em que o velho regime mais corre perigo”, escreveu Richard
Sakwa, um observador arguto da política russa, “e no qual um grande
avanço democrático se faz possível”.19
Putin precisava desesperadamente de uma narrativa forte com a qual
estabilizar e manter o poder. Encontrou-a na própria declaração de que
forças estrangeiras vinham desestabilizando a Rússia e empregando
plataformas tecnológicas para interferir na política do país com o objetivo de
derrubar o governo e instalar um líder condescendente. Crendo ou não nela,
essa é a história que Putin contou ao povo russo. Os Estados Unidos e seus
aliados, disse ele, representavam uma ameaça hostil, existencial para o
Estado russo. Interferiam em suas eleições, apoiavam grupos da sociedade
civil a fim de criarem desassossego, incentivavam protestos contra o governo
e treinavam pessoas para o uso de plataformas tecnológicas a fim de
coordenarem as ações. Em outras palavras, Putin imputava aos Estados
Unidos o tipo exato de tática empregada pela inteligência soviética no tempo
em que ele atuara como agente.
Essa narrativa foi então explicitada em discurso proferido pelo chefe do
comando geral das forças armadas russas, general Gerasimov, e publicado
em fevereiro de 2013. A Primavera Árabe representou um novo tipo de
conflito, disse o general. Um conflito caracterizado pelo obscurecimento das
linhas divisórias entre guerra e paz, em que a ação não militar é tão
importante quanto a militar e as táticas assimétricas, como o emprego de
redes de informação digital, são mais notadas. Em resposta a essa nova
abordagem da guerra, que a Rússia acreditava ser conduzida pelos Estados
Unidos, “é necessário”, disse Gerasimov, que as forças russas “aperfeiçoem as
atividades no espaço da informação”. Foi onde Putin, os serviços de
inteligência russos e o Exército russo focaram a atenção.20
Portanto, os protestos impulsionados digitalmente no fim de 2011 e início
de 2012 levaram a uma grande mudança na abordagem de Putin. Não só
mudaram sua política como voltaram seu foco para a internet e para as
plataformas que — na visão dele — quase tinham promovido outra
revolução russa. A partir de então, Putin procurou domesticar a internet
local e utilizá-la no âmbito internacional em benefício próprio — “para
aperfeiçoar as atividades russas no espaço de informação”.
Dentro da Rússia, Putin podia replicar a abordagem que adotara com a
televisão em seu primeiro mandato. Podia forçar a saída dos chefes de
empresas de internet e instalar outros, mais adaptáveis, no lugar. O fundador
e principal executivo da VKontakte se manteve firme contra a pressão
governamental até 2014, quando se recusou a revelar dados pessoais de seus
usuários e viu-se obrigado a renunciar e deixar a Rússia. O mecanismo de
busca Yandex já era de propriedade majoritária do Sberbank, um banco
estatal, de modo que foi mais fácil influir em seu comando. O fundador e
CEO do banco, Arkadi Volozh, também se demitiu em 2014.21
Fora da Rússia, Putin precisou adotar uma abordagem diferente.
Não podia pressionar plataformas tecnológicas norte-americanas, como
Facebook e Google, do mesmo modo que conseguia fazer com a VKontakte
e o Yandex. Se quisesse responder ao que enxergava como tentativas
conjuntas de atores estrangeiros para desestabilizar a política russa,
precisaria encontrar outro caminho. Nada mais natural que ele e seus
colegas do ex-FSB recorressem às experiências do passado, à maneira como
tinham lidado com tais ameaças externas e aos métodos que usaram em
resposta. Fundamental em tudo isso era a utilização eficaz da informação
para proteger o próprio sistema e enfraquecer o sistema alheio, para explorar
os próprios sistemas de comunicação contra os deles.
Ainda assim, se o Kremlin queria adotar nova abordagem agressiva em
nível internacional e produzir propaganda e desinformação efetivas,
necessitava de gente capaz de usar redes sociais, produzir e comissionar
conteúdo digital e certificar-se de que esse conteúdo se disseminasse. Ao
mesmo tempo, essas pessoas tinham de ser patriotas, nacionalistas mesmo, e
infalivelmente fiéis ao Kremlin. Para sorte de Moscou em 2012, essas
pessoas estavam ao alcance das mãos.
Lendo os e-mails de Kristina Potupchik de 2011, você estaria perdoado se
imaginasse que ela administrava uma ambiciosa e descolada agência de
marketing voltada para as redes sociais. Com 20 e poucos anos e em
comunicação permanente com os colegas, Potupchik compartilhava
recomendações sobre como ser um influenciador eficaz no Facebook, como
promover publicações em blogues e onde encontrar bons memes na
internet. Falava acerca de apresentações on-line que permitem a
identificação e o reconhecimento fáceis de um produto, delegava a
confecção de vídeos do YouTube e discutia como otimizar postagens nos
rankings de busca do Google. Como qualquer profissional de marketing em
redes sociais bem-sucedido, tinha obsessão pela popularidade de seu
conteúdo. “O material deve conter elementos ‘virais’”, escreveu, “ou seja, usar
a motivação das pessoas para distribuí-lo.”22
Acontece que, em 2011, Kristina Potupchik não administrava uma
agência de marketing em redes sociais. Era assessora de imprensa do Nashi
(“Nosso”), um movimento da juventude nacionalista pró-Putin. O Nashi era
um entre vários grupos criados ou apoiados pelo volúvel tecnólogo de Putin,
Vladislav Surkov, em resposta às revoluções Rosa e Laranja de 2003 e 2004
na Geórgia e na Ucrânia, respectivamente. Surkov acreditava que, para se
opor aos protestos contrários a Moscou, o Kremlin precisava de
manifestantes próprios. Direta e indiretamente, incentivou a formação de
diversos grupos nacionalistas — dos quais o Nashi era o maior — que
atuariam de forma leal ao Kremlin. Os grupos em si tinham de estar
distantes o suficiente do Estado a fim de parecerem orgânicos; dessa
maneira, o apoio deles seria mais plausível e eficaz.
Todo ano o Nashi organizava um acampamento de verão nos lagos
Seliger, ao norte de Moscou. Até 20 mil jovens russos disputavam jogos no
local e realizavam atividades visando maior integração — incluindo
casamentos coletivos, supervisionados por “comissários” do Nashi e
rodeados de cartazes de Putin e Medvedev. Os líderes russos visitavam com
frequência o acampamento, para grande entusiasmo dos participantes.
O suporte financeiro ao Nashi e a outros grupos pró-Kremlin convergia por
meio de vários canais, desde oligarcas prestativos até instituições como a
Igreja Ortodoxa. Nem o Nashi nem grupos similares como o Grupo Jovem
Eurasiano recebiam ordens direto do Kremlin. Como escreve Charles Clover
em seu esclarecedor estudo do novo nacionalismo na Rússia:
Eles representavam algo mais complexo [que as organizações oficiais] —
um ambiente de agrupamentos que eram hábeis em negação e autônomos
em dinheiro, poder executivo e ideologia, cujos desejos eram satisfeitos por
operários que na maior parte das vezes funcionavam sem direção central e
sem liderança clara; em vez disso, respondiam a “sinais” ideológicos.
Esses grupos funcionavam como redes, conectados e empoderados por
meio da tecnologia moderna, de acordo com uma agenda planejada sem
muito rigor em Moscou. A chave, como escreve Clover, era a negação. Ação
alguma jamais pôde ser rastreada até o Kremlin.23
Potupchik se juntou ao Nashi em 2005, o mesmo ano em que o grupo foi
criado. Dois anos depois, era sua porta-voz. Em 2011, estava encarregada da
produção de mídia do grupo, comissionando dezenas de jovens para
publicarem comentários on-line, escreverem postagens em blogues,
produzirem vídeos para o YouTube e atacarem políticos de oposição. Tudo
era feito para promover Putin e a pauta do Kremlin, dando a impressão de
brotar espontaneamente da sociedade civil. Era como se Potupchik e seus
colegas fossem uma agência de relações públicas interna para a liderança
russa, mas sem nenhum vínculo formal. “Putin deve se tornar uma grife
outra vez”, escreveu Potupchik em abril de 2011. A fim de promover a grife,
o Nashi precisou adotar fossem quais fossem as táticas que funcionassem.
Como explicou o chefe do grupo, Vasili Yakemenko, ao comissionar pessoas
para escreverem comentários on-line eles tiveram de encontrar “gente com
linguagem equilibrada, que escreve bem, não idiota, [capaz] de sustentar um
debate, de desenvolvê-lo. Essas pessoas comentarão as nossas publicações
em fóruns — basicamente difamando a oposição e enaltecendo Putin,
[dando] a impressão de que a maioria nos apoia”.24
Entretanto, por mais útil que o Nashi fosse, não conseguiu combater o
crescente sentimento anti-Putin de 2011. Toda a abordagem pós-modernista
de Surkov à comunicação estatal, dependente de tirar vantagem da
fragmentação, ambiguidade e confusão geral da web, caiu em desgraça. À
medida que a estrela de Surkov foi se apagando, o mesmo aconteceu com a
do Nashi. A própria Kristina Potupchik se retirou em meados de 2012,
publicando em seu blogue que “é hora de dizer o que já passou da hora de
ser dito. Estou indo embora”.25
Contudo, apesar de a abordagem do Kremlin para a internet sofrer uma
guinada mais autoritária em 2012 — em especial “dentro de casa” —, os
métodos empregados pelo Nashi e por outros grupos não foram
descartados; pelo contrário, foram formalizados e convertidos em algo mais
sistemático. Em setembro de 2013, o jornal russo independente Novaya
Gazeta descobriu que uma empresa aberta em um subúrbio de São
Petersburgo dois meses antes empregava pessoas para comentar, postar e
publicar em blogues on-line a favor do governo russo e procurava
desacreditar políticos da oposição e inimigos da Rússia (os Estados Unidos
acima de todos). Esses “trolls” receberam critérios e diretrizes, bem como
metas de publicações (por exemplo, uma centena de comentários por dia).
Realizavam trabalho semelhante ao do Nashi e de outros grupos jovens pró-
Putin, mas de uma maneira mais estruturada e focada e em escala. No verão
de 2014, noticiou Max Seddon, a Internet Research Agency, como se
chamava a empresa, empregava 600 pessoas e contou com uma receita de 10
milhões naquele ano.26
A “fábrica de trolls” de São Petersburgo guardava muitas semelhanças
com as fábricas de desinformação soviéticas criadas cinquenta anos antes.
Centenas de pessoas eram empregadas para produzir sem parar propaganda
e notícias falsas com o intuito de promover a Rússia e destruir os Estados
Unidos e seus aliados. Como no departamento tchecoslovaco em que
trabalhava Ladislav Bittman, cada um tinha papéis específicos e obedecia a
uma hierarquia bem determinada. De modo semelhante, concentravam-se
em fomentar divisões políticas, corroer a confiança nas autoridades,
incentivar o sectarismo e alimentar o ódio contra os Estados Unidos e os
sistemas políticos europeus. Nos Estados Unidos de 2016, isso significava
postar sobre questões relacionadas a raça, imigração, armas, gênero e
direitos dos gays. Como os departamentos satélites soviéticos dedicados à
desinformação, o escritório de São Petersburgo era distante o suficiente de
Moscou e do governo russo para reivindicar a negação plausível diante de
qualquer acusação.
No entanto, também havia diferenças importantes dos cinquenta anos
anteriores. Inexistia qualquer necessidade de os diretores da operação de São
Petersburgo estudarem pesquisas de opinião ocidentais em detalhes
minuciosos — se quisessem informações sigilosas sobre atitudes públicas,
bastava rolar as páginas do Twitter, consultar páginas públicas do Facebook
ou explorar o Google Trends. Reagir com rapidez tampouco continuava
sendo um problema. Eles podiam comentar embaixo de novos artigos assim
que eram publicados, retuitar tweets pró-Rússia e curtir postagens
antiliberais no Facebook. Tinham inclusive a possibilidade de comprar
anúncios no Facebook que atiçavam propositadamente a tensão racial e
direcioná-los para áreas dos Estados Unidos em que esse tipo de tensão era
alta (como o Facebook revelou ter feito em setembro de 2017).27
Ainda assim, por mais útil que fosse para impulsionar a perspectiva russa
para o exterior, a Internet Research Agency e demais serviços semelhantes
foram menos capazes de assumir algumas das outras incumbências
desempenhadas pelos departamentos soviéticos visando medidas ativas.
A Internet Research Agency, por exemplo, estava menos equipada para
realizar on-line tarefas “de vilão” como hackear e-mails pessoais, coletar
dossiês pessoais comprometedores (kompromat) ou instalar malwares.
Não fora para isso que a agência havia sido criada. Ademais, existia um
grave risco associado a esses tipos de operações; portanto, uma necessidade
ainda maior de “mãos limpas”. Para sorte do Kremlin, já havia alternativas
disponíveis.

Com a neve caindo em Kiev no fim de janeiro de 2014 e a temperatura


chegando aos 15 graus negativos, Mykhailo Gavrylyuk, de 34 anos, posava
nu na rua para fotografias. Despido e surrado pelo grupo paramilitar Berkut
do governo ucraniano, foi-lhe então entregue um machado e ordenado que
aguardasse até que a meia dúzia de milicianos a seu redor conseguisse um
instantâneo digno dos maiores prêmios.28 Gavrylyuk recebia punição
sumária por se juntar a um protesto contra o governo Yanukovych, pró-
Kremlin. A milícia Berkut [“Água Dourada”, em ucraniano] era famosa pela
intimidação e violência contra manifestantes. A princípio estabelecido para
lutar contra o crime organizado, depois de 2004 o grupo mudou para
impedir o avanço de protestos antigoverno e manipular eleições. Após a
deposição de Yanukovych, o novo governo ucraniano dissolveu o Berkut.
Todavia, menos de dois meses depois, em março de 2014, essa milícia brutal
foi restaurada pelo governo russo e incorporada ao ministério do interior.
No mesmo mês, um grupo anônimo de hackers autodenominado
“CyberBerkut” anunciou sua formação on-line. “Como um ‘Berkut’
inflexível se manteve firme até o fim”, dizia a publicação no website, “assim o
‘CyberBerkut’ dará caça aos espíritos malignos fascistas.” O emblema do site
brincava com a insígnia do Berkut e mostrava uma águia dourada pousando
e o nome “Berkut” substituído por “CyberBerkut”.29
Desde o início, o CyberBerkut disse que usaria todos os meios
necessários para destruir e depor o governo ucraniano. Começou lançando
ataques por DDoS contra sites do governo, terceirizando para o público em
geral informações incriminatórias sobre funcionários públicos na página do
grupo no Facebook e bloqueando a mídia tradicional on-line. No fim do
primeiro mês o CyberBerkut hackeara e fizera vazar seus primeiros e-mails,
sustentando que provavam que os Estados Unidos haviam organizado a
revolução na Ucrânia.
Em 2016, o grupo voltara a atenção para o hackeamento de e-mails em
âmbito bem mais amplo, incluindo os Estados Unidos. Em 7 de outubro de
2016, sexta-feira, o jornalista e escritor David Satter recebeu um e-mail
dizendo que alguém acabara de utilizar sua senha para acessar a conta
Google e que por isso ele precisava confirmar a senha. Com 69 anos de
idade, Satter escrevia sobre a Rússia e a União Soviética nas últimas quatro
décadas e publicara havia pouco tempo um livro detalhando as origens do
atual regime de Putin. Em 2013 ele fora tão bem-sucedido em irritar o
governo russo que teve a honra de ser o primeiro correspondente norte-
americano expulso do país desde o fim da Guerra Fria. Presumindo que o e-
mail do Google era genuíno, Satter clicou no link.
Ele não foi o único a receber o e-mail naquele dia. Duzentas outras
pessoas, incluindo políticos mais velhos, oficiais militares de alta patente,
acadêmicos e ativistas, receberam o mesmo alerta do Google. Acontece que
se travava de um e-mail de phishing enviado por um grupo de hackers — ou
seja, parecia ser proveniente de um emissor confiável solicitando
informações confidenciais, mas na verdade tinha intenções malignas. Assim
que Satter clicou no link, concedeu aos hackers acesso a todos os seus e-
mails. Duas semanas depois, menos de três antes da eleição norte-
americana, o CyberBerkut publicou parte deles, selecionada com grande
cuidado, afirmando que eles mostravam “os Estados Unidos preparando
uma ‘revolução colorida’ na Rússia segundo o modelo ucraniano”. Só que
não era o que eles mostravam, absolutamente.
Uma investigação meticulosa e esclarecedora do laboratório
interdisciplinar Citizen Lab da Universidade de Toronto descobriu que, além
de escolher quais e-mails publicar, o CyberBerkut editara meticulosamente
alguns deles, mudando o sentido original de modo que ficasse condizente
com a narrativa que os hackers desejavam contar. Essa narrativa, escreve o
Citizen Lab, visava “dar a impressão de que Satter estava pagando jornalistas
e ativistas anticorrupção russos para escreverem relatos críticos ao governo
russo”. Pouco depois que os e-mails adulterados foram publicados no site do
CyberBerkut, foram detectados pela agência noticiosa RIA Novosti e pela
rádio Sputnik, ambas do governo russo. A partir de então a história foi
tuitada, curtida e compartilhada no Twitter e no Facebook.30
O caso Satter guarda muitas similaridades com a invasão e
disponibilização dos e-mails de John Podesta durante a campanha eleitoral
norte-americana, hackeados seis meses antes. Como Satter, o diretor da
campanha de Hillary Clinton clicou em um alerta falso de e-mail do Google
e mudou sua senha. Como Satter, os e-mails foram então vazados — via
WikiLeaks. E, como Satter, foi impossível vincular o hackeamento e os
vazamentos ao Kremlin. No caso de Podesta, a campanha de Clinton optou
por não validar os e-mails ou confirmar se estavam editados após rígida
seleção para mudar-lhes o sentido. No caso do hacker de Macron, a
campanha disse que muitos documentos falsos foram adicionados aos
genuínos a fim de causar mais danos políticos.31
Trolagem e hackeamento se mostraram métodos altamente eficazes de
propaganda e desinformação. E mais, ambos eram executados longe o
suficiente do Estado russo de modo a assegurar um verniz de possível
repúdio. Embora seu custo exato seja desconhecido, as abordagens sem
dúvida eram bem menos dispendiosas que as empregadas durante a Guerra
Fria. Ao mesmo tempo, não eram — no jargão do Vale do Silício — muito
“expansíveis”. Se Moscou quisesse desafiar o predomínio do sistema de
informação global, precisava de maior velocidade, escala e alcance. Precisava
de automatização.
Em tempos soviéticos, seria difícil, se não impossível, impulsionar narrativas
jornalísticas alternativas em larga escala nos Estados Unidos ou além.
Contudo, por volta de 2017, a Rússia podia utilizar não apenas “trolls” e
hackers como também robôs e cyborgs. Robôs são contas falsas — criadas de
modo a parecerem pessoas de verdade — programadas para reagir a
sugestões específicas. Cyborgs são a combinação de um robô com uma
pessoa real — mais difíceis de identificar e mais complicado de reagir a eles.
Podem-se ver as atividades dessas máquinas de micropropaganda se
desenrolarem depois de quase qualquer evento que valha a pena ser
noticiado, em todas as plataformas tecnológicas predominantes, seja um
comício da extrema-direita, seja o tiroteio em uma escola.
Ben Nimmo, que analisa campanhas de desinformação globais no
Atlantic Council’s Digital Forensic Research Lab, rastreia atividades de robôs
após a divulgação de grandes notícias. Nos dias seguintes ao comício “Unite
the Right” [A Direita Unida] em Charlottesville, Virgínia, nos dias 11 e 12 de
agosto de 2017, sexta-feira e sábado, em que nacionalistas da extrema-direita
entraram em conflito com opositores, Nimmo observou que muitos robôs e
cyborgs associados à Rússia e pró-Rússia começaram a impulsionar três
narrativas: que os manifestantes e os opositores da extrema-direita eram
igualmente ruins; que os políticos norte-americanos críticos da extrema-
direita eram hipócritas (uma vez que, afirmava-se, eles haviam apoiado antes
a direita ucraniana); e que os opositores tinham sido organizados por
George Soros (inexistiam provas disso). Essas narrativas minimizavam e
legitimavam os atos da extrema-direita, desafiavam a autoridade dos críticos
da extrema-direita e apresentavam os opositores não como uma resposta
popular, mas como uma reação orquestrada por um bilionário liberal. Os
objetivos eram abafar as vozes de quem condenava a extrema-direita norte-
americana, diluir o consenso no tocante à inaceitabilidade social da marcha
e aumentar a simpatia pela extrema-direita entre a população em geral.32
Compare tudo isso com os métodos soviéticos. Quando a KGB enviou as
letras KKK antes dos jogos olímpicos de Los Angeles, em 1984, para
fomentar a tensão racial, logo foi denunciada como fraude pelo procurador-
geral dos Estados Unidos. Na era do Twitter, do Facebook e do YouTube,
ficou fácil lançar narrativas de múltiplas alternativas e divulgá-las para todo
lado. Como Nimmo documentou nesse caso, assim que os veículos de
imprensa russos apresentaram seu ponto de vista, outros sites pró-Rússia o
repetiram e o amplificaram. A partir daí se espalharam mais ainda no
Twitter, tanto por meio de pessoas reais quanto por meio de robôs. Centenas
deles, se não milhares, podem estar conectados ao mesmo tempo a fim de
darem respostas concomitantes quanto provocados pelo mesmo gatilho.
Uma conta do Twitter chamada “Kyra”, por exemplo, criada poucas semanas
antes da marcha de Charlottesville, retuitou 31 vezes publicações sobre a
hipocrisia do político norte-americano John McCain em menos de cinco
minutos. E continuou retuitando depois de Charlottesville — mais de 140
vezes por dia em média — sobretudo, de Bernie Sanders (a favor) até Hillary
Clinton (contra), de Donald Trump (contra) a Julian Assange (a favor).
O objetivo político do robô Kyra, se for mesmo possível deduzi-lo a partir de
seus milhares de tuítes, era promover extremos sectários e atacar o centro
político.
Os robôs pró-Rússia, como os trolls em São Petersburgo, estavam
engajados naquilo que Mark Galeotti, especialista em Rússia, chama de
“geopolítica de guerrilha”. Como os serviços de inteligência soviéticos das
décadas de 1960, 1970 e 1980, eles identificavam vulnerabilidades nos
sistemas políticos de outros países e em seguida os convertiam em alvo a fim
de incentivar a tensão e a divisão, ampliar o sectarismo e as fissuras sociais
existentes e destruir a confiança nas autoridades. Como acontece com
guerrilheiros, os trolls e os robôs são capazes de infligir milhares de
pequeninos ferimentos e então desaparecer no éter. Mais: diferentemente
das tentativas soviéticas de incentivar a tensão racial no início dos anos
1980, eles podem impulsionar narrativas alternativas enquanto o ciclo de
notícias permanecer vivo.
A falsa amplificação pelo emprego de robôs é ainda mais atraente em
plataformas tecnológicas modernas, uma vez que é muito difícil atribuir
responsabilidades. Pode ser praticamente impossível, para Ben Nimmo ou
qualquer outra pessoa, seguir o rastro dos robôs até chegar a quem os
controla. Isso em parte porque muitas redes de robôs (conhecidas como
botnets) são geridas como um negócio e podem ser compradas ou alugadas à
vontade. O jornalista de ciberssegurança Joseph Cox encontrou mil contas
do Twitter novas em folha sendo oferecidas por 45 dólares.33 Se você tiver
dinheiro e preferir adquirir popularidade “verdadeira”, empresas russas
como a Vto.pe oferecem acesso a mais de 2 milhões de usuários em todas as
principais plataformas tecnológicas incluindo YouTube, Twitter, Facebook e
Instagram. Um relatório alarmante da empresa de segurança em TI Trend
Micro revelou, por exemplo, que se podem comprar 40 mil “curtidas de alta
qualidade” para uma causa por cerca de 6 mil dólares. Pagando 5 mil,
compram-se 20 mil comentários embaixo de artigos noticiosos, “os quais, às
escondidas, são disponibilizados em templates a partir dos quais o
consumidor pode escolher”. Serviços como esses com certeza não se
restringem à Rússia. Podem-se localizar empresas trabalhando com
popularidade nas redes sociais em toda parte, da China e Índia até o Oriente
Médio. O mercado em rápido crescimento ilustra como é fácil atuar na área.
Elas também podem causar enorme distorção na política democrática.
Durante a campanha eleitoral norte-americana de 2016, estimou-se que
quase 1 em cada 7 tuítes políticos provinha de um robô.34

Acomodado em cima de um palco de São Petersburgo em junho de 2017,


tendo a seu lado o primeiro-ministro indiano Narendra Modi, Putin pôde se
dar ao luxo de um sorriso. Ainda podia afirmar que os Estados Unidos
continuavam tendo de encontrar as “impressões digitais” de Moscou no
hackeamento pré-eleição. Apesar das evidências aos montes comprovando a
influência russa sobre operações norte-americanas, continuava sendo muito
difícil traçar uma linha direta dessas operações até o Kremlin. A única
concessão de Putin, feita mais cedo naquele mesmo dia no fórum de São
Petersburgo, era que os russos “patriotas” bem podiam ter desferido ataques
contra democracias ocidentais. Presume-se que ele estivesse se referindo a
organizações como a Internet Research Agency, coletivos de hackers como o
CyberBerkut e robôs pró-Rússia. Só um ano mais tarde, em julho de 2018,
Robert Mueller enfim conseguiu apresentar provas detalhadas de uma
operação de hackeamento contra a campanha dos democratas nos Estados
Unidos, coordenada por 12 membros da inteligência militar russa.
Para Putin, o verdadeiro problema era que a ofensiva russa de
propaganda e desinformação tinha sido bem-sucedida demais (ou tinha sido
assim percebida — as duas coisas se tornaram sinônimas). Depois de 2012,
ele e seus serviços de inteligência adotaram a mesma cartilha empregada na
Guerra Fria, criando centenas de notícias falsas, cultivando tensões sociais e
fomentando divisão e desconfiança no sistema norte-americano. Na era
soviética, o sucesso fora ocasional e esporádico. Na segunda década do
século XXI, graças a mudanças radicais no ecossistema da informação, o
sucesso ultrapassou todas as expectativas. A influência foi tão extrema que
levou muitos a crerem que a Rússia de fato desarranjara o equilíbrio na
eleição dos Estados Unidos. Como acontece com qualquer exame
retrospectivo de uma eleição, o real impacto da interferência russa, em
última análise, é impossível de provar. Nunca saberemos o que mudou a
cabeça de eleitores individuais, embora seja bastante improvável que um
único fator alterasse o resultado. Dito isso, no fim não importa se a Rússia
influenciou ou não o resultado das eleições norte-americanas, se pessoas
suficientes pensam que sim. E muitos norte-americanos acreditam que ela o
fez.
Em algumas regiões, isso levou ao aumento da russofobia, uma histeria
anti-Rússia reminiscente dos primeiros estágios da Guerra Fria. Na época,
George Kennan, diplomata sagaz e ponderado — ele mesmo um não
russófilo — alertou contra os temores simplistas demais dos comunistas e
conclamou a um maior entendimento e sabedoria para se oporem à ameaça
soviética. “Tenho convicção”, escreveu ele em seu lendário e extenso
telegrama para Washington, “de que haveria bem menos antissovietismo
histérico no nosso país hoje se a realidade dessa situação fosse mais bem
compreendida pelo povo. Não há nada tão perigoso ou aterrador quanto o
desconhecido.” Um maior entendimento das atitudes e métodos russos não
lhes diminuiria a importância, mas tornaria outros países mais habilitados a
se opor a eles. Isso é ainda mais necessário considerando que a Rússia não
mostra nenhum sinal de reduzir os esforços de guerra de informação. Além
de servirem a um valioso propósito doméstico para Putin em seu quarto
mandato como presidente, ajudam a obscurecer a fragilidade material russa.
Todavia, fixar-se na Rússia desvia a atenção da extensão em que outros
Estados aprenderam com o modelo russo. A “doutrina Gerasimov” — como
a corrida armamentista da Guerra Fria que a precedeu — se
autoconcretiza.35 A partir do momento em que um Estado acredita que
outro qualquer conta com uma vantagem a lhe ameaçar a segurança e a
estabilidade, tomará medidas para contra-atacar. Outros países viram as
ações da Rússia e, como o general Gerasimov, as interpretaram como sinal
da maneira pela qual se desenrolariam os conflitos do século XXI entre os
Estados. Por isso, precisaram se adaptar, ou correriam o risco de serem
deixados para trás. Um estudo de 2017 conduzido pelo projeto
Computational Propaganda, da Universidade de Oxford, concluiu que os
governos de 28 países já tinham se envolvido em algum tipo de manipulação
de redes sociais. No Vietnã, em 2017, revelou-se que o governo recrutara 10
mil pessoas para uma unidade de guerra cibernética. Em muitos países —
como França, Singapura e a Malásia — os governos buscaram produzir leis
que tratassem da desinformação policial. Outros países foram inclusive
acusados de adotarem táticas de informação ofensivas ao estilo da Rússia.
Em maio de 2017, o governo do Catar afirmou que seus vizinhos chegaram
perto de instigarem um conflito militar depois que a Agência de Notícias do
Catar foi hackeada e notícias falsas explosivas foram publicadas.36
As plataformas tecnológicas predominantes nos Estados Unidos são
fundamentais para essa nova forma de conflito interestatal. São o campo de
batalha virtual em que tais guerras de informação vêm sendo travadas.
Nessas plataformas — nas nossas páginas do Facebook, no feed do nosso
Twitter, no nosso e-mail e no YouTube — os Estados têm mobilizado
exércitos de robôs, lançado ataques de phishing e batalhado pela supremacia
sobre novos projetos. Uma luta contínua na qual as medidas de sucesso são
o apoio público e a titularidade da narrativa — uma corrida armamentista
de propaganda global com o intuito de semear confusão, divisão e
desinformação.

1 V. SMITH, Alexander. Vladimir Putin to Megyn Kelly: even children could hack an election. NBC

News, 2 Jun. 2017.


2 Para acesso a artigos sobre várias supostas invasões russas na Europa, v. SAUERBREY, Anna. Will the

Russians hack Germany, too? New York Times, 21 July 2017; Russia hacked Danish defense for two
years, minister tells newspaper. Reuters, 23 April 2017; Norway instituions «targeted by Russia-
linked hackers”. BBC News, 3 February 2017; WILLSHER, Kim; HENLEY, Jon. Emmanuel Macron’s
campaign hacked on eve of French election. Guardian, 6 May 2017.
3 Para detalhes sobre a Internet Research Agency, v. a acusação formal de fevereiro de 2018 (caso 1:18-

cr-00032-DLF) feita por Robert Mueller em relação à suposta interferência russa na eleição norte-
americana de 2016. O relatório expressa opinião diversa de parte do pessoal, preparado para o
Comitê de Relações Internacionais do Senado e Intitulado “Putin’s Asymmetric Assault on
Democracy in Rússia and Europe: Implications for US National Security” [“Ataque assimétrico de
Putin à democracia na Rússia e na Europa: implicações para a segurança nacional dos Estados
Unidos”] contém mais informações sobre a suposta interferência em todo o mundo.
4 Para informações sobre o RT e o Sputnik, v. MEYER, Henry; MATLACK, Carol; NICOLA, Stefan. How

the Kremlin’s disinformation machine is targeting Europe. Bloomberg, 16 February 2017; SHUSTER,
Simon. How Russian voters fueled the rise of Germany’s far-right. Time, 25 September 2017;
CUNNINGHAM, Finian. Who gains from poisoning a Russian exile in Britain? Sputnik, 8 March
2018.
5 Para uma seleção de (muitas) negativas russas, v. WORLEY, Will. EU referendum: Vladimir Putin

says David Cameron called vote “to blackmail Europe”. Independent, 17 June 2016; ROSE, Michel;
DYOMKIN, Denis. After talks, France’s Macron hits out at Russian media, Putin denies hacking.
Reuters, 29 May 2017; MACFARQUHAR, Neil. Denmark says «key elements» of Russian government
hacked defense ministry. New York Times, 24 April 2017; ILYUSHINA, Mary; BURROWS, Emma;
CLARKE, Hilary. Kremlin dismisses Mueller’s indictment of 13 Russians. CNN Politics, 19 February
2018.
6 The latest: France says no trace of Russian hacking Macron. Associated Press, 1 Jun. 2017.

7 Para conhecer a descrição completa desse episódio da história da Guerra Fria, v. os dois relatos

autobiográficos de Ladislav Bittman in: The Deception Game: Czechoslovak Intelligence in Soviet
Political Warfare. Syracuse, NY: Syracuse University Research Corporation, 1972; e The KGB and
Soviet Disinformation: An Insider’s View. Washington, DC: Pergamon-Brassey, 1985.
8 Major General Oleg Kalugin, apud: HOLLAND, Max. The Propagation and Power of Communist

Security Services Dezinformatsiya. International Journal of Intelligence and CounterIntelligence,


19:1, p. 1-31, 2006.
9 ELLUL, Jacques. Propaganda: The Formation of Men’s Attitudes. New York: Knopf, (1962) 1965.

10 Exemplos dessas e de outras atividades da KGB podem ser encontrados em: ANDREW, Christopher;

MITROKHIN, Vasili. The Mitrokhin Archive, vol. 1: The KGB in Europe and the West. London:
Penguin, 2000 (em especial o capítulo 14: Information Warfare); ROMERSTEIN, Herbert.
Disinformation as a KGB Weapon in the Cold War. Journal of Intelligence History, 1:1, p. 54-67,
2001; HOLLAND, Max. The Propagation and Power of Communist Security Services
Dezinformatsiya. International Journal of Intelligence and CounterIntelligence, 19:1, p. 1-31,
2006; BITTMAN, Ladislav, livros e diversos relatórios parlamentares do período.
11 In BOGHARDT, Thomas. Soviet Bloc Intelligence and Its AIDS Disinformation Campaign. Studies

in Intelligence, 53:4, 2009.


12 V. reportagem para a BBC de ROSENBERG, Steve. Russia PM Vladimir Putin accuses US over poll

protests. BBC News, 8 December 2011.


13 Para saber mais sobre o desenvolvimento das atitudes russas em relação à internet, v. SANOVICH,

Sergey. Computational Propaganda in Russia: The Origins of Digital Disinformation. Working Paper
2017.3. Computational Propaganda Research Project, University of Oxford, 2017; ETLING, Bruce;
ALEXANYAN, Karina; KELLY, John; FARIS, Robert; PALFREY, John; GASSER, Urs. Public Discourse in
the Russian Blogosphere: Mapping RuNet Politics and Mobilization. Research Publication 2010-11,
Berkman Center, Harvard University, 2010; ALEXANYAN, Karina; BARASH, Vladimir; ETLING,
Bruce; FARIS, Robert; GASSER, Urs; KELLY, John; PALFREY, John; ROBERTS, Hal. Exploring Russian
Cyberspace: Digitally-Mediated Collective Action and the Networked Public Sphere. Research
Publication 2012-2, Berkman Center, Harvard University, 2012.
14 Para conhecer relatos sobre a visita de Medvedev ao Vale do Silício e suas tentativas de cultivar algo

semelhante na Rússia, v. HENDERSON, Peter. Russian president tweets, tours Silicon Valley. Reuters,
23 June 2010 e similares; APPELL, James. The short life and speedy death of Russia’s Silicon Valley.
Foreign Policy, 6 May 2015. Reações à postagem de Medvedev no Facebook citadas em: O’FLYNN,
Kevin. Dmitry Medvedev Facebook message against Russian protesters backfires. Telegraph, 11
December 2011.
15 Information Security Doctrine of the Russian Federation, Approved by President of the Russian

Federation Vladimir Putin on September 9, 2000. Disponível em:


https://info.publicintelligence.net/RU-InformationSecurity-2000.pdf. Acesso em: 3 nov. 2021,
15:17:52.
16 Conforme relato de SIFRY, Micah L. Hillary Clinton launches “21st century statecraft” initiative by

State Department. TechPresident blog, 13 May 2009.


17 DUPONT, Sam. Secretary Clinton announces “Civil Society 2.0”. NDN blog, 3 November 2009.

18 HALLIDAY, Josh. Hillary Clinton adviser compares internet to Che Guevara. Guardian, 22 June

2011.
19 SAKWA, Richard. Putin Redux: Power and Contradiction in Contemporary Russia. Abingdon:

Routledge, 2014.
20 Para uma tradução do artigo de Gerasimov (a partir do discurso por ele proferido), v. o blog “In

Moscow’s Shadows”, de Mark Galeotti, na Wordpress. Embora bastante discutidas desde então,
Galeotti e Charles Bartles escreveram análises particularmente boas. V. GALEOTTI, Mark. I’m sorry
for creating the “Gerasimov doctrine”. Foreign Policy, 5 March 2018; BARTLES, Charles K. Getting
Gerasimov right. Military Review, January—February 2016.
21 Para uma abordagem da televisão na Rússia, v. OSTROVSKY, Arkady. The Invention of Russia: The

Journey from Gorbachev’s Freedom to Putin’s War. London: Atlantic, 2015; BURRETT, Tina.
Television and Presidential Power in Putin’s Russia. Abingdon: Routledge, 2010. Para conhecer a
abordagem de Putin às empresas de internet pós 2011, v. SANOVICH, Sergey. Computational
Propaganda in Russia: The Origins of Digital Disinformation, Working Paper 2017.3.
Computational Propaganda Research Project, University of Oxford, 2017; KONONOV, Nikolay.
The Kremlin’s social media takeover. New York Times, 10 March 2014.
22 O arquivo completo dos e-mails de Kristina Potupchik pode ser encontrado em: poupchik.com.

23 CLOVER, Charles. Black Wind, White Snow: The Rise of Russia’s New Nationalism. New Haven,

CT: Yale University Press, 2016. Para acesso a descrições dos acampamentos de verão do Nashi, v.
IOFFE, Julia. Rússia’s nationalist summer camp, New Yorker, 16 August 2010; NEMTSOVA, Anna.
Kremlin’s extremist youth camp in Russia. Daily Beast, 10 August 2011; HARDING, Luke. Welcome
to Putin’s summer camp, Guardian, 24 July 2008.
24 Conforme citação no excelente artigo de FEDOR, Julie; FREDHEIM, Rolf. “We Need More Clips

about Putin, and Lots of Them”: Russia’s State-Commissioned Online Visual Culture. Nationalities
Papers, 45:2, p. 161-81, 2017.
25 Controversial Nashi spokesperson quits. Moscow Times, 28 June 2012.

26 GARMAZHPOVA, Aleksandra. Gde zhivut trolli. I kto ikh hormit [Onde vivem os trolls. E quem os

alimenta]. Novaya Gazeta, 7 September 2013; SEDDON, Max. Documents show how Rússia’s troll
army hit America. Buzzfeed, 2 June 2014. V. também os artigos de 2015 sobre a agência de São
Petersburgo, de autoria de Adrian Chen (New York Times), Shaun Walker (Guardian) e Alec Luhn
(Guardian).
27 STAMOS, Alex. An update on information operations on Facebook. Facebook Newsroom, 6

September 2017.
28 A gravação do incidente hoje está disponível no YouTube e no Facebook. V. “berkut, polonenuy”,

Fari Ahad/Facebook, 23 January 2014. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?


v=z0zD3pOG-Tk. Acesso em: 21 maio 2018. Em 5 de novembro de 2011, o YouTube exibia a
seguinte mensagem: “Este vídeo foi removido por violar a política do YouTube sobre assédio e
bullying”. [N. do T.]
29 Para mais sobre Berkut, v., por exemplo: Ukraine’s Berkut police: what makes them special? BBC

News, 26 February 2014; sobre a incorporação do Berkut ao ministério do interior russo, v.


KOLOKOLTSEV, Vladimir. Russian interior bodies created in Crimea and Sevastopol. TASS, 25
March 2014. Postagens do CyberBerkut fornecidas pelo banco de dados da internet Wayback
Machine.
30 HULCOOP, Adam; SCOTT-RAILTON, John; TANCHAK, Peter; BROOKS, Matt; DEIBERT, Ron. Tainted

leaks: desinformation and phishing with a Russian nexus. Citizen Lab, 25 May 2017.
31 CARROLL, Lauren. Are the Clinton WikiLeaks emails doctored, ou are they authentic? Politifact, 23

Octobert, 2016; Willsher e Henley. Emmanuel Macron’s campaign hacked.


32 V. publicações do Digital Forensic Research Lab em Medium.com, em especial NIMMO, Ben;

BAROJAN, Donara. Kremlin and alt-right share “Nazi” narrative. Medium, 18 august 2017. V.
também ARNSDORF, Isaac. Pro-Russian bots take up the right-wing cause after Charlottesville.
ProPublica, 23 August 2017.
33 COX, Joseph. I bought a Russian bot army for under $100. Daily Beast, 13 September 2017.

34 BESSI, Alessandro; FERRARA, Emilio. Social Bots Distort the 2016 US Presidential Election Online

Discussion. First Monday, 21:11.


35 Embora inexista uma “doutrina Gerasimov”, de acordo com Mark Galeotti, que cunhou o termo, ele

tem sido associado a uma nova abordagem aos conflitos que incluem o uso bélico da informação.
36 BRADSHAW, Samantha; HOWARD, Philip N. Troops, Trolls and Troublemakers: A Global Inventory

of Organized Social Media Manipulation. Working Paper 2017.12, Computational Propaganda


Research Project, University of Oxford, 2017; REED, John. Vietnam army reveals 10,000-strong
cyber warfare unit. Financial Times, 26 December 2017; SALISBURY, Peter. The fake-news hack that
nearly started a war this summer was designed for one man: Donald Trump. Quartz, 20 October
2017.
Parte 2

Falha de sistemas
As eleições do Facebook

Quem movimenta os cordéis é quem controla a mente do público, domina as antigas forças
sociais e forja novas maneiras de enlaçar e conduzir o mundo.
Edward Bernays, Propaganda

A vitória dele nas eleições de 2016 foi um choque tremendo. Não se supunha
que ele vencesse. Era um forasteiro, muito distante da política convencional,
que entrou tarde na campanha sem o legado político ou a infraestrutura
para concorrer com o que outros candidatos contavam. Apresentou-se como
um homem do povo a enfrentar um establishment corrupto. Dispunha de
poucos programas políticos que fossem de fato seus. Preferiu optar por
protestar contra a corrupção e o fracasso das elites políticas, prometendo, se
eleito, oferecer liderança capaz de combater o crime, desenraizar a
corrupção governamental e reconstruir a infraestrutura do país. Em
comícios encenados com grande teatralidade, destacou seu patriotismo
beijando a bandeira nacional e pedindo a ajuda do público para restaurar
uma nação quebrada. “Juntos vamos consertar o país”, dizia. Ao longo da
campanha eleitoral, enfureceu pessoas com sua arrogância vulgar,
linguagem rude, piadas de estupro e retórica belicosa. Carente do dinheiro
de outras campanhas mais consagradas, concentrou a atenção nas redes
sociais, organizando e mobilizando seus apoiadores no Facebook e no
Twitter. Utilizou uma combinação de declarações grosseiras e estilo de
liderança ditatorial para chamar a atenção do público e estimular sua base.
O candidato não era Donald Trump, e sim Rodrigo Duterte, que deixou o
mundo atônito com uma vitória esmagadora na eleição filipina de maio de
2016. Não foi o único a fazer apelos populistas, nem o único a declarar
guerra à corrupção. Mas ostentou um estilo machista provocativo e foi
considerado “o primeiro a fazer pleno uso do poder das redes sociais”.1
Na eleição anterior, seis anos antes, isso teria feito pouca diferença em
relação ao resultado. Contudo, nos anos intermediários, os filipinos haviam
adotado as mídias sociais — em particular o Facebook — com incrível
entusiasmo. Em 2016, cerca de metade da população filipina do país tinha
acesso ao mundo on-line (e perto de três quartos desse total estavam
qualificados a votar). Quase a mesma quantidade estava no Facebook. Eles
também tinham sido agraciados com a honra duvidosa de figurarem como
líderes mundiais no tempo gasto em redes sociais — utilizando-as, na
média, 4 horas e 17 minutos por dia, ou o tempo de voo entre Manila e
Tóquio.2
Só a campanha de Duterte tirou plena vantagem disso. As atividades
digitais do candidato eram completamente integradas às demais, e
consideradas com o mesmo nível de importância. A equipe responsável
esquadrinhava as redes sociais em busca não só de apoiadores de Duterte,
mas de influenciadores com atuação específica nas redes. Ela os atraía então
para a causa. Depois que embarcavam, eram encorajados a mobilizar suas
redes, a criar conteúdo viral, a evangelizar on-line e a sufocar a oposição.
Graças à interconexão das redes sociais, isso tinha um efeito multiplicador
extraordinário. O veículo noticioso independente filipino Rappler registrou
que a campanha mobilizou de 400 a 500 influenciadores, cada qual com
redes de 300 a 6 mil integrantes (uma delas, no entanto, contava com 800
mil). O que equivalia a acesso direto via redes sociais a 1 milhão de pessoas,
o exército não oficial da campanha, todo interligado. A referência a termos
militares era constante (havia inclusive páginas do Facebook com nomes
como “Guerreiro de Duterte”). Essas brigadas digitais podiam ser
mobilizadas para inundar o Facebook ou o Twitter com a “mensagem da
semana” ou para amplificar vídeos, mensagens ou hashtags específicos de
campanha. De igual modo, podiam ser incitadas a apoiar e defender Duterte
— como quando se uniram para apoiar a #DuterteTilTheEnd na ocasião em
que o candidato foi acusado de corrupção.3
Todavia, como justiceiros politizados, os batalhões on-line de Duterte
também se mostravam cruéis e agressivos. Uma jovem filipina, Renee
Juliene Karunungan, publicou no Facebook dizendo que escolher “Duterte é
optar pela indiferença”. Ela recebeu tantas ameaças de estupro e morte que
deu queixa contra mais de uma dezena de agressores. Alguns dos ataques
on-line se revelaram tão sórdidos que Duterte em pessoa chegou a intervir,
divulgando em sua campanha uma declaração para que as pessoas
“exercitassem civilidade, inteligência, decência e compaixão”. Como no caso
de Trump, e sua infantaria no 4chan e no Reddit, Duterte não tinha ligações
formais com esses grupos pandemônicos, de modo que conseguia se
distanciar quando necessário. Novamente como no caso de Trump, a
abordagem agressiva e brutal da campanha política, um verdadeiro vale-
tudo — sobretudo nas plataformas tecnológicas predominantes —
funcionou: aos 71 anos de idade, Duterte se tornou presidente das Filipinas
em junho de 2016. Não baixou o tom do estilo beligerante após a eleição. “Só
porque vocês são jornalistas”, disse em uma entrevista coletiva, pouco depois
de prestar juramento como presidente, “não estão livres de assassinato, se
forem filhos da p***”.4
A vitória de Donald Trump nas urnas em novembro de 2016 surpreendeu
muita gente. Contudo, seu sucesso precisa ser visto no contexto de toda uma
série de contratempos em eleições e referendos ocorridos em democracias
mundo afora depois de 2012. Em fevereiro de 2013, o Five Star Movement
de Beppe Grillo — um movimento que o comediante italiano só iniciou de
fato em setembro de 2009 — conquistou mais de um quarto dos votos
nacionais. Menos de um ano antes, ele recebera apenas 5% dos votos. Em
janeiro de 2013, na República Tcheca, Karel Schwarzenberg alçou ao
segundo lugar na eleição presidencial em vertiginosa escalada, tendo sido
considerado uma piada quando lançou sua campanha, em outubro último.
Em abril de 2014, na Hungria, o partido de extrema-direita Jobbik
conquistou 21% dos votos, ultrapassando muito a expectativa do público.
No mês seguinte, na Índia, a maior democracia do mundo, o líder do
partido BJP, Narendra Modi, arruinou todos os prognósticos ao assegurar a
primeira maioria absoluta para um partido no governo desde 1984. Em
julho, na Indonésia, Joko Widodo, o “Obama indonésio”, concluiu uma
ascensão miraculosa da favela à margem do rio em Surakarta, onde foi
criado, para a presidência. No ano seguinte, na Argentina, Mauricio Macri,
líder do Proposta Republicana (PRO), precipitou-se lá de trás para derrubar
o Frente pela Vitória (FPV), partido dos Kirchners que vinha governando a
Argentina desde 2003. “Mesmo pelos padrões operísticos da política
argentina”, noticiou o New York Times, “a vitória de virada de Mauricio
Macri, prefeito de Buenos Aires, no domingo foi desconcertante.” Da
Indonésia à Itália, da Argentina à República Tcheca, candidatos e partidos
azarões estavam conquistando novas altitudes.5
Partidos estabelecidos, candidatos em exercício e defensores do status
quo também se descobriram bombardeados por ondas inesperadas de
frustração e ira. Na Malásia, em maio de 2013, a coalizão governante Barisan
Nasional, que vencera com folga todas as eleições desde 1974, recebeu
menos da metade dos votos populares (embora conservasse cadeiras
suficientes para se manter no poder pelo menos até 2018). Na Escócia, em
2014, pouco menos de 45% votou pela independência, número alcançado a
partir de apenas 28% três anos antes. Em outubro, no Brasil, depois do que a
The Economist chamou de “campanha selvagem e sórdida”, Dilma Rousseff
mal conseguiu manter o cargo. Em junho de 2016, em um resultado que
deixou perplexa grande parte do mundo, a Grã-Bretanha desdenhou da
própria imagem de estabilidade e votou para deixar a União Europeia. Em
maio seguinte, Emmanuel Macron, tendo criado um partido do zero e
disputado uma campanha “impelida pelo povo”, derrotou todos os partidos
estabelecidos para vencer a presidência da França.6
Cada um desses referendos e eleições foi nacional e culturalmente
distinto, e cada um deles contou com uma confluência de causas própria e
complexa. Mas muitos partilharam de características comuns. Os
prognósticos dos peritos em sondagem de opinião pública acabaram se
revelando equivocados com regularidade. As pesquisas oscilaram feito
loucas, com frequência se contradizendo e com frequência mostrando
variações sem precedentes. Candidatos persuasivos e carismáticos
eclipsaram os próprios partidos. Gente estranha aos rankings, azarões e
partidos recém-criados se saíram bem melhor que o esperado. Grupos de
interesse especial, eleitores preocupados com uma questão única e outros
antes inativos compareceram às urnas em quantidades muito maiores que as
imaginadas. As campanhas em si, de modo geral, se caracterizavam por
intenso sectarismo, dissensão e emoções à flor da pele. Em todas elas, as
mídias sociais desempenharam um papel estelar, sendo a mãe de todas elas o
Facebook, acompanhado de sua prole variada — Instagram, WhatsApp e
Messenger. Na época, o Facebook se tornou o contexto das campanhas
digitais, o espaço mais importante em que as campanhas eleitorais eram
travadas. Para alguns candidatos, a plataforma foi nada mais, nada menos
que o caminho mais rápido e eficaz para angariar seguidores, envolvê-los e
falar-lhes diretamente — contornando canais de mídia tradicional como a
TV e a imprensa. Para outros, tornou-se um modo de alcançar eleitores
essenciais com a mensagem exata no momento certo. Não que todos esses
candidatos ou campanhas fossem peritos em Facebook (mas com certeza era
o caso de alguns). Eles apenas reconheceram o poder da plataforma e a
abraçaram. Ajudou, claro, o fato de regras e limites impostos em outras
mídias estarem em grande parte ausentes no Facebook. Inexistindo
fronteiras, os ativistas políticos, feito machos cheios de testosterona à solta
em uma despedida de solteiro, enlouqueceram. E processos e proteções
democráticos foram descartados no processo.
É uma ironia que o Facebook tenha se tornado tão fundamental e, ao
mesmo tempo, tão nocivo para a política democrática, considerando que na
maior parte de sua curta vida ele nunca pensara muito em política. Dedicou-
se bem mais a pensar no crescimento de sua base de usuários, na UX (sigla
em inglês para designar a “experiência do usuário”), no envolvimento desses
usuários com o site e no tempo que dedicavam a ele, bem como no
desenvolvimento de serviços — espaços para publicações, grupos, o Feed de
Notícias — de forma a mantê-los no Facebook (fazendo sempre questão de
identificá-los como “usuários” em vez de indivíduos). Quando a plataforma
levava a política em consideração, tinha a tendência de se presumir
democratizante por natureza; identidade política era apenas mais um
detalhe a acrescentar a seu perfil, e se a organização tinha um papel político,
devia ser apenas incentivar a participação. Um papel coerente com o
objetivo geral do Facebook, de promover o crescimento, maximizar a
atividade e buscar a hegemonia a todo custo (levando ao aumento da
receita). Em essência, o Facebook achava excelente o envolvimento político,
desde que acontecesse sobretudo em suas páginas. As consequências
altamente relevantes de ele se tornar a principal plataforma para o debate
político global não parecem ter ocorrido a quem comandava a empresa.
Tampouco essas pessoas pensaram que nem todo o mundo que utilizava a
plataforma para fins políticos teria em mente os melhores interesses da
democracia, ou que o Facebook devesse permitir às pessoas fugir das
proteções desenhadas para tornar o processo democrático livre, justo e
aberto. Na realidade, Mark Zuckerberg e colegas parecem ter sido
displicentes ao presumir que a ambição do Facebook de tornar o mundo
mais aberto e conectado — e sua busca de cumprir os objetivos comerciais
(mais envolvimento, mais cliques, mais compartilhamentos, mais
comentários) — eram ambos sinônimos de aprimoramento da democracia
liberal, e a ele complementares. Essa suposição ingênua e egocêntrica
haveria de ter repercussões globais irremediáveis.
Não que Zuckerberg ignorasse por completo o poder político de sua
criação. Menos de três anos depois de lançar o site a partir do dormitório
que ocupava em Harvard, e no momento em que o abria para usuários não
estudantes, o rapaz de 22 anos conscientemente inseriu o Facebook em uma
campanha eleitoral norte-americana. Era o outono de 2006 e, com a rápida
aproximação das eleições para todos os cargos exceto o de presidente da
República, o Facebook criou um perfil para cada candidato. Se quisessem,
eles poderiam assumir a própria página e utilizá-la para iniciar discussões,
publicar comentários, falar com as pessoas sobre eventos e construir uma
base de apoiadores na plataforma. É revelador que as páginas estivessem
ativas quer os candidatos assim o desejassem, quer não. E, se você registrasse
o apoio a um candidato, tinha toda liberdade de postar na página dele, ainda
que ele não a tivesse reclamado para si. No fim, apesar de milhares de
postagens públicas na página dos candidatos, eles próprios quase nunca
responderam. O Facebook também concedeu aos usuários a oportunidade
de expressar sua tendência política aos amigos na rede. Em 2008 acrescentou
o botão “Eu votei” em alguns perfis norte-americanos, alertando aos
respectivos contatos o exercício do direito de votar. Desse modo, a política,
para o Facebook, era igual a tantas outras coisas existentes na plataforma,
uma expressão de identidade pessoal — como a paixão por gatos ou pelo
Manchester United.7
Foi em 2008 que o potencial político do Facebook realmente começou a
ficar evidente, mais em consequência de um de seus fundadores que do site
em si. Chris Hughes, 25 anos, colega de quarto de Zuckerberg em Harvard e
integrante da equipe de trabalho original do Facebook, deixou a empresa em
2006 para trabalhar na campanha de Obama. Ali ele criou o
My.BarackObama.com, ou MyBO, que forneceu aos partidários de Obama
as ferramentas digitais necessárias para se tornarem organizadores ativos da
campanha. Hughes pegou o que aprendera com o Facebook e conferiu à
campanha de Obama o networking que de outro modo ela não teria. No
decorrer da campanha, 2 milhões de voluntários organizaram 200 mil
eventos pelo site, formaram 35 mil grupos e levantaram 30 milhões de
dólares.8 A equipe de Barack Obama também se serviu do Facebook, mas
como uma entre as várias ferramentas de mídia social que estava testando
para alcançar diretamente os eleitores. Isso é um reflexo do alcance limitado
que as mídias sociais — como o Facebook — tinham em meados de 2008,
quando apenas um de cada dez norte-americanos as utilizava para fins
políticos.9 Muito antes que quase qualquer outro político democrata, Obama
enxergou as potencialidades das redes sociais digitais na mobilização de
apoiadores em torno de um candidato — em especial quando esse candidato
defendia mudanças. Nesse sentido, aquela não foi uma “eleição do
Facebook”, como a chamaram cedo demais, mas foi a primeira eleição em
que o poder político das redes sociais começou a se tornar evidente.10
Dois anos depois, nas eleições de 2010 para cargos diferentes da
presidência, quase todos os candidatos norte-americanos tinham uma
página no Facebook.11 Quase três quartos dos usuários de internet nos
Estados Unidos estavam se inteirando de notícias políticas on-line, e quase
dois terços dos eleitores on-line do país usavam mídias sociais.12 Isso não
significou que todos os candidatos se beneficiaram em igual medida. Pelo
contrário, a popularidade política no Facebook se comparava às indústrias
da internet, quando traduzida em gráfico: o resultado obtido seria no
melhor estilo “o vencedor leva tudo”. Políticos como Barack Obama e Sarah
Palin ganharam milhões de seguidores, enquanto candidatos menos
envolventes e menos emocionalmente estimulantes conquistaram poucas
centenas.13 Ajudava se o candidato provocasse polarizações. O apego ao
meio-termo, a busca pelo consenso e pela harmonia em vez de pela
incitação do público não eram estratégias vitoriosas no Facebook. Mesmo
assim, em 2010, apesar do número crescente de usuários debatendo sobre
política nas redes sociais, as bolhas de discussões estouraram naturalmente e
a política com certeza não era a principal razão para as pessoas se
conectarem. Inteirar-se das novidades com amigos, compartilhar fotos de
férias e postar imagens de bebês atraía muito mais que a política. Apenas um
em vinte usuários norte-americanos de redes sociais afirmaram utilizá-las
para ler comentários de políticos, celebridades ou atletas.14
Em 2010, também para o Facebook a política dos Estados Unidos ainda
estava a uma longa distância do topo na lista de prioridades. A plataforma
corria para ocupar a liderança entre as redes sociais e evitar ser suplantada
pelos rivais que surgiam do nada. Mensurada pelo crescimento vertiginoso,
a estratégia do Facebook estava sendo bem-sucedida. Entre o outono de
2008 e o fim de 2010, o número de pessoas a utilizá-lo explodiu, saltando de
100 milhões de usuários regulares para mais de 600 milhões. Grande parte
desse crescimento aconteceu fora dos Estados Unidos, de modo que, no fim
de 2010, 70% dos usuários era de não norte-americanos. O Facebook se
esforçava muito para tirar proveito dessa energia e levar a plataforma a seu
primeiro bilhão de usuários. Impulsionou o serviço para o Brasil e a Índia,
procurando suplantar a oferta da rede social própria do Google, o Orkut,
nos dois países (coisa que logo conseguiu). Canibalizou implacavelmente as
peculiaridades bem-sucedidas do competidor, adaptando seu Feed de
Notícias para um fluxo de dados e incentivando os usuários a
compartilharem a fim de destruir o Twitter, que vinha em rápido
crescimento. No Reino Unido, ultrapassou como um raio a rede social Bebo,
e, na Alemanha, superou o líder em serviços domésticos, o StudiVZ.
Enquanto isso, a mídia se deixava hipnotizar pelo crescimento do Facebook
para fazer uma avaliação de sua importância política. Na realidade, ao ler
reportagens sobre o Facebook de 2010, impressiona como são poucas as que
fazem alguma alusão à política. A imprensa estava ocupada demais
comentando o novo filme de Aaron Sorkin sobre o Facebook, A rede
social,15 ou criticando a brilhante biografia escrita por David Kirkpatrick dos
cinco primeiros anos do Facebook, O efeito Facebook.16
A capacidade do Twitter, não do Facebook, de subverter a política
internacional foi a que primeiro chamou a atenção do público. Os protestos
no Irã após a eleição de 2009 foram apelidados de “revolução do Twitter”
por uma interpretação equivocada: afinal, a maior parte dos participantes
dos protestos não usava o Twitter, e o resultado da manifestação não
resultou em revolução. Mesmo assim, a mensagem que muita gente
entendeu foi que as ferramentas das redes sociais tinham potencial político
intrínseco, e esse potencial seria inerentemente democratizante. A impressão
se misturou com o crédito atribuído às mídias sociais — sendo mais
específico, ao Facebook — pela onda de protestos revolucionários que varreu
o norte da África e o Oriente Médio em 2011. Um crédito não imerecido por
completo. Como mostra a pesquisa da tecnossocióloga Zeynep Tufekci,
“pessoas presentes nas mídias sociais, em especial Facebook e Twitter,
tinham probabilidade bem maior de comparecerem no primeiro dia crucial
em que foi dado o pontapé da avalanche de protestos que estava por vir”.17
Essa ilustração surpreendente da potência política do Facebook não levou
Mark Zuckerberg a um período de autorreflexão. Nem conduziu o Facebook
a uma pausa para considerar as implicações de tamanho poder político, ou a
adquirir maior consciência de si mesmo em termos de qual deveria ser seu
papel ou quais responsabilidades a plataforma deveria assumir. Do ponto de
vista de Zuckerberg, fossem quais fossem os impactos perturbadores que a
tecnologia estava tendo sobre a política, isso não acontecia como
consequência do Facebook, mas da internet. “Seria uma arrogância extrema
da parte de qualquer empresa de tecnologia reivindicar crédito” pela
Primavera Árabe, disse ele na reunião do G8 em 2011. “As pessoas estão
tendo a oportunidade de se comunicarem. Isso não é coisa do Facebook. É
coisa da internet.” Fosse como fosse, a empresa não tinha tempo para se
preocupar com política; assuntos mais urgentes exigiam seu cuidado. Eles
trabalhavam dia e noite para eliminar a nova rede social do Google, o
Google+; estavam lançando um serviço mensageiro separado do Facebook;
preparavam-se para adquirir o site de compartilhamento de fotos Instagram
por 1 bilhão de dólares; e caminhavam rumo a uma oferta pública inicial
(IPO) prevista para maio de 2012. A política era menos importante que
acelerar o crescimento e o envolvimento globais e descobrir como converter
a crescente hegemonia internacional do Facebook em dólares.
E como o Facebook crescia! Na manhã de 4 de outubro de 2012, quando
os eleitores norte-americanos acordaram e receberam a notícia do primeiro
debate presidencial entre Barack Obama e Mitt Romney, o Facebook
anunciou ter atingido a marca de 1 bilhão de usuários. Em pouco mais de
dois anos, adicionara meio bilhão de pessoas, o equivalente a mais que a
população inteira da América do Sul. Fora dos Estados Unidos, as nações
em que o Facebook crescia mais depressa eram também as maiores
democracias mundiais. Na Índia, o número de usuários da plataforma
passou de menos de 45 milhões em 2011 para 112 milhões em 2014. Nesse
mesmo período no Brasil, foi de 28 milhões para 72 milhões. Os brasileiros
dedicavam, então, três a quatro horas por dia às redes sociais (sobretudo —
mas não só — ao Facebook). Na Indonésia, das 71 milhões de pessoas on-
line em 2014, 65 milhões — colossais 92% — eram usuárias ativas do
Facebook. Mais: não só o Facebook se tornava depressa a rede social
predominante mundo afora, como também um espaço de discussão política.
Em 2012, a eleição norte-americana foi o tópico mais debatido no Facebook,
e mais de quatro em cada dez norte-americanos diziam ter participado de ao
menos um ato político em mídias sociais no último ano. Em 2013, “eleição”
foi o tópico mais discutido no site. Em 2014, a eleição brasileira foi o terceiro
assunto mais debatido no Facebook no mundo todo.18
Em se tratando de política, fosse o governo autoritário ou democrático,
cada vez mais o Facebook ocupava o principal espaço público — o mercado
digital. O candidato que percebeu isso e soube aproveitar se beneficiou
desproporcionalmente. Tirando partido da frustração dos italianos com seu
sistema político em setembro de 2009, Beppe Grillo anunciou o início de um
novo movimento que “nascerá na internet”. Em novembro de 2012 ele já
contava com 1 milhão de apoiadores no Facebook, quase cinco vezes o
número de seu oponente mais próximo. Usou a plataforma para organizar
comícios e demonstrações políticas, protestar contra a casta — o
establishment italiano privilegiado — e converter seguidores em votos.
Narendra Modi viu a mesma coisa acontecer. Líder e candidato do
partido BJP indiano na eleição de 2014, Modi amealhou uma quantidade
enorme de seguidores no Facebook, com os quais se envolveu ao longo da
campanha. Desde o dia do anúncio da eleição até o encerramento das
votações, o Quartz noticiou: “Treze milhões de pessoas se envolveram em 75
milhões de interações relacionadas com Modi” no Facebook. Como Grillo,
Modi incentivou seus defensores a se tornarem ativistas no que chamou de
Missão 272+ (sendo 272 o número de assentos de que o BJP necessitava para
ser majoritário), através do Facebook ou de um dos aplicativos Android
desenvolvidos para a campanha. Voluntários se inscreveram em cada um
dos 543 distritos eleitorais do país.
O contraste entre a comunicação política nessa eleição indiana e na
anterior, de 2009, pode ser comparado à diferença entre o telefone e o
megafone. Em 2009, as redes sociais eram praticamente irrelevantes. Havia
um político indiano no Twitter — Sashi Tharoor — com 6 mil seguidores
apenas. Durante a campanha de 2014 foram 227 milhões de interações via
Facebook (postagens, comentários, compartilhamentos e curtidas). Modi
contava com 16 milhões de seguidores no Facebook quando tomou posse.
Como o diretor de novas estratégias do Facebook disse ao Times of India: “O
Facebook é mesmo o lugar fundamental do debate que está acontecendo”.
A adoção das redes sociais por Modi — seu rival Rahul Gandhi, que chefiava
o Congresso Nacional indiano, não tinha conta no Facebook nem no Twitter
— deu novo estímulo à campanha, incentivou a rede de voluntários e levou
as pessoas a votarem. Quando saíram os resultados da eleição, para surpresa
de quase todo o mundo, o partido BJP de Modi ultrapassara o alvo de 272
assentos, conquistando 282 e mais que dobrando o número de votos em
relação a 2009.
Do ponto de vista do Facebook, toda essa atividade política na plataforma
era excelente e devia ser encorajada. A plataforma acrescentou um botão
dizendo “Sou eleitor” na página do Facebook de eleitores indianos em 2014,
permitindo que o pressionassem a fim de comunicar à rede em quem
tinham votado. Depois de a empresa testar essa opção pela primeira vez nos
Estados Unidos em 2008, decidiu implementá-la no mundo inteiro; em
2016, o botão estava ativo em 47 países.19 Foi um incremento aos aplicativos
do Facebook que rastreavam a popularidade dos candidatos e um programa
de divulgação global para aumentar as interações políticas. Politizar
eleitores, acreditava quem geria a plataforma, estava em completa sintonia
com a missão global da empresa de tornar o mundo mais aberto e
interligado. “Parte dessa [missão]”, disse Katie Harbath, do Facebook, ao
Buzzfeed em 2014, “consiste em ajudar a conectar cidadãos com as pessoas
que os representam no governo.” Como o anfitrião de uma festa infantil que
enche os pequeninos de bebidas adocicadas efervescentes, o Facebook só
queria energizar os cidadãos, sem levar em consideração para onde eles
poderiam direcionar sua energia.
Em 2014 ainda não havia sinal de que os responsáveis por gerir a
plataforma estivessem ansiosos com as repercussões involuntárias que o
Facebook poderia estar causando na política democrática: para citar um
exemplo, a maneira pela qual os candidatos que divulgavam fortes
mensagens anti-establishment — como Narendra Modi, Karel
Schwarzenberg ou Beppe Grillo — pareciam conquistar maior número de
seguidores mais ativos que aqueles com uma mensagem mais moderada ou
conservadora; ou como partidos de extrema-direita com mensagens anti-
imigração e antissemítica, como o Jobbik na Hungria, estavam implantando
grandes bases de apoio. De fato, o Jobbik era o partido mais popular da
Hungria no Facebook antes das eleições de 2014. Tampouco eles pareciam
preocupados com o fato de que o engajamento político no site vinha com
frequência irmanado com veemente sectarismo. Nos preparativos para a
eleição brasileira de outubro de 2014, por exemplo, “uma guerra devastou as
mídias sociais”, conforme noticiado pelo Washington Post, “com amigos e até
familiares brigando em virtude de adesão política e deixando de ser amigos
uns dos outros no Facebook”. Na Tailândia, uma pesquisa sobre as eleições
de 2014 descobriu que o Facebook pode ter “exacerbado divisões existentes”
em uma sociedade já profundamente dividida, e que grupos sectários do
Facebook estavam ignorando “informação discrepante” incompatível com a
visão política de seus integrantes”.20 Também na Tailândia, naquele mesmo
ano, surgiram grupos políticos de justiceiros baseados no Facebook,
incluindo o “SS” e a “Rubbish Collector Organization”, atacando usuários
que eles viam como antimonarquistas.21 Mesmo assim, apesar de seu efeito
deturpador sobre a política democrática, tivesse o Facebook restringido o
próprio papel no sentido de viabilizar ação e coordenação civis, e propiciado
um espaço em que candidatos e partidos pudessem publicar mensagens e
coordenar seus apoiadores, então seria justificável a empresa declarar que
seus atos não diferiam dos de outras plataformas digitais (e eram bem mais
responsáveis que, digamos, os do 4chan). Mas o Facebook não parou por aí.
Foi além, muito além, permitindo que atores motivados manipulassem a
política democrática.
Em 2012, o Facebook deixou de ser um facilitador relativamente passivo
da ruptura democrática para se tornar um agente dinâmico. Foi o ano em
que escolheu pegar seu alcance fenomenal, sua notável profundidade em
termos de dados pessoais e seu crescente controle da atenção mundial e
converter em dólares. Fez isso transformando a plataforma no sistema de
publicidade comportamental mais poderoso que o mundo já conheceu.
Até 2012, veicular publicidade no Facebook não era a opção mais
inteligente. Significava confiar não na inteligência acerca do comportamento
dos usuários ou dos detalhes do perfil deles, mas em números absolutos. Em
sua memória pouco convencional intitulada Chaos Monkeys [Macacos do
caos], Antonio García Martínez, que trabalhou como diretor de produto do
Facebook de 2011 até 2013, descreve seu espanto ao constatar como a
monetização de seus usuários pela plataforma era ruim na época em que
entrou na empresa. Era “da pior espécie”, escreve Martínez. “Antes de 2013,
se você quisesse saber como o Facebook ganhava dinheiro, a resposta era
muito simples: 1 bilhão vezes qualquer número ainda é um número
respeitável.”22
Em 2012, com a proximidade de sua estreia na Bolsa e o Facebook
constatando que precisa provar o próprio valor de mercado para os
investidores, a empresa apostou todas as fichas na criação de sua máquina de
propaganda inteligente, expansível, global e segmentada. Ao perseguir seus
objetivos comerciais, ela introduziu em abundância novas maneiras de
permitir às empresas segmentar os usuários com maior precisão, alcançá-los
com maior eficácia e aprender — via reação das pessoas — a tornar sua
publicidade mais poderosa. Em certo sentido, isso nada mais era que
praticar o que todo o mundo na internet estava tentando fazer: monetizar a
atenção dos usuários. Todavia, o Facebook desfrutava de uma posição
singular para isso. Em 2012, nenhuma outra empresa dispunha de 1 bilhão
de usuários regulares espalhados mundo afora; nenhuma outra empresa
sabia tanto sobre seus usuários; e nenhuma outra empresa tinha acesso tão
íntimo a esses usuários por meio dos amigos e familiares deles. Do ponto de
vista do Facebook, bastava criar ferramentas comerciais melhores para
ajudar as empresas a fazer propaganda junto aos consumidores. Não está
claro se a empresa entendia quão poderosas essas ferramentas comerciais
poderiam ser para as campanhas políticas, ou que implicações poderiam ter
para a democracia. Contudo, não muito tempo depois de serem
introduzidas, candidatos, responsáveis pelas campanhas eleitorais e partidos
começaram a reconhecer seu potencial político e a tirar vantagem dele. E,
mesmo que não fosse a intenção original, não demorou para o próprio
Facebook começar a incentivar as pessoas a utilizar as ferramentas nas
campanhas — não importando o propósito político delas.
Havia três elementos no empenho do Facebook para possibilitar uma
segmentação bem mais sofisticada de seus usuários. O primeiro tinha a ver
com a oferta aos anunciantes de uma variedade muito mais rica de critérios
pelos quais identificar quem interessava segmentar: permitir que os
anunciantes atingissem pessoas que jogavam golfe ou amavam jardinagem,
por exemplo, em vez de restringi-los a medidas padrões como idade, gênero
ou status de relacionamento. O segundo estava relacionado a conceder aos
anunciantes o poder de alcançar pessoas em um contexto confortável e
familiar, e de modo a tornar a publicidade mais fidedigna. Fizeram isso
inserindo anúncios no Feed de Notícias das pessoas a partir de janeiro de
2012, algo que haviam experimentado por breve período em 2007, mas
desistiram ante os protestos dos usuários.23 Dessa vez, como o Facebook
assumira controle muito maior sobre quais postagens eram exibidas em seu
Feed de Notícias em 2011, conseguia introduzir anúncios de maneira mais
estratégica. Não eram anúncios como os que se vê em outros lugares da rede.
Chamados de postagens “de destaque”, incluíam o que se parecia com o aval
de alguém da sua rede no topo (como “Sarah Smith gosta da Amazon.com”).
O terceiro elemento de transformação do Facebook consistia em possibilitar
aos anunciantes reunir o que já sabiam sobre as pessoas com o que o
Facebook sabia sobre essas mesmas pessoas. O Facebook fez isso por meio
de algo chamado de “Custom Audiences”, lançado no outono de 2012, que
permitia às empresas conectar seus clientes com o respectivo perfil dessas
pessoas no Facebook, criando uma ponte entre Facebook e o mundo real.24
Ao longo dos meses e anos seguintes, a empresa desenvolveria esses recursos
e acrescentaria novos, dando aos anunciantes ainda mais opções para
segmentar usuários e avaliar e desenvolver seus sistemas de mensagens. Em
fevereiro de 2013, por exemplo, o Facebook anunciou que estava se unindo a
corporações que trabalhavam com grandes volumes de dados, como a
Axciom e a Epsilon, a fim de que as empresas pudessem mesclar dados
pessoais do mundo real com seu público no Facebook.25 E no mês seguinte
lançou o “Lookalike Audiences”, possibilitando às empresas usar dados
comportamentais do Facebook para encontrar novos consumidores
semelhantes aos já existentes.26 Se o Facebook fosse um jogador de pôquer e
suas fichas, as informações pessoais de seus usuários, então de 2012 em
diante a plataforma apostaria tudo o que tinha.
Até então, todos os lançamentos de novos produtos pareciam remeter ao
mundo corporativo, sem relação com a política. Mas o que para uma
montadora de carros poderia ser um modo bem mais eficaz de vender seus
produtos, para um candidato político seria um instrumento poderosíssimo
de propaganda. Para as campanhas políticas, as ferramentas de segmentação
do Facebook são como disparar um riflo potente, munido de mira
telescópica, depois de ter nas mãos uma arma que não contava nem com
estrias no cano. Mais ainda: diferentemente das ferramentas (e armas) das
campanhas anteriores, o Facebook podia lhe contar se você atingiu seu alvo
e se necessitava alterar o método de ataque para obter resultados mais
satisfatórios. Melhor que tudo para os anunciantes era a plataforma lhes
conceder a oportunidade de alcançar diretamente (via telefone celular) os
eleitores potenciais em um ambiente confiável (o Feed de Notícias
personalizado) com uma mensagem feita sob medida e já sancionada — ou
“curtida” — por alguém da rede pessoal deles. Só com essa última realização,
o Facebook conseguira solucionar um problema que perseguira os
anunciantes políticos durante quase um século. Como atingir os eleitores
sem intermediários nem ter de submeter a mensagem política direcionada
para eles ao crivo de amigos, família, colegas de trabalho e todos os nossos
outros influenciadores sociais? Para compreender a amplitude do feito
realizado pelo Facebook é preciso recuar ao início do século XX, período
pouco posterior à Grande Guerra, quando apenas começávamos a entender
a ideia da propaganda de massa.

Em 1926, Harold Lasswell, de 24 anos, concluiu sua tese de doutorado junto


à Universidade de Chicago. Nela, o jovem cientista político descreveu os
esforços de propaganda dos governos britânico, francês e alemão durante a
Primeira Guerra Mundial. Lasswell acreditava que cada governo manipulara
os meios de comunicação de massa a fim de justificar seus atos para as
populações doméstica e estrangeira, em especial nos Estados Unidos. Os
britânicos eram propagandistas especialmente inteligentes, escreveu
Lasswell, e o público norte-americano, bastante vulnerável à manipulação.
“A opinião pública norte-americana”, continuou ele, “sempre foi um marisco
a flutuar indefeso e alheio a tudo, na esteira dos navios de guerra britânicos.”
A tese de Lasswell se alimentava dos temores contemporâneos relacionados
com a suscetibilidade do público à propaganda. Esses temores já haviam
sido ventilados pelo jornalista e escritor Walter Lippmann e depois pelo “pai
das relações públicas”, Edward Bernays. À época tais ansiedades pareciam
sustentadas por demagogos fascistas que usavam o rádio e o cinema para
inflamar as populações em toda a Europa na década de 1930.27
Enquanto Lasswell transformava sua tese em livro best-seller, outro jovem
acadêmico ensinava matemática em Viena. Paul Lazarsfeld, que mais tarde
viria a ser o “fundador da sociologia empírica moderna”, não começou pelo
estudo dos efeitos da propaganda de massa.28 Na década de 1920 ele
pesquisou e escreveu sobre acampamentos para jovens, estatística, a classe
trabalhadora e os efeitos sociais do desemprego. Esse último projeto chamou
a atenção da Fundação Rockefeller, que conferiu a Lazarsfeld uma
subvenção para viajar aos Estados Unidos a fim de conduzir pesquisas no
início dos anos 1930, antes de emigrar em caráter permanente no ano de
1935. Então, em 1940, ele deu início a um projeto de pesquisa que ofuscaria
a nossa compreensão dos efeitos da comunicação de massa pelo resto do
século e colocaria em dúvida as afirmações de Lasswell acerca da
suscetibilidade do público. Lazarsfeld, trabalhando com os colegas Bernard
Berelson e Hazel Gaudet, empenhou-se em descobrir se a mídia tradicional
de fato influenciava a visão política das pessoas tanto quanto se imaginava.
No primeiro levantamento em grande escala já realizado, ele e seus colegas
de trabalho entrevistaram 3 mil pessoas em Erie County, Ohio, durante a
campanha presidencial norte-americana de 1940. Eles dividiram as pessoas
em cinco grupos de 600 indivíduos, um dos quais entrevistaram múltiplas
vezes para ver como as atitudes mudavam no decorrer da campanha, ao
passo que os demais funcionaram como grupos de controle.29
Lazarsfeld, Berelson e Gaudet descobriram que a visão política das
pessoas não era, como pensavam seus contemporâneos, muito modificada
pelo que liam ou ouviam na mídia. Amigos, familiares e colegas — em
outras palavras, a rede social — as influenciavam bem mais. “A sugestão
pessoal é mais difusa e menos autosseletiva que a mídia formal”, escreveram
os pesquisadores. “Ou seja, a política atinge, em especial no caso dos
indiferentes, com muito mais facilidade por meio de contatos pessoais que
de qualquer outro modo, pelo simples fato de que se apresenta
inesperadamente como um assunto secundário ou marginal em uma
conversa descontraída.”
Eles também fizeram outra descoberta inesperada: nem toda visão
política contava em igual medida. Determinadas pessoas em cada rede
social causavam um impacto descomunal na visão das outras. Esses “líderes
de opinião”, como os chamaram, tendiam a prestar mais atenção na política,
a consumir mais mídia e a expressar mais o que pensavam. Em outras
palavras, agiam como filtros políticos poderosos. Os pesquisadores deram a
isso o nome de “fluxo de influência em duas etapas” por terem descoberto
que a visão política da maioria das pessoas vinha não da mídia ou da política
diretamente, mas de um formador de opinião de sua esfera social de
influência. Como essa descoberta veio à tona de maneira tão inesperada a
partir das entrevistas, Lazarsfeld voltou a ela na década seguinte a fim de
conferir se estava certa. A pesquisa mais recente, com o sociólogo Elihu
Katz, consolidou as descobertas do primeiro projeto e reafirmou o papel
fundamental que as redes sociais e os formadores de opinião têm na
moldagem das nossas opiniões políticas.
Discussões sobre a influência dos meios de comunicação de massa sobre
as perspectivas políticas se avolumaram ao longo das décadas seguintes, em
especial à medida que a televisão assumiu a liderança na atenção do público.
Contudo, na virada do século, propagandistas políticos ainda tinham de
aceitar que os efeitos de qualquer meio de comunicação de massa estavam
sujeitos a serem limitados e filtrados pelas pessoas da nossa rede social, a
qual ninguém tinha a onipotência de negligenciar, nem o poder de
controlar. Até surgir o Facebook.
Usando as novas ferramentas do Facebook, quem disputava uma eleição
podia não apenas falar diretamente com os eleitores, como ter sua
mensagem endossada pelas pessoas da rede social de seu eleitorado. Como?
O Facebook sabe, por registrar tudo que fazemos em sua plataforma (e
tantas outras coisas que fazemos fora dela), quais membros de cada rede
social são os líderes de opinião de Lazarsfeld. Não se trata de nenhum bicho
de sete cabeças. O Facebook consegue ver, com base nas atividades na
plataforma, as pessoas detentoras de grandes redes sociais, que publicam
com frequência e cujas postagens e links são compartilhados, curtidos e
comentados com regularidade. Campanhas que incluem tais formadores de
opinião na segmentação agem sabendo da probabilidade de essas pessoas
compartilharem suas mensagens. Quando de fato isso acontece, outras
pessoas da rede veem uma mensagem política endossada por alguém cuja
opinião conhecem e respeitam. Para os candidatos políticos, ser capaz de
alcançar redes de amigos com uma mensagem direta que conta com endosso
social é como o linguista que descobre a Pedra de Roseta.
O Facebook presenteou os candidatos com a Pedra, a tradução e um
manual de hieróglifos egípcios. A campanha de 2012 de Barack Obama foi a
primeira a capitalizar o acesso direto às redes sociais do Facebook. Usando
uma ferramenta chamada Facebook Connect (depois descontinuada), a
campanha pediu aos apoiadores que se conectassem ao site dela via
Facebook. Isso deu à equipe de Obama acesso às redes de amigos de seus
partidários. Combinando o conhecimento que já detinha com o do
Facebook, a campanha então usou as redes para distribuir mensagens
preparadas sob medida para os tipos específicos de eleitores que precisa
alcançar. Um milhão de apoiadores se inscreveram no aplicativo e 600 mil
compartilharam mensagens pró-Obama.30 “É o momento moneyball
aplicado à política”, disse o diretor do blogue de Obama em 2008 ao jornal
Guardian em 2012. “Conseguir potencializar o poder da amizade abre
possibilidades incríveis.”31 O Facebook concedeu às campanhas um
caminho para alcançar os eleitores diretamente e, ao mesmo tempo, a
capacidade de alterar o fluxo em duas etapas de Lazarsfeld e Katz.
Além de potencializar o poder da amizade, o Facebook tornou muito
mais fácil — e barato — segmentar eleitores específicos em lugares
específicos. Como a maior parte dos representantes democráticos age em
prol de uma área geográfica específica, a possibilidade deveria servir — e
serviu — como um auxílio enorme. No Reino Unido, por exemplo, até 2014,
se um partido político quisesse publicar algo direcionado a cada eleitor de
um distrito eleitoral específico, tinha de pedir os respectivos endereços ao
Correio Real, que podia fornecê-los em nível de distrito eleitoral, mas dava
muito trabalho. Como as únicas pessoas de fato interessadas eram os
candidatos políticos, dificilmente — do ponto de vista do Correio Real —
valia o incômodo. Por conseguinte, as campanhas gastavam quantidades
enormes de tempo e esforço coletando e conferindo listas de endereço de
modo a postarem a literatura de campanha. Então, em 2014, o Facebook
“embarcou” os dados da Axciom no Reino Unido. “Embarcar” é um termo
digital que os marqueteiros usam quando fundem dados do mundo real com
dados on-line para criar perfis de usuários on-line mais robustos para os
anunciantes. Nesse exemplo, os dados da Axciom continham muitas
maneiras diferentes de dividir os usuários geograficamente — incluindo por
distrito eleitoral. De repente, pela primeira vez, um partido político era
capaz de alcançar cada eleitor em um distrito específico com uma
mensagem de campanha que lhes dizia respeito. E sem ter de pagar a
postagem! Uma revolução, diz Craig Elder, diretor digital adjunto da
campanha de 2015 do Partido Conservador.32 Além da possibilidade de
segmentar distritos eleitorais individuais, o partido podia subir os próprios
dados do eleitorado para o Facebook e disparar mensagens pré-testadas em
ambientes peculiares de eleitores indecisos.
Os benefícios para o Partido Conservador, ao dominar as novas
ferramentas de segmentação do Facebook, se tornaram evidentes durante a
campanha eleitoral de 2015. Os conservadores tinham identificado 23
assentos que, caso conquistados, lhes garantiria a maioria no parlamento.
A maior parte desses assentos correspondia ao sudoeste da Inglaterra,
muitos ocupados por parceiros de coalizão no governo, os Liberais
Democratas. Sem o conhecimento deles, o Partido Conservador embarcou
no que chamou de estratégia da “Viúva-Negra” para tomar-lhes os assentos
— uma vez que a aranha viúva-negra come o parceiro após o acasalamento.
A estratégia dependia fortemente do Facebook, com o respaldo do disparo
copioso de correspondências diretas. “Conseguimos trabalhar com o
Facebook usando a segmentação por distrito eleitoral para nos
concentrarmos apenas nos distritos que decidiriam a eleição”, disse Elder ao
jornalista Tim Ross, “e então, com base no que já sabíamos sobre a
demografia de quem decidiria essa eleição, podíamos fazer a segmentação
demográfica e por interesse.”33 Isso teve o benefício extra de ser quase
invisível para os políticos do partido liberal. “Não vimos nenhum cabo
eleitoral nas ruas”, disse Nick Clegg, líder do Liberais Democratas, depois da
eleição. “Enviávamos equipes de cabos eleitorais, à moda antiga. E não se
viam tories [membros do Partido Conservador], o que nos surpreendeu por
completo em alguns lugares.” Na eleição, os conservadores pegaram cada um
dos assentos Liberais Democratas no sudoeste.34
O Facebook também se mostrou o melhor caminho para as campanhas
alcançarem e motivarem jovens, indecisos e absolutamente apocalípticos.
A plataforma franqueou o acesso para as campanhas a um espaço amigável
no qual as pessoas, incluindo muita gente jovem e aquela sem nenhum
interesse político, passava grande parte do dia — o Feed de Notícias. As
campanhas podiam então alcançá-las por meio dos pares, com mensagens
que sem dúvida provocariam uma reação, no momento em que elas
tomavam a decisão de como votar. Essa foi a estratégia — impulsionada por
dados analisados por cientistas especializados — que Dominic Cummings,
diretor da campanha Leave oficial, usou durante a campanha do referendo
envolvendo a União Europeia no Reino Unido em 2016.35
No que Cummings chamou de “Projeto Waterloo”, o Vote Leave inundou
9 milhões de pessoas identificadas como “persuasíveis” com vídeos e
mensagens nos últimos dez dias anteriores ao voto. Quase todos eram
versões de três declarações poderosas mas questionáveis, da campanha
Leave: imigrantes turcos invadiriam o Reino Unido se ele permanecesse na
União Europeia (do que havia uma possibilidade extraordinariamente
pequena), a União Europeia custava ao Reino Unido 350 milhões de libras
por semana (mais tarde considerada “uma flagrante utilização incorreta das
estatísticas oficiais” pela Statistics Authority do Reino Unido) e esse dinheiro
escoaria para o serviço de saúde pública se o Reino Unido se retirasse
(compromisso abandonado depois do voto). O Facebook foi o principal
mecanismo de veiculação dessas mensagens. Entre 8 e 12 milhões de pessoas
viram conteúdo do Vote Leave na plataforma em cada um dos últimos dias
de campanha do referendo, com o número de impressões ultrapassando os
40 milhões no fim.36
O Reino Unido estava longe de ser o único lugar em que candidatos
disputando eleições viram potencial no Facebook para energizar os jovens.
Candidatos astuciosos mundo afora a estavam utilizando. Na Indonésia,
onde mais de um terço da população tinha menos de 24 anos, a equipe da
campanha eleitoral de Joko Widodo percebeu que o Facebook seria crucial.
“Sabíamos que eleitores de primeira viagem [...] têm a tendência de serem
muito influenciados pelos amigos”, disse o chefe da estratégia digital para a
campanha de Widodo, “em especial no que diz respeito a adesões políticas
ou curtidas e não curtidas. Portanto, os resultados eram determinados em
grande parte pelas redes de amigos dessas pessoas e por suas [...] redes
sociais.”37
O Facebook concedeu às campanhas o poder de alcançar grupos exatos
de pessoas individualmente, de infiltrar suas notícias sociais no momento
escolhido pela campanha e de aplicar a pressão dos pares. Não admira que
ele tenha exercido o papel de motivador dono de um poder fantástico de
ação política — tanto no mundo digital quanto no real. Sabemos que o
poder político do Facebook se estendeu para o mundo real graças a
experimentos com dados da própria empresa. Ainda em 2010, ela permitiu
que os pesquisadores mensurassem se a disponibilização do botão “Eu votei”
na página do perfil das pessoas — deixando que soubessem quando algum
amigo clicasse nele — aumentava a probabilidade de votarem. Por se tratar
de dados do Facebook, os pesquisadores não precisavam confiar em uma
amostragem pequena — 61 milhões de pessoas participaram
conscientemente. “Os resultados mostram que as mensagens exerceram
influência direta no comportamento de milhões de pessoas no que diz
respeito à autoexpressão, à busca de informação e à votação no mundo real”,
concluíram os pesquisadores. O mais espantoso para eles foi “o efeito da
transmissão social na votação no mundo real”. Em outras palavras, a
importância da pressão dos pares.38
Na sequência das descobertas de Paul Lazarsfeld nas décadas de 1940 e
1950, Donald Green e Alan Gerber, líderes mundiais na ciência do
comparecimento de eleitores, efetuaram repetidos experimentos
demonstrando que a pressão social, sobretudo quando visível para a rede de
amigos, aumenta a probabilidade de as pessoas comparecerem às urnas para
votar.39 Quando Katherine Haenschen conduziu experimentos similares no
próprio Facebook, em 2014, também descobriu que “é a visibilidade
aumentada do comportamento eleitoral dos indivíduos, possibilitada no
Facebook, que parece estar levando ao comparecimento às urnas”.40 Isso
também pode ajudar a explicar o alto e inesperado número de registros e
comparecimento de eleitores nas disputas eleitorais recentes. Por exemplo,
na Califórnia, em setembro de 2016, o número de registros diários de
eleitores saltou de pouco mais de 9 mil para mais de 120 mil depois que o
Facebook publicou alertas sobre o assunto. Do voto relacionado com o
Brexit no Reino Unido, em junho de 2016, participaram 3 milhões de
pessoas a mais que na eleição geral do ano anterior. O comparecimento
maior às urnas foi superior em áreas que votaram pela saída da União
Europeia.41
Não tivesse o Facebook se tornado tão hegemônico, suas ferramentas
políticas — por poderosas que sejam — não chegariam nem perto de causar
tanto impacto. Com mais de 2 bilhões de usuários ativos todo mês, no
entanto, o Facebook era a maior rede social on-line do mundo — superior
em tamanho e atividade à maior parte das religiões mundiais. “Esteja sempre
onde seu público está”, aconselhou Craig Elder, do Partido Conservador, em
um discurso para profissionais de campanha pouco depois da eleição de
2015. Nas democracias ao redor do mundo inteiro, o público estava no
Facebook. Além de se fazerem presentes na plataforma, muitas pessoas
obtinham as notícias do dia ali também. Em 2016, mais da metade da
população de 26 países usava as mídias sociais como fonte de notícias – a
principal fonte de notícias para mais de um quarto dos jovens desses países.
Como relatou o Bloomberg em novembro daquele ano, os Estados Unidos
acabavam de “enfrentar sua primeira eleição presidencial em que a maior
parte do eleitorado se inteirava das notícias pelas mídias sociais”. A principal
fonte de notícias nas mídias sociais era o Feed de Notícias do Facebook. “Um
exagero dizer que o Feed de Notícias se tornou a fonte mais influente de
informação na história da civilização”, escreveu Farhad Manjoo, do New
York Times, em abril de 2017. “É quase isso apenas.”42
Então, qual o problema? O envolvimento político não é algo bom para a
democracia, sobretudo depois de muitos anos de declínio na participação
cívica? Se o Facebook e suas imensas subsidiárias — WhatsApp, Instagram e
Messenger — viabilizam e promovem esse envolvimento, não deveríamos
aplaudi-los? No mínimo, quem lamentou a decadência do envolvimento
político não deveria parar alguns instantes antes de lançar infâmia sobre
infâmia contra a empresa? Na virada do século, o cientista político Robert
Putnam reuniu uma montanha de provas a fim de demonstrar o que muitos
desconfiavam havia bastante tempo acerca do engajamento cívico nos
Estados Unidos — as pessoas se tornaram menos envolvidas com a própria
comunidade. Como dizia o título do seu livro, mais e mais americanos
vinham “jogando boliche sozinhos”. Se o Facebook ajudou a restringir parte
dessa tendência aumentando o registro de eleitores, o comparecimento às
urnas e a discussão política, fica difícil defender a ideia de que isso não é
uma coisa boa para a democracia.
No entanto, o Facebook patrocinou o engajamento político em sua
plataforma sem levar em consideração se isso ajudava a sustentar ou a
destruir os processos democráticos. Se, por exemplo, seus algoritmos
exporiam as pessoas a notícias e informações diversas e conflitantes, ou a
pontos de vista que confirmariam ou polarizariam o que já pensavam. Se o
Facebook Groups recriaria comunidades democráticas ou apenas
incentivaria as câmaras de ressonância. Se o Feed de Notícias e os Grupos do
Facebook dariam às pessoas uma oportunidade de deliberarem sobre
questões políticas ou só de promoverem o sectarismo.
Quando pensava em seus papéis cívicos, o Facebook presumia que eram
coerentes com seus objetivos de negócio e a eles complementares. Estava
ajudando, por exemplo, a dar voz às pessoas on-line. O que “tentamos fazer”,
disse Mark Zuckerberg em dezembro de 2014 à plateia de um dos encontros
virtuais de líderes de que participou, “é possibilitar que todo o mundo tenha
voz.” Ele tinha razão; o Facebook concedia a cada vez mais pessoas a
oportunidade de se comunicarem. Acontece que, ao fazê-lo, ele ganhava
cada vez mais usuários e tornava sua plataforma cada vez mais poderosa
para os anunciantes. Por isso, antes e depois de sua abertura de capital, o
Facebook foi mais longe. Além de ser um facilitador condescendente de
políticas divisionistas e sectárias, converteu sua plataforma em arma de
propaganda ativa, apta a ser utilizada por campanhas políticas de qualquer
um, incluindo quem desejava burlar as proteções democráticas.
Em 2013, o Facebook introduziu as “dark posts” ou postagens não
publicadas no Feed de Notícias. Era uma resposta às empresas que queriam
poder testar algumas versões diferentes de um anúncio junto a públicos
diferentes, sem que todas as versões aparecessem na página do Facebook e
fizessem o anunciante parecer tolo. As dark posts permitem que as empresas
realizem a própria testagem “A/B” — em outras palavras, experimentem se a
versão A de uma publicidade funciona melhor com o público que a versão
B. Quando o Facebook introduziu o serviço, tinha em vista o setor
comercial, não as campanhas políticas. Não sabia que três anos mais tarde a
equipe da campanha de Trump aproveitaria as dark posts para criar um
sistema de propaganda de resposta comportamental incrivelmente
sofisticado. A cada dia da campanha, a equipe testava não apenas duas ou
três versões dos anúncios, nem algumas dúzias, mas por volta de 50 mil
versões diferentes da publicidade de campanha. Cada anúncio tinha uma
leve diferença, com uma fonte particular, uma cor de fundo alternativa, um
formato ou texto distinto. Um software de inteligência artificial coletava o
feedback do Facebook em termos do envolvimento do usuário, mantendo
então as características com melhor desempenho e descartando as restantes.
As dark posts, por natureza, ficavam visíveis apenas àqueles para os quais
tinham sido direcionadas. Portanto, era quase impossível comparar
afirmativas feitas em dark posts, ou contestá-las publicamente. Por exemplo,
se determinada equipe quisesse utilizar dark posts em uma campanha de
supressão de votos, conseguiria sem muito medo de ser exposta.
A campanha de Trump tentou suprimir votos a favor de Hillary Clinton,
sobretudo entre os apoiadores de Bernie Sanders, eleitores negros e
mulheres jovens. Descobrimos isso não pelo Facebook, mas porque um
membro sênior da equipe de campanha contou aos jornalistas Joshua Green
e Sasha Issenberg. “Temos três grandes operações de supressão de votos em
andamento”, revelaram.43 A primeira enviava a mensagem de que Clinton
fora corrompida pelo dinheiro fácil; a segunda apresentava comentários dela
de 1996 sobre “superpredadores” como indicativo de sua atitude em relação
aos homens negros; e a terceira afirmava que Bill Clinton era culpado de
abuso sexual. A abordagem pode ter funcionado, com o comparecimento às
urnas mais baixo que o esperado dos simpatizantes dos Democratas nos
estados onde estavam sendo travadas as batalhas decisivas.44
Quando o Facebook fez a gentileza de disponibilizar dados geográficos da
Axciom em perfis do Reino Unido em 2014, outorgou aos políticos a
oportunidade de concentrarem muita atenção — e recursos — em eleitores
específicos de distritos eleitorais marginais. Algumas “pessoas de dentro do
Partido Trabalhista, que trabalhavam para Ed Miliband, ex-líder do partido”,
chegaram a insistir, como escreveu o jornalista David Bond no Financial
Times, que “a eleição geral no Reino Unido de 2015 foi vencida e perdida no
Facebook”. Nada na legislação eleitoral do Reino Unido impede que os
conservadores — ou pessoas ligadas a quaisquer outros partidos — façam
isso, embora torne os limites de gastos locais um tanto ridículos. Candidatos
ao Parlamento têm permissão de gastar algo em torno de 15 mil libras no
máximo com campanha no próprio distrito eleitoral (a quantia exata varia
conforme o posto pretendido). Isso restringe o papel que o dinheiro pode
desempenhar, torna a disputa acessível e oferece um campo de batalha em
condições de igualdade para os candidatos. No entanto, além dessas 15 mil
libras, os partidos podem gastar outras 100 mil libras mais ou menos
comunicando-se com eleitores específicos no mesmo distrito eleitoral via
Facebook sem que isso afete o limite local. Então, isso pouco contribui para
a criação de um campo de batalha justo e igualitário — como pretendem as
restrições impostas aos gastos.
Quando deu às empresas a oportunidade de coordenar os próprios dados
e anúncios com a plataforma, o Facebook não tinha como saber de antemão
que a campanha Leave do Reino Unido empregaria físicos e especialistas em
“informação quântica” para descobrir como identificar eleitores persuasíveis,
e como e quando os mobilizar. No entanto, foi isso que a campanha fez,
soterrando esses eleitores debaixo de mensagens desse tipo nos dias que
antecederam a votação do Brexit em 2016.
Quando o gigante das mídias sociais apresentou o Instant Articles em
2015 como uma forma de permitir que as organizações noticiosas
publicassem diretamente na plataforma, não sabia que a novidade seria
utilizada para veicular informação hipersectarista e distorcida no ano
seguinte, durante a campanha eleitoral norte-americana. A intenção — disse
o Facebook na época — era aperfeiçoar a experiência jornalística dos
usuários e fazer que as notícias carregassem mais depressa no site. No início,
a rede social só abriu o serviço para algumas organizações noticiosas mais
famosas — o New York Times, a BBC, o Guardian e mais um punhado delas.
No decorrer do ano seguinte, permitiu o ingresso de outras empresas, até
que em abril de 2016 o Facebook abriu o Instant Articles a “todas as
publicações — de qualquer tipo, tamanho, parte do mundo”.45 Para o
Facebook, isso fazia parte de seu “esforço para informar pessoas e conectá-
las com as notícias que importam para elas”. Um convite para qualquer um
que quisesse publicar invencionices, clickbaits e artigos que provocassem
dissensões ou contivessem distorções grosseiras. O Facebook estava longe de
ter a intenção de que algumas das histórias mais lidas e compartilhadas do
site pouco depois da eleição norte-americana fossem falsas ou
hipersectácias, mas foi o que aconteceu.
Tampouco o Facebook poderia saber que as campanhas políticas
lançariam mão de toda oportunidade para se infiltrarem nas redes de
amigos, promoverem relatos difamatórios sobre candidatos da oposição,
provocarem um sectarismo veemente ou identificarem eleitores vulneráveis
a fim de segmentá-los com informações altamente tendenciosas. Quando o
Facebook forneceu um sistema aberto e automatizado para os anunciantes,
em que qualquer um podia gerenciar a própria campanha desde que seus
anúncios se mantivessem dentro dos padrões de comunidade da plataforma,
não sabia que a Russian Internet Research Agency se aproveitaria disso para
segmentar mais de três mil propagandas desagregadoras e incendiárias e
polarizar anúncios direcionados a cerca de 10 milhões de cidadãos norte-
americanos antes da eleição de 2016. Entre esses anúncios, um deles
mostrava Satanás (“Se eu vencer, Clinton vence!”), Jesus disputando braço
de ferro (“Não se eu puder evitar!”) com a instrução “Aperte o botão de
‘Curtir’ para ajudar Jesus a vencer!”. O anúncio, pelo que relatou a revista
Wired, era direcionado especificamente a pessoas interessadas em “Laura
Ingraham, Deus, Ron Paul, Cristianismo, Bill O’Reilly, Andrew Breitbart, a
Bíblia, Jesus e Conservadorismo nos Estados Unidos”.46 As propagandas
teriam concedido ao pessoal da Internet Research Agency dados úteis,
fornecidos pelo Facebook, acerca de quais provocavam as maiores reações.
A partir do momento em que as pessoas curtiam este ou aquele anúncio dos
russos, a Internet Research Agency podia canalizar mais mensagens
politicamente polarizadoras para elas e, por meio delas, para as respectivas
redes. De acordo com evidências fornecidas para o Congresso norte-
americano, a agência criou 120 páginas no Facebook entre 2015 e 2017, nas
quais publicou 80 mil postagens. Essas atingiram, conforme cálculos do
Facebook, cerca de 126 milhões de pessoas.47
O Facebook não sabia na época, mas isso aconteceu em parte porque,
antes de 2016, seus gestores pensaram bem pouco no assunto. Estavam
ocupados demais superando o desempenho da programação de lucro da
plataforma, competindo com as gigantes tecnológicas do Vale do Silício,
fazendo-a crescer em ritmo frenético e criando modos de aumentar o
envolvimento dos usuários com o site. Se o Facebook tivesse imposto
obstáculos no caminho de quem desejava usar sua plataforma para
campanhas políticas, teria impedido o próprio crescimento. Não o fez,
portanto. Pelo contrário, deixou a própria porta escancarada para as
campanhas políticas que queriam sua ajuda, independentemente da
orientação política, usando fosse qual fosse a moeda que preferissem,
aconselhando-as até sobre como tirar o máximo das poderosas ferramentas
de propaganda da plataforma. No processo, o Facebook viabilizou a
distorção, a divisão e a desestabilização do processo democrático.
Ainda assim, seria legítimo o Facebook contra-argumentar que não
inventara o modelo publicitário que servia de combustível para a web. Quem
fez isso foi o Google. A gigante das mídias sociais pegou o modelo do
Google e o turbinou, mas o modelo em si continuava sendo do Google. E foi
o Google que criou estímulos perversos. Tanto que um site barato, ordinário
mesmo, repleto de desinformação, podia ser mais competitivo que outro
respeitado, conceituado, de alto nível. Para atribuir culpa pelo fracasso do
sistema, era preciso olhar para o papel do Google nisso tudo também.
No sábado, 20 de maio de 2017, Mark Zuckerberg e a esposa, Priscilla
Chan, foram caminhar na Trilha dos Apalaches. Não se tratava, contudo, de
um passeio comum. Como se lembra Zuckerberg, ele e Priscilla se
encontraram com “moradores locais — ex-trabalhadores de moinhos,
professores, proprietários de pequenos negócios, uma bibliotecária e um
motorista de caminhão”.48 Foram conversas organizadas com antecedência e
entabuladas com gente comum, não bate-papos acidentais com outros
caminhantes. As interações foram filmadas, fotografadas e documentadas na
página de perfil do fundador do Facebook. Zuckerberg falou com aquela
gente como parte de um tour pelos Estados Unidos, sua resolução de ano-
novo para 2017, em que se propunha a ouvir as pessoas. Não se tratava do
início de uma campanha política, reforçou ele repetidas vezes. Ele dizia não
ter nenhuma ambição de ser eleito (apesar de contratar o diretor da
campanha de Obama em 2008). Se isso é ou não verdade, caso Zuckerberg
ou qualquer pessoa próxima a ele um dia optasse por disputar uma eleição,
teria acesso pessoal à mais poderosa plataforma para influenciar eleições da
história da democracia moderna.
1 TEEHANKEE, Julio C.; THOMPSON, Mark R. Electing a Strongman. Journal of Democracy, 27:4, p.

125-34, 2016.
2 Tempo dedicado às redes sociais extraído de: Digital in 2017, We Are Social, 24 January 2017.

Disponível: em: https://wearesocial.com/special-reports/digital-in-2017-global-overview. Acesso


em: 14 jun. 2018, com números posicionados até janeiro de 2017; Statista. Disponível em:
https://www.statista.com. Acesso em: 1 dez. 2021, 11:56:42; e Internet World Stats. Disponível em:
https://www.internetworldstats.com. Acesso em: 1 dez. 2021, 11:58:27.
3 O artigo mais instrutivo sobre a campanha foi publicado pelo Rappler e inclui uma entrevista com

Nic Gabunada, responsável por dirigir a equipe de mídias sociais de Duterte. V. GAVILAN, Jodesz.
Duterte’s P10M social media campaign: organic, volunteer-driven’. Rappler, 1 June 2016. V. também
TEEHANKEE, Julio C.; THOMPSON, Mark R. Electing a Strongman. Journal of Democracy, 27:4, p.
125-34, 2016.
4 Sobre o pedido de Duterte por calma, v. Duterte to supporters: be civil, intelligent, decent,

compassionate. Rappler, 13 March 2016; para um relato das ameaças, v. “Sana ma-rape ka”: netizens
bully anti-Duterte voter. Rappler, 7 April 2016. A advertência de Duterte mencionando assassinato
e dirigida a jornalistas foi amplamente noticiada; v. LEWIS, Simon. Duterte says journalists in the
Philippines are “not exempted from assassination”. Time, 1 June 2016.
5 Para conhecer bem o contexto da ascensão de Beppe Grillo, v. BARTLETT, Jamie; FROIO, Caterina;

LITTLER, Mark; MCDONNELL, Duncan. New Political Actors in Europe: Beppe Grillo and the
M5S. London: Demos, 2013; sobre a eleição tcheca de 2013, v. MATUŠKOVÁ, Anna; STRIELKOWSKI,
Wadim. Technology Applications in Czech Presidential Elections of 2013: A Story of Social
Networks. Mediterranean Journal of Social Sciences, 5:21, 2014; sobre a Hungria, entre outras
coberturas, v. If Facebook “likes” were votes, the far-right Jobbik would be the largest Hungarian
party. Observationalism blog, 15 February 2014; para a citação do New York Times, v. editorial.
Argentina’s transformative election, 26 November 2015.
6 Além de reportagens sobre a Malásia, v. GOMEZ, James. Social Media Impact on Malaysia’s 13th

General Election. Asia Pacific Media Educator, 24:1, p. 95-105, 2014. Para números da apuração de
votos de opinião pública no referendo escocês extraídos do YouGov, v. Q&A: Scottish independence
row. BBC News, 17 January 2012.
7 Para conhecer as primeiras experiências políticas no Facebook, v. GULATI, Jeff; WILLIAMS, Christine

B. Social Media in the 2010 Congressional Elections. SSRN, 23 April 2011; SWEETSER, Kaye D.;
LARISCY, Ruthann Weaver. Candidates Make Good Friends: An Analysis of Candidates’ Uses of
Facebook. International Journal of Strategic Communication, 2:3, p. 175-98, 2008.
8 MCGIRT, Ellen. How Chris Hughes helped launch Facebook and the Barack Obama campaign. Fast

Company, 1 April 2009.


9 SMITH, Aaron; RAINIE, Lee. The Internet and the 2008 Election. Pew Internet and American Life

Project, 15 June 2008.


10 Para análises das mídias sociais e da campanha de Obama em 2008, v. COGBURN, Derrick L.;

ESPINOZA-VASQUEZ, Fatima K. From Networked Nominee to Networked Nation: Examining the


Impact of Web 2.0 and Social Media on Political Participation and Civic Engagement in the 2008
Obama Campaign. Journal of Political Marketing, 10:1, p. 189-213, 2011; JOHNSON, Thomas J.;
PERLMUTTER, David D. Introduction: The Facebook Election. Mass Communication and Society,
13:5, p. 554-9, 2009-10; METZGAR, Emily; MARUGGI, Albert. Social Media and the 2008 US
Presidential Election. Journal of New Communications Research, 4:1, p. 141-65, 2009; VITAK,
Jessica; SMOCK, Andrew; ZUBE, Paul; CARR, Caleb; LAMPE, Cliff; ELLISON, Nicole. «Poking» People
to Participate: Facebook and Political Participation in the 2008 Election. International
Communication Association, 2009; WOOLLEY, Julia K.; LIMPEROS, Anthony M.; OLIVER, Mary
Beth. The 2008 Presidential Election, 2.0: A Content Analysis of User-Generated Political Facebook
Groups. Mass Communication and Society, 13:5, p. 631-52, 2009-10.
11 GULATI, Jeff; WILLIAMS, Christine B. Social Media in the 2010 Congressional Elections. SSRN, 23

April 2011.
12 SMITH, Aaron. The Internet and Campaign 2010. Pew Research Center, 17 March 2011; SMITH,

Aaron. Why Americans Use Social Media. Pew Research Center, 14 November 2011.
13 V. VACCARI, Cristian; NIELSEN, Rasmus Kleis. What Drives Politicians’ Online Popularity? An

Analysis of the 2010 US Midterm Elections. Journal of Information Technology & Politicis, 10:2,
p. 208-22, 2013.
14 SMITH, Aaron. Why Americans Use Social Media. Pew Research Center, 14 November 2011.

15 A REDE SOCIAL. Direção de David Fincher. Produção de Scott Rudin. Estados Unidos, 2010.

16 KIRKPATRICK, David. O efeito Facebook: os bastidores da história da empresa que está

conectando o mundo. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2011. Estatísticas e serviços relacionados com o
Facebook extraídos de Statista; HELFT, Miguel. Facebook makes headway around the world. New
York Times, 7 Jul 2010; e reportagens da época.
17 TUFEKCI, Zeynep. Twitter and Tear Gas: The Power and Fragility of Networked Protest. New

Haven, CT, and London: Yale University Press, 2017.


18 Estatísticas do site obtidas a partir das declarações da redação do Facebook: One billion people on

Facebook, 12 October 2012 (mais “One billion — key metrics”. Disponível em:
https://fbnewsroomus.files.wordpress.com/2012/10/facebook-1billionstats.pdf. Acesso em: 22 May
2018; “Facebook year in review 2012”, 12 December 2012; “2013 year in review”, 9 December 2013;
“2014 year in review”, 9 December 2014. Sobre Índia e Brasil, v. DELO, Cotton. By 2017 India to
boast the most Facebook users — by far. AdAge, 9 May 2013; PTI. 112 million Facebook users in
India, second largest user base after US. India Today, 17 December 2014; Latin America loves
Facebook. eMarketer, 2 March 2016. Sobre a Indonésia, v. KUO, Lily. Indonesia’s presidential race is
being fought with Facebook updates and “happy» sing-alongs. Quartz, 6 June 2014. Sobre os EUA,
v. Facebook e MacArthur Research Network on Youth and Participatory Politics
(http://ypp.dmlcentral.net; acesso em: 6 dez. 2021).
19 BENNER, Katie. Facebook can tell you what to expect in the voting booth. New York Times, 28

October 2016.
20 GRÖMPING, Max. “Echo Chambers”: Partisan Facebook Groups during the 2014 Thai Election.

Asia Pacific Media Educator, 24:1, p. 39-59, 2014.


21 SCHAFFAR, Wolfram. New Social Media and Politics in Thailand: The Emergence of Fascist

Vigilante Groups on Facebook. Austrian Journal of South-East Asian Studies, 9:2, p. 215-33, 2016.
22 MARTÍNEZ, Antonio García. Chaos Monkeys: Mayhem and Mania inside the Silicon Valley

Money Machine. London: Ebury Press, 2017.


23 V. PROTALINSKI, Emil. Facebook starts displaying ads in the News Feed. ZDNET, 10 January 2012.

24 V. CONSTANTINE, Josh. Facebook lets businesses plug in CRM email addresses to target costumers

with hyper-relevant ads. TechCrunch, 20 September 2012.


25 V. Updates to custom audiences targeting tool. Facebook Newsroom, 27 February 2013.

26 V. COHEN, David. UPDATED: Facebook officially launches Looalike Audiences. AdWeek, 19

March 2013.
27 LASSWELL, Harold. Propaganda Technique in the World War. New York: Alfred A. Knopf, 1927.

28 JEŘÁBEK, Hynek. Paul Lazarsfeld: The Founder of Modern Empirical Sociology — A Research

Biography. International Journal of Public Opinion Research, 13:3, p. 229-44, 2001.


29 LAZARSFELD, Paul F.; BERELSON, Bernard; GAUDET, Hazel. The People’s Choice: How the Voter

Makes Up His Mind in a Presidential Campaign, 2nd edition. New York: Columbia University
Press, 1948.
30 SCHERER, Michael. Friended: how the Obama campaign connected with young voters. Time, 20

November 2012.
31 PILKINGTON, Ed; MICHAEL, Amanda. Obama, Facebook and the power of friendship: the 2012 data

election. Guardian, 17 February 2012. O termo moneyball designa uma nova abordagem na seleção
de jogadores de beisebol, menos subjetiva e mais analítica que a tradicional, baseada em evidências.
[N. do T.]
32 ELDER, Craig. Entrevista com o autor, 4 dez. 2017.

33 Tim Ross apresenta uma descrição mais completa e detalhada da campanha dos conservadores em:

Why the Tories Won: The Inside Story of the 2015 Election. London: Biteback, 2015.
34 V. MOORE, Martin. Facebook, the Conservatives and the Risk to Fair and Open Elections in the

UK. Political Quarterly, 87:3, p. 424-30, 2016.


35 Dominic Cummings escreveu em detalhes sobre a estratégia do Vote Leave em seu blogue pessoal.

Disponível em: https://dominiccummings.com. Acesso em: 7 dez. 2021, 18:18:01. Os números


citados são fornecidos por Cummings.
36 V. On the EU Referendum. Blogue de Dominic Cummings.
37 V. VATVANI, Chandni. How President Jokowi uses social media to click with people. Channel

NewsAsia, 28 March 2017.


38 BOND, Robert M.; FARISS, Christopher J.; JONES, Jason J.; KRAMER, Adam. D. I.; MARLOW,

Cameron; SETTLE, Jaime E.; FOWLER, James H. A 61-Million-Person Experiment in Social Influence
and Political Mobilization. Nature, 489, p. 295-8, 2012.
39 GERBER, Alan S.; GREEN, Donald P.; LARIMER, Christopher W. Social Pressure and Voter Turnout:

Evidence from a Large-Scale Field Experiment. American Political Science Review, 102:1, p. 33-48,
2008; GERBER, Alan S.; HUBER, Gregory A.; DOHERTY, David; DOWLING, Conor M.;
PANAGOPOULOS, Costas. Big Five Personality Traits and Responses to Persuasive Appeals: Results
from Voter Turnout Experiments. Political Behavior, 35:4, p. 687-728, 2013.
40 HAENSCHEN, Katherine. Social Pressure on Social Media: Using Facebook Status Updates to

Increase Voter Turnout. Journal of Communication, 66:4, p. 542-63, 2016.


41 Para conhecer os números relacionados ao comparecimento às urnas, v. CHOKSHI, Niraj. Facebook

helped drive a voter registration surge, election officials say. New York Times, 12 October 2016;
GAUDIN, Sharon. Thanks to Facebook, voter registrations surge. Computerworld, 14 October 2016.
Sobre os 3 milhões de eleitores extras, v. COWLING, David. General election 2017: the mystery of the
three million “extra” voters. BBC News, 17 May 2017.
42 Para conhecer as referências desses números, v. AZHA, Alyaa. Social media crucial in election

campaign. Free Malaysia Today, 19 April 2013; KUO. Indonesia’s presidential race. Statista; Reuters
Institute Digital News Report 2016. Reuters Institute for the Study of Journalism. Sobre os
comentários de Elder, v. ELDER, Craig. The Role of Digital in the Conservatives Election Campaign.
Campaigning Summit/Youtube, 18 June 2015. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?
v=i-BPRArB5gg. Acesso em: 8 dez. 2021, 13:04:52.
43 GREEN, Joshua; ISSENBERG, Sasha. Inside the Trump bunker, with days to go. Bloomberg, 27

October 2016.
44 Não é possível relacionar votos e eleitores, mas o comparecimento às urnas de simpatizantes do

Partido Democrata como um todo foi muito mais baixo que anteriormente, sobretudo em Estados
em que a batalha era decisiva e entre eleitores negros. V. PLOUFFE, David. David Plouffe: What I got
wrong about the election. New York Times, 11 November 2016; FRAGA, Bernard L.; SCHAFFNER,
Brian; RHODES, Jesse; MCELWEE, Sean. Why did Trump win? More whites — and fewer blacks —
actually voted. Washington Post, 8 May 2017.
45 ROBERTS, Josh. Instant Articles now open to all publishers. Facebook Media, 12 April 2016.

46 Entre os muitos artigos sobre anúncios russos no Facebook, v. REYNOLDS, Matt. This is what you

need to know about those Russian Facebook ads. Wired, 2 November 2017.
47 V. CHAKRABARTI, Samidh. Hard questions: what effect does social media have on democracy?

Facebook Newsroom, 22 January 2018.


48 ZUCKERBERG, Mark. Facebook post, 20 May 2017. Disponível em:
www.facebook.com/zuck/posts/10103737049349941. Acesso em: 8 dez. 2021, 18:08:33.
Anarquia na Googlesfera

“Já desvendou a charada?”, perguntou o Chapeleiro, voltando-se outra vez para Alice.
“Não, desisto”, disse ela. “Qual a resposta?”
“Não faço a menor ideia”, retrucou o Chapeleiro.
“Nem eu”, emendou a Lebre de Março.
Lewis Carrol, Alice no país das maravilhas

Uma cena montada para exibição na TV. Al Franken, escritor, ator,


comediante, apresentador de programa de rádio e político, tendo
renunciado ao mandato no Senado norte-americano no fim de 2017 por
alegações de assédio sexual, inclinou-se para a frente da poltrona que
ocupava durante audiência no Senado e encarou Colin Stretch, diretor
jurídico do Facebook, sentado a três metros de distância. “Vocês combinam
bilhões de dados o tempo todo”, disse Franken, “é o que ouço que essas
plataformas fazem.” Stretch, acomodado ao lado de Richard Salgado, do
Google, e de Sean Edgett, do Twitter, esclarecia dúvidas apresentadas por
Franken e outros membros do comitê judiciário do Senado sobre a suposta
interferência russa na eleição norte-americana de 2016. O senador Franken
não conseguia entender por que Facebook, Google e Twitter, empresas que
viviam de coletar imensas quantidades de dados e que empregavam algumas
das pessoas mais inteligentes do mundo, não tinham percebido que havia
uma agência russa comprando anúncios facciosos, direcionados para os
eleitores norte-americanos. Mesmo quando lhes pagavam em rublos!
Quanto mais perguntas fazia, mais exasperado Franken ficava. Essas
plataformas, disse ele, começando a gesticular feito louco, “são as coisas mais
sofisticadas já inventadas pelo homem. Em todos os tempos...”. Então se
calou um instante antes de desferir sua acusação: “Não se pode juntar rublos
a uma propaganda política e sair por aí dizendo: ‘Hummm... A combinação
desses dois dados resulta em detalhes bem ruins’”. Stretch, que trabalhava no
Facebook havia sete anos e era diretor do departamento jurídico da empresa
havia quatro, fixou o olhar na mesa a sua frente demonstrando profundo
mal-estar. “Senador”, ele retrucou, “trata-se de um sinal para o qual
deveríamos estar alertas; olhando para trás, vejo que nos passou
despercebido.” Com a cabeça apoiada nas mãos em visível frustração,
Franken pressionou Stretch a assumir o compromisso de ao menos no
futuro não aceitar propaganda política paga em moeda estrangeira. Stretch
não quis. O mais longe a que chegou foi dizer que o Facebook exigiria de
todos os anunciantes políticos informações mostrando que tinham
permissão para fazer propaganda nos Estados Unidos. Apesar de Franzen
interrompê-lo alegando que “Você não pode dizer não”, foi isso mesmo que
Stretch disse.1
O confronto entre Franken e Stretch durante as audiências no Senado em
outubro de 2017 serve como perfeita ilustração de quanto a comunicação
política na web se corrompera, e permite um vislumbre de como seria difícil
consertá-la. O que, para Franken, parecia um problema bem simples — um
poder estrangeiro tentando distorcer a eleição de outro país ao bombardear
os cidadãos com propaganda — podia exigir, reconheceu Stretch, uma
solução incrivelmente complicada. O chefe dos advogados do Facebook
precisou ser ambíguo porque permitir que pessoas comprassem anúncios
em moedas diferentes tinha se tornado parte do modelo de negócio global,
aberto, de autosserviço, automatizado, produzido sob medida com todo
cuidado e extremamente lucrativo do Facebook. Mais que apenas ser parte
de seu modelo de negócio, fazia parte da filosofia e dos princípios que
sustentam o crescimento e a hegemonia do Facebook. Na verdade, seria
possível ir até mais longe e argumentar que um sistema de propaganda tão
aberto era fundamental para a maneira pela qual as notícias e a informação
eram impulsionadas e sustentadas em toda a web.
Desde que a web decolou no fim dos anos 1990, as notícias e a
informação on-line têm sido custeadas acima de tudo pela publicidade. No
entanto, os anúncios digitais não funcionam do mesmo modo que a
propaganda funcionava no velho mundo. De fato, se você pensa que é capaz
de compreender a publicidade digital com base na maneira como a
propaganda funcionava no século XX, repense. Desfaça-se de quaisquer
impressões que você tenha a partir da série Mad Men e dos trabalhos
apresentados em storyboards na avenida Madison em Nova York.
A publicidade digital — ou ad tech, como é conhecida na indústria — é coisa
bem diferente. Você poderia chegar ao ponto de dizer que as ad techs são
uma espécie diferente em relação a seu ancestral pré-internet. Se a
publicidade dos velhos tempos era lenta, a digital se movimenta na
velocidade da luz. Se ela era abrangente e de massa, a propaganda digital é
minuciosamente restrita. Se as empresas de publicidade dos velhos tempos
eram povoadas de diretores, contadores e redatores de criação, as empresas
digitais contam com engenheiros de software, administradores de sistemas e
cientistas de dados. Um especialista em tecnologia da informação na
empresa de pesquisas Gartner chamou as ad techs de “mais complicadas que
Wall Street”.2 Empresas comerciais como Adobe e Quantcast empregam
instrutores dedicados a educar pessoas quanto ao funcionamento das ad
techs.3 O Google tem até uma Academia para os anúncios. Bob Hoffman,
que trabalhou em publicidade durante muitos anos e escreveu o que chama
de “um pequeno livro histérico” sobre ad techs, descreve de que maneira a
jornada digital de anunciante para divulgador hoje “entremeia seu caminho
pelas mesas de negociação, Demand Side Platforms (plataformas de
demanda, ou DSPs em inglês), provedores de dados, programas de
segmentação, software de verificação, trocas de anúncios e uma série insana
e obscura de outros tormentos a cobrar cada qual seu quinhão do orçamento
de mídia dos anunciantes”.4
Tendo em vista sua impenetrabilidade desconcertante, é tentador dar as
costas para o estranho mundo novo da publicidade digital e deixá-lo
entregue à própria sorte. Isso seria conveniente para quem lucra muito com
ele, mas seria um erro terrível para a política e a sociedade. Sem levantar a
tampa desse mundo virtual terrivelmente bizantino, é impossível explicar
não apenas a interferência russa, mas grande parte da turbulência política e
das reviravoltas da última década. Ou compreender de fato por que e como
tem sido possível hackear democracias usando ferramentas digitais.
Entender como as ad techs funcionam não explica, por si só, os choques e
surpresas. Mas não há como explicar isso sem compreender como as ad
techs funcionam. Colin Stretch não poderia explicar para Al Franken como
as agências russas conseguiam comprar e distribuir anúncios com tanta
facilidade no Facebook sem descrever como funciona o modelo de
propaganda da plataforma. De igual modo, não se pode explicar por que,
perto da eleição presidencial norte-americana de novembro de 2016, grande
número de adolescentes macedônios na cidade de Veles publicava centenas
de notícias inventadas sobre Donald Trump e Hillary Clinton, sem
considerar como a propaganda digital financia o noticiário. A razão pela
qual empresas como a Cambridge Analytica foram capazes de direcionar
anúncios comportamentais para as pessoas com base em perfis atitudinais
íntimos só fica clara a partir do momento em que se descobre a dinâmica da
publicidade digital. De semelhante modo, para entender como a campanha
de Trump aplicou o teste A/B a milhares de mensagens políticas todos os
dias a fim de criar o conteúdo mais persuasivo, por que a campanha Vote
Leave apostou tanto em físicos, matemáticos e cientistas de dados ao
planejar o Brexit e por que os robôs se converteram em um recurso tão
grande das campanhas eleitorais digitais modernas, você precisa
compreender as ad techs.
Elas são tanto o sustento quanto o veneno no cerne da nossa democracia
digital. Sustento porque alicerçam enorme proporção do conteúdo político e
não político na web. Veneno porque não podem operar sem rastrear
comportamentos, não funcionam a menos que em uma escala colossal e são
obscuras por uma condição crônica e inerente. O rastreamento
comportamental contínuo e intrusivo é intrínseco às ad techs. Os
anunciantes compraram a ideia de que, no mundo digital, podem alcançar
exatamente quem querem, quando querem. O único modo de lhes conceder
esse tipo de acesso é seguindo você por toda parte, onde quer que você vá
on-line (e além). Registrar tudo o que você faz, onde vai, do que gosta, com
quem se conecta e o que é provável que faça a seguir. Isso confere enorme —
e assimétrico — conhecimento àqueles que desejam influenciar seu
comportamento, seja com um propósito comercial, seja ele político.
Também significa que os provedores de ad tech precisam coletar
quantidades fenomenais de informação o tempo todo sobre tantas pessoas
quantas puderem. Como você pode imaginar, isso cresce muito depressa.
O único modo de uma ad tech funcionar nessa escala é sendo tão aberta e
isenta de atrito quanto possível. Ser aberta e isenta de atrito significa que
quase qualquer um consegue usá-la a qualquer tempo. Portanto, ela está
igualmente aberta para quem tem boas e sinceras intenções tanto quanto
para quem tem más intenções. Também é inerente à ad tech ser obscura —
no sentido de que é muito difícil acessá-la ou monitorá-la de fora. Essa
obscuridade, em alguns casos, ocorre de maneira consciente (por exemplo,
no interior de plataformas como o Facebook); em outros casos, contudo,
acontece pelo simples fato de a ad tech ser tão grande e tão complexa que
seguir um anúncio único qualquer até um destino único qualquer é
praticamente impossível. O sistema de publicidade digital é tão vasto,
multicamadas e labiríntico que ninguém sabe com exatidão o que outra
pessoa está fazendo em determinado momento. Para todos os intentos e
propósitos, é um sistema anárquico. Se Estados quiserem interferir em
outros Estados, plutocratas manipular políticos ou radicais subverter o status
quo, podem fazê-lo, confiantes na convicção de que são capazes de esconder
a maior parte dos próprios rastros.
Considerando quanto as ad techs se tornaram diabolicamente
complicadas, é difícil explicar como chegamos até aqui sem depressa nos
perdermos em um labirinto de siglas, jargões técnicos e linguagem
corporativa. Para a nossa felicidade, grande parte do enredo intricado das ad
techs pode ser contado pela história de duas empresas, Google e Facebook.
Em parte porque, no ano de 2018, as duas empresas mergulharam de cabeça
nesse bravo mundo novo das ad techs. Juntas, responderam por metade do
dinheiro ganho em publicidade digital no mundo inteiro, e por mais de 6 em
cada 10 dólares nos Estados Unidos. Tão hegemônicas tinham se tornado
que a mídia começou a se referir a elas como “o duopólio”. A publicidade
também é a principal fonte de renda de cada uma delas. Cerca de 90% da
receita do Google, e mais de 95% da do Facebook, provêm de publicidade
digital. E pelo fato de essas duas empresas terem inventado ou se apropriado
dos métodos que hoje definem as ad techs, ambas se tornaram hegemônicas
e parte absoluta do nosso universo digital.5
Quando lançaram o Google, Larry Page e Sergey Brin ficariam horrorizados
com a ideia de que um dia se descobririam administrando a maior empresa
de propaganda do mundo. No criativo ano de 1998, em que apresentaram o
Google em um paper acadêmico, deixaram claro que viam a propaganda
como uma influência corruptora das buscas. Chegaram a incluir um
apêndice lamentando a dependência dos mecanismos de busca da
publicidade. “Esperamos que os mecanismos de busca custeados pela
publicidade acabem se mostrando inerentemente tendenciosos em relação
aos anunciantes e distantes das necessidades dos consumidores”, escreveram.
Todavia, em uma frase crucial subsequente, a dupla disse que, embora
tivessem uma atitude purista para com os resultados das buscas, não faziam
nenhuma objeção teológica à publicidade em si. Apenas, no geral, “quanto
melhor o mecanismo de busca, menor o número de propagandas necessário
para o consumidor encontrar o que deseja”.6 Essa atitude conflitante para
com a publicidade — uma aversão inerente aliada ao reconhecimento de que
ela servia a um propósito prático, desde que benfeita — caracterizava a
abordagem que os fundadores adotaram nas duas décadas seguintes. Eles
resistiriam a introduzir ou desenvolver a publicidade no Google até
poderem ver outros assumindo a liderança. Então adotariam a ideia — com
uma abordagem mais “ao estilo Google” (com mais dados, mais condizente
com a ideia de um mecanismo, mais inteligente). A partir de então, dariam o
máximo de si para predominar. E, depois, sua abordagem se converteria no
padrão da indústria. Claro, não precisavam fazer da publicidade sua fonte
primária de receita, e com certeza não tinham de adotar uma abordagem
peculiar como fizeram. Contudo, com as primeiras decisões que tomaram —
sempre tardias por questão de conveniência — partiram em uma direção
que definiria não apenas o próprio futuro, mas o futuro da comunicação na
web.
Na versão cinematográfica da peça de David Mamet, O sucesso a qualquer
preço, há uma cena icônica em que Blake (vivido por Alec Baldwin),
representante do escritório central, censura com grande vigor três corretores
da desgastada imobiliária Premiere Properties (o quarto corretor — Ricky
Roma — está ocupado tentando fechar negócio com um beberrão ingênuo
no restaurante chinês do outro lado da rua). Depois de lhes dizer que estão
todos demitidos e terão até o fim de semana para merecer o emprego de
volta, Blake lhes dá uma dura lição sobre vendas. “Porque só existe uma
coisa que vale a pena na vida!”, grita ele com os três. “Façam com que
assinem na linha pontilhada! Estão me ouvindo, seus maricas de uma figa?”
Ele então foi até o quadro-negro e o fez girar. “S-F-N. S-sempre F-feche N-
negócio. Sempre feche negócio! Sempre feche negócio!!” Isso é venda em
estado bruto e mais cruel. Até chegar aqui há um longo, um longuíssimo
caminho desde a promoção da marca, ou de atrair a atenção de um
potencial comprador. Trata-se nada mais, nada menos de estabelecer contato
com pessoas que já demonstraram interesse em investir em imóveis e
convertê-lo em venda. Sem conversão, sem comissão, sem emprego. Ou, nas
palavras de Alec Baldwin no filme, “o dinheiro está lá fora, se conseguir
pegá-lo, ele é seu. Do contrário — não simpatizo nada com você”.
Quando Page e Brin assumiram o memorável compromisso de custearem
o Google por meio da propaganda, estavam correndo atrás desse tipo de
venda. Não significa dizer que o método do Google tinha alguma coisa a ver
com caixeiros-viajantes implacáveis trabalhando de escritórios caindo aos
pedaços, lançando mão de todos os truques para levar as pessoas a
assinarem na linha pontilhada. Contudo, a abordagem deles se concentrava
ferozmente na conversão. Antes de outubro de 2000, o Google vendia
publicidade de modo bastante tradicional. Empregava pessoal de venda de
anúncios que ofereciam banners publicitários no site com base no número
de visitas que as pessoas faziam. Era menos uma opção consciente que um
indício de quanto os fundadores do Google menosprezavam a publicidade.
Eles estavam tão concentrados na elaboração do mecanismo de busca mais
eficaz que, via de regra, ignoravam os anúncios. Isso mudou no outono de
2000, quando o Google adaptou sua abordagem à adotada por vários outros
mecanismos de busca, vendendo termos de busca. Ou seja, permitiam agora
que os anunciantes pagassem por palavras específicas que, se digitadas no
Google, levariam o anúncio em texto do cliente a aparecer ao lado dos
resultados da busca. De início se tratou de um autosserviço, assim
promovido: “Tem um cartão de crédito e cinco minutos? Divulgue hoje o
seu anúncio no Google”. No entanto, apesar de funcionar por autosserviço e
do link direto com o que a pessoa estava procurando, a propaganda no
Google ainda não era totalmente ao “estilo Google” — no sentido de ser
diferente e fugir do convencional. Os anunciantes continuavam a ser
cobrados com base no número de pessoas que viam seu anúncio.
Dois anos mais tarde, em 2002, o Google atacou com tudo ao estilo
O sucesso a qualquer preço. Na época, a empresa precisou fazer algo radical.
A primeira bolha da internet estourara, a receita do Google andava baixa, e
os investidores estavam insatisfeitos com as taxas de retorno. Ou, nas
palavras de Steven Levy, na biografia do Google lançada em 2011, “os
investidores clamavam por um assassinato sanguinolento”. Em resposta, o
Google subverteu o modo de cobrança dos anunciantes. Em vez de fazê-los
pagar pelo número de pessoas que viam o anúncio, só lhes cobrava agora
pelo número das que de fato clicassem no anúncio. O sucesso não seria
medido por exposição, mas por comportamento. A abordagem não era
inteiramente nova — Bill Gross desenvolvera uma versão dela no fim de
1997 e a incorporara a seu serviço de busca, o GoTo.com — apesar das
adaptações implementadas pelo Google. Os anúncios do Google não seriam
incorporados a resultados orgânicos da busca como acontecia no GoTo.com.
Seriam ordenados de acordo com sua qualidade (segundo critérios definidos
pelo Google), e as pessoas fariam lances pelos chamados “leilões de Vickrey”,
ou leilões de segundo preço. Significava que o vencedor do leilão — o
publicitário que dava o lance mais alto — não pagava o preço ofertado, mas
o preço do segundo lance mais alto acrescido de um centavo.
Há centenas de motivos pelos quais o Google se deu por satisfeito ao
adotar a abordagem comportamental. Para começo de conversa, ele se opôs
à tradição e contrariou a maneira como a maior parte das propagandas
funcionava. Segundo, era mensurável, tendo por base o comportamento real
confirmado por dados. Era possível mostrar aos publicitários o número
exato de pessoas que reagiam ao anúncio deles. Terceiro, era altamente
eficaz. Os anunciantes podiam escolher palavras, criar anúncios e dar lances.
O mercado então decidia o valor das palavras, não o Google. Por essa razão,
também podia ser administrado em escala por algoritmos, desde que você
tivesse acesso a capacidade de processamento suficiente. O leilão de Vickrey
também dava a impressão de ser tudo mais justo. E, por fim, parecia
trabalhar a favor de todos os lados. As pessoas já tinham indicado o que
desejavam digitando os termos da busca (“voo barato para Paris”). Os
resultados da busca se combinavam com os anúncios, colaborando para um
casamento feliz. Como o Google gostava de dizer a todo instante, todo o
mundo sai ganhando! O Google com certeza ganhava: seus 7 milhões de
dólares de lucro em 2001 saltaram para 100 milhões em 2002.7
Todavia, essa abordagem, que depressa levou os anúncios a se tornarem a
principal fonte de renda do Google, também teria efeitos colaterais
significativos. Ela comprometia o Google com a agressividade nas vendas —
no sentido de “Sempre Fechar Negócio”. Também obrigava a empresa a
rastrear consumo e comportamento. Anunciantes e criadores de conteúdo
eram motivados a pensar sempre no que induziria as pessoas a clicarem,
enquanto o Google precisava medir não só o total de cliques, mas quem
clicara no que e quando, e o que acontecera em consequência disso. Toda
uma cultura on-line se desenvolveu a partir dessa obsessão por cliques —
um cultura não limitada a websites comerciais, mas atingindo as notícias e a
comunicação política. A decisão do Google de adotar essa abordagem
colocou a empresa em um caminho que a levaria muito além de sua
intenção original. Por exemplo, acabaria fazendo que o Google tentasse
descobrir não apenas se você comprou algo on-line depois de ver um
anúncio, mas até se foi à loja e efetuou a compra.
Ainda assim, nesse estágio, a ambição do Google era apenas de sair em
busca de recursos financeiros. Com seus novos anúncios de texto, conseguiu
uma sobra saudável de receita. A essa altura, Page e Brin podiam ter
decidido que, tendo sido bem-sucedidos em tornar a busca autossustentável,
era possível recuar e ignorar outra vez, com segurança, a publicidade digital.
Mas não o fizeram. Depois de provar do fruto dos AdWords (como seus
anúncios de texto são chamados), o Google cresceu e, com isso,
desempenhou seu próximo papel crítico na determinação da economia da
web.
No início de 2003, uma start-up criada em Santa Monica havia quatro
anos, denominada Applied Semantics, já tinha experimentado sete ideias
diferentes de produtos, alterado o próprio nome (do bem menos cerebral
“Oingo”) e visto seus compradores potenciais chegarem e partirem.8
Quando o Google quis adquiri-la, havia todos os motivos para pensar que
perderia o interesse como as demais empresas. Dessa vez, a sétima, a venda
se consumou. Mais tarde esta seria citada como uma das mais importantes
aquisições da história da internet.9 Trabalhando com a Applied Semantics, o
Google conseguiu pegar sua expertise fenomenal em prospecção de texto e
combiná-la com a tecnologia de inserção de anúncios em páginas da web a
fim de entregar propagandas contextualizadas em escala. Falando português
claro, o Google podia agora fazer a entrega automática de anúncios em
quaisquer páginas da web diretamente relacionados com o texto dessas
páginas. Se você estivesse lendo um artigo sobre esqui, o Google poderia lhe
mostrar um anúncio de equipamentos para esquiar. Se fosse um artigo sobre
o mercado financeiro, conseguia publicar um anúncio sobre comércio de
bitcoins. O objetivo dessa nova tecnologia não era fornecer mais anúncios
na busca do Google, mas dar a divulgador on-line a oportunidade de
mostrar anúncios, bastando acrescentar algumas poucas linhas de código e
deixar o Google fazer o resto. A partir do momento em que os anúncios
chegavam, o mesmo acontecia com os pagamentos — para quem publicava e
para o Google. Do mesmo modo que a busca do Google organizara o novo
fluxo de informação on-line, o Google AdSense — como era chamado —
ajudaria a financiar o fluxo. Para o Google, mais uma vez todo o mundo saía
ganhando. Os anunciantes podiam pôr suas propagandas em bem mais
websites, e os divulgadores podiam preencher espaços vazios em suas
páginas e ainda ser pagos. O que poderia dar errado?

Em 1802, o cientista, naturalista, aventureiro e polímata Alexander von


Humboldt mandou do Peru para casa uma série de espécimes de uma
substância com alto valor agrícola — tinha plena convicção disso. “O
substantivo huano (os europeus sempre confundem hua com gua, e u com
o)”, escreveu ele, “significa, na língua dos incas, fertilizante para aumentar os
nutrientes da terra.” Os europeus conheciam a substância como guano ou,
mais comumente, fezes de pássaro. Testes realizados em Paris confirmaram
que ela era rica em nitrogênio, fosfatos e potássio. Duas décadas mais tarde,
quando testada por fazendeiros norte-americanos, descobriu-se “o esterco
mais poderoso já aplicado ao milho”.10 Por volta da década de 1840 houve
uma “corrida do ouro” do guano, conduzida pelos britânicos, com os norte-
americanos a segui-los de perto. Durante cerca de vinte anos, na metade do
século XIX, o guano foi o principal fertilizante utilizado pelos fazendeiros
britânicos. No início, parecia que todo o mundo se beneficiava com isso.
O governo peruano saldou dívidas antigas, e o guano logo se tornou a
principal fonte de renda do Estado. Novos negócios como a empresa de
produtos químicos W. R. Grace deslancharam. Alguns comerciantes e as
respectivas famílias — como os Gibbses — ganharam muito dinheiro
(inspirando o verso do teatro de variedades vitoriano “William Gibbs made
his dibs / Selling the turds of foreign birds”).11 Os fazendeiros, sobretudo no
Reino Unido e nos Estados Unidos, conseguiram aumentar os rendimentos.
Tudo a partir de um recurso que parecia infinito e, por outro lado,
literalmente um desperdício.12
Na verdade, nem todo o mundo se beneficiou com a “corrida do ouro” do
guano. A escavação de fezes de pássaros consistia em uma atividade
miserável que poucas pessoas queriam realizar. Isso levou os mineradores de
guano a utilizarem mão de obra proveniente das ilhas do Pacífico, bem
como, na prática, a escravizarem trabalhadores chineses, muitos dos quais
morreram ou sofreram terríveis problemas de saúde. O governo peruano,
que a princípio ganhou muito dinheiro com esse comércio, contraiu dívidas
enormes, que foi incapaz de saldar quando o preço do guano despencou,
tempos depois. Os Estados Unidos, furiosos por serem ultrapassados no
mercado pelos britânicos, aprovaram uma lei — o Ato norte-americano das
Ilhas de Guano, 1856 — que legalizou o confisco de ilhas do Pacífico com o
propósito de extrair guano. Logo ele foi considerado o primeiro ato
imperialista do país. Uma guerra colonial irrompeu quando a Espanha
tentou confiscar as ilhas ricas em guano da costa do Peru, e quando o Peru e
o Chile disputaram o controle dos recursos existentes no deserto do
Atacama. O próprio guano logo se esgotou em virtude do excesso de
escavação, tendo sido então substituído por alternativas sintéticas.
Exploração, escravidão, endividamento, imperialismo e guerra — essas
foram algumas das repercussões indesejadas, ou “consequências extrínsecas”,
como dizem os economistas, do comércio de guano do século XIX.
Mas, afinal, o que a abordagem às ad techs adotada pelo Google, no
século XXI, tem a ver com o comércio de guano no século XIX? Bom, em
2003, o Google enxergou espaços em branco intermináveis na rede,
crescendo mais a cada dia. A maior parte deles — do ponto de vista
comercial — parecia desperdiçada. Se, explorando o texto de cada página da
web, o Google conseguisse preencher os espaços em branco com anúncios
relevantes, todo o mundo poderia encher os próprios bolsos. Os sites em si
ganhariam dinheiro dos anúncios, os usuários veriam os anúncios que
fossem relevantes para a página, e o Google tomaria para si a fatia que lhe
dizia respeito. Como os imperialistas britânicos no século XIX, tendo
enxergado a oportunidade, o Google se mexeu rápido e colonizou todo o
mercado que pôde, antes que lhe passassem a perna. Como não podia deixar
de ser, seus anúncios se disseminaram feito incêndio na mata web afora.
Além disso tudo, o Google era visto como um patrono generoso, o
responsável pela criação de uma espécie de árvore mágica de dinheiro.
Como o jornalista Ken Auletta escreve em seu livro Googled: “Além de não
ser mau, o Google era benéfico”. Para onde quer que ele conduzisse, os
outros o seguiam. O Outbrain, serviço que de maneira semelhante preenchia
os espaços em branco nos sites dos divulgadores com links para outros
artigos, anúncios relevantes e conteúdo patrocinado, lançou-se em 2006, e
outro parecido, chamado Taboola, em 2007. Da próxima vez que visitar um
website de notícias, dê uma olhada nos anúncios e links salpicados pela
página — é grande a probabilidade de pelo menos um deles ser fornecido
por uma dessas três empresas.
Todavia, como aconteceu com o comércio de guano, a colonização pelo
Google dos espaços em branco na web teve muitas ramificações inesperadas.
Deu ao Google autoridade sobre um estoque gigantesco de espaço
desperdiçado. Tão imenso que só podia ser administrado por meio de um
software inteligente e um monte de dados, e por divulgadores e publicitários
fazendo eles próprios grande parte do trabalho. O Google podia ter
autoridade, mas só exercia controle limitado. Não havia uma única pessoa
da empresa capaz de decidir qual anúncio seria exibido em que página ou
site. Isso seria feito pelos algoritmos. Os distribuidores necessariamente
precisavam abrir mão do controle de muitos dos anúncios que apareciam
nos próprios websites, deixando isso por conta do Google e da
automatização. De semelhante modo, os anunciantes tinham de ceder o
controle de onde seus anúncios apareciam. Era um sistema projetado para
ser governado por olhos e cliques. Um sistema construído em função da
magnitude, não da possibilidade de monitoramento.
Uma mudança assim gigantesca no modo como notícias e informação
eram financiadas estava fadada a ter repercussões. Todo um mercado
incipiente surgiu — alguns mais kosher que outros — de pessoas produzindo
coisas apenas para satisfazer a demanda fugaz do público. Os clickbaits
decolaram. A personificação dessa mudança chamava-se Demand Media,
uma empresa que literalmente rastreava o que as pessoas buscavam on-line
para então produzir artigos ou vídeos superbaratos com o intuito de
redirecionar parte do tráfego da busca e os dólares dos anúncios a ele
associados. Tratava-se de uma abordagem à informação ao estilo do livre
mercado, mas de incrível crueldade — nascida diretamente do modelo
adotado pelo Google. A Demand Media acabou estagnando e naufragando
com um rombo no casco produzido justamente pela empresa à qual devia
todo sucesso. O Google ajustou seu algoritmo de busca em 2011 para
implementar conteúdos do tipo Demand Media em seus resultados. Sem
nenhuma atenção, sem nenhum faturamento. Contudo, a abordagem — ao
produzir fossem quais fossem as notícias e as informações que atraíssem
atenção de modo a gerar renda de publicidade — não morreu, apenas
evoluiu. Cinco anos depois que a estrela da Demand Media começou a se
apagar, um negócio caseiro criado por um grupo de jovens que vivia às
margens do rio Vardar, na Macedônia, cuidava de inventar notícias sobre
candidatos à eleição dos Estados Unidos. E estava ganhando — graças em
grande parte ao AdSense — dez vezes mais o salário médio mensal.13
Outro efeito colateral imprevisto do modelo imperial do Google foi os
anunciantes poderem — involuntariamente — se descobrir financiando o
extremismo político. Empresas como o Walmart pagavam ao Google para
publicar anúncios onde quer que gerassem cliques. Depois de 2012, isso
poderia significar um em mais de 2 milhões de divulgadores na rede
AdSense. Nem o Google, nem empresas como o Walmart estavam prestando
muita atenção ao lado do que seus anúncios apareciam. Desde que não fosse
nada pornográfico ou violento, imaginavam que não lhes cabia se preocupar
com isso. Até descobrirem, graças em parte a uma investigação do The Times
em 2017, que estavam ajudando a financiar sites que promoviam o
extremismo político, teorias da conspiração e notícias inteiramente forjadas
por meio de seus anúncios.
Assim, tendo adotado esse reluzente novo modelo de publicidade nos
idos de 2005, o Google ocupava posição vantajosa. Solucionara suas
preocupações financeiras. Fora bem-sucedido abrindo o capital em 2004. E
compreendera qual era sua principal fonte de renda — a publicidade na web.
Como isso incluía não apenas os próprios sites, mas a longa cauda — que só
fazia crescer a cada dia — de divulgadores em toda a web, sua renda futura
também parecia rósea. Eric Schmidt, que se tornou executivo-chefe do
Google em 2001, contou a Ken Auletta que 2002 fora o ano em que se dera
conta de que “nosso negócio é a publicidade”. A barganha — até então —
não dera tão certo para os divulgadores de conteúdo. Depois que o Google
expandiu o inventário do espaço publicitário, a renda que eles recebiam de
cada anúncio na web era uma fração do que recebiam dos anúncios
impressos ou na TV. Contudo, os líderes do negócio de propaganda
continuavam otimistas. O dinheiro, pensavam, passaria para o mundo on-
line. “Espero”, disse sir Martin Sorrell em 2008, “que dentro de cinco anos —
em torno de 2013, então — estejamos pelo menos um terço no digital.”14
Sorrell, na época presidente de um dos maiores conglomerados mundiais da
publicidade, tinha razão ao dizer que o dinheiro fluiria on-line. Mas não iria
para as velhas empresas de divulgação nem para os publicitários.

Agora que participava do mundo da publicidade digital, o Google não podia


deixar de notar que não era o líder, mas apenas um entre vários
competidores. Há poucas coisas de que os chefes do Google gostam menos
que não liderar. Sobretudo quando pensam que sua empresa pode fazer um
trabalho bem melhor que os concorrentes. Em 2007, o Google ainda
conseguia enxergar uma extensão do espaço publicitário on-line
completamente fora de seu campo de atuação — todos os anúncios em
banners posicionados no alto e na lateral dos sites dos grandes divulgadores.
Apesar de esses anúncios não terem nada a ver com a atividade principal do
Google, a empresa era capaz de enxergar toda a ineficiência daquele serviço.
Montes desses anúncios eram vendidos por pessoas. Costumavam ser os
mesmos em múltiplas páginas da web, onde podiam permanecer horas, dias
até. Para infelicidade do Google, todo esse setor já estava ocupado por
competidores enraizados e com relacionamentos estabelecidos. O mais
predominante chamava-se DoubleClick, empresa que se vangloriava de um
catálogo de anunciantes de primeira classe e — ao estilo avenida Madison —
oferecia festas extravagantes para seus clientes. Uma delas, de acordo com
David Sidor, um dos primeiros empregados da empresa, transformou o
nightclub nova-iorquino Roxy na fábrica de chocolate de Willy Wonka, sem
deixar os garçons Oompa Loompa de fora.15 Ávido por expandir novos
territórios, o Google comprou a DoubleClick por 3,1 bilhões de dólares em
2007 (transação finalizada em 2008) — quase o dobro que gastara no
YouTube em 2005 e de longe sua maior aquisição até então.
Como Alexandre, o Grande, depois de enfim derrotar os persas na
batalha de Gaugamela, Larry Page e Sergey Brin agora conseguiam
contemplar na web seu vasto império publicitário. Tendo assumido a
DoubleClick, o Google supervisionava o conteúdo publicitário de muitos
milhões de páginas, desde novos divulgadores de ponta a pequenos blogues.
A envergadura do império era assim grande porque a DoubleClick assumira,
como o Google com o AdSense — a responsabilidade de vender acres de
espaço desperdiçado que os divulgadores lutavam para dispor eles mesmos
— velhas páginas raramente visitadas, enterradas por baixo de conteúdos
novos. O Google se tornava depressa o patrono da economia da informação.
No entanto, também não há como questionar que, adquirindo a
DoubleClick, os fundadores do Google se distanciavam mais um passo da
própria reprovação à propaganda e de sua justificativa inicial no sentido de
usá-la só para pagar as contas. O mecanismo de busca também avançava
inexoravelmente pelo caminho do rastreamento de seus usuários, e depois
usava a informação obtida para ajudar a segmentar anúncios a eles
direcionados — algo contra o que os fundadores do Google sempre tinham
lutado (embora não o bastante a ponto de deixarem de coletar informações).
De fato, em 2008, o Wall Street Journal anunciou que eles tinham
argumentos audaciosos acerca de como deveriam usar todos os dados que
agora reuniam.16
Havia outro motivo para a compra da DoubleClick, mais ajustado à
teologia da engenharia do Google e à direção em que conduziam as notícias
e a informação na web. A DoubleClick vinha trabalhando em um
intercâmbio de propaganda, seguindo a premissa do mercado de ações.
A ideia, que naturalmente atraiu a sensibilidade do Google, era que o
intercâmbio afastaria grande parte do atrito que naquele momento
caracterizava o processo de compra e venda de anúncios digitais. Os
divulgadores on-line, com espaço para publicidade sobrando e querendo
vendê-lo, poderiam depositá-lo em uma espécie de bolsa de valores,
enquanto os anunciantes, dispostos a comprar espaço publicitário pelo
melhor preço, conseguiriam encontrá-lo ali. Remover atrito (sinônimo de
pessoas, na maior parte das vezes) sempre fora uma justificativa essencial
para o que o Google fazia on-line. Ele não organizava a informação do
mundo utilizando pessoas, mas usando códigos. De igual modo, na
publicidade, a equipe de venda e os intermediários podiam ser substituídos
por códigos e pelo mercado. Como Susan Wojcicki, responsável por chefiar
o desenvolvimento do AdSense no Google, dissera sobre o serviço: “Isso
mudou a maneira como os provedores de conteúdo pensam o próprio
negócio. Sabem que conseguem gerar receita sem ter uma equipe de vendas
específica”.17 Um intercâmbio publicitário era mais uma extensão desse
princípio.
Em 2007, dois estudantes empreendedores, do interior de um dormitório
na Filadélfia, conseguiram enxergar o rumo que as coisas estavam tomando.
Nat Turner e Zach Weinberg eram universitários e nenhum dos dois jamais
trabalhara em publicidade ou tinha grande conhecimento sobre o
funcionamento dessa indústria (uma vantagem, provavelmente,
considerando quanto as ad techs são diferentes da publicidade tradicional).
Mas a dupla sabia mexer com códigos. Turner e Weinberg resolveram
“apostar que os intercâmbios aconteceriam em tempo real”. “Entendemos
que, se o Google fizer, todo o resto do mundo fará, e de repente havia a
necessidade de um corretor.”18 Por “tempo real” Turner queria dizer que os
anunciantes dariam lances tentando levar cada espaço no instante em que
alguém abrisse uma página da web. Ao acessar um website pela primeira
vez, você nota que embora haja espaço para montes de anúncios, não
necessariamente eles são exibidos de pronto. Isso não acontece por causa de
sua conexão lenta. Acontece porque no momento em que você abriu a
página, seus detalhes foram lançados em uma bolsa de anúncios em que os
propagandistas começaram a dar lances pela sua atenção. Quanto mais você
valer a pena para eles — com base em quem você é, onde mora, o que faz e
inúmeras outras porções de informação — mais eles oferecem. O vencedor
do leilão tem o direito de lhe mostrar seu anúncio; o perdedor não. Tudo
isso se passa na fração de segundo necessária para a sua página carregar.19
Turner e Weinberg tinham razão. Em setembro de 2009, o Google lançou
um mercado publicitário, ou ad exchange em inglês, em tempo real. Com
um timing perfeito, a dupla também lançou seu primeiro serviço no mesmo
ano, com o intuito de auxiliar os anunciantes a comprarem propaganda por
meio do mercado de intercâmbio de anúncios em tempo real — tudo isso
usando softwares inteligentes. Sempre atento a serviços que complementam
os de que já dispõe, no ano seguinte o Google comprou a empresa deles, a
Invite Media, por 81 milhões de dólares em dinheiro.20 De acordo com Neal
Mohan, vice-presidente de gerenciamento de produto do Google, os ad
exchanges “democratizariam o mundo da publicidade gráfica e a tornariam
acessível e tão abertas quanto possível para divulgadores grandes e
pequenos, anunciantes grandes e pequenos — como a publicidade de busca
é hoje”.21 Mohan quis dizer que os sistemas do Google — em teoria —
deixariam a propaganda mais barata para os pequenos negócios e lhes
dariam a oportunidade de colocar anúncios em um grande número de
novos espaços. Contudo, mesmo no sentido econômico, logo ficaria
evidente que o mundo dos ad exchanges em tempo real era tão complexo
que só seria democratizante para quem fosse fluente em codificação ou por
acaso tivesse um Ph.D. em física.
O movimento em direção à compra e venda por meio de ad exchanges
compeliu o mundo das ad techs a ir além, rumo à automação e à
personalização. Os anunciantes não mais comprariam espaço em veículos de
mídia: a partir de agora, comprariam você. Não o escolheriam pelo nome,
mas por sua susceptibilidade à mensagem que tinham. Portanto, quanto
mais soubessem ao seu respeito, melhor. Não só o interesse que você
demonstrou por algo, mas a seriedade desse interesse, a probabilidade de
você de fato seguir por esse caminho, quando o momento certo chegaria
para você. Graças aos ad exchanges, também podiam descobrir como
alcançá-lo de maneira mais eficiente — ao custo mais baixo, com o maior
retorno possível. Se isso significava rastreá-lo on-line e mostrar-lhe um
anúncio em um site político alternativo que por acaso você estivesse
visitando, no lugar do site de notícias pelo qual passou cinco minutos antes,
que assim fosse. Esse simplesmente seria o modo mais eficiente e vantajoso
em termos financeiros de atingi-lo. O significado disso no mundo real é que
os anunciantes agora conseguiam alcançar a mesma pessoa a um menor
custo em um site pequeno, menos estabelecido — via o ad exchange.
O dinheiro que antes teria fluído para mídias conhecidas como o New York
Times estava sendo canalizado para os sites alternativos. O Google
efetivamente incentivava o conteúdo de baixo custo e casual ao desviar os
dólares da publicidade dos sites mais caros, mais respeitados. O modelo de
financiamento da mídia responsável, já em queda, levava mais um tombo.
Em 2012, o Google se expandira pelos ecossistemas das notícias e da
tecnologia. Vendia anúncios nos próprios sites, em milhões de sites de
terceiros e ajudava os distribuidores a organizarem e venderem suas
propagandas, gerenciando o importante ad exchange e colaborando com os
anunciantes na compra de publicidade. Comparando-o com o mundo das
finanças, era a empresa em que as pessoas estavam investindo, o assessor
financeiro corporativo (a Morgan Stanley dos negócios), o mercado de
capitais em que a empresa fazia negócios (como a NASDAQ) e o corretor
aconselhando as pessoas sobre onde investir. A diferença era que, nos
mercados financeiros, existem regras e regulações governando as atividades
de diferentes empresas. Seria um conflito de interesses, por exemplo, alguém
atuar tanto como corretor quanto como consultor de investimentos.
Não havia (nem há) nenhuma regra comparável no mundo das ad techs. Em
essência, era um mundo bastante livre de regras sobre o qual o Google
presidia como um senhorio ausente. A fim de minimizar custos e ao mesmo
tempo maximizar escala e eficiência, o sistema era construído sobre
autosserviço, leilões e automação. Qualquer controle — por exemplo, em
termos de quais anúncios iriam para quais sites — significaria atrito, e o
atrito aumentaria os custos.
O Google impulsionara a criação de todo um ecossistema digital de um
lado aberto, acessível e relativamente isento de regras, mas, por outro lado,
de uma complexidade monumental, intrincado e precário. De fato, na época
que Barack Obama foi eleito para o segundo mandato como presidente dos
Estados Unidos em novembro de 2012, a estrutura inteira das ad techs se
parecia com uma engenhoca digna de Heath Robinson ou Rube Goldberg,
fantástica de tão habilidosa e monstruosa de tão complicada (vem-me à
mente a “nova máquina multimovimento para pegar ovos de Páscoa”). Cada
um dos dentes da engrenagem movia outro dente que provocava a rotação
de uma alavanca, a qual puxava uma corda que levantava uma alça e esta
fazia cair um martelo... e assim por diante. Para funcionar, o sistema todo
dependia da operação suave de cada elemento em conjunto com o seguinte.
Só se tudo tomasse forma em perfeita harmonia poderiam milhões de
anunciantes colocar bilhões de propagandas em milhões de websites
diferentes a cada segundo de cada dia. Para funcionar, o sistema necessitava
ser alimentado o tempo todo com montanhas de informação pessoal e
atualizado sem parar. Tudo isso cuidadosa e automaticamente ajustado à
disposição dos anunciantes para pagarem e dos divulgadores para
venderem. Tão grande e complexo se tornara que só quem tinha capacidade
para coletar e processar quantidades enormes de dados podia competir. Só
empresas, em outras palavras, como o Google. Acrescente a isso um grão de
areia e o castelo todo ruiria — e, com ele, grande parte da web. Em 12 de
novembro de 2014, quarta-feira, foi o que aconteceu. Um problema no ad
server do Google significou que, por uma hora, os anúncios deixaram de
aparecer nos sites dos divulgadores em toda a web. Como a ad tech era
integrada às páginas em si, também significou muitas páginas
impossibilitadas de serem exibidas e que, para muita gente, boa porção da
web simplesmente parara.22
Esse sistema de ad tech “ao estilo Heath Robinson” dependia de acesso
aberto. Desde outubro de 2000, o Google fizera tudo que podia para deixar
as pessoas criarem, comprarem e segmentarem elas próprias os respectivos
anúncios. Desde que eles não chamassem a atenção para um flagrante
desrespeito às políticas de propaganda do Google, seriam transmitidos,
livres de atrito, aos websites. Para o Google, o acesso aberto era eficiente em
termos econômicos (menor número de pessoas era necessário, custo
menor), atraente em termos filosóficos (democratização!) e coerente com o
modelo de negócios da empresa (de comercialização da web aberta). Era
também deliberadamente não discriminatório — qualquer um podia
comprar anúncios, em qualquer parte do mundo, e pagá-los em dólar, euro,
libra, iene ou rublo. Com a mesma facilidade que a Internet Research
Agency da Rússia pôde pagar por propaganda hipersectária, a Whole Foods
podia pagar para promover salsichas sem carne.
No entanto, ser aberto não é ser transparente. Na realidade, em
consequência de sua complexidade, velocidade e automação, o sistema tinha
uma opacidade incomensurável. Qualquer sistema tão complicado, tão
inacessível ao escrutínio externo e à vigilância interna, estava fadado a ser
manipulado. Com certeza foi o que aconteceu. Entre 2008 e 2012, o Google
noticiou que o número de anúncios por ele desaprovado crescera de 25
milhões para 134 milhões. Uma prova de sucesso, segundo o Google.
“Mesmo na sempre crescente corrida armamentista [da fraude de
anúncios]”, escreveu seu diretor de engenharia de propaganda, “os nossos
esforços estão dando certo.” Essa confiança foi desmentida pelo crescimento
dos golpes, dos robôs, dos “truques para gerar cliques”, dos anúncios
autoclicantes, das propagandas enganosas e dos “tabloides disfarçados”
(anúncios feitos para se parecerem com manchetes de tabloides com o
intuito de levarem as pessoas a clicar). Em 2015, o Google declarou que
“desativara mais de 780 milhões de anúncios por violação das nossas
políticas” e, em 2016, a cifra chegou a 1,7 bilhão. A empresa atribuiu o
aumento fenomenal de manipulação e fraude como prova de que tinha o
problema sob controle. Essa é uma leitura. Outra é que ela criara um sistema
inerentemente vulnerável, e havia mais e mais pessoas tirando vantagem
dessa vulnerabilidade. Por rápido que o Google conseguisse eliminar um
método de fraude, outro surgia no lugar.23
Não só o sistema de anúncios digital — a Googlesfera— estava aberta à
manipulação como incentivava seus participantes a reunirem o máximo de
informação pessoal possível sobre seus visitantes, de modo a poder vendê-la
por preços mais altos em um ad exchange. Os ad exchanges operavam pela
combinação do máximo de compradores e vendedores o mais rápido
possível por preço definido pelo mercado. Não era função deles policiar o
que acontecia com os anúncios a partir do momento em que eram alocados.
Talvez não surpreenda, então, a estimativa de 2011 de que entre 50% e 95%
dos anúncios gráficos vendidos por intercâmbios (em oposição a
ocorrências de cliques em links) nunca tinham sido vistos por ninguém. “As
operações de mercado eram literalmente uma latrina”, contou um
comprador de ad exchange ao jornal especializado Digiday.24 As agências
eram motivadas a atingir os consumidores mais valiosos pelo menor preço
possível em benefício de seus clientes. E esses clientes, os anunciantes, eram
incitados a mensurar o próprio sucesso pelas respostas comportamentais
que provocavam. Bastava conseguir um clique do usuário! Tudo era
orientado em função da compra e venda do usuário — sendo ele, claro, você
e eu. É como acontecia no filme de 1973, Golpe de mestre, em que Robert
Redford e Paul Newman reúnem toda uma turma de ladrões, golpistas,
vigaristas e trapaceiros para orquestrar um golpe no “alvo”, Doyle Lonnegan.
Todo o mundo sabe do golpe, exceto o próprio Lonnegan, que perde 1
milhão de dólares sem jamais se dar conta de ser ele a vítima de uma
complexa falcatrua.
O Google nunca se propôs a construir um programa que funcionasse
dessa forma. E, consciente de que o sistema corria o risco de cair em
descrédito, o gigante da tecnologia procurou maneiras de enfrentar o
problema. Nessa etapa, havia dois caminhos que ele podia tomar. Podia ter
tentado destrinchar o sistema, devolvendo-lhe atrito e reduzindo seu papel
— o que representaria um esforço enorme e significaria inevitavelmente
reduzir-lhe a hegemonia e a receita. Ou poderia ter optado pelo sentido
contrário, reunindo ainda mais dados pessoais e se tornando ainda mais
dominante. O Google escolheu a segunda alternativa. Até 2012 ele evitara
usar todos os dados que coletava, mantendo separadas as informações
pessoais de seus diferentes serviços. Naquele ano, porém, optou por agrupar
tudo. Setenta políticas de privacidade diferentes se fundiram em uma só.25
Isso significava que ele podia combinar tudo o que sabia ao seu respeito —
desde o que você via no YouTube até as buscas que fazia no Google,
passando pelo seu Gmail — em um grande caldeirão. Daí ele foi além,
conectando pessoas com seu identificador único e acompanhando-as por
toda a sua vida digital. E então foi mais além ainda, rastreando os
movimentos na vida real das pessoas via telefone celular. Conquanto toda
essa informação pessoal sem dúvida tenha ajudado a empresa a ajustar e
desenvolver seus muitos e variados produtos, também a levou a se
aprofundar no que a acadêmica Shoshana Zuboff chama de “capitalismo de
vigilância”. A fim de provar para os anunciantes que o dinheiro deles era
bem gasto e que as fraudes nos anúncios estavam sob controle, o Google
ficou obcecado em medir cada movimento on-line das pessoas, em
monitorá-las de perto e registrar toda vez que “se convertiam”. Em 2013,
chegou a começar a seguir as pessoas nas compras para ver se conseguia
relacionar o que as pessoas compravam na vida real com o que buscavam
on-line.26 A fonte de custeio e a abordagem que Page e Brin tinham adotado,
com relutância, a fim de manter as luzes acesas, começavam a controlar a
empresa. Não só isso, mas ela agora encarava um importante competidor na
busca de receita.

O Facebook tinha uma grande vantagem competitiva na economia digital,


em cuja criação o Google desempenhara papel fundamental. Ele dispunha
de toneladas de dados pessoais. Se o Google sabia o que você procurava on-
line, o que fazia e aonde ia, o Facebook conhecia a sua personalidade, as suas
atitudes e os seus amigos. Antes de 2012, o Facebook não tirara plena
vantagem do que sabia sobre seus usuários para direcionar a publicidade.
Todavia, a fim de justificar o próprio valor e continuar crescendo,
transformou-se em um mecanismo de propaganda centrado em pessoas.
Muito do que o Facebook fazia, ao menos no início, foi construído a
partir do protagonismo do Google. Ele concentrou todas as suas forças na
coleta de dados para provar aos anunciantes que seu artefato funcionava.
Disseminou-se pela web — usando os botões “curtir”, os “pixels de
conversão” (mais tarde, pixels do Facebook) ocultos e seu login — para
registrar o que as pessoas estavam fazendo on-line mesmo sem estarem no
Facebook.27 Os anúncios eram do tipo autosserviço e podiam ser pagos em
qualquer moeda. O Facebook também fez anunciantes darem lances em
leilões de segundo preço, ou de Vickrey. Como o Google, tentou incentivá-
los a produzir anúncios atraentes e relevantes, considerando esse critério ao
escolher o vencedor de um leilão. Chegou a rascunhar um ad exchange
aberto (mas o encerrou em 2016).28
No entanto, o Facebook conseguiu ir mais fundo na vida privada das
pessoas que o Google, e relutou menos que o rival no uso de informações
pessoais. Afinal, era seu maior trunfo. Desde 2012, combinava e agregava as
informações pessoais dos usuários permitindo aos anunciantes segmentar —
ou microssegmentar, melhor dizendo — as pessoas com base na
superabundância de dados relativos a atitude, comportamento, condição
social ou demografia. Também pegou essas informações pessoais e as
reconectou com o mundo real, possibilitando às empresas, bem como às
campanhas políticas, o upload de seu público personalizado [custom
audience em inglês] aos sistemas do Facebook. Por volta de 2015, o Google
se descobriu correndo atrás do prejuízo, apresentando, por exemplo, um
clone do Custom Audiences chamado Customer Match, e depois o Similar
Audiences para competir com o Lookalike Audiences do Facebook. Tudo
isso significava, claro, mais rastreamento de usuários e mais combinações do
que sabiam a fim de criar um perfil íntimo completo de cada um de nós. Um
estudo da tecnologia de rastreamento na web, publicado em 2016, o maior
até então, concluiu que o Google era dono das cinco principais e mais
comuns ferramentas de rastreamento, e que — ao combinar as tecnologias
do Google Analytics com a do DoubleClick — seguia os movimentos das
pessoas em mais de 70% dos sites da internet.29 No mesmo ano, ele chegou a
alterar sua política de privacidade de modo a permitir que ela amalgamasse
dados da rede de anúncios com tudo o que soubesse a seu respeito — coisa
que a empresa tivera o cuidado de se abster de fazer desde 2007.30
Quando da votação do Brexit no Reino Unido e da campanha Trump-
Clinton nos Estados Unidos, o Google e o Facebook competiram para
superar um ao outro em coleta de dados, rastreamento de vigilância,
incorporação de clientes, microssegmentação, testagem multivariada e
atribuição.31 As duas gigantes, que àquela altura supervisionavam a maior
parte da publicidade na rede, batalhavam para prover os anunciantes das
ferramentas de segmentação digital mais poderosas, mais sofisticadas e mais
abrangentes. Dada sua hegemonia, os dois titãs da tecnologia definiam os
termos segundo os quais as ad techs funcionavam. O restante da indústria
lutava só para permanecer no jogo — acumulando todo dado pessoal que
podia, fornecendo acesso a quaisquer cantos da web que as duas gigantes
não haviam colonizado e copiando as ferramentas do duopólio. Como
escreveu a Wired, bíblia da tecnologia, em 2017: “Para onde quer que
Facebook e Google conduzirem, o resto do mundo da publicidade digital irá
atrás”. Todavia, como no caso do comércio de guano cento e cinquenta anos
antes, esse sistema — de cuja criação Google e Facebook tinham sido
agentes cruciais e que agora dominavam — teve diversos efeitos prejudiciais,
ainda que involuntários, sobre a política democrática.
O Google, como o Facebook, tratava a propaganda política como outra
publicidade comercial qualquer. Ambos ficavam felizes em vender seus
produtos a qualquer um que pudesse pagar, não importando onde estava,
qual era sua mensagem ou quem tentava alcançar. Dispunham-se inclusive a
aconselhar os clientes políticos sobre como obter o máximo dos serviços que
ofereciam. Os professores Daniel Kreiss e Shannon McGregor
compareceram à convenção do Partido Democrata norte-americano em
2016 e encontraram as duas gigantes de tecnologia promovendo seus
serviços em profusão. O Facebook Election Space, por exemplo, “apresentou
um estúdio de transmissão completo, um estúdio Facebook Live, displays de
realidade virtual e um Salão Oval ao qual a empresa convidou
influenciadores do Instagram para visitar e de onde puderam publicar fotos
na primeira noite da convenção”.32 Durante a campanha eleitoral norte-
americana de 2016, Google e Facebook foram longe a ponto de colocar
empregados próprios na equipe de Trump (ofereceram-se para fazer a
mesma coisa na campanha de Clinton). Reunidos em San Antonio com os
responsáveis pela tecnologia na campanha de Trump, esses conselheiros das
duas empresas os ajudaram a “otimizar, criar mais envolvimento e adequar e
ampliar o público-alvo dos anúncios da campanha”. Alguém da equipe de
Trump chegou a chamar o conselheiro fornecido pelo Facebook, James
Barnes, de “MVP” (sigla em inglês para “participante mais valioso”).33 As
plataformas também assessoraram grupos ativistas. Em outubro de 2017, o
Bloomberg noticiou que, nas últimas semanas da eleição nos Estados
Unidos, tanto o Google quanto o Facebook ajudaram um grupo ativista
norte-americano, o Secure America Now, a direcionar mensagens anti-
islâmicas a quem poderia estar mais receptivo a elas. Alguns desses anúncios
mostravam “a França e a Alemanha infestadas pela lei charia. Estudantes
franceses estavam sendo treinados para lutar pelo califado, combatentes
jihadistas eram celebrados no Arco do Triunfo e a ‘Mona Lisa’ fora coberta
com uma burca”.34 O Facebook e o Google não viam como responsabilidade
deles policiar o envio de mensagens políticas, mesmo se contraditórias ou
com o intuito de provocar conflito. Os clientes podiam criar quaisquer
anúncios políticos que desejassem, carregá-los no sistema e — desde que
não violassem os generosos termos de serviço — distribuí-los a quem bem
entendessem. O Heart of Texas, um grupo criado pela Russian Internet
Research Agency no Facebook, conseguiu comprar anúncios conclamando
os texanos a se juntarem à manifestação “Parem a islamização do Texas”,
enquanto outro grupo russo anunciava um protesto para “Salvar o
conhecimento islâmico” — os dois atos no mesmo lugar e na mesma hora,
provavelmente com o propósito de incitar a guerra um contra o outro.35
Muitos dos que se aproveitaram do lado obscuro do sistema agiam assim
não pela política, mas por dinheiro. A empresa de segurança White Ops
revelou, no fim de 2016, por exemplo, que um grupo russo vinha operando
uma bot farm (fazenda de robôs, em tradução literal) que ganhava centenas
de milhares, senão de milhões, de dólares todos os dias por meio de um
sofisticado esquema de cliques fraudulentos.36 Todavia, técnicas utilizadas
visando lucro comercial podiam ter consequências políticas ou ser
facilmente manipuladas com fins políticos. As redes de robôs, ou botnets,
desenvolvidas com o intuito de fraudar anúncios, podiam ser reprogramadas
para promover um candidato ou uma causa política. Propagandas fazendo
afirmações provocativas para chamar a atenção e provocar uma resposta
comportamental podiam, com igual facilidade, tratar tanto de políticos
quanto de celebridades. Em 2017, o ProPublica descobriu uma série de
anúncios políticos falsos no Facebook, com manchetes como “Não importa
o que você pensa sobre Donald Trump e sua política, é justo dizer que a
nomeação dele como presidente dos Estados Unidos é uma das mais...”. Se
cometesse o erro de clicar no “anúncio”, esse ransomware37 congelaria seu
computador e lhe diria que a máquina estava agora “infectada com vírus,
spywares e pornwares”, exibindo um número de telefone, caso você quisesse
“ajuda” para removê-los.38 As ad techs também auxiliavam na geração de
renda para websites políticos periféricos e radicais, bem como para sites que
inventavam “notícias” com o objetivo exclusivo de terem lucro com
publicidade. Menos de quinze dias após a eleição norte-americana de 2016,
uma dúzia de sites da extrema-direita exibia anúncios de empresas,
incluindo American Express, Sprint e Walgreens, distribuídos pelo
Google.39 Por mais irônico que pareça, graças à prioridade conferida pelo
modelo de ad techs aos anúncios envolventes, a postagem das propagandas
políticas incendiárias custava menos que as mais comedidas.
Os métodos e técnicas das ad techs se provaram incrivelmente úteis para
os agentes políticos — de toda espécie e convicção. Campanhas e
consultorias foram capazes de utilizar o Custom Audiences para fazer a
ponte entre o perfil reservado de seus eleitores e os usuários reais do
Facebook. Um sofisticado software de rastreamento de conversão permitiu
que grupos motivados seguissem os eleitores, observando-lhes os
movimentos com cautela a fim de escolherem o momento certo de mobilizá-
los ou convertê-los. Jonathan Albright, diretor de pesquisa no Tow Center
da Universidade de Columbia, ficou atônito ao descobrir, por meio de sua
pesquisa, que, por trás de muitos websites periféricos, hipersectários e
obcecados por conspirações, havia uma sofisticada tecnologia de
rastreamento de anúncios que permitia “a uma campanha muito bem
articulada coordenar o tráfego” para esses sites.40 Em essência, significava
que, se você — ou alguém com quem estivesse conectado — fosse até um
desses sites uma vez, passava a figurar na lista de alvos deles e era seguido
por toda a internet com anúncios e notícias hipersectários.
Em 2016, as gigantes de tecnologia tinham se tornado muito mais
conscientes de quão politicamente poderosas suas ferramentas podiam ser.
De fato, elas as comercializavam junto a candidatos, pessoal envolvido em
campanhas e ativistas políticos tendo por base essa premissa. “Os eleitores
costumavam decidir na sala de estar, na frente do televisor”, a diretora de
comercialização de anúncios do YouTube, Kate Stanford, escreveu em março
de 2016. “Hoje decidem cada vez mais em micromomentos, em dispositivos
móveis”, quando esses cidadãos recorrem ao Google ou ao Facebook para
resolver em quem votar. Por isso, Kate Stanford insistia com os candidatos
para utilizarem o Google de modo a descobrirem com o que as pessoas se
importavam, e para “se fazerem presentes” no “micromomento” citado com
uma mensagem preparada sob medida.41 A gigante das buscas e o Facebook
fizeram a mesma coisa, cada qual se derramando em elogios para os
próprios serviços como o melhor caminho para propagandistas políticos
alcançarem as pessoas certas com a mensagem certa na hora certa. Você
poderia chamar isso de “micromomento Cachinhos Dourados” de cada
eleitor. Essas ferramentas e técnicas estavam disponíveis livremente para
quem tivesse dinheiro, tempo e know-how. Assine, abra uma conta, crie
algum material e comece a dar lances em seja qual for a moeda que você
tenha em mãos.
Eis a resposta para a pergunta de Al Franken. Parar de aceitar moedas
diferentes destruiria o modelo de ad tech construído a duras penas na última
década e meia. Significaria desmontar o sistema que permitira ao Google e
ao Facebook crescer tudo o que tinham crescido. Significaria adicionar
resistência a um projeto elaborado para funcionar sem atrito. Não admira
que Colin Stretch achasse difícil se comprometer com a ideia. Assim, apesar
de tudo que surgira acerca do uso fraudulento, perverso e perturbador das
ad techs depois de 2016, nem o Google, nem o Facebook, nem qualquer
participante de todo o ecossistema de publicidade digital assumiu o
compromisso de desconstruir o edifício. Pelo contrário, comprometeram-se
em acrescentar um grau limitado de atrito e tornar o sistema inteiro mais
“higiênico”. Exerceriam mais controle, seriam mais intervencionistas e,
presume-se, coletariam mais dados.
De qualquer forma, a essa altura os problemas se estendiam muito além
do Google e do Facebook apenas. Grande parte da web era conduzida por
esse modelo. Como os múltiplos homicidas em Assassinato no Orient
Express, de Agatha Christie, quase todas as empresas que produziam
conteúdo on-line eram coniventes em rastrear usuários, construir perfis e
vender acesso. Acrescente em seu navegador a extensão do Ghostery, que
conta o total de rastreadores invisíveis em cada website visitado, e você verá
como é raro não ser seguido. Muitos sites novos, que reclamam do duopólio
do Google e do Facebook, têm rastreadores de dois dígitos. O site do New
York Times tem mais de duas dúzias, como no caso do Los Angeles Times e
do The Times de Londres.42 Como um estudo de 2018 sobre as “tecnologias
por trás da propaganda de precisão” da New America Foundation relatou:
“Não se deve subestimar a importância dos dados pessoais para a
sustentabilidade e o sucesso a longo prazo do ecossistema de publicidade
digital. Os dados impulsionam o comércio na internet; toda empresa da
internet que se vê frente a frente com o consumidor e tem presença
marcante na publicidade on-line coleta e compartilha informação sobre
indivíduos para ajudar os clientes anunciantes a terem sucesso”. E esses
clientes tanto poderiam estar vendendo sapatos como propaganda.
Claro, mesmo que a maior hegemonia do duopólio levasse a um sistema
de anúncios mais higiênico, só metade da equação política estaria resolvida.
A capacidade dos grupos políticos de, para microssegmentarem, aplicarem
testes A/B, rastrearem conversões e acumularem informações reservadas
permaneceria, e quase com certeza aumentaria. Por exemplo, um número
crescente de empresas já experimentou uma nova abordagem à publicidade
chamada “emotions analytics”. A Beyond Verbal se ofereceu para analisar
emoções usando entonações vocais. Outra empresa, chamada Affectiva,
declarou dispor de “tecnologia de reconhecimento de emoção”, capaz de
sentir e analisar “expressões faciais e vocais de emoção”. Houve também a
Sticky, “a única plataforma do mundo de autosserviço, rastreamento
biométrico de olhos baseado em nuvem e de mensuração de emoções”.
Todas essas empresas e muitas outras competiam para encontrar maneiras
mais inteligentes de entrar na nossa cabeça, descobrir o que nos faz agir
como agimos e usar tudo isso para catalisar uma resposta comportamental
ou emocional. Distribuída, sem dúvida, pelo Google ou o Facebook.
Não importa quão anárquico e invasivo fosse o modelo das ad techs,
desde que as pessoas concentrassem atenção suficiente nas notícias e na
informação, o dinheiro de publicidade ainda poderia — teoricamente —
sustentar as coberturas jornalísticas de que dependem a democracia.
Infelizmente, a maioria das pessoas (jornalistas inclusos) não estava
prestando muita atenção. Na realidade, muitas estavam em eterna distração,
jamais conscientes da última postagem em sua página, ou da próxima onda
de tuítes.

1 Para acesso ao vídeo, v. Senator Al Franken questions Facebook VP about political ads purchased

with foreign currency. C-SPAN, 31 October 2017. Disponível em: https://www.c-span.org/video/?


c4688912/senator-al-franken-questions-facebook-vp-political-ads-purchased-foreign-currency.
Acesso em: 10 dez. 2021, 11:38:53.
2 KIHN, Martin. Why ad tech is more complicated than Wall Street. Gartner, 4 December 2014.

3 V. CHEN, Yuyu. Programmatic 101: Marketers turn to vendors for ad tech lessons. Digiday, 10 May

2017.
4 HOFFMAN, Bob. BadMen: How Advertising Went from a Minor Menace to a Major Menace. San

Francisco: Type A Group, 2017. Em se tratando de questão essencial para o funcionamento da esfera
digital, as ad techs são surpreendemente subinvestigadas. Além do livro de Hoffman, v. TUROW,
Joseph. The Daily You: How the New Advertising Industry is Defining Your Identity and Your
Worth. New Haven: Yale University Press, 2011; SMITH, Mike. Targeted: How Technology is
Revolutionizing Advertising and the Way Companies Reach Consumers. New York: Amacom,
2015. Mais estão surgindo, porém ainda é preciso usar reportagens (com frequência envolvendo
direitos de propriedade), declarações e informações das próprias empresas, periódicos da indústria
(entre os mais notórios o Digiday) e artigos jornalísticos (incluindo investigações do ProPublica).
Há também alguns blogues muito úteis e publicações de especialistas, entre eles Stratechery, de Ben
Thompson, Doc Searls, Augustine Fou e Danny Sullivan (antes de se juntar ao Google).
5 Para afirmações sobre um duopólio, v., por exemplo, REUTERS. Why Google and Facebook prove the

digital ad market is a duopoly. Fortune, 28 July 2017; para um detalhamento bastante útil da receita
do Google com publicidade, v. ROSENBERG, Eric. The business of Google. Investopedia, 13
November 2017; em relação ao Facebook, v. SHARMA, Rakesh. How does Facebook make money?
Investopedia, 25 April 2018.
6 BRIN, Sergey; PAGE, Lawrence. The Anatomy of a Large-Scale Hypertextual Web Search Engine.

Stanford University, 1998. Disponível em: http://ilpubs.stanfor.edu:8090/361/1/1998-8.pdf. Acesso


em: 13 dez. 2021, 14:47:08.
7 V. AULETTA, Ken. Googled: a história da maior empresa do mundo virtual e como sua ascensão

afeta as empresas do mundo real. Rio de Janeiro: Agir, 2011. As várias biografias sobre o Google
descrevem aspectos do desenvolvimento da publicidade pela empresa digital, a maior parte em
termos positivos. Além de Auletta, v. BATTELLE, John. The Search: How Google and Its Rivals
Rewrote the Rules of Business and Transformed Our Culture, rev. ed. London: Nicholas Brealey,
2006; LEVY, Steven. In the Plex: How Google Thinks, Works, and Shapes Our Lives. New York:
Simon & Schuster, 2011.
8 V. ELBAZ, Eytan. Ten years later: lessons from the Applied Semantics’ Google acquisition.

AllThingsD, 22 April 2013.


9 V. MORRISSEY, Brian. Today in history: Google buys Applied Semantics. Digiday, 12 April 2013.

10 BARTLETT, Edwin. Guano, Its Origin, Properties and Uses. New York: Wiley & Putnam, 1845.

11 “William Gibbs ganhou seus trocados / Vendendo cocô de pássaros importados.” [N. do T.]

12 Existe uma variedade saudável de material sobre o guano e sua utilidade, remontando a Bartlett

(1845), que inclui: MONTGOMERY, David R. Dirt: The Erosion of Civilizations. Berkeley:
University of California Press, 2007; MATHEW, W. M. Peru and the British Guano Market, 1840-
1870. Economic History Review, 23:1, p. 112-28; WILLS, Matthew. Are we entering a new golden
age of guano? JStor Daily, 4 May 2016; ARMITAGE, David. From guano to Guantánamo. Times
Literary Supplement, 4 December 2013. Para um relato muito mais completo, v. CUSHMAN,
Gregory T. Guano and the Opening of the Pacific World: A Global Ecological History. New York:
Cambridge University Press.
13 Para uma boa descrição da fábrica de notícias macedônica, v. SUBRAMANIAN, Samanth. Inside the

Macedonian fake-news complex. Wired, 15 February 2017.


14 Sir Martin Sorrell in RUSBRIDGER, Alan. Does Journalism Exist?, 2010 Hugh Cudlipp Lecture.

Transcrição em: https://www.theguardian.com/media/2010/jan/25/cudlipp-lecture-alan-rusbridger.


Acesso em: 14 dez. 2021, 18:10:25.
15 SIDOR, David. The Click: A Memoir and Lessons Learned during the Great Internet Boom.

Lincoln, NE: iUniverse, 2004.


16 V. VASCELLARO, Jessica E. Google agonizes on privacy as ad world vaults ahead. Wall Street

Journal, 10 August 2010.


17 Apud AULETTA, Ken. Googled: a história da maior empresa do mundo virtual e como sua

ascensão afeta as empresas do mundo real. Rio de Janeiro: Agir, 2011.


18 LEE, Edmund. “Google’s Invite Media founders: Why we decided not to start the next Facebook.

AdAge, 4 April 2011.


19 V. CARLSON, Nicholas. Meet the 24-year-old who just sold a $70 million company to Google.

Business Insider, 2 June 2010; KAPLAN, David. Google and Invite Media: one year later, DSP looks
to global expansion. Gigaom, 7 June 2011.
20 KAFKA, Peter. Google’s final price tag for Invite Media: $81 million. AllThingsD, 9 June 2010.

21 The DoubleClick Ad Exchange: growing the display advertising pie for everyone. Google official

blog, 17 September 2009. O uso do verbo “democratizar”, salpicado em muitas declarações do


Google, não tem a ver com democracia no sentido político. Aqui o emprego do termo tem viés
econômico (embora a empresa, por conveniência, ofusque a distinção).
22 Para uma reportagem sobre o assunto, v. O’REILLY, Lara. Google’s DoubleClick ad server went

down, costing publishers globally “$1 million an hour” in lost revenue. Business Insider, 12
November 2014.
23 Números e citações sobre fraude em anúncios extraídos do blogue oficial do Google.

24 SHIELDS, Mike. The ad exchange quality issue. Digiday, 2 August 2011.

25 V., por exemplo, Google user data to be merged across all sites under contentious plan. Guardian,

25 January 2012; e a resposta do Information Commissioner Office: Google to change privacy policy
after ICO investigation, 30 January 2015.
26 MCDERMOTT, John. Google takes its tracking into the real world. Digiday, 6 November 2013.

27 V. HILL, Kashmir. Facebook will use your browsing and apps history for ads (despite saying it

wouldn’t 3 years ago). Forbes, 13 June 2014. Para uma análise do modelo do Facebook, v. Inside
Facebook’s ad machine. Enders Analysis, April 2016; Programmatic advertising in the mobile era:
direct marketing success and beyond. Enders Analysis, March 2016.
28 V. ENGELHARDT, Steven; NARAYANAN, Arvind. On-line Tracking: A 1-Million-Site-Measurement

and Analysis. CCS 2016: Proceedings of the 2016 ACM SIGSAC Conference on Computer and
Communications Security, 2016; SIMONITE, Tom. Largest study of online tracking proves Google
really is watching us all. MIT Technology Review, 18 May 2016.
29 ANGWIN, Julia. Google has quietly dropped ban on personally identifiable web tracking.

ProPublica, 21 October 2016.


30 KREISS, Daniel; MCGREGOR, Shannon C. Technology Firms Shape Political Communication: The

Work of Microsoft, Facebook, Twitter, and Google with Campaigns during the 2016 US Presidential
Cycle. Political Communication, 35:2, p. 155-77, 2018.
31 Testagem multivariada é quando alguém experimenta múltiplas versões de uma mensagem em

públicos diferentes e mede a resposta para ver qual é a mais eficaz. Atribuição é ser capaz de atribuir
crédito ao que quer que tenha levado alguém a uma ação (por exemplo, à propaganda que levou
alguém a comprar determinados sapatos).
32 WARZEL, Charlie. Trump fundraiser: Facebook employee was our “MVP”. Buzzfeed, 12 November

2016.
33 ELGIN, Ben; SILVER, Vernon. Facebook and Google helped anti-refugee campaign in swing states.

Bloomberg, 18 October 2017.


34 ALLBRIGHT, Claire. A Russian Facebook page organized a protest in Texas. A different Russian page

launched the counterprotest. Texas Tribune, 1 November 2017.


35V. a descrição completa in: The Methbot Operation. White Ops. Disponível em:
www.whiteops.com/methbot.
36 VALENTINO-DEVRIES, Jennifer; LARSON, Jeff; ANGWIN, Julia. Facebook allowed political ads that

were actually scams and malware. ProPublica, 5 December 2017.


37 Ataque virtual que criptografa arquivos importantes no armazenamento local e de rede e exige um

resgate para descriptografá-los. [N. do R.]


38 MOSES, Lucia. Does programmatic advertising have an alt-right problem? Digiday, 17 November

2016.
39 ALBRIGHT, Jonathan. Who hacked the election? Ad tech did. Through “fake news”, identity

resolution and hyper-personalization. Medium, 31 July 2017.


40 STANFORD, Kate. How Political Ads and Video Content Influence Voter Opinion. Think with

Google, March 2016.


41 Baseado no relato de rastreadores do Ghostery em maio de 2018.
42 GHOSH, Dipayan; SCOTT, Ben. #DigitalDeceit: The Technologies Behind Precision Propaganda on

the Internet. New America Foundation, January 2018.


A insustentável leveza do Twitter

A ausência absoluta de fardos deixa o homem mais leve que o ar, faz que plane nas alturas,
erga-se da terra e de seu ser terrenal e se torne só meio real, os movimentos tão livres
quanto insignificantes.
Milan Kundera, A insustentável leveza do ser

Na noite de 13 de junho de 2017, enquanto as chamas envolviam a torre


Grenfell no lado oeste de Londres, Rania Ibrahim filmava tudo o que
acontecia do lado de fora do seu apartamento, no 23º andar do prédio.1
O corredor estava escuro e tomado pela fumaça. “O prédio está pegando
fogo abaixo de mim”, disse ela em árabe. Ao mesmo tempo em que filmava,
ela transmitia o vídeo pelo Facebook Live. Apontando a câmara pela janela,
ela viu muitos moradores que já tinham abandonado a torre. “Dá para ver
todo o mundo que teve a sorte de sair”, diz Ibrahim. “Estão todos correndo
lá embaixo”. Antes de parar de filmar, suas últimas palavras foram: “Suas
orações, que a paz esteja sobre todos vocês”.2 Rania Ibrahim e as duas filhas,
de 3 e 4 anos, foram mortas pelo fogo, bem como outras 69 pessoas.3
Durante a noite, notícias sobre o incêndio se espalharam rápido pelas
mídias sociais. Choveram ofertas de ajuda: atuação de voluntários, doações
em espécie — roupas, cobertores e comida —, dinheiro e abrigo. Por volta
de 9h30 da manhã seguinte, a fundação Kensington and Chelsea,
responsável por coordenar o suporte às vítimas, se viu sobrecarregada. “Os
nossos parceiros na comunidade, as instituições de caridade, as igrejas e
mesquitas locais não têm como aceitar mais nada no momento”, ela tuitou.
“Por favor, suspendam as ajudas. Obrigada.”4 Tudo isso foi documentado e
coordenado, como mais tarde relatou a revista The Week, pelo Twitter.5
Durante dias e semanas posteriores ao 14 de junho, o terrível incêndio na
torre Grenfell dominou a mídia nacional do Reino Unido e quase destronou
a recém-eleita primeira-ministra, Theresa May. Sobreviventes da tragédia e o
público em geral ficaram revoltados com o fato de as advertências aos
moradores sobre as condições da torre terem sido ignoradas, e de o
revestimento externo do prédio ter alimentado as labaredas, em vez de
abafá-las. No entanto, a raiva de todos foi direcionada contra as mídias
quase tanto quanto contra o governo. “Vocês não apareceram por aqui
quando as pessoas lhe diziam que o prédio não era seguro”, disse um homem
para o apresentador Jon Snow, veterano do Channel 4, quando ele visitou o
prédio incendiado. “Isso não é notícia que desperte o interesse jornalístico.
Agora que há gente morta vocês vêm. Por quê?” Outro homem segurava um
cartaz com os dizeres: “Esta não é uma oportunidade de tirar boas fotos” e
gritou: “Isso aqui é vida real!”.6
Os sobreviventes tinham razão. Antes do incêndio, os problemas da torre
Grenfell — e de outros prédios como ela — estavam distantes das mídias
nacional e local. Só uma revista semanal especializada em moradia, a Inside
Housing, investigara preocupações com segurança em blocos de edifícios
depois de um incêndio em local próximo à torre Grenfell no agosto anterior.
O incidente não contara com nenhuma cobertura porque não havia mais
jornalistas dedicados a cobrir Kensington e Chelsea, o bairro da torre
Grenfell. Como uma investigação subsequente da BBC documentou, o único
jornalista que cobria a área entre o fim de 2014 e o ano de 2017 morava a
mais de 240 quilômetros de distância, em Lyme Regis, Dorset.7 Geoff Baker
foi editor de notícias do Kensington and Chelsea News até abril de 2017,
quando o jornal encerrou as atividades. Era também seu principal repórter,
editor de redação, responsável por cobrir o mundo dos espetáculos e a
família real (só havia outro repórter no jornal, encarregado dos esportes).
Isso além de fazer a mesma coisa para outros dois jornais, o Westminster and
City News e o London Weekly News — em troca de um salário de 500 libras
por semana. Considerando a quantidade de coisas que ele tinha para fazer e
o pouco dinheiro de que dispunha para isso, Baker precisava realizar quase
toda pesquisa na internet e por telefone. Nos dois anos e meio que trabalhou
para o Kensington and Chelsea News, ele disse que só esteve de fato em
Kensington e em Chelsea duas vezes.8
Os próprios moradores tinham dado o alerta, repetidas vezes, on-line. No
novembro anterior, o Grenfell Action Group postara que a KCTMO
(organização administrativa que geria a torre) estava “brincando com fogo”,
chegando ao ponto em que “só um evento catastrófico exporá a inépcia e
incompetência do nosso senhorio”.9 O problema não foi detectado por
nenhum veículo da grande imprensa. “O desastre Grenfell, totalmente
fabricado por mão humana”, disse Jon Snow para as elites da mídia do Reino
Unido em Edimburgo naquele agosto, “prova, além de tudo mais, quão
pouco nós [a mídia] sabemos, e como essa desconexão é perigosa.”10
Mesmo depois do incêndio trágico, a mídia convencional com frequência
desempenhava um papel secundário. O Twitter, junto com outras redes
sociais, agia como um sistema de alerta mobilizador e coordenador, um
verdadeiro serviço de notícias. Informações, diálogos e preocupações
transmitidos no Twitter eram então amplificados nas redes sociais.
A importância dessas redes — e em especial do Twitter — como fonte de
notícias, um modo de se expressar preocupação e oferecer auxílio, um meio
de coordenação, não era novidade para a Grenfell. Desde que o Twitter se
popularizara, as pessoas passaram a enxergar seu valor jornalístico na
sequência — ou mesmo no decorrer — de momentos de crise. “Os
terroristas de Mumbai estão pedindo à recepção do hotel o número dos
quartos de cidadãos norte-americanos e fazendo-os reféns em um andar”,
tuitou @Dupree durante o ataque terrorista a Mumbai nos idos de
novembro de 2008. Dois meses depois, em janeiro de 2009, Janis Krums,
empresário da Flórida, tuitou a primeira imagem do voo 1549 da US
Airways flutuando no rio Hudson em Nova York. No mesmo ano, a eleição
presidencial no Irã e os protestos que a rodearam se tornaram o assunto
mais cativante do Twitter. Em 2010 e 2011, após os terremotos no Haiti e
Japão, o Twitter foi utilizado para rastrear pessoas desaparecidas, divulgar
informações oficiais e não oficiais e levantar fundos.11
Quando Noah Glass, Ev Williams, Jack Dorsey e Biz Stone fundaram o
Twitter em 2006, não faziam ideia de que ele se tornaria um serviço de
notícias tão essencial. Lendo A eclosão do Twitter, crônica do nascimento da
empresa escrita por Nick Bilton, é difícil acreditar que o serviço decolou.
Seus quatro criadores só desenvolveram o Twitter a partir do momento em
que seu serviço de podcast, o Odeo, foi trapaceado pelo iTunes da Apple.
Desde o início, quando não estavam discutindo quem deveria gerir a
empresa, estavam discordando acerca do objetivo do serviço. Pelo que
descreve Bilton, Dorsey via o Twitter como uma forma de deixar os amigos
saberem o que se estava fazendo — “acabo de sair para almoçar”. Williams
discordava, vendo-o “mais como um projeto de miniblogue” para contar às
pessoas o que se passava ao redor. Glass, expulso da empresa pouco depois
de conceber a ideia com Dorsey, encontrara o nome que imaginava captar a
essência do serviço folheando um dicionário. Twitter, em inglês, era “o leve
gorjeio emitido por determinados pássaros”, segundo o dicionário; também
“agitação ou empolgação; o ato de esvoaçar”.12
Se Glass tivesse utilizado o Oxford English Dictionary, encontraria outra
definição: “falar rápido de modo displicente e banal”. Foi o que muita gente
pensou a princípio sobre o Twitter — que era algo frívolo e superficial. “É
uma espécie de Seinfeld da internet”, relatou o blogue Valleywag, da Gawker,
em 2006. “Um website sobre nada.”13 “Um e-mail bombado e desnecessário”,
classificou Tim Ferriss, escritor norte-americano dedicado à produtividade,
em 2007 (antes de aderir ao serviço em janeiro de 2008).14 “Tagarelice fútil”,
definiu o jornalista Steven Hodson, da Mashable, em 2008.15 Podia ser fútil,
mas tinha uma popularidade fabulosa. Levou oito meses para conquistar
seus primeiros 20 mil usuários. A partir daí, milhares começaram a se juntar
à plataforma a cada dia. Na primavera de 2008, havia mais de 1,5 milhão de
pessoas postando cerca de 300 mil tuítes por dia.16 Um ano mais tarde o
número superava os 30 milhões, tuitando bem mais de 2 milhões de vezes
por dia. A essa altura, os jornalistas já escreviam que “tudo bem se dizer
farto do Twitter. Deus sabe que deve ser a tecnologia mais hiperpromovida
do mundo”.17
Contudo, por mais superpromovido e superficial que as pessoas
considerassem o Twitter, e fosse qual fosse a intenção de seus fundadores,
não havia a menor dúvida de sua importância crescente para as notícias.
Desastres naturais, ataques terroristas, incêndios florestais, quedas de avião e
protestos públicos agora apareciam primeiro no Twitter e só depois saíam da
plataforma. Para diversos jornalistas, o valor do serviço se evidenciou de
imediato e logo ele se tornou parte do trabalho investigativo. No fim de
2009, uma pesquisa entre quase 400 jornalistas norte-americanos descobriu
que mais da metade deles usava o Twitter para pesquisa, e que quem
escrevia on-line se servia dele “o tempo todo”.18 Alfred Hermida, um dos
mais perspicazes observadores das redes sociais, escreveu que sites como o
Twitter estavam se tornando uma espécie de “consciência” para os
jornalistas, provendo-lhes o ambiente de um ruído de fundo composto por
declarações públicas e atualizações das notícias.19 Veteranos da indústria da
notícia começaram a orientar seus jornalistas a levarem a sério a plataforma.
O editor-chefe do jornal Guardian, Alan Rusbridger, apresentou uma
palestra em 2010 defendendo a utilidade do Twitter e relacionando 15
maneiras pelas quais o site podia colaborar com as notícias. “Futilidade —
sim, claro, para dar e vender”, disse Rusbridger. “Mas afirmar que o Twitter
nada tem a ver com as notícias como negócio é chegar ao máximo do
equívoco.”20 O diretor de notícias globais da BBC, Peter Horrocks, teria ido
além e dito a seus jornalistas em 2011 — meio de brincadeira — que “ou
vocês tuítam, ou rua”.21 Ele não precisava ter se preocupado tanto, pois a
maioria já fazia isso. Uma pesquisa realizada entre jornalistas britânicos
naquele verão descobriu que 70% utilizavam o Twitter para escrever seus
artigos.22
Quem dirigia o Twitter também notara seu valor para as notícias. “Ver o
Twitter do ponto de vista de um pássaro em pleno voo revela que ele não
tem relação exclusivamente com reflexões pessoais”, escreveu Biz Stone em
novembro de 2009. “Entre uma xícara e outra de café, as pessoas
testemunham acidentes, organizam eventos, compartilham links, dão
notícias, relatam coisas que o pai delas diz e muito mais.”23 Como sinal do
papel que ele desempenhava na evolução da notícia, Stone anunciou que o
Twitter mudaria o texto em sua barra de status de “O que você está
fazendo?” para “O que está acontecendo?”.

À medida que o Twitter alçava voo e se tornava parte fundamental do


ecossistema noticioso, grande quantidade de organizações tradicionais do
mesmo ecossistema perdiam impulso. Veículos jornalísticos tradicionais
lutavam, desde os primeiros dias da web, para se adaptarem às mídias
digitais. Jornais impressos altamente dependentes da publicidade foram
atingidos em cheio quando os anúncios classificados primeiro, depois os
anúncios em boxes, começaram a desaparecer rumo a sites como o Craiglist.
Com menos receita de anúncios, muitos optaram por reduzir as equipes de
produção e editorial. De 2000 a 2005 cerca de 3 mil pessoas foram cortadas
das redações norte-americanas. Era apenas um prelúdio.
O ano de lançamento do Twitter, 2006, acabou se revelando também o do
ponto de inflexão — seria o último ano das notícias como as conhecíamos.
Como os autores do marcante relatório “State of the News Media”
escreveram naquele ano: “Testemunhamos uma transformação sísmica no
que e em como as pessoas se informam sobre o mundo ao redor. O poder
está se distanciando dos jornalistas como guardiões do que o público sabe”.24
A partir de 2006, o faturamento dos jornais com publicidade iniciou seu
declínio inexorável.25 A circulação de impressos, que já começara a cair (no
Reino Unido estava em declínio havia décadas), começou a descrever uma
vertiginosa curva descendente. Então veio a derrocada final. O órgão
regulador das comunicações nos Estados Unidos, FCC, avaliou que nos
quatro anos, entre 2007 e 2011, “aproximadamente 13.400 postos de
trabalho em redação de jornais” tinham se perdido (de 55.000 para cerca de
41.600).26
Do ponto de vista do cidadão, a mudança mais concreta foi no número
de jornalistas empregados para cuidar das notícias locais. Na Filadélfia, em
2006, por exemplo, havia menos da metade do número existente em 1980.
O Los Angeles Times contava em 2009 com menos de 600 jornalistas, de um
auge de 1.100 poucos anos antes.27 O Baltimore Sun passou de 400
jornalistas para cerca de 150 em 2009. Em outros lugares, o declínio foi
menos abrupto, mas a tendência era a mesma, significando que havia um
número menor de pessoas cujo emprego era dedicado a acompanhar o que o
governo estava fazendo. Nas capitais estaduais dos Estados Unidos, por
exemplo, havia menos 158 jornalistas trabalhando em tempo integral em
2009, comparado com 1998 — passando de 513 para 355.28 As implicações
para a confiabilidade democrática não eram boas.
A sangria das equipes editoriais nas organizações jornalísticas foi mais
bem documentada nos Estados Unidos, mas aconteceu no mundo inteiro.
Países que partilhavam do modelo liberal do jornalismo norte-americano —
em que os veículos noticiosos comerciais dependiam fortemente da
publicidade — estavam mais vulneráveis. Na Austrália, entre 2008 e 2013,
mais de 3 mil jornalistas foram dispensados.29 Na Grã-Bretanha, na década
posterior à quebra financeira, o número de jornalistas locais se reduziu à
metade.30 Países europeus continentais que dependiam menos da
publicidade se mantiveram blindados no início, mas não por muito tempo.
Na década de 2007, mais da metade dos empregos relacionados com a
publicação de jornais na Noruega foram perdidos. Nos Países Baixos, quatro
em dez empregos foram extintos, e, na Alemanha, um em cada quatro.31 Só
na África e em partes da Ásia as organizações noticiosas viram a circulação
de impressos aumentar e as redações crescerem.
Em 2011, já ficara claro que — em muitas democracias — a quantidade
de pessoas dedicadas a narrar os acontecimentos decrescia cada vez mais.
A reação do governo e do público era um dar de ombros desdenhoso. Por
quê? Em parte porque, à primeira vista, a situação não parecia ter mudado
tanto assim. As empresas responsáveis por gerir vários jornais locais (e em
2011 eram cada vez mais as grandes corporações que administravam
diversos jornais locais) tinham descoberto que era mais lucrativo reduzir os
funcionários que fechar um periódico. Melhor esvaziar um jornal de dentro
para fora e deixar o público leitor diminuir aos poucos, mesmo que isso
significasse menos reportagens, que perder uma receita da noite para o dia.
Por isso algumas previsões calamitosas para o futuro da imprensa local
depois da derrocada financeira pareciam demasiado pessimistas. Na Grã-
Bretanha, o respeitadíssimo analista de mídia Claire Enders prognosticou
que metade dos 1.300 jornais locais do país fecharia nos cinco anos
seguintes. Transcorrido esse período, entre 100 e 200 tinham encerrado as
atividades. No entanto, uma análise que não fosse superficial mostraria que a
situação era bem pior — pelo menos, do ponto de vista democrático.
Tomemos como exemplo o Leicester Mercury. Em 1996, era um jornal de
tamanho considerável que empregava quase 600 pessoas e servia a uma
cidade de cerca de 300 mil habitantes. Em 2011, vendia menos de 30 mil
cópias por dia (decaindo de 150 mil ao dia na metade da década de 1980),
tendo sua equipe desabado para 107 pessoas (apesar do crescimento
populacional significativo da cidade).32 Ou poderíamos nos voltar para o
País de Gales, onde a Media Wales era dona de um conglomerado de jornais,
entre eles o Western Mail e o South Wales Echo. Em 1999 havia pouco menos
de 700 integrantes nas equipes editorial e de produção. Em 2011, 136.33
Outro motivo para o colapso no número de jornalistas locais não era tão
evidente na Grã-Bretanha nem em parte alguma porque não aconteceu da
noite para o dia nem foi idêntico em todos os lugares. Num mês cortavam
19 postos de trabalho no Yorkshire Post e títulos correlatos. No mês seguinte,
seriam sete jornais fechados com 50 postos perdidos na cidade de Reading e
arredores. As reduções eram gradativas, porém implacáveis, com frequência
passando despercebidas já que ninguém nunca tem interesse em noticiar o
próprio declínio. De igual modo, a empatia do público para com
organizações noticiosas não era elevada, em especial depois de revelações
como a de que jornalistas da empresa de notícias de Rupert Murdock
hackeavam sistematicamente o telefone das pessoas para descobrir
informações particulares.
Mas a principal razão pela qual a maioria das pessoas deixou de notar o
crescente déficit democrático foi porque parecia uma grosseria preocupar-se
com o declínio na cobertura local quando se tinha a impressão de que novas
plataformas de mídia, como o Twitter e o Facebook, estavam
democratizando o mundo. “A informação nunca foi tão livre”, disse Hillary
Clinton em 2010, época em que estava encarregada do Departamento de
Estado norte-americano. “Existem mais maneiras de disseminar mais ideias
para mais pessoas do que em qualquer outro momento da história.” Ou
como o acadêmico Clay Shirky, da Universidade de Nova York, intitulou seu
livro sobre as oportunidades abertas pelas redes sociais em 2018: “Lá vem
todo o mundo”.34 As pessoas começavam a utilizar as mídias sociais mundo
afora para coordenar ações coletivas. Em 2009, no Irã, atribuiu-se ao Twitter
o papel de possibilitar e incrementar os protestos relacionados com eleições.
Depois do derramamento de petróleo provocado pela Deepwater Horizon
em 2010, milhares de pessoas usaram o Twitter para divulgar notícias e
coordenar as reações à crise.35 E em 2011, em todo o norte da África, as
pessoas usaram o Twitter e outras redes sociais para compartilhar sua raiva
contra os regimes autoritários e, em países como Tunísia e Egito, ajudar a
derrotá-los. “A comunicação do futuro”, escreveu cheio de esperança o
estudioso de comunicações Manuel Castells, “já tem sido utilizada pelas
revoluções do presente.”36
Por mais que as mídias sociais estivessem transformando o protesto
social, também transformavam o jornalismo. Algumas das primeiras e mais
influentes coberturas da Primavera Árabe nos Estados Unidos não vieram
diretamente de jornalistas em campo, nem de um falante de árabe ou persa,
mas de um estrategista de mídia de 39 anos e cabelos ralos que trabalhava na
rádio National Public Radio (NPR) em Washington, DC. Andy Carvin
começou a tuitar sobre a sucessão de acontecimentos na Tunísia em
dezembro de 2010.37 Graças a sua experiência anterior, ele conhecia pessoas
que moravam no país e no norte da África, e logo percebeu a importância
do que estava se passando. Tuitando, retuitando e verificando informações
que encontrava no Twitter e em outras redes sociais, Carvin cobriu
acontecimentos revolucionários não como testemunha ocular, mas do
cubículo de seu escritório (e do terraço do prédio, e do banheiro...). Chegou
a tuitar centenas de vezes por dia durante até dezesseis horas, sete dias da
semana. Outros jornalistas ficaram fascinados com o trabalho dele, dizendo
que Carvin “inovava na curadoria e na verificação colaborativa”.38 “Encaro o
que faço como uma nova característica do jornalismo”, disse ele a Paul Farhi,
do Washington Post. “Portanto, imagino que eu tenha uma nova
característica de jornalista.”
Poucos meses depois, em Londres, dois repórteres também utilizaram o
Twitter para ajudar a reinventar a maneira como o jornalismo poderia ser
feito. Pouco antes das 9h30 da noite de sábado, 6 de agosto de 2011, Paul
Lewis tuitou: “Estou indo até os tumultos de Tottenham. Algum conselho?”.
Lewis, que trabalhava para o Guardian em Londres, subiu então em sua
bicicleta e seguiu para o norte da cidade. Ravi Somaiya, repórter do New
York Times alocado em Londres, ficou sabendo dos tumultos — como Lewis
— pelo Twitter e partiu para Tottenham pouco antes da meia-noite. Ao
longo dos quatro dias seguintes, com intervalos curtos para dormir, os dois
jornalistas se incorporaram às manifestações e tuitaram tudo o que viram.
Qualquer pessoa que os seguisse no Twitter se viu mergulhada em uma
torrente visceral à medida que os acontecimentos se desenrolavam,
testemunhados no local. “Prédio no norte de Tottenham em chamas.
Rapazes de máscara não me deixam chegar perto”, Lewis tuitou na noite de
sábado. “A polícia cerrou fileiras agora”, escreveu Somaiya, “com dezenas de
homens usando equipamentos antitumulto. Mas não sei ao certo como
pretendem atravessar a barreira até chegarem aos manifestantes (e a mim!)
mais atrás.”39
Carvin, Lewis e Somaiya não foram os únicos, mas foram excepcionais,
como demonstra o número de artigos e estudos de caso acadêmicos escritos
sobre eles.40 O Twitter se tornou igualmente fundamental para a rotina
diária de outros jornalistas, embora por razões diferentes.41 Preto no branco,
para muitos jornalistas o Twitter era excelente para ficar sabendo das
novidades, para acompanhar notícias em destaque e para mensurar como as
pessoas estavam reagindo às notícias. Qualquer jornalista que se desse ao
respeito precisava se certificar de que não deixara passar nenhuma novidade.
E as novidades invariavelmente apareciam primeiro no Twitter por uma
questão de velocidade. Era útil ficar de olho no que ganhava destaque nessa
rede e, quando o destaque virava notícia, intuir a direção na qual a manada
estourara. Sem falar, claro, que todos os seus colegas estavam no Twitter;
existem poucas coisas que os jornalistas desejam mais que o reconhecimento
e a aprovação dos pares. Era fácil perceber quão vitais as mídias sociais
estavam se tornando para a informação: bastava observar a frequência com
que citações de tuítes eram incluídas em artigos de notícia. Em uma análise
de jornais holandeses e britânicos de 2013, os acadêmicos do jornalismo
Marcel Broersma e Todd Graham descobriram “um aumento abrupto no
número de tuítes inseridos em conteúdo de jornais” depois de 2010, em
especial na imprensa sensacionalista. Isso indicava, eles concluíram, a
mudança “de lugar para espaço” no jornalismo. “Os repórteres não precisam
mais ‘sair a campo’ para encontrar informação.”42

Nós, o público, ficamos um pouco atrás dos jornalistas quando se trata de


mudar as nossas rotinas, mas elas logo sofreram transformação igualmente
radical. Até 2011, as redes sociais tinham sido acima de tudo um modo de
nos manter atualizados em relação aos amigos ou de rastrear antigos
contatos.43 A partir daquele ano, no entanto, à medida que a mídia
tradicional falava sem parar dos papéis do Facebook e do Twitter na
desestabilização dos regimes autoritários, elas foram se tornando cada vez
mais uma fonte de notícias também. Nos Estados Unidos, o número de
pessoas que viam notícias em um site de rede social no dia anterior mais que
dobrou entre 2010 e 2012, passando de 9% para 19%. No ano seguinte, três
em cada dez norte-americanos recebiam suas notícias pelo Facebook e
apenas um em cada dez pelo Twitter. Mundo afora, à medida que o público
corria para comprar smartphones e tablets, só aumentou o número de
pessoas que passaram a usar as redes sociais em função das notícias. No
Egito, em 2012, pouco menos de 80% das pessoas com um smartphone
utilizaram-no para acessar mídias sociais.44 No Brasil, uma pesquisa de 2013
concluiu que as redes sociais já tinham se tornado uma das cinco maneiras
mais importantes de buscar notícias.45
Não apenas a maneira como encontrávamos notícias estava mudando,
mas também como decidíamos quais delas eram importantes. Em vez de
confiarmos no julgamento de editores e redatores de noticiários, voltávamo-
nos para os nossos amigos, as nossas redes mais amplas e as figuras públicas
— que podiam ser atores, cantores, personalidades do esporte ou políticos.
“O Twitter é onde obtenho a maior parte das notícias”, respondeu um
usuário quando o Pew Research Center perguntou por que as pessoas
consideravam as mídias sociais úteis para se manterem bem informadas. E
prosseguiu: “Sigo todos os tipos de políticos e de personalidades da mídia”.46
Com certeza havia uma quantidade crescente dessas pessoas entre as quais
escolher. Lady Gaga e Britney Spears lideravam, Ashton Kutcher e Justin
Bieber vinham logo atrás, bem como um número cada vez maior de
candidatos, políticos e líderes do governo. No outono de 2011, o Twitter
relatou que 35 chefes de Estado globais utilizavam a plataforma “como meio
primordial de comunicação com seu eleitorado” (inclusive eles devem ter se
arrepiado com o uso da palavra “primordial” pelo Twitter).47 Até mesmo
para a palavra de Deus o Twitter vinha servindo de canal: em junho de 2011,
o Papa publicou seu primeiro tuíte.
Em parte alguma a adoção de novos hábitos ficou mais evidente que
entre os jovens. Enquanto nos Estados Unidos o número total de pessoas se
informando via mídia sociais pode ter saltado de um para cinco na metade
de 2012, entre as que tinham menos de 30 anos a proporção era de uma em
três e crescia depressa — não só nos Estados Unidos, mas em nível global.48
Em 2015, um estudo envolvendo doze países — incluindo Austrália,
Dinamarca, Brasil e Estados Unidos — revelou que seis em cada dez jovens
de 18 a 24 anos declarou acessar on-line sua fonte principal de notícias, e
mais de um em cinco disse que sua principal fonte eram as redes sociais. Em
2016, esse número subiu para quase 30%.
Ainda assim, o Twitter não caiu no gosto de todo o mundo. Se para os
jornalistas o imediatismo e a constância das publicações em estado bruto
viciavam, para grande parte do público geral eram sufocantes.49 Acontece
que, embora nos agradasse ter informações sociais e notícias sempre
atualizadas em fluxo constante, preferiríamos que isso fosse mais um riacho
a murmurar que as Niagara Falls a trepidar. O Facebook percebeu a
oportunidade e se intrometeu, adaptando a News Feed para incluir mais
notícias públicas, mas tomando o cuidado de manter o número de
atualizações que víamos em um nível palatável (acabando por eliminar de
oito em dez atualizações que estariam visíveis para nós se não houvesse
nenhuma espécie de trava). O Twitter atraía um tipo determinado de pessoa,
mais interessado em notícias e políticas sem nenhum filtro, com frequência
fortemente partidários.50 Usuários mais intensos, postando com frequência
e expressando opiniões fortes, começaram a dominar a plataforma. Quem
queria um espaço menos combativo no qual acompanhar as notícias e
conversar com amigos por Facebook, Instagram ou Snapchat. O crescimento
do Twitter diminuiu em 2012 e por volta de 2015 ele atingira o auge com
pouco mais de 300 milhões de usuários. Número enorme em termos
absolutos, porém cada vez mais ofuscado pelo Facebook.
À medida que as pessoas do mundo inteiro se voltaram para seus
aparelhos móveis e as redes sociais em busca de informação, foram se
distanciando dos jornais, sobretudo os locais. Em especial no caso da
geração mais jovem, entrar em uma loja e pagar por um jornal impresso
para descobrir o que estava se passando ao redor parecia bizarro, quando
bastava consultar o celular. Em 2011, pesquisadores descobriram uma
divisão profunda entre quem tinha mais e menos de 40 anos. Quem tinha
menos já dependia da internet para obter notícias e informações locais, ao
passo que os acima dos 40 ainda confiavam mais nas mídias tradicionais.51
Enquanto “hoje em dia os jornais continuam sendo um destino chave para
as notícias e informações locais”, descobriu a pesquisa, “a maior parte dos
norte-americanos não sentiria falta caso eles desaparecessem”. E, como não
poderia deixar de ser, eles estavam desaparecendo, embora não tão depressa
quanto os jornalistas que atuavam dentro deles.
A queda no número de jornalistas profissionais — acelerada nos Estados
Unidos a partir de 2007 — disseminava-se feito um vírus por muitas outras
democracias. Na Austrália, nos seis anos posteriores a 2011, mais de um
quarto dos jornalistas perdeu o emprego.52 Uma só empresa, a Fairfax,
outrora uma gigante no cenário jornalístico australiano, cortou quase 500
postos de trabalho. No Canadá, cerca de um terço dos jornalistas
desapareceu no mesmo período.53 Na Grã-Bretanha, o sindicato National
Union of Journalists começou a fazer o registro dos cortes em 2014; no fim
de 2017, contava com mais de 100 atualizações separadas, assemelhando-se
a um obituário em câmara lenta do jornalismo local. Na Espanha, na década
encerrada em 2015, o número de jornais vendidos caíra pela metade, e em
2017 nem um único jornal espanhol tinha circulação superior a 200 mil
cópias.54 Na França, os jornais diários cortaram quase mil empregos entre
2007 e 2016.55 “A situação da mídia na Suíça [...] é alarmante”, a European
Federation of Journalists relatou em 2017. “Reestruturações, encerramentos
de atividades ou fusões de mídias nunca foram em tão alto número.”56
Com notórias exceções (como os sindicatos de jornalistas), é difícil
encontrar muita gente ou governos democráticos que tenham sentido
especial abalo com o declínio e queda do jornalismo local. Apesar das
demonstrações ocasionais de simpatia ou de investigações oficiais sinceras, a
maior parte dos governos via o problema como simples decadência de mais
um setor da indústria. Nos Estados Unidos, a devoção ao livre mercado e o
imenso ceticismo em relação ao valor da intervenção governamental
impediu qualquer ação conjunta. Na Grã-Bretanha, as corporações que
monopolizavam a propriedade de jornais locais mantinham-se atentas a
qualquer intervenção que pusesse em risco seu monopólio ou o eterno
impulso pela eficiência.57 Outros governos lutavam com restrições
semelhantes, bem como tentando imaginar o que deveriam fazer — se é que
deveriam fazer alguma coisa. Ausente a vontade política, o colapso
continuou. Tampouco o público da maior parte desses países se entusiasmou
com a perda. Prestava atenção demais nos fluxos de notícias passando por
seus celulares e redes sociais, distraído com o grande número de
atualizações sobre celebridades, incidentes internacionais, desastres e
conteúdos virais. Os dez relatos jornalísticos mais lidos no website do
Guardian em 2014 ilustram no que muita gente estava concentrada: no
primeiro lugar figurava a história sobre o roubo de fotos nuas de
celebridades; na quinta e sétima posições, sobre as mortes de Robin
Williams e Philip Seymour Hoffman; e na nona, com mais de 1,4 milhão de
visualizações, “Estudante norte-americano é resgatado de gigantesca
escultura de uma vagina na Alemanha”.58
Nós, o público, estávamos fazendo uma permuta. Trocávamos um modo
de descobrir o que estava se passando no mundo exterior ao da nossa rede
de amigos próximos, familiares e colegas por outro. Os benefícios imediatos
dessa atitude eram nítidos. Ficara tudo mais barato (muitas vezes de graça),
constante e conveniente — do ponto de vista do consumidor, objetar parece
quase perverso. Podemos descobrir tanto do que as pessoas estão falando
quanto o que pensam os nossos amigos. Por meio de filtros, conseguimos
eliminar tudo o que nos entedia e receber só o que desejamos. Com igual
facilidade descobrimos o que está acontecendo no coração de Deli, Londres
ou Nova York. Com o advento das notícias por celular e via mídias sociais,
tornamo-nos “devoradores de informação”, consumindo notícias com
frequência e rapidez.59 Como descobriram três estudiosos de Mainz,
Alemanha, ao pesquisarem os novos hábitos, a informação é hoje mais um
aperitivo que o prato principal. Expostos a montes de postagens noticiosas
nas redes sociais (sobretudo o Facebook), adquirimos “a sensação de estar
bem-informados, independentemente da real aquisição de conhecimento”.60
Os custos dessa permuta são menos evidentes e imediatos. Um deles está
na perda de uma camada do nosso ecossistema de notícias, os repórteres em
campo que testemunham e relatam o que se passa no nosso vilarejo, cidade
ou perto de onde vivemos. Como essa perda vem sendo aleatória e
esporádica, e tem acontecido no contexto da revolução digital, as
implicações democráticas só agora se tornam evidentes. Existe um bom
paralelo ambiental — as abelhas. Elas são as principais polinizadoras de
cerca de um terço do alimento que consumimos. À medida que coletam o
néctar, sem querer apanham e transferem pólen da antera de uma planta
para o estigma de outra, fertilizando-as e possibilitando que produzam
sementes. Por volta da virada do século XXI, cientistas tomaram
conhecimento de que as populações de abelhas de mel estavam diminuindo.
Poucos anos mais tarde, apicultores viram colônias inteiras entrarem em
colapso.61 Seu completo desaparecimento, caso acontecesse, teria
consequências cataclísmicas para a oferta de alimentos. Reduzir o uso de
pesticidas tem ajudado a retardar esse declínio, mas não o cessou. Os
repórteres desempenham um papel similar no ecossistema de notícias.
Passam os dias esvoaçando de tribunais para câmaras municipais, de cenas
de crimes para campos de futebol locais, testemunhando e registrando as
informações que compõem a base sobre a qual repousa o restante do
ecossistema. Como abelhas, o benefício que trazem para a sociedade é tanto
direto quanto involuntário.
Mesmo se as pessoas não lerem o que eles produzem, os repórteres locais
— sobretudo os dedicados à reportagem política — desempenham
inestimável função democrática. Rasmus Kleis Nielsen, professor de
comunicação política na Universidade de Oxford, pôs a ideia em teste
analisando a ecologia da notícia em Næstved, pequena cidade e
municipalidade de cerca de 82 mil habitantes na Dinamarca. Ao longo de
três semanas em 2013, Nielsen registrou todas as notícias locais e regionais
publicadas no jornal da cidade, o Sjœllandske, mas também on-line, na
televisão, no rádio e no Facebook (por políticos e autoridades públicas) —
um total de 5.298 “unidades” editoriais, como as chamou. Em seguida
separou os artigos que tratavam de política (por volta de um décimo do
total) e calculou quanto cada veículo produzira. Descobriu que o Sjœllandske
respondia por 64% de todos os relatos políticos. O jornal local era o único
veículo que enviava regularmente um jornalista para cobrir as reuniões da
câmara municipal. Não só isso, mas as histórias políticas que o jornal cobria
costumavam aparecer depois na emissora de TV. Um dos apresentadores,
quando perguntado onde a TV obtinha suas histórias locais, respondeu: “Eu
leio o Sjœllandske”. Nielsen também identificava o papel do jornal local e de
seus repórteres em termos ambientais. comparando-os a uma “espécie
fundamental” que, embora representasse uma pequena parte de um sistema
mais amplo, é fundamental para seu funcionamento.62
Apesar de tudo, cinco anos depois da pesquisa de Nielsen, o Sjœllandske
continuava vivo e bem, impresso e on-line. Para compreender de fato o que
acontece com uma comunidade e sua política quando ela perde repórteres
dedicados, seria preciso analisar as consequências em um lugar que os
possuía, mas os perdeu. Um lugar que um dia contou com um ecossistema
vibrante de notícias, o qual ruiu e foi substituído por Facebook, Twitter e
blogues. Também seria necessário registrar o que houve com a comunidade
e a atitude das pessoas, não ao longo de semanas e meses, mas de anos. Foi o
que fez Rachel Howells em Port Talbot, País de Gales.

Port Talbot não tem uma beleza convencional. Passe por ela de carro pela
M4, atravessando o sul do país à noite, e você será perdoado se a confundir
com o cenário de um romance de ficção científica distópico. A linha do
horizonte da paisagem é pontuada de chaminés soltando fumaça, esteiras
rolantes em fábricas de aço e máquinas pesadas. Todavia, a arquitetura
industrial bruta também abriga sua comunidade. Port Talbot,
historicamente abençoada pelo acesso a montanhas de carvão, cresceu
acompanhando sua indústria. Ganhou um jornal para a região, o Port Talbot
Guardian, em 1925, um ano depois que Ramsay MacDonald, membro local
do parlamento, tornou-se o primeiro primeiro-ministro do Partido
Trabalhista. Na década de 1960 chegou a contar com 11 jornalistas em
tempo integral trabalhando a partir de Port Talbot e com a rivalidade
vibrante de outros títulos concorrentes. O Port Talbot Guardian liderava o
grupo. Se você quisesse saber o que estava acontecendo na cidade, podia ter
certeza de que encontraria no jornal – de reuniões da câmara municipal a
novidades sobre a corte de justiça, de disputas esportivas estudantis a
acidentes automobilísticos. Como um ex-repórter da década de 1970 contou
a Howells: “Parecia um gigantesco aspirador de pó sugando matérias. Havia
reportagens sobre tudo, inclusive o pequeno Johnnie que ganhou um prêmio
por coletar 5 libras em sua rua para o fundo de apoio ao pessoal da Real
Força Aérea ou alguma outra causa”. Contudo, por volta da década de 1990,
o número de jornalistas alocados na cidade caíra para em torno de meia
dúzia, decrescendo ainda mais quando os jornalistas do Port Talbot
Guardian foram transferidos para a vizinha Neath. Pouco antes do
fechamento do jornal, em 2009, havia duas equipes editoriais, às vezes
apenas uma, dedicadas a cobrir a cidade.63
Howells trabalhou 14 anos como jornalista no sul do País de Gales e viu
em primeira mão o declínio da cobertura local. Depois do fechamento do
Port Talbot Guardian, ela resolveu estudar que efeito ele tivera sobre a
comunidade e como as pessoas obtinham informações. A princípio, depois
que o jornal encerrou as atividades, em 2009, não pareceu que muita coisa
tinha mudado. Os órgãos públicos continuaram funcionando como antes.
As usinas siderúrgicas seguiram em operação. Ainda havia muitas mídias
entre as quais escolher; só faltava um jornal local comprometido. Contudo,
apesar de a maior parte das cidadezinhas ainda funcionar do mesmo modo
quase o tempo todo, como Howells descobriu, havia um sentimento
crescente de confusão, impotência e desconfiança.
O bloqueio aparentemente inócuo de uma estrada em 2014 ofereceu um
vislumbre do estrago causado pela falta de reportagem sobre a comunidade.
Na manhã de 4 de agosto, determinou-se o bloqueio do entroncamento 41
da M4. Ele é a principal via de acesso da estrada para Port Talbot. Quem
quiser viajar para ou de Port Talbot utilizará o entroncamento 41, sem
dúvida. Muitos moradores da cidade o utilizavam como itinerário para ir ou
voltar do trabalho. Todavia, sem o conhecimento de boa parte da população
local, a assembleia do País de Gales decidiu fechar o entroncamento em
caráter temporário, apenas nos horários de pico, com o intuito de aumentar
a velocidade de trânsito na M4. As pessoas ficaram sabendo do bloqueio
quando saíram para trabalhar de manhã e encontraram o acesso à
autoestrada interrompido por uma barreira. Um morador descobriu sobre o
fechamento não por um veículo de imprensa, mas graças aos grafites que
vira desenhados nos muros a caminho da M4. Os romanos eram bastante
conhecidos por usarem o grafite na comunicação, mas ninguém haveria de
culpá-lo se você presumisse que a tecnologia desse tipo de coisa tivesse
avançado desde então.
Quando Howells conversou com os moradores de Port Talbot pouco
depois do bloqueio, como parte de sua pesquisa, encontrou-os muito bravos
e com razão. Como os residentes do edifício Grenfell Tower, sentiam que
ninguém lhes dava ouvidos. Muitos tinham assinado uma petição se opondo
ao bloqueio, mas o documento parecia ter desaparecido. Um morador
descreveu seu sentimento afirmando que a petição devia ter sido “jogada na
lata de lixo”, relatou Howells. “Quem dessa sala assinou a petição? Todos nós.
Pois ninguém ouviu falar mais nada sobre ela.” Somando-se à impotência
havia uma confusão desorientadora, a sensação de não se saber o que estava
acontecendo ou mesmo com quem reclamar, para quem resolvesse fazê-lo.
A raiva e a frustração respigaram em outras questões — protestos contra a
usina geradora de energia, planos para remodelarem o site de uma escola, o
fechamento de uma espécie de pequenas causas civis e criminais. Os
moradores mais jovens falavam em recorrer ao vandalismo e à violência
para serem ouvidos. Um deles sugeriu desmontarem eles mesmos a barreira:
“Eu me sinto bastante tentado a ir até lá [o entroncamento 41] com uma
marreta, abrir a estrada e passar com o meu carro”. Outro propôs um
levante: “Precisamos de uma revolução de verdade, mas teremos de usar de
violência para as pessoas escutarem... Um pequeno motim. A cidade está
revoltada”, prosseguiu, “as pessoas vão protestar um dia, vai todo o mundo
simplesmente explodir. Acho que todos ficarão com tanta raiva que vão
acabar fazendo alguma coisa.” A situação estava chegando a esse ponto,
outra pessoa concordou. Sem noticiário local adequado, sem saber o que as
autoridades estavam fazendo e sem um canal local compartilhado por todos,
por meio do qual pudessem falar com as autoridades, a comunidade perdera
a confiança nessa autoridade. Alienada, desesperada, estava disposta a levar
qualquer coisa em consideração — incluindo a violência — a fim de se fazer
notar.
Incomodada com o vácuo de notícias locais, a própria Howells tentara
ajudar a suprir essa lacuna. Com alguns ex-jornalistas, iniciou um site de
notícias exclusivamente on-line, o Port Talbot Magnet, gerindo-o quase sem
recursos durante cinco anos. No fim, incapaz de cobrir os custos, isolada e
cada vez mais perseguida quando o site noticiava problemas locais
controversos, Howells o encerrou. Ainda acompanha de perto as
informações sobre a cidade, embora a maior parte hoje seja transmitida de
boca em boca ou pelas redes sociais. Uma das consequências disso é que
cada acontecimento inesperado — a morte de um residente, um cordão de
isolamento da polícia em torno da escola — é seguido de uma onda de
boatos e teorias grotescas. “O incidente original [...] logo é
superdimensionado de modo bastante dramático, sem muita semelhança
com a realidade. Sei de conselheiros locais que passam horas on-line
respondendo a perguntas ou corrigindo hipóteses falsas.”64

Em 2017 vários jornalistas, embora ainda se servissem do Twitter,


começavam a perder a fé em sua utilidade. “O passarinho azul bateu asas e
voou”, escreveu o jornalista Matthew Clayfield no Guardian. “Desde o
bombardeio de Boston, quatro anos atrás, o valor do Twitter como fonte de
informação esmoreceu gradual mas inexoravelmente”.65 Clayfield e outros
reclamaram que a plataforma se tornara uma cacofonia de vozes, muitas
optando por acreditar em versões próprias dos acontecimentos, mesmo após
terem sido desmascaradas por completo. Jornalistas, sobretudo mulheres,
eram sujeitos a ataques e linchamentos no Twitter, levando seu principal
executivo, Dick Costolo, a confessar em 2015 para os empregados que “nós
[o Twitter] somos péssimos para lidar com abusos e trolagens na plataforma,
e isso há anos”.66 Embora reconhecessem o problema, as trolagens
continuaram crescendo.67 No entanto, ao mesmo tempo em que Costolo e
seu sucessor, Jack Dorsey, lutavam para lidar com o assédio, estava cada vez
mais evidente que o serviço deles fora inundado por robôs.
Durante a campanha eleitoral para a presidência dos Estados Unidos de
2016, pesquisadores descobriram que um terço dos tuítes pró-Trump e um
quinto dos pró-Clinton provinham de robôs.68 Muitos jornalistas, em
especial nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, continuavam viciados em
Twitter (um deles o comparou ao crack), mas agora tinham maior
consciência das limitações da plataforma.69 Quaisquer que fossem suas
falhas, o serviço provocara enormes mudanças na cultura e nas práticas
jornalísticas. O jornalismo agora era mais rápido, leve e ágil, ainda que mais
inquieto. Condizia com a definição que Noah Glass cunhara nos idos de
2006: “Agitação ou empolgação; vibração”. Os jornalistas podiam usar a
plataforma para coletar citações e imagens ou para alcançar testemunhas
oculares sem deixar a mesa de trabalho. Organizações noticiosas eram
capazes de cobrir notícias de qualquer parte do mundo sem tirar um único
repórter da redação, apesar de a atenção se concentrar em alguma coisa e
passar para outra na mesma velocidade.
Quanto ao público, Jack Dorsey afirmou em 2016 que o Twitter era a
“rede de notícias das pessoas”.70 Só que não para a maioria das pessoas.
Embora o Twitter tivesse demonstrado trunfos incríveis — transparência,
velocidade, abrangência, acesso a fontes —, para a maior parte do público
era simplesmente um exagero. Turbulento demais, visceral demais, efêmero
demais. Uma pequena proporção de usuários postava a grande maioria dos
tuítes. Muitos dos diálogos travados na rede eram ou exclusivistas, ou
agressivos. E o Twitter era cada vez mais utilizado acima de tudo como meio
de autopromoção.
Com o crescimento emperrado em 2015, o número de usuários do
Twitter aumentou a passo de tartaruga nos anos seguintes. Não que as
pessoas estivessem trocando essa rede pelos jornais impressos ou mesmo
por websites de notícias de grandes empresas tradicionais. Apenas o
Facebook, o Instagram, o Snapchat e o Slack desempenhavam funções
similares, sem o trabalho pesado ou o risco da humilhação pública.
Tampouco o Twitter, ou as mídias sociais em geral, correspondera a algumas
expectativas ambiciosas relacionadas com o “jornalismo cidadão”. Ele podia
ser de extrema utilidade na coleta de primeiras reações a desastres naturais,
acidentes ou eventos singulares, mas para a matéria do dia a dia, o café com
leite da reportagem noticiosa, o Twitter era esporádico, disperso e aleatório.
Ironicamente, apesar da vasta cornucópia de notícias disponíveis via mídias
sociais, as pessoas diziam se sentirem menos informadas. Uma reportagem
publicada pela Knight Foundation em 2018 concluiu que “a maioria dos
norte-americanos acredita ser mais difícil hoje manter-se bem-informado e
determinar qual notícia é exata”.71
Enquanto isso, as notícias locais continuaram a minguar. Tribunais de
justiça, assembleias e serviços públicos começaram a perceber que, sem o
comparecimento de jornalistas em seus processos e reuniões, não havia
ninguém para contar ao público o que estava acontecendo. Os tribunais
britânicos implementaram uma iniciativa especial para tentar aumentar os
relatos de tudo o que se passava nas cortes. Vários esforços foram
empreendidos no sentido de preencher essas lacunas. No Reino Unido, a
BBC se comprometeu a subsidiar os relatórios locais “de interesse público”
— embora, no intervalo que levaram para decidir como fazer isso, tenham
sido dispensados mais jornalistas que o número de profissionais
substituídos. O Google iniciou a European Digital News Initiative para dar
apoio a projetos inovadores envolvendo a veiculação de notícias. Nos
Estados Unidos, a Knight Foundation deu sequência aos esforços que
começara a empreender originalmente na metade do século XX para apoiar
o jornalismo e promover “comunidades informadas e engajadas”. E nos
Estados Unidos, no Reino Unido, no Canadá, na Austrália e em outros
lugares houve muitas tentativas individuais no sentido de criar operações
digitais de notícias — incluindo algumas com o propósito de servir regiões
pequeninas, muito localizadas. A maior parte era de operações sérias e bem-
intencionadas, desenvolvidas a partir de quartos de dormir e garagens, quase
nunca com dinheiro suficiente para cobrir custos de hospedagem. Algumas,
como o site de notícias locais da Ilha de Wight, On the Wight, decolaram e
cresceram. Outras, como o Port Talbot Magnet, avançaram a duras penas por
alguns anos e então encerraram as atividades com relutância.
Até o ano de 2018, em várias democracias, tornou-se possível apontar as
cidades ou regiões em que havia “desertos de informação”: locais com
poucos (quando havia algum) repórteres comprometidos a se aventurarem
com regularidade. Nos Estados Unidos, como descobriram Philip Napoli e
seus colegas da Universidade de Rutgers, com frequência havia uma
correlação entre esses lugares e as áreas mais pobres ou remotas. Newark,
cidade de 300 mil habitantes em New Jersey, tinha em 2015 menos que um
décimo das fontes de notícias locais dedicadas aos 19 mil moradores de
Morristown, mais rica, localizada a 32 quilômetros de distância.72 Nesse
mesmo ano, na Grã-Bretanha, mais da metade dos distritos eleitorais
parlamentares — 330 de 650 — não era coberta por um jornal local diário
comprometido.73 Regiões inteiras, como o lado leste de Northamptonshire,
não dispunham de nenhum jornal diário local e nenhum serviço noticioso
digital local regular. Mesmo cidades grandes haviam perdido seus veículos
de notícias. No início de outubro de 2017, o jornal Makedonia da
Tessalônica, Grécia, fechou as portas. Seu concorrente, Aggelioforos, já
fechara em 2015, significando que em 2018 a segunda maior cidade da
Grécia não tinha nenhum jornal de tamanho significativo dedicado a narrar
sua história.74
O vácuo das reportagens foi ocupado por autoridades e profissionais de
relações públicas. Em 2015, no Reino Unido, havia equipes de comunicação
vinculadas a autoridades públicas em igual número que os jornalistas locais.
As assembleias locais empregavam 3.400 equipes de comunicação; a polícia
empregava mais de 775; e o governo central, 1.500.75 Isso não incluía
equipes de comunicação em outros órgãos públicos, hospitais, escolas ou
organizações comerciais. A predominância de profissionais de comunicação
sobre jornalistas tinha se tornado ainda mais pronunciada nos Estados
Unidos. Em The Death and Life of American Journalism [Morte e vida do
jornalismo norte-americano], Robert McChesney e John Nichols
concluíram que o número de pessoas empregadas em relações públicas nos
Estados Unidos dobrou entre 1980 e 2008, ao passo que o número de
jornalistas caiu um quarto, totalizando quase quatro relações públicas para
cada jornalista. As redes sociais aceleraram esse processo. “Na mudança das
antigas para as novas mídias”, registrou o Washington Post em 2015, “a Casa
Branca praticamente se tornou a própria produtora de mídia”, postando mais
de 400 vídeos no YouTube e 275 infográficos só na primeira metade do
ano.76
Os relatórios oficiais, embora bem intencionados, em última análise eram
propaganda. Pior, a maior parte, uma propaganda insípida. As autoridades
públicas não estão habituadas a criticar a si mesmas. Quando noticiam o
próprio desempenho, seus artigos são, na melhor das hipóteses,
evidentemente factuais, aforísticos e confusos. Em geral, isso é consequência
mais do que deixam de fora que daquilo que incluem. Detalhes
constrangedores são desconsiderados sem nenhum alarde; argumentos
internos são eliminados das minutas; demissões passam sem ser notadas.
Para o público geral, os releases, privados de contexto e interpretação e
apresentados com o mesmo charme do relatório anual de uma empresa
qualquer, poderiam ser publicados em grego antigo sem que fizessem a
menor diferença.
Para ter a chance de ser notada, sobretudo no burburinho das redes
sociais, a comunicação política necessita de personalidade. Esse é o caso
especialmente para os nativos da mídia digital, que procuram indícios on-
line do que é digno de nota e atenção. Na prática, significa observar o que
outras pessoas — em especial as formadoras de opinião — dizem e fazem.
Quando estudiosos da Universidade de Gothenburg se debruçaram sobre os
novos hábitos dos adolescentes de 16 a 19 anos na Suécia, admiraram-se
diante da importância dos líderes de opinião para determinar como eles
navegavam pelas notícias. Esses líderes de opinião, escreveram eles, “são
considerados [pelos jovens] fundamentais ou mesmo cruciais para o
processo de coleta de informações”.77 Na política presente no Twitter, quem
recebia mais atenção — e tinha maior influência — era quem fazia
declarações controversas, atacando o status quo, proferindo insultos pessoais
e arranjando brigas. À direita do palco, entra Donald Trump.
A decisão de Trump de ingressar no Twitter, em março de 2009, não teve
motivação política. Ela via a questão como um modo de promover seu novo
livro, Pense grande nos negócios e na vida.78 Durante os dois primeiros anos,
como os jornalistas Peter Oborne e Tom Robets demonstram na análise dos
tuítes de Trump, as postagens tratavam de autopromoção comercial.79 Só
depois de examinar com atenção mais uma disputa presidencial em 2011 ele
encontrou seu tom político característico. Surgiram então as declarações
controversas (“Made in América?”, tuitou ele em 18 de novembro de 2011.
“@BarackObama chamou seu ‘local de nascimento’, o Havaí, de ‘aqui na
Ásia’”), bem como tuítes frequentes depreciando a política de Washington
que só se ocupava de políticos e seus satélites: “É fácil ver por que os norte-
americanos estão cansados dos políticos de carreira e dos dois partidos”.
Essas postagens foram acompanhadas de insultos pessoais direcionados ao
presidente — “@BarackObama jogou golfe ontem. Agora ele sai dez dias de
férias em Martha’s Vineyard. Bela ética de trabalho” — e insultos
endereçados a comentaristas de mídia e figuras públicas: “Bob Beckel,
comentarista da FOX, só prejudica a marca @FoxNews: @BobBeckel está
próxima da incompetência”.
Donald Trump não foi o único político a se beneficiar da transformação
nos hábitos de consumo de notícias por parte do público. Como ele,
Narendra Modi, da Índia, usou o Twitter para se desviar da mídia
tradicional e falar diretamente às pessoas, apresentando-se como a voz da
maioria silenciosa. “Se quiserem ouvir Modi”, escreveu um analista de seus
tuítes em 2015, “procurem o feed de suas redes sociais — seja você cidadão,
repórter da imprensa ou um canal de televisão.”80 Como Trump, Modi
chamava a atenção do público para si — não para o Estado ou o partido —
no que a estudiosa de comunicação Shakuntala Rao tem chamado de
“nacionalismo de selfie”.81 Como ela documenta, graças a sua onipresença
constante nas mídias sociais, Modi se mostrava o “primeiro-ministro do
povo”, representante do janashakti (poder do povo). Na prática, isso
significava ignorar os aspectos enfadonhos da governança — o processo
legislativo, o sistema judicial, a implementação de estratégias políticas — e
concentrar-se em novas iniciativas que atraem a atenção, em ilustrações do
poder em ação (como fotografias de reuniões com líderes internacionais) e
em demonstrações de nacionalismo e devoção religiosa (encenadas com
exclusividade para a maioria hindu). É revelador que Modi não tuíte links
para artigos de notícias — a mídia tradicional deve ser contornada e
ignorada, não promovida.
Outros líderes políticos podem não ter os mais de 40 milhões de
seguidores de Narendra Modi, mas cultivam um estilo similar de
comunicação personalizada usando o Twitter e outras redes sociais. Recep
Tayyip Erdoğan, da Turquia, que disse “Não gosto de tuitar, oras” e bloqueou
o serviço em seu país no ano de 2014, ingressou na rede em 2015 e atraiu
mais de 12 milhões de seguidores nos três anos subsequentes. Enrique Peña
Nieto, do México, com 7 milhões de seguidores no começo de 2018, foi um
dos primeiros a adotar o Twitter, cuja plataforma utilizou para discutir com
Donald Trump sobre quem pagaria o muro entre México e Estados Unidos.
O serviço de mídia social que um dia parecera causar rupturas e
democratizar estava agora sendo empregado para aumentar a força e a voz
de líderes no governo.
Muitos de nós estamos optando por ouvir políticos falando diretamente,
sem o filtro da mídia tradicional. Deixamos figuras públicas que
conhecemos e de que gostamos — não só figuras políticas, mas também
atores, modelos, cantores, personalidades e comentaristas da TV — nos
mostrarem o que pensam ser importante e moldarem a nossa pauta de
notícias. Vivemos na expectativa de que as notícias encontrem o caminho
até nós, não o contrário. É o que acontece com frequência, pelo menos, no
caso das grandes matérias jornalísticas. E cada vez mais as notícias são
compostas assim — de grandes histórias jornalísticas para as quais todos
afluímos por algum tempo, para então seguirmos em frente. Quando
acompanhamos primeiro uma grande reportagem, depois a próxima,
distraídos ao longo do caminho por vídeos e artigos elaborados em forma de
lista, deixamos de perceber que o fundamento por trás desses grandes
relatos, a multiplicidade de artigos noticiosos menores, de histórias locais,
de histórias importantes, mas enfadonhas, de histórias complexas e
obscuras, estranhas e incômodas, vem desaparecendo. Só tomamos
consciência disso quando algo inesperado ou terrível acontece, como o
incêndio da torre Grenfell. Culpamos então grandes organizações de mídias
de notícias por não nos avisarem. As mais autocríticas entre elas se entregam
a espasmos de autoflagelação. Nós — a elite da mídia — “estamos em falta”, o
âncora de notícias do Channel 4, Jon Snow, disse a sua plateia respeitosa de
Edimburgo em 2017: Violamos nossa obrigação “de compreendermos e nos
mantermos conscientes da vida conectados com as preocupações e as
necessidades” de quem não faz parte da mesma elite.
Mas o Channel 4 News jamais terá um jornalista dedicado à cobertura de
um único bairro de Londres, como o New York Times nunca poderá ter
jornalistas suficientes para se conectarem regularmente com as pessoas de
Wisconsin, Michigan e Ohio que se sentem ignoradas e desconectadas.
A deficiência se dá em outro nível — no nível local, provinciano. Aqui,
mesmo que todo o mundo tenha voz nas redes sociais, perdemos — e
continuamos a perder — a voz coletiva das comunidades pobres,
marginalizadas ou remotas, do povo impotente e mais necessitado da
atenção da sociedade. Onde essas comunidades correspondem a fronteiras
políticas, perdem o canal para falar a uma só voz com seus representantes
eleitos.
As nossas notícias se tornaram twitterizadas. A plataforma é leve, ágil,
transitória e efêmera. Às vezes cria raízes por baixo; muitas vezes, não cria
nenhuma. A maior parte do tempo não sabemos disso, enquanto
esvoaçamos feito mariposas de uma luz reluzente para a próxima. Ao
adejarmos de filamento em filamento, sem querer colhemos notícias —
algumas verdadeiras, outras falsas, algumas diretas, outras tortuosas — e
passamos adiante as que nos agradam ou entusiasmam. Trata-se de um
ecossistema de notícias precário e instável, muito aquém das obrigações que
a democracia lhe impõe. Contudo, essa é a permuta que temos feito.
Transferimo-nos da reportagem profissional pesada, cheia de falhas, mas
necessária, em que confiamos nos últimos 200 anos, para a insustentável
leveza do Twitter.

1 O incêndio na torre Grenfell foi comunicado pouco depois de 1 hora da manhã de quarta-feira, 14

de junho de 2017.
2 IBRAHIM, Rania. Snapchat/FB Live do interior da torre Grenfell Tower em chamas, Londres. Com

legendas. Faz Naz/YouTube, 15 Jun. 2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?


v=e0SP7PV0Avk. Acesso em: 30 maio 2018.
3 Rice-OXLEY, Mark. Grenfell: the 72 victims, their lives, loves and losses. Guardian, 14 May 2018;

Grenfell Tower Inquiry: Names of all 72 victims read out. BBC News, 31 May 2018.
4 Kensington and Chelsea Foundation, @KandCfoundation, Twitter, 15 June 2017. Disponível em:

https://twitter.com/KandCfoundation/status/875282231278919680. Acesso em: 4 jan. 2022,


12:54:32.
5 Grenfell Tower fire: how Twitter users united against the tragedy. The Week, 15 June 2017.

6 SHOLLI, Sam. “You come when people die!” Jon Snow “mobbed” for coverage of Grenfell Tower

disaster. Express, 18 June 2017; Angry resident confronts Channel 4’s Jon Snow over Grenfell Tower
coverage. LBC, 15 June 2017.
7 V. NEWBY, Gemma. Why no-one heard the Grenfell blogger’s warnings. BBC News, 24 November

2017.
8 Para mais coberturas jornalísticas, v. MAYHEW, Freddy. Journalists missed concerns raised by

Grenfell residents’s blog — but specialist mag sounded alarm on tower block fire safety. Press
Gazette, 21 June 2017; PONSFORD, Dominic. Grenfell Tower fire disaster suggests more journalism
is needed in London — not less. Press Gazette, 21 June 2017.
9 KCTMO — Playing with fire! Grenfell Action Group blog, 20 November 2016.
10 SNOW, Jon. The Best and Worst of Times. James MacTaggart Memorial Lecture, Edinburgh TV

Festival, 23 August 2017.


11 MURTHY, Dhiraj. Twitter: microphone for the masses? Media, Culture and Society, 33:5, p. 779-

89, 2011; @abdur. Top Twitter trends of 2009. Twitter blog, 15 December 2009; Twitter responds to
the Japanese disaster. Pew Research Center, 17 March 2011.
12 BILTON, Nick. A eclosão do Twitter: uma aventura de dinheiro, poder, amizade e traição. São

Paulo: Portfolio-Penguin, 2013. V. também, do mesmo autor, All is fair in love and Twitter. New
York Times, 9 October 2013.
13 Apud ARCENEAUX, Noah; WEISS, Amy Schmitz. Seems Stupid until You Try It: Press Coverage of

Twitter, 2006-9. New Media and Society, 12:8, p. 1262-79, 2010.


14 THOMPSON, Clive. Clive Thompson on how Twitter creates a social sixth sense. Wired, 26 June

2007.
15 HODSON, Steve. Twitter is not a micro-blogging tool. Mashable, 18 July 2008.

16 VASCELLARO, Jessica E. Twitter trips on its rapid growth. Wall Street Journal, 26 May 2009;

@kevinweil. Measuring tweets. Twitter blog, 22 February 2010.


17 FARHI, Paul. The Twitter Explosion. American Journalism Review, April/May, 2009.
18 GEORGE WASHINGTON UNIVERSITY AND CISION. 2009 Social Media & Online Usage Study.

December 2009.
19 HERMIDA, Alfred. Twittering the News. The Emergence of Ambient Journalism. Journalism

Practice, 4:3, p. 297-308, 2010.


20 RUSBRIDGER, Alan. The Splintering of the Fourth Estate. Andrew Olle Media Lecture, Sydney, 19

November 2010; transcrição publicada no Guardian, 19 November 2010.


21 Apud BARNARD, Stephen R. “Tweet or Be Sacked”: Twitter and the New Elements of Journalistic

Practice. Journalism, 17:2, p. 190-207, 2016.


22 BROERSMA, Marcel; GRAHAM, Todd. Twitter as a News Source: How Dutch and British Newspapers

Used Tweets in Their News Coverage 2007-2011. Journalism Practice, 7:4, p. 446-64, 2013.
23 STONE, Biz. What’s Happening? Twitter blog, 19 November 2009.

24 PROJECT FOR EXCELLENCE IN JOURNALISM. State of the News Media 2006: An Annual Report on

American Journalism. Disponível em:


http://assets.pewresearch.org.s3.amazonaws.com/files/journalism/State-of-the-News-Media-Report-
2006-FINAL.pdf. Acesso em: 6 jan. 2022, 10:50:44.
25 V. os relatórios State of the News Media consecutivos; RICHTER, Felix. The decline of newspaper

advertising continues. Statista, 7 September 2012.


26 WALDMAN, Steven. The Information Needs of Communities: The Changing Media Landscape in a

Broadband Age. FCC, July 2011.


27 DOWNIE JR, Leonard; SCHUDSON, Michael. The Reconstruction of American Journalism.

Columbia Journalism Review, November/December, 2009.


28 DORROH, Jennifer. Statehouse Exodus. American Journalism Review, April/May, 2009.

29 SIMONS, Margaret. Journalism faces a crisis worldwide — we might be entering a new dark age.

Guardian, 15 April 2017.


30 Com base em estimativas do jornal do segmento Press Gazette.

31 Working Party on the Information Economy. The Evolution of News and the Internet. OECD, 11

June 2010.
32 PONSFORD, Dominic. How the rise of online ads has prompted a 70 per cent cut in journalist

numbers at big UK regional dailies. Press Gazette, 24 January 2017.


33 WILLIAMS, Andy. Stop press? Crisis in Welsh newspapers and what to do about it. Radical Wales,

10 October 2011.
34 SHIRKY, Clay. Lá vem todo o mundo: o poder de organizar sem organizações. Rio de Janeiro:

Zahar, 2012.
35 STARBIRD, Kate; DAILEY, Dharma; WALKER, Ann Hayward; LESCHINE, Thomas L.; PAVIA, Robert;

BOSTROM, Ann. Social Media, Public Participation, and the 2010 BP Deepwater Horizon Oil Spill.
Human and Ecological Risk Assessment, 21:3, p. 605-30, 2015.
36 Apud HERMIDA, Alfred; LEWIS, Seth C.; ZAMITH, Rodrigo. Sourcing the Arab Spring: A Case Study

of Andy Carvin’s Sources on Twitter During the Tunisian and Egyptian Revolutions. Journal of
Computer Mediated Communication, 19:3, p. 479-99, 2014.
37 FARHI, Paul. NPR’s Andy Carvin, tweeting the Middle East. Washington Post, 12 April 2011.

38 SILVERMAN, Craig. Is this the world’s best Twitter account? Columbia Journalism Review, 8 April

2011.
39 V. VIS, Farida. Twitter as a Reporting Tool for Breaking News: Journalists Tweeting the 2011 UK

Riots. Digital Journalism, 1:1, p. 27-47, 2013.


40 Apud HERMIDA, Alfred; LEWIS, Seth C.; ZAMITH, Rodrigo. Sourcing the Arab Spring: A Case Study

of Andy Carvin’s Sources on Twitter During the tunisian and Egyptian Revolutions. Journal of
Computer Mediated Communication, 19:3, p. 479-99, 2014; VIS, op. cit.
41 V. HERAVI, Bahareh Rahmanzadeh; HARROWER, Natalie. Twitter Journalism in Ireland: Sourcing

and Trust in the Age of Social Media. Information, Communication and Society, 19:9, p. 1194-
1213, 2016; apud BARNARD, Stephen R. “Tweet or Be Sacked”: Twitter and the New Elements of
Journalistic Practice. Journalism, 17:2, p. 190-207, 2016; PARMELEE, John H. Political Journalists
and Twitter: Influences on Norms and Practices. Journal of Media Practice, 14:4, p. 291-305, 2013;
SANTANA, Arthur D; HOPP, Toby. Tapping into a New Stream of (Personal) Data: Assessing
Journalists’ Different Use of Social Media. Journalism and Mass Communication Quarterly, 93:2,
p. 383-408, 2016.
42 BROERSMA, Marcel; GRAHAM, Todd. Tipping the Balance of Power, Social Media and the

Transformation of Political Journalism, in: BRUNS, Axel; ENLI, Gunn; SKOGERBO, Eli; LARSSON,
Anders Olof; CHRISTENSEN, Christian (eds). The Routledge Companion to Social Media and
Politics. Abingdon: Rotledge, 2016.
43 V. MADDEN, Mary. State of Social Media: 2011. Pew Research Center, 14 December 2011.

44 Social Networking Popular across Globe. Pew Research Center, 12 December 2012.

45 Ruters Institute Digital News Report 2013. Reuters Institute for the Study of Journalism.

46 GUSKIN, Emily. How do you use Facebook and Twitter for news? Pew Research Center, 7

November 2013.
47 Twitter Inc. One hundred million voices. Twitter blog, 8 September 2011.

48 In changing news landscape, even television is vulnerable. Pew Research Center, 27 September

2012.
49 V. PENTINA, Iryna; TARAFDA, Monideepa. From “Information” to “Knowing”: Exploring the Role of

Social Media in Contemporary News Consumption. Computers in Human Behavior, 35, p. 211-23,
2014.
50 JUNGHERR, Andreas. Twitter Use in Election Campaigns: A Systematic Literature Review. Journal

of Information Technology and Politics, 13:1, p. 72-91, 2016.


51 ROSENSTIEL, Tom; MITCHELL, Amy; PURCELL, Kristen; RAINIE, Lee. How people learn about their

local community. Pew Research Center, 26 September 2011.


52 ALCORN, Gay. Australia’s journalism is in mortal danger. Politicians should join the fight to save it.

Guardian, 3 May 2017.


53 Para uma descrição completa da situação no Canadá, v. The Shattered Mirror: News, Democracy

and Trust in the Digital Age. Ottawa: Public Policy Forum, 2017.
54 SALAVERRÍA, Ramón; BACEIREDO, Beatriz Gómez. Spain — Media Landscape, European

Journalism Centre, 2018; Reuters Institute Digital News Report 2017, Reuters Institute for the
Study of Journalism.
55 CAGÉ, Julia. Saving the Media: Capitalism, Crowdfunding, and Democracy. Cambridge, MA:

Belknap Press, 2016.


56 Minutes of EFJ annual meeting, Bucharest, Romania, 18-19 May 2017.
57 RAMSAY, Gordon; MOORE, Martin. Monopolising Local News: Is There an Emerging Democratic

Deficit in the UK due to the Decline of Local Newspapers? Centre for the Study of Media,
Communication and Power, King’s College London, May 2016.
58 ADDLEY, Esther. The 10 top news stories of 2014 on theguardian.com. Guardian, 26 December

2014.
59 V. Survey: people aren’t news reading; they’re “news snacking”. AdWeek, 25 June 2013.

60 MÜLLER, Philipp; SCHNEIDERS, Pascal; SCHÄFER, Svenja. Appetizer or Main Dish? Explaining the

Use of Facebook News Posts as a Substitute for Other News Sources. Computers in Human
Behavior, 65, p. 431-41, 2016; MOLYNEUX, Logan. Mobile News Consumption: A Habit of Snacking.
Digital Journalism, 6:5, p. 634-50, 2018.
61 V. NIÑO, Elina L. Deciphering the mysterious decline of honey bees. The Conversation, 24 May

2016.
62 NIELSEN, Rasmus Kleis. Local Newspapers as Keystone Media: The Increased Importance of

Diminished Newspapers for Local Political Information Environment, 2015, in: NIELSEN, Rasmus
Kleis (ed.). Local Journalism: The Decline of Newspapers and the Rise of Digital Media. London:
I. B. Tauris.
63 As descobertas sobre o Port Talbot Guardian e a pesquisa de Rachel Howells foram extraídas da

dissertação de Ph.D. de Howells, de uma entrevista e de conversas com o autor.


64 HOWELLS, Rachel, em troca de e-mails com o autor.

65 CLAYFIELD, Matthew. The little blue bird has flown: how Twitter lost its value as a news source.

Guardian, 13 June 2017.


66 V. TIKU, Nitasha; NEWTON, Casey. Twitter CEO: “We suck at dealing with abuse”. The Verge, 4

February 2015.
67 Twitter Inc. Progress on addressing online abuse. Twitter blog, 15 November 2016.
68 GUILBEAULT, Douglas; WOOLLEY, Sam. How Twitter bots are shaping the election. The Atlantic, 1

November 2016.
69 VYSE, Graham. Can journalists live without Twitter? New Republic, 26 June 2017.

70 V. BAKER, Liana B. Twitter CEO calls company “people’s news network”. Reuters, 11 October 2016.

71 American Views: Trust, Media and Democracy. Gallup/Knight Foundation, January 2018.

72 V. NAPOLI, Philip M.; STONBELY, Sarah; MCCOLLOUGH, Kathleen; RENNINGER, Bryce. Assessing

the Health of Local Journalism Ecosystems: A Comparative Analysis of Three New Jersey
Communities. Rutgers School of Communication and Information, June 2015.
73 RAMSAY, Gordon; MOORE, Martin. Monopolising local News: Is There an Emerging Democratic

Deficit in the UK due to the Decline of Local Newspapers? Centre for the Study of Media,
Communication and Power, King’s College London, May 2016.
74 Com base em reportagens e correspondência por e-mail com Athens Live (AthensLive.gr). De

acordo com o Athens Live, os dois jornais que restaram na região, o ThessNews e o Typos de
Tessalônica, empregam um punhado de gente apenas, têm baixa circulação e mínima interação com
a cidade. V. MANDATZIS, Panagiotis. Daily newspapers in Thessaloniki are dying. AthensLive, 21
December 2017; PAPADOPOULOU, Lambrini. Greece’s second city faces life without major local daily.
IPI, 5 December 2017.
75 V. TURVILL, William. Local councils now employ at least 3,400 comms staff — more than double

the total for central government. Press Gazette, 10 April 2015; TURVILL, William. UK police forces
spend more than £36m a year on PR and communications. Press Gazette, 1 May 2015.
76 EILPERIN, Juliet. Here’s how the first president of the social media age has chosen to connect with

Americans. Washington Post, 26 May 2015.


77 BERGSTRÖM, Annika; BELFRAGE, Maria Jervelycke. News in Social Media: Incidental Consumption

and the Role of Opinion Leaders. Digital Journalism, 6:5, p. 583-98, 2018.
78 TRUMP, Donald; ZANKER, Bill. Pense grande nos negócios e na vida. São Paulo: Ediouro, 2008.

79 OBORNE, Peter; ROBERTS, Tom. How Trump Thinks: His Tweets and the Birth of a New Political

Language. London: Head of Zeus, 2017.


80 PAL, Joyojeet. Banalities Turned Viral: Narendra Modi and the Political Tweet. Television and New

Media, 16:4, p. 378-87, 2015.


81 RAO, Shakuntala. Making of Selfi e Nationalism: Narendra Modi, the Paradigm Shift to Social

Media Governance, and Crisis of Democracy. Journal of Communication Inquiry, 42:2, 166–83,
2018.
Parte 3

Futuros alternativos
Democracia de plataforma

É uma pena que tantos especialistas ou tecnólogos chamados para tentar solucionar alguns
desses problemas [políticos] acreditam saber melhor que ninguém a ordem em que essas
tentativas devem ser executadas, e sentem que a política, em vez de lhes abrir caminhos,
impede o emprego de suas técnicas.
Bernard Crick, Em defesa da política

Na manhã de 30 de janeiro de 2018, com a temperatura pairando em torno do


ponto de congelamento em Nova York, a gigante do varejo on-line Amazon
emitiu uma declaração conjunta com a Berkshire Hathaway, de Warren
Buffett, e o banco de investimento JPMorgan Chase. As três organizações
anunciaram a formação de uma nova empresa responsável por desenvolver
“soluções tecnológicas” para conceder a seus empregados nos Estados
Unidos “assistência médica simplificada, de alta qualidade e transparente a
um custo razoável”.1
O anúncio, acompanhado de declarações corporativas pouco
informativas dos respectivos líderes envolvidos, desencadeou enorme
alvoroço na mídia e convulsões no setor de serviços de saúde dos Estados
Unidos. As três gigantes estavam prestes a “se unir para tentar causar
tumulto na área da assistência médica”, declarou o New York Times.2 “As
pretensões são palpitantes”, exclamou a The Atlantic. Essas três corporações
“solucionarão o problema da assistência médica — de algum modo”.3
O Financial Times, que estampou a notícia na primeira página, chamou a
atenção para o impacto econômico imediato da declaração. Ela “fez
desaparecer bilhões de dólares do valor de mercado dos maiores
participantes do setor de saúde” — em especial os seguros-saúde e os
fabricantes de remédios.4
A despeito dos detalhes escassos acerca do que as três empresas
planejavam com exatidão, havia abundante esperança de que
revolucionariam uma indústria em extrema carência disso, com o que todos
concordavam. Das três empresas envolvidas, quase toda essa esperança
repousava sobre a Amazon. “Ela podia pensar grande”, escreveu Chunka
Mui na Forbes, “limitando-se a aplicar os princípios e as competências
operacionais padrões que aperfeiçoou para o varejo.” E a revista Fortune
argumentou: “Quem fará a diferença [...] serão os pacientes, que exercerão
seu poder real e constante com os dados disponíveis instantaneamente:
bastará um clique para solucionarem todos os problemas de saúde como se
estivessem na Amazon”.5 Havia quem enxergasse a Amazon como a única
chance de resgate do serviço de saúde norte-americano. Quatro meses antes
do anúncio, Amitai Etzioni, sociólogo e professor da George Washington
University, escrevera uma carta aberta bastante chorosa ao executivo-chefe
da empresa, Jeff Bezos. “É preciso que vocês interfiram no setor de
assistência médica”, escreveu Etzioni. “Só vocês têm a visão, a pretensão, o
capital e o poder computacional que essa missão requer.”6 Feito o anúncio,
manifestou-se um pequeno grupo menos sanguíneo quanto aos poderes
mágicos da Amazon para resolver o problema dos custos exponenciais da
assistência médica nos Estados Unidos. Mas mesmo entre eles eram poucos
os que imaginavam a Amazon se saindo pior que o governo.
Apesar da euforia em torno da notícia, a Amazon já estava envolvida com
assistência médica. Associara-se à American Heart Association em 2016
para usar a fenomenal capacidade de seu serviço em nuvem a fim de dar
suporte a pesquisas médicas.7 Em meados de 2017, a CNBC publicou que a
Amazon montara um “laboratório secreto de inovação” para analisar como
poderia guardar os registros médicos das pessoas em meio eletrônico e
possibilitar o diagnóstico remoto de pacientes.8 A varejista on-line também
contratara uma equipe farmacêutica e dizia-se que vinha explorando o
potencial de prestar atendimento a receituários via serviços de entrega em
domicílio.9 De qualquer forma, concentrar toda essa atenção na Amazon
significou ignorar o fato de que a própria Amazon estava tentando alcançar
outras plataformas tecnológicas. Google e Apple tinham chegado primeiro.
Em 2014, quando o Google pagou 400 milhões de libras por uma
empresa britânica obscura que nunca lançara nem um produto sequer, as
pessoas ficaram curiosas, como não podia deixar de ser, em saber o que essa
empresa fazia. A empresa se chamava DeepMind e fora criada em 2010 por
dois amigos de infância, Demis Hassabis e Mustafa Suleyman, e o
especialista em aprendizado de máquina Shane Legg. Dos três, Hassabis logo
foi rotulado de gênio residente. Criado no norte de Londres, aos 17 anos de
idade atingiu o nível de mestre de xadrez, projetou um videogame que
vendeu milhões de cópias e se saiu bem o suficiente nos exames para entrar
na Universidade de Cambridge. O inventor da World Wide Web, sir Tim
Berners-Lee, chamou-o de um dos seres humanos mais inteligentes do
planeta. A meta de sua empresa condizia com sua reputação. Ele, Suleyman
e Legg queriam “solucionar a inteligência”. Para isso, planejaram construir
uma máquina capaz não apenas de aprender e se tornar mais inteligente,
mas de aplicar seu aprendizado a problemas que nunca encontrara até então.
Em outras palavras, queriam construir uma máquina capaz de pensar com
um humano (e depois excedê-lo). Em 2014 eles chegaram longe a ponto de o
Google se dispor a gastar centenas de milhões para comprá-los. Dois anos
mais tarde, The Economist os chamava de “hipocampo do Google”.
Apesar de a DeepMind ter ocupado as manchetes pela primeira vez
quando sua inteligência artificial derrotou o grande mestre do jogo de
tabuleiro Go, logo ela começou a focar a atenção na assistência médica.
“Medicina preventiva é a área que mais me empolga”, disse Suleyman ao
editor da Wired, David Rowan, em 2015. “Há enorme potencial para os
nossos métodos aperfeiçoarem o modo como interpretamos dados.”10 Tudo
de que a DeepMind necessitava era de dados médicos. Não precisou esperar
muito. Um mês após a publicação da entrevista na Wired, o Royal Free
Hospital em Londres procurou a DeepMind e propôs colaboração. Naquele
novembro, o Royal Free começou a repassar dados médicos de milhões de
pacientes para a empresa de inteligência artificial. Como expresso em um
acordo entre a DeepMind e o Royal Free no início de 2016, a esperança era
de firmarem “uma parceria de largo alcance e mutuamente benéfica” que
levasse a “projetos genuinamente inovadores e transformacionais”.11 No
início, as ambições da DeepMind eram de certa forma limitadas. A empresa
planejava integrar vários fluxos de dados de saúde diferentes a fim de
auxiliar médicos a tratarem de doenças do fígado. Todavia, Suleyman deixou
claro que suas pretensões finais eram bem mais grandiosas. Em uma reunião
apinhada de gente durante a NHS Expo de 2016 em Manchester, Suleyman
explicou como a DeepMind desejava utilizar seus algoritmos para “atacar
alguns dos problemas sociais mais espinhosos da sociedade”, em especial no
campo da assistência médica, no qual buscavam “fazer prognósticos muito
melhores” e para o qual ele estabelecera a visão de um Serviço Nacional de
Saúde [National Health Service ou NHS, em inglês] verdadeiramente
digital”.12
Enquanto a DeepMind trabalhava com grande empenho em seus
novíssimos escritórios localizados em King’s Cross, Londres, no ano de
2016, do outro lado do oceano uma subsidiária Alphabet/Google diferente
se preparava para lançar um empreendimento médico ambicioso e
orientado por dados.13 Na primavera de 2017, a Verily Life Sciences
anunciou que coletaria informações médicas pessoais de 10 mil voluntários
norte-americanos nos próximos quatro anos. Rastrearia cada voluntário
utilizando um relógio de pulso especial, combinado com sensores para
monitorar seu sono, contando ainda com o suporte de visitas presenciais.
O objetivo era entender o que é saúde normal (para alguém de determinada
idade, gênero etc.), de modo a tornar mais fácil perceber quando
começamos a nos afastar dela. A Verily expressou suas pretensões com uma
retórica tão abrangente quanto a da DeepMind. “Mapeamos o mundo”,
declarou a empresa (supõe-se que fazendo referência a cartógrafos e
exploradores desde Colombo e Fernão de Magalhães); “mapearemos agora a
saúde humana.” Se o projeto desse certo, poderia transformar a assistência
médica prognóstica e preventiva — desde que as pessoas estivessem
dispostas a serem rastreadas o tempo todo com o uso de relógios de pulso
específicos, prendendo sensores no corpo ou ingerindo um dispositivo, tudo
para aferir dados sobre sua saúde.14 “Um é pouco, dois é bom, três é melhor
ainda”, afirma a corruptela do ditado. Condiz com a ambição dos
empreendimentos de saúde Alphabet/Google. Além da DeepMind e da
Verily, havia a Calico, empresa distinta das colegas dedicadas a serviços de
saúde por aspirar a fazer frente às questões do envelhecimento – àquilo que
Mark O’Connell, em seu livro sobre transumanismo, chama de “o singelo
problema da morte”.
A Apple também tinha profundo compromisso com a assistência médica
em 2018. Por mais que as ambições iniciais da Amazon para o setor fossem
vagas e limitadas e as da Alphabet desconhecessem fronteiras, as da Apple se
mostravam a um só tempo audaciosas e pragmáticas. A empresa também
queria deixar seus usuários coletarem e incorporarem os próprios dados
pessoais de saúde. Também queria que eles se beneficiassem da assistência
médica preventiva e dos diagnósticos precoces. Também queria possibilitar
pesquisas médicas em larga escala por meio de sua plataforma. Mas desejava
que tudo isso acontecesse nos dispositivos e sob a proteção da Apple. Desde
2014 a empresa vinha construindo um serviço de assistência médica
completo para seus usuários, e uma plataforma de pesquisa e
desenvolvimento para pesquisadores e empreendedores — via “HealthKit”,
“CareKit” e “ResearchKit”. Chegou a solicitar uma patente para transformar
o iPhone em um aparelho de diagnóstico.15 “A assistência médica”, disse seu
principal executivo, Tim Cook, em setembro de 2017, “é muito importante
para o futuro da Apple.”16

Por que, em 2018, três das maiores e mais inovadoras empresas do mundo
disputavam corpo a corpo uma corrida para transformar os serviços de
saúde? Deixando de lado o incentivo financeiro — o fato de essa indústria
global valer algo como 7 trilhões de dólares por ano — cada uma delas
claramente acreditava estar diante da oportunidade de repetir o que já fizera
em vários outros setores: inovar de forma disruptiva. Como tinham feito
com o varejo, a música e a informação, respectivamente, a Amazon, a Apple
e o Google imaginaram-se capazes de dar acesso para as pessoas aos serviços
de saúde de modo mais eficaz, mais imediato, mais personalizado e mais
barato. Da mesma forma que agora todo mundo providenciava on-line os
próprios preparativos para as férias, em vez de recorrer a uma agência de
turismo, por que não dar às pessoas idêntico grau de opção e liberdade em
se tratando de assistência médica? De fato, essas plataformas acreditavam-se
aptas a exercer um serviço duplo: podiam não só tornar a assistência médica
acessível como também — com os dados pessoas que coletavam — mais
inteligente.
A razão pela qual essas organizações estavam convencidas de poderem
prestar um serviço de saúde melhor, mais inteligente e mais barato — sem
levar em conta uma pitada de arrogância — era o fato de serem plataformas
tecnológicas. Usamos a palavra “plataforma” o tempo todo hoje em dia, mas
raras vezes definimos o que ela significa ou por que haveria de tornar
diferentes as empresas envolvidas. Plataforma tecnológica é o espaço digital
em que as pessoas podem produzir e trocar bens e serviços. A economista e
professora da Universidade de Cambridge Diane Coyle compara plataforma
a um mercado de rua.17 O mercado teve origem na Pérsia, onde ajudava a
resolver um dilema humano eterno. Como conectar comerciantes e
consumidores no mesmo lugar ao mesmo tempo? Reservando um espaço no
qual, em um intervalo de tempo constante e regular, os comerciantes
montam suas barracas de modo que as pessoas saibam aonde e quando ir.
Os mercados on-line, ou plataformas, funcionam de modo semelhante, mas
sem os limites do espaço e do tempo. Pode-se procurar determinada
plataforma tecnológica a qualquer tempo, de qualquer lugar. Assim,
diferentemente de suas contrapartidas físicas, elas têm o potencial de
atender a milhões de comerciantes e consumidores a um só tempo.
O problema — tanto para o mercado quanto para a plataforma digital — é
conseguir que ambos se façam presentes. Se um ou outro ou ambos
deixarem de comparecer, a coisa toda entra em colapso. Os mercados de rua
podem ao menos contar com certo trânsito humano dentro da cidade. As
plataformas tecnológicas não têm essa vantagem. Em vez disso, distribuem
seus serviços gratuitamente, ou por um custo muito baixo, e tentam crescer
o mais depressa possível. Assim que adquirem certo tamanho, com
comerciantes e consumidores, podem tirar vantagem do efeito rede. Então
faz sentido as pessoas estarem ali, porque todo o mundo também está.
As plataformas tecnológicas têm outra vantagem sobre os mercados.
Sabem quem você é e o seguem — enquanto você está presente e mesmo
depois que vai embora. Dessa maneira, podem adaptar os serviços sob
medida de acordo com as suas necessidades e ficar oferecendo coisas que
talvez lhe agradem — um pouco como um vendedor de tapetes insistente a
importuná-lo sem parar enquanto você desce a rua (e dobra uma esquina, e
entra em casa...). Diferentemente dos mercados antigos, Google, Facebook,
Amazon e outras plataformas digitais são entes corporativos que não apenas
gerem o espaço como também escrevem as regras, administram a segurança
e determinam as taxas. Pense em shoppings centers privados mais do que em
praças públicas.
Em termos de assistência médica, as grandes plataformas já têm muitas
vantagens sobre outros provedores de serviços de saúde. Contam com
milhões (em alguns casos, bilhões) de pessoas a visitá-las todos os dias. Têm
uma quantidade fenomenal de informações sobre essas pessoas — e
capacidade de saber muito mais sobre elas. E podem oferecer serviços
personalizados para cada pessoa com base no que conhecem a seu respeito.
Como consequência, as grandes plataformas tecnológicas — e muitos de
seus investidores — conseguem imaginar um futuro em que cada uma delas
se torna nosso principal portal de acesso à assistência médica. No mundo
virtual, cada um de nós coleta os próprios dados de saúde pessoal e os
armazena em uma dessas plataformas. Podemos então utilizar uma
combinação de aplicativos e serviços na plataforma para nos
autodiagnosticar, ou para nos notificar se nos afastamos do nosso padrão
saudável habitual (Bip! Bip! Sua pressão sanguínea está alta demais.).18
Desse modo, excetuando-se o tratamento cirúrgico, de emergência ou
crônico, muitos de nós conseguiremos evitar a visita a um médico ou a um
hospital quase por completo. Em algum momento, que plataformas como a
Amazon devem estar calculando, também seremos capazes de encomendar
remédios on-line e fazer que nos sejam entregues na porta de casa, de modo
que não precisemos nem caminhar até a farmácia.
Além da conveniência e do sistema de alerta precoce, existem os
potenciais lados positivos da plataforma de serviços de saúde voltada para a
pesquisa médica. Deixando de lado algumas declarações absurdas e
grotescas (entre as quais a que levou a revista Time a perguntar
maldosamente em 2013: “O Google consegue resolver a morte?”), evidências
crescentes sugerem que, com sua capacidade de armazenar e analisar
enormes quantidades de dados e por meio do desenvolvimento de
inteligência de máquina, essas organizações podem ser capazes de fomentar
a pesquisa e o entendimento médicos. A parceria entre a American Heart
Association e a Amazon tem como foco alavancar a estocagem na nuvem e o
poder de processamento de modo a “acelerar as descobertas no campo da
saúde cardiovascular”. A nuvem da Amazon abriga o Cancer Genome Atlas,
um extenso projeto internacional com o objetivo de aumentar o nosso
conhecimento da base molecular do câncer.19 O ResearchKit da Apple torna
bem mais fácil e menos dispendioso o recrutamento de voluntários para
pesquisa. Um estudo da doença de Parkinson, iniciado em 2015, conseguiu
alistar mais de 9 mil pessoas gratuitamente pelo ResearchKit via iPhone.20
Para facilitar a comparação, recrutar menos de mil pessoas para um estudo
semelhante em 2010 custava 800 dólares.21 E a DeepMind da Alphabet,
depois de examinar milhares de escaneamentos de retina, anunciou em
fevereiro de 2018 que conseguira criar um software de inteligência artificial
capaz de localizar enfermidades dos olhos mais rápido que um ser
humano.22 Isso poderia fazer a diferença entre preservar a visão e ficar cego.
Na corrida para descobrir novos diagnósticos e ultrapassar os
competidores, no entanto, as plataformas correm o risco de cometer erros e
— direta ou indiretamente — infringir os direitos dos pacientes. Julia
Powles, pesquisadora na Universidade de Nova York, e Hal Hodson,
jornalista da Economist, mostraram que, quando a empresa Royal Free
começou a transmitir dados médicos para a DeepMind em 2015, por
exemplo, fez isso sem antes buscar a concordância dos pacientes envolvidos.
Nem sequer os notificou.23 As plataformas também presumem que haverá
um diagnóstico médico de enfermidade e minimizam ou ignoram as causas
sociais dos problemas de saúde. Um menino de 8 anos de idade com dores
de cabeça constantes pode ser auxiliado por analgésicos, mas, se o problema
envolver estresse ou tensões em casa, é pouco provável que o envio de
aspirina pelo correio lhe sirva de grande ajuda.
Mesmo assim, se essas plataformas forem bem-sucedidas em suas
ambições relacionadas com cuidados médicos e na disrupção pretendida
junto ao setor, a maneira como a nossa sociedade cuida dos enfermos
passará por mudanças fundamentais no futuro, comparadas com o que
acontece hoje. O futuro será construído em torno de “eus quantificados”24 e
das plataformas que eles habitam. A nossa assistência médica terá menos
relação com o Estado (sobretudo no caso de países com um serviço nacional
de saúde como o Reino Unido), ou com uma instituição ou um profissional
médico específico, e mais com uma plataforma de assistência médica —
como Apple, Google ou Amazon. Claro, são muitas as implicações sociais e
econômicas disso, mas também políticas. Não se pode excluir uma
plataforma de saúde pelo voto. Não existe nenhum equivalente democrático
a uma transição pacífica de poder de uma plataforma de assistência médica
para outra. Você pode sair de uma plataforma, ainda que isso se faça
acompanhar de uma etiqueta de preço bastante alto. Transferir-se de uma
plataforma de assistência médica para outra — se você tiver sorte — talvez
lhe cause apenas uma chateação, mas a abandonar por completo pode deixá-
lo, ou ao seu eu quantificado, entregue ao Deus dará. Você ficaria livre da
plataforma, mas incapaz de acessar grande parte dos serviços de saúde
disponíveis para outros.
Permaneça vinculado a uma plataforma e talvez você consiga ter acesso à
maior parte dos serviços (embora, como é natural acontecer em
organizações comerciais, eles estarão disponíveis de modo escalonado). Será
inevitável ter de sacrificar elementos de privacidade e perder algum grau de
liberdade ou autoridade. As decisões tomadas pela plataforma, por exemplo,
obedecerão a diversas motivações — comerciais, legais, regulatórias, de
preservação da credibilidade —, mas não a motivações democráticas. E,
além disso, como os seus registros serão gravados o tempo todo — de modo
a possibilitar que você seja alertado caso se desvie do seu estado de saúde
padrão — você será desencorajado, ou até punido, por fazer coisas que
tenham efeito negativo sobre a sua saúde. Isso já começou. O seguro de
saúde Aetna comprometeu-se a doar meio milhão de Apple Watches para os
clientes em 2018. O objetivo, como avisou o próprio Aetna, era inserir os
relógios no pacote de programas de bem-estar corporativo para incentivar
os clientes “a levaram uma vida mais produtiva e saudável”. A partir do
momento em que o dispositivo de saúde é ligado, ele faz o monitoramento
dos exercícios físicos de hoje, mas também daqueles que ficaram sem ser
praticados ontem, da taça extra de vinho e do sundae degustado na noite
passada. Este último poderia provocar o aumento do seu peso e do custo do
seu seguro. É um passo curto para o encorajamento e o incentivo por meio
de descontos para quem reduzir a ingestão de álcool ou de alimentos
calóricos (e também as penalidades correspondentes para quem não o fizer).
“Isso é só o começo”, o presidente e CEO do Aetna disse em 2016. “Estamos
ansiosos por usar essas ferramentas de modo a melhorar os resultados em
saúde e ajudar mais pessoas a viverem dias mais saudáveis — penalizando-as
inclusive pelos que assim não forem, ele poderia ter acrescentado.25
Governos democráticos podem intervir para controlar isso e o farão,
apesar de existirem fortes incentivos financeiros e sociais levando-os na
direção da plataforma de assistência médica. É raro encontrar um governo
democrático que não queira poupar dinheiro com saúde. A perspectiva de
aumentar os cuidados preventivos de saúde por meio de
automonitoramento, da possibilidade do autodiagnóstico e do diagnóstico e
tratamento domiciliares, bem como do diagnóstico automatizado por IA
como alternativa para a análise manual humana, tudo isso será considerado
muito atraente por administrações com escassez de recursos. Em especial se
significar a redução da necessidade de instalações hospitalares custeadas
pelo Estado, de instituições de saúde e de cirurgias médicas. Ao mesmo
tempo, pode estar fora do alcance do poder de muitos governos
democráticos escolher qual direção os serviços de saúde tomarão. Se pessoas
suficientes optarem pelo autorrastreamento e confiarem seus dados pessoais
de saúde a uma plataforma, então, em pouco tempo, os efeitos de rede se
farão sentir e o governo correrá o risco de irritar e alienar grande número de
eleitores se tentar intervir.
Ainda assim, talvez estejamos subestimando os políticos, a emotividade e
a complexidade da assistência médica. Como disse Donald Trump em 2017,
“ninguém sabia que os serviços de saúde podiam ser tão complicados”. Sem
dúvida, democracias diferentes incentivarão e desencorajarão, inibirão e
permitirão, regularão e desregularão a assistência médica de plataforma.
Embora algumas, sobretudo as parecidas com os Estados Unidos, que
desencorajam a intervenção governamental, irão além e mais rápido nessa
direção que outras. Fosse a assistência médica o único serviço público que as
plataformas tecnológicas procurassem transformar, os políticos
democráticos poderiam se livrar do problema relativamente ilesos. Mas há
outras questões envolvidas além da assistência médica. Existe uma revolução
semelhante acontecendo na maneira como as crianças aprendem.

Em 2014, Mark Zuckerberg visitou a escola Summit em Sunnyvale,


Califórnia, por sugestão da esposa, Priscilla Chan.26 Muito impressionada
com sua visita anterior à escola, ela dissera ao marido que ele simplesmente
precisava ir conhecê-la com os próprios olhos. Assim ele fez e também ficou
perplexo com o que viu. Parecia “mais um Google ou um Facebook que uma
escola”, declarou o executivo-chefe da Summit Public Schools ao New York
Times, onde “alunos com laptops deslizam a toda velocidade e para todo lado
em cadeiras de rodinhas”.27 A escola fora criada por um grupo de pais do
Vale do Silício em reação ao que eles entendiam ser a falência do sistema
educacional norte-americano. “O que aconteceu com o ensino médio
público nos Estados Unidos”, perguntaram, “e o que podemos fazer para
consertá-lo?”28 A resposta que deram foi uma “aprendizagem
personalizada”, uma abordagem em que as crianças seguiam o próprio
caminho e aprendiam no ritmo próprio. Essa abordagem dependia
necessária e pesadamente da tecnologia. Por essa razão, quando Zuckerberg
se ofereceu para ajudar, a executiva-chefe, Diane Tavenner, não pediu
dinheiro, mas expertise técnica. O presidente do Facebook ofereceu no
momento oportuno um time de engenheiros que, supervisionados por
Zuckerberg, desenvolveu uma “Plataforma de Aprendizado Pessoal” (PLP,
em inglês) para a Summit. Ela era capaz tanto de coletar dados quanto de ser
utilizada como recurso a partir do qual professores e alunos podiam ter
acesso a projetos, currículos e avaliações.29 “Começamos pequenos”,
escreveu Zuckerberg ao anunciar a parceria, “mas planejamos fazer o
programa crescer de modo a oferecer tecnologia de aprendizado
personalizado gratuitamente para muito mais escolas.” Dois anos mais tarde,
330 escolas em 40 estados norte-americanos estavam usando o Summit
Learning Program.30
É fácil entender por que a abordagem da Summit chamou a atenção de
Zuckerberg. Além do fato de parecer uma start-up, as crianças tinham de
demonstrar iniciativa pessoal e direcionamento — como qualquer
empreendedor — e no cerne do modelo estavam dados pessoais e
tecnologia. Do ponto de vista de Zuckerberg e sua esposa, a escola acelerava
o aprendizado e parecia ter potencial para crescer. “Não é o tipo de coisa que
se pode mudar da noite para o dia”, disse Zuckerberg em uma conversa pelo
Facebook Talk no fim de 2016. “Mas em um intervalo de cinco, dez ou
quinze anos, é possível ajudar os professores em escolas de todo o país, e até
do mundo, a promoverem a aprendizagem personalizada.”31 Era uma
questão pessoal também para Mark Zuckerberg e sua esposa. Na carta deles
à filha recém-nascida, partilhada com o mundo, escreveram sobre sua
“responsabilidade moral para com todas as crianças da próxima geração” e
sobre a esperança que acalentavam de que a filha deles “aprendesse e
experimentasse cem vezes mais que nós hoje”.32 Em 2017, a Chan—
Zuckerberg Initiative (CZI) assumiu a responsabilidade pelo Summit
Schools Program.33
O fundador do Facebook estava longe de ser o único empresário da
tecnologia a se entusiasmar com a aprendizagem personalizada. Bill Gates,
fundador da Microsoft, ficou igualmente empolgado. “Gostaria de ter um
sistema como esse no meu tempo de escola”, escreveu Gates em 2016.34 Ele
se envolveu de tal forma com a ideia que sua fundação se associou à dos
Zuckerbergs para investir 12 milhões de dólares em um programa de
aprendizagem personalizada. Na verdade, a abordagem personalizada, com
foco na tecnologia e impulsionada por dados, atraiu uma multidão de
empresários da tecnologia do Vale do Silício. Reed Hastings, fundador da
Netflix, investiu 11 milhões de dólares em uma plataforma de IA voltada
para a matemática. Chamada Dreambox e operando via escola autônoma,
ela personaliza lições de matemática para os alunos.35 Ainda no Vale do
Silício, as empresas de capital de risco Andreessen Horowitz e o Founders
Fund de Peter Thiel, em conjunto com Mark Zuckerberg e outros membros
da tecnocracia da Costa Oeste, investiram 100 milhões de dólares na
AltSchool, que reunia escolas experimentais e foi iniciada por um ex-
executivo do Google, Max Ventilla. Ventilla prefere o termo “aprendizagem
centrada no aluno”, mas sua abordagem é bem parecida. Dê a cada criança
um tablet ou um computador, deixe que elas avancem pelos projetos cada
qual na sua velocidade e capture dados de tudo o que fizerem. Esses
investidores de tecnologia são críticos implacáveis da atual abordagem à
educação. Ventilla se refere a ela como “o modelo de fábrica”.36 Gates chama
o ensino médio norte-americano de “obsoleto”. Eles trazem consigo não só
dinheiro, mas ideias, metodologias, paixão — até um novo vocabulário de
aprendizagem. O currículo dos alunos se converte em “playlists”. Utilizar
computadores e tablets como parte da aula se transforma em “aprendizagem
híbrida”. Estudar em um computador fora da sala de aula se torna “uma sala
de aula invertida”. Como no caso de tantas outras coisas que esses homens
de negócio bem-sucedidos fazem, os líderes em tecnologia evangelizam
sobre sua nova abordagem e o potencial que ela tem de transformar a
aprendizagem. Também compartilham de um determinismo inquietante
acerca do futuro da educação. Todos parecem acreditar que a tecnologia, e
os dispositivos tecnológicos, estará no centro da aprendizagem, e que as
plataformas tecnológicas constituirão a base sobre a qual esse futuro será
construído. Para eles, a questão não é saber se a educação será ou não
alicerçada em plataformas, mas apenas em quais delas isso ocorrerá.
Em 2018, uma plataforma já assumira a liderança — o Google. Até 2012,
ele não concentrara sua atenção na educação. O mecanismo de busca e
outros produtos coligados eram amplamente utilizados, mas o Google não
procurara diferenciar seus serviços em escolas e demais lugares. Então, entre
2012 e 2017, ele se instalou em mais da metade das escolas nos Estados
Unidos, além de outras tantas em democracias mundo afora. Natasha Singer,
jornalista do New York Times há anos investigando as investidas do Vale do
Silício na educação, descobriu que a maior parte das crianças dos Estados
Unidos em idade escolar usava os aplicativos educacionais do Google na
metade de 2017, e uma proporção semelhante usava o notebook
Chromebooks, com sistema operacional do Google.37 Outro estudo chegou
à estimativa de que dois terços dos distritos escolares utilizavam o Google
Classroom ou o G-Suite (coleção de ferramentas colaborativas e de nuvem
como Google Drive, Documentos e Planilhas).38 “Entre o outono de 2012 e
o dia de hoje”, diz Singer, citando um ex-executivo do gabinete de
informação de Nova York, “o Google passou de uma possibilidade
interessante para a maneira predominante pela qual as escolas do país
ensinam os alunos a encontrar informação, criar documentos e entregá-los.”
Essencial para o sucesso do Google era atingir diretamente professores e
alunos. Como fizera com sucesso em outras áreas, o Google ultrapassou os
intermediários existentes — como o Estado e a escola pública — e
estabeleceu contato direto. Outras plataformas e serviços de tecnologia da
educação agiram de igual modo, cada qual encarando professores e alunos
como seus melhores propagandistas.
Deixando de lado toda retórica e linguagem de marketing, a visão que as
empresas de tecnologia têm para o futuro da educação diverge radicalmente
do que existe hoje. Do ponto de vista dessas empresas, a maneira como as
crianças aprendem é diferente. O modo como os professores ensinam é
diferente. A sala de aula é diferente (se ainda houver uma sala de aula física).
E a maneira como as crianças são acompanhadas e avaliadas é diferente.
A aprendizagem se torna algo autodirigido, automotivado e impulsionado
por dados, grande parte via computador ou tablet. Lições se convertem em
“projetos”, com frequência em jogos — ou são “gamificadas” — para
aumentar o interesse e a participação das crianças. O ClassCraft do Google
— utilizado em mais de 20 mil escolas, de acordo com seu website —
transforma o currículo em uma “aventura épica” interativa em que as
crianças escolhem ser personagens fantásticos e participar de aventuras.
Professores se metamorfoseiam em “mentores” ou supervisores que voltam a
atenção em rápidas incursões para as crianças individualmente e
acompanham a classe a partir de uma interface em forma de painel de
instrumentos com acesso a dados atualizados. O fundador da AltSchool vê
os professores se transformando em “detetives de dados”, mais que
pedagogos. As escolas passam a ser menos lugares em que alguém é
ensinado e mais locais de acesso a materiais e orientadores de aprendizagem,
bem como outras crianças. No início, isso ainda exigirá uma sala de aula
física. Todavia, a partir do momento em que a maior parte das lições for
realizada por meio de projetos individualizados via aplicativo em um
dispositivo eletrônico, isso também pode ser supérfluo. À distância, um
único professor conseguiria orientar muito mais crianças, localizadas em
qualquer parte. No fim, se vários professores derem o mesmo conselho com
regularidade, isso também poderá ser pré-gravado e postado para
divulgação. Fundamental para esse futuro imaginado são os dados de
aprendizagem pessoais, um registro de educação eletrônica que capture tudo
sobre o seu desempenho, a rapidez com que você aprende, até que ponto
demonstra iniciativa e como se comporta. Alguns dos dados registrados na
AltSchools incluem gravação em vídeo das aulas, gravações em áudio e
softwares para rastrear movimentos e reconhecimento facial e de fala.
A visão é de um ecossistema educacional completo no qual você viva sua
vida educacional virtual. E esse ecossistema é gerido pela plataforma.
É possível que essa abordagem híbrida e personalizada da educação possa
aprimorar e acelerar substancialmente a aprendizagem, mas a pesquisa sobre
o tema disponível hoje é, na melhor das hipóteses, controversa. Um estudo
de 2017 da RAND Corporation, encomendada pela própria Fundação Gates,
chegou a um resultado difícil de ser considerado brilhante. “Existem
evidências sugestivas”, concluiu ele, “de que maior implementação das
práticas de Aprendizagem Personalizada (PL em inglês) possam estar
relacionadas a efeitos mais positivos.” Essa manifestação foi de imediato
acompanhada das seguintes reservas: “No entanto, a descoberta requer
confirmação por meio de mais pesquisa”.39 Um estudo anterior de Monica
Bulger, da Data & Society, demonstrou ainda menos confiança no objeto da
análise: “A realidade não aponta para uma conclusão binária quanto ao
benefício ou não da aprendizagem personalizada, mas sim para uma história
complexa em que desenvolvedores de tecnologia estão aplicando táticas de
venda bem-sucedidas [...] à educação”.40 A professora Tiffany Dunn, do
Kentucky, não estava muito longe da verdade ao dizer para o jornal
especializado Education Week: “Não tenho conhecimento de nenhuma
pesquisa afirmando que deixar uma criança na frente de um computador
durante horas sem fim lhe faça algum bem”.
E ainda há a questão do destino de todos os dados pessoais coletados. “O
uso da tecnologia por escolas e alunos oferece um tesouro potencial de
dados sobre os estudantes”, escreve o National Education Policy Center, “que
empresas privadas, seus parceiros e seus consumidores podem explorar.”41
As próprias plataformas têm feito de tudo para tranquilizar escolas e pais de
que mantêm o sigilo dos dados e não os utilizam para publicidade ou outros
propósitos comerciais, embora exista uma ansiedade compreensível,
sobretudo entre pais, de que elas possam vir a mudar as regras
posteriormente. Leonie Haimson, codirigente de um grupo de defesa da
privacidade paterna, declarou que as escolas Summit alteraram seus critérios
relacionados com quem compartilha dados, e fez isso sem os termos de
consentimento. Em 2017, escreve Haimson, as escolas Summit que
contavam com o apoio da CZI (Chan Zuckerberg Initiative) “reivindicaram
o direito de acessar, prospectar e redivulgar os dados de suas crianças [...]
sem perguntarem se os pais concordavam com esses termos”.42 A Summit
diz que “não vende e não venderá informações pessoais dos alunos”.43
Mesmo que não vendam dados, ou o acesso a dados, as plataformas os
utilizarão para obter conhecimento sobre como as pessoas se comportam e
progridem, e para descobrir o que dá certo e o que não dá — de modo a
poderem estar em posição privilegiada a fim de oferecerem a plataforma de
educação no futuro.
Partes do debate contemporâneo sobre tecnologia na sala de aula refletem
argumentos que têm atormentado a educação pública desde o início.
A finalidade é dar às crianças as habilidades de que elas necessitam para
conseguir um emprego, ou o conhecimento e a compreensão para tirar o
máximo da vida? No entanto, outros aspectos do debate são bem novos,
como os efeitos da “conversão em dados” das crianças. Em “The Datafied
Child” [A criança convertida em dados], os estudiosos Ben Williamson e
Deborah Lupton descrevem quantos humanos já são convertidos em dados
antes mesmo de nascerem — quando os pais compartilham tomografias do
bebê no ventre materno. Os autores tratam dessas imagens e de todas as
outras medidas das crianças aferidas na sequência — em especial durante o
período escolar — e chamadas de “biocapital”. Sugerem que o biocapital é
capaz de transformar cada aspecto mensurável da criança “em uma forma de
valor que pode ser trocado por recompensas como upgrades e traços
personalizados, convertendo as salas de aula em pequenas economias
digitais e espaços calculistas em que os dados pessoais têm valor de troca e
utilidade”.44 Isso representa, em outras palavras, mais um passo no caminho
rumo à conversão dos nossos dados pessoais em uma moeda alternativa —
só que, nesse caso, moeda de criança.
As democracias modernas foram projetadas em parte para ajudar a
mediar discussões sobre como devemos educar os nossos filhos, bem como
abrir espaço para a flexibilidade e a diversidade por meio de abordagens
decentralizadas. Podemos não ter esse luxo democrático se a educação
mudar para as plataformas tecnológicas. Talvez nos descubramos “presos
por cláusulas de contrato” a determinada abordagem educacional — uma
abordagem personalizada envolvendo grande manipulação de dados e
dependente de ferramentas, serviços e armazenamento de dados fornecidos
por uma plataforma particular. Pode até ser que não desfrutemos da
liberdade de decidir a plataforma em que investiremos o nosso futuro
educacional uma vez que — graças ao efeito de rede — os nossos pares,
professores e escolas locais talvez já tenham decidido isso por nós. Será
corajoso o pai que optar por não participar de um sistema impulsionado por
dados se essa escolha significar que seu filho terá menos oportunidades de
obter acesso à faculdade preferida, ou de ingressar na profissão a que ele
aspira. Como no caso da assistência médica, podemos descobrir que o nosso
eu quantificado e virtual se tornará tão importante, em termos materiais,
para quem somos e o que fazemos quanto o nosso eu físico, real. Saúde e
educação talvez sejam as áreas mais óbvias em que as plataformas comerciais
vêm tumultuando os serviços públicos, mas estão longe de ser as únicas.

No verão de 2017, a plataforma de transportes Lyft começou a experimentar


um novo serviço chamado Lyft Shuttle em San Francisco, cidade em que
estava sediada. A empresa disse que ofereceria “um modo rápido e
financeiramente acessível de locomoção”. Por uma tarifa padrão, portanto
baixa, o Shuttle apanharia as pessoas e as deixaria em locais específicos ao
longo de rotas utilizadas com frequência na cidade. A reação inicial ao
lançamento não chegou a ser efusiva. “A Lyft acaba de lançar sua maior
inovação até agora”, relatou o Mashable: “o ônibus.”45 Alguns munícipes,
contudo, tendo enfrentado anos de poucas opções de transporte em San
Francisco, sentiram-se gratos pela alternativa. A Lyft Shuttle, apesar da
terrível similaridade com o serviço público de ônibus, distinguia-se de
algumas formas importantes. Só funcionava nos horários de pico e apenas
em itinerários com demanda elevada. Em outras palavras, ficava com a
cereja do bolo. Além disso, aquele era apenas um entre vários sistemas de
transporte compartilhado que a Lyft estava testando em todos os Estados
Unidos. Havia o serviço de carona — chamado Lyft Line — lançado em
2015. A empresa também implementara um serviço Centennial, Colorado,
em 2016, com o intuito de transportar as pessoas até as estações de trem
locais — subsidiado por autoridades do governo. Contudo, as tentativas da
Lyft de complementar — ou canibalizar — os serviços de transporte público
foram impedidas de crescer pelo gigantesco concorrente, o Uber. Este já
tentara combinar ônibus com carona em Seattle e Toronto (o UberHop
encerrou as atividades depois de sete meses). Tinha um serviço próprio de
compartilhamento de carro (o uberPOOL) em 30 cidades dos Estados
Unidos em meados de 2017. E estava em tratativas com diversas autoridades
municipais para fornecer transportes alternativos subsidiados — em
Altamonte Springs e Pinellas Park, Flórida; em Summit, New Jersey; em
Innisfil, Ontario; e na Filadélfia, Atlanta e Cincinnati. Alguns desses
experimentos fracassaram e logo foram encerrados, levando as pessoas a
considerá-los flops (fiascos) mal conduzidos. Mas isso é não compreender o
cerne da questão. As empresas de tecnologia do Vale do Silício estavam
fazendo o que as empresas de tecnologia do Vale do Silício fazem —
experimentar, ou jogar um monte de espaguete na parede e ver que
quantidade permanece grudada.
Uber e Lyft enxergaram o transporte público como a próxima “bola da
vez”. Deram então a largada na corrida para “reinventá-lo” e “reimaginá-lo”
(eufemismos para o termo “disrupção”, que caiu em desuso depois de 2016).
Se um negócio do Uber desse certo em Altamonte Springs — onde a
empresa estava transportando pessoas até estações de ônibus e trem por
uma tarifa reduzida (com subsídio da prefeitura) — a empresa poderia levar
a ideia a várias outras cidades. Se o Shuttle da Lyft desse certo, a empresa
seria capaz de implantá-lo em outras cidades norte-americanas.
Equiparáveis aos esforços dessas duas grandes plataformas tecnológicas de
transportes, uma multidão de iniciativas menores em tecnologia se
acotovelava à espera de sua vez. Uma plataforma chamada Via afirmava
estar “remodelando a mobilidade pública” nas cidades de Nova York,
Chicago e Washington, D.C. Outra empresa, de nome Swiftly, trabalhava
com mais de 40 cidades para usar “grandes volumes de dados e algoritmos
preditivos de modo a transformar a operação do transporte público”. Deus
nos livre de haver algum setor em que a Alphabet/Google não concorresse.
Portanto, também nos transportes a Alphabet desempenhava um papel
substancial e crescente. O aplicativo de navegação por satélite da Alphabet, o
Waze, oferece orientações de trânsito em tempo real, e em 2018 foi baixado
mais de 100 milhões de vezes. Como consequência, o Waze (e, por extensão,
a Alphabet) alcançara um nível de penetração em algumas cidades que
conferia à empresa melhor conhecimento em tempo real do trânsito do que
dispunha qualquer autoridade pública.46
Para muitas autoridades municipais norte-americanas, a associação com
essas empresas de tecnologia representa a oportunidade de poupar dinheiro.
Os carros subsidiados do Uber em Pinellas Park, para citar um exemplo,
substituíram dois serviços de ônibus locais por um quarto do custo. Líderes
cívicos também podem vender transporte público de plataforma aos
cidadãos como um serviço mais eficiente e personalizado. “Tem a ver com
conveniência e controle”, disse ao jornalista Spencer Woodman o prefeito
designado por conselho da cidade de Altamonte.47 No caso de algumas
cidades menores, ou se tem um serviço de transporte visando lucro, ou não
se tem nada. Em Arlington, Texas, o público votou a favor de gastar dinheiro
no estádio do Texas Rangers em vez de em transporte público. Desse modo,
a cidade contratou a Via para montar um serviço conhecido como
microtrânsito.48 A entrada de empresas de tecnologia no ramo do transporte
preocupa os críticos, que temem a possibilidade de o movimento levar ao
declínio dos serviços de transporte público e piorar a disponibilidade para
os mais pobres e carentes. Ou, como Hana Creger, do Greenlining Institute,
coloca em poucas palavras: “Os esforços do Uber e da Lyft no sentido de
subverterem o transporte público prejudicarão o meio ambiente e deixarão
os pobres em maus lençóis”.49
A grande recompensa não é a administração de um serviço de
microtrânsito em Pineallas Park, Flórida, nem mesmo em uma cidade
grande como Nova York. Mas ser a plataforma escolhida para todo
transporte em determinada cidade — ou em um país inteiro (tendo em
mente que a maior parte das empresas do Vale do Silício também está
investindo em veículos autônomos). Cedo ou tarde, imaginam essas
empresas, todos planejaremos a nossa movimentação via celular.
Informaremos para onde queremos ir (ou a plataforma cuidará disso), e o
celular nos dirá os caminhos mais rápidos, baratos e convenientes para
chegar lá. Algumas dessas opções serão fornecidas pela própria plataforma
(como o Lyft Shuttles), outras por empresas públicas ou privadas distintas
(embora a plataforma saia lucrando de algum modo). Em última análise,
para a plataforma, a chave estará nos dados. Quanto mais dados ela tiver,
maior o conhecimento de que disporá sobre quem está indo para onde e
como, e mais abrangente a informação de percurso que ela proverá para a
pessoa e compartilhará — segundo termos próprios — com autoridades e
outras organizações (como anunciantes). No fim, esses dados poderão
formar a base para qualquer decisão envolvendo transportes — de alguém
decidindo como chegar ao trabalho, de uma autoridade de trânsito
escolhendo quais rotas de ônibus extinguir ou manter, de uma ambulância
tentando encontrar o caminho mais rápido até o hospital. Se uma autoridade
cívica não coletar, organizar e analisar esses dados, logo se tornará
dependente de quem quer que o esteja fazendo.
À medida que as plataformas ocupam rapidamente a saúde, a educação e
o transporte, avançam também sobre outras áreas da vida pública. Na
energia, cada uma das grandes plataformas tecnológicas vem investindo em
soluções sustentáveis para alimentar as próprias necessidades sempre
crescentes, com potencial para fornecer energia também para todos nós.
A Amazon vem construindo fazendas para captação de energia eólica e solar
em todos os Estados Unidos — em Indiana, Carolina do Norte, Virgínia,
Ohio e além — suficiente para suprir as necessidades de 240 mil lares por
ano, ou uma cidade do tamanho de Atlanta. Ao mesmo tempo, serviços
como o Nest da Alphabet tentam mudar a maneira como as pessoas
consomem energia em casa. No setor de moradia, a plataforma de
hospedagem Airbnb oferece alojamento social de curto prazo por meio da
OpenHomes e tem explorado o futuro do design de imóveis residenciais e do
planejamento urbano por meio de uma divisão chamada Samara.50 Na área
da manutenção da ordem, a plataforma tecnológica Palantir, de segurança
sigilosa, dá apoio ao que tem sido chamado de “vigilância de grandes
volumes de dados”. A Palantir se associa a departamentos de polícia, como o
de Los Angeles, para produzir interfaces com dados em tempo real
registrando atividades criminais, a reação imediata da polícia e prognósticos
de crimes futuros. “A polícia consegue identificar a esquina da rua com
maior probabilidade de servir de cenário para o próximo roubo de
automóvel”, escreve Andrew Guthrie Ferguson, autor de The Rise of Big Data
Policing [O avanço da vigilância por grandes volumes de dados], “ou a
pessoa com maior probabilidade de levar um tiro.”51 Logo haverá poucos
serviços públicos em que as plataformas tecnológicas não estarão atuando.
A frustração, para superplataformas como Alphabet e Amazon, é que os
serviços públicos são armazenados em departamentos. A vida não funciona
assim. Os crimes podem afetar a saúde. As escolas dependem de boas redes
de transporte. O transporte requer soluções no campo do fornecimento de
energia. Do ponto de vista das plataformas, seria bem mais eficiente se todos
os dados pudessem ser reunidos, se tudo que fazemos fosse capturado em
um banco de dados central, onisciente. Os nossos dados pessoais
combinados com mapas digitais, escolas, instalações de assistência médica e
delegacias de polícia. Se ao menos encontrassem um lugar onde pudessem
assumir o controle de todos os dados. No início, ele poderia ser
relativamente pequeno, talvez em uma cidade pequena ou em um bairro de
cidade grande. Teriam de construir quase tudo do zero — de modo que
todos os elementos fossem conectados e “conversassem” uns com os outros.
A partir do momento em que o experimento fosse disponibilizado e
começasse a funcionar, poderiam ampliá-lo para todo o país. Em 2015, a
Alphabet criou uma subsidiária, a Sidewalk Labs, para refletir como isso
funcionaria em uma cidade. Em 2017, teve a oportunidade de fazer um teste
concreto.

Em 17 de outubro de 2017, terça-feira, o primeiro-ministro canadense Justin


Trudeau, o prefeito de Toronto e o presidente executivo da Alphabet, Eric
Schmidt, fizeram o anúncio conjunto de uma parceria entre Toronto e o
Sidewalk Labs para o desenvolvimento de um terreno de 3,2 quilômetros
quadrados no distrito Eastern Waterfront.52 Começando com um terreno de
meio quilômetro quadrado em Quayside, a Toronto Sidewalk planejava
converter a área no primeiro espaço urbano do mundo impulsionado por
dados e “tecnocêntrico”.
A empresa afirmou que aquele seria um “polo global para a inovação
urbana”. A proposta da Sidewalks incluía veículos de carga autônomos
comandados por robôs, estacionamentos tarifados por demanda, robôs
lixeiros, serviços sociais impulsionados por dados, prédios modulares e um
“domínio público programável”. Mais importante ainda, cada rua, cada
prédio, cada sinalização de rua e cada veículo público estaria conectado —
transmitindo e recebendo dados sem parar. A intenção final era mesclar “os
campos físico e digital, criando um projeto de bairro urbano do século XXI”
(de acordo com a visão da Sidewalk).53 Como sempre em se tratando de
experimentos com plataformas, a Quayside Toronto se pretendia uma base
de testes, um ensaio cujos aspectos bem-sucedidos poderiam ser aplicados
no distrito e além — “O que acontece em Quayside”, disse a Sidewalk, “não
ficará em Quayside.” A subsidiária do Google via sua empreitada em termos
globais. “O mundo está à beira de uma revolução na vida urbana” e ela
acreditava que o Quayside era o ponto de partida dessa revolução. Menos de
um mês após o anúncio em Toronto, espalhou-se a notícia de que Bill Gates
comprara mais de 100 quilômetros quadrados de terra no Arizona, onde
também planejava construir uma cidade inteligente (smart city). O espaço, a
ser batizado de Belmont, era literalmente uma “página em branco” — só
deserto e vegetação rasteira, sem uma construção ou pessoa até onde o olhar
alcançava.
Para a Alphabet e Gates, a cidade inteligente — ou cidade-plataforma — é
o futuro. Eles consideram esses espaços mais seguros, limpos, saudáveis,
sustentáveis e eficientes. A cidade-plataforma — na concepção deles —
elevará quem quer que esteja em seu interior. Todo o mundo estará mais
capacitado a encontrar a rota mais barata, rápida e conveniente até seu
destino. Todo o mundo ocupará posição mais robusta na prevenção ou
reação a doenças e a enfermidades. A aprendizagem de todo o mundo —
adultos inclusive — será personalizada e responsiva, e cada conquista (e
fracasso) será registrada. Todos os que estiveram na plataforma se
beneficiarão da inteligência de rede e, em consequência disso, se
comportarão de modo mais “inteligente”.
Isso presume, claro, a operação suave das próprias plataformas, o que está
longe de ser garantido considerando o histórico que elas têm de
experimentos abandonados, abortados e mal orientados (você se lembra do
Google Buzz, do Google Wave e do Google Glass?). De semelhante modo,
presume ainda que a crença delas nos benefícios intrínsecos da tecnologia
esteja justificada. Em setores como educação, isso é altamente discutível.
Dentro de mais uma década mais ou menos talvez descubramos, por
exemplo, que a educação personalizada, baseada em dispositivos, na verdade
retarda a aprendizagem, reduz a curiosidade e impede a socialização. Ou
que, em vez de se tornar “mais inteligente” em uma plataforma, a capacidade
da pessoa de pensar com independência diminui. Além disso tudo, de uma
coisa sabemos com certeza: o nosso futuro será desigual. Nem toda cidade
ou bairro será inteligente. Nem toda plataforma será igual. E quem não fizer
parte de nenhuma delas? Terá de se conformar com serviços públicos piores,
infraestrutura inferior e saúde ruim?
A partir do momento em que as autoridades passarem a depender de
plataformas comerciais que as ajudem a operar, as plataformas terão
adquirido um poder significativo. Que pode ser separado do poder das
autoridades com que trabalham, ou complementá-lo. Oniscientes, as
plataformas podem observar qualquer comportamento fora do padrão e
punir os transgressores (ou, ainda, repassar essa responsabilidade para a
autoridade envolvida). Todos os que já conhecerem a ira do Google depois
de infringirem seus termos e condições saberão que, uma vez banido da
plataforma, será muito difícil voltar. No entanto, via de regra, é provável que
o poder seja mais utilizado para induzir, estimular e incentivar. Em 2017,
por exemplo, na cidade de Londres, a autoridade de transporte (TfL)
solicitou o auxílio do Waze para lidar com problemas de trânsito nos túneis
Blackwall Tunnel sob o Tâmisa. A TfL sabia que um grande responsável
pelas obstruções no tráfego eram os carros que ficavam sem combustível no
meio dos túneis. Como o Waze tinha quase 2 milhões de usuários no Reino
Unido, o TfL imaginou que ele conseguiria desviar de rota os motoristas
com pouco combustível antes que fosse tarde demais. O Waze sabe onde os
motoristas estão e sabe onde ficam os postos de combustível, portanto é
capaz de lhes dizer para se encaminharem até um posto antes de entrarem
nos túneis.54 Seis meses mais tarde o aplicativo redirecionara o curso de
mais de 400 carros. Para alguns, isso parecerá um emprego positivo e
construtivo da tecnologia; para outros, o primeiro passo rumo à
supervigilância orwelliana.
Quer as plataformas de serviço público levem a Shangri-La, quer à prisão
panóptica de Jeremy Bantham (em que uma sentinela enxerga todos os
prisioneiros), quer a algum ponto entre um extremo e outro, uma coisa é
certa: elas não serão democráticas. Pelo menos, não no sentido do modelo
de democracia liberal do século XX com que muitos de nós fomos criados.
Como os cidadãos vivem cada vez mais por intermédio de plataformas —
utilizando-as para gerenciar sua saúde, educação, transporte e energia — de
igual modo dependerão delas sempre mais, e sempre menos do governo.
Como consequência, as plataformas adquirirão o que o estudioso das leis
Frank Pasquale chama de “soberania funcional”. O governo eleito pelas vias
democráticas permanecerá ostensivamente no governo, e o povo poderá
levar os partidos a ocuparem ou desocuparem cargos por meio do voto.
Mas, para quem está no governo, o poder de efetuar mudanças será
decrescente.
As plataformas darão ênfase em sua crença na democracia e nos valores
democráticos, mas não se comportarão democraticamente. “Apesar do ethos
democrático”, escreve o jornalista Ken Auletta, “da crença na ‘sabedoria das
multidões’, no Google o engenheiro é rei, alçado a uma posição bem
superior à da multidão.”55 Acontece no Google como em outras empresas de
tecnologia bem-sucedidas do Vale do Silício. Não só o engenheiro é rei
como a filosofia que ele adota — usando dados como guia para a tomada de
decisões, fazendo tudo rápido, com imprudência até, e então aprendendo
com os erros — bem o demonstra. Larry Page, Sergey Brin, Jeff Bezos, Tim
Cook, Mark Zuckerberg, Bill Gates e Satya Nadella não foram
democraticamente eleitos para administrar suas empresas e não recorrem ao
voto público regular nas decisões da empresa. Peter Thiel, o capitalista de
risco que investiu em muitas das mais bem-sucedidas start-ups do Vale do
Silício e chegou a apoiar e aconselhar o presidente Trump, escreveu:
“Empresas criadoras de novas tecnologias com frequência lembram
monarquias feudais em vez de organizações que se supõem mais
‘modernas’”.56 Para elas, a tomada de decisão é algo estritamente utilitário,
que deveria ser orientado por dados e gerar o valor máximo para a maior
quantidade de pessoas. Nada sugere que a mesma filosofia não se faça
presente na abordagem delas aos serviços públicos. Quando aplicadas as
esferas como saúde, educação e transporte, traduz-se em grandes
contingentes de pessoas ficando de fora. Baseada em números, a plataforma
simplesmente não teria justificativa para servi-las.
Muita gente do Vale do Silício vê uma abordagem orientada por dados
aos serviços públicos como um passo à frente positivo. Enxergam os atuais
serviços — e a governança democrática em geral — como ineficientes,
esbanjadores, sempre focados no curto prazo, pesados e esclerosados. Isso é
demonstrado com clareza em um capítulo fascinante do livro de Steven
Levy, Google, a biografia. Levy escreve sobre um grupo ruidoso de
empregados do Google que se juntou à campanha de Barack Obama em
2007. Alguns chegaram a trabalhar em sua administração. Obama os
convenceu de que o governo podia ser gerido como o Google, orientado por
dados e povoado por inovadores e empreendedores. No entanto, quando
foram para Washington, descobriram que isso era inviável de tão
burocrático, de uma lentidão monstruosa e... bem, totalmente política. Katie
Stanton, que encabeçara a equipe Google Election Team, juntou-se à
administração Obama como diretora de participação do cidadão. Em pouco
tempo se frustrou e perdeu a esperança, escreve Levy. “Não encontrei nem
ao menos um engenheiro”, Stanton lhe contou. “No Google, trabalhei com
pessoas muito mais inteligentes e criativas [sic] do que eu, e eram
engenheiras, e sempre faziam todo o mundo ficar bem. São pessoas que
realizam coisas. No governo nós emperramos porque na verdade não temos
muita gente assim.” A crítica de Stanton ao governo ecoa entre outras
pessoas no Vale do Silício. Contudo, o que para ela é uma administração
lenta e burocrática, para outros impõe os limites necessários a todos os
departamentos governamentais de modo a impedir danos, preservar direitos
ou proteger grupos vulneráveis. O que um capitalista de risco veria como
prova de tomada de decisão esclerosada seria encarado por um defensor dos
direitos civis como proteção democrática das liberdades essenciais. O que
um engenheiro veria como um processo ineficaz seria visto por um
representante eleito como meio pelo qual atingir o consenso mais amplo.
Antes mesmo da existência do Vale do Silício, houve quem encarasse a
tecnologia como resposta para os males da sociedade, de revolucionários
franceses no século XVIII a tecnólogos no século XX. O teórico político
inglês Bernard Crick redigiu o ensaio crítico mais convincente dessa
abordagem tecnologicamente determinista. Na época, início da década de
1960, ele ensinava na London School of Economics.57 Uma das maiores
ameaças à política, escreveu Crick, vinha daqueles que buscavam aplicar
“conhecimento científico à administração da sociedade”. “A tecnologia
sustenta que todos os problemas importantes a confrontarem a humanidade
são técnicos, portanto solucionáveis com base no conhecimento existente ou
prontamente acessível.” Para quem só dispõe de um martelo, declara o
axioma de Maslow, tudo se parece com um prego. O tecnólogo anela pela
certeza e usa dados como uma forma de distinguir a resposta certa da
errada. Embora, como Crick ressalta, raras vezes se encontra respostas
certas e erradas na política; a vida humana é bem mais complicada que isso.
Os cientistas querem dar ordem a essa confusão do sistema. Todavia,
removê-la seria afastar a discussão, eliminar a deliberação e desfazer-se da
dissensão. Toda a confusão que faz da política o que ela é: política. Para o
engenheiro, “o Estado inteiro é visto como uma fábrica de produção de bens
para a sociedade”. Compare a afirmação com o que Katie Stanton disse sobre
seu período no governo Obama: “Sinto-me uma vegetariana presa em uma
fábrica de salsichas, e a coisa está feia aqui dentro”.
Por outro lado, apesar de todas as promessas de vida mais sadia, brilhante
e feliz, a fantasia da cidade tecnológica perfeita arquitetada pelos tecnólogos
do Vale do Silício se assemelha muito com as distopias da ficção científica.
We [Nós], romance escrito em 1920 por Yevgeny Zamyatin, descreve a
sociedade norte-americana do século 26, em que tudo se baseia na lógica,
razão e transparência. Uma tabela de horários determina com exatidão onde
todo o mundo deveria estar a cada hora do dia. Problemas morais são
solucionados com precisão matemática, segundo a “ética científica”. Os
moradores são obrigados a se manterem saudáveis, a viverem em casas de
paredes de vidro transparente e a fazerem sexo com horário determinado e
cortinas fechadas. Ninguém é um, nos Estados Unidos, mas sim “um de”, e
todos desfrutam de “uma felicidade matematicamente irrepreensível”.
Não existe liberdade, mas porque acreditam que ela é incompatível com a
felicidade. O comportamento é governado pelo Escritório dos Guardiães e o
Estado, supervisionado pelo Benfeitor. “Que prazer sentir o olhar penetrante
de alguém a observá-lo por cima do ombro”, escreve o narrador de nome D-
503, “resguardando-o com amor de cometer até o menor dos erros.” George
Orwell deparou com We em 1946, pouco depois de escrever 1984. Apesar da
nacionalidade russa de Zamyatin, Orwell não achou que o romance fosse
direcionado a nenhum país em particular. Antes, apontava para a civilização
industrial. “Na verdade de um estudo da Máquina, o gênio que o homem
levianamente deixou escapar da garrafa à qual não consegue mais
devolver.”58 Claro que as democracias seguirem na direção das plataformas
não é algo inevitável. Das que o fizerem, algumas se transformarão mais
depressa que as outras. No entanto, qualquer que seja o futuro da
democracia de plataforma, como no caso da Máquina, é impossível devolvê-
la à garrafa.
1 Amazon, Berkshire Hathaway and JPMorgan Chase & Co. to partner on US employee healthcare.

Business Wire, 30 January 2018.


2 WINGFIELD, Nick; THOMAS, Katie; ABELSON, Reed. Amazon, Berkshire Hathaway and JPMorgan

team up to try to disrupt health care. New York Times, 30 January 2018.
3 THOMPSON, Derek. Amazon, Bershire Hathaway, and JPMorgan are going to fix health care —

somehow. The Atlantic, 30 January 2018.


4 CROW, David. Amazon, Berkshire and JPMorgan join forces to shake up healthcare. Financial

Times, 30 January 2018.


5 LEAF, Clinton. Amazon-JPMorgan-Bershire Hathaway: what their new health venture really means.

Fortune, 31 January 2018.


6 ETZIONI, Amitai. An open letter to Jeff Bezos — you are needed to disrupt the health care sector.

Quartz, 29 September 2017.


7 Amazon Web Services, American Heart Association partner on precision cardiovascular medicine.

Beckers Health IT & CIO Report, 12 July 2016.


8 KIM, Eugene; FARR, Christina. Amazon has a secret health tech team called 1492 working on

medical records, virtual doc visits. CNBC, 26 July 2017.


9 HERMAN, Bob. Amazon reportedly talking to pharmacy benefit managers. Axios, 20 September

2017.
10 ROWAN, David. DeepMind: inside Google’s super-brain. Wired, 22 June 2015.

11 POWLES, Julia; HODSON, Hal. Memorandum of understanding, referenced and linked to. Google

DeepMind and healthcare in an age of algorithms. Health and Technology, 7:4, p. 351-67, 2017.
12 V. DeepMind Health at NHS Expo 2016 — Delivering the Benefits of a Digital NHS.

DeepMind/YouTube, 8 September 2016. Disponível em: https://youtu.be/L2oWqbpXZiI. Acesso em:


14 jan. 2022, 13:15:59.
13 O Google criou uma holding chamada Alphabet, em 2015, para cuidar de todas as suas diversas

empresas (incluindo o próprio Google).


14 V. o website da Verily (http://verily.com) e diversas reportagens incluindo HAMZELOU, Jessica.

Google’s new project will gather health data from 10,000 people. New Scientist, 24 April 2017; BEST,
Jo. Project Baseline: Alphabet’s five-year plan to map the entire journey of human health. ZDNet, 31
January 2018.
15 Apple is going after the health care industry, starting with personal health data. CBInsights

Research Briefs, 20 September 2017.


16 V. os sites ResearchKit, CareKit e HealthKit (https://developer.apple.com/researchkit/,
https://developer.apple.com/carekit/, https://developer.apple.com/healthkit. Acessos em: 17 jan.
2022). V. o discurso principal de Tim Cook, September 2017, apud: Apple is going after the health
care industry, starting with personal health data. CBInsights Research Briefs, 20 September 2017.
17 COYLE, Diane. Platform Dominance: The Shortcomings of Antitrust Policy. In MOORE, Martin;

TAMBINI, Damian (eds.). Digital Dominance: The Power of Google, Amazon, Facebook, and
Apple. New York: Oxford University Press, 2018.
18 Um aplicativo para autodiagnóstico de câncer de pele — o Skinvision — afirmou contar com mais

de 1 milhão de usuários no início de 2018.


19 Para saber mais, v. Cancer Genomics Cloud (www.cancergenomicscloud.org; acesso em: 17 jan.

2022, 11:51:49), o Cancer Genome Atlas na Amazon Web Services - AWS e os National Institutes of
Health - NIH (http://cancergenome.nih.gov/; acesso em: 17 jan. 2022, 11:52:23).
20 BOT, Brian M. et al. The mPower Study, Parkinson Disease Mobile Data Collected Using

ResearchKit. Scientific Data 3, article nº 160011, 2016.


21 V. Apple is going after the health care industry, starting with personal health data. CBInsights

Research Briefs, 20 September 2017.


22 Para a reportagem, v. RAM, Aliya. DeepMind develops AI to diagnose eye diseases. Financial

Times, 4 February 2018.


23 POWLES, Julia; HODSON, Hal. Memorandum of understanding, referenced and linked to. Google

DeepMind and healthcare in an age of algorithms. Health and Technology, 7:4, p. 351-67, 2017.
24 Do inglês, quantified self, movimento que gira em torno da busca de uma melhor compreensão de

si mesmo através de dados, informações medidas e acompanhadas, que estão cada vez mais
acessíveis com a popularização de tecnologias digitais, incluindo, por exemplo, sistemas de
geolocalização, relógios inteligentes e outros dispositivos “vestíveis”.
25 Aetna to transform members’ consumer health experience using iPhone, iPad and Apple Watch.

Aetna, 27 September 2016.


26 NEWTON, Casey. Inside Facebook’s plan to build a better school. The Verge, 3 September 2015.

27 SINGER, Natasha. The Silicon Valley billionaires remaking America’s schools. New York Times, 6

June 2017; SINGER, Natasha; ISAAC, Mike. Facebook helps develop software that puts students in
charge of their lesson plans. New York Times, 9 August 2016.
28 Who we are — mission. Summit Public Schools website. Disponível em:
summitps.org/whoweare/mission. Acesso em: 31 maio 2018.
29 DOBO, Nichole. Despite its high-tech profile, Summit charter network makes teachers, not

computers, the heart of personalized learning. Hechinger Report, 1 March 2016.


30 WELLER, Chris. There’s a teaching method tech billionaires love — here’s how teachers are learning

it. Business Insider, 1 September 2017.


31 MARLEY, David. Mark Zuckerberg and his plan for a personalized learning revolution. Times

Educational Supplement, 19 January 2017.


32 ZUCKERBERG, Mark. A letter to our daughter. Facebook, 1 December 2015.

33 CZI takes over building Summit Learning Platform. EdSurge, 13 March 2017.
34 GATES, Bill. I love this cutting-edge school design. GatesNotes, 22 August 2016.

35 SINGER, Natasha. The Silicon Valley billionaires remaking America’s schools. New York Times, 6

June 2017.
36 LAPOWSKY, Issie. Inside the school Silicon Valley thinks will save education. Wired, 4 May 2015.

37 SINGER, Natasha. How Google took over the classroom. New York Times, 13 May 2017.

38 ALLHANDS, Joanna. Why use Google Classroom? Here’s what you need to know. Azcentral, 9

October 2017.
39 PANE, John F.; STEINER, Elizabeth D.; BAIRD, Matthew D.; HAMILTON, Laura S.; PANE, Joseph D.

Informing Progress: Insights on Personalized Learning Implementation and Effects. RAND


Corporation, July 2017.
40 BULGER, Monica. Personalized Learning: The Conversations We’re Not Having. Working Paper,

Data & Society, 22 July 2016.


41 BONINGER, Faith; MOLNAR, Alex; MURRAY, Kevin. Asleep at the Switch: Schoolhouse

Commercialism, Student Privacy, and the Failure of Policymaking. National Education Policy
Center, August 2017.
42 HAIMSON, Leonie. Parents rebel against Summit/Facebook/Chan-Zuckerberg online learning

platform. Parent Coalition for Student Privacy, 31 August 2017.


43 PRIVACY CENTER. Summit Learning website. Disponível em:
https://www.summitlearning.org/privacy-center. Acesso em: 18 jan. 2022, 17:45:50.
44 LUPTON, Deborah; WILLIAMSON, Ben. The Datified Child: The Dataveillance of Children and

Implications for Their Rights. New Media & Society, 19:5, p. 780-94, 2017.
45 HINCHLIFFE, Emma. Lyft just came out with its biggest innovation yet: buses. Mashable, 29 March

2017.
46 A Alphabet/Google também mantinha envolvimento financeiro tanto com a Lyft quanto com o

Uber.
47 WOODMAN, Spencer. Welcome to Uberville. The Verge, 1 September 2016.

48 Nenhuma plataforma tecnológica escapa de um vocabulário próprio obtuso, nem dos acrônimos.

No caso do transporte público acontece a mesma coisa. As plataformas a ele dedicadas são
“Transportation Network Companies” (TNCs). Os serviços de ônibus que visam lucro são
denominados “microtrânsito”. E a mudança completa impulsionada por tecnologia — quando se
passa da posse de um carro para a utilização de seja qual for o meio de transporte que a plataforma
tecnológica da sua escolha lhe disser para usar — é denominada (sem que isso ajude muito)
“Mobility-as-a-Service” (MaaS).
49 BLISS, Laura. A bus-shunning Texas town’s big leap to microtransit. CityLab, 20 November 2017;

CREGER, Hanna. Uber and Lyft’s effort to disrupt public transportation will hurt the environment
and screw the poor. AlterNet, 26 August 2017.
50 KUANG, Cliff. An exclusive look at Airbnb’s first foray into urban planning. Co.Design, 2 August

2016.
51 FERGUSON, Andrew. The rise of big data policing. TechCrunch, 22 October 2017.

52 BOZIKOVIC, Alex. Google’s Sidewalk Labs signs deal for “smart city” makeover of Toronto’s

waterfront. Globe and Mail, 17 October 2017.


53 Sidewalk Labs, RFP submission, 17 October 2017. Disponível em: https://sidewalktoronto.ca/wp-

content/uploads/2018/05/Sidewalk-Labs-Vision-Sections-of-RFP-Submission.pdf. Acesso em: 2 fev.


2022, 12:11:03.
54 TfL works with Waze and Eurotunnel to prevent Blackwall Tunnel closures. Transport for London,

8 December 2017.
55 AULETTA, Ken. Googled: a história da maior empresa do mundo virtual e como sua ascensão

afeta as empresas do mundo real. Rio de Janeiro: Agir, 2011.


56 THIEL, Peter. De zero a um: o que aprender sobre empreendedorismo com o Vale do Silício. Rio

de Janeiro: Objetiva, 2016.


57 CRICK, Bernard. Em defesa da política. Brasília: Ed. UnB, 1981.

58 ORWELL, George. Freedom and happiness. Tribune, 4 January 1946 in DAVISON, Peter (ed.).

Orwell and Politics. London: Penguin, 2001.


Democracia de vigilância

Pansofismo: a sabedoria ou o conhecimento universal em si ou como pretensão.


Dicionário Merriam-Webster

Tembhli, aldeia rural distante no estado de Maharashtra, cerca de 400


quilômetros ao norte de Mumbai, raras vezes é visitada por políticos
poderosos ou dignitários proeminentes. Contudo, em 29 de setembro de
2010, quarta-feira, ela abrigava não só o primeiro-ministro indiano,
Manmohan Singh, como a presidente do congresso, Sonia Gandhi; o
ministro chefe e o chefe adjunto do governador de Maharashtra; e Nadan
Nilekani, chefe do recém-fundado departamento indiano Unique
Identification Authority. Esse último personagem, o menos conhecido do
distinto grupo, era a razão da visita e quem desempenharia o papel mais
importante no desenrolar dos acontecimentos. Nilekani e os políticos
estavam ali para distribuir os primeiros dez “identificadores exclusivos” aos
moradores de Tembhli. Dez moradores da cidade receberam um número
pessoal de 12 dígitos que, daquele dia em diante, distinguiria cada um deles
de todos os outros cidadãos indianos – e, na verdade, combinado com seus
dados biométricos, de todos os demais cidadãos do mundo. “Com isso”,
anunciou Sonia Gandhi, “Tembhli adquire importância especial no mapa da
Índia. As pessoas de Tembhli estarão na liderança do restante do país, dando
um passo histórico rumo ao fortalecimento da nossa nação”.1
Governos de todas as tendências estão propensos a exagerar na retórica,
mas, nesse caso, Gandhi provou ter razão ao proclamar que, “a partir dessa
pequena aldeia, o programa alcançará mais de 1 bilhão de cidadãos do país”.
Apesar da mudança de governo em 2014, até abril de 2016, cerca de 1 bilhão
de indianos recebera seu número de identificação exclusivo. Em 2018 o total
ultrapassara 1,1 bilhão, de uma população de pouco mais de 1,3 bilhão. Nas
palavras de um relatório da Harvard Business School, era um “projeto
imensamente ambicioso”, “o projeto em mais larga escala desse tipo no
mundo”.2
O Aadhaar, como ele se chamava, era “único em escala e pretensão”.3
Cada identificador Aadhaar incluía não apenas um número de 12 dígitos,
mas todas as 10 digitais, a íris escaneada dos dois olhos e uma fotografia do
rosto de cada pessoa (com potencial para reconhecimento facial mais
adiante). Combinando o número com um elemento dos dados biométricos,
acreditava o governo, era possível assegurar que cada cidadão indiano
tivesse uma identidade única, verificável e inteligível para as máquinas. Com
essa identidade verificável, o cidadão podia abrir conta bancária, receber
auxílio ou pensão do governo, recolher impostos, solicitar licença para a
condução de automóveis ou receber assistência médica, independentemente
da escolaridade. Em um país conhecido pelo torpor administrativo e a
burocracia tortuosa, no qual — em 2013 — apenas 40% dos nascimentos
eram registrados, um programa desses tinha potencial para levar a Índia a
ultrapassar outros países democráticos e entrar de vez na era digital. E isso
tornava o governo digitalmente habilitado e também empoderado.
Para os críticos do programa, no entanto, essa era uma de suas muitas
falhas. “O Aadhaar marca uma mudança fundamental nas relações
cidadão/Estado”, escreveu Pranesh Prakash, do India’s Centre for the
Internet and Society, no jornal Hindustan Times, “de ‘nós, o povo’ para ‘nós,
o governo’”.4 Ativistas da sociedade civil objetaram ao poder ampliado do
governo e à relativa ausência da prestação de contas por parte do grupo que
administrava o Aadhaar, encabeçado por Nandan Nilekani até 2014. “Na
verdade”, escreveu o ativista e desenvolvedor de tecnologia Kiran
Jonnalagadda, “eles estão além do estado de direito”.5 Outros objetaram em
sentido prático. A identificação biométrica com frequência não funcionava.
Um banco de dados desse tamanho e importância estava fadado a atrair os
hackers. Vazamentos eram inevitáveis. De fato, o jornal Tribune, em janeiro
de 2018, revelou que conseguira adquirir por 500 rupias (menos de 10
dólares) um serviço que lhe concedia acesso a até 1 bilhão de dados,
quaisquer que fossem eles, do Aadhaar.6 Todavia, essas objeções eram
desconsideradas como disseminação de boatos alarmistas, e os críticos do
Aadhaar eram vistos como “ativistas aristocratas, da classe alta, a elite social
que comia queijo com vinho e assistia a Netflix”.7 Além disso, apesar da
decisão judicial da Suprema Corte indiana de agosto de 2017 declarando o
direito fundamental dos indianos à privacidade, no início de 2018 o
Aadhaar atingiu tamanho impulso a ponto de parecer irrefreável. Se o
governo fosse capaz de atravessar os vários desafios legislativos fazendo
frente ao programa, haveria uma fila de outros países ávidos por adotarem
algo semelhante.
Estados modernos, democráticos ou não, ficam fascinados com o
potencial dos dados de seus cidadãos desde que se tornou possível coletá-
los, armazená-los e usá-los em grandes quantidades, do início do século XIX
em diante. Conhecer os cidadãos aumenta a capacidade do Estado de tomar
decisões racionais em benefício deles, por exemplo, onde construir uma
estrada, como melhorar questões de higiene ou como garantir segurança e
proteção (sem falar na melhor maneira de cobrar impostos). “A
quantificação”, escreve a antropóloga Sally Merry da Universidade de Nova
York, reveste-se de uma “aura de objetividade.”8 Contudo, antes da nossa era
digital, os Estados enfrentavam dois obstáculos inesperados ao tentarem
obter qualquer coisa além de conhecimento básico sobre seus cidadãos.
O primeiro era de ordem prática. Rastrear pessoas — até para saber quantas
eram e onde moravam — mostrava-se um problema repleto de
complexidade. Obter informações detalhadas era ainda mais difícil, mesmo
em sistemas políticos que advogavam uma vigilância mais de perto. Após o
estabelecimento da República Popular da China em 1949, por exemplo, o
governo comunista de Mão Zedong insistiu em que se mantivesse um dossiê
secreto chamado dangan sobre cada indivíduo. Nele, além das informações
básicas, catalogavam-se atividades, atitudes e avaliações de caráter. Todavia,
a prática teve de ser abandonada visto que se tornou inviável durante a
década da Revolução Cultural (ela foi restaurada na sequência no caso dos
funcionários). Na Alemanha Oriental comunista, o governo de Erich
Honecker guardava arquivos íntimos de todos que considerava suspeitos,
atualizados a todo momento com relatórios de uma enorme rede de
informantes do governo. O material contido nesses arquivos, descobriu o
escritor Timothy Garton Ash ao analisar a pasta que lhe dizia respeito, podia
ser tanto de uma banalidade fantástica quanto “assustadoramente preciso”.
Contudo, era também sempre irregular.9 O segundo obstáculo à onisciência
estatal, do ponto de vista da democracia, é ideológico. Conhecimento íntimo
e irrestrito acerca dos cidadãos por parte do Estado compromete a
privacidade e confere às autoridades poder muito maior sobre seus cidadãos.
Segurança e bem-estar inspiraram o grande experimento indiano com o
Aadhaar. Em 1999, um conflito entre a Índia e o Paquistão em Kashmir, no
qual soldados paquistaneses conseguiram se passar por militantes de
Kashmir, desencadeou a primeira fase do projeto — o desenvolvimento de
um registro nacional na população e um cartão de identidade
multipropósito.10 Para a fase seguinte foi necessário aguardar até 2008,
época em que o governo de coalizão se preocupou cada vez mais com o
vazamento de pagamentos assistenciais — a requerentes falsos e atendendo a
solicitações duplicadas. Todavia, o número de identificação ganhou
dimensão digital depois da indicação de Nandan Nilekani como dirigente do
Unique Identification Authority da Índia, em 2009. Nilekani é o equivalente
indiano a Gates, Page, Brin ou Bezos. Nascido em Bangalore, o Vale do
Silício indiano, foi cofundador da Infosys, gigante de serviços digitais e de
software. Como os colegas da costa oeste norte-americana, ele tem uma
visão de futuro em que a tecnologia desempenha papel fundamental. Após
deixar o cargo de executivo chefe da Infosys em 2007, ele escreveu um livro,
Imagining India [Imaginando a Índia], em que expõe seu sonho para o
futuro do país. Podemos “usar a tecnologia para a governança”, disse
Nilekani em um TED Talk de 2009, apresentado com o intuito de promover
seu livro. “Podemos usar a tecnologia para benefícios diretos. Podemos usar
a tecnologia para a transparência e muitas outras coisas.”11 Entretanto, assim
como os colegas da costa oeste, Nilekani e equipe tinham consciência de que
governos democráticos são inconstantes e novas iniciativas com frequência
acabam sendo politizadas. A fim de se protegerem contra isso, propuseram
estabelecer o Aadhaar como uma organização independente, fora do âmbito
de qualquer ministério. Além disso, construiriam o plano de identificação
não apenas como um banco de dados, mas como uma plataforma. “Quando
desenhamos o sistema”, Nilekani contou a uma plateia em Harvard em 2014,
“nós o concebemos para ser uma plataforma.”12 Na prática, isso significa
que, desde o início, o número de identificação exclusivo fora desenhado
como uma base sobre a qual os serviços do governo — e, de crucial
importância, também os serviços comerciais — pudessem se desenvolver.
Aadhaar significa “fundação” em híndi e para isso foi projetado.
A despeito dos esforços de Nilekani, seu ambicioso programa quase
naufragou com a primeira mudança de administração. Embora usado pelo
governo para transferências de benefícios, o Aadhaar ainda não decolara na
época em que os políticos começaram a fazer campanha para a eleição de
2014. Pior, um juiz aposentado, abrira um processo contra o projeto,
dizendo que ele violava o direito à privacidade fundamental para os
indianos. O líder do partido BJP, Narendra Modi, foi contundente acerca do
Aadhaar durante a campanha. “Trata-se de um expediente político sem
visão alguma”, disse ele em abril daquele ano. No entanto, depois que Modi
foi alçado ao poder via eleição, encontrou-se com Nilekani e mudou
radicalmente de ideia. Em vez de encerrar o programa, decidiu expandi-lo.
Pretendia utilizá-lo tanto como plataforma virtual quanto como retórica
para lutar contra a corrupção endêmica no sistema assistencial da Índia, e
transformar o país em modelo de governo digital no século XXI. Em
outubro de 2014, Modi anunciou que o Aadhaar ajudaria a oferecer acesso a
serviços de saúde universais. No ano seguinte, seu governo resolveu atrelar o
Aadhaar ao National Population Register (NPR — registro nacional da
população), criando um “banco de dados matriz” a partir do qual os
departamentos pudessem descobrir fraudadores, identificar imigrantes e
recompensar beneficiários genuínos. Mais tarde daquele ano, Modi vinculou
o Aadhaar a seu projeto para assegurar que todos os indianos tivessem
acesso a serviços financeiros.
Do ponto de vista do governo, a grande vantagem da plataforma do
Aadhaar era de que forma ela poderia otimizar as ações governamentais,
como Nilekani pretendera. Não havia nenhuma necessidade de todo o árduo
preenchimento de formulários. Toda a burocracia existente para a simples
distribuição de benefícios sociais e a administração de serviços estatais
poderia ser reduzida a um núcleo único. E tudo era submetido a
rastreamento. Não causava surpresa, portanto, que o governo acelerasse por
meio do Aadhaar, com mais e mais serviços sendo atrelados à identidade
única. Tecnicamente o projeto era voluntário, mas estava se tornando cada
vez mais difícil viver na Índia sem ele. Em meados de 2017, o Aadhaar era
necessário para abrir uma conta bancária, ter acesso a pensões, pagar
impostos, obter um número de celular, solicitar passaporte, registrar
casamento, candidatar-se a bolsa de estudos, reservar uma passagem de
trem. A partir de julho de 2017, crianças de escolas públicas não podiam
receber almoço sem o Aadhaar (sim, era para crianças tanto quanto para
adultos). Empresas de plataformas de internet enxergaram o potencial de
também se vincularem a ele. A Amazon começou a pedir às pessoas que
informassem o número Aadhaar para rastrearem pedidos. O Facebook
incentivou as pessoas a usarem o Aadhaar para confirmarem sua real
identidade. A Microsoft lançou o Skype Lite, integrando o Aadhaar, de
modo que um interlocutor conseguisse verificar a identidade do outro.13
O Aadhaar avançava a tal velocidade que não contava nem com um
suporte legal até 2016, quando o governo se apressou a apresentar ao
Congresso um projeto de lei que tratasse do assunto relacionando-o ao
orçamento do país, evitando assim a tramitação pelo Senado. Até então
inexistia decisão dos tribunais definindo se o programa violava o direito
fundamental dos indianos à privacidade. A Suprema Corte não se
pronunciou a respeito até 2017. No entanto, como o Facebook descobrira a
duras penas, as plataformas virtuais não solucionam todos os problemas
práticos do mundo físico por um passe de mágica, podendo na verdade
piorá-los.

Enquanto o governo impingia o Aadhaar a cada interação entre Estado e


cidadãos, evidências das falhas do sistema foram se acumulando. A nordeste
do país, no Estado de Jharkhand, uma menina de 11 anos morreu de
inanição depois que sua família parou de receber a quota alimentícia do
governo. O cartão de que dispunham para a retirada da quota, conforme
relatou o Hindu Centre for Politics and Public Policy, “não estava vinculado
ao Aadhaar.”14 O mesmo órgão citou dados extraídos de websites do
governo para mostrar que em Rajasthan, onde o recebimento de quotas
alimentícias dependia da autenticação do Aadhaar, entre um quarto e um
terço dos cidadãos portadores dos respectivos cartões ficaram sem suas
quotas entre setembro de 2016 e julho de 2017. Nos postos de distribuição
dos alimentos, depois de horas tentando fazer que suas digitais fossem lidas
pelas máquinas biométricas sem sucesso, muita gente perdeu a paciência e
derrubou as máquinas no chão.15
Em toda a Índia noticiou-se sobre máquinas que não reconheciam
digitais, ou que só reconheciam depois de múltiplas tentativas. Descobriu-se
que a digital das pessoas com mais idade era mais difícil de ler, bem como
dos trabalhadores manuais e pescadores. Como o sistema presume culpa em
vez de inocência, o ônus da prova recaía sobre o cidadão, não sobre o
Estado. Para pedir quota alimentícia, candidatar-se a uma bolsa de estudos
ou comprar um bilhete de trem, a pessoa tinha primeiro de provar quem ela
era. A obrigação de provar que não era um fraudador recaía sobre o cidadão.
Mesmo que ele não estivesse fraudando e que a falha fosse do sistema, o
cidadão pagava pela falha do sistema, não o governo. Contestar uma decisão
tomada pela máquina significava ir até a cidade grande mais próxima —
muitas vezes a quilômetros de distância — e convencer um funcionário
público de que o problema estava na máquina ou no registro digital, não na
pessoa. Não surpreende que algumas pessoas destruíssem as máquinas do
Aadhaar em sua fúria.
Enquanto o sistema reduzia o arbítrio dos cidadãos, empoderava quem
ocupava posição de autoridade. O governo central era capaz de condicionar
serviços públicos à autenticação pelo Aadhaar (a despeito de repetidos
tribunais decidirem que o Aadhaar era voluntário, não obrigatório). Essa
condicionalidade podia então ser estendida ao nível e tipo de serviços
públicos disponíveis para as pessoas. Na verdade, funcionava assim no caso
de diversos serviços — para distinguir pensionistas de não pensionistas, por
exemplo. Contudo, nessa condicionalidade há bastante espaço para a
ocorrência de danos e abusos. Em 2017, o site de mídia independente
Scroll.in noticiou um número crescente de pacientes HIV positivos que
estavam sendo desligados de programas de tratamento devido à exigência de
uso do número de Aadhaar, mas tinham medo de que a condição em que
viviam se tornasse pública.16
De igual modo, enquanto o Aadhaar em si não trazia nenhuma
informação sobre casta, etnia, religião ou língua, a partir do momento em
que era vinculado a outros bancos de dados, sobretudo o National
Population Register, passava a ser possível identificar as pessoas por grupo.
A identificação formal de grupos por parte do Estado tem um histórico
infame. Na época do apartheid na África do Sul, o penúltimo número da
carteira de identidade sul-africana identificava a raça. No genocídio de
Ruanda em 1994, qualquer um que tivesse escrito “Tutsi” em sua
identificação estava sujeito a ser morto. Na Alemanha nazista de 1938, todo
cidadão judeu tinha um “J” estampado na carteira de identidade e no
passaporte. Na Índia, onde divisões políticas e religiosas se entrelaçam
intimamente, há uma boa razão para recear que novas oportunidades de
identificação de grupo causem aflição.
Graças ao Aadhaar, as empresas começaram a elaborar serviços
utilizando a identificação única. Surgiram várias “plataformas confiáveis”,
edificadas sobre o Aadhaar, nas quais empregadores — e outros — podiam
acessar e autenticar a identidade das pessoas. Uma empresa chamada
TrustID se anunciava como “a primeira, única e abrangente plataforma de
verificação on-line da Índia”. Por meio da TrustID um empregador
conseguia conferir se pesavam condenações criminais ou civis sobre um
empregado potencial, ou se a pessoa tinha boa ou má reputação (com base
em pesquisas nos noticiários e em perfis de redes sociais). A empresa
chegava a incentivar as mulheres a consultarem os candidatos a maridos
encontrados via websites de casamento.17 Outras empresas internacionais
incorporaram o Aadhaar a serviços existentes. É o mesmo procedimento
adotado por empresas que trabalham com plataformas como o Facebook a
fim de traçar o perfil dos indivíduos e segmentá-los com base em
informações pessoais — só que, no caso, fazendo isso por intermédio do
governo. As mesmas indagações relacionadas a confiança, privacidade,
liberdade e poder surgem aqui, com força política ainda maior. O Estado e
as empresas privadas se associam para rastrear cidadãos o tempo todo e
coletar todos os dados que puderem — dados que conseguem então utilizar
com propósitos comerciais ou políticos. Esse conhecimento pouco
transparente e assimétrico dos cidadãos parece o inverso do pretendido pela
transparência democrática, sobretudo na ausência de forte sigilo e proteção
de dados. “Estados totalitários costumam fazer isso contra a vontade de seus
cidadãos”, escreve Pratap Bhanu Mehta, presidente do centro de pesquisa
Centre for Policy Research. No entanto, ele continua, “na nossa democracia,
o nosso consentimento está sendo preparado para dar sanção oficial a mais
controle e arbitrariedade”.18
Em agosto de 2017, a Suprema Corte indiana chegou à decisão unânime,
por 9 a 0, de que o artigo 21 da Constituição do país de fato garantia o
direito fundamental à privacidade. Por isso, não era lícito o governo tornar
obrigatório que as pessoas se identificassem empregando um identificador
único como o Aadhaar, exceto em circunstâncias específicas. Para alguns, a
decisão pareceu um enorme golpe no grandioso projeto. A decisão da
Suprema Corte “suscita questões graves acerca do Aadhaar”, o advogado
Adarsh Ramanujan argumentou no Financial Express da Índia, e parecia dar
“uma orientação ao governo central para criar um regime que garantisse que
os direitos à privacidade não fossem obstruídos por outros grupos
privados”.19 O julgamento era sobre privacidade de modo geral, e não
tratava de casos específicos como o Aadhaar, mas ficou claro que seria a base
a partir da qual poderiam ser lançados desafios futuros ao projeto.
O governo Modi, no entanto, pareceu seguir em frente sem dar importância
à decisão. Em outubro, ele vinculou o Aadhaar às solicitações de licença para
dirigir. Em meados de dezembro, tornou o Aadhaar obrigatório para os
cidadãos que quisessem acessar qualquer um dos 140 serviços do governo.20
Nandan Nilekani, que deixara o cargo de presidente do Aadhaar em 2014
a fim de se candidatar ao congresso indiano, vociferou contra os que
criticavam o projeto. Havia, declarou ele, uma “campanha orquestrada” para
difamar o sistema.21 “Creio que o chamado lobby anti-Aadhaar seja na
verdade um pequeno grupo de representantes das elites liberais falando de
dentro de uma câmara de ressonância”, disse ele para um canal de notícias de
negócios indiano.22 De qualquer forma, Nilekani argumentou, já era tarde
para os opositores o deterem. Gente demais já estava inscrita. O número de
identificação único se tornara parte da prestação de serviços. Outros viam os
ataques contra o Aadhaar como uma ação política, argumentando que o
congresso o usava para obter ganho político antes da eleição de 2019 e que o
tiro sairia pela culatra. “O Aadhaar hoje não é só um número”, escreveu o
editor do Economic Times. “O congresso o considera um meio de identidade,
mas o governo Modi levou a questão a um nível diferente. O Aadhaar se
converteu em arma nas mãos do pobre e em ferramenta poderosa para lutar
contra os interesses do dinheiro sujo firmemente estabelecidos. Ele é hoje
um símbolo de anticorrupção, contrário à força que impulsiona o dinheiro
sujo, um símbolo da alocação eficiente de benefícios assistenciais.”23

Enquanto as identidades virtuais, o rastreamento pelo governo e os limites


da privacidade se tornavam questões políticas cada vez mais conflituosas na
Índia, cerca de 320 quilômetros a sudoeste havia um país em que os
cidadãos pareciam aceitar a supervigilância como o caminho para o futuro.
Desde novembro de 2014, quando o primeiro-ministro Lee Hsien Loong
externou sua visão de Singapura como a primeira “nação realmente
inteligente”, o país corria para conectar tudo. “Deveríamos encontrá-la [a
inteligência] na nossa vida diária”, afirmou o primeiro-ministro, “em que
redes de sensores e dispositivos inteligentes nos permitem viver da maneira
sustentável e confortável”. Esses sensores — cabos aterrados sob as rodovias
e no interior de prédios, câmaras nos cruzamentos das ruas, aparelhos GPS
em ônibus, trens e táxis — leem e gravam tudo, desde o movimento do
trânsito até as condições ambientais e a densidade populacional. O governo
chama isso de E3A — “Everyone, Everything, Everywhere, All the Time”
[“Todo o mundo, tudo, toda parte, o tempo todo” em inglês].24 Em 2020,
todo automóvel em Singapura precisaria ter um GPS embutido informando
localização e velocidade não só ao motorista, mas também às autoridades.
Dessa forma seria possível reduzir congestionamentos, alertar os motoristas
sobre vagas de estacionamento e até cobrar-lhes pela vaga de maneira
automática. Motoristas que ignorassem os avisos poderiam ser penalizados.
Como relatou a Computerworld: “Motoristas serão punidos monetariamente
se não derem atenção aos alertas e serão recompensados se o fizerem”.25
Entretanto, a interconectividade virtual em Singapura iria muito além do
trânsito e do transporte. Como mais de 80% dos moradores de Singapura
moram em propriedades governamentais (sob contrato de arrendamento
temporário), o governo consegue conectar também as casas em que eles
vivem. O ministro responsável pelo programa Smart Nation [Nação
inteligente] — dr. Vivian Balakrishnan — descreveu como, em um conjunto
habitacional com sensores já implantados, isso significa que, em “parceria
com empresas privadas, as autoridades conseguem medir consumo de
energia, produção de lixo e consumo de água em tempo real”.26 Em termos
laicos, isso se traduz no fato de as autoridades locais saberem quando você
acaba de dar a descarga no banheiro. No caso de pessoas vulneráveis, em
especial as idosas, sensores de presença captam a movimentação dentro de
casa e enviam mensagens de texto para a família avisando onde elas estão e
quando (“Sua mãe está na cozinha”).27 E o governo singapurense já está à
frente do Google e da Apple em se tratando de serviços de saúde digital.
Pacientes de fisioterapia têm a possibilidade de prenderem sensores
corporais e se filmarem durante os exercícios. Um especialista consegue
então ver seus dados e averiguar como eles estão se saindo.28 O programa
chega a tomar emprestados termos mais condizentes com as start-ups do
Vale do Silício — como a nação se converter em um “laboratório vivo” para
abordagens inteligentes à vida. Supõe-se que o sentido disso seja que os
cidadãos de Singapura vivem feito cobaias de laboratório. Como o Aadhaar
de Nandan Nilekani na Índia, o governo de Singapura está desenvolvendo
sua Smart Nation como uma plataforma, de modo que serviços públicos
separados e empresas privadas consigam, a partir dela, desenvolver
funcionalidades. Empresas de assistência médica são capazes de elaborar
aplicativos de fisioterapia visando lucros, e empresas seguradoras de
automóveis podem produzir opções a partir dos dados dos GPS. Todos
tiram proveito do rastreamento inteligente e da supervigilância dos
cidadãos.
No que diz respeito à política, o plano é considerado fundamental para o
bem-estar futuro da nação. “A Smart Nation é para todos nós, jovens e
idosos”, disse o primeiro-ministro em 2017 na mensagem anual que dirige à
nação, conhecida como National Day Rally.29 O plano também é visto, ao
menos dentro do governo, como essencial para a sobrevivência do país. Em
um influente ensaio de 2014, publicado na Foreign Policy, Shane Harris
atribuiu ao ataque terrorista ocorrido em Bali em 2002 e ao surto de SARS
em 2003 a decisão de Singapura de investir pesado em vigilância por meio
de grandes quantidades de dados. A doença respiratória, além de matar 33
pessoas e levar a uma desaceleração econômica e ao fechamento temporário
de todas as escolas, trouxe nova ênfase à vulnerabilidade da ilha a crises e
ataques inesperados. A tecnologia de vigilância e o uso de grandes
quantidades de dados eram vistos como uma maneira tanto de prever
impactos futuros quanto de responder a eles com mais efetividade. Como
consequência, Singapura se tornou um “laboratório não só para testar como
a vigilância de massa e a análise de grandes volumes de dados seriam
capazes de impedir o terrorismo, como também para determinar se a
tecnologia poderia ser utilizada de modo a produzir uma sociedade mais
harmoniosa”.30 A vigilância e o programa Smart Nation se baseiam em cinco
décadas de história de Singapura como uma sociedade controlada. Desde a
independência em 1965, e considerando o tamanho reduzido e a falta de
recursos naturais de Singapura, seu governo tem sido bastante estratégico no
uso dos trunfos de que dispõe para manter a economia e a autonomia. São
eles, acima de tudo, sua localização e seus 5,5 milhões de habitantes.
Contudo, apesar de sua particular aptidão para a vigilância por meio de
grandes volumes de dados, o programa Smart Nation está sendo observado
muito de perto por vários outros governos e desenvolvedores de políticas
como um modelo potencial a imitar. Se não a países inteiros, ele poderia
com certeza mostrar a outras cidades uma opção de como se tornarem mais
sustentáveis em termos ambientais, mais eficientes na economia, mais
interconectadas pela tecnologia e mais socialmente ordenadas.
No entanto, mesmo Singapura sendo bem-sucedida em criar a primeira
nação realmente digital, ela o fará ao custo de tudo e qualquer vestígio de
política democrática. Trata-se de uma iniciativa desenhada, assegurada e
imposta pelo governo. Um governo tecnocrático de engenheiros (o Google
aprovaria). Singapura tem “uma sociedade cuja liderança adota o éthos da
engenharia”, disse Vivian Balakrishnan. “Quase metade do nosso gabinete é
composta por engenheiros. O nosso primeiro-ministro é um matemático.
Estudou ciências da computação há quase quatro décadas em Cambridge e
ainda é capaz de codificar. Em outras palavras, sabemos o que estamos
fazendo.”31 Não é um programa que abre muito espaço para a divergência.
Singapura se mostra uma democracia representativa, embora na realidade
tenha se tornado o Estado de um só partido – o mesmo que está no poder
desde a independência, em 1965. Os vários meios de discussão pública
aberta e oposição vêm sendo sistemática e eficientemente eliminados. Em
2017, Singapura ocupava a posição número 151 no índice de liberdade de
imprensa mundial, o World Press Freedom Index, abaixo da Rússia e do
México. Desde 2013, qualquer website com mais de 50 mil visualizações por
mês é obrigado a solicitar uma licença (ao custo de 40 mil dólares) — que
pode ser recusada ou revogada se o governo fizer objeções ao conteúdo da
página.32 Caso uma publicação ou um jornalista publique qualquer coisa
considerada “tendência à insubordinação” — como “incitar a insatisfação
contra o governo” —, é passível de responder a processo penal com base no
Ato de Sedição e a encarar três anos de prisão, ou mais, se for reincidente.
O protesto civil e o agrupamento pacífico se tornaram quase impossíveis.
Qualquer reunião “relacionada a causas” — políticas — exige permissão da
polícia, sempre rejeitada. “A definição do que é tratado como agrupamento”,
relatou a organização de defesa dos direitos humanos Human Rights Watch,
“é ampla ao extremo e inclui até uma pessoa sozinha.”33 O ambiente político,
escreve a organização de direitos civis, “é sufocante”.
Como não existe nenhum direito constitucional à proteção da
privacidade para os cidadãos, nada impede que as autoridades usem todos
os dados pessoais coletados para maior monitoramento e controle social. De
acordo com o Departamento de Estado norte-americano, é exatamente o
que elas fazem. Agências de segurança e forças policiais, informa o
Departamento de Estado, têm “redes extensas dedicadas à coleta de
informação e à condução de vigilância, além de capacidade altamente
sofisticada de monitorar telefones, e-mails, mensagens de texto ou outras
comunicações digitais que se pretendem privadas”. Não precisam nem de
mandado. A vigilância se estende a postagens pessoais em redes sociais. Li
Shengwu, sobrinho do primeiro-ministro, foi levado aos tribunais em 2017
devido a uma postagem no Facebook que dizia que “o governo de Singapura
é muito litigioso e tem um sistema de justiça submisso”.34 Por sua vez,
Singapura tem uma forte legislação de proteção a dados, embora isso se
coadune com o compromisso do governo de incentivar os negócios e a
proteção contra fraude, em vez de corresponder a alguma preocupação com
a privacidade dos cidadãos.
A maioria dos singapurenses não parece insatisfeita com sua situação
política. Os cidadãos locais reelegeram o partido governante em 2015 (com
83 de 89 cadeiras e 70% dos votos). O país desfruta de extraordinário
sucesso econômico, com renda média per capita de mais de 50 mil dólares.35
Está cada vez mais interconectado, rico em dados e por eles orientado.
Todavia, o custo disso tem sido a liberdade política, a privacidade pessoal e
o arbítrio individual. Os cidadãos têm se despolitizado. Caso você se oponha
aos limites do que pode fazer — por exemplo, relações sexuais entre homens
são ilegais em Singapura —, não tem na prática nenhuma possibilidade de
expressar o seu desacordo ou de pressionar por mudanças. Faça barulho
demais, e você enfrentará uma multa ou o encarceramento.
A interconectividade, os dados pessoais e a “inteligência” estão
possibilitando e ampliando a repressão aos direitos dos cidadãos e
promovendo a despolitização. O filósofo iluminista Immanuel Kant escreveu
que a felicidade não era base adequada para um Estado; qualquer governo
que tentasse governar por ela necessariamente se tornaria autocrático.
“Ninguém pode me obrigar a ser feliz” escreveu Kant, visto que a felicidade é
subjetiva. “O governo edificado sobre o princípio da benevolência para com
as pessoas, como a do pai para com seus filhos, [seria] o pior despotismo
imaginável.”36
Em Singapura, nem todo o mundo está contente com a direção que a
cidade-estado vem tomando. Em meados de 2017, em uma demonstração
pública bastante incomum de discordância, o irmão e a irmã do primeiro-
ministro anunciaram que estavam deixando a ilha por período indefinido
em virtude de se sentirem ameaçados pelo “mau uso da posição ocupada
pelo irmão” na tentativa de cumprir uma agenda pessoal. Vigilância e
supervisão constante pelo Estado tinham sido, nas palavras deles,
fundamentais para a decisão de irem embora. “Sentimos a onipresença do
Grande Irmão”, escreveram. “Tememos a utilização dos órgãos do Estado
contra nós.” Todavia, em contraposição a isso, o próprio primeiro-ministro
acreditava que Singapura não avançava rápido o bastante. Ainda não
dispunha de um projeto de identificação biométrica e não havia pagamentos
eletrônicos suficientes sendo feitos via celulares. Lee Hsien Loong observava
com inveja a China, onde a revolução das plataformas acontecia em
velocidade arrebatadora. “A China foi o mais longe possível com os
pagamentos eletrônicos”, disse Lee a sua plateia no discurso do National Day
de 2017:
Na verdade, nas cidades chinesas mais importantes, o dinheiro se tornou
obsoleto. Mesmo cartões de débito e de crédito são raros. Todo o mundo
está usando o WeChat Pay ou o Alipay, tendo os aplicativos vinculados a
suas contas bancárias [...]. Podem-se comprar lanches de uma lojinha de
beira de estrada. [...] Pode-se pagar uma corrida de táxi com eles. Pode-se
até dar gorjeta ao garçom do restaurante. Então, ao descobrirem que
precisam usar dinheiro aqui, os turistas chineses perguntam: como
Singapura pode estar tão atrasada?
A questão não envolvia apenas os pagamentos eletrônicos; a China
liderava no desenvolvimento da inteligência artificial, do reconhecimento
facial, do e-commerce e da assistência médica digital.
Um longo caminho fora percorrido desde que a China começou a se
relacionar com a World Wide Web. Na década de 1990, quando havia o
consenso de que nenhum governo poderia controlar a internet e John Perry
Barlow podia declarar que “os governos do mundo industrial” não detinham
“nenhuma soberania” sobre o “ciberespaço”, o governo chinês estava entre os
mais ansiosos com a ameaça que tudo isso representava para seu sistema
político. Preocupou-se ainda mais após as ondas de protestos e revoluções
espalhadas pelo norte da África e o Oriente Médio durante o ano de 2011.
Como Vladimir Putin, os líderes chineses viram manifestantes empunhando
cartazes com agradecimentos ao Facebook e ouviram as declarações de
Hillary Clinton e outros sobre os efeitos inerentemente democratizantes da
internet. Acreditaram então que seu governo poderia ser o próximo. No
entanto, perto do fim da segunda década do século XXI, o governo chinês
percebeu que, tendo vontade — e disposição para tirar proveito do poder
das parcerias comerciais —, qualquer Estado poderia não apenas domar a
web em seu território como empregá-la para reforçar o autoritarismo e a
autocracia. De fato, a web confere aos estados potencial para criar uma
sociedade mais centralizada e controlada como o mundo nunca conheceu.
São muitos os aspectos desse controle e nenhum deles está completo, mas ao
longo de duas décadas o governo chinês construiu um arsenal que deixaria
qualquer Estado totalitário do século XX morrendo de inveja.

Quando os delegados que participariam do Décimo Nono Congresso


Nacional do Partido Comunista chegaram a Beijing em outubro de 2017, a
censura das comunicações públicas relacionadas ao evento estava em vigor
havia mais de um ano. No WeChat, aplicativo mensageiro chinês com quase
1 bilhão de usuários, as pessoas não conseguiam falar sobre o congresso, ou
sobre quem discursava nele, ou sobre os problemas que planejavam discutir.
Não que não pudessem escrever “Belt and Road Initiative” no aplicativo, em
referência ao ambicioso plano chinês de criar novas rotas comerciais com o
resto do mundo, ou “vazamento de informações”, por exemplo. Contudo, se
tentassem enviar as mensagens contendo essas expressões, elas jamais
chegariam ao destino pretendido. Simplesmente desapareceriam.
Sabemos disso graças à pesquisa realizada antes e durante o congresso
pelo Citizen Lab da Universidade de Toronto. Pesquisadores enviaram
mensagens para números de telefone diferentes — alguns registrados na
China, outros não — e observaram quais chegaram ao destinatário e quais
não.37 Assim conseguiram ver o que faltava na realidade. Não sabemos com
exatidão quem bloqueia as palavras e expressões-chave, apesar de toda
empresa de comunicação via internet na China empregar uma estrutura
própria de censores a fim de atender às orientações estritas do governo. Gary
King, Jennifer Pan e Margaret Roberts, especialistas em China de Harvard,
avaliaram que, no ano de 2013, cada provedor de conteúdo da internet
“empregava até mil censores” e que isso era fomentado por 20 a 50 mil
patrulheiros da internet ou wang jing.38 Tudo isso faz parte do Great Shield
[Grande Escudo], um programa de vigilância doméstico iniciado em 1998,
dois anos após a Declaração de Independência do Ciberespaço de John
Perry Barlow. Diferentemente de seus congêneres menos sofisticados do
século XX, no entanto, o programa chinês não visa censurar toda discussão
política. Críticas a políticos locais, alegações de corrupção de baixo nível e
queixas gerais contra questões políticas são consideradas úteis pelo Partido
(que as grava todas).39 Entretanto, a crítica aos líderes do Partido ou
qualquer sinal de ação política coordenada desencadeia a censura e a
intervenção policial. Complementando o Great Shield existe o Great
Firewall [Grande Barreira] a impedir que quem está na China acesse vários
websites e serviços internacionais (inclusive o Facebook, o YouTube e o New
York Times).
Às vezes, durante grandes eventos políticos como a remoção de limites
para mandatos presidenciais, a censura não basta, sobretudo se grandes
massas de pessoas começam a enviar e publicar postagens. Em função disso,
o governo chinês também se serve do que tem sido chamado de “50 Cent
Party” [Grupo dos 50 centavos] (devido à antiga crença de que se recebiam
50 centavos por postagem) para inundar as mídias sociais de comentários
positivos e distrair as pessoas das notícias políticas controversas. Gary King
e seus colegas calculam que o governo chinês e quem trabalha para ele
“fabricam e publicam cerca de 448 milhões de comentários em redes sociais
por ano”.40 A abordagem do governo ao controle da comunicação digital
como um todo é descrita por Margaret Roberts como caracterizada por
“medo, atrito e inundação”.41 A ideia é incutir medo ao selecionar alguns
ativistas ou manifestantes notórios e fazer deles exemplos, como um aviso
para os demais. Criar atrito tornando difícil e impraticável o acesso a
material censurado ou que se descubra o que aconteceu de verdade — por
exemplo, utilizar uma rede privada virtual (VPN) para ler sites estrangeiros.
E inundar com uma torrente de publicações adulatórias e irrelevantes os
eventos políticos a fim de afastar as pessoas da crítica ou da controvérsia.
Essencial para o sucesso da abordagem do governo chinês tem sido a
adesão de empresas comerciais de internet a sua causa. O governo consegue
isso por meio de uma espécie de método de “morde e assopra”. As empresas
de internet têm de impor censura, monitorar e repassar informações sobre
seus usuários e limitar-lhes a capacidade de ter acesso a “ideias erradas”.
Inclusive as plataformas de internet estrangeiras na China precisam
obedecer às mesmas regras. Em 2017, a Apple concordou em retirar mais de
600 aplicativos VPN de sua loja de aplicativos na China para que as pessoas
do país não pudessem utilizá-los com a finalidade de entrar em sites
internacionais. No começo de 2018, ela passou o controle de seus serviços
em nuvem na China para uma empresa local, concedendo ao governo chinês
acesso aos dados na nuvem da Apple daquele país.42 Algumas das maiores
empresas de internet chinesas têm demonstrado boa vontade e entusiasmo
para colaborar com o governo, sabendo que sua prosperidade futura pode
depender disso. A Alibaba, a Amazon chinesa, associou-se ao governo local
para prestação de serviços de saúde, por exemplo, utilizando blockchains
para proteger dados de pacientes. Faz isso via sua plataforma de assistência
médica, a Ali Health.43 Já o Baidu, o Google da China, trabalha com a
segurança aeroportuária chinesa para usar software de reconhecimento
facial e identificar a tripulação das companhias aéreas hoje e passageiros no
futuro.44 Existe até uma delegacia de polícia no campus da Alibaba para que
os empregados possam denunciar possíveis crimes diretamente à polícia e
conceder aos investigadores acesso a dados pessoais para auxiliar nas
apurações.45
Duas das maiores empresas de internet na China foram ainda mais longe
e estão ajudando o governo a criar o maior experimento de vigilância estatal
e de controle social jamais testado — o já famoso Social Credit System, ou
sistema de crédito social. Os “requisitos inerentes” a esse projeto, estabeleceu
o governo na proposta original em 2014, “estão instituindo a ideia de uma
cultura da honestidade, propagando essa cultura e as nossas virtudes
tradicionais”. Para isso, empregará “o encorajamento para que se preserve a
confiança, bem como a repressão contra a quebra de confiança como
mecanismos de incentivo”. O objetivo, afirmou o governo, era elevar “a
mentalidade da honestidade e os níveis de crédito da sociedade inteira”.46
Tendo fixado essa meta, o governo resolveu deixar a cargo das empresas
comerciais de que maneira pôr o projeto em prática — ver como ele
funcionaria antes que o governo o encampasse e, se fosse bem-sucedido, o
tornasse obrigatório em 2020. A Alibaba, por meio de seu braço financeiro
denominado Ant Financial, lançou a primeira iniciativa, o Sesame Credit,
em 2015. A Tencent, dona do WeChat e do serviço de mensagem
instantânea QQ, criou e disponibilizou iniciativa semelhante no começo de
2018, apesar de ter voltado atrás bem depressa para desenvolvê-la atendendo
a um pedido do governo.47
O Social Credit System pretende ser um programa de crédito financeiro
em um país que nunca teve nada parecido com os perfis de crédito dos
Estados Unidos. Contudo, na prática, ele confere pontos a cada cidadão, em
uma escala de 350 a 950, de acordo com quão obediente e bem-comportado
ele é. Rachel Botsman detalha a sistemática no livro Who Can You Trust?
[Em quem se pode confiar?]: “O Sesame Credit é basicamente uma versão
gameficada de dados em grandes volumes dos métodos de vigilância
utilizados pelo Partido Comunista”. A pontuação é calculada com base em
tudo, desde o que você compra até como passa o tempo e quem são os seus
amigos — tudo registrado graças à onipresença da plataforma Alibaba e seu
serviço de pagamento via celular, o Alipay. Os seus pontos têm
consequências tanto virtuais quanto no mundo real. Mara Hvistendahl, que
viveu uma década na China e retornou para visitá-la em 2017, descobriu que
a pontuação do Sesame Credit agora se estendia por enormes áreas da vida
pública.48 Conseguir um empréstimo, alugar um apartamento, alugar uma
bike, comprar uma passagem aérea, encontrar um quarto de hotel, tudo isso
pode ser afetado pela sua pontuação. Se você tem poucos pontos, se o seu
nome consta da “Lista de Pessoas Desonestas”, você se torna um membro da
classe digital mais desfavorecida. Fugir dela, como melhorar uma pontuação
ruim, pode ser doloroso e uma experiência árdua — mais penosa ainda se os
seus amigos o desertarem com medo de prejudicarem a própria pontuação.
As empresas e, por extensão, o governo chinês podem fazer isso porque a
vida digital dos cidadãos do país — como acontece com a maioria de nós —
está se tornando sinônimo de vida real.
O Great Firewall da China, o Great Shield, o 50 Cent Party e o emergente
Social Credit System, todos se justificam pela busca da estabilidade social e
para que o Partido Comunista possa manter o controle. Eles promoveram
ampla expansão dos poderes do Estado e, por extensão, de algumas grandes
plataformas comerciais como Alibaba e Tencent. Também inscreveram o
povo chinês em seu programa de controle social digital, criando não apenas
cidadãos paranoicos — obrigados agora a se preocuparem o tempo todo
com seu crédito social —, mas uma nação de sentinelas e informantes, todos
a observarem e registrarem consciente e inconscientemente uns aos outros
por meio da vida diária digitalmente habilitada. As oportunidades de
dissensão na China, já escassas, estão se tornando inexistentes. A exceção
está onde a dissensão ou a desaprovação é sancionada pelo Estado — na
delação de mau comportamento ou de conduta imprópria, por exemplo.
Lendo a proposta para o Social Credit System, percebe-se que o Estado
chinês enxerga os cidadãos quase como ratos em uma caixa de Skinner, a
qual — graças às novas alavancas digitais — consegue direcionar e controlar
por meio do condicionamento operante. O Estado “lançará atividades em
massa para juízo moral, análise de conduta e avaliação de ocorrências em
que houver falta de honestidade e o crédito não tiver sido enfatizado, e
conduzirá o povo rumo à honestidade e à preservação da confiança, à
moralidade e à manutenção da cortesia”. Singapura não está no mesmo
estágio que a China, mas admira a liderança tecnológica chinesa e caminha
para a completa consciência da informação. Na Índia, enquanto a política
democrática permanece aberta, forte e bastante contestada, com o Aadhaar
foram criados os meios pelos quais o Estado pode reunir controle político e
social bem maior sobre seus cidadãos.

Em janeiro de 2018, o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi,


encontrou-se com o líder dos filipinos, Rodrigo Duterte, em Nova Deli.
Entre outras coisas, eles discutiram a possibilidade de levarem o Aadhaar
para as Filipinas. Duterte demonstrou interesse em importar o sistema para
ajudá-lo a “lutar contra a corrupção”, e Modi “assegurou ao presidente
filipino toda ajuda que estivesse a seu alcance para implantar os números de
identificação únicos para os cidadãos da nação do sudeste asiático”.49 Além
das Filipinas, noticiou-se que 20 outros países estavam interessados no
Aadhaar.50 Indonésia, Malásia, Sri Lanka e Singapura investigavam se o
Aadhaar funcionaria em um ambiente que lhes fosse doméstico.51
A Tailândia introduziu a verificação biométrica para operações bancárias
por dispositivos móveis e, a partir de dezembro de 2017, exigiu-a para os
cartões SIM dos celulares. “O objetivo não é rastrear usuários”, disse o
regulador, “mas incrementar a segurança, sobretudo em caso de pagamentos
por dispositivos móveis.”52 Esses movimentos em direção à identificação
digital única e à governança de plataforma são, em parte, defensivos. Os
países envolvidos demonstram preocupação com a possibilidade de as
plataformas tecnológicas transnacionais tomarem o controle dos dados dos
cidadãos, caso eles não o façam primeiro. Ao mesmo tempo, não podem
deixar de ver a questão como uma grande oportunidade de aperfeiçoar a
eficiência governamental e arrastar os cidadãos para a economia digital.
Não explicitam se também lhes interessa o aumento do poder do Estado.
Singapura ganha prêmios internacionais e louvores por suas inovações
como “cidade inteligente”. Venceu três prêmios SmartCities do Le Monde em
2017, um deles pelo “sistema de transporte público singular”.53 Existe até um
prêmio Lee Kuan Yew World City Prize desde 2010, por “facilitar o
compartilhamento de melhores práticas em soluções urbanas facilmente
replicáveis em outras cidades”.54 Conquanto nem toda cidade adote a mesma
abordagem de Singapura, há um consenso crescente de que as cidades
inteligentes são o futuro, e que Singapura é uma das mais importantes, com
as quais várias outras aprendem. A cobertura dada pela mídia de sua
iniciativa Smart Nation é invariavelmente positiva, acrítica e revela grande
fascínio. Uma reportagem de 2017 da BBC concentrou-se na eficiência e
conveniência da tecnologia e seu potencial para salvar vidas. A única crítica
mencionada foi de que o projeto “precisava ser acelerado”.55 Quem critica a
orientação tomada por Singapura se concentra na ameaça à privacidade
pessoal. Questionamentos do tipo “O projeto ‘Singapore’s city brain’
[Cérebro da cidade de Singapura] é inovador — mas e quanto à
privacidade?” são comuns. A privacidade de fato é claramente ameaçada —
se não abolida — pelo projeto, sobretudo em sua forma final. Mas poucos
falam sobre o poder que ele concederá ao Estado. A partir do momento em
que Singapura dispuser de um mecanismo de identidade biométrica que
mantenha relação amigável com os dados dos cidadãos, como acontece com
o Aadhaar, e estiver conectado com os sensores oniscientes espalhados pela
cidade e residências, então o Estado poderá saber tudo o que seus habitantes
fazem o tempo todo. Tal qual um deus pansófico. A distinção originalmente
feita por Aristóteles entre a esfera pública da atividade política e a esfera
privada do lar será extinta.
Reimaginar o Estado como plataforma digital representa uma ameaça
ainda maior à democracia liberal que imaginar plataformas tecnológicas
comerciais como Google e Amazon assumindo as funções do Estado — em
especial se o Estado como plataforma colaborar muito de perto com
entidades comerciais, como acontece na China com empresas como Alibaba
e Tencent. A partir do momento em que a relação primordial do Estado com
seus cidadãos se der pela plataforma digital, seus poderes executivos terão
um incremento incomensurável, ao passo que os dos cidadãos — sobretudo
no que diz respeito a sua autonomia e arbítrio — serão diminuídos. Ao
cidadão “dadificado”, bem como à criança “dadificada”, pode-se dizer o que
eles têm ou não permissão de fazer, têm ou não permissão de ter. Podem ser
impelidos, estimulados, incentivados e gamificados. O poder sobre a
identidade digital confere ao governo maior controle — ou a sensação de
maior controle — dos cidadãos: sobre seus movimentos, sobre a assistência
social que recebem, sobre os serviços a que têm acesso e sobre seus direitos.
Esse poder executivo aumentado pode ser utilizado positivamente, na
distribuição de benefícios de forma mais ampla, como para assegurar
assistência médica universal ou conceder acesso ao crédito. De igual modo,
o poder pode ser exercido de maneira abusiva: para negar acessos, reprimir
a dissensão, segregar grupos. De um jeito ou de outro, o poder é mais
centralizado, mais fácil de operar e menos transparente.
A definição e a “dadificação” dos cidadãos por parte do Estado permitem
e incentivam a discriminação oficial, e uma meritocracia dura e rancorosa.
Ai daqueles para quem o Estado confere direitos limitados, ou direito algum.
Os imigrantes e outros não cidadãos estão sujeitos a sofrerem mais no
Estado “dadificado”, carentes de qualquer histórico de dados, qualquer
reputação adquirida ou qualquer crédito social. Serão não pessoas. Todavia,
mesmo quem tem identidade digital mais rica está sujeito à discriminação
oficial. As autoridades discriminarão com base em históricos de dados —
aqueles que tiverem cometido um crime no passado estarão mais suscetíveis
à atenção da polícia; quem acumular pontos negativos na carteira de
habilitação será detido com maior frequência; quem tiver um histórico de
crédito pobre encontrará mais dificuldade para conseguir empréstimos.
A discriminação será justificada, argumentarão as autoridades, porque será
baseada em dados. Na verdade, talvez não haja alternativa a não ser
discriminar se o algoritmo mandar fazê-lo. No entanto, como quando se diz
que o passado define o nosso futuro, a “dadificação” dos cidadãos solidificará
desigualdades existentes. Levará a uma “forma particularmente cruel de
desigualdade”, nas palavras do sociólogo Ralf Dahrendorf, uma vez que se
libertar dela será bem mais difícil.56 Também haverá injustiça impulsionada
por dados. O jornal indiano Scroll relatou uma série de injustiças desse tipo
em seu Projeto Identidade. Uma delas conta a história de Santosh Devi, mãe
de dois filhos jovens e pastora de cabras em Rajasthan. Por acidente, seu
cartão Aadhaar foi associado ao nome errado. As autoridades locais se
disseram incapazes de mudá-lo, significando que, embora a família estivesse
abaixo da linha da pobreza, a matriarca não podia comprar grãos
subsidiados nem alimentar adequadamente seus filhos.57
O cidadão digitalmente rastreado não tem liberdade para protestar, opor-
se ou discordar como seus antepassados fariam em situação análoga. Em
alguns países, como Singapura e China, as possibilidades de oposição e
discordância já são muito restritas e se tornarão tanto legal quanto
socialmente inaceitáveis se os sistemas de crédito social tomarem o controle.
Em países mais democráticos, à medida que o povo se conscientizar de que
as autoridades e as empresas privadas coletam o tempo todo informações
pessoais e as acrescentam ao perfil de cada indivíduo, e que esse perfil
determinará suas chances de futuro, muitos tratarão de moderar suas
atividades como lhes for mais conveniente. Saber que suas atividades
políticas estão sendo monitoradas e gravadas também afetará seu
comportamento. Durante protestos na Ucrânia em 2014, por exemplo,
manifestantes em Kiev receberam uma mensagem de texto das autoridades:
“Caro assinante”, a mensagem dizia, “você está registrado como participante
de um distúrbio de massa.” Sabemos quem você é e o vigiaremos, era o que
diziam as autoridades aos manifestantes.
A partir do momento em que todos os cidadãos e serviços estiverem
digitalmente vinculados e centralizados, haverá menos restrições pesando
sobre o executivo. A separação cuidadosa dos poderes, que o filósofo
Montesquieu considerava essencial para a proteção contra o despotismo,
que os autores da Constituição norte-americana passaram tanto tempo
discutindo e aperfeiçoando, fica comprometida e ameaçada com a
centralização dos dados de cidadãos pelo Estado. O uso de dados dos
cidadãos para fazer previsões, como no policiamento preventivo,
compromete o poder do judiciário de limitar a autoridade do executivo e a
aplicação da lei. A política fica paralisada pela automação e pelos algoritmos.
Ou como os estudiosos Jathan Sadowski e Frank Pasquale escrevem sobre a
sociedade em cidades inteligentes: “O corpo político se mumifica em uma
espécie muito diferente de organização social: uma máquina monstruosa
como um leviatã”.58 Tampouco os jornalistas são capazes de manter o Estado
imputável. A democracia de vigilância impossibilita que ofereçam
anonimato ou proteção a suas fontes.
No fim de 2016, o Times of India voltou a Tembhli e conversou com
Ranjana Sonawane, a primeira pessoa a receber um número de Aadhaar nos
idos de setembro de 2010. O jornal perguntou a Sonawane como sua nova
identidade digital e o acesso a bancos a tinham ajudado desde então. “Estou
encontrando dificuldade para sobreviver”, respondeu ela. “Sinto que todos os
governos usam o pobre só para fazer política, mas na verdade trabalham
para os ricos. Conseguir trabalho diário ficou difícil porque os fazendeiros
dizem que não estão recebendo dinheiro dos bancos e não podem nos dar
trabalho. Eu queria ir para a feira de Sarangkheda montar uma loja de
brinquedos, mas não consegui porque me falta dinheiro para viajar.”59 Em
Tembhli, o programa de identidade única ainda não tornara a vida mais
simples nem abundante, sem falar no que ele estava fazendo com a
democracia.

1 V. BYATNAL, Amruta. Tembhli becomes first Aadhar village in India. The Hindu, 29 September

2010.
2 GERDEMAN, Dina. India’s ambitious national identification program. Working Knowledge. Harvard

Business School, 20 April 2012.


3 BHATIA, Amiya; BHABHA, Jacqueline. India’s Aadhaar Scheme and the Promise of Inclusive Social

Protection. Oxford Development Studies, 45:1, p. 64-79, 2017.


4 PRAKASH, Pranesh. Aadhaar marks a fundamental shift in citizen-state relations: from “We the

People” to “We the Government”. Hindustan Times, 3 April 2017.


5 JONNALAGADDA, Kiran. A rant on Aadhaar. Kārana, Medium, 6 December 2016.

6 KHAIRA, Rachna. Rs 500, 10 minutes, and you have access to billion Aadhaar details. The Tribune, 4

January 2018.
7 GUPTA, Shekhar. God, please save India from our upper class Aadhaarophobics. ThePrint, 9 January

2018.
8 MERRY, Sally Engle. Measuring the World: Indicators, Human Rights, and Global Governance.

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9 SWAIN, Harriet. The suspect Romeo. Entrevista com Timothy Garton Ash. Times Higher

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10 RAMAKUMAR, R. What the UID conceals. The Hindu, 21 October 2010.

11 NILEKANI, Nandan. Ideas for India’s future. TED Talk, May 2009. V. também NILEKANI, Nandan.

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12 NILEKANI, Nandan. Unique Biometric ID: Creating a Large Scale Digital Ecosystem Using the

Aadhaar Experience. South Asia Institute Mahindra lecture, Harvard University, 3 November 2014.
13 DIXIT, Pranav. India’s national ID program may be turning the country into a surveillance state.

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14 BHARDWAJ, Anjali; JOHRI, Amrita. Aadhaar: when the poor get left out. Hindu Centre for Politics

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15 YADAV, Anumeha. In Rajasthan, there is “unrest at the ration shop” because of error-ridden

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16 RAO, Menaka. Why Aadhaar is prompting HIV positive people to drop out of treatment

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17 Extraído do website da empresa TrustID. Disponível em: www.trustid.in/about-us. Acesso em: 1

June 2018; Matrimonial frauds — Beware! TrustID blog, 24 June 2016.


18 MEHTA, Pratap Bhanu. Big Brother is winning. Indian Express, 8 February 2017.

19 RAMANUJAN, Adarsh. Right to privacy: SC judgment raises serious questions about Aadhaar.

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20 V. SINHA, Amber. Should Aadhaar be mandatory? Deccan Herald, 9 December 2017.

21 PTI. There’s an orchestrated campaign to malign Aadhaar: Nandan Nilekani. Indian Express, 11

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22 ET Now video. Disponível no Facebook em:
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23 SRIRAM, R. View: What privacy setback? Aadhaar may have just sealed Modi’s victory in 2019.

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24 V. POON, Linda. Singapore, City of Sensors. CityLab, 21 April 2017.

25 HAMBLEN, Matt. Singapore’s “city brain” project is groundbreaking — but what about privacy?

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26 SOUPPOURIS, Aaron. Singapore is striving to be the world’s first “smart city”. Engadget, 3 November

2016.
27 Singapore Housing and Development Board. My Smart HDB Home@ Yuhua. Vídeos disponíveis

no YouTube.
28 V. EN, Siau Ming. Tele-rehab option for physiotherapy to be rolled out at institutions. Today

(Singapore), 5 May 2017.


29 PM Lee Hsien Loong, discurso do National Day Rally, 20 August 2017, Institute of Technical

Education College Central. Transcrição e vídeo disponíveis em National Day Rally 2017. Prime
Minister’s Office website. Disponível em: http://www.pmo.gov.sg/national-day-rally-2017. Acesso
em: 1 Jun. 2018.
30 HARRIS, Shane. The Social Laboratory. Foreign Policy, 29 July 2014.

31 HO, Ezra. Smart Subjects for a Smart Nation? Governing (Smart) mentalities in Singapore. Urban

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32 Freedom of the Press 2014 — Singapore. Freedom House.
33 Singapore: Events of 2017. World Report 2018, Human Rights Watch.
34 TOH, Elgin. AGC initiates contempt of court case against Li Shengwu. Straits Times, 14 November

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35 Lee Kuan Yew’s Singapore: an astonishing record. The Economist, 22 March 2015.

36 GUYER, Paul. Kant on Freedom, Law, and Happiness. Cambridge: Cambridge University Press,

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37 CRETE-NISHIHATA, Masashi; RUAN, Lotus; DALEK, Jakub; KNOCKEL, Jeffrey. Managing the

message: what you can’t say about the 19th National Communist Party Congress on WeChat.
Citizen Lab, 6 November 2017.
38 KING, Gary; PAN, Jennifer; ROBERTS, Margaret E. How Censorship in China Allows Government

Criticism but Silences Collective Expression. American Political Science Review, 107:2, p. 326-43,
2013.
39 LORENTZEN, Peter. China’s Strategic Censorship. American Journal of Political Science, 58:2, p.

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40 KING, Gary; PAN, Jennifer; ROBERTS, Margaret E. How the Chinese Government Fabricates Social

Media Posts for Strategic Distraction, Not Engaged Argument. American Political Science Review,
111:3, p. 484-501, 2017.
41 ROBERTS, Margaret. Fear, Friction, and Flooding: Methods of Online Information Control.

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China Economic and Security Review Commission: Hearing on China’s Information Controls,
Global Media Influence, and Cyber Warfare Strategy. 4 May 2017.
42 SHIH-HUNG, Lo. How Apple is paving the way to a “cloud dictatorship” in China. Global Voices, 10

February 2018.
43 Alibaba Partners Chinese Govt to Trial Blockchain in Healthcare. CCN, 22 August 2017.

44 JING, Meng. Baidu offers facial recognition technology to help Beijing airport streamline boarding,

traffic. South China Morning Post, 24 August 2017.


45 LIN, Liza; CHIN, Josh. China’s tech giants have a second job: helping Beijing spy on its people. Wall

Street Journal, 30 November 2017.


46 State Council Notice Concerning Issuance of the Planning Outline for the Construction of a Social

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June 2014.
47 XIAO, Eva. Tencent’s new credit system to use payments, social data. Tech in Asia, 31 January 2018.

48 HVISTENDAHL, Mara. Inside China’s vast new experiment in social ranking. Wired, 14 December

2017.
49 DH News Service. Philippines shows interest in Aadhaar. Deccan Herand, 25 January 2018.

50 PK, Jayadevan. India’s latest export: 20 countries interested in Aadhaar, India Stack. Factor Daily,

10 January 2018.
51 SRINIVASAN, Meera. Sri Lanka is keen to introduce an Aadhaar-like initiative. The Hindu, 21

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52 Reuters staff. Thailand to roll out biometric checks for SIM cards nationwide. Reuters, 6 November

2017.
53 The winners of the “Le Monde” Smart-Cities 2017 Global Innovation Awards. Le Monde, 31 May

2017.
54 About the Prize. Lee Kuan Yew World City Prize website. Disponível em:
https://www.leekuanyewworldcityprize.com.sg/about-the-prize. Acesso em: 10 fev. 2022, 12:38:29.
55 VASWANI, Karishma. Tomorrow’s Cities: Singapore’s plans for a smart nation. BBC News, 21 April

2017.
56 DAHRENDORF, Ralf. The rise and fall of meritocracy. Project Syndicate, 13 April 2005.

57 YADAV, Anumeha. In Rajasthan, there is “unrest at the ration shop” because of error-ridden

Aahaar. Scroll.in, 2 April 2016.


58 SADOWSKI, Jathan; PASQUALE, Frank. The Spectrum of Control: A Social Theory of the Smart City.

First Monday, 20:7, 2015 (grifo do autor).


59 JADHAV, Radheshyam. First Indian to get Aadhaar card & her village are truly cashless. Times of

India, 29 December 2016.


Democracia re-hackeada

Sobre montanha imensa,


Escarpada e íngreme, ergue-se a Verdade, e Para a alcançar, há que a rodear e rodear.
John Donne, Satire III

Só o mais arrogante dos políticos viajaria até Atenas, lugar em que a


democracia foi inventada, para relançar a democracia europeia. Emmanuel
Macron era a própria definição de arrogância. No entanto, não apenas o
recém-eleito presidente francês escolheu Atenas, como optou por fazer seu
discurso ao ar livre, à noite, tendo a Acrópole esplendidamente iluminada
como pano de fundo. Fora ali, disse Macron a sua plateia em setembro de
2017, “que se resolvera correr o risco da democracia; o risco que põe o
governo do povo nas mãos do povo na convicção de que a lei respeitável é
mais bem decidida pelo maior número possível de pessoas, não o menor”.1
Tendo acusado os colegas europeus de permitirem à democracia definhar, o
presidente os desafiou a “redescobrirem o significado de soberania,
democracia e cultura”. A fim de lhes refrescar a memória, Macron destacou o
legado de Péricles — o “primeiro cidadão de Atenas” —, mencionou André
Malraux, venerado escritor francês de A condição humana,2 e manifestou
sua concordância com o filósofo alemão Hegel. Poucos políticos seriam
capazes de se sair bem com uma retórica tão imponente, mas Macron foi
visto por muitos — ele, inclusive — como o potencial salvador da
democracia liberal depois das convulsões dos últimos anos. Logo
apresentaria “um itinerário para a construção do futuro da nossa Europa na
próxima década”. Os cidadãos seriam essenciais para essa renovação
democrática, integrados ao processo de reforma por meio de toda uma série
de “convenções democráticas”. Para todos os que estavam preocupados com
a guinada autoritária da política e desesperados por uma nova narrativa,
Macron oferecia esperança.
Seis meses mais tarde, quando Macron apresentou esses planos de
renovação democrática, os reformistas ficaram decepcionados a ponto de se
desesperarem. David Van Reybrouck, autor belga de Against Elections: The
Case for Democracy [Contra as eleições: em defesa da democracia],3 e
Claudia Chwalisz, autora de The People’s Verdict [O veredito do povo],
condenaram os planos por considerá-los “arcaicos, elitistas e alheios aos
últimos desenvolvimentos de inovação democrática”. Basicamente,
escreveram esses autores, “equivaleriam a Guy Verhofstadt e Daniel Cohn-
Bendit filosofando com Jacques Delors enquanto tomam conhaque sobre o
que os europeus desejam”.4 O que propusera Macron para desiludir esses e
outros reformistas fora, em essência, um questionário on-line aliado a um
conjunto de reuniões na prefeitura local. Rebatizadas de “consultas aos
cidadãos”, no lugar de “convenções democráticas”, que soava mais ambicioso,
as descobertas a partir do questionário e das reuniões seriam transmitidas
para Bruxelas a fim de que fossem digeridas e consideradas. O processo todo
— inevitavelmente dominado por um grupo sem dúvida não representativo
de pessoas, como indicavam suas novas estruturas — teria caráter apenas
consultivo, sem implicar nenhum compromisso.
Não obstante, ao menos Emmanuel Macron reconheceu o tamanho do
desafio, mesmo que sua visão de renovação democrática carecesse de
substância e ele lhe arruinasse a execução. Outros líderes democráticos ou
não reconheceram a extensão da crise, ou estavam distraídos demais por
divisões internas para pensarem em reforma. No Reino Unido, a primeira-
ministra Theresa May tentava desesperadamente imaginar o que significava
o Brexit, ao mesmo tempo em que procurava esconder as fissuras cada vez
mais largas em seu partido. Nos Estados Unidos, oficiais do governo e o
Congresso nem imaginavam o que Donald Trump faria naquele dia, muito
menos no ano seguinte. Na Alemanha, Itália e Espanha, partidos políticos
tradicionais entravam em colapso e novas alternativas populistas abriam
caminho rumo ao poder.
Esses e outros governos democráticos ignoravam evidências crescentes de
desencanto com a maneira como a política era praticada e a democracia
funcionava. Desconsideravam, para citar um exemplo, uma pesquisa atrás
da outra demonstrando altos níveis de insatisfação pública. “As populações
ao redor do mundo”, descobriu o centro de pesquisas Pew em uma análise
global das atitudes públicas em 2017, “via de regra estão infelizes com o
funcionamento do sistema político de seu país”, e essa infelicidade geral
inclui muitos que vivem em democracias.5 Mais da metade dos norte-
americanos se declarou infeliz com sua democracia, o mesmo caso da
maioria no sul da Europa, no Oriente Médio e na América Latina. Ainda
mais alarmante era o grau de insatisfação democrática entre os jovens.
A pesquisa empreendida por Yascha Mounk, que leciona sobre teoria
política em Harvard, e Roberto Stefan Foa, da Universidade de Melbourne,
descobriu que, em democracias maduras, eram os jovens que apresentavam
menor probabilidade de acreditar ser essencial viver em uma democracia, e
que se mostravam mais abertos às formas autoritárias de governo. Nos
Estados Unidos, no Reino Unido, nos Países Baixos, na Austrália e na Nova
Zelândia, quatro em dez millenials, ou menos ainda, disseram-se
comprometidos com viver em uma democracia — proporção muito menor
que das gerações anteriores. Esse ceticismo acerca da democracia se
estendia, descobriu a pesquisa de Foa e Mounk, para as instituições liberais
— com cidadãos “cada vez mais insatisfeitos com os partidos políticos
estabelecidos, as instituições representativas e os direitos das minorias”.
Acompanhando essa insatisfação havia um desejo crescente em diversos
países de um líder forte “que não precise se incomodar com eleições”.6
Os governos democráticos, em sua maioria, também tinham ignorado as
exigências de ondas de manifestantes mundo afora entre 2011 e 2013,
inflamadas pelo que chamavam de “democracia existente de fato”.
Manifestantes do movimento “Occupy” em centenas de cidades espalhadas
por inúmeros países protestaram contra a corrupção e a deturpação de
políticas democráticas por elites financeiras e pela classe política. Paolo
Gerbaudo, um sociólogo político do King’s College London, compareceu a
protestos nos Estados Unidos, na Espanha, no Egito, na Grécia e em outros
lugares e conversou com diversos manifestantes. Descobriu que o objetivo
deles não era subverter a democracia, mas resgatá-la. “Chamam de
democracia. mas não é”, dizia um dos slogans vistos por ele na Espanha.
“Democracia, onde está você?”, lia-se em uma faixa na Place de la
Republique de Paris.7 Como estudioso de ponta da sociedade em rede,
Manuel Castells escreveu que esses movimentos “não se opõem ao princípio
da democracia representativa, mas denunciam a prática da democracia
como ela se apresenta hoje”.8 Por isso os manifestantes promoviam
experiências com maneiras alternativas pelas quais envolver pessoas em
deliberações políticas e chegar a decisões coletivas. Alguns poderiam ser
mais bem descritos como não convencionais, como um gravador humano a
dizer “repita depois de mim”. Outros recorreram a modelos experimentados
primeiro na Atenas antiga, enquanto outros ainda tiram partido da
tecnologia mais recente. Os protestos Occupy acabaram se esvaindo, mas não
porque governos democráticos resolveram instituir reformas radicais.
Grande parte da raiva e da frustração permaneceu latente, sendo canalizada
para novos partidos e causas populistas.
A desilusão crescente do público com a democracia foi vaticinada e
espelhada por um conjunto cada vez maior de críticas intelectuais e
convocações à reforma radical. O que estamos testemunhando, escreveu o
professor de teoria política Simon Tormey em 2015, é “o fim da política
representativa”, na qual as pessoas estão ignorando e subvertendo estruturas
e convenções estabelecidas. No lugar delas, estão optando pela política
imediata ou “subterrânea” das tempestades no Twitter, dos flash mobs, dos
protestos cibernéticos, dos “buy-cotts”9 e da ação direta.10 As pessoas não
esperam as eleições; elas agem. John Keane, estudioso australiano que
investigou as lutas pela democracia desde o século sexto a.C. até o século
XXI d.D., acredita que “o declínio da política de representação vem se
aproximando há uma geração”.11 Para David Van Reybrouck, escritor e
historiador belga desiludido com a proposta de reforma para a União
Europeia feita por Emmanuel Macron, as democracias se tornaram
obcecadas por eleições de uma maneira doentia. “Eleições livres e justas”,
escreve ele, “transformaram-se em um kit ‘faça você mesmo’ de democracia
— a ser montado por quem a recebe com ou sem o auxílio das instruções
incluídas no pacote”.12 Elas deveriam ser descartadas e, em seu lugar, sugere
ele, deveríamos retornar ao princípio central da democracia ateniense,
escolhendo por “sorteio”.
Enquanto alguns aplaudem o distanciamento da expressão política
convencional rumo à política da rua, para outros essa mudança justifica que
se siga em direção diferente e que a autoridade de especialistas seja investida
de mais poder. Jason Brennan, cientista político da Universidade de
Georgetown, propõe o renascimento da epistocracia, ou o governo exercido
por especialistas políticos.13 Enquanto estudiosos travam discussões
acaloradas sobre o estado da política, e ainda mais clamorosas sobre o que
poderia ou deveria vir em seguida, existe um consenso crescente de que a
democracia passa por um momento crítico, um ponto de inflexão, uma crise
existencial. Como o eminente filósofo polonês, já falecido, Zygmunt
Bauman disse a El País em 2016: “Poderíamos descrever o que acontece no
momento como uma crise da democracia. [...] As pessoas não acreditam
mais no sistema democrático porque ele não cumpre suas promessas”.14
Sejamos justos, alguns que ocupam posição de autoridade se sentiam eles
próprios desanimados com a disfuncionalidade democrática e clamavam
por reforma política. No Reino Unido, o ex-líder do Partido Liberal
Democrata, Nick Clegg, condicionou a participação de seu partido no
governo de coalizão de 2010 a um referendo sobre a reforma eleitoral (que
ele perdeu). No parlamento europeu, Guy Verhofstadt, ex-primeiro-ministro
da Bélgica, pressionou por reformas na União Europeia e por uma Europa
mais federativa, parecida com os Estados Unidos, apesar de até esses
esforços serem com frequência rejeitados por supostamente atenderem a
interesses próprios ou serem tecnocráticos. Na maior parte das vezes,
encontrar um político bem-sucedido que desejasse uma reforma de alto a
baixo era tão raro como achar uma agulha no palheiro. Em vez de expandir
a democracia participativa na Europa após o fim da Guerra Fria,
argumentou o escritor e jornalista Edward Luce, quem estava no poder
empreendeu um esforço consciente no sentido de administrar e controlar as
massas. “A oicofobia15 é real”, escreveu Luce no seu livro perspicaz de 2017,
The Retreat of Western Liberalism.16 “O sentimento das elites tem se tornado
cada vez mais cético em relação à democracia desde a queda do Muro de
Berlim.” Foram necessários o Brexit e Trump, e os choques eleitorais
subsequentes, para provocar reflexão e reavaliação bem mais amplas de se a
democracia estava funcionando como deveria.
Mesmo assim, alguns dos que se dedicavam a avaliar a saúde da
democracia concluíram que o ano de 2016, em especial a eleição de Donald
Trump à presidência, foi anômalo. Para Steven Levitsky e Daniel Ziblatt,
dois professores de Harvard que escreveram sobre “como morrem as
democracias” à sombra da vitória de Trump, a democracia nos Estados
Unidos corria riscos, mas, em termos internacionais, o país era um ponto
fora da curva. Dessa forma, previsões mais amplas da morte iminente da
democracia são prematuras, acreditam eles. “Antes da eleição de Donald
Trump”, escrevem, “afirmações sobre uma recessão democrática global eram
exageradas.” Como prova, apontam para a persistência dos governos
democráticos em grande parte do mundo e dizem que, “para cada Hungria,
Turquia e Venezuela” que resvala para trás, “existe uma Colômbia, um Sri
Lanka ou uma Tunísia” que segue em sentido contrário. Logo, reza o
argumento, afirmar que a democracia está em crise global depois da eleição
norte-americana é simplesmente estender os defeitos e psicoses políticos
norte-americanos a um palco global. Olhando para vários indicadores
democráticos, Levitsky e Ziblatt parecem ter razão. De acordo com o Índice
Lexical da Democracia Eleitoral de 2016, mais de dois terços dos países do
mundo tiveram eleições contestadas.17 Um estudo separado, o Global State
of Democracy 2017, concluiu que “a democracia como um todo fez
progressos consideráveis nos últimos quarenta anos”.18 Ainda assim, há
nítido contraste entre esses estudos e outros como o Economist Intelligence
Unit’s 2017 Democracy Index, que “registra o pior declínio na democracia
global em anos”. Necessariamente, cada aferição depende de critérios
diferentes e diversos intervalos de tempo. O mundo é um lugar imenso e é
difícil fazer afirmações globais que abranjam todo o planeta.
No entanto, existe uma omissão flagrante na tese de Levitsky e Ziblatt. Há
muitas lições da história e avaliações das restrições formais e informais na
presidência dos Estados Unidos, mas — desconsiderando as referências e
alguns tuítes de Donald Trump — é como se a internet, as mídias sociais e as
plataformas tecnológicas não tivessem acontecido. Como a empresa de
seguros de vida que calcula a expectativa de vida de alguém com base em
sua dieta, sem levar em consideração que a pessoa vive em uma zona de
guerra. A omissão de Levitsky e Ziblatt também é cometida pela maioria dos
governos democráticos. Para esses governos, a revolução nas comunicações
é algo que se pode ignorar em grande medida — em se tratando de política.
Claro, eles têm consciência de sua enorme importância econômica. Sim,
reconhecem que essa revolução está mudando o modo pelo qual as pessoas
se relacionam umas com as outras em sociedade. Mas e em termos políticos?
Trata-se de um meio de envolvimento público e uma maneira pela qual
tornar os serviços governamentais mais “e”-ficientes, mas isso justifica uma
transformação na política democrática?

Ignorar ou negar a extensão do distúrbio político produzido pela revolução


das comunicações carrega enormes riscos democráticos. Desconhece, por
exemplo, até que ponto essa revolução já causou danos nos pesos e
contrapesos democráticos. Até que ponto a função de “espantalho” da
imprensa — o fundamento da reportagem local independente que se
pretendia que mantivesse a honestidade das autoridades — desmantelou-se:
quando regiões ou cidades inteiras não contam com nenhuma mídia
independente comprometida, é difícil dizer que a responsabilização
democrática está funcionando como deveria. Até que ponto os canais por
meio dos quais uma comunidade consegue falar coletivamente com os que
ocupam posição de autoridade e com seus representantes eleitos estão em
declínio terminal: os moradores da Grenfell Tower podiam blogar e tuitar
tanto quanto quisessem, mas sem um veículo de notícias local e
independente não houve autoridade que lhes desse ouvidos. Até que ponto
uma esfera pública caracterizada por determinadas regras implícitas —
respeito, moderação, civilidade e anseio pela verdade — foi destruída:
quando o presidente dos Estados Unidos trola outros políticos e
celebridades, insulta publicamente seus chefes de Estado via Twitter e
destrói a legitimidade do judiciário (“esse pretenso juiz”), empurra as
fronteiras da esfera pública muito além dos limites que tinham no século
XX. Se as pessoas perderam a confiança nas principais fontes de informação
e comunicação públicas, se lhes falta uma voz coletiva para falarem com o
poder e se elas perderam o respeito pela legitimidade de quem ocupa
posição de autoridade, fica difícil não concluir que a democracia está em
estado frágil.
A democracia liberal tem como premissa a ideia de que o cidadão conta
com a proteção do Estado e — na maior parte das vezes — pode ter uma
vida livre da intromissão desse Estado. Em termos norte-americanos, a
Quarta Emenda explicita isso e estabelece “o direito do povo de ter
assegurada sua individualidade, moradia, papéis e efeitos, contra buscas e
apreensões despropositadas”. No entanto, em nosso mundo inundado pelos
dados, a menos que seja explícita e concreta a proteção a esses dados, o
Estado pode saber — ou descobrir — quase tudo a respeito de seus cidadãos.
Além do mais, seus cidadãos talvez nunca descubram quando o Estado os
está observando.
Governos autoritários com certeza não negam a dimensão em que a
revolução das comunicações e as plataformas tecnológicas têm subvertido a
política. O Partido Comunista da China foi o primeiro a reconhecer os
perigos da internet para seu poder, convertendo-os depois em vantagem
para si. Outros regimes autoritários seguiram o exemplo. O governo
teocrático iraniano, irritado com o uso do Twitter nas eleições de 2009 e
com a Primavera Árabe em 2011, anunciou que construiria uma internet
nacional, a “halal”. Apesar da zombaria daqueles que viam a ideia como o
equivalente ao menino holandês que enfiou o dedo para deter o vazamento
de um dique, no fim de 2017 o Irã tinha construído sua National Internet
Network, ou NIN, controlada pelo Estado. Todos os 500 websites presentes
na NIN passaram pelo escrutínio cuidadoso do Estado. O governo se
certificou de que o acesso aos sites domésticos aprovados era mais rápido e
mais barato que aos websites estrangeiros (muitos dos quais — como
Twitter, Facebook e YouTube — estavam bloqueados).19 Também estruturou
a NIN de modo que as pessoas fossem direcionadas até as notícias e as
informações sancionadas pelo governo, e para longe de serviços ou
informações reprovadas. Mas o maior aprimoramento do poder do regime
iraniano viria da fase seguinte da NIN, quando, como no caso do Aadhaar
na Índia, seria exigido que todo iraniano utilizasse um identificador único e
exclusivo para entrar on-line. O presidente Rouhani, como Xi Jinping na
China, estava chegando à conclusão de que a web, uma vez domesticada,
poderia dar ao Estado controle ainda maior sobre os cidadãos do que jamais
tivera. A Rússia enveredou por rota semelhante, ao introduzir uma lei em
2015 exigindo que qualquer dado pessoal sobre cidadãos russos fosse
armazenado em servidores localizados dentro das fronteiras russas. Podia
justificar o movimento em direção à “soberania dos dados” afirmando que
não tinha como proteger os dados de seus cidadãos fora da Rússia. Na
prática, todavia, como faltava aos russos proteção de dados contra o Estado,
o governo e os serviços de segurança estavam livres para espionar tudo o
que o povo fazia. A China aprovou lei similar em junho de 2017, obrigando
todas as empresas a manterem os dados coletados na China dentro da
China, a menos que houvesse autorizado de forma explícita por parte dos
reguladores.
Governos autoritários sem dinheiro ou capacidade para nacionalizar a
rede adotaram métodos alternativos para policiar e suprimir a dissensão
digital, para distorcer debates e limitar a liberdade on-line. No Sudão
posterior a 2011, à medida que cresciam as críticas ao governo nas redes
sociais, o Partido do Congresso Nacional estabeleceu uma Cyber Jihadist
Unit (CJU) para empreender “operações de defesa on-line”20 domésticas. Os
esforços da CJU se intensificaram depois das revoltas do ano seguinte, com o
rastreamento de discussões on-line, a disseminação deliberada de
informações falsas e o descrédito dos oponentes. Depois que soldados
sudaneses estupraram mais de 200 mulheres e meninas no norte de Darfur
em novembro de 2014, por exemplo, a CJU lançou campanhas de
desinformação e tentou difamar quem relatara a atrocidade.21 Em 2013, o
governo vietnamita em Hanói admitiu que seguira a China ao empregar
quase mil “formadores de opinião pública” on-line para divulgar
propaganda governamental positiva.22 Na Turquia, depois dos protestos do
parque Gezi em 2013, o governo montou uma equipe com a força de 600
integrantes para atuar nas redes sociais promovendo o governo e atacando
os oponentes. À semelhança do exército clandestino on-line de Vladimir
Putin, usaram uma mistura de distração, intimidação e calúnia pessoal.
Parte disso só foi descoberta depois que um grupo hacker, o RedHack,
divulgou 57.623 e-mails trocados entre as figuras mais antigas do governo,
remontando ao ano 2000.23 Ironicamente, a tecnologia comercial, feita para
possibilitar a publicidade na web, provou-se útil sobretudo para os governos
autoritários. Concedeu-lhes a capacidade de rastrear cidadãos à medida que
se moviam e interagiam on-line, e passavam por diferentes plataformas e
dispositivos. Combinando essa funcionalidade com a localização por dados,
o governo passou a deter capacidade ainda maior de reprimir protestos,
marginalizar a oposição e limitar a dissensão.
Enquanto governos democráticos negam qualquer grau de disrupção,
ativistas políticos engenhosos e partidos insurgentes têm se mantido
ocupados tirando vantagem das novas liberdades políticas que as
plataformas conferem. “Graças a Deus pela internet, graças a Deus pelas
mídias sociais, graças a Deus pelo Facebook”, disse Matteo Salvini, líder do
partido Lega da extrema-direita italiana, após a eleição de 2018 no país.
O partido populista de Salvini acabara de aturdir os observadores
conquistando quase 18% dos votos nacionais, quatro pontos mais que o
Forza Italia de Silvio Berlusconi. Entretanto, ainda estava 12 pontos abaixo
do M5S, ou o Movimento Cinco Estrelas, partido nascido diretamente da
net e que passara a maior parte da vida dentro dela. O Five Star usava uma
combinação de serviços de mídias sociais predominantes como o Facebook,
mais sua plataforma própria feita sob medida — apropriadamente
denominada Rousseau — para organizar, para inspecionar membros, lançar
votações internas e levantar fundos. Desde seu lançamento em 2009, por
meio do blogue de Beppe Grillo, foi capaz de se alavancar até chegar à
condição de partido mais popular da Itália em 2018. Ou considere o
Podemos espanhol, um partido inspirado no Five Star. Foi criado em 2014
por um grupo de acadêmicos espanhóis encabeçado pelo cientista político
Pablo Iglesias e seu rabo de cavalo, com base no movimento de protesto 15-
M ou Indignados. Em três meses obteve 8% dos votos nas eleições europeias
e cinco cadeiras no parlamento europeu.24 Um ano depois de ter sido
formado, o partido era o segundo maior na Espanha em termos de afiliação.
Em toda a Europa, partidos e campanhas que empenharam dinheiro e
esforços em novos métodos de campanha digital viram um extraordinário
retorno do investimento. Em Reykjavik, depois do colapso financeiro
devastador da Islândia na esteira do ano de 2008, no início apenas um
partido levou as plataformas políticas a sério. E esse partido começou como
uma piada. O Best Party (denominado Melhor Partido, em inglês, para que
o imaginassem de fato a melhor opção) foi fundado em 2009 em protesto
contra o caos provocado por outros políticos. Diferentemente dos demais
partidos, soube aproveitar a recém-criada plataforma Shadow City a fim de
promover suas políticas — “com base no melhor de todas as outras políticas”,
dizia — incluindo toalhas gratuitas para piscinas públicas, a exibição de um
urso polar no zoológico e voos grátis para as mulheres.25 Seu líder, Jón
Gnarr, era comediante, como Beppe Grillo da Itália. Então, para espanto da
maioria das pessoas, Gnarr se elegeu prefeito de Reykjavik em 2010. Em
2016, a campanha oficial Leave para o referendo do Brexit se declarou a
primeira “do Reino Unido a investir quase todo o nosso dinheiro em
comunicação digital e em seguida tê-la em parte controlada por pessoas cujo
trabalho normal dizia respeito a coisas como informação quântica”. Apesar
de ser impossível quantificar que diferença fazia o conhecimento de
informação quântica, a aposta rendeu bons frutos: para assombro geral, os
britânicos votaram 52% contra 48% a favor da saída da União Europeia. Na
campanha das eleições gerais do ano seguinte, o Partido Trabalhista
Britânico ignorou a mídia tradicional e concentrou a atenção nas mídias
sociais. Com a ajuda do grupo ativista popular Momentum, aumentou sua
fatia de votos de 20% a pouco mais que isso no início da campanha para
40% na eleição propriamente dita, seis semanas mais tarde. Até Emmanuel
Macron fundou um novo partido do zero com o benefício dos grandes
volumes de dados e a segmentação inteligente dos eleitores. No ano anterior
ao da eleição de 2017, o líder francês promoveu um grande exercício de
escuta em toda a França tentando ouvir o país inteiro — “La Grande
Marche”. O benefício duplo da iniciativa foi descobrir com quais questões
políticas as pessoas mais se importavam e coletar dados para a campanha
presidencial subsequente. Por sua vez, Donald Trump, que a princípio
descartara a campanha orientada por dados como “uma tolice digital”,
passou a acreditar que ela foi crucial para sua vitória em 2016.26 Tão crucial
que contratou seu diretor digital de 2016, Brad Parscale, como
administrador da campanha de 2020.
No entanto, longe das eleições, governos democráticos continuaram a
tratar a revolução das comunicações como se fosse marginal em relação à
maneira como a política funciona, e a ruptura digital emergente como algo
para os titãs tecnológicos solucionarem. No Reino Unido, o governo
publicou um Estatuto Digital em 2018 utilizando os mesmos clichês de
sempre, que poderiam ter sido escritos em 1998. “A internet é uma força
poderosa para o bem”, assegurava. “Serve à humanidade, propaga ideias e
aperfeiçoa a liberdade e a oportunidade mundo afora.” Desconsiderando o
fato de ser politicamente anêmico, o Estatuto conferia autoridade à
“internet” em si, apresentando uma perspectiva determinista inútil que a
maioria das pessoas ultrapassara depois de 2011. No Fórum Econômico
Mundial de 2018 em Davos, a primeira-ministra britânica Theresa May fez
um longo discurso sobre o poder da tecnologia, mas enxergando problemas
no mundo on-line de ordem social, não política. Como tal, podiam ser
solucionados pela regulamentação visando a segurança e pressionando-se as
plataformas para que interviessem. “Essas empresas contam com alguns dos
melhores cérebros do mundo”, disse May a uma sala meio vazia em Davos.
“Precisam concentrar o que têm de mais brilhante e melhor na satisfação
dessas responsabilidades sociais fundamentais”.27
Nos Estados Unidos, inexistiam sinais de que o presidente Trump
ansiasse pelos efeitos democráticos perturbadores da tecnologia das
comunicações sobre a política. Antes, como ele mesmo declarou quando
reuniu 18 líderes da tecnologia na Casa Branca em meados de 2017, os
progressos tecnológicos eram vistos simplesmente como uma forma pela
qual encolher o governo, tornar seus serviços mais eficientes e promover a
economia.28 Para o próprio Trump, o principal benefício da revolução das
comunicações parecia ser a capacidade de tuitar. Enquanto isso, a política
continuava a migrar para o mundo on-line e cresciam cada vez mais a
disparidade entre as oportunidades para as pessoas participarem e
representarem a si mesmas digitalmente, e os limites da participação e
representação nas instituições democráticas.

Não que tivesse havido falta de experimentos globais na condução da


democracia de maneira diferente na era digital. Houve e continua a haver
literalmente milhares de iniciativas com o intuito de mudar o modo pelo
qual as pessoas têm novas ideias políticas, constroem a agenda política,
participam da operacionalização da política, debatem a legislação, gastam o
dinheiro público, monitoram os representantes e votam. Algumas existem
há muito tempo e envolvem milhões de pessoas — por exemplo, as
plataformas para apresentar petições e de ações coletivas, como a Avaaz, que
foi lançada nos idos de 2007 e ostenta 46 milhões de membros. Outras
iniciativas envolvem a construção de ferramentas cívicas práticas que
facilitem aos cidadãos se envolverem com autoridades e seus representantes
políticos. O MySociety, um empreendimento social sem fins lucrativos
iniciado no Reino Unido, desenvolveu sites como TheyWorkForYou,
WhatDoTheyKnow e EveryPolitician a fim de viabilizar que cidadãos,
jornalistas e militantes políticos descubram mais sobre seus representantes
eleitos. E existe um conjunto crescente de projetos nacionais incipientes com
o objetivo de incluir pessoas na formação de políticas e legislação. Exemplos:
o Parlement & Citoyens na França; o LABHacker da Câmara dos Deputados
do Brasil,29 e a plataforma Rahvaalgatus na Estônia. Eles são
complementados por ampla gama de ferramentas eleitorais incrivelmente
úteis que oferecem informação básica do tipo onde e como votar, e por um
exército crescente de voluntários da democracia digital (por exemplo,
pequenos grupos da sociedade civil como o Democracy Club no Reino
Unido, administrado com um orçamento muito reduzido por um punhado
de coordenadores comprometidos). No entanto, algo caracteriza quase todos
esses experimentos, por mais bem-intencionados e inovadores que sejam: a
maior parte ainda é marginal para a política tradicional. Muitos começaram
(de propósito) fora dos canais políticos convencionais, mas assim
permanecem desde então. Isso não significa dizer que não causem impacto
— muitos o fazem, mas ainda precisam mudar o modo como a política
democrática é praticada. As pessoas ainda marcam um X em um pedaço de
papel que colocam dentro de uma urna eleitoral. Membros do Parlamento
britânico continuam entrando por acessos separados para votar. O dinheiro
público continua sendo alocado por governos centrais e sendo objeto de
votação por parlamentares. No entanto, isso não se aplica a todos os
lugares.30 Cidades e também países estão testando novos métodos
democráticos. Há inclusive alguns correndo certos riscos.
Imagine deixar crianças em idade escolar lhe dizerem como gastar 10
milhões de euros. Uma irresponsabilidade? A prefeita de Paris não pensou
assim. Em 2017, Anne Hidalgo permitiu que os alunos do primário e do
secundário votassem em como o orçamento escolar da cidade deveria ser
alocado. Quase 70 mil aproveitaram a oportunidade para votar, “com
mobilização de 82% das escolas elementares e 55% das faculdades”, de
acordo com Pauline Véron, responsável pelo programa.31 Paris, juntamente
de outras cidades incluindo Madri, Barcelona e Reykjavik, vem
experimentando o “orçamento participativo” desde 2015. Cinco por cento
do orçamento de investimento da cidade, ou cerca de 100 milhões de euros
ao ano, são alocados por meio desse processo.32 Fora da Europa, o
envolvimento do público na alocação de orçamento de cidades remonta a
muito antes de 2015. Porto Alegre, cidade na região sul do Brasil, começou a
usar uma versão pré-digital do orçamento participativo na década de 1980 e
desde então mais de 120 cidades brasileiras o adotaram.33 As ferramentas
digitais têm facilitado a participação e tornado muito mais claros os
resultados. Em Reykjavik, quase 60% dos moradores têm usado a plataforma
Better Reykjavik desde 2010 para sugerir ideias sobre o que a cidade deve
fazer, e milhares têm participado da decisão de como gastar 3 milhões de
euros do orçamento anual da cidade por meio do Better Neighbourhoods.34
Desde 2017 eles também têm utilizado essa ferramenta para promover a
colaboração na política educacional.
Contudo, fora do orçamento participativo e para além das inovações de
startups e partidos políticos emergentes, os experimentos em reinvenção da
democracia têm sido, na maior parte das vezes, periféricos e tangenciais em
relação à operacionalização das políticas democráticas tradicionais. Por que
isso acontece? Primeiro, parece que muitos políticos em exercício de
mandato ainda precisam ser convencidos de que o sistema atual não cumpre
o que se espera. Por que instituir grandes reformas se o sistema atual ainda
funciona? Pode ser pouco convincente, mas esse argumento serve no caso de
uma mudança incremental, não para uma reviravolta completa. E, mesmo se
uma quantidade crescente de jovens não estiver convencida da eficácia do
sistema, a maioria ainda crê na democracia — mesmo que mais no ideal do
que na realidade.35 Existem ainda razões histórias compreensíveis e
justificáveis pelas quais os representantes democráticos anseiam por se
lançarem atrás de uma democratização. Como demonstram as histórias das
revoluções francesa e russa, o ataque contra a democracia vigorosa pode
levar ao caos e à autocracia com a mesma facilidade que levaria a uma
sociedade livre, aberta e heterogênea. Em 1791, Maximilien Robespierre se
manifestou com paixão em favor dos direitos dos cidadãos e contra a pena
de morte. “Livres são os países em que os direitos do homem são respeitados
e, por conseguinte, as leis são justas”, disse ele à assembleia constituinte.
Onde os países a empregam, a pena de morte “prova que o legislador nada é
senão um mestre a comandar escravos e a puni-los sem piedade conforme
seus caprichos”. Três anos mais tarde, como membro importante do Comitê
de Segurança Pública, Robespierre se pôs a eliminar inimigos políticos em
um reino de terror, descrevendo o terror como “menos um princípio
distinto que uma consequência natural do preceito geral da democracia”. Os
efeitos da maior democratização dependem de circunstâncias e contextos.
A democracia, escreve Bernard Crick no livro Em defesa da política, “não
estabiliza apenas os regimes livres; ela fortalece aqueles em que não há
liberdade e tem possibilitado o totalitarismo”.36
Assim, com cautela e reticentes, os governos democráticos têm banhado
os pés, em vez de mergulharem de vez, nas reformas. Em teoria isso pode
soar sensato, mas na prática tem sido pior que não promover nenhuma
experiência. Testes com tokenismo, projetos vacilantes e execução ruim têm
levado a participação limitada, baixa consciência e maior cinismo público.
Experimentos governamentais com reformulação da democracia têm
sofrido com três problemas específicos, talvez mais bem descritos como: a
“lei Justin Bieber”, o “paradoxo do atravessador” e o “dilema do Campo dos
Sonhos”.
A lei Justin Bieber determina que, se um governo assume um
compromisso superficial com a participação pública, o público participará
superficialmente. O site de petições da Casa Branca é um grande exemplo
disso. Em setembro de 2011, a administração Obama lançou “We the
People” [Nós, o Povo], um site de petições on-line com a pretensão de ser “a
sua voz na Casa Branca”. Se uma petição angariasse assinaturas suficientes
em um período de trinta dias após ser publicada, a Casa Branca prometia
responder. Embora o número mínimo de assinaturas fosse a princípio fixado
em 5 mil, um mês depois ele foi elevado para 25 mil e, em 18 meses, para
100 mil.37 Se o objetivo era baixar em proporção as petições a que a Casa
Branca precisava responder, o sucesso alcançado foi fantástico, reduzindo de
44% para 2%.38 Mesmo esse pequeno número provocou pouca mudança no
governo. O Pew Research Center examinou cada petição apresentada entre
2011 e 2016 que ultrapassou o número de 150 assinaturas — quase 5 mil no
total — e descobriu que apenas uma “serviu de instrumento para a criação
de um ato legislativo”, e outra contribuiu para mudar a posição do presidente
Obama em uma questão. A quinta petição mais popular durante esses cinco
anos, tendo recebido 273.968 assinaturas, foi para “deportar Justin Bieber e
revogar seu green card”.39 Por isso, a denominação “lei Justin Bieber”.
O “paradoxo do atravessador” foi concebido por dois estudiosos em
Viena no ano de 2005. Harald Mahrer e Robert Krimmer tentavam
descobrir por que tão poucas propostas de e-democracia chegavam ao
parlamento ou ao governo austríaco e por que mesmo a que chegavam
avançavam com lentidão bem maior que a outros. Depois de entrevistarem
mais de 200 parlamentares e examinarem declarações públicas acerca de
projetos digitais, descobriram que “a grande maioria dos políticos austríacos
se opõe ativamente à e-democracia”, sobretudo por enxergarem-na como
uma ameaça direta a si próprios. Como lhes disse um político: “No fim,
trata-se de uma questão de poder. Mais participação política dos cidadãos
leva a uma perda de poder para os membros da elite política”. Isso fez que os
autores do estudo concluíssem pela existência de um “paradoxo do
atravessador”: “Os mesmos parlamentares que seriam responsáveis por
apresentar novas formas de participação dos cidadãos na tomada de decisão
política se opõem explícita e implicitamente a essas reformas”.40 Do mesmo
modo que, caso lhes dessem a oportunidade, seria pouco provável que os
perus votassem a favor do Natal, também é pouco provável que os políticos
votem pela própria depreciação.
No filme Campos dos Sonhos de 1989, Kevin Costner faz o papel de um
agricultor de Iowa que ouve uma voz incorpórea lhe dizer: “Se você
construir, ele virá”. Depois de ignorá-la por algum tempo, Costner chega à
conclusão de que entendeu o significado daquelas palavras e então derruba
seu milharal para construir um campo de beisebol. Apesar da localização
isolada da fazenda, e de os amigos o chamarem de louco, como não podia
deixar de ser, ele — ou melhor, eles — de fato vêm. Inovadores democráticos
nem sempre têm tanta sorte. No Brasil, a Câmara dos Deputados construiu
um portal de e-Democracia41 para redigir a minuta de projetos de lei de
forma colaborativa com o público. Apesar dos 37 mil brasileiros que se
registraram no site e apresentaram mais de mil sugestões, apenas 6% dos
deputados as aproveitaram. No Reino Unido, entre 2010 e 2013, o governo
promoveu uma iniciativa on-line para deixar as pessoas comentarem as
propostas de lei. Três projetos de lei passaram pela iniciativa; nenhum deles
obteve muitos novos insumos do público. Um deles recebeu comentários de
apenas 23 organizações. Construíram, mas as pessoas não vieram. Esse é o
dilema eterno quando se redesenha a democracia: não saber se as pessoas
participarão. Ou se apenas um grupo sem representatividade participará. Ou
se todo o mundo participará, e o sistema ficará sobrecarregado. Se você não
construir nada, claro, não corre esse risco. Portanto, a opção mais fácil é não
construir coisa nenhuma.
Existe ainda uma forte propensão à ansiedade relacionada a uma maior
democratização, e a saber se dar mais poder ao povo necessariamente leva a
uma democracia mais vigorosa ou a uma melhor tomada de decisões.
Conferem voz a essa ansiedade, de forma convincente, Christopher Achen e
Larry Bartels em Democracy for Realists [Democracia para realistas], de
2016. Tendo levado quase duas décadas em preparação, o livro apresenta
evidências copiosas para demonstrar que a “teoria folclórica da democracia”,
em que eleitores racionais tomam decisões embasadas, não se sustenta
diante de um exame minucioso. A maioria dos cidadãos ignora a política na
maior parte das vezes. Quando lhe dão atenção, nas eleições, têm a
tendência de basear o voto não em uma análise retrospectiva fundamentada
do desempenho do partido no poder, mas em uma combinação do que está
acontecendo no momento da eleição (por irrelevante que seja), de lealdades
do passado e de identidade social. Os autores ficaram chocados com a
influência de uma série de ataques de tubarões em Nova Jersey na eleição
presidencial norte-americana de 1916. Caso seja conferida aos cidadãos voz
mais ativa fora das eleições, por exemplo, por meio de iniciativas e
referendos, as evidências sugerem que, seguindo interesses próprios e
míopes ou influenciados por pessoal de campanha, eles fazem julgamentos
igualmente irracionais e desinformados.
Isso fica evidente sobretudo quando se pede aos cidadãos que votem em
questões estritas e complicadas sobre as quais têm conhecimento limitado,
como a fluoração da água ou vacinações múltiplas — mas a reação também
costuma ser vigorosa quando os cidadãos têm a oportunidade de decidir se
gostariam de pagar mais ou menos imposto. Mesmo quando eles dizem que
valorizam muito os serviços públicos, e estando a segurança pública
envolvida, se a consulta for por votação, eles tendem a votar nos serviços
mais baratos. Achen e Bartels avaliam, por exemplo, que as reduções nos
serviços de proteção a incêndio na Califórnia na década de 1980, em
consequência de reforma tributária popular de 1978, impediram que o
serviço de proteção agisse contra ou soubesse lidar com o terrível incêndio
de 1991, responsável pela destruição de mais de 3 mil casas. “A democracia
direta”, escrevem os autores, “invalidara o julgamento dos profissionais do
fogo com resultados terríveis.”42
Achen e Bartels seguem uma longa linhagem de pessoas que, desde o
advento da democracia moderna, têm questionado a eficácia ou sabedoria
da democracia direta, em especial na forma mais pura — desde Do espírito
das leis,43 de Montesquieu, em que o barão francês defendia a ideia de que
qualquer sistema equilibrado de governo precisa ter contrapesos ao poder —
incluindo restrições ao poder da maioria — até James Madison, que
perguntava em Os artigos federalistas44 se, em momentos críticos, não havia
a necessidade de haver “um grupo de cidadãos moderados e respeitáveis, a
fim de refrear uma trajetória equivocada e suspender o golpe projetado pelo
povo contra si próprio, até que a razão, a justiça e a verdade possam
recuperar sua autoridade sobre a mente pública”, e chegando a Alexis de
Tocqueville, que, embora muito enamorado da democracia norte-
americana, deixou clara sua ansiedade acerca dos perigos da tirania da
maioria. Ela “exerce uma autoridade real prodigiosa e um poder de opinião
quase imenso; não existe nenhum obstáculo capaz de lhe impedir ou mesmo
retardar o progresso, de modo a fazê-la atentar para as queixas daqueles aos
quais esmaga em seu caminho”.45
Todavia, como os próprios Achen e Bartels reconhecem, esses não são
argumentos contra a reforma em si, mas contra a reforma ruim. Eles
demonstram o perigo do empoderamento pelo empoderamento em si, ou da
reforma baseada em teorias falsas ou equivocadas. Também são argumentos
fortes contra aqueles que presumem com leviandade que a internet e as
mídias sociais são inerentemente democratizantes, sem questionar se isso é
verdade ou o que significa de fato. Se há uma coisa que aprendemos com a
década passada, em especial com a história de países como China e
Singapura, é que nem a internet nem as redes sociais são inerentemente
democratizantes. Ambas são ferramentas de comunicação dotadas de um
poder enorme, capazes de transformar a política. Como elas transformam a
política depende do contexto, de como são estruturadas e usadas. Um
governo autoritário é capaz de usar a tecnologia para reprimir a dissensão.
Um governo democrático pode assegurar que a tecnologia a possibilite e até
a incentive. Não existe nenhum futuro via plataforma que seja
tecnologicamente predeterminado para as sociedades democráticas, não
importa o que digam os sábios do Vale do Silício. Tampouco é inevitável que
a tecnologia inteligente e os dados pessoais aprimorem o poder do Estado.
Ao menos por enquanto, o futuro está à disposição para quem quiser
agarrar. Depende do que cada sociedade democrática e seus representantes
decidirem fazer.
Até agora, muitos têm simplesmente aceitado que plataformas
tecnológicas como Google e Facebook, construídas para executar tarefas
específicas como fazer buscas na web ou promover a conexão com amigos,
tenham passado a desempenhar muitas outras atividades — incluindo
funções cívicas fundamentais como embasar o voto das pessoas, divulgar
notícias e fazer que as pessoas tenham voz pública. Entretanto, confiar
funções democráticas assim tão vitais a essas organizações parece bem
estranho. Como diz o próprio Mark Zuckerberg: “Caso alguém me
perguntasse, quando comecei o Facebook, se uma das coisas fundamentais
em que eu precisaria trabalhar hoje seria impedir que governantes
interferissem nas eleições uns dos outros, minha resposta, se
conversássemos em 2004 no meu dormitório, seria ‘de jeito nenhum’”.46 Ele
tem razão. Para parafrasear a eloquência de Zuck, é uma “ideia muito louca”
pensar que as plataformas de comunicação deveriam necessariamente suprir
as carências da democracia. Elas funcionam bem no caso de alguns serviços
públicos — como comunicações de emergência logo após desastres naturais
—, mas são terríveis em outros — como distinguir entre notícias confiáveis e
menos confiáveis. Além disso tudo, por causa do modelo de negócio que
adotam, estar sujeitas à manipulação lhes é uma característica intrínseca.
Por mais que se esforcem para servir às necessidades da democracia, sempre
se dobrarão diante desse problema.
Por essa razão é estranho ver líderes democráticos e elaboradores de
políticas dizendo às plataformas que assumam responsabilidades. As gigantes
tecnológicas deveriam, já disse Theresa May mais de uma vez, “fazer mais no
sentido de encararem suas responsabilidades”.47 Não só elas estão mal
equipadas para fazer alguma coisa nesse sentido, como o perigo, para a
democracia liberal, é que o façam: que Google, Amazon, Apple, Facebook e
outras plataformas comerciais de fato assumam mais responsabilidade por
construírem a esfera pública, por oferecerem serviços públicos, por
ajudarem o governo a trabalhar com maior eficiência. Muitos cidadãos
talvez se descubram então vivendo em uma democracia de plataforma que
visa o lucro. Alternativamente, alguns governos democráticos seguirão em
sentido contrário e tentarão controle muito maior do nosso mundo virtual,
criando plataformas estatais próprias, elaboradas a partir de grandes
volumes de dados e identidades digitais únicas como o Aadhaar, vinculadas
a uma enorme teia abarcando todo o governo e serviços comerciais. Se
forem bem-sucedidos, terão enorme incremento e centralização de seu
poder, e os cidadãos se descobrirão vivendo em democracias de vigilância
ou pansóficas, mais bem descritas como autoritárias em tudo, exceto no
nome.
Cabe às próprias democracias — aos cidadãos, à sociedade civil e aos
representantes eleitos — reinventar a democracia para a era digital. Fazer
isso com consciência das mudanças forjadas pela revolução das
comunicações, mas tentando converter essas mudanças em vantagem para a
democracia, em vez de permitir que seja por elas pervertida. Descobrir
como a tecnologia e as plataformas podem conferir mais poder às pessoas —
não poder pelo poder, mas poder para que possam participar de maneira
construtiva, para que consigam ser ouvidas, para que sejam capazes de
mudar de fato as coisas. Existem países e comunidades em que os cidadãos e
a sociedade civil tomaram a frente, e os representantes eleitos foram atrás,
em que a tecnologia tem sido utilizada para potencializar a participação e
fortalecer o processo democrático, incluindo deliberação e conciliação, sem
ingenuidade em relação aos perigos. Isso começa a nos permitir uma
suposição de para onde a política democrática poderia ir em seguida.

No ano de 2012, deitado em um leito de hospital, Chia-liang Kao decidiu


criar uma “alternativa ao governo” (no sentido de produzir outra versão dos
serviços digitais existentes).48 Frustrado com a falta de transparência e
comprometimento de Taiwan, ele e um grupo de autoproclamados netizens
construíram nova opção on-line para o site do governo, mais aberta e
funcional. Como montes de outras iniciativas tecnológicas cívicas, o g0v.tw,
como foi chamado o site, poderia ter permanecido funcional, mas marginal,
não fosse por uma crise política dois anos mais tarde que o alçou ao
mainstream. Em março de 2014, com raiva de um acordo comercial
proposto, uma centena de estudantes ocuparam o hall principal da
Assembleia Legislativa e se recusaram a deixar o local. Outros milhares
afluíram em seguida para o prédio do parlamento em apoio a esse
“Sunflower Movement”. A ocupação pacífica, que continuou por mais de três
semanas, distinguiu-se pelo uso impressionante da tecnologia das
comunicações. Os manifestantes transmitiam suas atividades on-line para
pessoas em toda Taiwan. Isso talvez não fosse possível sem o auxílio de
Audrey Tang.
Se existisse algo comparável a uma rockstar da tecnologia de um governo,
Audrey Tang ocuparia o posto. De diversos modos, ela é descrita como
“programadora brilhante”, “gênio da programação” e “hacker genial”, cujas
palestras sobre tecnologia são recebidas com grande entusiasmo. Nascida
em 1981, Tang aprendeu a programar sozinha, abandonou a escola aos 14
anos, lançou sua primeira start-up pouco depois, trabalhou com a Apple e
outras empresas de tecnologia, mudou de gênero, aposentou-se aos 33 anos
e se tornou uma hacker cívica. Quando o protesto do Sunflower Movement
começou, Tang conseguiu ajudar os manifestantes a transmitirem o evento
ao vivo pelo YouTube. Sem a transmissão, as notícias da mídia tradicional
dando conta da invasão promovida por “criminosos” violentos teriam
parecido críveis. Com o fim dos protestos (que tinham atingido seus
objetivos), o governo convidou Tang para ajudá-lo a mudar a maneira como
ele trabalhava. Em 2016, eles a chamaram para se juntar à equipe. Ela refere
a si própria como ministra do hackeamento e ainda se declara anarquista.
Fascina em Tang e outros que têm atuado em Taiwan o modo como a
sociedade pode usar a tecnologia a serviço da democracia, em vez de
permitir que ela a molde. Eles viram onde havia problemas com o
funcionamento da democracia e descobriram como consertá-los. Veja o caso
do Uber, por exemplo. Como a maior parte dos governos mundo afora,
Taiwan não sabia o que fazer quando o serviço de táxi por plataforma
chegou, em 2013. Deveriam tratá-lo como os serviços já existentes? Os
motoristas do Uber seriam considerados empregados ou autônomos?
O Uber deveria ser expulso? Em vez de submeter a questão ao processo
normal de construção de políticas, o governo resolveu fazer uma consulta
aberta, utilizando para isso uma plataforma de deliberação chamada pol.is.
Cerca de 4.500 cidadãos participaram ao longo de quatro semanas,
acabando por combinar cerca de sete recomendações (tais como não
permitir que o Uber cobrasse mais barato que a tarifa padrão dos táxis). Em
seguida o governo se reuniu com a empresa para discutir as recomendações
em um evento transmitido ao vivo. Ao contrário do que aconteceu na maior
parte dos outros países do mundo, o Uber aceitou quase tudo.49 “Vejo o
Uber como uma epidemia da mente”, disse Tang. “Não se negocia com um
vírus. Só o que se pode fazer é inocular as pessoas — por meio de
deliberações.”50
De igual modo, Tang reconheceu que, apesar de a tecnologia ter
conferido voz pública a muita gente, governos democráticos ainda precisam
encontrar novas maneiras de ouvir essa voz — o que a levou a optar por
inovações que possibilitem a escuta de muita gente ao mesmo tempo. Ou
veja o caso da legislação e do planejamento: a maioria das pessoas considera
o legalês hermético demais e isso as desencoraja a comentar as propostas de
novas leis, mesmo que lhes seja dada essa oportunidade (como o piloto do
parlamento do Reino Unido promovendo a leitura pública dos projetos de
lei). Assim, Tang tem testado outras maneiras de transmitir texto, como, por
exemplo, usando simulações de realidade virtual.51 A integração entre
tecnologia e democracia em Taiwan ainda é recente, e muitos experimentos
ainda são incipientes, mas já mostram que as coisas podem ser feitas de
modo diferente. Um aspecto em que Taiwan precisa inovar é em torno da
identidade digital do cidadão e de sua relação com o governo democrático.
Para encontrar o país que foi mais longe na reformulação desse aspecto,
você precisa viajar 8 mil quilômetros a oeste de Taipei, até o estado báltico
da Estônia. Em 20 de agosto de 1991, a 76ª Divisão Aerotransportada da
União Soviética chegou a Tallinn pronta para tomar o controle das
comunicações da Estônia. A divisão havia sido enviada por líderes golpistas
em Moscou que tentavam sabotar as reformas da URSS implementadas por
Mikhail Gorbachev. Os cidadãos estonianos, que vinham se manifestando
havia anos a favor da independência, bloquearam o acesso a instalações de
rádio e televisão. Naquela noite, o Concílio Supremo da República da
Estônia votou a favor da independência do país. Dois dias depois, a Islândia
foi o primeiro país a lhes reconhecer a independência em caráter oficial.52
Duas semanas antes da declaração da Estônia, Tim Berners-Lee publicou em
um grupo de discussão que estava disponibilizando ao público, pela
primeira vez, a World Wide Web. A partir do momento em que começaram
a construir sua nova nação, os estonianos se esbaldaram em dados e na web.
Ao mesmo tempo, fizeram-no sabedores da própria vulnerabilidade como
nação, da iminente ameaça à segurança vinda do leste, e estavam
visceralmente conscientes dos perigos do governo centralizado, ao estilo
soviético. Avance 25 anos e a Estônia terá se convertido com sucesso no país
digitalmente mais capacitado, mais seguro e mais satisfeito do mundo. Mas,
ao contrário de países autoritários como a China, conseguiu isso
centralizando o controle no cidadão, em vez de no Estado. Desde o início,
escrevem Helen Margetts e Andre Naumann do Oxford Internet Institute, o
objetivo do país foi “desenvolver uma sociedade centrada no cidadão e
inclusiva”, com a ênfase no “cidadão como primordial”.53 Queriam ver seus
cidadãos na qualidade de sujeitos, não objetos do governo.54 Desse modo,
embora quase todos os cidadãos tenham uma ID eletrônica, também são
donos dos próprios dados públicos. Os serviços do governo são de uma
eficiência incrível — são famosos os cinco minutos necessários para se
declarar imposto no país —, mas nenhum departamento tem permissão
para copiar dados pessoais ou coordenar com outros órgãos o conhecimento
que detêm das pessoas. As autoridades podem conferir dados se tiverem
justificativa e causa, mas o cidadão recebe notificação do propósito disso
caso aconteça. Em outras palavras, o Estado é mais transparente que os
cidadãos. O sistema todo se baseia em padrões abertos, mas protegidos por
criptografia; é acessível, mas decentralizado, e eficiente sem ser invasivo.

Uma piada antiga diz que um turista se perde e solicita orientações para um
morador local. “Bem, no seu lugar, eu não começaria daqui”, é a resposta que
ouve. O mesmo poderia ser dito em relação à maior parte das democracias
no fim da segunda década do século XXI. Tendo a oportunidade, ao
redesenhar seus sistemas de informação, a maior parte delas faria melhor
começando da posição da Estônia em 1991. Acontece que elas não estão lá,
mas aqui. E aqui, em se tratando de política no mundo digital, é um caos.
O mundo digital já entornou para o mundo real, ao qual se tornou
indissociavelmente ligado. Trata-se de um mundo dominado por
plataformas tecnológicas transnacionais gigantescas, cujos propósitos às
vezes apoiam a política democrática e às vezes a corroem. Um mundo no
qual governos autoritários solucionaram como “domar” a internet de modo
que ela lhes potencialize o poder. Um mundo em que as sociedades
democráticas ainda estão começando, tardiamente, a perceber quanto sua
política tem sido transtornada.
A reconstrução das coisas não será tarefa simples. Significará reconhecer
que existe uma discrepância insustentável entre a capacidade de nos
fazermos representar e os modos pelos quais somos representados na
política democrática. Significará admitir que essa discrepância vem
corroendo a legitimidade dos processos democráticos estabelecidos,
sobretudo as eleições, e que, se estes não forem remodelados, só farão piorar.
Significará aceitar que os sistemas de mídia, pelos quais os cidadãos recebem
informações políticas e as autoridades são responsabilizadas, não
funcionam. E significará também reconhecer que a moeda da web, os dados
pessoais, embora comercialmente problemática, pode corromper políticas
democráticas.
Se vamos criar uma nova democracia digital, um bom começo é
aceitando a dimensão da tarefa e aprendendo a lidar com ela. Como no
enfrentamento das mudanças climáticas, a empreitada não exigirá meses ou
anos, mas décadas. Também precisamos ser honestos acerca do que sabemos
e do que não sabemos. Toda vez que um grupo de políticos interroga um
executivo do Vale do Silício, o resultado acaba sendo parecido com um
vídeo do YouTube explicando como funciona uma plataforma. Em parte, o
problema é de geração, mas isso não serve de desculpa para os governos não
aprenderem. Ao mesmo tempo, deveríamos parar de tratar engenheiros de
softwares como uma espécie de clero. Só porque alguém é capaz de escrever
um algoritmo, não significa que a pessoa saiba como a política funciona.
Isso se aplica em especial a sumos sacerdotes como Zuckerberg, Page, Brin,
Cook, Bezos etc. Por mais inteligentes e talentosos que sejam, as obras de
sua criação lhes extrapolaram a compreensão e o controle. É difícil ver um
futuro saudável para a democracia liberal em um mundo completamente
dominado por um punhado de superpoderes tecnológicos. Precisamos de
uma esfera digital menos centralizada, espaços cívicos digitais e serviços
públicos que não dependam do rastreamento de dados pessoais e de ad
techs, e uma democracia digital que comece — como na Estônia — com os
cidadãos no centro.
Considerando como será difícil para a democracia se desenvolver, é
tentador rejeitar por inteiro as inovações digitais; tentar retornar ao mundo
das canetas e dos papéis (e das máquinas de escrever, como fez o governo
russo). Mas enfiar a cabeça na areia não fará desaparecer a web, as gigantes
da tecnologia, a inteligência artificial, a utilização dos grandes volumes de
dados e a política de plataforma. Além disso, mudar pode ser difícil, mas
não é impossível. Como Taiwan, Estônia e outros países e comunidades têm
demonstrado, a democracia é capaz de evoluir, e a tecnologia pode ser usada
para renovar processos democráticos. Ela pode ser re-hackeada, mas só se
houver disposição para fazer isso.

1 MACRON, Emmanuel. Discurso em Atenas, 7 September 2017. Transcrição em: European Union —

Speech by the President of the French Republic (Athens, 7 September 2017). France Diplomatie.
Disponível em: https://www.diplomatie.gouv.fr/en/french-foreign-policy/european-
union/events/article/european-union-speech-by-the-president-of-the-french-republicathens-07-09-
17. Acesso em: 4 June 2018.
2 MALRAUX, André. A condição humana. Rio de Janeiro: Record, 1998.

3 REYBROUCK, David Van. Contra as eleições: em defesa da democracia. Belo Horizonte: Editora

Âyiné, 2017.
4 CHWALISZ, Claudia; REYBROUCK, David Van. Macron’s sham democracy. Politico, 12 February

2018.
5 WIKE, Richard; SIMMONS, Katie; STOKES, Bruce; FETTEROLF, Janell. Many Unhappy with Current

Political Systems. IN Globally, Broad Support for Representative Democracy, Pew Research Center,
16 October 2017.
6 FOA, Roberto Stefan; MOUNK, Yascha. The Danger of Deconsolidation: The Democratic Disconnect.

Journal of Democracy, 27:3, p. 5-17, 2016.


7 GERBAUDO, Paolo. The Mask and the Flag: Populism, Citizenism and Global Protest. London: C.

Hurst, 2017.
8 CASTELLS, Manuel. Communication Power, 2nd ed. Oxford: Oxford University Press, 2013.

9 Trocadilho para designar um tipo de contraboicote em que os consumidores são convocados a

adquirir produtos de empresas que estão sofrendo boicotes. [N. do T.]


10 TORMEY, Simon. The End of Representative Politics. Cambridge: Polity Press, 2015.

11 KEANE, John. The End of Representative Politics? The Conversation, 19 May 2015.

12 REYBROUCK, David Van. Against Elections: The Case for Democracy. London: Bodley Head,

2016.
13 BRENNAN, Jason. Against Democracy. Princeton: Princeton University Press, 2016.

14 QUEROL, Ricardo de. Zygmunt Bauman: “Social media are a trap”. El País, 25 January 2016.

15 Medo irracional da própria casa ou do próprio lar. [N. do R.]


16 LUCE, Edward. O liberalismo em retirada. Belo Horizonte: Âyiné, 2020.

17 V. JIMÉNEZ, Mélida. Is democracy in a worldwide decline? Nope. Here’s our data. Washington Post,

15 November 2017.
18 International IDEA. The Global State of Democracy: Exploring Democracy’s Resilience.

Stockholm: International IDEA, 2017.


19 V. Guards at the Gate: The Expanding State Control over the internet in Iran. Center for Human

Rights in Iran, January 2018.


20 V. Sudan to unleash cyber jihadists. BBC News, 23 March 2011.

21 V. Freedom on the Net 2014: Sudan; Freedom on the NET 2015: Sudan. Freedom House.

22 PHAM, Nga. Vietnam admits deploying bloggers to support government. BBC News, 12 January

2013.
23 Trechos dos e-mails podem ser encontrados em SOZERI, Efe Kerem. RedHack leaks reveal the rise

of Turkey’s pro-government Twitter trolls. Daily Dot, 30 September 2016.


24 GERBAUDO, Paolo. The Mask and the Flag: Populism, Citizenism and Global Protest. London: C.

Hurst, 2017.
25 V. diversos relatos incluindo MCGRANE, Sally. Icelander’s campaign is a joke, until he’s elected. New

York Times, 25 June 2010, além de páginas arquivadas do Best Party e suas políticas no arquivo de
internet Wayback Machine (apud bestiflokkurinn.is).
26 V. BASH, Dana. Trump taps Brad Parscale to run his 2020 re-election campaign. CNN, 1 March

2018.
27 MAY, Theresa. Discurso no World Economic Forum Annual Meeting, 25 January 2018. Vídeo

disponível no website do World Economic Forum: http://www.weforum.org.


28 V., por exemplo, ROMM, Tony. President Trump wants a “sweeping transformation” of government

tech, he says at a White House meeting with execs. Recode, 19 June 2017.
29 Para mais informações, ver: https://labhackercd.leg.br/. [N. do R.]
30 Para uma excelente análise das iniciativas de democracia digital ao redor do globo, v. SIMON, Julie;

BASS, Theo; BOELMAN, Victoria; MULGAN, Geoff. Digital Democracy: The Tools for Transforming
Political Engagement. NESTA, February 2017.
31 VÉRON, Pauline: “le budget participatif de Paris aurait aussi pu etre thématique”,
lesbudgetsparticipatifs.fr, 22 November 2017.
32 Mais informações em Paris Budget Participatif (https://budgetparticipatif.paris.fr/bp/).
33 WAMPLER, Brian; TOUCHTON, Mike. Brazil let its citizens make decisions about city budgets. Here’s

what happened. Washington Post, 22 January 2014.


34 V. Better Reykjavik, citizens.is. Disponível em:
https://www.citizens.is/portfolio_page/better_reykjavik/. Acesso em: 15 fev. 2022, 16:10:48.
35 V. World Values Surveys, de 2011 a 2014.
36 CRICK, Bernard. Em defesa da política. Brasília: UnB, 1981.

37 PHILLIPS, Macon. A good problem to have: raising the signature threshold for White House

petitions. White House blog, 3 October 2011; PHILLIPS, Macon. Why we’re raising the signature
threshold for We the People. White House blog, 15 January 2013.
38 HITLIN, Paul. “We the People”: five years of online petitions. Pew Research Center, 28 December

2016.
39 J. A. Deport Justin Bieber and revoke his Green Card. Criada em 23 January 2014, We the People,

White House.
40 MAHRER, Harald; KRIMMER, Robert. Towards the Enhancement of E-Democracy: Identifying the

Notion of the “Middleman Paradox”. Information Systems Journal, 15:1, p. 27-42, 2005.
41 Para mais informações, ver https://edemocracia.camara.leg.br/. [N. do R.]
42 ACHEN, Christopher H.; BARTELS, Larry M. Democracy for Realists: Why Elections Do Not

Produce Responsive Government. Princeton: Princeton University Press, 2016.


43 MONTESQUIEU. Do espírito das leis. Rio de Janeiro: Ediouro, 1993.

44 MADISON, James; HAMILTON, Alexander; JAY, John. Os artigos federalistas. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 1993.
45 TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

46 ROOSE, Kevin; FRANKEL, Sheera. Mark Zuckerberg’s reckoning: “This is a major trust issue”. New

York Times, 21 March 2018.


47 V. MAY, discurso junto à Reunião Anual do Fórum Econômico Mundial; e ASTHANA, Anushka.

Theresa May calls on tech firms to lead fight against online extremism. Guardian, 25 May 2017.
48 V. JACOMET, Noé. How the g0v movements is forking the Taiwanese government. Open Source

Politics, Medium, 13 April 2017.


49 TANG, Audrey. Uber responds to vTaiwan’s coherent blended volition. pol.is blog, Medium, 23 May

2016.
50 Apud RASHBROOKE, Max. How Taiwan is inoculating itself against the Uber “virus”. CityMetric, 8

February 2017.
51 WHITE, Edward. INTERVIEW: Taiwan’s “Digital” Minister, Audrey Tang (Part 2). News Lens, 3

November 2016.
52 Estonia and Iceland — what we share. Ministry of Foreign Affairs, Republic of Estonia, 23 October

2009.
53 MARGETTS, Helen; NAUMANN, Andre. Government as a Platform: What Can Estonia Show the

World? Oxford Internet Institute, University of Oxford, February 2017.


54 VAARIK, Daniel. Where Stuff Happens First. White Paper on Estonia’s Digital Ideology. Disponível

em: https://www.mkm.ee/sites/default/files/digitalideology_final.pdf. Acesso em: 17 fev. 2022,


16:33:37.
Agradecimentos

“livro?” Tenho quase certeza de que esta será a primeira e a última vez
que receberei um e-mail com uma oferta tão extraordinariamente lacônica
no campo “Assunto”. O e-mail vinha de Alex Christofi da Oneworld, futuro
preparador e editor deste livro. Sou imensamente grato a Alex não só por
propor que o escrevesse como por todo conselho e apoio ao longo do
processo. Suas ideias e sugestões foram de imensa utilidade, e eu não
conseguiria finalizar a tarefa sem seu apoio e encorajamento. Preciso ainda
estender esses agradecimentos a todos da Oneworld.
Uma combinação eclética de pessoas foi muito gentil em ler, comentar e
oferecer considerações sobre vários capítulos, as mais notáveis delas sendo a
minha esposa Jojo, o meu colega Gordon Ramsay (não o chef), o meu
cunhado Nick Kettlewell, Brian Cathcart, Sam Robertshaw e outros. Sou
muito grato a eles e a todos que entrevistei em função do livro. Obrigado
também a Annabel Merullo e Laura McNeill da PFD, e ao King’s College
London, onde dou aulas e pesquiso.
Este livro se baseia em uma enorme pilha de artigos de jornais, livros,
reportagens, artigos assinados, conclusões de grupos de estudo, avaliações
da indústria e dados primários. Felizmente, a maior parte está em domínio
público. Procurei indicá-los no texto. Sou grato aos diversos escritores e
pesquisadores cujo trabalho ajudou a subsidiar este livro, mesmo me
faltando espaço para agradecer a todos aqui.
Há dezoito meses comprei uma porca. É possível atribuir o fato a uma
crise de meia-idade, mas a verdadeira responsável é minha falta de
imaginação. A minha esposa fora passar o fim de semana fora e eu lutava
para encontrar alternativas para distrair os nossos quatro filhos pequenos.
Graças a uma rápida pesquisa na internet, descobri que havia uma ninhada
de porquinhos à venda não muito longe de nós. Concluindo que seria uma
bela maneira de passar a manhã de sábado, corremos para o carro e
partimos. Cerca de duas horas depois, voltamos para casa trazendo uma
porca dentro de uma cesta.
Tenho vários arrependimentos em razão de compras por impulso. Deixar
de planejar onde Pigpig (como ela seria chamada) viveria provavelmente é
um dos principais. De igual modo, eu deveria ter preparado melhor a minha
esposa espantada, mas receptiva. No entanto, um detalhe impede que eu me
arrependa por completo da compra de Pigpig. Existem poucas coisas mais
sólidas na vida que uma porca. Ela está quase tão distante do mundo virtual
quanto possível. Para gente como eu, que se perde em meio a preocupações
com o nosso futuro político na era das plataformas tecnológicas
superpoderosas, das campanhas políticas fomentadas por inteligência
artificial e de um Estado alimentado por dados, recomendo que providencie
uma porca. Poucas coisas conseguirão trazê-lo de volta à terra mais rápido.
Um agradecimento final vai então para Pigpig.

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