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O Povo Esquecido MOD

O livro 'O povo esquecido' de Eduardo Vasco aborda a história de genocídio e resistência no Donbass, destacando a complexa relação do povo russo com o governo de Vladimir Putin e a operação militar na Ucrânia. A obra explora a popularidade de Putin entre os russos, a propaganda governamental e as percepções sobre a guerra, revelando um panorama de apoio e resistência dentro da sociedade russa. Através de relatos e pesquisas de opinião, o autor questiona a narrativa ocidental sobre a situação na Rússia e no Donbass.

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O Povo Esquecido MOD

O livro 'O povo esquecido' de Eduardo Vasco aborda a história de genocídio e resistência no Donbass, destacando a complexa relação do povo russo com o governo de Vladimir Putin e a operação militar na Ucrânia. A obra explora a popularidade de Putin entre os russos, a propaganda governamental e as percepções sobre a guerra, revelando um panorama de apoio e resistência dentro da sociedade russa. Através de relatos e pesquisas de opinião, o autor questiona a narrativa ocidental sobre a situação na Rússia e no Donbass.

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O povo esquecido

Uma história de genocídio e


resistência no Donbass

1
2
EDUARDO VASCO

O povo esquecido
Uma história de genocídio e
resistência no Donbass

2ª Edição
São Paulo – SP
Edição do Autor
2023

3
Edição do Autor 2023® por EDUARDO VASCO

Direção Executiva
Equipe Editora Módena

Diagramação
Equipe Editora Módena
Arte de capa: @esl_design2022

2ª. Edição: novembro / 2023


Acabamento e Impressão:
Editora Módena ® São Paulo

EDUARDO VASCO

O povo esquecido: uma história de genocídio e resistência no Donbass


- 2ª. Edição. São Paulo:
Edição do Autor. 2023.264p.

4
Sumário

PREFÁCIO 15

CAPÍTULO 1 19

CAPÍTULO 2 31

CAPÍTULO 3 41

CAPÍTULO 4 57

CAPÍTULO 5 67

CAPÍTULO 6 85

CAPÍTULO 7 95

CAPÍTULO 8 107

CAPÍTULO 9 117

CAPÍTULO 10 129

5
6
Obrigado à Adriana, ao Ernesto, à militância do PCO e a
todos aqueles que contribuíram com a campanha “Causa
Operária na Rússia”. Se não fosse por vocês, este livro jamais
poderia ter sido escrito.
Ao K., à Tati, ao Sasha, ao Grenada e a todos os amigos
que fizemos na Rússia por toda a ajuda que nos deram.
Ao Sasha Cavalcanti e à Sonia Scala Padalino pelas
traduções do russo e italiano
Ao Rafael por ter me aguentado por quase três meses.
À direção do Partido da Causa Operária pela confiança.

7
8
Ao heróico povo da República Popular de Lugansk

9
10
Eles estão impondo tal modelo,
um modelo de liberalismo
totalitário, incluindo a notória
cultura do “cancelamento”, com
proibições generalizadas, em
todo o mundo. Mas a verdade é
que os povos da maioria dos
países não querem tal vida e tal
futuro, mas uma soberania real e
significativa. E cansaram de se
ajoelhar, de se humilhar diante de
quem se considera excepcional.

─ Vladimir Putin

11
12
Parte I

13
14
Capítulo I …

Razões

É onipresente em Moscou o apoio ao presidente Vladimir Putin


e à operação militar especial desencadeada pela Rússia na
Ucrânia. Engana-se, todavia, quem pensa que esse apoio é
uma fabricação do governo. Não são apenas os prédios
públicos que muitas vezes estão decorados com símbolos da
intervenção, como o enorme Z na fachada do Teatro
Acadêmico de Sátira, que vejo no caminho do aeroporto de
Vnukovo para a casa do meu amigo K. ─ ou em edifícios de
Rostov e Volgogrado. Essa letra não existe no alfabeto cirílico,
é uma transliteração da primeira letra da frase за победу “za
pobedu” (que significa “pela vitória”) e é utilizada como marca
em muitos tanques russos que se encontram na Ucrânia.
Outros símbolos usados naqueles tanques são o V
(transliteração da primeira letra da frase В задатьса
выполнена ─ “v zadatsa vipolnena” ─, ou “a tarefa será
concluída”) e o О, de Отважные (que significa “corajosos”).
Na rua Arbatskaya ─ um centro comercial com inúmeras
lojas de souvenirs a três quarteirões a oeste do Crêmlin ─,
cerca de dez lojas exibem em suas vitrines camisetas, patches,
chaveiros, ímãs de geladeira, canecas, bonecos, chapéus,
bandeiras, matrioskas, pratos e uma variedade imensa de
produtos alusivos aos símbolos nacionais, militares, culturais e
também governamentais. Putin é o mais popular de todos,
estampado em tudo quanto é objeto.
O mais interessante é que, tradicionalmente, esse tipo de
loja é voltado especialmente para turistas, principalmente

15
estrangeiros. Entretanto, a propaganda internacional contra a
Rússia afastou turistas estrangeiros do país, bem como o medo
de estar próximo a uma guerra e, principalmente, o bloqueio
por parte dos aeroportos e companhias aéreas, que impedem
que as pessoas da maior parte do mundo viagem para a
Rússia. Eu mesmo, e o companheiro Rafael Dantas, tivemos
de passar por Dubai para depois chegar a Moscou, porque
nenhum aeroporto da Europa está fazendo conexão para a
Rússia.
Portanto, desde que o exército russo entrou na Ucrânia,
em 24 de fevereiro, o turismo para a Rússia tem sido muito
afetado ─ ao contrário de outros setores da economia, que até
agora foram muito pouco impactados. Os lojistas inclusive se
surpreendem conosco, vindos do Brasil exatamente em um
momento em que pouca gente vem para a Rússia. A conclusão
disso tudo é simples: neste momento, quem consome os
produtos vendidos por essas lojas são os próprios russos.
Logo, se há grande procura por símbolos da operação na
Ucrânia, essa procura vem do povo russo.
Essas lojas não pertencem ao governo, nem a familiares
de Putin, nem ao seu partido Rússia Unida, nem nada. São
lojas comuns. No Brasil, mesmo com a enorme popularidade
de Lula em seus governos, nunca vi nada parecido. Tampouco
com Bolsonaro ou qualquer outro político. Podemos comparar
os produtos referentes a Putin com os que temos no Brasil
referentes a clubes de futebol. Os clubes com mais produtos
nas prateleiras das lojas são os mais populares, logicamente,
cuja probabilidade de vendas é maior. E Putin vende muito,
porque, como está muito claro para mim, ele é muito popular.
─ Apoio Putin porque ele trouxe novamente a soberania
para o povo russo depois que assumiu a presidência no ano
2000 ─ diz Serguei, um manifestante parado sozinho em frente
à Duma (o parlamento russo), com uma placa onde se lê algo
como “eu apoio o nosso presidente, e você?” com o rosto de
Putin, e uma bandeira reproduzindo a fita de São Jorge

16
(símbolo da vitória soviética na II Guerra Mundial), que é
também a bandeira de sua organização, o Movimento de
Libertação Nacional. Ele está lá o dia todo, visto por todos os
deputados que entram e saem do prédio, localizado ao lado do
Teatro Bolshoi e muito próximo ao Crêmlin. Serguei também
defende a volta da União Soviética com o mesmo território que
tinha após o final da II Guerra.
─ Os EUA são um país parasita!
Uma outra placa, encostada na calçada, em frente a ele,
também assinada pelo MLN, denuncia o sistema imperialista:
“Há uma guerra contra a Rússia. [...] Os organismos
internacionais pró-americanos continuam a nos controlar: a
Organização Mundial da Saúde, o Fundo Monetário
Internacional e outros.”
A imprensa internacional diz que são frequentes as
manifestações na Rússia contrárias à “guerra”, porém eu não vi
nada que se assemelhasse a isso. Pelo contrário, mais de uma
vez eu vi os ativistas do grupo de Serguei ─ do qual eu nunca
ouvira falar ─ distribuindo seus jornais e folhetos no centro de
Moscou, em apoio à ação no Donbass. A mesma imprensa
internacional, que é controlada por uma máfia de capitalistas
parceiros dos governos dos EUA, da Grã-Bretanha e da União
Europeia, também diz que, se não há manifestações contrárias,
é porque Putin as reprime. Mas para haver manifestações
contrárias ou para que elas sejam reprimidas, é preciso haver
uma quantidade de pessoas que se oponham ao governo e
lutem contra ele. Mesmo nas conversas particulares, conheci
muito pouca gente ─ posso contar nos dedos! ─ avessa ao
presidente russo.
Uma delas é Sveta, uma russa de 31 anos cujos traços
asiáticos lhe concedem uma beleza felina e que, muito
gentilmente, me abrigou em seu apartamento durante a minha
primeira passagem por Moscou. Ela não se interessa por
política, mas consigo seduzi-la para uma conversa sobre Putin.

17
─ Ele é um autocrata e tem a aspiração de se tornar um
novo czar. Seus primeiros anos de governo não foram ruins,
mas tudo mudou desde a anexação da Crimeia pela Rússia,
em 2014. A partir disso, os russos não chegam a estar
inseguros, mas não existe a mesma “calma” de antes.
Pergunto se não seria por causa das pressões do
chamado “Ocidente” contra a Rússia, mas ela diz que não é
por isso. Putin e seus aliados são corruptos, me conta.
Confessa que o governo tem amplo apoio dos mais pobres.
Segundo ela, é porque eles não têm boa educação. Retruco:
mas dizem que a educação na Rússia é boa. Me fala que não
se refere à educação pública, e sim ao meio em que essas
pessoas estão inseridas. Bom, os pobres apoiam Putin. Assim
como parte dos ricos, mais chegados aos negócios do governo.
Outra parte se opõe. E a classe média, em geral, é a principal
base de oposição a Putin, porque ─ me diz a moça ─ tem
perdido seu poder de compra e agora já não pode mais viajar
para o exterior como antes. Sveta se enquadra nessa
categoria. Analista de negócios de uma grande rede de lojas,
ela teme por seu emprego.
─ Não acho que seja exatamente assim ─ me diz uma
jovem transeunte na Arbatskaya, a quem eu abordo para
perguntar se fala inglês e se poderia traduzir para mim o que
estava escrito em um dos painéis de uma exposição fotográfica
de que consegui perceber que tratava sobre a situação do
Donbass e era promovida pelo Ministério da Defesa da Rússia.
A exposição mostrava fotos de crianças sobreviventes, até o
momento, dos intensos bombardeios das forças ucranianas
contra a região, que declarou independência da Ucrânia em
2014 e criou as repúblicas populares de Donetsk e Lugansk. A
moça quase não falava inglês, mas a induzi a dizer o que
estava tentando falar: acredita que aquela exposição era mais
uma espécie de forçação de barra, de propaganda
governamental.
Ela se espanta quando digo que sou brasileiro.

18
─ Mas você é tão… ─ não consegue encontrar a palavra.
─ Branco? ─ lhe ajudo.
─ Isso!
Não há dúvida nenhuma que existe muita propaganda do
governo para apresentar como positiva aquela ação bélica.
Assim como o governo ucraniano faz propaganda de que a sua
ação é positiva ─ apoiada por todo o aparato governamental e
paragovernamental dos países imperialistas, como as
empresas e a imprensa. Cada um vende seu peixe. Mas é
muito perceptível que a maioria dos russos, ao contrário do que
podem pensar aqueles que se guiam pela campanha de
desinformação dos meios de comunicação internacionais, não
são ignorantes com o cérebro lavado pela “máquina de
mentiras” de Putin ─ como acusa a imprensa estrangeira, essa
sim uma verdadeira máquina de mentiras.
Segundo um levantamento de um dos mais importantes
institutos de pesquisa de opinião pública da Rússia, o Centro
Levada, 68% dos russos acessam a Internet diariamente, muito
embora em março um quarto da população tenha sido
impedida de acessar os seus serviços digitais habituais, devido
ao bloqueio criminoso imposto pelo Twitter, Youtube e outras
plataformas. A solução para manter o consumo e a produção
de conteúdo nessas redes é o uso de VPN, do qual um quarto
dos entrevistados é adepto ─ ou 50% entre os russos de 18 a
24 anos.
Mesmo assim, a TV continua sendo o veículo de
informação mais popular. São mais de 40 canais abertos em
Moscou, sendo apenas pouco mais de 10% de propriedade
estatal. Um deles é o Rússia 1, que tem um conteúdo
jornalístico de primeiro nível. Ele exibe um programa de
debates diário chamado “Quem está contra?”, onde sempre
são convidados jornalistas e analistas políticos com opiniões
divergentes das do governo ─ alguns mais neutros, outros
radicalmente opositores. Até mesmo comentaristas
norte-americanos que criticam a Rússia são convidados. Antes

19
da operação militar russa, havia até especialistas ucranianos,
defensores do governo de Kiev, que participavam desse
programa. E os debates parecem ser incrivelmente acalorados,
pelo que consigo acompanhar. Esse mesmo canal ─ ou o
Rússia 24, da mesma rede ─ apresenta sempre nos noticiários
trechos de reportagens dos principais canais de TV da Europa
e dos EUA a respeito das questões internacionais em que a
Rússia está envolvida. Assim, o público pode ter acesso às
besteiras que são disseminadas aos coitados dos televidentes
como nós, reféns da CNN ou da Rede Globo.
Em uma rua ao lado da antiga fábrica de Elektrozavod,
vejo pichada a frase “Morte ao tirano” em um muro. Certamente
é uma referência a Putin. Passei algumas vezes por ali e a
inscrição não havia sido apagada.
O Centro Levada aponta ainda que “um a cada dez
russos gostaria de se mudar para o estrangeiro para obter a
residência permanente”, mas que “no contexto do conflito com
o Ocidente, houve uma diminuição no sentimento de
emigração, que é semelhante a como se desenvolveu o
sentimento em 2014” ─ ano do golpe na Ucrânia, da agressão
de Kiev ao Donbass e da anexação russa da Crimeia. Ou seja,
o enfrentamento com o imperialismo, que busca sufocar os
russos, os tornou mais nacionalistas. Outra pesquisa do
instituto, realizada no final de março, mostrou que 83% da
população “aprova as atividades do presidente”, 71% as do
primeiro-ministro, 70% as do governo em geral e 59% as do
parlamento.
Por sua vez, um estudo do Centro de Toda a Rússia para
o Estudo da Opinião Pública, realizado entre os dias 28 de
março e 3 de abril, aponta que 74% dos russos de diferentes
nacionalidades (cazaques, uzbeques, georgianos etc.) que
vivem na Rússia apoiam a decisão do governo de intervir
militarmente no país vizinho.
O mesmo levantamento traz outros dados que refutam
completamente os contos da carochinha disseminados pelos

20
jornais mundo afora: 81,6% confiam no presidente Vladimir
Putin, 89% têm confiança no exército russo, 88% não querem
emigrar do país para residência permanente, 87% dizem que
dentre seus amigos, colegas e familiares não conhecem
ninguém que foi embora do país. E, por último: 90% dos russos
acreditam que uma guerra de informação está sendo travada
contra eles. Esse é o instituto de pesquisas mais renomado do
país.
K. é um homossexual assumido de 39 anos que vive com
seu parceiro, Ivan, em um apartamento (como todos os
moscovitas) na região central de Moscou. Na capital russa,
tudo gira em torno do metrô ─ um dos maiores do mundo, com
250 estações, que levam a todos os lugares da cidade ─, por
isso os moradores raramente se referem ao seu bairro quando
dão a localização, mas sim à estação de metrô mais próxima ─
no caso do meu amigo, a estação Komsomolskaya. Não utilizo
seu nome em respeito à sua privacidade, embora seja de
interesse saber como vive e o que pensa um homossexual
russo devido à crença espalhada pelo mundo de que na Rússia
os homossexuais teriam um tratamento muito pior do que no
“Ocidente”.
Ele não é militante, ativista ou algum fanático ou radical,
mas apoia Putin e a ação na Ucrânia.
─ Há séculos a Europa chega aqui para roubar nossa
terra, nossos recursos, nossas vidas. Esta é a nossa resposta
para o Ocidente, simplesmente não há outra opção [que a
resposta militar à OTAN] para a nossa sobrevivência ─ diz.
Me conta, ainda, que todos os russos que ele conhece
apoiam a operação militar.
─ No trabalho do Ivan [uma empresa de TI], só uma
mulher pinta as unhas com as cores da bandeira ucraniana.
Em mais de uma ocasião eu não pude deixar de externar
a minha curiosidade a K. Como é a vida de um gay na Rússia?
Fala-se que eles são maltratados pelo governo e pela própria
sociedade…

21
─ Normal. Absolutamente normal.
K. é um gay muito discreto. Em sua visão, a sexualidade
é um assunto privado. Por isso defende as políticas do governo
que, por exemplo, proíbe propaganda LGBT pois isso afetaria a
opção sexual das crianças. É óbvio que é uma medida
conservadora, mas aparentemente tem sustentação entre a
população.
─ Acho que 70% da população vê os LGBT como uma
ameaça bem grave para suas crianças e como algo bem sujo ─
opina.
─ Hmmm…
─ Eu não apoio totalmente o movimento LGBT. Sou
contra as paradas e manifestações. Quem merece apoio e
discussão são as famílias tradicionais com crianças e idosos.
Apesar de não poder se casar, não há impedimentos para
que os gays vivam com seus parceiros, ou saiam juntos. Eu vi
em Moscou e também em Rostov vários casais de lésbicas. K.
me diz que, ao contrário do Brasil, os gays russos não
costumam frequentar clubes ou festas gays. Mas há clubes
gays e eles parecem funcionar sem muitos inconvenientes.
K. tem vários conhecidos gays e lésbicas, e com filhos.
Certo dia, estava passeando com ele perto do metrô
Semyonovskaya, quando aponta para um parquinho entre dois
blocos de apartamento.
─ Sete anos atrás eu estava comendo um holandês
naquele banco.
─ E ninguém viu?
─ Era de noite, eu estava bêbado.
Andamos um pouco mais e entramos na estação. Olho
para K., de baixo para cima.
─ Você usa alguma droga?
─ Não, nunca usei. Aqui na Rússia é muito difícil alguém
usar drogas.
─ Você tem algum amigo que usa drogas?
─ Eu não faço amizade com quem usa drogas.

22
Ele me leva para conhecer o Parque de Exibição das
Conquistas da Economia Soviética, conhecido pela sua sigla:
VDNKh (pronuncia-se “vê-den-há”). É um complexo colossal e
em seu exterior estão localizados o Museu dos Cosmonautas e
a famosa estátua do Operário e a Camponesa. Há uma estátua
de Lênin pouco depois do pórtico de entrada do parque,
inaugurado em 1935 para homenagear a agricultura soviética.
São quase mil construções dentro do VDNKh, dentre as quais
se destacam os pavilhões dedicados (tanto em sua arquitetura
como nas atrações oferecidas dentro de cada um deles ─
comida, arte, etc.) a cada uma das ex-repúblicas soviéticas e
das repúblicas autônomas da Federação Russa. Uma multidão
de pessoas de todas as idades, de jovens a famílias, passeia
sob o crepúsculo da primavera moscovita, quando ainda é
possível ver claridade no céu depois das onze da noite e antes
das duas da manhã o sol já volta a raiar.
─ Você pode tirar uma foto minha junto ao Lênin, K.?
─ Claro.
─ Você gosta do Lênin?
─ Não. Eu prefiro Stálin. Lênin queria incendiar a Rússia
como se ela fosse apenas mais uma carta no baralho da
revolução mundial. Stálin protegia a Rússia e a via como uma
fortaleza.
K. se autointitula um “tradicionalista e conservador na
base da cultura russa e contra a revolução”. Apesar de não
gostar de Lênin, respeita muito Nadezhda Krupskaya,
revolucionária bolchevique e companheira do líder de Outubro,
devido ao seu papel na construção do sistema de educação da
Rússia.
Digo a ele que sempre vejo muitas moças passeando
sozinhas ou com suas amigas, mesmo de noite.
─ Na Rússia, as mulheres não são dependentes dos
homens como no Brasil. Aqui existe o verdadeiro feminismo,
não esse de mentira que se propaga por aí. As mulheres são
as chefes das famílias e são muito respeitadas.

23
Poucos dias depois, K. me leva a outro parque, o Parque
da Vitória. Mais um dos parques espetaculares de Moscou
dedicados à história da Rússia e da União Soviética. Nele, há
um museu que conta a história da Grande Guerra Patriótica ─
como os russos chamam a luta contra a invasão nazista da
URSS de 1941 a 1945, em meio à II Guerra Mundial. Mas não
o visitamos por falta de tempo. Vamos à Igreja de São Jorge,
no mesmo complexo. Ela também é dedicada aos que
tombaram na guerra contra a Alemanha. Acendemos uma vela
em sua homenagem e outra em homenagem às vítimas dos
nazistas de hoje, os militares ucranianos que massacram o
povo russo do Donbass.
Esse é o motivo pelo qual me recuso a chamar a
operação militar especial da Rússia na Ucrânia de guerra. Não
vou endossar a propaganda enganosa espalhada por toda a
imprensa mundo afora, segundo a qual a Rússia malvada
invadiu a Ucrânia em uma guerra de conquista. Essa guerra
começou em 2014. Começou porque os EUA e a União
Europeia derrubaram o presidente da Ucrânia, Viktor
Yanukovich, em um golpe de Estado financiado com milhões ou
mesmo bilhões de dólares e de euros, que teve a participação
pública do Departamento de Estado, do Partido Democrata, de
ONGs de fachada da CIA e dos diplomatas europeus. Golpe
conhecido como Maidan, no qual unidades inteiras de grupos
nazistas incendiaram o centro de Kiev e, depois de
assassinarem civis inocentes na capital, tomando o poder
promoveram uma sequência de chacinas cujo alvo principal
eram os cidadãos de origem russa (cerca de um quinto de toda
a população ucraniana). A região com a maior comunidade
russa do país, no leste ─ chamada de Donbass ─, se levantou
contra o massacre que estava começando a sofrer de um
governo ilegítimo apoiado em movimentos nazistas. A própria
população dos oblasts de Donetsk e de Lugansk, em maio
daquele ano, declarou independência e formou dois Estados
separados: a República Popular de Donetsk e a República

24
Popular de Lugansk. Em Carcóvia e Odessa (hoje visadas
pelas tropas russas) a população também organizou um
movimento anti-Maidan. Como o governo usurpador da Ucrânia
continuou utilizando os paramilitares nazistas e também o seu
próprio exército para submeter as repúblicas separatistas, elas
armaram os seus habitantes e eclodiu uma guerra que dura até
hoje. Uma guerra absurdamente assimétrica. Enquanto a
Ucrânia era armada, financiada, treinada e governada pelas
maiores potências do mundo, Donetsk e Lugansk contavam
apenas com a força de seus próprios cidadãos, que a partir
daquele momento se recusaram a fazer parte de um país que
os tratava como inimigos. Foram oito anos de um genocídio
que deixou 14 mil pessoas mortas, conforme admite a própria
Organização das Nações Unidas. Tudo isso promovido pela
Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), principal
fornecedora de treinamento e armas para a Ucrânia.
No dia 24 de fevereiro de 2022, a Rússia disse “basta!”
Em seu discurso anunciando o início da operação militar
especial, Putin afirmou que o objetivo era “desmilitarizar” e
“desnazificar” a Ucrânia. Eram duas as justificativas principais:
1) a OTAN estava armando a Ucrânia para, a partir dali, iniciar
uma agressão militar contra a Rússia e 2) há oito anos a
Rússia estava tolerando o extermínio de russos no Donbass.
Putin havia acabado de reconhecer a independência das
repúblicas de Donetsk e de Lugansk e assinado um acordo de
cooperação militar. A seu pedido, Putin enviou tropas para
socorrê-las da agressão ucraniana. Portanto, a Rússia não
iniciou e não promove guerra com ninguém, mas sim tomou
parte em uma guerra desencadeada pela Ucrânia (com os EUA
e o imperialismo europeu por trás) contra um povo indefeso.
O natural de uma cobertura jornalística seria partir da
seguinte indagação: o que está ocorrendo no Donbass para a
Rússia iniciar uma manobra tão extraordinária como essa? Já
que todos os jornais alardearam tanto a “invasão” e a “guerra”
da Rússia contra a Ucrânia, não há nenhuma justificativa para

25
ignorar o motivo pelo qual a Rússia fez o que fez. Por que não
enviaram correspondentes ao Donbass para investigarem por
sua própria conta as razões e a história por trás dessa
“invasão”?
Cobrir a “guerra” na Ucrânia passando por cima da guerra
no Donbass é como cobrir uma eleição presidencial sem dar
um pio sobre o primeiro colocado nas pesquisas. Porque a
única e verdadeira guerra que existe na Ucrânia ocorre
exatamente no Donbass, e não há alguns meses, mas sim há
mais de oito anos! Ignorar o Donbass atesta a nulidade
jornalística da cobertura dos jornais, TVs e demais veículos de
comunicação brasileiros e internacionais. Isso que estão
fazendo não é jornalismo. É pura propaganda. Suja. Barata.
Enganosa. Mentirosa. Criminosa. Terrorista. Se a pretensão
fosse fazer jornalismo, a cobertura teria se centrado no
Donbass. A imprensa é cúmplice integral do genocídio e dos
crimes de guerra dos grupos nazistas ucranianos contra o povo
daquela região.
Por outro lado, o Partido da Causa Operária (PCO), um
partido político, colocou os seus órgãos de comunicação e
informação a serviço do verdadeiro jornalismo e não da
propaganda medíocre, ao enviar correspondentes onde a
guerra estava ocorrendo de verdade. Rafael e eu fomos os
únicos jornalistas brasileiros a cobrir a guerra do Donbass
enquanto todos os outros fingiam estar cobrindo alguma guerra
a partir da Ucrânia.
Algumas pessoas me acusaram de ser um propagandista
do governo russo. Devo reconhecer que um dos objetivos da
viagem era apresentar o ponto de vista dos russos. Isso porque
a imprensa internacional, que se diz “imparcial”, somente
apresentava o ponto de vista ucraniano (ou melhor, dos EUA) e
censurava qualquer declaração ou informação favorável aos
russos. Na faculdade de Jornalismo, ensina-se que todo
jornalista deve “ouvir os dois lados”. Isso é um mantra. E
também uma farsa. Os grandes jornais não passam de correia

26
de transmissão da opinião dos poderosos. Diante de uma
desproporção tão grande, como eu, que quero transmitir a
verdade, poderia ser “imparcial”? Eu me recuso a apresentar
os dois lados de forma equilibrada, porque o público já conhece
um dos dois lados e desconhece completamente o outro lado.
O conflito informativo continuaria desigual. A neutralidade
sempre favorece o mais forte, e aqui também o mais forte é a
rede de criminosos de sempre: os governos dos EUA e das
potências europeias, os monopólios capitalistas desses países,
o seu aparato monstruoso de propaganda e o sistema
internacional obsceno que eles controlam ─ todos eles
desafiados pela Rússia. A única maneira de garantir um mísero
equilíbrio, quando toda a indústria da comunicação cala os
russos e apresenta os ucranianos 24 horas por dia como
vítimas, seria transmitir tudo o que os russos têm a dizer,
investigar as razões de sua operação militar, apresentar as
suas denúncias e confrontá-las com o que eu vi para trazer ao
público uma versão da realidade que não é contada. Versão
esta que, tendo feito um trabalho de quase três meses in loco,
e tendo acompanhado por diversas fontes essa guerra durante
todos os seus oito anos, posso concluir que, se não é a mais
próxima da realidade, é certamente mais próxima do que todo
o material produzido pelo conjunto dos grandes meios de
comunicação internacionais acerca da situação ucraniana.
Porque esse material não passa de lixo desinformativo. Nós
fomos à Rússia e ao Donbass com a convicção de que
estávamos a serviço da verdade. Mais do que nunca,
mantenho e reafirmo essa convicção. Mesmo sofrendo alguns
percalços em nosso trabalho jornalístico.
Quando estávamos passeando pela Praça Vermelha com
o jornalista Mauro “Bedê”, brasileiro residente em Moscou
desde os anos 80 e que nos auxiliou em algumas questões,
fomos abordados por três guardas com traços cazaques por
estarmos tirando fotografias do Kremlin. Perceberam algo
estranho quando sacamos a câmera profissional, o tripé e o

27
microfone. Mauro disse que éramos jornalistas e os guardas
responderam que, por causa das tensões geradas pela
operação na Ucrânia, proibiu-se fazer reportagens na Praça
Vermelha. Isso é compreensível. Existem provas
documentadas e publicadas na Internet da utilização dos
escritórios e correspondentes da BBC e da Reuters em
Moscou, por exemplo, pelo serviço de inteligência britânico
para espionar a Rússia.
Os repórteres da imprensa burguesa têm toda a
facilidade, infraestrutura, dinheiro, amizades com gente
influente e têm a fama de suas empresas. Isso abre portas
para eles poderem trabalhar em situações como as que
estávamos envolvidos. Mas nós não tínhamos nada. Fomos à
Rússia e ao Donbass com a cara e a coragem. Nem mesmo a
embaixada do Brasil em Moscou se dispôs a nos dar qualquer
apoio.
─ O sistema de recepção na embaixada é super
burocrático desde a época do governo Temer, e piorou em
2018 quando Bolsonaro se tornou presidente ─ nos
confidenciou um amigo brasileiro que vive em Moscou há
muitos anos.
Se alguma coisa acontecesse conosco ─ e as chances
eram razoáveis ─, a embaixada brasileira seria responsável.
Uma embaixada tem o dever legal de proteger e zelar por cada
cidadão de seu país que se encontra na nação em que ela
funciona. Mas nós fomos absolutamente ignorados.

28
Capítulo II …

Antes da chuva

─ Quem defende a Rússia devia ir para lá viver para dar mais


valor às palavras democracia e liberdade ─ alguém me diz nas
minhas redes sociais.
Respondo que já estou na Rússia há um mês e vejo um
dia a dia de democracia e liberdade maiores do que no Brasil.
Nosso país tem a terceira maior população carcerária do
mundo, com 820 mil presos. O que poderia ser mais contrário à
liberdade do que, precisamente, a privação dessa? E mais de
40% desses presos sequer foram julgados! Portanto, não foram
condenados. E, se não foram condenados, não podem ser
considerados culpados por nenhum crime. Logo, são
inocentes. Centenas de milhares de cidadãos inocentes estão
atrás das grades no Brasil. Que liberdade é essa? Além disso,
dois terços dos presos no Brasil são negros. Em 2020, os
negros representaram 79% das pessoas assassinadas pela
polícia. Os 10% mais ricos sempre roubaram mais da metade
da renda nacional, e hoje o percentual dessa riqueza espoliada
beira os 60%. Os 50% mais pobres possuem menos de 1% de
toda a riqueza nacional, embora sejam eles os principais
responsáveis pela produção dessa riqueza. Acabo de ouvir a
notícia de que um terço dos brasileiros vive abaixo da linha da
pobreza. Onde está a democracia? Onde está a democracia
quando uma presidenta eleita pelo voto popular é derrubada
por um punhado de pistoleiros políticos do Congresso Nacional
e o presidente mais popular da história do país é preso

29
ilegalmente por um juiz que não foi eleito por ninguém? Tudo
isso a mando de um governo estrangeiro.
O estereótipo espalhado por aí indica que em qualquer
esquina há soldados, policiais ou um agente da KGB à sua
espreita na Rússia. Bom, pela minha experiência acredito
apenas na possibilidade de haver agentes secretos em toda
parte, porque foram muito poucos policiais e militares (mesmo
com um conflito militar em andamento) que esbarrei pelo país.
Em Rostov do Don, passeei pelo Boulevard da rua
Pushkinskaya à uma da madrugada, bêbado, com o celular na
mão o tempo todo, dando sopa para qualquer trombadinha. Só
faltava implorar para ser assaltado. Mas não apareceu nenhum
mísero ladrão para me roubar. E olha que também não havia
nenhum policial, guarda ou segurança. E eu não estava
sozinho: centenas de adolescentes, moças e rapazes, casais,
amigos andando de patinete público, mulheres
desacompanhadas, todos tranquilamente curtindo a noite muito
bem iluminada pelos postes de luz do belíssimo boulevard. Vi
até mesmo uma velha com seu cachorro. À uma da madrugada
de um dia de semana qualquer! Em nenhuma cidade do Brasil
─ ainda mais do tamanho de Rostov, uma urbe com seus mais
de um milhão de habitantes ─ essas pessoas teriam coragem
de botar o pé para fora de casa a essa hora. Também não vi
nenhum morador de rua, nenhuma prostituta, nenhum travesti
ou nenhuma pessoa drogada, nem senti cheiro de droga
alguma. K. me disse, quando íamos do aeroporto de Vnukovo à
sua casa, em minha chegada a Moscou, que praticamente
inexistem na Rússia de hoje essas cenas grotescas do
lumpemproletariado que vemos no Brasil, pessoas que foram
varridas para a margem da sociedade e cujas vidas foram
transformadas em um verdadeiro inferno ─ isso quando já não
nascem nesse inferno, como os filhos de moradores de rua.
Na Rússia, vi muito poucas pessoas pedindo esmola na
rua e menos ainda dormindo nos bancos das praças. Não
duvido que no centro de São Paulo haja mais sem teto,

30
mendigos, drogados e prostitutas do que por toda a Rússia.
Apesar da devastação dos anos 1990, ainda existe muita
herança da antiga União Soviética. E boa parte disso foi
recuperado por Vladimir Putin. O país da Revolução
Bolchevique não aceitou a imposição do neoliberalismo pelos
grandes banqueiros imperialistas. E o neoliberalismo, regime
econômico por excelência da fase mais apodrecida do
capitalismo, é a antítese da democracia e da liberdade. No
momento em que escrevo estas linhas, a Rússia tem 4,1% de
taxa de desemprego, enquanto o Brasil tem 11,1% ─ índice que
mascara a realidade por não levar em conta os
subempregados, os ambulantes, os que vivem de bicos, os
desalentados e os que não têm carteira assinada.
Os russos com quem conversei não querem saber da
“democracia” e da “liberdade” do que alguns chamam de
“mundo ocidental”. Ekaterina, que servirá como nossa
intérprete em Rostov do Don, nos explicará esse sentimento,
que vem crescendo mesmo entre a juventude do país.
─ Quando eu era mais jovem, eu tinha ilusões de que a
Rússia deveria seguir o caminho dos EUA e da Europa. Mas
depois que morei um tempo na Europa Ocidental, percebi que
aquilo era muito diferente do que falavam. Então, comecei a
refletir e penso que a Rússia deve seguir o seu próprio
caminho. Antes, quem pensava assim eram os mais velhos.
Mas nos últimos anos, muitos jovens também têm essa
percepção ─ são as palavras da moça de 25 anos, em um
espanhol perfeito.
Democracia e liberdade são historicamente os motivos
sagrados pelos quais os anjos norte-americanos sobrevoam os
céus dos países pobres. A democracia e a liberdade ─ e, nas
últimas décadas, os direitos humanos ─ são despejadas por
esses anjos com asas de metal e turbinas e caem em forma de
bombas e mísseis. Suas vítimas, contraditoriamente, são
aqueles que eles dizem defender dos demoníacos e
sanguinários ditadores que governam esses países. Esses

31
bombardeios de democracia, liberdade e direitos humanos, no
entanto, sempre são precedidos por uma intensa campanha de
propaganda nos grandes meios de comunicação, que serve
para preparar a opinião pública para a intervenção. Afinal de
contas, nenhuma pessoa normal defenderia tais bombardeios
se estes fossem cometidos contra um país pacífico, com uma
população que apoia seu governo, onde a vida não é muito pior
do que em outros lugares e onde nada de anormal acontece. É
preciso convencer uma parcela da opinião pública de que os
habitantes daquele país estão sofrendo graças ao governo
tirânico e despótico que os oprime. E se isso não for suficiente,
é preciso dizer que esse governo não oprime somente seus
governados, mas também os povos de outras nações.
Curiosamente, os EUA procuram, através da manipulação da
realidade, atribuir aos seus inimigos exatamente as suas
próprias e piores características.
É isso o que está acontecendo com a Rússia,
especialmente nos últimos dez anos. O país está sendo
sufocado por uma enorme campanha nos jornais, TVs, rádios,
revistas e na Internet, que disseminam mentiras das mais
estapafúrdias e ao mesmo tempo censuram qualquer
informação ou opinião que retrate a verdade. Esse é outro
aspecto sobre a tão sagrada democracia, a tão sagrada
liberdade, promovida pelos EUA e a Europa. A Rússia também
está sendo sufocada por uma campanha militar de baixa
intensidade mas de alta extensão: o expansionismo da OTAN.
Esta organização foi criada sob a desculpa de combater a
expansão do comunismo, em 1949 ─ embora o que poderia ser
o seu equivalente “comunista”, o Pacto de Varsóvia, só tenha
sido criado em 1955. Era o início da chamada “Guerra Fria”,
período no qual, por 40 anos, o imperialismo, na verdade,
impôs uma guerra unilateral, por procuração e de diversas
maneiras, contra a União Soviética. Com a desintegração desta
e o término oficial da guerra fria, não havia mais motivo oficial
para a manutenção da OTAN. Mas ela não foi extinta. Pelo

32
contrário: incorporou a maioria dos países que faziam parte do
Pacto de Varsóvia, antigos aliados da Rússia, e pela primeira
vez realizou intervenções militares diretas, inclusive nas
proximidades da Federação Russa, como foi em 1999 na
Iugoslávia ─ passando por cima da própria ONU, que já
naquela época demonstrava sua total inutilidade. A OTAN, sob
o controle absoluto dos EUA, cercou a Rússia com bases
militares e mísseis apontados diretamente para o país
eurasiático. Inúmeras vezes o Kremlin alertou que isso era uma
clara ameaça à segurança nacional da Rússia e poderia levar a
uma retaliação de Moscou.
─ Sempre foi um conflito evitável. A Rússia sempre
advertiu a OTAN. Não somente nos últimos anos, mas há 30
anos, desde o desaparecimento da União Soviética ─ afirma
Victor Ternovsky, repórter da agência Sputnik News. ─ Ali,
havia sido feita a promessa a Gorbatchov de que a OTAN não
se expandiria além da Alemanha reunificada. Há documentos
que comprovam a promessa à Rússia de que a OTAN não iria
se expandir. Mas ninguém cumpriu com a palavra. A OTAN
continuou se expandindo, a tal ponto que a OTAN praticamente
conseguiu tocar às portas da Rússia.
Mentiras. Enganações. Blefes. Trapaças.
Táticas tradicionais.

Recordemos siempre
que no se puede confiar en el imperialismo
pero
ni un tantito así.
¡Nada!
(Che Guevara)

─ Há três décadas a Rússia protesta e diz que está


incomodada com a aproximação da OTAN. Porque ela está
cercando nossas fronteiras e não leva em conta os argumentos
da Rússia. A OTAN se recusou a todo o momento a assinar um

33
documento conjunto com a Rússia que garantisse a nossa
segurança.
A gota d’água foi o golpe de 2014 na Ucrânia, cujo
principal objetivo era justamente impor um governo fantoche
que aceitasse a integração da antiga república soviética e parte
histórica da Rússia à OTAN.
─ Em dezembro de 2021 a Rússia apresentou o rascunho
de um novo acordo sobre a nova arquitetura de segurança na
Europa. Enviou esse esboço à OTAN e aos EUA dizendo que
era preciso assinar esse documento porque, do contrário, não
ficaria de braços cruzados diante da expansão da OTAN. E o
que disseram à Rússia? Praticamente a ridicularizaram. Porque
o secretário-geral da OTAN, o senhor Stoltenberg, disse em
fevereiro deste ano na Conferência de Segurança de Munique
que, se a Rússia quer menos OTAN nas suas fronteiras, ela vai
ter mais OTAN nas suas fronteiras. E havia um perigo real da
entrada da Ucrânia na OTAN. Em 2019, o presidente Zelensky
adotou uma nova estratégia militar para a Ucrânia, em que ela
se compromete a ingressar na OTAN. O que isso significa para
a Rússia? Se a OTAN instalasse mísseis na Ucrânia, e se eles
fossem mísseis hipersônicos, em cinco minutos atingiriam
Moscou. Além disso, a Ucrânia tinha planos não somente de
recuperar o Donbass, mas também de recuperar a Crimeia. Se
a Ucrânia fizesse isso já como membro da OTAN, e se a
Rússia revidasse, a Rússia entraria em conflito oficial contra
toda a OTAN. Por isso Putin disse que a Rússia não poderia
esperar, não se poderia repetir o erro que levou à invasão da
Alemanha nazista à União Soviética, porque a URSS não levou
o risco de invasão suficientemente a sério, e Putin disse
publicamente que isso representou um duro golpe à União
Soviética principalmente nos primeiros meses da guerra.
Aprendemos com o erro.
─ A OTAN diz que é uma escolha dos países que querem
entrar na organização e que eles fazem isso porque veem a
Rússia como uma ameaça ─ questiono Victor.

34
─ Sim, e por isso a Rússia não teria direito a intervir
nessa decisão da Ucrânia. Mas ela tem. E não somente pelas
preocupações que eu acabei de explicar, mas porque os
próprios acordos existentes também proíbem a Ucrânia de
decidir livremente suas alianças militares. Por exemplo, Rússia,
Ucrânia, ou mesmo os Estados Unidos e os países europeus,
fazem parte da Organização para a Segurança e Cooperação
na Europa (OSCE). Entre os acordos que regem o
funcionamento desse organismo, encontra-se um documento
cujo princípio é o da segurança indivisível. Ou seja, nenhum
Estado membro desse enorme organismo pode tomar medidas
de defesa que qualquer outro membro desse órgão possa
considerar como uma ameaça. E a Rússia diz que a entrada da
Ucrânia na OTAN é uma ameaça para nós.
─ O que você me diz sobre a cooperação da OTAN e dos
EUA com grupos como o Batalhão Azov, mesmo antes de uma
entrada formal da Ucrânia na OTAN?
─ Algumas pessoas dizem que se a Rússia quisesse
justificar a intervenção, deveria esperar a Ucrânia ingressar
formalmente na OTAN. Mas, na prática, a Ucrânia se converteu
sim em um membro da OTAN durante esses anos. Após o
golpe de Estado em 2014, os EUA modernizaram uma série de
aeroportos em solo ucraniano justamente para facilitar o
transporte de tropas e de contingentes da OTAN em território
ucraniano. Eles já estavam se preparando para a guerra. Os
EUA também construíram em uma cidade ucraniana o seu
centro naval para operações especiais e essa base permite
coordenar com precisão as ações dos navios da OTAN no Mar
Negro e os ataques militares contra as infraestruturas e a frota
russa no Mar Negro. Havia planos para se construir a mesma
base na península da Crimeia, para o que seria preciso
expulsar a Rússia da Crimeia, que pertence à Rússia há
séculos. Portanto, a Ucrânia se converteu em um membro de
fato da OTAN. Acrescenta-se a isso a integração dos centros
de comando do exército ucraniano aos centros de comando da

35
OTAN. Isso significa que o exército ucraniano pode ser dirigido
desde o exterior, e isso já ocorre.
─ Na sua opinião, por que a OTAN não interveio
diretamente, fazendo uma guerra total contra a Rússia na
Ucrânia?
─ Eu acho que a situação é um pouco ambígua. Porque a
OTAN está fornecendo armas em uma quantidade sem
precedentes para a Ucrânia, então acho que de fato já está
participando nesse conflito. Mas não intervém diretamente
porque a Rússia não é a Líbia, não é a Síria, não é a
Iugoslávia. Porque a Rússia pode se defender.
─ Qual a relação de forças militares entre a Rússia e a
OTAN?
─ É de equilíbrio. Mas se formos adicionar a China ao
lado da Rússia (e a China, neste conflito, obviamente está do
lado da Rússia, porque a sobrevivência da China depende da
aliança com a Rússia, se não ela também seria arrasada pelos
mesmos que estão provocando o conflito na Ucrânia), elas
serão mais fortes em termos de armas do que a OTAN.
Sempre foi óbvio para todos aqueles que acompanham a
geopolítica mundial: a OTAN quer atacar a Rússia. A OTAN é o
braço armado das grandes potências capitalistas, do
imperialismo. É uma organização criada para a guerra de
conquista por parte do conjunto do bloco imperialista sobre os
países atrasados. Quando o imperialismo não consegue
saquear nações inteiras pela via “pacífica” (imposição de
regimes fantoches, subjugação de governos pelo bloqueio
econômico, etc.), ele necessita partir para a agressão militar
aberta. A Rússia é um país com uma quantidade de riquezas
naturais absurda, como o petróleo, o gás e os minerais. E
essas riquezas naturais, bem como o seu mercado consumidor
de 144 milhões de pessoas, não são dominados pelas
empresas dos principais países capitalistas ─ os EUA vendem
cinco vezes menos mercadorias para a Rússia do que para a
pequenina Bélgica. Em um estado de crise terminal como a

36
que vive o regime capitalista, no qual praticamente não existe
nenhum rincão do mundo onde os eternos parasitas já não
tenham penetrado para sugar seu sangue, é questão de vida
ou morte o domínio da maior nação da face da Terra.
Mas como a Rússia é uma das maiores potências
militares do planeta, possuindo inclusive armamento nuclear, o
imperialismo não pode chegar bombardeando o Crêmlin como
se estivesse bombardeando a Somália. Precisa ir devagarinho,
de pouquinho em pouquinho, até se apresentar uma boa
oportunidade para arrasar seu inimigo. Por isso também o
golpe na Ucrânia. Por isso a guerra genocida desencadeada
contra a população de maioria russa do Donbass. Lá estamos
vendo como funciona a tentativa de implantação da democracia
e da liberdade pelos eleitos de Deus para civilizar as terras
bárbaras.
A Rússia destina 2,6% do seu Produto Interno Bruto (PIB)
para as forças armadas. Em 1988, a União Soviética destinava
4,9%. Os comentaristas de política internacional chamam isso
de país militarizado, autoritário, ditatorial. A Rússia, assim
como China, Coreia do Norte, Irã e Venezuela, é tachada de
provocadora, de ser controlada por uma burocracia militar que
utiliza a desculpa de se defender de inimigos externos para
oprimir a população e se perpetuar no poder. Mas ninguém diz
que os EUA dedicam 3,1% da renda nacional a gastos militares
e que em 2021 eles gastaram mais (801 bilhões de dólares) do
que os outros 9 países com maiores despesas militares
combinados (777 bilhões). Esses mesmos comentaristas
também utilizam um estranho eufemismo: chamam os gastos
com ataques a outros países de gastos com a defesa…
Os Estados Unidos invadem países, bombardeiam
nações e têm aproximadamente 800 bases militares
espalhadas pelo mundo. Não existe a mínima necessidade de
discussão: isso constitui uma ameaça real para os países que
abrigam ou que estão próximos a essas bases. E a Rússia,
bem como a Coreia do Norte ou a Venezuela, está cercada por

37
bases, por mísseis e por tropas dos EUA e da OTAN. Os EUA
e outros 13 exércitos invadiram a Rússia em 1918. A Alemanha
voltou a invadi-la em 1941. Exercícios militares são conduzidos
com regularidade nas suas fronteiras pelos países que lhe são
hostis. Por qual razão a Rússia não haveria de se preocupar
com a sua defesa? Ela e praticamente todos os outros países
do mundo são obrigados a se preocupar em se armar o
máximo possível. Quem não se arma o suficiente, é submetido
pelos que estão armados. Seja por meio da escravidão política
e econômica, seja por golpes de Estado ou invasões militares.
A Rússia e outros países muitas vezes não podem
satisfazer as necessidades de seu povo porque precisam
remanejar os recursos para a defesa do país. Os gastos com a
burocracia estatal, militar e tudo o mais são elevados, ao
mesmo tempo em que muitas vezes o povo sofre com a
carência de produtos de primeira necessidade ─ como ocorreu
na URSS ou como ocorre hoje, por exemplo, nas repúblicas
populares de Donetsk e de Lugansk. A pressão militar do
imperialismo, junto com o controle e bloqueios econômicos, é a
grande responsável pela pobreza que se abate sobre os países
atrasados. Enquanto eles estiverem com essa faca em seu
pescoço, não verão outra escolha senão sacrificar seus
escassos recursos e direitos de seus cidadãos para se
proteger, caso contrário terão o mesmo destino da Iugoslávia
ou da Líbia. Os recursos só poderão ser integralmente
destinados ao bem-estar da população quando essa ameaça
acabar. E ela só vai acabar quando não existir mais o sistema
imperialista ─ que é um sistema de guerra contínua contra os
países pobres. E como disse o 4° presidente dos EUA, James
Madison (1809-1817), “nenhuma nação poderia preservar sua
liberdade em meio a uma guerra contínua”.

38
Capítulo III …

Discípulos de
Mengele e Goebbels

O Ministério da Defesa da Rússia divulgou um documento, em


março, que corroborava as acusações sobre a participação do
governo dos Estados Unidos no financiamento de projetos
militares de pesquisa biológica na Ucrânia. Os russos
afirmaram: “acreditamos que no território da Ucrânia foram
criados componentes de armas biológicas.” Eles eram
ocultados dos organismos regulatórios internacionais.
Nesses laboratórios, segundo as denúncias, seis famílias
de vírus eram coletadas pelos pesquisadores americanos,
incluindo o coronavírus e variantes do vírus da gripe aviária.
Sua existência (desde a década de 1990) acabou sendo
admitida pelo próprio governo norte-americano, quando
expressou sua preocupação de que eles caíssem nas mãos
das forças armadas da Rússia após essas tomarem conta dos
territórios onde funcionavam as mencionadas bases científicas.
Tanto é que patógenos e documentos teriam sido destruídos no
mesmo dia do início da operação especial, além de muito
material que conseguiu ser levado para fora da Ucrânia.
Victoria Nuland ─ que, em 2014, como subsecretária de Estado
para Assuntos Europeus dos EUA na Ucrânia, teve conversa
vazada na qual escolhia a dedo os novos membros do governo
golpista de Kiev ─ admitiu que os EUA colaboravam com as
pesquisas biológicas, em uma sessão da Comissão do Senado
norte-americano para as Relações Exteriores. Aparentemente,
os EUA nunca se preocuparam com que esses laboratórios

39
fossem parar no controle dos grupos nazistas ucranianos,
como o Batalhão Azov, o Batalhão Aidar e o Setor de Direita.
Os russos convocaram uma reunião do Conselho de
Segurança das Nações Unidas. A ONU reconheceu não ter
sido informada pelos ucranianos da existência de tais
programas ─ mesmo a Ucrânia sendo signatária da Convenção
sobre a Proibição de Armas Biológicas.
─ De acordo com o Ministério da Defesa russo, nesses
laboratórios eram feitas pesquisas com o DNA de alguns
eslavos, incluindo cidadãos russos, para possivelmente
descobrir alguma fraqueza imunológica do povo russo para a
possível produção de armas biológicas no futuro contra a
população em uma eventual guerra contra a Rússia, inclusive
uma guerra não declarada ─ nos conta o jornalista Tito da
Silva, brasileiro que trabalha na imprensa estatal russa e vive
em Moscou.
A edição de número 27.376 do semanário
Komsomolskaya Pravda, de 20 a 27 de abril, publicou uma
entrevista com um ex-funcionário do Ministério do Interior da
Ucrânia na administração de Viktor Yanukovich. O jornal listou
13 laboratórios em cidades como Kiev, Carcóvia, Lvov, Odessa,
Kherson e Dnepropetrovsk, instalados até o ano de 2013 e
financiados com dólares provenientes de Washington.
No início de maio, com a libertação de Mariupol, a
inteligência russa obteve documentos que indicavam a
existência de novos laboratórios biológicos na Ucrânia. No
Hospital Psiquiátrico n° 1 do vilarejo de Streleche, na região da
Carcóvia, eram realizadas experiências em cidadãos
ucranianos. O principal grupo de pacientes eram homens de 40
a 60 anos em um estágio elevado de exaustão física. O
laboratório era mantido pelos EUA e os pesquisadores que lá
trabalhavam eram norte-americanos. Em janeiro, eles fugiram
do local e levaram os materiais para o oeste da Ucrânia. O
dinheiro para criar e manter o laboratório veio do próprio
orçamento do governo norte-americano por meio dos líderes do

40
Partido Democrata, segundo o Ministério da Defesa da Rússia.
Eram levantados fundos de ONGs como as de Joe Biden,
Clinton, George Soros e Rockefeller.
─ Sem o financiamento dos EUA, não haveria como
esses laboratórios funcionarem. Quem financia é quem manda.
Isso obviamente é um plano dos EUA dentro da Ucrânia. Não
tem como ser uma coisa 100% ucraniana.
Algumas das maiores companhias da indústria
farmacêutica estavam envolvidas no esquema, como Pfizer,
Moderna e Merck, além da Gilead, ligada ao exército dos EUA.
“Especialistas americanos estão trabalhando para testar novos
remédios que burlem os padrões internacionais”, denunciaram
os russos.
Além dos EUA, outros países da OTAN participaram da
implementação de projetos biológicos e militares na Ucrânia.
De 2016 a 2019, foram obtidas por epidemiologistas militares
do Instituto de Microbiologia das Forças Armadas da Alemanha
3.500 amostras de soro sanguíneo de cidadãos de 25 regiões
da Ucrânia.
A cidade de Mariupol, reduto do Batalhão Azov, era um
centro regional de coleta e certificação de patógenos de cólera.
Os russos dizem ter obtido evidências de tentativa de
destruição dos documentos que comprovam a participação dos
EUA nesses laboratórios.
Há indícios de que as armas biológicas que estavam
sendo desenvolvidas nos laboratórios ucranianos possam ter
sido usadas contra a população do Donbass. Em 2018, mais
de 70 pessoas morreram estranhamente em Donetsk devido a
variantes da tuberculose extremamente resistentes. Já em
2020, os habitantes do distrito de Slavyanoserbsk, em
Lugansk, também foram deliberadamente infectados com
tuberculose altamente resistente a medicamentos. Em seguida,
os responsáveis pelo ataque distribuíram para crianças cédulas
falsas infectadas com o agente causador da tuberculose.

41
─ Com certa frequência ocorrem explosões na região do
Donbass que criam fumaças laranjas. Tudo indica que trata-se
de armas químicas, ou ao menos tentativas mal-sucedidas de
se utilizar armas químicas contra a população civil. Ou mesmo
que sejam atos provocativos para acusar a Rússia de utilizar
armas químicas contra o exército ucraniano e a população
ucraniana. Uma dessas explosões aconteceu no meio do nada,
em uma área verde perto de Kramatorsk ─ diz Tito. ─ O uso de
substâncias químicas na Ucrânia, não só contra a população,
mas também pelos próprios soldados ucranianos, já foi
provado inclusive pelas próprias tropas das repúblicas do
Donbass. Recentemente, na região de Avdeevka, quando as
tropas da República Popular de Donetsk estavam entrando no
local, encontraram diversos frascos e seringas com substâncias
químicas feitas para estimular o organismo dos soldados
ucranianos, dopando-os para que continuassem a lutar mesmo
cansados, uma prática que também foi utilizada pelas tropas de
Hitler durante a Segunda Guerra Mundial. Além disso, existem
também relatos de que, principalmente os batalhões de
inspiração nazista, podem ter utilizado essas armas contra a
população civil, porque seu ódio contra a população russa é
algo evidente.
─ Quais poderiam ser os objetivos desses laboratórios?
─ Eu acredito que a melhor coisa que os ucranianos
poderiam fazer seria uma guerra biológica de longa data contra
a Rússia. Enfraquecer a imunidade do povo russo. No início
dos anos 90, quando a União Soviética se dissolveu,
começou-se a utilizar químicos dentro da composição da vodca
que diminuíram sua qualidade e acabaram enfraquecendo a
saúde dos russos, de acordo com algumas pesquisas. Grande
parte dessas substâncias químicas vieram justamente de
empresas norte-americanas. É algo para se suspeitar. Uma
guerra contra uma nação como a Rússia através do meio
militar, nuclear, não teria vencedores. Sanções políticas e
econômicas como as que estão sendo impostas contra a

42
Rússia neste momento, também acredito que não terão o efeito
que se esperava no Ocidente. Mas uma guerra biológica, que
terminaria por afetar a saúde da população a longo prazo, isso
sim poderia trazer sérios problemas demográficos, poderia
enfraquecer o Estado Russo. Isso sim é muito possível, mais
lógico, e é um inimigo muito mais difícil de se combater.
Joseph Mengele era o médico encarregado de coordenar
os experimentos alemães em Auschwitz contra os prisioneiros
judeus e eslavos. Todo o tipo de crime contra a humanidade foi
realizado sob as ordens daquele ser nefasto que ficou
conhecido como o “Anjo da Morte”. As forças de extrema-direita
ucranianas não são nazistas apenas ideologicamente, com
suas tatuagens e canções glorificando Hitler e o III Reich. São
nazistas em todos os sentidos. Em Rostov do Don, fomos
convidados a participar, em nome do PCO, do 7° Congresso
Antifascista Internacional. A reportagem sobre o Congresso foi
publicada no dia seguinte.

“Os ucranianos estão cometendo um crime contra a humanidade”


(Diário Causa Operária, 1 de maio de 2022)

─ Eduardo Vasco, de Rostov do Don


Todos olham estarrecidos para aquelas imagens, apesar de
já as terem visto centenas de vezes. Lyubov, que pegou em armas
e foi condenada à morte por se rebelar contra os fascistas, procura
conter o choro. Um clima de angústia toma conta do estúdio do
canal Don 24, onde foi realizado ontem (30) o 7° Congresso
Internacional Antifascista.
Anna Soroka, vice-ministra de relações exteriores de
Lugansk e encarregada da apuração dos crimes de guerra
ucranianos, apresenta vídeos das atrocidades cometidas pelos
militares e principalmente pelo Batalhão Azov contra prisioneiros
de guerra russos e civis no Donbass. Cenas fortíssimas de tiros
em partes do corpo, pessoas agonizando, torturas, propaganda
incentivando decapitações de russos, inúmeras pessoas caídas

43
mortas no chão em poças de sangue, corpos de homens, mulheres
e crianças destroçados, cabeças esmagadas.
“Agora o nosso território está livre e temos várias evidências
dos crimes dos nazistas ucranianos. É difícil de expressar em
palavras. Em várias regiões do Donbass as crianças nunca viram a
paz e são impedidas de ter acesso a serviços básicos, como água,
eletricidade, remédios e comida”, diz. “Nunca pedimos por um
milagre, apenas para que o mundo fosse objetivo ao dar
informações sobre isso, nós tentamos contato com uma série de
organizações de direitos humanos europeias, mas todos os
diálogos foram mal-sucedidos. E agora pedimos para o mundo
criar uma organização internacional alternativa, como uma corte,
onde possa haver uma verdadeira justiça, onde a lei possa ser
para todos e todos os eventos do Donbass sejam finalmente
apurados.”
“Durante esses oito anos, a comunidade internacional nunca
mencionou esses crimes no Donbass”, diz Vladislav Deynego,
ministro do Exterior de Lugansk. “E em geral são um grande crime
contra a humanidade.” O presidente da Câmara da República
Popular de Donetsk, Alexander Kofman, concorda e denuncia a
“comunidade internacional”: “os governos dos países ocidentais
sabem o que está acontecendo na Ucrânia neste momento ─ é um
crime contra a humanidade cometido pelos ucranianos.”
É revoltante como os jornais ignoram completamente essa
realidade. De fato, a vontade é de cuspir na cara dos âncoras,
comentaristas e repórteres da imprensa internacional. São
covardes. Mercenários. Tudo bem, muitos são realmente
ignorantes e não percebem que estão sendo manipulados pelos
seus patrões. Mas muitos sabem disso, sabem qual é a verdade e,
para manter seus carguinhos medíocres nas redações, prestam-se
ao papel de papagaios de pirata do governo dos Estados Unidos.
“Kiev e o Ocidente usam os métodos de Goebbels de que
uma mentira repetida mil vezes se torna verdade, como no caso de
Bucha, mas temos que fazer a verdade aparecer e ela está
aparecendo”... graças a jornalistas como a que pronunciou essa
frase no Congresso, e cujo nome infelizmente não captei. “Eu só
queria dizer que a guerra do Donbass não começou dois meses
atrás, mas sim em 2014. As principais vítimas são idosos,
mulheres e crianças.”

44
Uma delas é Anna Tuv. Ela perdeu toda a sua família nos
bombardeios ucranianos contra o Donbass. Teve uma mão
amputada devido a estilhaços dos mísseis. Por pouco também não
se juntou às mais de 14 mil vítimas fatais do genocídio realizado
pelo regime imposto pelo imperialismo em 2014.
Mas esses números, reconhecidos pelas Nações Unidas,
que já são assustadores, não estão nem perto da verdade. É o que
revela uma representante oficial da República Popular de Donetsk.
“Os números são dez vezes maiores”, declara. Cerca de 4.000
pessoas foram sequestradas. Mais de 60% das capturas de
pessoas foram realizadas de maneira ilegal. Quinhentos e oitenta
casos de tortura foram documentados. “Os batalhões ucranianos
não usam a tortura de forma isolada, essa é uma política do
Estado Ucraniano”, completa.
Os representantes do Comissariado de Direitos Humanos
das Nações Unidas descobriram 300 lugares onde civis foram
torturados pelas forças ucranianas. De 2014 a 2020, cerca de 900
pessoas foram trocadas como prisioneiros, a maioria sendo presos
políticos civis.
Apesar de constatar a tragédia que toma conta da região
que fica entre a Ucrânia e a Rússia, a ONU não faz absolutamente
nada para parar o genocídio. Pelo contrário: sabota, boicota,
sanciona, adverte, acusa e ameaça a Rússia, único governo com
quem o desesperado povo do Donbass pode contar para se
proteger das forças terroristas ucranianas. O governo e o povo
russo, pois há uma verdadeira mobilização popular nacional em
apoio aos seus irmãos de Donetsk e Lugansk. Ajuda humanitária
está sendo enviada não apenas por órgãos oficiais russos, mas
também por organizações da sociedade civil, de cidadãos comuns,
que se solidarizam com o sofrimento do outro lado da fronteira. Há
aqueles que se voluntariaram e estão neste momento pegando em
armas na linha de frente da luta contra o nazismo, como revela
Daria Mitina, do Partido Comunista Unificado. “Os pacifistas, na
prática, estão apoiando a Ucrânia.”
O ministro Deynego relembra ainda como se iniciou toda a
carnificina promovida pelo regime ucraniano no Donbass. Poucos
meses após o golpe contra o então presidente Viktor Yanukovich, o
exército ucraniano iniciou os bombardeios indiscriminados contra
Lugansk, onde a população não aceitou o golpe e declarou
independência da região. Em 2 de junho de 2014, um ataque

45
aéreo atingiu um parquinho de crianças, deixando 11 vítimas fatais.
“A partir desse momento a Ucrânia deixou de existir para os
habitantes de Lugansk. Entendemos que aquilo, de parte da
Ucrânia, de utilizar suas armas contra civis, era puro nazismo.”
A mesma chacina ocorre em Donetsk, há oito anos, e aí
podemos entender por que o regime de Kiev faz uso de nazistas
precisamente na linha de frente: nazistas não têm a menor
compaixão, e para realizar essa tarefa é preciso ter requintes de
crueldade. “São como esquadrões da morte utilizados na África e
na América Latina. Eles não consideram a população do Donbass
e dos russos ucranianos como cidadãos. Eles atacam não
somente ativistas sociais, como também padres e pessoas
patriotas”, denuncia um deputado de Donetsk no Congresso.
O jornalista Yuri Barbachov foi testemunha ocular de alguns
desses crimes. “Os ucranianos não consideram os cidadãos que
estão sob proteção das repúblicas e da Rússia como seres
humanos”, afirma. E explica: “o alvo dos ataques são pessoas civis
que não apoiam a ideologia nazista, e não que não apoiam a
Ucrânia. Os nazistas ucranianos não os consideram como seres
humanos. E aqui é o principal problema do nazismo como
ideologia: durante muitos anos as pessoas que eram parte da
cultura russa foram desumanizadas na Ucrânia. Durante os últimos
oito anos o processo de desumanização foi promovido contra o
povo do Donbass, onde qualquer homem ou mulher poderia ser
torturado ou morto por não ser considerado ser humano. Não há
escolha: você é obrigado a compartilhar sua ideologia, ou se torna
uma vítima dos nazistas.”
Na intervenção representando o PCO, o camarada Rafael
Dantas lembra a todos que “os bandidos imperialistas só
conseguem enganar os povos de todo o planeta porque escondem
os crimes dos fascistas ucranianos”. E nós estamos aqui para
escancará-los.

–----------------------------------------------------------------------------

Companheiros!
É com enorme satisfação que atendemos ao convite para
participar do 7º Congresso Internacional Antifascista em
Rostov-do-Don.

46
Agradecemos o convite da camarada Lyubov Korsakova em
nome do Partido da Causa Operária do Brasil e desejamos a todos
que tenham um excelente debate.
Torcemos para que a luta contra o fascismo que se
desenrola neste momento nos territórios liberados pelas Forças
Armadas russas na Ucrânia seja completamente vitoriosa.
Esperamos que as resoluções tomadas por vocês neste
encontro possam inspirar e fortalecer a luta contra o fascismo em
todo o mundo.
Como brasileiros, fomos convidados a falar aqui sobre como
o povo do nosso país e da América Latina está compreendendo o
que acontece nesse momento na Ucrânia.
Não é uma tarefa fácil. Somos quase um bilhão de pessoas
em 35 países. Somos oprimidos diretamente pelo maior inimigo
dos povos de todo o planeta, o imperialismo norte-americano.
A população brasileira e latino-americana é vítima das
mentiras contadas pelos governos dos Estados Unidos da
América, dos países da Europa Central, pela OTAN e pela ONU.
Os jornais e canais de televisão no Brasil e na maioria dos
países da América Latina (com notáveis exceções como
Venezuela e Cuba) repetem mentiras como a de que a Rússia está
promovendo uma guerra injusta de agressão e conquista na
Ucrânia.
Os bandidos imperialistas dos Estados Unidos e da Europa
Central só conseguem enganar os povos de todo o planeta porque
escondem os crimes cometidos durante oito anos pelos fascistas
ucranianos.
Alguns países da América Latina têm governos
semifascistas, serviçais do imperialismo norte-americano, impostos
por golpes de Estado. Foi o que aconteceu no Brasil, em 2016.
Outros países têm governos incapazes de defender os
interesses de seus povos de maneira consequente.
Isso ficou evidente na ONU.
Muitos destes governos condenaram a Operação Especial
de Desmilitarização e Desnazificação da Ucrânia e apoiaram as
sanções norte-americanas contra a Rússia ou se calaram porque
têm medo de que o imperialismo se volte contra eles.
Mas, não se enganem, companheiros. Os povos do Brasil e
da América Latina não são inimigos do povo russo e do povo
ucraniano.

47
Os trabalhadores da cidade e do campo dos países
latino-americanos não querem prejudicar o povo russo e o povo
ucraniano com as sanções criminosas colocadas em prática pelos
Estados Unidos e os países da Europa Central.
Temos um inimigo em comum: o imperialismo mundial e os
seus bandos fascistas que estão sendo combatidos pelas Forças
Armadas russas na Ucrânia.
Esse inimigo só será derrotado de maneira completa pela
força dos povos oprimidos de todo o planeta e pela força dos
trabalhadores e oprimidos em seus próprios países.
A dominação dos povos de todos os países pelo
imperialismo só acabará com uma revolução socialista.
É nesse sentido, companheiros, que trazemos nossa
solidariedade e esperamos cumprir a missão que nos foi dada
pelos companheiros do Partido da Causa Operária no Brasil, que é
levar a verdade sobre o que está acontecendo na Rússia e na
Ucrânia ao povo brasileiro.
Muito obrigado.
Rafael Dantas e Eduardo Vasco,
Pela direção nacional do Partido da Causa Operária

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Lyubov, a grande liderança dos refugiados de Lugansk na


Rússia, presidenta da União Internacional dos Antifascistas e
organizadora do Congresso, com seus dentes de ouro e seus
cabelos de prata de cinco décadas, abre o evento saudando os
presentes, incluindo o PCO, que representa a América Latina. Ela
explica as origens, os símbolos e a ideologia da força mais
terrorista do regime ucraniano, o Batalhão Azov.
Ela apresenta uma lista de centenas de mercenários
estrangeiros na Legião Internacional de Defesa Territorial da
Ucrânia. “Por oito anos a Europa e as Nações Unidas ignoraram
todas as demandas da União Antifascista Internacional para se
parar a guerra contra o Donbass e o genocídio da população de
etnia russa.” E destaca a necessidade premente de lutar e
esmagar o fascismo através de uma aliança antifascista
internacional, ressaltando o exemplo dos povos de Donetsk e
Lugansk com o apoio da Rússia. “Não há nada que se negociar
com os fascistas”, conclui.

48
O sentimento de camaradagem é enorme junto aos
companheiros de Donetsk, Lugansk e da Rússia. Somos irmãos.
Estamos na mesma trincheira. No final do evento, entrego de
presente ao ministro Deynego um exemplar do Jornal Causa
Operária e explico que a manchete diz “Defender a Rússia contra o
imperialismo”. Ele agradece o presente. Em seguida, entrego a
Lyubov, que está a seu lado, uma camisa e um broche da Aliança
da Juventude Revolucionária. Ela fica tremendamente feliz. Vendo
a gentileza, Deynego retira o broche que representa a bandeira e o
brasão de armas da RPL (o qual eu já estava de olho desde o
começo do Congresso) da lapela de seu paletó e me entrega. Fico
muito agradecido e digo que é uma honra poder estar junto com
esses companheiros, que dão um exemplo para todo o mundo ao
pegar em armas contra o fascismo e construir duas repúblicas
populares no meio de uma guerra de agressão que estão sofrendo.

Algo que esqueci de mencionar na reportagem acima: o


congresso teve de ser interrompido em determinado momento
devido a um bombardeio ucraniano contra a cidade russa de
Belgorod. Isso afetou os transmissores via satélite e levou à
queda do sinal de internet dos participantes a distância…
Os batalhões de extrema-direita ucranianos não são os
únicos que se inspiram nos nazistas alemães para cometer
crimes. Outra inspiração para aqueles que estão em guerra
contra a Rússia é Joseph Goebbels, o arquiteto de toda a
propaganda da Alemanha nazista, baseada em todo o tipo de
mentiras e manipulações. Se os discípulos de Mengele estão
realizando experiências em seres humanos e desenvolvendo
armas biológicas, os discípulos de Goebbels estão neste exato
momento produzindo e disseminando notícias falsas,
fabricadas e distorcidas para apontar a Rússia como a vilã da
estória.
Desde o início da participação direta de Moscou na
Ucrânia, vêm sendo realizados atentados de bandeira falsa,
manipulados pelos ucranianos em associação com a imprensa
internacional para acusar os russos de criminosos de guerra.

49
Foi o que aconteceu, por exemplo, no início de março em
Mariupol. Uma maternidade foi bombardeada e, em um piscar
de olhos, repórteres e fotógrafos já estavam ali para registrar a
tragédia causada pela Rússia. Mas a maternidade estava
vazia! Ou melhor, estava ocupada por… soldados da Ucrânia!
Os próprios moradores da cidade revelaram que a maternidade
estava fechada e havia sido ocupada pelos militares
ucranianos. Uma das mulheres que estava na única parte da
maternidade que funcionava afirmou que o edifício havia sido
evacuado a mando do Batalhão Azov, que expulsaram a
maioria dos pacientes. Isso significa que a maternidade foi
transformada em uma base militar. Uma base militar é um alvo
natural e legítimo em uma guerra.
─ Desde o início do conflito na Ucrânia ─ explica Tito ─, o
que mais se vê (e existem fotos e vídeos feitos pelos próprios
soldados ucranianos) são as forças armadas da Ucrânia, e
principalmente os combatentes dos batalhões nacionalistas,
utilizando a infraestrutura civil para se esconder das forças
armadas russas ou, para que quando houver o fogo de
resposta, essas bombas e o fogo de artilharia russa caiam
justamente nessa infraestrutura civil, como escolas,
maternidades, hospitais em geral e prédios residenciais. Tudo
para culpar a Rússia. No entanto, essa prática dos militares
ucranianos e dos batalhões nacionalistas é extremamente
covarde, porque colocam a própria população como refém e
instalam armas ao lado de onde está mantida presa. Então
disparam com essas armas contra as forças russas, que
retaliam logicamente na direção de onde parte o ataque. O que
pode acontecer é um civil acabar morrendo ou uma escola
acabar sendo destruída. E o que vem no noticiário internacional
é só a parte do fogo de resposta russo ─ os antecedentes não
são revelados.
No início de abril, surgiram informações de um suposto
massacre promovido pela Rússia na cidade ucraniana de
Bucha. Imagens mostravam corpos de pessoas mortas

50
espalhados pelas ruas da cidade, após a passagem dos
militares russos. Uma investigação concluiu que, em
determinada região da cidade, os corpos estavam no local há
mais tempo do que o anunciado pelos ucranianos. O massacre
teria ocorrido em 22 de março, mas os ucranianos só
encontraram os supostos mil mortos mais de dez dias depois,
mesmo passeando todos esses dias pela pequena cidade e
filmando vídeos das ruas vazias, sem nenhum cadáver.
Poucos dias depois, surge um novo “massacre russo”,
desta vez em Kramatorsk. Um ataque de um míssil russo
contra uma estação de trem teria matado mais de 50 pessoas.
─ Os ucranianos disseram que o ataque foi com mísseis
Iskander ─ diz o jornalista. ─ Mas uma análise das imagens
dos destroços deixa claro que eram mísseis Tochka-U, que é
um míssil balístico de produção soviética e que já há alguns
anos não é mais utilizado pelas forças armadas russas. Esse
míssil não é encontrado no arsenal militar russo. Desde o início
da operação especial, a Rússia utiliza mísseis Kalibr, Iskander,
Kinzhal, mas não o Tochka-U. Porque é um míssil que já está
ultrapassado para os padrões militares russos e não está em
serviço. A Ucrânia sim, por sua vez, utiliza o Tochka-U. O
número de série também não bate com os números de série
utilizados pelo exército russo. E os dados que foram obtidos
pelo Ministério da Defesa russo sobre a área do lançamento do
míssil mostram que o míssil em questão foi lançado a partir do
território que estava sob ocupação do exército ucraniano. Não
resta dúvida: foi um ato provocativo.
Mariupol, Bucha e Kramatorsk foram insistentemente
martelados na cabeça do público mundial pelos noticiários.
Assim como ocorreu na Guerra do Golfo, no Cossovo ou na
Síria, as agências de publicidade e relações públicas
localizadas principalmente nos EUA produzem um roteiro
verdadeiramente cinematográfico ─ que tem sido o mesmo em
todas essas décadas. Histórias fantásticas, das quais o público,
entorpecido pelo bombardeio de mentiras, sequer consegue

51
refletir sobre a veracidade daqueles supostos fatos. Cenas
dramáticas, muito bem produzidas e montadas, fotos perfeitas,
declarações espetaculares, vítimas, mocinhos e vilões
estereotipados.
─ De acordo com as informações da inteligência da
Rússia e da Bielorrússia, a Polônia tem sido o maior hub de
coordenação de como as informações são passadas ao mundo
a partir daquilo que acontece na Ucrânia. Isso é feito em uma
coordenação direta entre os militares norte-americanos
instalados na Polônia, junto com as maiores agências de
notícias internacionais e também com a imprensa local dos
países europeus. A imprensa já tem tudo preparado. Hoje, todo
o trabalho que é feito pela Ucrânia, não passa se não tiver uma
autorização dos EUA. Então, se a Ucrânia faz um ataque
provocativo em alguma cidade, não passa meia hora e a
imprensa internacional já está dizendo que foi a Rússia. Já está
tudo preparado. Ela já tem o texto pronto. Um jornalista não
consegue produzir um texto com verificação séria dos fatos em
meia hora, até mesmo por questões técnicas. Então é muito
estranho você ver uma notícia acusando a Rússia de algo que
aconteceu cinco, dez minutos atrás. Isso mostra que há todo
um preparo pronto para falar a mesma coisa de forma
unânime.

52
Capítulo IV …

Veias
latinas

Era sábado, 9 de abril. Como ocorre todas as vezes desde que


cheguei na Rússia, estou atrasado para meu compromisso.
Vamos nos reunir na sede do Comitê Russo para a
Cooperação com a América Latina, organização originada em
1973, pouco antes do golpe de Estado no Chile. Naquela
época, era ela quem articulava a solidariedade com as vítimas
da ditadura instalada por Augusto Pinochet, a partir da União
Soviética. Na verdade, a história do comitê se mistura com a do
grupo Grenada, formado em 4 de fevereiro de 1973 ─ um
conjunto musical e artístico que foi responsável por muito da
política de aproximação da URSS com outros países, através
de suas viagens culturais, e boa parte de seus membros até
hoje faz parte do comitê.
O Grenada é responsável, por exemplo, pelo
estabelecimento de relações diplomáticas entre Rússia e
Paraguai e ajudou no envio de armamento para os guerrilheiros
de El Salvador na década de 1980. Ao contrário do que
pode-se pensar, apenas um dos membros do Grenada era do
Partido Comunista da União Soviética, a partir de 1983. Os
participantes do conjunto viajavam pelo mundo todo realizando
seus concertos, inclusive muitas vezes para os Estados
Unidos. O governo soviético só os proibiu uma vez de cantar
alguma música (foi sobre o uísque, nos EUA). Mas nunca
foram proibidos de viajar. Em 1999, foram recebidos por Phil
Collins durante uma excursão por aquele país. Era um grupo

53
único na URSS ─ e continua sendo na Rússia atual. Antes
recebia apoio do governo soviético, mas o governo russo não
manteve esse apoio. Foi laureado com o Prêmio Komsomol
Leninista e com o Prêmio da Organização dos Pioneiros da
URSS.
Atualmente, fora os amigos e participantes esporádicos,
há 30 membros permanentes no grupo liderado por Tatiana
Vladimirskaya, que o integra desde os seus primórdios. Muitos
deles falam um espanhol impecável, e foi assim que nos
comunicamos.
─ O povo russo passou muito tempo acreditando que os
Estados Unidos seriam bons amigos, que nós explicaríamos
nossas razões a eles e eles nos entenderiam ─ conta Tatiana,
que frequentou durante muito tempo a casa de Luís Carlos
Prestes quando este se encontrava exilado na União Soviética.
─ Vocês acham que a operação militar vai terminar em
breve? Como isso está afetando a população de um modo
geral? ─ pergunta Rafael.
─ O tema da guerra nos dói muito, é um tema muito
delicado para nós ─ responde. ─ Esperamos que o público
brasileiro entenda isso. Temos um território muito grande e
poucos habitantes. Foi uma medida necessária, não tínhamos
outra saída. Os crimes do governo ucraniano contra os
habitantes do Donbass são horríveis: muitas vítimas,
bombardeio sem fim e nunca interessou a ninguém no mundo.
Poderíamos ter esperado mais, mas já começou a preparação
para a guerra contra a Rússia. Essa preparação durou muito
tempo e nosso governo tolerou por muito tempo, de modo que
o lado ucraniano se preparou para a guerra. Temos uma
história e um povo comum com a Ucrânia. Nosso exército tenta
evitar as vítimas. O ataque de informação é dez vezes mais
forte do que os combates. Infelizmente os habitantes da
Ucrânia têm uma ideologia muito forte, a ideologia da
eliminação do vizinho, a russofobia.

54
─ Vocês acham que a maioria dos ucranianos pensa
assim? ─ provoco.
─ Eu acho que sim. Nosso grupo esteve muitas vezes na
Ucrânia apresentando nossos concertos e sempre éramos
recebidos com carinho.
─ Então o pensamento dos ucranianos mudou?
─ Absolutamente. Mas isso já vinha sendo preparado
pouco a pouco. Ainda em 1988, quando nosso grupo esteve
em Cuba visitando crianças de Chernobyl, representantes da
Ucrânia começaram a trabalhar com as crianças ucranianas
semeando o ódio contra os russos e bielorrussos. Diziam a
nosso pessoal que deveríamos fazer o concerto à parte porque
as crianças ucranianas não podiam sentar com as russas. E os
cubanos não entendiam o que estava acontecendo.
─ Então foi um processo de mudança que começou em
2010 mais ou menos?
─ Antes. Há mais de 40 anos. Mas as crianças
ucranianas, apesar disso, buscavam contatos conosco.
─ Começou antes do final da União Soviética e foi se
desenvolvendo?
─ Sim, e quando nosso grupo esteve em Kiev em 2010 os
ucranianos ainda nos abraçavam e se emocionavam.
─ Então esse processo de ódio contra os russos começou
ainda no final da existência da URSS, se desenvolveu e a partir
de 2010 mais ou menos ele aumentou e resultou no golpe de
2014?
─ Sim, foi isso. Mas depois de 2014 isso explodiu. Até
aquele ano eram apenas alguns grupos que disseminavam
esse ódio. Durante o golpe, na Praça Maidan, um dos lemas
das manifestações era “morte aos russos”. Vocês nunca
ouvirão na Rússia coisas como “morte aos ucranianos”, mas na
Ucrânia isso agora é comum.
─ Vocês acham que esse sentimento foi plantado pelos
EUA na Ucrânia?

55
─ Acho que esses grupos nacionalistas existem em todos
os países, mas sim, com certeza os Estados Unidos ajudaram
a impulsioná-los. Na Ucrânia trabalhavam ONGs
norte-americanas.
─ Russos e ucranianos são um mesmo povo?
─ Praticamente sim. Temos familiares em comum.
─ É difícil definir o momento exato em que esse
movimento ucraniano contra a Rússia começou ─ intervém
Pablo, um venezuelano que vive já há alguns anos em Moscou
e que está se preparando para lecionar Física na Universidade
russa. ─ Já durante a II Guerra Mundial houve um movimento
fascista na Ucrânia, liderado por Stepan Bandera. Mas foi há
cerca de 30 anos que começou essa russofobia na Ucrânia.
Eu, particularmente, não diria que todos os ucranianos odeiam
a Rússia, há toda uma população no leste (em Donetsk e
Lugansk), assim como na Crimeia, que defendem a Rússia e
estão agora sendo protegidos pela Rússia dos bombardeios
sofridos da Ucrânia desde 2014. Do meu ponto de vista, a
Rússia está se defendendo do expansionismo da OTAN que
ameaça a Rússia (inclusive com armas de destruição em
massa). E eu tenho uma filosofia: quando ocorre um conflito
internacional sobre o qual eu não estou informado, vejo qual é
a posição dos EUA e me coloco do lado contrário. Na minha
opinião, talvez se tenha demorado muito tempo para tomar
esta decisão [de intervir militarmente na Ucrânia], mas não
havia uma outra alternativa, e se a Rússia tivesse atuado como
os EUA ou como a União Europeia quando estes invadem
países, o conflito na Ucrânia já não existiria mais [devido à
destruição total do país].
─ Vocês mencionaram as ONGs. Ouvi falar que há uma
restrição muito grande às ONGs imperialistas na Rússia ─
comenta Rafael.
─ Até algum tempo atrás trabalhavam aqui muitas ONGs
financiadas pelos EUA (como a USAID ou a Open Society) ─
lembra Tatiana Viatkina, nosso primeiro contato no comitê e de

56
quem me tornei amigo a ponto de chamá-la carinhosamente de
Tati. ─ Até que aprovamos a lei de controle das ONGs. Muitas
ONGs fecharam porque tinham que apresentar a informação
sobre de onde vinha seu financiamento. Percebemos que nos
EUA as ONGs eram obrigadas a informar absolutamente tudo
sobre o seu funcionamento, enquanto aqui elas faziam tudo o
que queriam. Tiveram de se declarar como agentes
estrangeiros porque recebiam financiamento externo. Agora
não funcionam tantas ONGs aqui e uma das coisas positivas
que aconteceram quando se começou este conflito é que duas
agências de notícias fecharam (a rádio Eco de Moscou e
Dozhd), elas manipulavam informações contra a Rússia…
─ E eram financiadas pela CIA? ─ interrompo.
─ Claro, claro! E agora fecharam, graças a Deus! E a
frequência que pertencia à Rádio Eco de Moscou agora
pertence à Sputnik, uma rádio tão famosa mas que nem sequer
tinha um espaço no sinal de rádio. Então agora existem muitas
restrições para as ONGs e são poucas as que atuam na
Rússia, e nós queremos que vão embora do nosso país.
─ Agora que estamos sob sanções podemos ver quem é
nacionalista e quem não é ─ opina Victor Gorokhov, um senhor
muito simpático que me causou muita empatia. ─ Os oligarcas
não são, assim como muitos intelectuais. Não queremos que
os EUA façam conosco o mesmo que fizeram com a América
Latina. Não queremos ver em nossa terra esses crimes que a
OTAN cometeu em outros países. A OTAN quer uma Rússia
fraca para competir com o Ocidente em condição desigual. Mas
quanto mais nos pressionarem, mais fortes ficaremos. A Rússia
sempre venceu inimigos fortes e também sempre teve muitos
amigos maravilhosos como, por exemplo, amigos tão bons e
fiéis como vocês do Brasil, que compreendem que neste
mundo o dinheiro não pode resolver tudo. Há outras forças que
nos levam por outro caminho.
Neste momento, toma a palavra uma senhora com seus
70 e poucos anos. Cheia de pulseiras, com as unhas bem

57
feitas e pintadas, cabelo comprido bem negro e um olhar
disfarçado quando termina de falar, um tanto tímido, ela é filha
de uma heroína grega, aprisionada, torturada e martirizada nos
cárceres da ditadura grega nascida da guerra civil que sucedeu
a ocupação nazista. Electra Apostolu deu à luz Agni Sideruidu
dentro da prisão. A criança foi enviada para a União Soviética
em 1950, onde cresceu como refugiada. Na URSS, terminou a
escola e a universidade e pôde voltar ao seu país de origem
em 1965.
─ As posições dos ingleses sempre foram muito fortes na
Grécia e tiveram ajuda dos EUA na Guerra Civil, apoiando os
fascistas gregos. Os imperialistas bombardearam terrenos
inteiros com napalm. Essa arma criminosa não foi utilizada pela
primeira vez no Vietnã, mas sim no norte da Grécia. A guerra
civil sempre é horrível. E a guerra atual se converteu em uma
guerra civil entre nossos povos ─ diz a greco-russa.
─ A bandeira da União Soviética tem aparecido bastante
no conflito, no Donbass e também na Rússia ─ observa Rafael.
─ A bandeira da URSS nunca desapareceu ─ fala Tatiana
Vladimirskaya, categórica. ─ Quando nossas tropas libertam
um território na Ucrânia, surge uma pergunta: que bandeira
podemos estender aqui? Porque há a bandeira de Donetsk, a
bandeira da Rússia etc. Mas a Rússia não faz nenhuma
anexação e não ocupa, senão liberta. Então qual bandeira
vamos içar? Os habitantes locais dizem para içar a bandeira da
URSS. Esse fato vai ao encontro do que quer a população: ver
a bandeira da União Soviética em seu território. Mas
lamentavelmente no nosso país se está realizando uma
propaganda antissoviética.
─ Há um orgulho da URSS entre o povo?
─ Sim. Mas há muita propaganda antissoviética, nos
últimos anos especialmente.
─ Propaganda do governo? ─ interpelo, curioso.
─ Não, mas principalmente de intelectuais, professores
universitários, artistas, que aqui em sua maioria são de direita.

58
Claro que essa propaganda antissoviética influencia muito, mas
há muitas pessoas que se recordam e muitos jovens que
estudam. Lamentavelmente, não temos um partido comunista
forte e com bons posicionamentos. Se tivéssemos um partido
como o de vocês… ─ todos sorriem e brincam.
A conversa, muito agradável e animada, continua mais
um pouco até o final da noite, após uns comes e bebes, com
nossos novos amigos russos festejando alegremente. Alfia e
Catelina ─ que não haviam falado nada durante a conversa ─
demonstram grande interesse por nós e nos chamam de
“heróis” por termos ido à Rússia cobrir a situação e mostrar o
lado russo, mesmo sem termos infraestrutura, dinheiro e
contatos. Nos despedimos e do lado de fora mostro a Rafael as
placas em homenagem a Krupskaya e Anatoly Lunatcharsky,
primeiros comissários do povo para a Educação, na fachada de
um prédio governamental no Boulevard Chisty Prudy. Pegamos
o metrô de mesmo nome e me despeço de Rafael. Desta vez,
não volto para a estação mais próxima de onde estou
hospedado. Vou para a estação Preobrajenskaya Ploshchad
para então voltar a pé: quero me arriscar sozinho pela noite de
Moscou, à meia noite, e ver se sou assaltado. Naturalmente,
peço ajuda a um casal de jovens após uns 20 minutos perdido
igual ao John Travolta em Pulp Fiction. Prossigo a caminhada e
vejo poucas pessoas nas ruas, mas me sinto seguro e
realmente não havia o que temer. Eu não estava em São Paulo
ou no Rio de Janeiro. Ou em Nova Iorque. Moscou parece ser
muito mais segura.
Dois meses depois, de volta a Moscou, nos encontramos
novamente com nossos amigos do Grenada e do Comitê de
Cooperação. Apresentamos a eles o nosso relato do que vimos
ao visitar o Donbass, incluindo um documentário sobre a
cidade de Rubizhne, destruída pelos ucranianos.
─ Essas imagens fazem um russo chorar ─ confessa
Tatiana Vladimirskaya. ─ Na época da União Soviética, a
Ucrânia era muito rica e o Donbass era o lugar mais rico e mais

59
próspero da Ucrânia. Vemos agora um contraste muito grande,
que vocês não podem imaginar. Em muitos lugares do mundo
há guerras, fome e destruição, mas não imaginávamos que
isso poderia ocorrer na URSS.
Ela diz que na Rússia também há gente que acredita que,
quando esse tipo de imagem é mostrado pela TV russa, não
passa de propaganda.
─ Mas foram vocês que filmaram, não é propaganda
russa!
Na sede do Comitê, a sala de reuniões está cheia para
participar do debate. Tatiana continua:
─ A Rússia está ajudando Donetsk e Lugansk a levantar a
bandeira vermelha e a força mais importante que está levando
ajuda humanitária russa ao Donbass é a parte que quer
levantar a bandeira vermelha. No Donbass, as pessoas querem
e estão levantando a bandeira vermelha. A maioria dos
militares russos que estão lá não é comunista mas antifascista.
Na Europa, o fascismo se levantou e isso fez com que as
diferentes forças políticas e ideológicas da Rússia se unissem
contra isso e a RPD e a RPL estão na frente de batalha contra
o fascismo e o imperialismo. Não há dúvida que vamos derrotar
o fascismo ucraniano, mas acho que também vamos golpear o
imperialismo europeu com essa vitória.
Do alto de sua experiência, Tatiana parece enxergar
nitidamente a profundidade da importância da ação russa no
Donbass, que pode não apenas derrotar o fascismo na Ucrânia
e golpear o imperialismo na Europa, mas até mesmo,
contraditoriamente, abalar a dominação dos capitalistas dentro
da própria Rússia.
─ A influência dessas pequenas repúblicas é muito forte
na Rússia, então tanto pode ser que a Rússia e seus oligarcas
suprimam os regimes atualmente existentes na RPD e na RPL
como pode ser que elas influenciem a Rússia de forma
progressista.

60
Na segunda passagem por Moscou, sou acolhido pela
querida Tati em seu apartamento construído na época de
Stálin, onde ela mora junto com seu marido Sasha e sua bebê
que está prestes a nascer. Também deverá se chamar Tatiana,
mas em homenagem à Vladimirskaya, que é uma referência
para todos os membros do Grenada ao ponto de muitos deles
se casarem no mesmo dia em que ela se casou.
Tati tem críticas ao governo Putin, apesar de apoiá-lo
devido às suas políticas sociais ─ embora na União Soviética,
diz, o povo tivesse muito mais direitos. Uma das críticas é da
aliança com a Igreja Ortodoxa (apesar de ela mesma ser cristã
ortodoxa), que é ultraconservadora e exerce influência sobre a
política governamental. Pergunto sobre Dmitri Medvedev ─
ex-presidente e ex-primeiro-ministro, que já foi o braço direito
de Putin ─ e ela me diz que trata-se de um político ligado aos
empresários e que tem vínculos com o Ocidente, confirmando
uma análise que eu já havia lido há alguns anos. Ela também
tem críticas aos intelectuais e aos meios de comunicação, que
procuram atacar o passado soviético. Por exemplo, me diz que
há novelas e filmes produzidos com o apoio do governo que
tratam a URSS como um capítulo negativo na história do povo
russo.
Um dia, quando fui levar o lixo para fora e voltei em
seguida, Tati ficou preocupada porque me viu sair de repente.
─ Bem, você esteve no Donbass… ─ justificou ela, em um
tom como se estivesse dizendo “bem, você não bate bem da
cabeça, vai saber o que estava pensando em fazer…”
Ela tem 32 anos e Sasha, 39. Estão juntos desde 2014,
quando se conheceram, e casaram-se no ano passado. Sasha
é engenheiro em uma fábrica estatal que fica a 20 minutos a pé
de sua casa e produz peças para a indústria bélica russa.
Interessa-se muito pelas questões do mundo do trabalho e
também é comunista. Passei algumas noites tendo longas
conversas com ele na cozinha sobre a situação dos
trabalhadores e da esquerda no Brasil, a história do Brasil no

61
século XX, a situação na Rússia e no mundo, sobre marxismo,
literatura, cinema, Tarkovski, Eisenstein, Mikhail Kalatozov, o
papel da arte na representação da realidade e sobre a
rivalidade Karpov vs. Kasparov. Tem um gosto especial por
literatura estrangeira, principalmente latino-americana. Adora
Jorge Amado e gostou muito do filme Central do Brasil.
Acredita que os livros e filmes de ficção de qualidade podem
ensinar muita coisa sobre a realidade. Concordo plenamente.
Tem críticas ao Partido Comunista da Federação Russa, aos
intelectuais e acadêmicos.
─ Não entendem a realidade dos operários.
Assim como todos os comunistas russos que conheci, é
um admirador de Stálin. Surpreende-se quando digo que sou
trotskista. Deve ter se surpreendido ainda mais com a
convergência de nossas opiniões.
Nos levam a uma apresentação do Grenada no Instituto
Latino-Americano da Academia de Ciências da Rússia. Estão
praticamente todos lá, os membros do Comitê. Postados um do
lado do outro, cantam músicas da América Latina,
acompanhados por Victor no teclado e observados e
conduzidos por Tatiana Vladimirskaya, uma verdadeira
liderança, com um carisma fora do comum que nenhum
estrangeiro esperaria de uma russa.

Aquí se queda la clara


La entraña de transparencia
De tu querida presencia,
Comandante Che Guevara

Un Fidel que vibra en la montaña


Un rubí, cinco franjas y una estrella

Viva el señor don Cristóbal


Que viva la patria mía
Vivan las tres carabelas

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La Pinta, la Niña y la Santa María

Ah, se ela soubesse que quando ela passa


O mundo inteirinho se enche de graça
E fica mais lindo por causa do amor

Bela interpretação de Ksenia, cantando em português


especialmente para nós, sob a companhia de seu filho Serguei
utilizando um chocalho para reproduzir o som da água do mar.
Já Valentina, a principal vocalista da noite, tem uma voz e uma
interpretação tão intensas! Canta com a alma, como se
estivesse liderando uma revolta popular. Estou completamente
encantado com a apresentação do grupo, e muito emocionado
com as canções que canto junto com eles. No final da festa,
dançamos todos juntos alegremente.

63
64
Capítulo V …

Traumas

─ Eu nasci em 1984 ─ me diz Ivan, em seu apartamento em


Novocherkassk, Oblast de Rostov. ─ Ia para a escola sozinho,
não havia preocupação sobre segurança. Tudo era bom e
tranquilo, as crianças tinham atividades o dia todo, brincavam
na rua o dia todo sem os adultos, sem se preocupar com a
segurança. A partir dos anos 90, a situação piorou muito
rapidamente. Apareceram muitos problemas, muito crime. As
pessoas não tinham mais o que comer, não tinham salário,
emprego, iniciou-se uma guerra na Chechênia. Havia um risco
muito grande de o país ser destroçado.
Sento na mesa da cozinha, observando-o. Ele permanece
de pé.
─ Na década de 1990, muita gente passou fome na
Rússia. Lembro de ver os meus pais chorarem.
─ Por causa da fome?
─ Sim.
O olhar de preocupação atravessa a janela, como se
quisesse fugir das recordações daqueles tempos difíceis.
─ Um dia, meu professor foi para a aula e não conseguia
ficar de pé, porque estava com fome (Ivan o imita,
debruçando-se na mesa com cara de zumbi). Nós, crianças,
nos organizávamos em grupos para buscar frutas nas árvores
para comer.
Esse tipo de história, todos os que viveram aquele
período conhecem ou possuem.

65
─ Na União Soviética, havia estabilidade total. Ninguém
precisava se preocupar com o seu futuro ─ conta Serguei, de
38 anos, que viveu sete anos no Brasil e prefere ser chamado
de Sérgio porque acha que Serguei é feio. ─ Também não
havia muita desigualdade salarial, o salário de um trabalhador
comum era parecido com o de um doutor. Você até poderia ser
demitido, mas no dia seguinte te dariam um novo emprego.
Nos anos 90, tudo mudou. Iéltsin acabou com a economia
russa.
Apoiador de Putin, mesmo não tendo nenhuma
vinculação política, Sérgio diz que a operação especial está
servindo para limpar do governo aquelas pessoas que
trabalham contra a Rússia. Pessoas assim infestavam o
aparato governamental há 30 anos, começando pelo então
presidente Bóris Iéltsin, cujo discurso de renovação e
contestação da burocracia stalinista ─ da qual ele próprio era
parte ─ desembocou no mais selvagem neoliberalismo.
─ Na minha opinião, a economia da União Soviética
precisava de mudanças profundas naquele momento, mas não
precisava ser destruída. E foi isso que fizeram: destruíram
totalmente a economia, quebraram tudo ─ aponta Varvara
Kuznetsova, cientista política e pesquisadora do Instituto
Latino-Americano da Academia de Ciências da Rússia. Foi
fundado na década de 1960. Na época da URSS, a revista
institucional tinha seu próprio correspondente no México e
havia cerca de 80 funcionários apenas no departamento de
economia da entidade. Hoje, há cerca de 60 funcionários em
todo o Instituto.
─ Muitas pessoas não estavam preparadas mentalmente
para viver nessa permanente competição capitalista ─
continua, em português fluente. ─ Porque de repente
descobriu-se que só valem as pessoas que têm capacidade
para negócios. E os cientistas, os professores, os médicos,
cujo objetivo era trabalhar para o bem do povo, para o

66
desenvolvimento do país, de repente ficaram todos fora. O que
não tinha nada a ver com os negócios ia para o lixo.
─ Os problemas sociais aumentaram muito?
─ Evidentemente. Criou-se um abismo na desigualdade
social. Os habitantes da União Soviética só conheciam isso
pelos livros de história, sabiam que isso existia na Rússia
imperial, mas jamais imaginavam que fosse possível ocorrer
em suas próprias vidas. Era inimaginável a desigualdade social
que se iniciou nos anos 1990. E além disso, muitas pessoas
simplesmente perderam seu dinheiro, sua poupança. Os
aposentados, por exemplo, ficaram sem nada.
─ Pobreza, consumo de drogas, desemprego
aumentaram?
─ O consumo de drogas nos anos 90 era um problema
muito grave. Hoje, diminuiu bastante. Se você for a qualquer
cemitério, verá muitos túmulos com a data de nascimento do
final dos anos 70 ou início dos anos 80 e a data da morte em
meados dos anos 90. As causas eram duas, geralmente: a
criminalidade (que floresceu naquele momento) ou o consumo
de drogas (esse consumo era enorme nas escolas e
faculdades). Nos anos 90, isso era proibido, mas na prática as
proibições não existiam: imperava o capitalismo selvagem e a
anarquia total.
Então o tempo para a fim de me permitir recordar em
minha cabeça aquela noite de sexta-feira em Rostov com Abdo
(apelido de Abdalrahman), egípcio com quem fiz amizade no
hostel onde nos hospedamos. Simpatizante de Saddam
Hussein, Muamar Kadafi, Gamal Abdel Nasser, Hamas e Talibã
e inimigo de Israel, tem 18 anos e estuda na Rússia há um ano
e meio. Vai para Ufa no ano que vem estudar engenharia
aeronáutica na universidade.
Vamos comprar uma cerveja Baltika para mim e um
refrigerante para ele, que é muçulmano e não bebe, em um
mercadinho entre as ruas Pushkinskaya e Voroshilovsky.
Enquanto estamos na fila do caixa, dois rapazes nitidamente

67
de origem estrangeira (talvez do Oriente Médio ou do Cáucaso)
encrencam com Abdo. Provocam-no, aparentemente tentando
vender algo a ele. Quando nos livramos da dupla, meu amigo
me diz que eles são da máfia russa.
─ Na Rússia, a máfia não tem armas ─ ressalta.
─ Capitalismo selvagem? ─ interpelo Varvara, após minha
breve “viagem”.
─ Sim. O período de Iéltsin era uma vergonha nacional.
Na realidade, o que nós, russos, pensamos? Muita gente
pensa que duas pessoas na história da Rússia moderna
merecem ir para o inferno, inferno permanente: Gorbatchov e
Iéltsin. Uma vez uma senhora brasileira me perguntou: “por que
na Rússia não há monumentos para Gorbatchov, se ele lhes
deu liberdade?”. Quando nos fazem perguntas assim, a gente
ri. Que tipo de liberdade? Liberdade de hipoteca com juros
altíssimos? Liberdade de ganhar uma miséria? Liberdade de
quê? Liberdade de expressão? Tudo bem, a gente pode falar
qualquer coisa. Mas quem escuta? Então, podemos dizer que
venderam um grande e forte país pelos jeans e Coca-Cola. As
pessoas que queriam o capitalismo experimentaram uma
grande desilusão. Provavelmente por isso o que Putin propôs
[reestatização de algumas empresas-chave, como a Rosneft,
Yukos (incorporada à Rosneft), Gazprom e Aeroflot, bem como
a criação da RZD para controlar o sistema de transporte], que
não era nada ideal, mas era algo diferente daquilo que vivemos
nos anos 90, teve sucesso. Eu, pessoalmente, acho que um
enorme erro dos últimos governos da União Soviética nos anos
80 foi que não abriram logo a Cortina de Ferro. Antes de fazer
qualquer mudança econômica, tinham de abrir a Cortina de
Ferro. Porque evidentemente as pessoas iriam embora do país.
Mas tenho certeza que um, dois, três anos vivendo sob o
capitalismo, perderiam todas as ilusões e as pessoas
começariam a valorizar mais o que tinham. O problema é que
não sabiam como era fora da Cortina de Ferro. Achavam que lá
todos bebiam Coca-Cola, usavam jeans de grife, dançavam e

68
eram felizes. Na época de Iéltsin, o país foi saqueado.
Acabou-se com a indústria, com a ciência, privatizou-se as
empresas que depois foram aniquiladas, todo esse dinheiro foi
levado para os bancos da Suíça. Entregou-se de graça a
propriedade estatal a um grupo de oligarcas.
─ E o que são esses oligarcas?
─ O mais interessante é que eles eram todos da elite do
Partido Comunista e do Komsomol [a organização da juventude
do partido]. Na realidade, quem destruiu a União Soviética? O
impulso foi dado pelo próprio Partido Comunista. Foi uma
degradação total. Aquelas pessoas tinham muitos privilégios.
Tinham acesso aos bens. Mas não podiam converter os seus
privilégios em dinheiro e propriedade. Quiseram fazê-lo. E
destruíram o nosso país.
Após a entrevista, Varvara nos conta as suas impressões
sobre a política brasileira, tema sobre o qual vem pesquisando
nos últimos anos.
─ A esquerda brasileira é muito americanizada. Para ela,
os direitos dos homossexuais e das mulheres são mais
importantes que os direitos dos trabalhadores. Até parece que
no Brasil não existe mais o desemprego e outros problemas
sociais. Parece que o mundo todo vive feliz e só os
homossexuais estão sofrendo. Eu acho que se não fosse esse
foco nos homossexuais, não teria havido essa reação
conservadora e talvez Bolsonaro não tivesse vencido em 2018.
A década de 1990 foi um verdadeiro inferno. De um ano
para outro, o consumo caiu 40%, entre 1991 e 1992. Um terço
da população (34%) foi jogada abaixo da linha da pobreza.
Quando Putin foi reeleito em 2004, após 5 anos do primeiro
mandato, 20% dos russos ainda estavam nessa situação (30
milhões de pessoas). Mais de 225 mil empresas foram
privatizadas. “Em 1998, mais de 80% das fazendas russas
estavam falidas e cerca de setenta mil fábricas estatais tinham
fechado, criando uma epidemia de desemprego”, escreveu
Naomi Klein em seu livro A doutrina do choque. Em 20 anos,

69
enquanto a população empobreceu e diminuiu em 10%, o
número de bilionários (os oligarcas) passou de zero para mais
de 100. Mas os anos de neoliberalismo não significaram
apenas a completa subversão da economia planificada.
Também foi implementada uma política de total negação do
passado soviético. E não apenas na Rússia, mas nas outras
ex-repúblicas da URSS. Nestas, a negação do passado
soviético vinha carregada de um sentimento antirrusso. Foi o
que ocorreu no Uzbequistão e no Tajiquistão, por exemplo ─
lembra Akhmat, camarada do Comitê Russo de Cooperação
com a América Latina, nascido em Bukhara, no Uzbequistão.
Essa negação vinha através de propaganda financiada por
ONGs estrangeiras, diz.
E foi o que aconteceu na Ucrânia. Misha, jornalista da
Krasnoye TV, a quem entrevistamos e que nos entrevistou,
recorda que já na década de 1990 havia propaganda antirrussa
na TV ucraniana.
─ Eu estive muitas vezes na Ucrânia. Essa propaganda
dividiu até mesmo as famílias. Os ucranianos se tornaram
especialistas na propaganda antirrussa.
Ele tem familiares na Ucrânia que não gostam de falar
com seus familiares na Rússia.
Símbolo dessa negação do passado soviético é a
demolição de estátuas. Uma revista ucraniana calculou que,
desde a queda da URSS até novembro de 2015, nada menos
que 4.200 monumentos de Lênin foram destruídos na Ucrânia.
A partir do golpe de 2014, aumentou exponencialmente o
ataque à memória soviética. Entre dezembro de 2013, quando
se iniciaram os protestos fascistas na Praça Maidan, e
novembro de 2015, foram destruídos 802 monumentos de
Lênin.
Monumentos em homenagem aos soldados mortos na
chamada Grande Guerra Patriótica têm sido demolidos desde
2014 por toda a Ucrânia. A famosa Chama Eterna, que foi
instalada ainda na época soviética por todo o antigo território

70
da URSS e recorda aqueles que tombaram na defesa contra a
invasão nazista, também foi removida. No final de abril, a
prefeitura de Kiev ─ comandada pelo famoso ex-boxeador
Vitaly Klitshchko ─ anunciou a intenção de renomear duas ruas
da cidade que hoje homenageiam dois dos principais escritores
russos. A rua Pushkin seria rebatizada de rua Europa e a rua
Leo Tolstoi se transformaria em rua Batalhão Azov.
“A perpetuação da memória dos patriotas do Regimento
Azov é decisiva para a história e a cultura ucraniana, uma vez
que essas pessoas têm defendido o nosso país da ocupação
russa”, declarou um deputado da capital ucraniana. A prefeitura
desmantelou o monumento que representava os operários
russos e ucranianos no Arco da Amizade dos Povos. O arco
não foi demolido, mas teve o nome mudado para Arco da
Liberdade do Povo Ucraniano. Mas a maioria dos ucranianos é
contra esse acinte à sua própria história. Segundo uma
pesquisa de opinião da ONG Rating, divulgada no começo de
maio, 40% da população tem uma opinião negativa sobre a
ideia de demolir os monumentos soviéticos e apenas 19% são
favoráveis à medida.
Mas esse tipo de coisa não pode ser contestada. Antes
de viajar para a Rússia, entrevistei Dmytro Khavro, um cidadão
ucraniano que se mudou para Portugal há cerca de 20 anos e
que pode ser considerado um exilado político.
─ Costumava sempre visitar o meu país, até 2014,
quando aconteceu toda aquela situação e eu, na verdade,
mesmo que quisesse visitá-lo a partir de 2014, não o
conseguiria, porque a minha opinião política não é bem-vinda
na Ucrânia. Depois que houve o golpe de Estado, você não
pode dizer na Ucrânia que não apoia o golpe, não pode dizer
que é comunista ou que apoia o comunismo. Eu não sou
comunista, mas tenho amigos comunistas e na Ucrânia o
partido comunista é proibido, bem como a simpatia ao
comunismo. Eu conheço casos de pessoas que “curtiram” uma
publicação na rede social com a foto da foice e do martelo e,

71
no dia seguinte, a polícia bateu em suas portas e foram
condenadas a cinco anos de prisão. Conheço muita gente que
foi obrigada a fugir tanto para a Europa como para a Rússia,
porque tinha posições políticas que não são permitidas na
Ucrânia. O governo controla toda a imprensa da Ucrânia.
Qualquer imprensa que critique o governo não é permitida na
Ucrânia.
Dmytro diz ser “contra qualquer tipo de guerra, seja da
parte da OTAN, seja da parte da Rússia”, mas denuncia a
russofobia oficial em seu país desde 2014.
─ Se você for a uma loja e conversar em russo com o
atendente, e se algum outro cliente ouvir, ele pode chamar a
polícia e você será multado por falar russo.
Ele deixou para trás familiares no oeste da Ucrânia e
também em Donetsk e não conversa com seus parentes do
lado ucraniano sobre a guerra porque tem medo de que eles
(que, diz, acreditam na propaganda do governo) mudem de
opinião e se posicionem contra o governo de Kiev, pois
poderiam sofrer perseguição.
─ Na Ucrânia você vai preso se disser que não é verdade
que desde 2014 o país está em guerra contra o exército russo.
Kiev tentou romper completamente com o passado
soviético e gerou uma guerra civil com a separação de duas
regiões que se tornaram estados operários. Agora, a Ucrânia
está se desintegrando: outras partes do país serão tomadas
pela Rússia e existe o rumor de que a Polônia mira a região de
Lvov, no oeste, que antigamente era parte de seu território.
Na Rússia, por sua vez, tentar “dessovietizar” o país é
uma manobra muito mais arriscada. Apesar da destruição
promovida pelo neoliberalismo de Iéltsin, nos anos 90
ocorreram manifestações multitudinárias reivindicando a
restauração da URSS e, em 1996, o novo Partido Comunista
da Federação Russa quase venceu as eleições presidenciais,
não fosse uma fraude patrocinada de fora do país para
beneficiar Iéltsin.

72
Em todos os lugares da Rússia, ainda mais em Moscou,
são onipresentes as imagens de Lênin e os símbolos
soviéticos. O povo russo é antifascista, muitos inclusive se
consideram comunistas e todos têm orgulho e nostalgia do
passado soviético. O governo russo é integrado por
funcionários que entendem isso e que também foram formados
com esses valores. Mas sabe que se fizer algo como foi
tentado na década de 1990 ─ nem precisa ser tão radical como
se está fazendo na Ucrânia ─, a situação certamente sairia do
controle e levaria a uma crise dez vezes pior do que a que
passa o seu vizinho, onde uma crise revolucionária bate
novamente à porta. Talvez os russos estejam vivendo em um
estado entre o sono e a vigília, em que a revolução pode voltar
a florescer sob o mínimo estímulo. Esse é o efeito daqueles
acontecimentos de outubro de 1917, que nunca foram
verdadeiramente derrotados.

73
74
Capítulo VI …

Genocídio

─ Não vão inventar de ir para o Donbass, estou falando sério. É


muito perigoso ir para lá ─ nos alerta Alexandre, irmão de
Rafael que o acolheu em Moscou, onde vive há seis anos,
parte deles com sua esposa russa, Olga. Rafael e eu nos
despedimos dele e pegamos o Yandex Go direto para a
estação de trem Vostochniy. O trem n° 49, vindo de São
Petersburgo, chega às 22h49, exatamente como constava no
bilhete. Nosso vagão é o primeiro e nos alojamos na parte de
cima de nossos respectivos beliches. Viaja com a gente um dos
vilões de Moscou contra 007, com uma cicatriz no rosto e
comportamento suspeito. Descanso ouvindo Creedence
Clearwater Revival

Pack my bag and let’s get moooo…oooo…oooovin’


‘cause I’m bound to drift a whiii..iii…iiileee…eee

No meio da viagem de 24 horas cruzando para o sul do


país, vemos um comboio com dezenas de tanques de guerra
na ferrovia entre Lipetsk e Pridacha, preparando-se para ir para
o front ou que haviam retornado dele.
Rostov do Don é a maior cidade russa próxima à fronteira
com a Ucrânia, a apenas 182,6 km (3h de carro) de Mariupol.
Segundo a agência de notícias Interfax, 150 mil refugiados
haviam chegado à região de Rostov até o início de março. O
governo russo tem dado todo o tipo de apoio aos refugiados.
Os que procuram abrigo na Rússia recebem um auxílio de 10

75
mil rublos, moradia temporária em alojamentos com quartos e
cozinha comunitária e alimentação. Eles estão espalhados por
todo o Oblast de Rostov, na própria capital ou em cidades
como Taganrog e Novocherkassk. Desde fevereiro foram
suspensos os voos para o sul da Rússia devido ao perigo de
ataque ucraniano, que tem atingido principalmente as cidades
de Belgorod, Kursk e Bryansk, próximas à fronteira.
Recebemos a informação de que em algumas localizações
aqui da região as vias estão bloqueadas, não se pode entrar
nem fotografar, por serem zonas de algum risco.
A 11ª maior cidade da Rússia em termos de população
(1,2 milhão de habitantes) parece ser quase tão moderna e
desenvolvida quanto Moscou, com inúmeros parques, praças,
cafés, restaurantes, lanchonetes, lojas e, como sempre, com
um monumento histórico em cada esquina.
Em nosso primeiro dia, passeando pelos arredores do
bairro armênio, entramos no Parque Cherevitchkin, em
homenagem a Viktor Cherevitchkin, um pioneiro da URSS
assassinado pelos invasores nazistas quando tinha apenas 16
anos. Rostov foi invadida e capturada pela Wehrmacht e as SS
em 20 de novembro de 1941 e logo em seguida os alemães
estabeleceram que todas as pombas da cidade deveriam ser
exterminadas. No dia 28 de novembro, soldados alemães
descobriram Cherevitchkin soltando pombas e o executaram. A
foto do pequeno Vita, já morto, segurando uma pomba, foi
utilizada como prova das atrocidades nazistas no Tribunal de
Nuremberg anos depois. Poucas horas após a sua morte, o
Exército Vermelho libertou Rostov, vingando o adolescente, as
pombas e todos os moradores da cidade que caíram sob o
terror nazista.

“Um encontro casual com três rapazes de Lugansk” (Diário Causa


Operária, 19 de abril de 2022)

─ Eduardo Vasco, de Rostov do Don

76
Domingo à noite, perto da estação de trem de Rostov do
Don, estamos perdidos procurando o Yandex Go que havíamos
chamado. É então que vejo um carro com uma placa com a
bandeira e as iniciais da República Popular de Lugansk (LPR). Foi
o primeiro, e até agora o único, veículo da recém-formada
república que vimos na Rússia. Em Rostov são até comuns os
carros com a placa da República Popular de Donetsk (DPR), mas
a de Lugansk é muito mais rara.
O Oblast de Rostov, onde se situa a cidade de Rostov do
Don, é fronteiriço com o Donbass e para onde milhares de
refugiados fogem da guerra promovida pelos militares nazistas da
Ucrânia desde 2014. Neste momento, quase mil refugiados
encontram-se em abrigos mantidos pela prefeitura de Rostov do
Don.
Ansioso para encontrar alguma história, uso o pretexto da
busca por informações para me acercar do automóvel, onde dois
rapazes conversavam.
─ Hello. Do you speak English?
─ So so.
─ Does your friend speak?
─ Yeah, so so.
Digo que somos brasileiros e estamos procurando um
Yandex e o rapaz que está de motorista diz que irá chamar um
carro. Logo em seguida, pergunta para onde vamos e nos oferece
uma carona.
Ruslan, o motorista, nos diz que saiu há dois meses de
Lugansk e encontra-se sem emprego em Rostov. Sua mãe
continua na cidade da região do Donbass. Ele conta que Putin e os
militares russos estão ajudando a república popular e, em sua
opinião, a guerra que já dura oito anos é uma disputa entre os
Estados Unidos e a Rússia.
No dia seguinte, vamos a um bar na região central da
cidade, no carro de Ruslan, desta vez acompanhado de outro
amigo, Alexei, que também veio de Lugansk. Ele diz torcer para o
Zenit São Petersburgo, enquanto Ruslan afirma ser um
simpatizante do… Real Madri.
Na conversa na mesa, descobrimos que Ruslan é três vezes
campeão ucraniano júnior de levantamento de peso e foi medalha
de bronze no campeonato mundial de belt wrestling, uma
modalidade de luta semelhante ao judô. Também quando ainda

77
vivia em Lugansk, o jovem de 23 anos e braços enormes praticava
MMA. Agora, se permanecer na Rússia, precisa se filiar à
federação local para continuar sua carreira, mas também pensa
em ir para a Irlanda, que importa lutadores da sua categoria.
Essas são as únicas lutas que ele deseja. Quer distância da
guerra no Donbass, de onde fugiu para não ser recrutado pela
milícia popular de Lugansk quando começou o contra-ataque com
o apoio das forças armadas russas, quase dois meses atrás.
─ Muitos refugiados da Ucrânia vão para Lugansk. E muita
gente de Lugansk veio para Rostov. Tenho dez amigos de lá que
moram aqui. Também tenho amigos de Lugansk que estão lutando
tanto pela Ucrânia quanto pela Rússia. Eu não me considero um
refugiado, apenas não quero lutar e matar pessoas.
─ Então você não tem lado no conflito?
─ Não. Essa é uma guerra entre políticos, nós civis não
temos nada a ver com isso. Na Ucrânia, os EUA e a Rússia estão
defendendo os seus próprios interesses. Nossos militares pegam
os jovens, os enviam para a linha de frente e trazem um monte de
corpos de jovens mortos em caminhões Kamaz.
Ruslan estudou inglês na escola durante nove anos, mas há
dez não pratica o idioma. Tem um irmão que vive no Daguestão,
uma república russa no norte do Cáucaso, ao lado da Chechênia.
Ele já visitou essas duas regiões russas e as achou belíssimas. Diz
gostar dos chechenos.
─ São um povo guerreiro, não é? Pergunto.
─ Estão lutando na Ucrânia agora.
─ Você gosta do Ramzan Kadyrov?
Faz um gesto pensativo e relutante, olhando de canto de
olho para o lado direito com os lábios espremidos e um leve
sorriso.
─ É um homem muito forte.
Neste momento já havíamos saído do bar onde fui tapeado
com uma conta de 1.650 rublos por cinco cervejas corona e um
suco. Os comerciantes russos são como qualquer um: se o cliente
é estrangeiro e tem cara de trouxa como eu, eles enfiam a faca.
Agora fomos jantar em um restaurante na esquina. Junta-se a
Rafael, Ruslan, Alexei e a mim um outro amigo de Ruslan, Ivan,
que tem 30 anos e joga basquete. Ele veio para Rostov do Don
junto com Ruslan, os dois são amigos há quatro anos e Ivan tem

78
negócios em Lugansk. É casado e tem um filho de um ano ─ Ivan
Júnior, brinca.
Alexei, de 36, também é casado e sua esposa nos dá um
“good morning” por chamada de vídeo no telefone, às nove e meia
da noite, direto de Lugansk, com seu gatinho no colo. Seus
negócios são do setor de turismo em Krasnodar, cidade ao sul de
Rostov já próxima ao Estreito de Kerch, que liga a Rússia
continental à Crimeia. Ele tem uma irmã que mora na Itália e outra
em Portugal desde 2010.
Nenhum dos três pretende ficar na Rússia, querem voltar
para Lugansk quando terminar a guerra.
─ Porque não é nosso país, diz Ruslan, que se considera
ucraniano e diz que ultimamente as relações entre cidadãos russos
e ucranianos não estão boas.
─ E quando acham que o conflito irá terminar? Pergunta
Rafael.
─ Em setembro, responde Ivan.
─ Quando terminará a mobilização militar, complementa
Alexei.
─ Ou talvez em 9 de maio? Indaga Ivan, de forma
enigmática.
Enquanto Rafael e eu devoramos nossos hambúrgueres,
Ruslan recebe uma ligação e se afasta da mesa. Permanece
durante alguns minutos no telefone e depois volta. Era seu tio, de
Lugansk.
─ Neste momento meu tio está operando um homem que
pisou numa mina. Ele é pediatra mas, com a guerra, tem atendido
pessoas de todas as idades.
Um pouco antes do fim de nossa conversa, Alexei ─ cujo
estilo é idêntico ao de um personagem do submundo russo em
algum 007 com Pierce Brosnan ou Daniel Craig ─ pergunta qual o
câmbio do dia entre dólar e rublo.
─ 78 rublos por dólar, responde Rafael.
─ Comigo são 83, retruca Alexei.
Ooooops…
Está bem, se a gente precisar, falamos com você, nosso
simpatissíssimo amigo ucraniano. Já é hora de ir, bucho cheio,
conta paga, conversa terminada. Descemos para a rua, onde
acabara de cair uma leve chuva na noite agradabilíssima de
Rostov do Don. Obrigado Ruslan, foi um prazer conhecê-los, Ivan

79
e Alexei, mas agora está tarde e vamos voltar a pé para onde
estamos hospedados, sem problema nenhum. Qualquer coisa nos
comunicamos por mensagem no Telegram. See you, bye!

Devo aqui fazer uma retratação: o funcionário do bar foi o


único comerciante em toda a Rússia ou no Donbass que me
extorquiu. Todos os outros foram extremamente honestos e
alguns até deram descontos quando pechinchei utilizando a
eterna desculpa e o eterno charme de ser brasileiro.
Natália, Anna e Irina, com quem conversamos no Café
Patisari, são professoras do departamento de língua espanhola
da Universidade Federal do Sul de Rostov ─ uma das dez
universidades federais do país, onde quase todas as
universidades são públicas. Apresentam o estereótipo que os
russos têm dos brasileiros: malandros de calça branca,
cariocas, carnaval, bailes, barcos e o café (apesar de que não
achei em nenhum lugar o café brasileiro, apenas café
colombiano, guatemalteco e árabe. Árabe!). Há muitos
estudantes do Donbass em sua universidade, que possui
laboratórios perto da fronteira.
─ Temos muitos alunos de Donetsk e Lugansk aqui e
portanto não precisamos da TV e dos meios de comunicação,
vemos com os nossos próprios olhos ─ exclama Natália, uma
senhora muito animada. ─ A maioria desses alunos se
considera russa e tem família russa. Outros se consideram
ucranianos mas não querem mais viver na Ucrânia porque
foram vítimas de seu próprio governo. As famílias de 90%
deles ainda estão no Donbass e estão com muito medo, por
isso torcem para uma vitória russa.
Elas ouvem muitas histórias de seus alunos e também de
seus próprios parentes, pois, como diz Natália, todo russo tem
algum familiar que vive na Ucrânia. Ela mesma tem familiares
em Mariupol e seu marido tem parentes em outras regiões da
Ucrânia.

80
─ Os que vivem no Donbass dizem que agora se sentem
muito melhor do que no período posterior a 2014 e suportar
este período [de intensificação do conflito com a entrada da
Rússia] é muito melhor do que suportar o período anterior,
porque se sentem mais protegidos com a presença das forças
russas.
A Universidade do Sul de Rostov ─ uma das cinco da
cidade ─ fornece emprego e moradia para muitos dos
estudantes que fugiram do Donbass. Alguns deles, quando
estudavam em Donetsk, sofreram atentados executados pelas
forças ucranianas cujas bombas explodiram a 100 metros de
onde se encontravam.
─ Para matar os jovens ─ afirma Natália.
─ Os serviços de segurança da Rússia souberam da
possibilidade de atentados contra a universidade, por isso
estão muito preocupados com a segurança dos estudantes ─
conta Irina, após perguntarmos se poderíamos entrevistar
alguns desses alunos. Dizem que, para um jornalista
estrangeiro visitar os estudantes, é preciso uma autorização
prévia que demora três meses para ser emitida. Reforçam que,
por estar muito próxima à fronteira, a universidade já recebeu
informações de planejamento de atentados terroristas contra
suas instalações.
Apesar de não conseguirem ajudar com a entrevista aos
estudantes, elas nos arranjam uma entrevista com o secretário
de Economia da Prefeitura de Rostov do Don, Sergey
Zarevsky, responsável pelo trabalho de assistência com os
refugiados do Donbass, e nos apresentam Ekaterina, que
trabalha no departamento de línguas estrangeiras da
universidade e irá nos ajudar na tradução das nossas
conversas.
No imponente prédio da Prefeitura, ao lado da estátua de
Lênin no Parque Górki, Zarevsky nos recebe, junto com Maria
Krylosova, secretária de Relações Exteriores, e seu assistente,
Evgeny.

81
─ Quantos refugiados do Donbass estão em Rostov do
Don neste momento?
─ Atualmente há 863 na cidade. A quantidade muda a
cada dia.
─ Desde quando começaram a chegar?
─ Começaram a chegar em 2014, mas a segunda onda
começou em 18 de fevereiro deste ano.
─ De onde eles vêm?
─ A maioria vem de Donetsk e de Lugansk.
─ Quais são suas principais necessidades?
─ Em primeiro lugar, ajuda psicológica, pois buscam um
lugar seguro, além de alojamento, alimentação, condições
sanitárias. As tropas ucranianas os utilizaram como escudos
humanos. Com a entrada dos militares ucranianos, foram
deslocados, expulsos de suas casas. Há testemunhos de gente
que viu seus filhos serem assassinados diante de si, foram
mantidos cativos em suas casas etc. Por isso precisam de
auxílio psicológico. A maioria dos refugiados começou a chegar
em fevereiro, quando ainda era inverno. Precisam de roupas,
etc.
─ E o que a prefeitura está fazendo para ajudá-los?
─ Há lugares designados pela prefeitura como alojamento
temporário. Ajudar essas pessoas é responsabilidade da
Federação Russa. A prefeitura presta todo o tipo de auxílio
com questões sociais, desde obter roupas ou uma linha
telefônica, até atenção médica. Também oferecemos postos de
trabalho, como por exemplo para professores ou médicos entre
os refugiados.
Então, todos ficam sérios. Zarevsky olha nos meus olhos.
─ Organizações internacionais como a Cruz Vermelha,
que deveriam fazer esse tipo de trabalho, por exemplo, atuam
apenas de um lado, sem apresentar nenhuma explicação.
─ Mas ela não deveria ser uma entidade neutra?

82
─ Também pensávamos que a Organização das Nações
Unidas atuasse pensando em todos, mas parece que também
pensam apenas em um lado ─ completa Maria Krylosova.
─ Então a ONU e a Cruz Vermelha estão sendo usadas
como instrumento da guerra contra a Rússia?
─ Sim ─ responde Zarevsky, com ar de lamentação,
assim como sua colega.
─ Nos territórios de Lugansk e Donetsk a Cruz Vermelha
utilizou medicamentos vencidos ─ denuncia Krylosova. ─
Desde 2014 a cidade de Rostov do Don vem auxiliando os
refugiados, não apenas a prefeitura, mas também os
voluntários. Historicamente o Oblast de Rostov e a Ucrânia
sempre estiveram relacionados. Muitos refugiados também têm
familiares por aqui. Muita gente que vem de Donetsk e Lugansk
também vai para outras partes da Rússia onde também
possuem amigos e relações. Consideramos os que vêm do
Donbass como nossos irmãos russos. Por esse motivo também
o governo russo oferece passaportes russos [o documento
interno oficial de cada cidadão] aos refugiados.
─ Vocês têm medo de algum ataque ucraniano?
─ Claro que há uma preocupação, pelo que ocorreu em
Krasnodar, por exemplo. Estamos muito próximos da fronteira.
Já vimos com que violência os militares ucranianos têm tratado
os russos. Rostov do Don tem mais de um milhão de
habitantes, por isso a prefeitura faz todo o possível em termos
de segurança e conta com um plano de emergência caso
necessário.
Pouco depois da entrevista, somos informados de que
poderemos entrevistar refugiados na semana que vem, e
também que jornalistas locais gostariam de nos entrevistar.
Mas não foi exatamente assim que ocorreu. No sábado
seguinte, nos encontramos com Ekaterina em um prédio que,
descobrimos, é a sede do canal Don 24, principal emissora do
Oblast de Rostov e que atende a um público de 40 milhões de
espectadores, tanto do Oblast como de outras regiões da

83
Rússia e do Donbass. Possui uma rede de comunicação que
contempla TV, rádio FM, jornal impresso, portal na Internet,
agência de notícias, produtora e agência de publicidade.
Somos muito bem recebidos pelos funcionários e
diretores do canal. Seremos entrevistados em um programa no
estúdio, onde conversaremos com o âncora, Vsevolod Gimbut,
e com Ludmila (ou Lyubov, como passamos a chamá-la)
Korsakova, refugiada de Lugansk que lidera a partir de Rostov
um movimento de luta antifascista.
─ Gostaríamos de agradecer a vocês por estarem aqui ─
começa o apresentador. ─ O tema da nossa conversa é
fascismo e antifascismo. Primeiramente vamos dar a palavra a
Ludmila, que veio de Lugansk para a Rússia.
─ Olá. Sim, em Lugansk eu fui deputada do conselho
regional e lutei contra o fascismo e a OTAN ─ revela Lyubov. ─
Também promovi o idioma russo. Porém, tive de fugir de lá
porque o regime ucraniano começou a prender quem fizesse
esse tipo de trabalho. Levei meus filhos e netos comigo, com a
ajuda dos cossacos russos.
─ Isso foi em 2014? ─ pergunto, esquecendo que sou um
dos entrevistados, e não o entrevistador.
─ Sim, no início de 2014. Mas isso não me impediu de
seguir lutando pelas minhas ideias aqui na Rússia e reuni
outros refugiados que querem lutar contra o fascismo.
─ Você participou da fundação da República Popular de
Lugansk? ─ não consigo conter o ímpeto de repórter.
─ Sim, porque a ideia de criar uma república
independente apareceu pela primeira vez na assembleia
regional de Slaviansk. Naquele momento Donetsk e Lugansk
ainda eram Oblasts dentro da Ucrânia. Nessa assembleia
participaram 47 representantes de diferentes partidos e
organizações, como partidos de esquerda, partidos comunistas
e organizações antifascistas e pró-russas. E eu organizei
aquela assembleia. Ainda naquele ano de 2014, nós pedimos a
organizações internacionais que ajudassem a parar a agressão

84
da Ucrânia contra o Donbass, mas elas nos ignoraram. Neste
ano de 2022, vamos celebrar a sétima assembleia popular e
convidamos vocês a participarem. E desde que criamos a
nossa organização, temos pedido a organizações da Europa e
do mundo todo para nos ajudar, mas não nos respondem.
Também enviamos documentos oficiais assinados por nós e
por pessoas de mais de 40 países e sabemos que até mesmo
a OTAN recebeu esses documentos, mas todas as nossas
petições foram ignoradas. Há oito anos a Europa segue
escondendo o que está ocorrendo no Donbass. Durante todo
esse tempo o Donbass segue dizendo que quer falar russo e
que quer ter boas relações com a Rússia, e a Europa não está
nem aí para a carnificina que está sendo promovida pela
Ucrânia no Donbass. Eles preferem uma Ucrânia nazista do
que um Donbass pró-Rússia.
─ Entrevistamos o secretário de Economia de Rostov do
Don e ele nos disse que a Cruz Vermelha e a ONU não estão
fazendo absolutamente nada para ajudar os refugiados do
Donbass. O que você acha disso? ─ continuo, talvez irritando o
entrevistador.
─ Isso é verdade. As organizações internacionais atuam
somente do lado ucraniano. Por exemplo, quando essas
organizações sabem que os militares da Ucrânia irão atacar
alguma cidade, elas não fazem nada para alertar e ajudar a
população e a abandona à própria sorte.
A entrevista continua, já conduzida por Vsevolod, e
Lyubov demonstra seus conhecimentos sobre o passado de
golpes de Estado e submissão da América Latina aos Estados
Unidos. Ela esteve há poucos anos na Venezuela para um
congresso antifascista.
─ Manuel Noriega, Omar Torrijos, Rodríguez Lara. Esses
são alguns dos ditadores que passaram pela Escola das
Américas ─ afirma a ativista. ─ A propaganda diz que ela serve
para trazer segurança ao continente, mas não é verdade.
Vemos o mesmo agora na Ucrânia. Os EUA provocam um

85
golpe de Estado em determinado país, depois promovem o seu
candidato para liderar esse país. Já em 2004 os EUA tentaram
dar um golpe de Estado assim na Ucrânia, organizando a
Revolução Laranja, depois promovendo um candidato
chamado Viktor Yushenko. Era público que sua esposa tinha
relações com os EUA. Como assim? A esposa do presidente
de um país trabalhando para outro país? Porém, os EUA não
conseguiram concretizar esse plano naquela oportunidade. Eu,
como deputada do conselho regional de Lugansk, vi como se
desenvolveu a intervenção dos EUA nos últimos 10 anos. Em
Lugansk, por exemplo, os EUA promoveram políticas
antirrussas, como o cancelamento do idioma. Por exemplo,
uma vez nós propusemos no conselho regional um programa
de financiamento da promoção do idioma russo, e os EUA
deram (acreditem!) 86 centavos de contribuição. Ao mesmo
tempo, para propagar ideias da OTAN na imprensa, os EUA
contribuíram com 2 mil grívnias [moeda ucraniana] por pessoa.
─ Na época da Segunda Guerra Mundial, muitos
membros do regime norte-americano não apenas apoiavam a
Alemanha nazista, mas também a financiavam, como foi o caso
de Henry Ford ─ lembra Vsevolod.
─ Logo, os EUA participaram do financiamento do
nazismo na Alemanha ─ Lyubov afirma, com a mão sobre o
joelho. ─ E a Alemanha era uma nação que se considerava
ariana e que estava dizimando os eslavos. Quando me
perguntaram na Venezuela o que é o fascismo, eu disse que o
fascismo nasceu no mesmo momento em que se fundou os
EUA. Os governos que apoiam os EUA estão, de alguma
maneira, apoiando e financiando o fascismo. O nazismo
ucraniano existe porque alguns governos apoiam o fascismo
norte-americano. Logo, as origens do fascismo ucraniano estão
nos EUA. A Europa e todo o Ocidente, apoiando o que fazem
os EUA, estão portanto apoiando o fascismo. O fascismo
promove o ódio entre as pessoas. No século XXI, muita gente
pelo mundo já não acredita no que a imprensa fala sobre o

86
Donbass, mas na Europa ainda há muitas pessoas que não
querem ver que os nazistas ucranianos estão cometendo
atrocidades.
Dona do programa, ela continua:
─ A Europa assinou uma série de documentos contra os
maus-tratos a prisioneiros de guerra, mas os rasga para ocultar
o que está sendo feito no Donbass. Precisamos informar a
verdade para os europeus. A Europa é tão pequena em
comparação com o Brasil ou com a América Latina unida, com
a China, etc. Se somarmos os outros países do mundo, e
utilizarmos o trabalho de seus jornalistas para mostrar a
verdade, então isso poderá derrotar toda a desinformação
promovida pelos jornais europeus em 24h.
─ Por exemplo, quando os jornalistas europeus falam
sobre o Batalhão Azov nas redes sociais, os tratam como
defensores de sua pátria ─ recorda o âncora. ─ Eu, como
jornalista, não posso tratá-los como se fossem meus colegas ─
concordamos, fazendo sinal de positivo com a cabeça. ─ Outro
exemplo: quando há alguma denúncia sobre os laboratórios
biológicos na Ucrânia em um discurso oficial, os meios de
comunicação censuram essa parte do discurso. Os jornalistas
não questionam as contradições nos discursos de Joe Biden,
por exemplo, que ora diz que Putin é um genocida, ora diz que
ele não é de nada. Se há alguém que está provocando um
genocídio na Ucrânia, são os EUA e os países que os apoiam.
E, como dissemos antes, este não é o primeiro caso na
história.
─ Por que os EUA dizem que trata-se de uma guerra “até
o último ucraniano”? ─ questiona Lyubov. ─ Os EUA
promoveram uma guerra contra a Rússia no território da
Ucrânia, e para eles não importa nem a Ucrânia como país e
nem mesmo os ucranianos. Isso já dura oito anos. Por isso,
iniciar a operação militar russa foi uma necessidade nossa,
porque agora vemos que estão bombardeando regiões
fronteiriças e cidades russas como Belgorod. Organizações

87
como Batalhão Azov, Batalhão Aidar, Pravy Sektor etc. são
produto dos EUA que estão na Ucrânia para aterrorizar e
manipular os ucranianos. Nas redes sociais só se fala que a
Rússia é o agressor, mas isso não é verdade. Nosso objetivo
principal é esclarecer e mostrar a verdade.
─ Você falou do Batalhão Azov ─ digo a Vsevolod. ─ Os
grandes meios de comunicação do Brasil dizem que “pode ser
que haja alguns nazistas no Batalhão Azov, mas não é assim
como dizem os russos”. Nós não consideramos esses
“jornalistas” como colegas. São propagandistas do
imperialismo, são mercenários da manipulação.
─ A principal guerra neste momento não é a guerra no
Donbass, mas sim a guerra informativa ─ opina a ex-deputada
─ Nesta guerra, triunfarão os jornalistas que dizem a verdade.
Como disse Ernesto Che Guevara: até a vitória, sempre!
─ Não é por acaso que o presidente Vladimir Putin
chamou o que está ocorrendo na Ucrânia de uma operação
militar. A Rússia não começou nenhuma guerra. O que ela está
fazendo é por um fim a uma guerra que já dura oito anos,
encerrar o genocídio na Ucrânia. E vamos conseguir. Estamos
seguros de que, quando tudo isso acabar, o mundo todo
saberá a verdade. Muito obrigado a vocês. ─ E Vsevolod
encerra o programa, que foi gravado e será exibido no sábado
seguinte.

G
Genocídio Onu e Otan Genocídio
Geno n Geno
ojo
c
í
d
i
o

88
Genocídio… palavra tão banalizada ultimamente. Fala-se
muito, nas últimas décadas, a respeito de genocídios.
A Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime
de Genocídio, assinada em Paris por ocasião da III Seção da
Assembleia Geral das Nações Unidas, em dezembro de 1948,
determina que genocídio é

qualquer dos seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir,


no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso,
como tal:
a) matar membros do grupo;
b) causar lesão grave à integridade física ou mental de
membros do grupo;
c) submeter intencionalmente o grupo a condições de
existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total
ou parcial;
d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio
do grupo;
e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para
outro grupo.

Podemos dizer que os militares e paramilitares


ucranianos, com total apoio do governo daquele país, fizeram
tudo isso contra a população do Donbass. Não me saem da
cabeça algumas das intervenções daquele Congresso
Antifascista do qual participamos com Lyubov. “Genocídio”, ela
disse. “Os números são dez vezes maiores”, revelou uma
representante de Donetsk, rechaçando a estimativa de 14 mil
mortos considerada pela ONU. “Crime contra a humanidade”,
acusou um deputado. Deynego, ministro de Lugansk, e Anna
Soroka, sua vice, denunciaram as ONGs de direitos humanos e
a comunidade internacional por se calarem. Sergey Zarevsky
contou que a Cruz Vermelha fica de braços cruzados e envia
remédios vencidos àquele povo esquecido.
Os russos perderam todos os seus direitos. São
massacrados e humilhados pelo regime ucraniano, que faz uso

89
dos grupos nazistas para os aterrorizar. Em quatro meses, mais
de 2 milhões de pessoas fugiram da Ucrânia e do Donbass
para a Rússia. Tudo isso com total complacência dos órgãos
internacionais que se consideram a salvação da humanidade.
São cúmplices do genocídio.

90
Capítulo VII …

A mãe

Na rua Arbatskaya, uma exposição de fotos com 32 painéis


organizada pelo Governo de Moscou homenageia os 80 anos
do desfecho da Batalha de Moscou, ocorrida de 30 de
setembro de 1941 a 20 de abril de 1942, no âmbito da
Operação Barbarossa ─ a invasão nazista, luta contra a qual os
russos batizaram de Grande Guerra Patriótica.
Os alemães haviam chegado às portas da capital russa e
já consideravam a cidade como tomada. A maior parte do
governo soviético já havia se deslocado para Kuibichev (atual
Samara). Os cidadãos comuns, que não tinham como fugir,
abrigavam-se como podiam do ataque das bombas da
Luftwaffe, principalmente nas estações de metrô. Reservistas
vindos dos Urais, da Sibéria e do Extremo Oriente, cadetes de
escolas militares que sequer haviam completado 18 anos e
milhões de moscovitas se mobilizaram para defender o coração
do Estado Soviético. Em 5 de dezembro de 1941, as tropas da
Frente Oriental, lideradas pelo lendário marechal Georgy
Zhukov, e as da Frente Sudoeste, comandadas por Konstantin
Tymochenko, lançaram uma contraofensiva em grande escala.
De apenas 30 quilômetros do Kremlin, os alemães foram
recuados para 200 quilômetros longe de Moscou.
Contudo, Stálin se recusou a ouvir as advertências de
espiões e oficiais soviéticos, que informavam sobre o avanço
das tropas hitleristas em direção a Moscou. Isso acabou
custando a vida de um milhão de pessoas, vítimas do terror

91
nazista. Mas se tivessem sido apenas os habitantes de Moscou
que houvessem sofrido nas mãos de Hitler…
Quando já estávamos na República Popular de Lugansk,
visitamos o Museu da Molodaya Gvardiya na cidade de
Krasnodon. Trata-se de um museu em homenagem àquela
Guarda Juvenil, formada na região e que ficou eternizada por
toda a União Soviética por sua história de heroísmo e tragédia
brutal. Krasnodon foi invadida em 20 de julho de 1941. A
cidade, onde nasceram os mineiros de carvão que participaram
da revolução de 1917 e ingressaram no Partido Comunista e
no Exército Vermelho, não aceitou a ocupação nazista.
Dezesseis cidadãos organizaram a primeira resistência, um
grupo de partisans que foram exterminados pela crueldade
alemã. Em seguida, 32 mineiros se recusaram a colaborar com
os ocupantes e tiveram um destino aterrorizante: foram
queimados vivos dentro da mina onde trabalhavam.
Finalmente, a juventude de Krasnodon se rebelou e oito
estudantes criaram a Molodaya Gvardia, em setembro de 1942.
Entre suas façanhas, principalmente através da tática de
sabotagem, conseguiram impedir que os jovens da cidade
fossem deportados para o trabalho forçado na Alemanha e
libertar soldados soviéticos que estavam presos em
Krasnodon. A organização chegou a contar com 102 membros,
todos provenientes de famílias cossacas, uma vez que a região
que abrange o Donbass e Rostov é um histórico território
cossaco. Mas a resposta dos invasores foi rápida e violenta,
obrigando o grupo a se dissolver apenas três meses após sua
criação. Em 1° de fevereiro de 1943, os nazistas começam a
encontrar os militantes da Molodaya Gvardiya: são presos,
torturados e executados. Alguns tiveram seus dedos, orelhas e
olhos arrancados ─ com a ajuda dos colaboradores ucranianos,
os mesmos que hoje são homenageados pelo regime de Kiev e
idolatrados pelos batalhões do exército ucraniano. Outros
foram levados para a floresta; cinco deles foram assassinados.
A maioria, no entanto, teve um destino ainda mais terrível: 71

92
militantes foram levados para dentro de uma mina de carvão e
presos a uma profundidade de 58 metros. Todos morreram.
Dentre todos os membros do grupo, 80% tinham entre 14 e 18
anos.
Krasnodon foi liberada em 14 de fevereiro de 1943, duas
semanas após a morte dos jovens na mina. Seus corpos foram
resgatados e velados no dia 1° de março. Após a libertação, 16
sobreviventes da Molodaya Gvardiya alistaram-se no Exército
Vermelho para ajudarem na libertação do restante do país. Oito
deles morreram em combate. Nasceram em Krasnodon 18
cidadãos que receberam a condecoração de heróis da Grande
Guerra Patriótica, martirizados durante a ocupação ─ seis
deles eram membros da Molodaya Gvardiya. A organização
inspirou jovens de toda a URSS a pegarem em armas contra
os invasores nazistas.
─ As autoridades ucranianas de hoje procuram esconder
essa história ─ me diz Andrei, liderança da central sindical da
RPL que, por ser fluente em inglês e muito amigável, nos
levará para vários lugares e servirá como nosso intérprete.
─ O que os grupos nazistas da Ucrânia estão fazendo no
Donbass é comparável ao que fizeram os alemães? ─ pergunto
a Elena Stechenko, guia do museu.
─ Eles não se comportam da mesma maneira, mas de
forma parecida. Eles têm um ódio muito forte contra nós. O
problema é entre os habitantes do leste e do oeste. Nós os
apoiamos mas em 2014 eles não fizeram nada para nos ajudar.
E apoiam os nazistas.

Chegamos a Volgogrado no início da manhã de 21 de


abril. Não havia nenhuma movimentação nas ruas e já era hora
de todos estarem apressados para ir ao trabalho. Após darmos
uma volta pelo Rio Volga, atravessamos a cidade, passando
por uma estátua de Lênin no centro, e chegamos à colina onde

93
foi construído o mais belo templo dedicado ao heroísmo e à
exaltação da vida em todo o mundo: Mamaev Kurgan.
Fazemos o percurso inverso ao tradicional e começamos
pelo final, o topo da colina. É quase surreal aquilo que está
diante dos meus olhos, um colosso de 85 metros de altura, que
foi a estátua mais alta do mundo durante quase um quarto de
século. Mãe Pátria, ou A Pátria te Chama, é uma
representação de Niké, a deusa grega da Vitória, que pode ser
vista praticamente de todos os pontos de Volgogrado. A cidade
entrou para a história quando ainda era batizada de outro nome
e, no auge da Grande Guerra Patriótica, foi palco da batalha
mais sangrenta e épica de toda a história: a Batalha de
Stalingrado. De julho de 1942 a 2 de fevereiro de 1943, quando
foi libertada, cenas épicas ocorreram em Stalingrado,
particularmente a partir de novembro, quando se deu a
contra-ofensiva do Exército Vermelho. Em meio aos
escombros, os soldados soviéticos que já não tinham mais
seus fuzis utilizavam facas ou mesmo seus próprios punhos
para golpear os alemães. Uma selvageria heróica que confere
àqueles homens o status de mártires, de semideuses. De filhos
de Niké. Filhos da Vitória.
É possível notar a nossa insignificância como indivíduos
antes mesmo de chegar aos pés da estátua. Parece a própria
Deusa, em sua magnanimidade, inspirada pelos mártires que
aqui deram suas vidas pela pátria. Não! Pela humanidade!
Sua espada, erguida como se tocasse os céus, ligando
aqueles homens aos deuses, mede 33 metros. É segurada
pelo braço direito, enquanto o esquerdo se estica para o outro
lado, para onde também se vira o rosto da Deusa, da Mãe, da
Pátria, bravo, destemido, convocando seus filhos para o
martírio, como Deus convocou Cristo para redimir toda a
humanidade de seus pecados. O vento cola sua túnica ao
corpo. Descalça, com o pé esquerdo à frente do direito, lidera a
marcha para libertar seu povo da barbárie nazista. Emília! A

94
maior maravilha que já esteve diante dos meus olhos e que
minhas mãos jamais puderam tocar.

Recordo o luminoso instante


quando eu, tomado de surpresa,
te vi: súbita imagem, diante
de mim, da essência da beleza.

(Para, Alexander Pushkin)

Seu olhar vai confortar o meu coração e o seu sorriso vai


iluminar o meu caminho.
De seus pés, é possível ver toda a cidade, o Volga
defronte. Descemos a colina e ao longo do caminho vemos as
lápides de muitos heróis daquela guerra sobre o gramado. São
35.000 soldados não-identificados cujos corpos descansam
nesta colina sagrada. Uma escultura de uns dez metros de
altura encerra essa etapa do complexo. É uma mãe segurando
o corpo de seu filho nos braços ─ tal como Maria com Jesus
após a Paixão ─, cuja vida ofereceu à pátria pela libertação de
Stalingrado. Entramos na enorme sala onde se localiza a
Chama Eterna ao Soldado Desconhecido, uma pira de cerca
de oito metros segurada por uma mão, no centro da cúpula,
guardada por soldados completamente imóveis. O piso é de
mármore e as paredes, bronzeadas, estão cobertas com
tapetes onde estão inscritos os nomes de cada um dos um
milhão de soldados e oficiais que tombaram na defesa da
cidade. No teto da cúpula, medalhas de condecoração dos
heróis e uma fita de São Jorge ao redor. Vamos descendo a
rampa, contornando a cúpula por dentro. Ao fundo, um cântico
sereno e ao estilo religioso comprova aos visitantes que
encontram-se em um verdadeiro local sagrado, mais sagrado
que qualquer templo.

95
Sons misteriosos, tão belos e estranhos, nos quais se descobre
uma sagrada harmonia, inacessível a nós, mortais, e que por
isso parece retornar aos céus

(O monge negro,
Anton Tchekhov)

Como não se emocionar ao lembrar-se que, neste país,


27 milhões de vidas foram sacrificadas por causa da invasão
nazista? Crianças, mulheres, idosos, famílias inteiras. Confesso
que chorei. A eliminação de gerações. Um genocídio que
transforma o Holocausto em uma brincadeira de criança. Mas
por que não se fala desse genocídio? Ora, porque, enquanto o
Holocausto serve como cortina de fumaça para encobrir o fato
de que a II Guerra foi uma guerra interimperialista e que,
portanto, EUA e Grã-Bretanha também são criminosos, bem
como os crimes do Estado de Israel, por outro lado a Rússia é
o país do comunismo e o imperialismo nunca poderia apontar
os comunistas como vítimas, ainda mais como suas vítimas.
Mais do que isso: a Rússia sempre foi um alvo a ser
conquistado e para isso não pode ser retratada como vítima,
mas sim como agressor, sempre que possível. Aquilo foi um
sofrimento inimaginável e uma história de superação
verdadeiramente lendária. Não tenho a menor dúvida: se existe
um povo no mundo que quer a paz, este é o russo. Povo
maltratado e castigado por não aceitar se submeter aos piores
delinquentes que já existiram. Todos os russos guardam até
hoje as feridas em seu coração daquele grande trauma.
Saio purificado da cúpula e vejo logo abaixo dela, a
alguns degraus, a Praça dos Heróis, onde existem seis
estátuas retratando os diferentes grupos de homens que
lutaram naquela guerra. Os degraus que se seguem são

96
protegidos por paredes dos dois lados que são, na verdade, um
mosaico esculpido nos restos de construções bombardeadas
pelos alemães: soldados lançando granadas, segurando
bandeiras e espadas, marchando com seus fuzis. Ao final, a
estátua de um soldado com o tronco nu, bravo como a Pátria,
mirando o horizonte com um fuzil em uma mão e uma granada
em outra, pronto para dar sua vida naquela batalha. Nos
últimos degraus do complexo (na verdade, os primeiros, lá
embaixo), a inscrição за нашу советскую родину! СССР! (À
nossa pátria soviética! URSS!) e depois mais algumas figuras e
as placas em homenagem a cada cidade-herói da União
Soviética. São 200 degraus ao todo, que representam os 200
dias da Batalha de Stalingrado.
Tivemos a honra de conhecer um dos veteranos que
lutaram na Guerra. Foi após uma manifestação com motivo dos
81 anos do início da Grande Guerra Patriótica organizada pelo
Partido Comunista da Federação Russa no Túmulo do Soldado
Desconhecido, nas muralhas do Kremlin de Moscou, a qual
participei carregando uma bandeira do PCFR e depositando
uma flor em frente ao túmulo. Vladimir Fedorovich Khodakov
tem 99 anos de idade. Estudou em Górki (atual Nizhni
Novgorod) e lutou nas forças de defesa aérea na Polônia e na
Romênia. Sua missão era proteger os aeródromos sob o
controle da aviação soviética. Bombas caíam por toda a parte.
Ostenta em seu peito uma série de condecorações, entre elas
as medalhas da Vitória contra a Alemanha, da Revolução, da
Grande Guerra Patriótica e de Georgy Zhukov.
Abre um sorriso quando digo que somos do Brasil.
─ Temos que nos unir. Trabalhadores do mundo, uni-vos!
─ conclama o veterano.
Olho em seus olhos. Faço um cafuné em sua nuca, com
poucos cabelos, ao contrário do restante da cabeça, toda
branca. Sinto como se fosse meu vovô. Um sentimento de
carinho e ternura toma conta de mim. Um sentimento forte para

97
com aquele homem tão lindo, tão belo, tão dócil. Uma
admiração sublime.
É 9 de maio, o grande Dia da Vitória. Estamos em Rostov.
Acordo com a notícia sobre uma declaração de Dmitri
Medvedev, ex-presidente e ex-primeiro-ministro da Rússia. No
dia anterior, ele havia publicado o seguinte comentário em seu
canal no Telegram:

“O fantasma do comunismo
O espectro do comunismo finalmente adentrou novamente à
Europa (...) Os fartos europeus, abastecidos com gás de várias
fontes, serão forçados a partilhar com os pobres, mas orgulhosos,
que não querem pagar à Rússia em rublos pelo nosso
combustível.
Muito bem, dignos herdeiros de dois Karls ─ Marx e Kautsky.
Ao mesmo tempo, será introduzido o racionamento do consumo de
energia, e não está longe [o dia em que serão reabilitados] os
cartões de alimentação.”

A cada dia a Rússia e mesmo as suas autoridades me


surpreendem positivamente. Medvedev já foi chamado de
“quinta coluna” dentro do governo russo por analistas
respeitados. Logicamente que essa sua declaração não é uma
torcida pela revolução proletária internacional. No entanto,
expressa o posicionamento de um setor do governo russo, que
não é de hoje: a Europa e os EUA nos oprimem e seria bom
que seus governos opressores fossem derrubados. Mas é mais
do que isso: saberiam os russos que a crise econômica
acentuada pela crise política internacional que se abriu com a
operação na Ucrânia é o tiro de misericórdia para os regimes
imperialistas europeus? Uma coisa é certa: a Rússia é
conhecida por ter um dos melhores ─ possivelmente o melhor
─ serviços de inteligência do mundo. São muito bem
informados sobre o que ocorre nos outros países, mais do que
99% das pessoas mundo afora. Mais do que analistas,
jornalistas, especialistas, pesquisadores, professores, políticos

98
e mais do que os serviços de inteligência dos países ricos. Os
russos teriam informações da possibilidade de uma crise
revolucionária iminente na Europa? É possível. Porque essa
crise é perfeitamente possível. Desde 2008, o neoliberalismo ─
uma espécie de “fase superior” do imperialismo ─ vem se
esfacelando. Estamos em uma época de golpes de Estado,
guerras e revoluções. Vimos em 2021 um grupo de
esfarrapados como são os talibãs expulsar de maneira
humilhante a maior potência econômica e militar do mundo do
Afeganistão, após 20 anos de opressão imperial. Os grandes
capitalistas de Wall Street ou Frankfurt estão de cabelos em pé.
E a crise é tão grande que, além de os países imperialistas
poderem viver convulsões sociais devido à devastação
econômica, os países pobres parecem estar se levantando
gradualmente contra seus opressores ─ como demonstrou
precisamente o exemplo afegão. Outra declaração
impressionante de uma autoridade russa foi dada por Serguei
Lavrov alguns dias antes: “nossa operação militar especial
também contribui para o processo de libertação do mundo da
opressão neocolonial do Ocidente.” E ainda, na mesma
semana, um dos principais órgãos do establishment
norte-americano, a revista Foreign Policy, alertou que uma
pressão aberta dos EUA e da União Europeia para que os
países africanos se juntem à campanha antirrussa “pode ser
um tiro no pé”, pois já estaria havendo grande indignação nos
círculos políticos da África com essa política imperialista.
Dois meses depois, Vladimir Putin dirá, em uma reunião
com deputados russos: “eles [as grandes potências] estão
impondo tal modelo, um modelo de liberalismo totalitário,
incluindo a notória cultura do ‘cancelamento’, com proibições
generalizadas, em todo o mundo. Mas a verdade é que os
povos da maioria dos países não querem tal vida e tal futuro,
mas uma soberania real e significativa. E cansaram de se
ajoelhar, de se humilhar diante de quem se considera
excepcional.” Sem muitas opções, escanteado pelos

99
excepcionais, Putin está radicalizando seu discurso. Logo em
seguida, virá outra declaração contundente: “Sim, [as grandes
potências] alcançaram muitas conquistas, mas isso ocorreu em
grande parte graças ao saque de outros povos. As elites
ocidentais temem que outros centros de desenvolvimento
mundial possam apresentar suas próprias alternativas. Vem
uma nova época, uma nova etapa da história mundial. E
somente os Estados realmente soberanos poderão garantir
uma alta dinâmica de crescimento e se converter em exemplo
para os demais.”
A ação russa, acompanhando a revolução talibã, contribui
para o acirramento das contradições e da polarização entre os
países opressores, de um lado, e os países oprimidos, de
outro. E dentro de todos os países ─ principalmente os
opressores ─, acirra-se a polarização entre as classes
opressoras e as classes oprimidas. A Rússia, terra da primeira
revolução proletária vitoriosa da história, está contribuindo
decisivamente para a retomada dessas revoluções, ao gerar
uma enorme crise no regime imperialista. Cem anos depois
daqueles dias revolucionários que abalaram o mundo em 1917,
a Rússia volta a desestruturar o regime imperialista, na ação
mais importante desde o final da Segunda Grande Guerra.
Nosso amigo Evgeny, da Secretaria de Relações
Exteriores e Cooperação Inter-regional da Prefeitura de Rostov,
nos busca no hostel às 9 da manhã, junto com sua esposa
Yulia, para assistirmos à Parada Militar do Dia da Vitória. O
rádio de seu carro toca músicas patrióticas em homenagem ao
9 de Maio, como Den Pobedy (Dia da Vitória) ─ canção que
havia fechado o concerto na casa de cultura cossaca, o qual
havíamos assistido no sábado anterior em Novocherkassk.

Etot Den Pobedy (Este é o Dia da Vitória)


Porokhom propakh (Ainda com cheiro de pólvora)
Eto prazdnik (É uma festa)
S sedinoyu na viskakh (Com cabelos grisalhos)

100
Eto radost (É uma alegria)
So slezami na glazakh (Com lágrimas nos olhos)
Den Pobedy! (Dia da Vitória!)
Den Pobedy! (Dia da Vitória!)
Den Pobedy! (Dia da Vitória!)

Já no caminho para a Praça do Teatro, vemos muitas


crianças nas ruas vestidas com o uniforme do Exército
Vermelho ou dos partisans. Pegamos uma grande fila para
entrar na zona do evento, passando por um detector de metais.
Em Donetsk e Lugansk não foi realizada a tradicional parada
militar devido às ameaças de ataques e atentados por parte
dos ucranianos. Por isso a segurança em Rostov também foi
redobrada.
O dia está quente e ensolarado, sem uma única nuvem
no céu. As pessoas se amontoam para ver o desfile. É
impressionante a quantidade de jovens, mulheres e crianças. A
impressão que dá é que todos os mais de um milhão de
habitantes da cidade estão nas ruas para comemorar a vitória
contra o nazismo na II Guerra Mundial como se ela tivesse
ocorrido pouquíssimo tempo atrás. Bandeiras da União
Soviética, camisas com o Z da operação especial, bandeiras da
Rússia e vermelhas com o brasão de armas da URSS,
bandeiras da Vitória e fitas de São Jorge são ostentadas por
todo o mundo. Os que participarão da Marcha do Regimento
Imortal já seguram os retratos de seus parentes que lutaram na
Guerra. Uma mulher briga com um policial porque ela quer ver
o desfile da tribuna. As pessoas estão grudadas umas às
outras e preciso empurrar e socar algumas delas para seguir
em frente. Finalmente estamos nas tribunas, as escadarias da
Academia de Teatro de Rostov, na avenida Bolshaia Sadovaya.
Membros do governo municipal, regional e federal estão
presentes, bem como representantes da Igreja Ortodoxa,
deputados, militares do alto escalão e dirigentes do PCFR.

101
O locutor lembra as glórias do povo soviético na vitória
contra o fascismo e recorda que hoje os russos voltam a ser
ameaçados, desta vez na Ucrânia, e que por isso a Rússia teve
de intervir para desmilitarizar e desnazificar o país vizinho. A
parada começa. Exibem-se tanques e carros utilizados na II
Guerra, bem como veículos militares atuais, incluindo
caminhões lança-mísseis. São três mil militares desfilando,
socorristas que irão para o Donbass, estudantes, membros da
nova Guarda Juvenil ─ os herdeiros do Komsomol e dos
Pioneiros. Noventa e quatro veteranos compareceram ao
desfile. A banda do exército toca Den Pobedy. Então os
estudantes e as crianças fazem uma performance teatral,
marchando com muitos balões e bandeiras vermelhas.
Desfilam em veículos da II Guerra os descendentes dos que
lutaram há oito décadas contra o nazismo, utilizam a Bandeira
da Vitória, a russa e também a soviética tradicional. Inicia-se
então a Marcha do Regimento Imortal. Milhares de pessoas
seguram os retratos de seus antepassados que participaram da
Guerra e incontáveis bandeiras soviéticas. No telão, o retrato
de cada um daqueles heróis de guerra com uma pequena
descrição e ao fundo uma música calma e bela. Esse é
certamente o momento mais emocionante da Parada.
─ Quanta gente ─ digo a Evgeny.
─ Essa é a nossa história. Não tem como assassinar a
nossa história. Mas os ucranianos querem fazer isso. Russos e
ucranianos são irmãos, mas eles decidiram ir para os braços
dos americanos.
A Parada termina. Dura uma hora apenas. Depois do
desfile, uma enxurrada de pessoas percorre as ruas de toda a
cidade com as bandeiras e os símbolos pátrios e socialistas.
Os carros passam nas avenidas buzinando e exibindo as
bandeiras russa e soviética. As famílias passeiam pelas praças
e parques cantando músicas patrióticas, tremulando as
bandeiras soviéticas, gritando. E voltam para casa apenas no
final da tarde. Ao contrário do que algumas pessoas podem

102
pensar, o Dia da Vitória não se resume a um feriado oficial. É
uma verdadeira celebração popular, uma imensa mobilização
de massas. Uma mobilização, por que não dizer, comunista. E
uma verdadeira comemoração. O governo não entrega
bandeiras nem materiais para ninguém, todos compram ou
trazem de casa. Nem mesmo as comemorações do título após
a final de uma Copa do Mundo podem ser comparadas ao Dia
da Vitória. E a vitória que ocorreu há 77 anos parece que
acabou de acontecer! Esse dia mostrou como está enraizado
em cada cidadão russo o sentimento antifascista. Segundo o
governo, nada menos do que 12 milhões de pessoas
desfilaram no Regimento Imortal em todo o país. Em Moscou,
foram um milhão. Na Praça Vermelha, Putin destacou em seu
discurso que a Rússia foi obrigada a agir no Donbass, pois a
OTAN estava prestes a atacar o país e os grupos ucranianos
estavam massacrando os russos da região. Todos ignoraram
os apelos do Kremlin. Aquela foi a única solução.

103
104
Capítulo VIII …

Detidos
no Cáucaso

A Chechênia viveu duas guerras separatistas contra a Rússia


logo após o fim da União Soviética. A primeira começou em
1994 e durou dois anos, na esteira das reivindicações por
secessão que tomaram conta de inúmeros territórios do imenso
país. A segunda ocorreu entre 1999 e 2000, já sob a
presidência de Vladimir Putin na Rússia. Elas deixaram 300 mil
pessoas mortas ao todo. As duas foram acompanhadas por
diversos atentados cometidos por aqueles que eram
considerados terroristas chechenos em várias partes da
Rússia, incluindo em Moscou. Um dos mais famosos foi o
Massacre de Beslan, na Ossétia do Norte-Alânia, que matou
334 pessoas (incluindo 156 crianças) em uma escola em 2004.
O governo dos EUA chegou a indicar publicamente sua
simpatia pelos separatistas chechenos e, segundo revelou
Putin em um documentário da TV russa em 2015, a inteligência
norte-americana esteve em contato direto com os combatentes
do norte do Cáucaso no Azerbaijão.
Mas Putin conseguiu pacificar a Chechênia, impedir que
se separasse da Rússia e ainda colocar firmes aliados para
governar a república autônoma. A Chechênia foi
completamente reconstruída e hoje sua capital, Grozny, é uma
cidade moderna. Desde 2007, governa a região muçulmana o
carismático e temido Ramzan Kadyrov, considerado um dos
mais fortes aliados de Putin dentro da Rússia. Ele é acusado
pelas ONGs e a imprensa internacional ─ as mesmas que

105
fecham os olhos para o genocídio no Donbass ─ de diversas
violações dos direitos humanos, incluindo a criação e
manutenção de supostos campos de concentração para
homossexuais. Mas até mesmo seus adversários reconhecem
que goza de ampla popularidade.
A maior comprovação da lealdade de Kadyrov, também
membro do Rússia Unida, a Putin foi o envio de milhares de
chechenos para lutarem no Donbass ao lado das tropas russas
e das milícias populares de Donetsk e Lugansk. O próprio
Kadyrov viajou para a região e os batalhões chechenos ficaram
famosos pelo seu sucesso no campo de batalha com o temido
Regimento Akhmat Kadyrov ─ em homenagem ao pai e
antecessor de Ramzan na liderança da República da
Chechênia.
O que ouço aqui na Rússia é que os costumes da
sociedade chechena são bem rígidos e, por isso, quando os
jovens vão morar em outra parte da Rússia, eles não se
adaptam e algumas vezes tornam-se transviados. E eu
presenciei isso. No quarto ao lado do nosso, no hostel de
Rostov, havia um grupo de jovens chechenos. Eram meio estilo
bad boys, como outros que vi pela cidade. Um deles arrumou
uma briga com um russo bêbado dentro do hostel.
Assisti a muitos documentários sobre as guerras da
Chechênia, sobre a vida na Chechênia e os militares
chechenos de hoje. A maioria deles tratava os separatistas
como bons e os russos e o atual governo checheno como
maus. Mas, de qualquer forma, impressiona a diferença entre
aqueles separatistas de 20 anos atrás e os militares chechenos
de hoje. Esses consideram-se irmãos dos russos e apoiam
Putin. Claro, continuam sendo seguidores de Alá, mas são fiéis
aliados da Rússia e os membros do Regimento Akhmat
acreditam estar lutando pela libertação dos povos do Donbass
do nazismo.
Era essa a história que eu queria investigar e contar
quando convenci Rafael de comprar as passagens para

106
Grozny, capital da Chechênia. Porém, fomos surpreendidos no
caminho. Às 5 da manhã, sob intensa névoa, chuvisco e um
frio de 7 graus com sensação térmica de uns 5 graus,
descemos do ônibus para o controle de passaporte na fronteira
entre o Krai de Stavropol e a República Cabárdia-Balcária, no
Cáucaso. Só consigo enxergar um caminhão do exército russo,
com a letra Z pintada na lateral. Um tempo horrível, que não
pegávamos havia semanas. Apresentamos os nossos
documentos e os guardas verificaram que a data que havia
sido marcada no registro para a saída do hostel, em Rostov, já
estava vencida.
Fomos parar na delegacia, na cidade de Khoroshovskiy.
Na entrada, os policiais apreenderam nossos celulares. Lá,
conhecemos um outro detido, um homem de 1,60 cm, 50 anos
e olhos claros chamado Rafat, proveniente do Azerbaijão. Vivia
na Rússia havia 30 anos e trabalhava em Moscou como pintor
e também em uma pizzaria italiana. Foi lá onde aprendeu um
pouco de italiano, com o qual conseguiu se comunicar
conosco, misturando o espanhol arranhado (fruto do convívio
com um amigo arquiteto peruano que havia se mudado para a
Alemanha), russo, mímica (muita mímica) e até mesmo
arriscando uma palavra ou outra em português ─ falou em
“casamento” um milhão de vezes na nossa conversa.
─ É um poliglota ─ brincou Rafael.
Fã do Brasil e de Ronaldinho Gaúcho, me contou que
gosta de Che Guevara ─ “lutou pela liberdade”.
─ E pelo socialismo. Você gosta do socialismo?
E Rafat fez uma cara de quem não curte muito a ideia de
socialismo. Porém, além do Che, é fã de Fidel Castro e Hugo
Chávez (vai saber o que passa pela cabeça confusa de um
homem como Rafat…). Perguntei de Stálin.
─ Fifty x fifty ─ respondeu.
Tinha uma visão aparentemente positiva sobre Putin, mas
extremamente negativa sobre a Rússia. Disse que não há

107
democracia e que o país é uma ditadura, demonstrada pela
nossa detenção.
─ Tutto molto difficile ─ afirmou sobre a Rússia.
Estava indo para Istambul, através da Geórgia. Falava
turco, também, uma vez que seu país tem laços históricos e
culturais fortíssimos com a Turquia. Porém, considerava
Erdogan um demagogo, que fala muito mas não faz nada (me
disse isso na base da mímica).
Então, os policiais colheram nossas digitais, tiraram fotos
nossas ao lado do medidor da altura (por isso sei que nosso
amigo “turco” media 1,60 cm, com o que me senti um gigante)
e nos ficharam. Só conseguimos finalmente sair da delegacia
após umas quatro horas de espera e depois de sermos
extorquidos por um policial, que ficou com 15.000 rublos (R$
1.075). Não sem antes sermos ameaçados de deportação para
o Brasil e, de fato, impedidos de entrar na Cabárdia-Balcária e
prosseguir viagem para Grozny. Deveríamos retornar a Rostov
e Rafat se comprometeu com o policial a nos levar até a
estação de trem mais próxima. Eu estava apertado para mijar
desde quando descemos do ônibus de viagem, às 5h, e tive de
segurar o xixi até por volta do meio-dia. Devo ter ficado uns
cinco minutos segurando meu pau no mictório, na mijada mais
gostosa que já dei.
Após uma viagem de meia hora de carro, chegamos à
cidade de Pyatigorski. Assim como os policiais da delegacia, a
maioria das pessoas era diferente dos russos de Moscou ou
mesmo de Rostov e muito mais parecida com os armênios e
georgianos. As montanhas do Cáucaso estavam escondidas
sob a forte neblina, mas foi possível perceber que elas
cercavam a pequena cidade.
Comendo um bolo de chocolate e tomando um chá em
um pequeno estabelecimento, conversamos com Rafat por
escrito, no Google Tradutor. Não queria falar, estava
desconfiado das pessoas por perto.

108
─ Aqui você precisa tomar cuidado. O que vocês vieram
fazer em um lugar como este? Por que vocês vieram para a
Rússia? Aqui não é o Canadá ou a Austrália, onde há
liberdade. O que estão fazendo aqui?
Na rodoviária fomos parados novamente pelos tiras, que
pediram nossos documentos por algum motivo especial e Rafat
apresentou exatamente o protocolo preenchido na delegacia…
Pensávamos que seríamos detidos novamente, mas isso não
aconteceu. Pouco depois, fomos comer em um restaurante
uzbeque e em seguida pegamos duas lotações para a estação
de trem, pois não havia ônibus para Rostov.
O homem “com grande coração”, que “gosta de ajudar”
(como dizia) e era um muçulmano fiel a Deus, que não bebia
nem fumava e jejuava havia dois dias, Rafat viajou conosco
somente até a próxima estação, enquanto seguimos viagem
para Rostov. Mas nunca esqueceremos esse homem gentil que
nos salvou e que os mais desconfiados – como Rafael
– poderiam dizer que fosse simplesmente um agente da
polícia.

109
110
Capítulo IX …

“Não, ela
não sabe”

Chegamos na manhã de quinta-feira, 5 de maio, novamente à


cidade de Novocherkassk. É lá onde mora e trabalha Lyubov
Korsakova, que nos convidou para assistir às celebrações do
Dia da Vitória na escola onde leciona. Na Rússia, praticamente
todos os dias entre o 1° de maio e o 9 de maio são feriados,
incluindo o dia seguinte ao Dia da Vitória. Na verdade, o final
de abril e começo de maio é todo uma celebração da derrota
do nazismo pela URSS em 1945, uma verdadeira guerra
popular de libertação nacional.
A Escola n° 24 funciona das 8 da manhã às 6 da tarde e
reúne 600 alunos dos seis aos 18 anos de idade. Todos eles
moram no bairro. São 28 salas de aula com 21 turmas e uma
média de 25 a 30 alunos por turma para 35 professores. A
escola foi construída em 1964 e dá um pau nas suas
equivalentes brasileiras ─ que geralmente não agrupam alunos
de faixas etárias tão diferentes, são superlotadas e se
assemelham mais a presídios do que a escolas, tanto em
aparência como em funcionamento.
Lyubov, professora há 20 anos ─ primeiro em Lugansk e,
desde 2015, em Novocherkassk ─, leciona Geografia e
Biologia. Os estudantes aprendem alguma coisa sobre a
América Latina e o Brasil nas aulas de Geografia, mas sabem
muito pouco sobre nosso país, pois “é tão longe”. As disciplinas
são basicamente as mesmas que no ensino brasileiro, inclusive
as aulas de inglês.

111
Os professores têm discutido com os alunos a respeito da
operação militar especial na Ucrânia.
─ Eles não são contra a operação ─ diz Dimitri Churkin,
diretor da instituição desde 2014.
─ Korsakova discute com eles, e além disso muitos
parentes nossos vivem no Donbass. Minha irmã vive no
Donbass. E nós sabemos muito bem os problemas. É muito
estranho que a Europa e o mundo não falem sobre isso. Todos
os dias o exército ucraniano mata pessoas.
Somos convidados a entrar em algumas salas de aula e
os professores interrompem as explicações para nos
apresentar. As crianças levantam de suas cadeiras e nos dão
as boas-vindas, muitas com sorrisos sinceros em seus rostos e
olhares curiosos ao saberem que somos do Brasil. A
professora pergunta aos alunos do primeiro ano, os mais
jovens, por qual motivo se utiliza a fita de São Jorge. Muitos
alunos levantam a mão e respondem:
─ Pelo Dia da Vitória!
Desde pequenos os russos são ensinados sobre a
história do país e a Grande Guerra Patriótica certamente é a
parte mais especial.
─ É o feriado mais importante do país, todos sabemos
muito profundamente o seu significado, desde crianças ─
aponta Dimitri.
Todo o ano várias escolas da cidade organizam seus
alunos para levarem uma grande fita de São Jorge ao
Monumento ao Aviador Soviético, construído em homenagem
aos pilotos da Aeronáutica que rasgavam os céus da Rússia
em batalhas épicas contra a Luftwaffe.
Então chega a hora de todos saírem das salas de aula e
irem para o pátio, onde começa a cerimônia. Muitos alunos
estão com flores nas mãos, todos com a fita de São Jorge no
peito. Dois pirralhos brigam para segurar a bandeira nacional.
Um casal de alunos preside a cerimônia, ao microfone. Toca-se
o hino russo ─ cuja melodia é a mesma do antigo hino da

112
URSS ─, bem como canções da Guerra. Reproduzem o áudio
da famosa locução em que o radialista Iuri Levitan anuncia a
rendição dos alemães.
A professora de inglês me fala que eles sairão em
caminhada para levar a grande faixa da fita de São Jorge ao
memorial. Pergunta se iremos junto com eles, digo “claro que
sim” e mostro a minha fita amarrada no pulso.
─ Você é um de nós!
Chegamos ao memorial, que abriga uma estátua de um
avião, um jardim e um local com placas com o nome dos
habitantes de Novocherkassk que morreram na guerra. Os
alunos depositam as flores ao lado das placas onde se lê ao
lado “Glória aos aviadores soviéticos”, um membro da
prefeitura faz um pronunciamento e é respeitado um minuto de
silêncio. Um garoto de 10 anos me encara quase rindo de mim
e, quando eu olho para ele e dou um sorriso, ele cai na
gargalhada. Essa não foi a única vez que os russos riram da
minha cara, porque foram realmente muito engraçadas as
minhas tentativas de pedir os pratos nos restaurantes e
lanchonetes, ou de fazer qualquer tipo de compra em uma loja.
Havia veteranos da guerra entre nós. Rafael e eu
pedimos para conversar com um deles. Ivan Gniesdilov, de
menos de 1,60m e na casa dos seus 90 anos, aperta a minha
mão com força. Ele era uma criança quando viu os nazistas
invadirem Novocherkassk e matarem 1.004 pessoas em 204
dias de ocupação entre 1942 e 1943. Foi professor durante 58
anos de sua vida. No final da conversa, nos agradece pela
presença e diz que é comunista.
─ Eu também sou ─ respondo.
Ele fica extremamente contente e me dá um abraço forte.
─ Tovarish!
No caminho de volta à escola, vemos as crianças do
jardim de infância marchando em direção ao memorial para
depositar flores. Entramos na sala de Geografia, onde Lyubov
Korsakova ministra suas aulas. Sobre a lousa, vejo o retrato de

113
grandes descobridores, como Marco Polo, Cristóvão Colombo
e os portugueses Vasco da Gama e Fernão de Magalhães. Há
também placas governamentais com símbolos nacionais e a
foto do presidente Putin.
─ Lugansk é território histórico da Rússia e foi apenas em
1924 que a União Soviética o entregou à Ucrânia ─ começa
nossa entrevistada especial. Essa foi precisamente uma das
explicações de Putin em seu discurso justificando o
reconhecimento das repúblicas populares de Donetsk e
Lugansk pela Rússia, dias antes do início da operação
especial. Ela nasceu em Krasnodon, no então Oblast ucraniano
de Lugansk. Lembra que a cidade é terra dos partisans da
Molodaya Gvardiya que, com uma média de apenas 20 anos
de idade, lutaram e morreram na II Guerra Mundial.
─ Eles são nossos heróis ─ conta. ─ Hoje a Ucrânia
repudia esses heróis. Para os ucranianos, herói é Stepan
Bandera.
Junto a Rafael, Lyubov e eu, estão Dimitri e a professora
Yulia. Eles servem como intérpretes para a entrevista com
Lyubov. Dimitri nasceu em Tbilisi e Yulia cresceu em Baku e
todos têm um sentimento positivo a respeito da União
Soviética. Dizem que todas as famílias russas têm membros
que lutaram na Guerra. É o caso dos três. O avô de Yulia
morreu no conflito e foi condecorado como herói da Grande
Guerra Patriótica.
Lyubov era militante do Partido Socialista Progressista da
Ucrânia quando foi eleita um dos mais de 1.000 deputados do
parlamento de Lugansk, em 2004. Seu mandato terminou em
2008, mas ela ganhou um ano a mais e se retirou em 2009.
Quando os golpistas tomaram o poder em Kiev e iniciaram a
repressão aos russos étnicos e à esquerda, todos os membros
de seu partido pegaram em armas.
─ Foi uma decisão coletiva. Os militantes da esquerda
decidiram pegar em armas de forma voluntária, não foi uma
imposição partidária. Os partidos comunistas, a união das

114
organizações de esquerda, esses militantes foram quem
organizou esses grupos armados. Queríamos ser
independentes.
A República Popular de Lugansk foi fundada e se
declarou independente em 11 de maio de 2014. Por que ─
pergunto ─ foi escolhido o nome “República Popular”?
─ Porque o povo decidiu que queria a liberdade e não
queria viver na Ucrânia. O povo escolheu, lutou e quer viver em
liberdade. A classe trabalhadora teve o papel principal na
criação da RPL. Ela está no poder, não há empresários no
governo de Lugansk.
Eu pergunto se ela considera a RPL como um estado
socialista. A incerteza paira no ar. Yulia faz uma cara de dúvida
e responde que é uma espécie de sociedade em transição.
─ Os trabalhadores estão no poder ─ afirma Dimitri.
Lyubov sequer sabe como se chamavam seus
companheiros de armas, a não ser por seus nomes de guerra.
O seu era “Mama”. Fez parte da Guarda Nacional Cossaca e
foi oficialmente considerada terrorista por agentes do regime de
Kiev, tendo sido jurada de morte. Não chegou a ser presa,
embora militantes de extrema-direita a tenham perseguido e
tentado assassiná-la. Teve de fugir para o outro lado da
fronteira e chegou a Novocherkassk. Mesmo ali, foi pega em
uma emboscada por agentes ucranianos, que a lincharam. Seu
rosto ficou deformado e seu corpo todo ferido.
─ Neste momento não quero mais voltar para Lugansk.
Mesmo aqui na Rússia ainda temo ser atacada pelos nazistas,
pois enquanto durar a guerra ainda haverá perigo. Têm sido
tempos muito difíceis e causado sentimentos muito fortes. O
pior é que ainda não terminou. Mas atualmente estou melhor. A
luta contra o fascismo não é apenas pelas armas, mas também
devemos travar uma guerra de informações. Para mim é uma
vitória contra o fascismo o fato de vocês terem vindo para cá.
Nos contam que a milícia popular de Lugansk, que, tal
como a de Donetsk, tem sido o braço armado dos cidadãos das

115
duas repúblicas ao longo desses oito anos de guerra, não é um
exército regular. É formada apenas por voluntários e milicianos.
─ Como conseguiram as armas? ─ questiono sem saber,
talvez, que se trata de uma pergunta demasiado indiscreta.
Todos fazem silêncio.
─ Você sabe? ─ pergunto a Dimitri. Ele balança a cabeça
para os lados.
─ Você sabe? ─ pergunto a Yulia. Ela faz sinal de
negativo.
─ Lyubov sabe?
E todos olham para ela. Apressadamente, Dimitri
responde:
─ Não, ela não sabe.

116
117
118
Parte II

119
120
Capítulo I …

“Não esqueceremos!”

─ Você entenderá o quão perto a guerra estava.


Foi isso o que ouvi pouco depois de entrarmos no carro
de Vladimir, um russo que preside um fundo de solidariedade
ao Donbass. Ele nos atravessará para a República Popular de
Lugansk, graças a Evgeny. Nosso motorista nos busca em
Novoshakhtinsk, uma das últimas cidades do Oblast de Rostov
antes da fronteira.
Cruzamos a linha de demarcação entre a Rússia e a RPL
às 10h30 do dia 12 de maio. O lado do posto de controle
migratório que antes pertencia à Ucrânia tem lembranças da
destruição do início da guerra, como campos minados e
tanques militares queimados, na beira da estrada. Vemos cerca
de 20 refugiados do lado russo da fronteira. Eles a cruzam
todos os dias.
─ Aqui morreram 30 refugiados em 2014, incluindo
mulheres e crianças, assassinados pelos guardas fronteiriços
ucranianos ─ diz Vladimir, que está envolvido no envio de ajuda
humanitária à região desde aquela época. ─ Depois, a linha de
frente acabou recuando e os refugiados voltaram para casa.
Os guardas fronteiriços de Lugansk exibem o Z em suas
fardas. Aparecem novos refugiados. Há também os que fazem
o caminho inverso: voltam da Rússia para a RPL. Uma mulher
me diz que estava visitando sua família na Rússia e agora está
retornando para sua casa em Lugansk.
─ Há oito anos os Estados Unidos levam adiante uma
guerra de informação na Rússia e nos colocam um contra o

121
outro ─ afirma Vladimir, aproximando-se de mim. ─ Como os
EUA tratam o Brasil? ─ me pergunta.
─ Como um vassalo.
─ Eles ameaçam a todos que não têm bomba atômica ─
opina. ─ Temos de estar juntos!
Pessoas atravessam a pé a fronteira em direção à
Rússia. Uma fila de uns 400 metros de carros congestiona a
estrada. Somos interrogados pelos guardas fronteiriços, com a
ajuda de Vladimir, que lhes informa que somos comunistas
para que eles simpatizem conosco, o que aparentemente
funciona ─ embora também pareça que ninguém liga muito,
como se fosse absolutamente normal ser comunista por estas
bandas. A surpresa vem quando eles descobrem que somos
brasileiros.
─ No Brasil vocês podem contar a verdade sobre o
conflito? ─ questiona Vladimir. Não entendo se está curioso ou
se é um pedido para que contemos a verdade.
─ Há muita censura e mentira sobre a Rússia, mas nosso
jornal conta a verdade.
─ Nós gostaríamos que vocês contassem a verdade
sobre o que estão vendo aqui.
Avançamos estrada adentro para o interior da RPL. Uma
das primeiras cidades pela qual passamos é Sverdlovsk. Ela
tem esse nome em homenagem ao revolucionário Yakov
Sverdlov, membro do Comitê Central do Partido Bolchevique,
morto prematuramente pouco após a Revolução, em 1919. No
centro da cidade, há uma estátua de Sverdlov. Como parte da
política de “descomunização” levada adiante pelo governo
ucraniano, a cidade passou a se chamar Dovzhansk em 2016.
Mas isso não passa de ilusão, pois a Ucrânia não manda em
Sverdlov, que desde a proclamação da independência da RPL
está sob o domínio dos separatistas, que mantiveram o antigo
nome.
Em determinado ponto da estrada, Vladimir solta uma
frase enigmática e um tanto quanto assustadora:

122
─ Minha tarefa é trazê-los até aqui, levá-los ao governo e
salvar a sua vida.
Paramos em uma praça da cidade de Krasnodon ─ que
os ucranianos, achando que mandam alguma coisa na região,
chamam agora de Sorokyne. É como se o governo do Paraguai
mudasse o nome de uma cidade da Bolívia, pensando que isso
terá algum resultado real.
Membros do Rússia Unida posam para as câmeras de TV
enquanto depositam flores no monumento em homenagem à
Molodaya Gvardiya, na praça do museu dedicado à Guarda
Juvenil, que fica na rua Komsomolskaya. Na praça, mais ao
fundo, há também a Chama Eterna ao Soldado Desconhecido
─ comprovando que não passa de delírio a crença do regime
de Kiev de que tem o controle daquela região. Logo depois,
chega uma meia dúzia de carros e saem deles os membros
dos partidos comunistas da Federação Russa e da República
Popular de Lugansk. Vladimir entrega a um deles um prêmio
pela participação no envio de ajuda humanitária ao Donbass.
Eles nos entregam flores e nos somamos à cerimônia,
depositando-as aos pés do monumento. Entram todos
novamente em seus carros, alguns voltando a Moscou e outros
a Lugansk ─ onde irão nos esperar para uma entrevista.
Pé na estrada novamente. Na zona urbana, é possível
observar uma quantidade enorme de símbolos e bandeiras da
RPL, bem como bandeiras russas e símbolos soviéticos. Há
também vários outdoors das filiais do Rússia Unida no
Donbass. Pessoas nas ruas utilizam camisas com o Z
estampado e já sentimos os sinais da guerra atual com a
presença crescente de caminhões do exército, também
adornados com o Z pintado de branco na lateral.
Ao alcançarmos a cidade de Novosvetlovka, a paisagem
muda e se entristece. Ao fundo, longe da estrada, é possível
enxergar os destroços do que um dia foi o aeroporto de
Lugansk, até 2014.

123
─ O exército ucraniano o bombardeou e depois se dirigiu
à aldeia de Novosvetlovka, onde os militares roubaram,
mataram e zombaram da população ─ conta Vladimir.
Ao lado da estrada, ele aponta para um conjunto
habitacional que foi reconstruído após ser bombardeado pelos
ucranianos. Vemos outros edifícios destruídos e uma casa
metralhada. Várias casas ainda mantêm seus portões cheios
de buracos de balas. Algumas instalações foram reconstruídas
depois de 2015.
A orgia de violência que se abateu sobre aquele povoado
entre 2014 e 2015 tem um responsável em particular: o
Batalhão Aidar. Formado por neonazistas (eufemismo para
nazistas), o grupo cometeu todo o tipo de insanidade contra os
indefesos habitantes de Novosvetlovka. Seus membros,
completos psicopatas degenerados, arrancaram um
monumento de Lênin ─ hoje, resta apenas o pedestal ─ e
naquele lugar fuzilaram 18 pessoas. Estupraram uma mulher
ali mesmo e a penduraram na traseira de seu tanque, relata
Vladimir. Ao lado da estátua, há uma igreja. Sua cúpula foi
reformada, pois o Batalhão Aidar a bombardeou ─ junto com
dezenas de pessoas, que haviam se escondido dentro dela.
Mais à frente, um tanque da Milícia Popular de Lugansk
atingido pelas bombas do exército ucraniano se transformou
em um monumento em memória àquela ocasião, na beira da
estrada. Ao seu lado, os soldados ucranianos haviam agrupado
alguns moradores, incluindo mulheres e crianças, e despejado
bombas.
Apenas quatro dias depois de nossa passagem por
Novosvetlovka, dois veículos aéreos ucranianos seriam
abatidos ao sobrevoarem a cidade.
Em algum momento da viagem, tive acesso a um
documento intitulado “Guerra civil na Ucrânia: 2014-2022”,
produzido pela Rossotrudnichestvo e pela Fundação para o
Estudo da Democracia. Ele resume os principais fatos que
demonstram como o atual regime ucraniano tem promovido a

124
ideologia nazista e o assassinato em massa da população do
Donbass nos últimos oito anos. “Está sendo promovida a ideia
da superioridade étnica ucraniana, o antissemitismo e a
russofobia, glorifica-se os heróis do nazismo e seus cúmplices”,
diz o texto. O documento recorda o Extrato da Resolução do
Parlamento da Ucrânia n.° 2364 sobre a Celebração de Datas
Comemorativas e Aniversários em 2020, que inclui as
seguintes figuras colaboradoras da ocupação nazista da
Ucrânia durante a Segunda Guerra Mundial:

12 de dezembro ─ 130 anos do nascimento do nazista Andriy


Melnyk
Andriy Melnyk é um criminoso de guerra mencionado nos
Julgamentos de Nuremberg. Chefe da Organização de Nacionalistas
Ucranianos (OUN), organizador e participante nas matanças de
judeus em Kiev, Zhitomir e Vinnytsia, incluindo o massacre de Babi
Yar.

6 de fevereiro ─ 100 anos do nascimento do nazista Vasyl


Levkovych
Vasyl Levkovych é um criminoso de guerra da polícia auxiliar
ucraniana em Dubno, o organizador e participante do massacre de
5.000 judeus em Dubno e Rivne.

20 de fevereiro ─ 115 anos do nascimento do nazista Ulas


Samchuk
Ulas Samchuk foi redator-chefe do jornal nazista e antissemita Volyn
de Rivne, cúmplice do extermínio de 25.000 judeus em Rivne. Ao
mesmo tempo, suas obras foram incluídas oficialmente no plano de
estudos das escolas ucranianas.

24 de fevereiro ─ 110 anos do nascimento do nazista Vasyl


Sydor
Vasyl Sydor é um criminoso de guerra do Batalhão Nachtigall e do
Batalhão 201 da polícia auxiliar. Participou dos massacres de
poloneses e de operações punitivas contra a população civil na
Bielorrússia.

16 de maio ─ 130 anos do nascimento do nazista Kyrylo Osmak

125
Kyrylo Osmak foi um dos líderes do Parlamento Nacional Ucraniano
(Rada Nacional Ucraniana) estabelecido com o apoio das tropas
nazistas em Kiev em 1941-1943 sob a direção do criminoso de
guerra Andriy Melnyk.

23 de setembro ─ 120 anos do nascimento do nazista Volodimir


Kubiyovych
Volodimir Kubiyovych foi um dos iniciadores da criação da Divisão
SS Galizien.

12 de novembro ─ 100 anos do nascimento de Vasyl Halasa


Vasyl Halasa foi um ativista da Organização de Nacionalistas
Ucranianos, um dos organizadores dos massacres de poloneses e
judeus

Andriy Melnyk se converteu em herói oficial da Ucrânia


sob a presidência de Vladimir Zelensky. Durante a ocupação
alemã da Ucrânia, ele foi chefe da Organização de
Nacionalistas Ucranianos (OUN) e agente pago pela Gestapo
junto com Stepan Bandera (como consta nos materiais do
Tribunal de Nuremberg). Em 7 de julho de 1940, enviou um
chamado a Adolf Hitler em que dizia que “junto com as legiões
da Europa gostaríamos de marchar ombro a ombro com nosso
libertador, a Wehrmacht alemã, e, a tal efeito, ter a
oportunidade de criar uma unidade militar ucraniana”.
Uma instrução publicada em maio de 1941 pela OUN
estipulava quem eram os inimigos dos ucranianos e como
deveriam ser tratados:

As minorias nacionais se classificam em:


a) amistosos conosco, ou seja, membros de todos os povos
escravizados [pelos russos];
b) hostis a nós, ou seja, russos, poloneses e judeus;
dos quais
a) têm os mesmos direitos que os ucranianos, podem
voltar a seu país;
b) serão exterminados durante a luta.

126
Uma das principais organizações da extrema-direita
ucraniana, o Svoboda (“Liberdade”), tem orgulho de ostentar
publicamente símbolos nazistas, como o das Waffen-SS. Até o
ano de 2004, chamava-se Partido Nacional-Socialista da
Ucrânia. Logo após o golpe do Maidan, em março de 2014 o
regime de Kiev trocou todos os antigos governadores dos 25
Oblasts por homens de confiança. Seis dos novos
governadores eram do Svoboda, assim como o segundo
principal dirigente de Kiev, o procurador-geral e vários
ministros. Em 2005, o líder do agrupamento, Oleg Tiagnibok,
assinou uma petição para proibir todas as organizações
judaicas da Ucrânia.
Finalmente chegamos à cidade de Lugansk. Muitos
prédios residenciais e comerciais ainda estão destruídos
(alguns parcialmente, outros totalmente), apesar de muitos
outros terem sido restaurados. Vemos mais carros cujos donos
pintaram a letra Z na lataria do que havíamos visto em toda a
Rússia. São incontáveis. A impressão que dá é que metade
dos veículos levam o Z consigo. Comboios militares passam
para lá e para cá na rua Oboronna, a principal via da capital. É
impressionante o número de veículos militares que cruzam as
ruas de Lugansk.
Praticamente só vejo mulheres nas ruas. Quase toda a
população masculina adulta de Lugansk está na frente de
batalha. Muitas fábricas deixaram de funcionar porque os
operários foram para a guerra. É uma necessidade. Mas ao
que leva a extrema necessidade! Uma economia estagnada,
uma vida social praticamente paralisada. Nesses oito anos de
heróica resistência, não há vida para o povo de Lugansk. O
comércio começa a fechar no meio da tarde. As famílias sofrem
angustiadas com a possibilidade diária da morte de seus filhos,
pais e maridos no front. Todos os que ainda não morreram
conhecem alguém que morreu na guerra. Essas pessoas só

127
queriam uma vida pacífica. Mas não tiveram escolha. A Ucrânia
as obrigou.
A agência de notícias RIA Novosti publicará no dia 6 de
junho um documento encontrado por seu correspondente na
base do Batalhão Azov em Mariupol que diz que 70% dos
habitantes dos territórios da República Popular de Donetsk
controlados por Kiev são “pró-russos”. O mesmo vale para toda
a região do Donbass, incluindo Lugansk. Porque é
impressionante como todos os cidadãos de Lugansk se
consideram russos, consideram que vivem em território russo
ou até que seu governo é o mesmo governo da Rússia. Uma
das primeiras medidas do novo parlamento ucraniano, em
fevereiro de 2014, logo após a derrubada do governo
Yanukovich, foi cancelar o status especial da língua russa,
falada por praticamente todos os habitantes do leste do país.
Isso iniciou a rebelião anti-Maidan no Donbass. O que teria
acontecido se as populações de Donetsk e Lugansk não
tivessem se levantado em armas? As novas autoridades de
Kiev teriam dominado o Donbass, estabelecendo as leis que
impuseram no restante da Ucrânia: proibição do idioma russo
(que é o que eles falam), proibição das organizações de
esquerda (que ali têm grande apoio), destruição dos símbolos
russos (muito importantes para aqueles habitantes). E estariam
patrulhando as ruas os bandos nazistas, que veem com total
ódio os cidadãos de etnia russa, independentemente de serem
separatistas ou não, independentemente de serem partidários
de Putin ou não. Viveriam em um estado de apartheid, como
viviam os negros na África do Sul ou como vivem os palestinos
em sua própria terra, ocupada por Israel.
Vladimir nos leva à sede do Partido Comunista, um
casarão de dois andares que fica de frente a edifícios e casas
completamente destruídos pelos ataques do exército ucraniano
em 2014. A própria sede do partido ─ que tem na entrada um
enorme busto de Lênin e outro de Stálin ─ sofreu ataques e
ainda conta com inúmeros buracos de bala nas paredes. No

128
andar térreo, dezenas de pacotes de ajuda humanitária, que os
partidos comunistas da Rússia, de Lugansk e de Donetsk
organizam para ser enviada aos necessitados do Donbass.
Somos recebidos pelo secretário-geral do partido, Igor
Gumenyuk, acompanhado de dois membros do Komsomol, a
juventude comunista que mantém o nome dos tempos
soviéticos. A sala é adornada com um retrato de Lênin, com a
Bandeira da Vitória, com as obras completas de Lênin e Marx e
com páginas do Pravda destacando o Tratado de Ialta entre
Stálin, Churchill e Truman. Na cozinha, vejo quadros com
ícones da Igreja Ortodoxa. Conversamos sobre como a
imprensa brasileira manipula as notícias sobre a Ucrânia, a
Rússia e o Donbass e como o nosso país está sendo
submetido ao domínio dos EUA, principalmente desde 2016. O
líder dos comunistas de Lugansk nos explica que seu partido
foi fundado ainda quando a RPL não havia sido criada e era um
Oblast da Ucrânia. No entanto, com o golpe de 2014, apoiou a
independência do país. O partido não tem representação
parlamentar na RPL.
O PCRPL mantém uma estreita relação com o Partido
Comunista da Federação Russa e também com os seus pares
de Donetsk. Então, Gumenyuk nos faz uma pergunta:
─ Qual a opinião do seu partido sobre Stálin?
Rafael olha para mim. Eu retribuo o olhar. Devemos ter
ficado umas seis horas paralisados sem saber o que falar para
não perdermos a amizade que estávamos começando a
construir e que certamente seria importante para os nossos
objetivos no Donbass ─ apesar de, na verdade, não termos tido
nenhum contato posterior com eles.
─ O que vamos responder?
Finalmente, tomamos coragem e respondemos
diplomaticamente:
─ Não somos stalinistas, mas não concordamos com
mentiras que são contadas pelo imperialismo sobre Stálin.

129
Gumenyuk parece satisfeito com a resposta e nos
presenteia com uma medalha de Lênin, que foi produzida em
ocasião de seus 150 anos, em 2020. Se tivéssemos dito que
éramos stalinistas, ele nos daria uma medalha de Stálin.
─ Qual o papel do seu partido nesta guerra?
─ Somos civis, embora haja militares e oficiais entre os
comunistas. Apoiamos o nosso povo em sua busca pela
integração com a Rússia. Temos atuado em conjunto com o
Partido Comunista da Federação Russa e estamos realizando
muito trabalho de assistência humanitária à população nas
áreas liberadas da República Popular de Lugansk, bem como
assistência aos militares. Até a data, já conseguimos para
ajuda humanitária mais de 60 toneladas de alimentos, farinha,
cereais, massas e água.
─ Vimos vários outdoors do partido Rússia Unida…
─ É o partido do governo.
─ As organizações humanitárias internacionais ajudam o
povo do Donbass?
─ Apenas em um pequeno volume. A Cruz Vermelha
chegou a fazer alguma coisa. Mas basicamente toda a ajuda
vem da Rússia.
─ Qual a sua avaliação do papel da ONU?
─ Ela é um lixo americano.
─ Os militantes do partido chegaram a pegar em armas
contra os grupos nazistas ucranianos?
─ O partido é uma organização civil, não militar. Mas
certamente entre os voluntários da luta armada há membros do
partido, embora não tenhamos essa estatística.
─ Qual a relação com o governo de Lugansk?
─ Somos uma oposição construtiva.
─ Vocês consideram que o que ocorreu em 2014 em
Lugansk foi uma revolução dos trabalhadores?
─ Não. Foi um conflito civil que não tem uma essência de
classe. A maioria dos habitantes do sul e do leste da Ucrânia
estão prestes a se unir à Rússia. E os golpistas de Kiev estão

130
empenhados em suprimir os direitos da população de língua
russa.
─ Que resultado você espera dessa operação militar
especial da Rússia?
─ O que o nosso povo quer é a paz em nossa terra e a
preservação de nossos valores tradicionais, culturais e
históricos.
─ Como é a colaboração do partido com o povo e o
Partido Comunista de Donetsk?
─ Existe uma cooperação internacional estreita e frutífera.
Os comunistas do Donbass são parte integrante da vanguarda
do povo. Junto com o povo, esperamos a paz e o
estabelecimento de um regime democrático, que são os
princípios de uma sociedade livre.
─ Quantas famílias estão sendo ajudadas pelos esforços
dos comunistas do Donbass?
─ Não temos esse número. Mas desde 2014, junto com o
PCFR, nós prestamos ajuda com alimentos, roupas e
remédios.
─ Outros partidos fazem algo parecido?
─ Sim. Nossas organizações públicas e os partidos e
movimentos sociais russos também o fazem. Mas a primeira
ajuda humanitária que chegou ao Donbass, ainda em 2014,
veio do PCFR durante os três meses das mais ferozes
hostilidades. Foi o primeiro a enviar insulina para os diabéticos
e comida para os bebês. Desde 2014 prestamos essa
assistência.
─ As pessoas afetadas pela guerra estão conseguindo
reconstruir suas vidas? Existe emprego, moradia, escolas?
─ Nas condições de lei marcial há muitas dificuldades
(moradias danificadas, problemas sociais, domésticos).
Quando houver paz, ela contribuirá para a vida normal e
pacífica dos cidadãos.

131
─ Houve mudanças econômicas desde a independência
de Lugansk? Empresas foram expropriadas? O Estado
assumiu uma parte da economia?
─ Sim. Mudanças em meio às condições de bloqueio
econômico são uma etapa muito difícil. Mas a nossa república
respeita o direito de propriedade. Não houve expropriação sem
que tivesse de passar pelo aval do Judiciário. Antes de a
Rússia nos reconhecer como república, as condições
econômicas eram muito mais difíceis. A Ucrânia não tinha
interesse em investir na economia de Lugansk.
─ O partido sofreu perseguição dos grupos nazistas? O
que aconteceu aqui na sede? Vimos buracos de balas nas
portas…
─ Durante os combates em 2014, duas bombas atingiram
o andar térreo do nosso prédio, deixando duas pessoas mortas
e outras feridas. Na Ucrânia, isso é chamado de
“descomunização” e como resultado não apenas as pessoas
mas também os monumentos em homenagem aos defensores
da URSS na Guerra Patriótica e a Lênin foram atacados. As
ruas foram renomeadas com os nomes dos cúmplices de Hitler
e de todos os tipos de canalhas.
─ Sentimos muito ─ diz Rafael.
─ São dias difíceis…
Gumenyuk liga para um dos poucos hotéis da cidade e
reserva um quarto para nós. Após uma rápida
confraternização, nos despedimos e Vladimir nos leva ao hotel
Dominó, localizado a uns dois quilômetros da entrada da zona
urbana de Lugansk, ao lado da faculdade de medicina da
Universidade Estatal e em frente ao conjunto de hospitais da
capital.

132
Capítulo II …

“Não perdoaremos!”

A recepcionista do hotel Dominó bate à porta do nosso quarto


às nove e pouco da manhã.
─ O Ministério me ligou e já estão esperando por vocês.
Se aprontem, vou pedir um táxi.
─ Obrigado, já estamos descendo.
Passamos por alguns voluntários que se encontram
hospedados no hotel ─ os únicos hóspedes, além de nós e
uma boneca sinistra que fica parada na recepção e que
certamente anda pelos corredores escuros do prédio
mal-assombrado durante a noite.
Um dos voluntários é Roman. Sentado no sofá, com um
cheiro forte de sovaco que se espalha pelo saguão, ele está de
muletas e com a perna direita engessada. Barba ao estilo
checheno, cabeça raspada e um nariz pontudo, me vê chegar
perto. Aperto sua mão e o cumprimento.
─ Bom dia.
─ Bom dia.
─ Sou brasileiro.
─ Voluntário?
─ Não.
─ Hmmm.
─ Você foi ferido em combate?
─ Sim, próximo daqui.
─ Desejo que você se recupere logo.
─ Obrigado.
─ Podemos tirar uma foto?

133
─ Acho melhor não.
─ Tudo bem.
Saio e volto um pouco depois.
─ Qual o seu nome?
─ Roman.
─ Você é de Moscou?
─ Não, de Volgogrado.
─ Ah, eu conheço Volgogrado. Mamaev Kurgan é linda. O
Rio Volga também.
Seu táxi chega. Ele se levanta e pede para eu abrir a
porta do saguão do hotel para ele sair. Então diz que podemos
tirar uma foto.
─ Você é jornalista?
─ Sim. Mas ao contrário dos outros jornalistas, eu apoio a
Rússia.
Roman entra no táxi e vai embora para um hospital
próximo, onde está se tratando do ferimento.
Alguns dias depois, volto a falar com ele por mensagem.
Envio a foto que tiramos.
─ Belo, irmão. Deus está conosco e a força está conosco.
─ Como você se feriu, camarada?
─ Eu sou da inteligência, eles tomaram a vila de Nizhne.
─ Você está se recuperando?
─ Estou, irmão… Obrigado por se preocupar.
─ Pretende voltar para a frente após se recuperar?
─ Eu definitivamente vou me curar e lutar novamente.
─ Por que você se voluntariou?
─ Porque eu sou jovem e vou defender o meu povo até o
fim.
─ Você ainda está hospedado no hotel?
─ Estou no hospital regional agora. Hoje vou para
Alchevsk, eles estão me transferindo.
Vamos entrevistar o ministro Vladislav Deynego, chefe
das Relações Exteriores de Lugansk. Pegamos um táxi no
hotel. É um Lada dos anos 80 e o motorista, uma figura de uns

134
50 anos. O carro é todo decorado com broches em seu interior,
forrando todo o teto com medalhas de Lênin, da URSS, do
ursinho Misha etc. O rádio toca uma música dos anos 80 ou 90.
Ele nos mostra uma coleção de cédulas de diversos países
exóticos, como Angola e Camboja. Um senhor muito bem
humorado, com dentes de ouro e uma corrente estilo hip hop.
Pega o meu celular e dá uma olhada na marca, faz uma cara
engraçada.
─ Como é a vida em Lugansk?
─ É ruim. Aqui não tem trabalho. Está tudo destruído.
Onde você mora? Me leve para lá!
─ Não entendo.
─ Suíça, Papua Nova Guiné…
─ Ahhhh, Brasil!
─ Brasil? Me leve para lá!
─ Haha!
─ De qual cidade você é?
─ São Paulo.
─ Aqui está muito ruim. Eu queria ir para a Alemanha, ou
talvez para a Polônia, como refugiado.
Ele nos deixa na praça central da cidade, onde fica o
prédio do Ministério e próxima ao Soviete do Povo, o
parlamento de Lugansk ─ antiga sede do Partido Comunista na
época soviética. Em frente ao Ministério, um memorial a dois
jornalistas do canal Rússia 1 que morreram atingidos pelos
bombardeios em Lugansk em 2014 e outro em homenagem às
pessoas mortas em 2 de junho naquela mesma praça, em um
bombardeio inesperado dos ucranianos. Também o prédio foi
atingido. Outro memorial está inserido ao lado da entrada, com
as fotos e nomes de cerca de 130 pessoas que “morreram pelo
nosso futuro e por nós”, diz Maria Sergibaeva, funcionária da
chancelaria que nos ajudará hoje com a tradução na entrevista
com o ministro.
─ Foram os primeiros mortos ─ diz Deynego, começando
a conversa sob a sombra das árvores que nasceram após a

135
destruição das bombas. Caminhamos um pouco. ─ Nesta
praça, havia muitas crianças mas nenhuma morreu.
No total, oito pessoas morreram naquele bombardeio. O
ministro estava em uma janela ao lado de outra que foi
atingida. Um amigo seu foi ferido. Naquela época ele era
deputado do Soviete do Povo.
─ Qual era seu partido na época?
─ Não havia partidos naquela época, somente as pessoas
da rua. E até agora não temos partidos. Apenas organizações
sociais. As pessoas apresentavam suas candidaturas por conta
própria e eram eleitas.
─ Movimentos sociais, trabalhadores etc.
─ Sindicatos.
─ Mas hoje o parlamento já é composto por partidos
políticos, certo?
─ Não, nós não temos partidos políticos. Apenas
organizações sociais ao invés de partidos. Os sindicatos não
têm mais atividade no parlamento. Mas muitos sindicalistas
fazem parte dessas organizações sociais com assento no
parlamento.
─ E neste momento membros dos sindicatos são
deputados?
─ Sim.
─ Quantos deputados há no parlamento?
─ Cinquenta.
─ Então os ministros e os deputados não pertencem a
nenhum partido político?
─ Não. Poderia haver membros de partidos políticos
russos, mas neste momento os partidos russos não fazem
parte do nosso sistema político.
─ O que você pensa sobre o reconhecimento da RPL por
outros países, como Síria e Venezuela? Há uma negociação
sobre isso neste momento.
─ Nós conversamos sobre isso com eles, mas ainda não
conseguimos chegar a um acordo.

136
─ A embaixada da RPL em Moscou será inaugurada em
junho?
─ Eu não sei, talvez em maio.
─ E no Brasil? ─ todos sorriem e esboçam uma risada.
─ Talvez ─ novos sorrisos. ─ Vocês poderiam ajudar.
─ Vamos fazer todos os nossos esforços para isso.
─ Vamos ficar felizes.
Entramos em um restaurante japonês ao lado do prédio
do Ministério.
─ E os bombardeios ucranianos neste momento? Estão
ocorrendo aqui por perto?
─ Eles estão ocorrendo a cerca de 15 quilômetros daqui.
─ Diariamente?
─ Sim, mas não aqui. Em Severodonetsk, Popasnaya,
etc.
─ Há algum perigo aqui na cidade de Lugansk?
─ Não. A Ucrânia poderia bombardear a cidade, mas não
está fazendo isso neste momento.
─ As pessoas aqui estão preocupadas com a
possibilidade de bombardeio?
─ Não, aqui não.
─ É uma cidade pequena, quantos habitantes ela tem?
─ Cerca de 450 mil.
─ As ruas parecem vazias, há poucas pessoas. Hoje é um
dia normal, ou é feriado?
─ O problema é que muitos homens neste momento estão
lutando na linha de frente.
─ Quantas pessoas?
─ Talvez 40 ou 50 mil de toda a república, não sei.
─ Milicianos?
─ Milicianos e…
Deynego e Maria encontram dificuldade em traduzir o
termo para o inglês, e o Google Tradutor… também! O celular
do ministro toca e ele se ausenta por alguns minutos ao
telefone.

137
─ Você trabalha para o Ministério de Relações Exteriores
há quanto tempo, Maria?
─ Há um ano.
─ Quantos membros há no governo?
─ Eu não sei ─ volta Deynego, ainda ocupado ao
telefone.
─ Depende, no nosso ministério há uns 25, 27 ─ explica
Maria. ─ São 16 ministérios. Mas em breve o número vai
aumentar, pois com o reconhecimento da Rússia irão aumentar
as tarefas e as demandas de trabalho.
─ Antes você fazia o quê?
─ Eu era estudante da Universidade Estatal de Lugansk,
gosto de politologia.
─ Ela continua funcionando normalmente?
─ Sim.
─ Há muitas pessoas voltando da Rússia neste
momento?
─ Não tenho certeza.
─ Você tem familiares na Rússia?
─ Sim, meu avô.
─ E na Ucrânia?
─ Não. Os outros familiares vivem aqui.
─ Sua família perdeu membros na guerra?
─ Não, mas as de amigos muito próximos sim. Talvez
quase todas as famílias tenham algum membro que morreu na
guerra.
O ministro volta à mesa.
─ O que você pensa a respeito do papel da ONU nesta
guerra desde 2014?
─ Essa é uma pergunta muito boa, mas é muito ampla.
─ A Cruz Vermelha e outras organizações internacionais
enviaram algum tipo de ajuda para cá?
─ As organizações internacionais pararam de nos ajudar.
Agora estamos aguardando. Há, por exemplo, os Médicos Sem

138
Fronteira. Mas não se pode transferir dinheiro ou qualquer tipo
de ajuda para cá.
─ Como tem sido a reconstrução de Lugansk após oito
anos?
─ Ela só começou agora. Há uma grande ajuda da
Rússia.
─ Se não fosse pela Rússia…
─ Seria muito difícil ─ responde Maria.
─ Como é o apoio da Rússia?
─ Ajuda humanitária.
─ Ajuda econômica também?
Então nos mostram uma notícia, comunicada pelo canal
do Ministério no Telegram: “Às vésperas do Dia da República
de Lugansk, um comboio de ajuda humanitária saiu de Ufa. Os
beneficiários da carga são da cidade de Krasny Luch, que tem
muitas ligações históricas com a Basquíria. A carga inclui
materiais de construção, alimentos, mais de 167 toneladas.
Além disso, também uma policlínica móvel com quatro módulos
com equipamentos médicos, cardiologia, pediatria e dentistas.
Cerca de 3 toneladas de equipamentos médicos e remédios,
23 médicos e 17 enfermeiras e paramédicos. O Ministério das
Relações Exteriores da República Popular de Lugansk
expressa grande gratidão à República irmã por toda a
assistência e apoio. Nos dias em que o Donbass liberta o seu
povo do nazismo de Kiev, o apoio do povo irmão da Basquíria é
especialmente valioso para nós.”
─ Esse tipo de ajuda vem todos os dias?
─ Não todos os dias, mas com muita frequência.
─ Sobre a economia de Lugansk. É claro que ela foi
afetada pela guerra. Mas atualmente, as pessoas encontram
emprego ou vivem de ajuda humanitária?
─ Sim, há trabalho. A maior parte da ajuda humanitária é
enviada para os territórios liberados e para os combatentes.
─ O que você pensa a respeito da cobertura da imprensa
internacional?

139
─ Ela é muito pouca. Episódica. Por exemplo, vocês
vieram até aqui.
─ Os jornalistas ocidentais estão todos no Oeste da
Ucrânia. Em Kiev, Lvov, e não aqui no Donbass, onde a guerra
está acontecendo. E todo esse tempo foi assim? Sem
jornalistas aqui para ouvir o que as pessoas têm a dizer? Só
nós? Ou um ou outro?
─ Em 2014 havia muitos jornalistas aqui. Mas a
informação que eles colhiam não era publicada. Havia inclusive
equipes de TV do Brasil quando tomamos o controle do prédio
da polícia ucraniana e os policiais tiveram de sair, mas isso não
foi transmitido.
─ Isso é comum na imprensa ocidental. Eles filmam mas
não publicam o que filmaram.
─ Sim. E naquela época havia um jornalista britânico aqui,
ele ficou hospedado no prédio que hoje é a sede do governo.
─ Você falou que a reconstrução de Lugansk acabou de
começar. As reparações no prédio do governo são recentes?
─ Sim.
─ E sobre a cobertura geral da imprensa, você acha que
há muitas distorções? A imprensa diz que a Rússia está
cometendo um genocídio na Ucrânia mas não fala do
genocídio no Donbass.
─ Em 2014, a cidade de Lugansk estava cercada pelas
forças ucranianas, que haviam bloqueado o acesso ao
cemitério. Fomos forçados a enterrar os mortos nos arredores
da cidade, onde hoje é um memorial.
─ E a imprensa internacional não mostrou isso?
─ As câmeras chegaram a filmar, mas não encontrei
nenhuma reportagem sobre isso.
─ António Guterres esteve em Kiev, esteve em Moscou,
mas não aqui no Donbass. O que você pensa disso?
─ Em 2019 esteve aqui Stephen O’Brien
[subsecretário-geral da ONU para Assuntos Humanitários e
Coordenação de Auxílio Emergencial] e conversou conosco.

140
Visitou um vilarejo que foi destruído e a missão da ONU o
reconstruiu. Havia muitos projetos aprovados pela ONU mas
todos eles foram paralisados após o início da operação
especial da Rússia.
─ Alguma previsão de quando eles poderiam recomeçar?
─ Talvez em junho ou julho, mas eu não sei. Estamos
aguardando. Eles dizem que não há como transferir os fundos
ou carregamentos.
─ Lugansk está sofrendo com as sanções contra a
Rússia?
─ Não há bloqueio na fronteira com a Rússia, mas não há
demanda da economia russo pelos nossos produtos. Os
empresários russos estão com medo de sanções.
─ Quais os principais produtos para exportação aqui?
─ Antes da guerra nós produzíamos muito carvão, metal,
muitos tipos de produtos químicos. Indústria pesada.
─ Era uma parte importante da economia ucraniana?
─ Não só da Ucrânia, mas da União Soviética. Havia uma
fábrica muito grande e famosa de locomotivas, chamada
Revolução de Outubro.
─ E ela durou até depois da queda da URSS e só foi
paralisada em 2014?
─ Sim.
─ E agora a economia está paralisada?
─ Não completamente paralisada, mas na maior parte
sim. Não há demanda pelas nossas locomotivas. Algo parecido
ocorre com o metal e os produtos químicos.
─ Lugansk não produz seus próprios alimentos?
─ Sim, produzimos nosso próprio trigo e vamos começar
a exportar.
─ Poderíamos dizer que existe uma crise humanitária na
RPL?
─ Sim, existe. Muitos jovens vão para a Rússia, alguns
para a Ucrânia. Ficaram as pessoas mais velhas. Mas nosso
orçamento não é suficiente para pagar as aposentadorias.

141
─ Qual é o apoio do governo para essas pessoas?
─ Elas recebem a aposentadoria, mas uma quantidade de
dinheiro vem da Rússia. Não é possível ter um nível normal de
vida por aqui.
─ E as pessoas não conseguem viver apenas com o
salário, precisam de ajuda do governo para completar a renda?
─ Antes do início da operação especial, havia a
possibilidade de receber aposentadoria da Ucrânia. Com duas
aposentadorias era possível viver. Mas nem todos recebiam.
Era muito difícil receber a aposentadoria, era preciso ir ao lado
ucraniano a cada dois meses porque o governo ucraniano
exigia uma prova de vida dessas pessoas.
─ Há programas sociais do governo?
─ Há vários tipos de ajuda para as pessoas mais
necessitadas, como as crianças e os idosos. São cerca de 20
programas sociais diferentes.
─ Que tipo de ajuda?
─ Transferência de renda.
─ Mesmo para aqueles que vão para a Ucrânia a cada
dois meses?
─ Sim, mas algumas vezes é impossível. Havia apenas
um ponto da fronteira onde se podia cruzar, e somente a pé. Só
algumas categorias de pessoas poderiam receber carvão para
usar no inverno.
─ Zelensky é um fantoche do Ocidente? ─ provoco
Deynego.
─ Eu não sei… ─ responde, um pouco constrangido, uma
vez que seu cargo exige diplomacia, por mais que queira
declarar publicamente que o presidente ucraniano não passa
de uma puta de rua nas mãos de Biden e Macron.
─ O que você pensa sobre o papel dos EUA e dos países
ocidentais nesta guerra, desde 2014?
─ A história dessa guerra é muito antiga. Em 2004 houve
o primeiro Maidan.
─ A Revolução Laranja.

142
─ Sim. E naquele período as forças da Revolução Laranja
eram financiadas pelos EUA. O Congresso dos EUA financiava
fundos pelo “desenvolvimento da democracia” na Ucrânia,
cerca de 5 bilhões de dólares.
─ Isso era feito através de ONGs?
─ As ONGs são um mecanismo, naquela época atuaram
as ONGs de George Soros, a USAID, etc, muitas organizações
que financiaram aquela “revolução”.
─ E durante o Maidan?
─ O segundo Maidan começou no final de 2013 sob a
desculpa de um suposto ataque contra crianças, mas não eram
crianças, eram homens de cerca de 30 anos de idade.
─ É possível dizer que o crescimento do fascismo
ucraniano é uma continuação direta da Revolução Laranja de
2004?
─ Não apenas dela. Devemos olhar para o período da
Grande Guerra Patriótica e os dez anos seguintes. Naquele
período os nacionalistas ucranianos estavam em atividade e
depois disso voltaram nos anos 90.
─ Com a queda da União Soviética.
─ Sim. E reapareceram novamente em 2004.
─ Eles estavam em atividade na Revolução Laranja de
2004?
─ Eles tomaram parte mas sem atividades agressivas. Foi
depois disso que começaram a se tornar mais agressivos.
─ Vamos falar sobre você, ministro. Você é professor,
não?
─ Não. Eu era especialista em TI.
─ Aqui em Lugansk?
─ Não, em uma cidade próxima, Alchevsk.
─ E durante a independência de Lugansk em 2014, qual
foi o seu papel?
─ Eu estava aqui desde os primeiros dias da “Primavera
Russa”.
─ E você tomou parte nos eventos?

143
─ Eu participei da tomada da sede da SBU [o Serviço de
Segurança da Ucrânia]. Nesse período houve a preparação
para o referendo. Eu organizei o referendo em Alchevsk e
antes havia trabalhado na organização de eleições na Ucrânia
desde 1995.
─ Qual foi o resultado do referendo?
─ 96% votaram pela independência. E 75% dos eleitores
participaram. Havia na cédula a pergunta: “Você apoia a
proposta do governo pela independência da República Popular
de Lugansk?”. Não havia uma pergunta sobre a integração à
Rússia, mas as pessoas interpretaram isso como um caminho
para se integrar à Rússia.
─ Eles entendem que a independência é a integração
com a Rússia?
─ Sim. Enquanto isso, na Ucrânia apenas cerca de 56%
dos eleitores participaram das eleições. Foi um momento muito
interessante. No período das eleições na Ucrânia, parte dos
membros dos comitês eleitorais havia participado da Revolução
Laranja, mas quando houve o referendo eles vieram para mim
e disseram: “devemos trabalhar no mesmo comitê.” Então eu
perguntei: “por quê? Nós temos visões diferentes.” Mas eles
disseram: “não. Nosso ponto de vista é um só. Naquelas
eleições [de 2004], nós trabalhamos por dinheiro, mas agora
devemos trabalhar porque nossa terra precisa de nós e nós
vamos unir todos os comitês.”
─ E sobre o futuro? A RPL vai se integrar à Rússia?
─ Essa será a pergunta do próximo referendo. Só o povo
pode decidir.
─ Vocês precisam realizar um referendo para…
─ Após o término da operação especial, eu acho que
esse será o próximo referendo.
─ E quando você acha que isso vai acontecer? O que
você acha que é preciso para finalizar a operação especial?
─ Eu não sei.

144
─ Mas a maior parte da RPL já está liberada. Você acha
que é preciso acabar totalmente com a guerra para fazer isso?
─ Nós devemos resolver o problema da libertação do
nosso território primeiro. Todo o território da República precisa
ser liberado. E a Ucrânia precisa ser desnazificada.
─ Qual porcentagem da RPL está liberada neste
momento?
─ 95%. Em termos territoriais, mas não populacionais.
─ Aham…
─ Severodonetsk, Lisichansk, parte de Rubizhne,
Kreminaya (onde estão ocorrendo combates de rua…). Mas
nessas cidades vivem cerca de 200 mil pessoas.
─ São poucos territórios, mas com muita gente.
─ Sim.
─ E economicamente importantes, também?
─ Eram. Mas muitas fábricas foram destruídas.
─ Há uma ajuda mútua com Donetsk?
─ Sim.
─ Você disse que a independência é a integração com a
Rússia. E isso vai acontecer também com Donetsk, ou seja, no
Donbass como um todo?
─ Talvez.
─ Você disse que a linha de frente está a 15 quilômetros.
Nós poderíamos chegar perto da linha de frente?
─ Vocês precisam de credenciamento civil e militar.
Primeiro um credenciamento civil, depois um credenciamento
na milícia popular.
─ Nós gostaríamos de entrevistar os milicianos e os
militares da RPL.
─ A maioria deles está na linha de frente.
Saímos do restaurante japonês para ir ao memorial das
vítimas da agressão ucraniana de 2014, onde os habitantes da
cidade tiveram de enterrar os mortos porque o cerco do
exército de Kiev impedia o acesso ao cemitério de Lugansk.
Deynego nos leva em seu Skoda branco 2020, com a placa

145
russa e o parabrisa trincado. Em Lugansk, ninguém usa cinto
de segurança, nem mesmo o ministro. Pegamos várias caronas
e táxis. Eu observei atentamente cada motorista: nenhum
usava cinto. Parece até que a lei multa quem usar cinto de
segurança!
─ Qual o sentimento do povo do Donbass com relação à
União Soviética? ─ indago, curioso.
─ Nostalgia ─ responde o chanceler, de bate-pronto.
O memorial às vítimas dos ataques ucranianos em
Lugansk está localizado a poucos quilômetros da entrada da
cidade. É um enorme campo ao ar livre, igual a um cemitério.
Pouco depois da entrada, uma placa resume o sentimento do
povo do Donbass com relação à Ucrânia: “Não esqueceremos!
Não perdoaremos!” São centenas de corpos enterrados no
local. Rezando na capela do memorial, duas senhoras
provenientes de Rubizhne que agora vivem na capital
conversam conosco. Sua cidade natal ainda está sob o
controle ucraniano e neste momento as forças russas e da RPL
travam uma batalha para tomá-la e garantir que as valas
comuns sejam esvaziadas e os corpos que lá se encontram
sejam adequadamente enterrados.
─ Visitamos este memorial todos os dias, para rezar por
aqueles que aqui estão enterrados e também pelos que não
tiveram a oportunidade de ser enterrados.
Em Rubizhne, governada nestes oito anos pelos
representantes de Kiev, elas e os outros aposentados
praticamente não recebiam o dinheiro da aposentadoria. Dizem
as senhoras que, agora que estão sob a proteção do governo
da RPL e da Rússia, lhes é fornecida uma ajuda maior,
inclusive humanitária. Também não recebiam um verdadeiro
atendimento médico, pois o Ministério da Saúde da Ucrânia
cortou inúmeros serviços ao povo da região.
─ O governo ucraniano tentou proibir o uso do idioma
russo e busca reescrever a história conforme o seu ponto de
vista, através do sistema de ensino, descaracterizando assim a

146
história da Grande Guerra Patriótica e da luta contra o
nazismo.
Felizmente, não tiveram nenhum familiar morto na guerra,
mas vivem uma constante incerteza. Não sabem qual será o
futuro de suas casas e de suas famílias em Rubizhne, pois os
ucranianos disparam seus mísseis contra as casas, edifícios
residenciais e indústrias.
─ São métodos imorais ─ denunciam.
A situação é difícil. Elas estão preocupadas. Acham que
uma integração à Rússia seria benéfica à população de
Lugansk, até porque é muito pouco provável ─ opinam ─ que a
Ucrânia faça alguma coisa para melhorar a vida dessas
pessoas.
Após voltarmos da visita ao memorial, Deynego e Maria
nos deixam ao lado do prédio do governo. Tento acessar a
Internet pelo plano que contratei com a Lugacom, a companhia
de telefonia móvel da RPL.
─ A Internet não funciona direito por causa dos
bombardeios?
─ Não, ela é ruim porque o serviço é precário mesmo.
Mal nos despedimos e uma multidão de mulheres se
lança sobre o ministro. São mães, filhas e esposas de
combatentes, exigindo que o governo faça alguma coisa para
que eles voltem imediatamente do front. Entro no meio da
muvuca com o gravador para tentar captar e depois traduzir
exatamente o que elas estão dizendo. O homem de 58 anos
mantém-se firme e acalma a turba enfurecida. Diz que irá
encaminhar seus pedidos para o setor responsável e anota as
suas reclamações, nomes e telefones. Depois de alguns
minutos me arriscando bem na frente de meia dúzia de policiais
militares que observam atentamente a confusão, sou puxado
de lado por um deles, que me coloca na roda e pergunta algo
como:
─ O que você está fazendo?

147
─ Eu estava entrevistando o ministro Vladislav Deynego,
estamos juntos.
Logicamente o militar só entendeu a parte do nome do
ministro.
─ Cadê o credenciamento?
Então Rafael me empurra para longe deles e
atravessamos rapidamente a rua, de volta para o restaurante
japonês. Os guardas deixam as coisas como estão, enquanto
Deynego continua parlamentando com as moças.
Após o almoço, decidimos entrevistar as pessoas na rua.
─ Tentaremos a sorte. Perguntaremos a cada pessoa se
fala inglês e, em todo o caso, usaremos o Google Tradutor!
Entrevistamos, então, um casal de jovens amigas ─
ambas chamadas Anastasia! ─ na Praça do Teatro, que abriga
uma das duas estátuas de Lênin na cidade de Lugansk e onde
são realizadas as paradas militares, em frente ao Soviete do
Povo (ainda adornado em sua entrada com as bandeiras russa
e da Vitória) e próxima ao prédio do governo. Uma delas fala
um pouco de inglês.
─ Como é viver em Lugansk em meio à guerra?
─ Vivemos os últimos oito anos aqui em Lugansk e não
deixamos a região. Nos primeiros anos da guerra foi muito
assustador para as nossas vidas mas nós acabamos por nos
acostumar com uma situação como esta e estamos felizes por
estar vivas.
─ Vocês têm algum familiar ou amigo que morreu nos
bombardeios?
─ Minha família mora aqui na região, mas ninguém
morreu na guerra. Porém, alguns amigos meus morreram.
Vários amigos estão no front neste momento. É muito difícil
viver nesta situação, mas nós nos acostumamos a viver assim.
─ Vocês são estudantes?
─ Sim, da Academia Estatal de Cultura e Artes.
─ E a universidade está funcionando normalmente?
─ Sim.

148
─ E trabalham?
─ Sim, eu sou funcionária pública.
─ Seus familiares e amigos têm emprego?
─ Sim.
─ Vocês temem novos ataques da Ucrânia?
─ Não. Em 2014 estávamos muito preocupados, mas
agora a vida está voltando ao normal.
Pedimos a elas para nos ajudarem a entrevistar outras
pessoas. Mas quando estamos andando com elas em busca de
entrevistados, esbarramos com Ilya “Abkhaz” ─ apelido dado
por um amigo que disse que Ilya se parece com os habitantes
da Abkhazia ─ em frente ao café Khlebnoye Mesto, na rua
Vitaly Shevchenko, ao lado da sede do governo. Ele também
participou do Congresso Antifascista em Rostov, trabalha no
Ministério de Relações Exteriores e estava passeando com a
esposa Viktoria e a filha Efgenia, de um ano e quatro meses.
─ Você vive aqui em Lugansk?
─ Sim.
─ De aluguel ou tem casa própria?
─ Casa própria.
─ Como têm sido estes oito anos de bombardeios
ucranianos?
─ Oito anos atrás algumas pessoas na Ucrânia queriam
se apoderar de nossas vidas. Queriam instalar o fascismo na
nossa terra. Meu avô lutou na guerra de 1941 a 1945. O avô de
minha esposa também. Todas as pessoas daqui têm avós que
viveram aquela guerra contra o fascismo. E nós não gostamos
do fascismo. Então oito anos atrás os ucranianos que vieram
de Kiev, Zaparojia, Lvov chegaram à nossa cidade e queriam
implantar o fascismo aqui. Nós não queremos o fascismo.
Então realizamos um referendo para rejeitar o fascismo
ucraniano. Optamos por viver em nosso próprio país. Mas os
fascistas ucranianos não aceitaram o resultado do referendo e
começaram uma guerra no nosso país. E em todos esses oito
anos eles têm matado nosso povo, nossas crianças, nossos

149
avós e nós tentamos resistir. Graças aos nossos amigos da
Rússia, da Bielorrússia ou pessoas como vocês, que não
querem o fascismo, nós conseguimos frear o fascismo.
─ Conte-nos um pouco sobre o sofrimento das pessoas
sob os bombardeios ucranianos.
─ Em 2014 e 2015 houve muitos bombardeios aqui na
cidade de Lugansk. Mas há cerca de cinco anos conseguimos
afastar o inimigo da cidade e agora só ouvimos os
bombardeios. Mas cidades como Stakhanov, Kirovskiy,
Severodonetsk etc. estão sendo bombardeadas diariamente. E
as pessoas que vivem nessas cidades estão fugindo para a
capital, porque as bombas caem todos os dias. E os habitantes
da capital se lembram de 2014 e 2015 e estão os ajudando.
─ Muitas pessoas morreram?
─ Sim, muitas pessoas. Eu tenho amigos que foram
enterrados no memorial junto com outras vítimas dos
bombardeios em 2015. Muitas pessoas têm amigos que estão
enterrados ali. Esse memorial é um registro da nossa história.
Eu também tenho três amigos cujas famílias morreram nos
bombardeios.
─ Foi um genocídio?
─ Sim, eu acho que foi um genocídio. Porque eles atacam
qualquer um que fale russo, que defenda a Rússia, porque
para eles somos cidadãos de uma categoria inferior que os
ucranianos. E os fascistas ucranianos realizaram esse
genocídio apenas por falarmos russo, apenas por não
concordarmos com o fascismo.
─ Qual a sua opinião sobre o papel da imprensa e das
organizações internacionais neste conflito?
─ Eu acho que muito poucos falam a verdade. Se os
jornais viessem para cá e vissem… Dez anos atrás tínhamos
grandes cidades, emprego, serviços médicos, institutos.
Tínhamos tudo. Agora não. Tínhamos 580 mil habitantes na
cidade de Lugansk. Agora temos um milhão de habitantes em

150
toda a república, dez anos atrás tínhamos três ou quatro
milhões.
─ Um verdadeiro genocídio…
─ Sim. Sim. Sim. Muitas pessoas morreram e muitas
pessoas foram para outros países. E poucas ficaram.
─ Deynego disse que 95% do território agora está livre.
Mas há muitos habitantes nos 5% que não foram libertados
ainda.
─ Ainda estamos com problema em três ou quatro
cidades importantes, como Severodonetsk, Lisichansk etc. Dez
anos atrás, Severodonetsk tinha 400 ou 500 mil habitantes,
agora talvez 200 mil [dados de 2019 apontavam que a
população havia sido reduzida para 103 mil]. Mas quando
terminarmos a guerra, talvez uns dois ou três anos depois
possamos ter o retorno do nosso povo. Porque esta é a nossa
terra. E em outros países você não tem tantos direitos ou
poder. Temos muitos cidadãos na Rússia, na Bielorrússia, na
Polônia, na Alemanha. Mas quando voltarem, terão mais
direitos e poder. Porque nasceram neste país. Eu nasci em
Lugansk. Minha esposa nasceu em Lugansk. Nossos filhos
nasceram em Lugansk. Este é o nosso país. Eu acho que, em
cerca de três anos, nós iremos crescer. Porque gostamos de
trabalhar e de uma vida digna. E se você gosta disso, você vai
trabalhar para conquistar isso. E todos nós queremos ter uma
vida linda.
─ Deynego disse que a liberdade para Lugansk é a
integração à Rússia. Você concorda? ─ provoca Rafael.
─ Hahahahahahaha… ─ parece que “Abkhaz” é pego de
surpresa. Alguns segundos de silêncio. E, finalmente: ─ eu
acho que sim. Eu acho que sim, porque se você olhar a
história, em 1795 Ekaterina II criou a cidade de Lugansk. E
Ekaterina II era a czarina da Rússia, então esta é uma terra
russa.
Voltamos a pé para o nosso hotel. São 9 km de
caminhada praticamente cruzando toda a cidade. Podemos ver

151
a enorme quantidade de veículos militares atravessando a todo
o instante a rua Oboronna. Também são inúmeros carros civis
com a letra Z desenhada na lataria ou nas janelas e parabrisas
traseiros. Na Rússia havíamos visto muitos símbolos da
operação militar nas ruas entre os civis, mas em Lugansk esse
número é imensamente maior. Se na Rússia a operação é
popular, em Lugansk ela é uma unanimidade. Vemos muitos
prédios destruídos ou ao menos danificados por causa dos
bombardeios ucranianos. Alguns edifícios continuam
abandonados até hoje. A infraestrutura é muito precária.
Enquanto na Rússia víamos uma farmácia a cada esquina, em
Lugansk vemos muito poucas em toda a cidade. Parado em
frente a um mercadinho perto de nosso hotel, um caminhão do
exército despeja dois militares, que entram no estabelecimento.
Na verdade, ele está cheio de soldados. De repente, aparece
diante de mim um deles, careca, rosto gorducho e alegre.
Estende a mão e me cumprimenta. Digo que sou brasileiro e
ele se impressiona. Com todo o jeito de bobo, puxa conversa.
Digo que vim da Rússia, de Rostov.
─ Rostov? Eu sou de Rostov do Don!
─ Super!
Seu enorme sorriso cobre o rosto de ponta a ponta
quando digo que apoio a Rússia. Mais para a frente, nos
tromba novamente em outro corredor do mercado, ainda com
jeito de bobo, mostra o patch em seu peito onde se lê “Olá, eu
sou o ocupante russo” (uma ironia que é feita na Rússia contra
os que acusam os russos de ocuparem a Ucrânia) e pede para
tirarmos uma foto do lado de fora. Diz a seus amigos que
somos brasileiros e vamos tirar uma foto com ele. Digo em
russo “o Brasil ama a Rússia” e ele vai à loucura. Nos
cumprimenta bastante e entra no carro. Quando estamos na
fila do caixa, dois voluntários brincam com uma criança e
compram Kinder Ovo para ela, sob o olhar agradecido da mãe.

152
Capítulo III …

Lágrimas

Certa tarde, ainda no hostel em Rostov, encontro Nicolay, cujo


apelido é Kolya. Digo que sou brasileiro. Pergunto de onde ele
é. Não tem feições de um russo tradicional, loiro de olhos
claros e branquelo. É moreno, com olhos grandes e rosto
esquelético.
─ Você é russo?
─ Não.
─ Georgiano?
─ Não.
─ Armênio?
─ Não.
─ Então o que é?
─ Cigano.
─ Cigano russo?
─ Sim.
Então desço para dar uma volta pela Pushkinskaya. Vou
até a estátua do antigo dirigente comunista Sergey Kirov ─ há
uma também na estação Chisty Prudy em Moscou. Quando
volto, encontro um velho tocando Katyusha na sanfona, ao lado
da estátua do escritor Anton Tchekhov. Era um sábado quente
e ensolarado. Quando me dou conta, percebo que estou
comendo morangos num parquinho ali perto, rodeado de
crianças. Seus pais são muito pacientes, não lhes dão
palmadas no bumbum. As meninas voltam sozinhas da escola,
com suas mochilinhas nas costas. Às vezes, estão com as
amiguinhas, atravessando a rua de mãos dadas. Mas não há a

153
necessidade de estar com os pais. Tanto uma coisa como outra
são heranças da educação soviética.
Huummm… que morangos docinhos! Este cenário de
calma, tranquilidade e ócio, contudo, não esconde a realidade
exterior. A repercussão da operação militar russa no Donbass
elevou substancialmente não apenas a crise econômica, mas
também a crise política interna em todos os países europeus,
da Moldávia à Grã-Bretanha, bem como as tensões políticas
entre diferentes países, particularmente entre os países
europeus centrais e os subordinados, levando a episódios de
rebeldia da Turquia, Croácia e Hungria, por exemplo. Por outro
lado, a ação russa tem servido para unir de forma mais
profunda os povos das antigas repúblicas soviéticas. Soldados
de todas as repúblicas autônomas da Rússia estão lutando no
Donbass. Eu vi até mesmo nas ruas de Lugansk um voluntário
com o patch da bandeira da Ossétia do Sul em seu quepe! Em
breve haverá referendos na RPL, RPD, Kherson, Carcóvia,
Zaparojia e Abkhazia para que se integrem à Federação
Russa. A Bielorrússia tem apoiado integralmente a operação
especial, tanto em termos políticos como até mesmo em termos
militares (embora não tenha enviado tropas para a Ucrânia), e
os ataques contra ela pelo apoio à Rússia fizeram com que
aprofundasse mais ainda os laços políticos e econômicos com
Moscou. Há muitos anos se fala na possibilidade da fusão dos
dois países e já existe um embrião disso, que é o Estado da
União. Ainda na batalha contra as sanções internacionais, a
Rússia firmou uma série de acordos com os países da Ásia
Central, intensificando as suas relações com o Cazaquistão,
Quirguistão, Turcomenistão, Uzbequistão e Tajiquistão.
─ Hoje os governos dos países da Ásia Central veem
como o Ocidente destruiu a Ucrânia e acham melhor ficar
juntos da Rússia para se proteger do domínio ocidental ─ disse
o uzbeque Akhmat naquele encontro do Comitê Russo de
Cooperação com a América Latina, em Moscou.

154
Imre Khan, primeiro-ministro do Paquistão, sofreu um
golpe de Estado que denunciou ter sido patrocinado pelos
EUA, logo após acusar, em um comício, as potências
estrangeiras ─ particularmente a União Europeia e os EUA ─
de estarem tentando sujeitar seu país e obrigá-lo a acatar as
sanções contra a Rússia, mesmo que isso não fosse de
interesse do Paquistão e violasse sua soberania. Ao contrário
do que ouvimos na propaganda dos grandes meios de
comunicação, a Rússia não ficou isolada, mas na verdade está
levando boa parte do mundo junto com ela nessa nova batalha.
A Nicarágua irá assinar daqui a algumas semanas um acordo
permitindo que os aviões e navios russos patrulhem as
fronteiras e conduzam exercícios militares conjuntos em seu
território. Em agosto, como parte dos Jogos Internacionais
Militares, Rússia, China, Irã e outros dez países realizarão
exercícios militares na Venezuela. E ainda por cima…
─ Triiiiiiimmmm!!!! ─ toca a campainha do nosso quarto no
hotel Dominó. A recepcionista (que parece ser a única
funcionária do estabelecimento, ela e a boneca assassina) vem
cobrar o pagamento da diária. Lembro que temos de estar no
centro da cidade em uma hora para entrevistarmos Sasha
Kharitonov, amigo de Lyubov Korsakova. Os dois lutaram
juntos nos primeiros tempos da insurreição contra o Maidan.
Alexander Petrovich Kharitonov também era membro do
Partido Socialista Progressista e foi quem organizou a Guarda
de Lugansk para lutar contra as organizações fascistas, ainda
em 2014. Por esse motivo, Lyubov diz que ele é considerado o
primeiro líder da República Popular de Lugansk, quando o país
sequer havia declarado sua independência. Encontramo-nos
aos pés da estátua de Lênin, na Praça do Teatro. Leva-nos ao
Khlebnoye Mesto e insiste em pagar o nosso café.
─ Por que você decidiu pegar em armas contra o governo
da Ucrânia? ─ começo.
─ Essa é uma pergunta interessante ─ diz Sasha, um
obeso de 1,80 de altura e corte de cabelo militar. ─ A princípio,

155
nós não tínhamos a intenção de pegar em armas. Nenhum dos
meus companheiros tinha armas. Um ou dois tinham pistolas
registradas para autodefesa. Mas quando voltei em julho para
Lugansk, quando me libertaram, já haviam começado os
bombardeios, a guerra já tinha começado. Então, não havia
outra saída senão defender as nossas famílias. Havia duas
opções: fugir ou pegar em armas e ir para a guerra. Não havia
outra alternativa. Mas, na realidade, eu não fui para o campo
de batalha, porque a minha compleição física não me permitiu.
Então, fui designado a fazer outras atividades de apoio,
fornecendo mantimentos para a população civil e para os
companheiros que estavam realmente lutando. Nós formamos
também uma organização humanitária, que denominamos de
Centro Eurasiano de Ajuda Humanitária. Em Moscou, havia
companheiros que arrecadavam os mantimentos, víveres, e
enviavam em caminhões para cá e nós fazíamos a distribuição.
Depois, quando organizaram a milícia popular, o sistema de
fornecimento foi centralizado.
─ Como foram aqueles dias de fevereiro a março de 2014
em Lugansk? Como o povo reagiu ao golpe em Kiev?
─ Começou antes de fevereiro. Eu explico por quê. Como
vocês sabem, na Ucrânia houve um Maidan em 2004-2005. Foi
uma espécie de ensaio dos acontecimentos de 2014. A partir
de 2005, nós compreendemos que a memória dos nossos
antepassados seria destruída. Quando Viktor Yushchenko
deixou o governo, os protestos acalmaram um pouco. Mas
quando o movimento ressurgiu com um novo Maidan, ficou
claro que eles queriam uma revanche. Ou seja, o mundo
ocidental, que tem o objetivo de destruir todos os nossos
valores, queria uma revanche. Em Lugansk, começou no ano
de 2013 no mesmo dia em que os acontecimentos tiveram
lugar em Kiev. Em fevereiro, quando aconteceu o golpe de
Estado, quando os nazistas tomaram o poder em Kiev, nós já
percebemos que a luta seria armada. Porque eles estavam
armados. Nós percebemos que teríamos de defender nossas

156
cidades, nossas aldeias, nossas casas ─ seus olhos começam
a marejar. ─ Foi um momento de grande auto-organização. É
preciso dizer que nenhum partido nos apoiou. Inclusive não
tivemos o apoio do Partido Comunista. Por isso, tudo o que
aconteceu aqui foi por uma ação voluntária das pessoas. Vou
dar um exemplo. Eu era membro do Partido Socialista
Progressista da Ucrânia. Quando começamos a promover
ações anti-Maidan em Lugansk, eu fui desautorizado a
participar de qualquer ação em nome do partido. Depois disso
surgiu uma organização local chamada Guarda Nacional de
Lugansk, que foi oficialmente registrada e em nome dessa
organização promovemos ações anti-Maidan. A partir de
novembro de 2013 até fevereiro de 2014, nos conscientizamos
aqui em Lugansk de que, se não nos levantássemos para nos
defender, não teríamos uma segunda chance. Tivemos de nos
organizar porque ninguém tinha experiência política
organizacional, e também porque surgiram diversas correntes
que não tinham os mesmos ideais que nós. Então, tivemos de
resolver esses problemas todos porque aquele era o momento.
Como eu disse, ninguém nos daria uma segunda chance. No
final de fevereiro, o movimento popular já era grande. De
ressaltar que nenhum deputado eleito, tanto a nível municipal,
como distrital, regional, apoiou o movimento popular de
autodefesa. A única coisa que fizeram foi, no congresso do
conselho regional, reconhecer que em Kiev tinha havido um
golpe de Estado e que o único órgão de poder na região era o
conselho da região de Lugansk. Isso foi no dia 2 de março. No
dia 9 de março nós realizamos uma manifestação. No mesmo
dia, os grupos pró-Maidan realizaram um ato de provocação ao
lado do local do nosso ato. Esse ato que nós organizamos
realizou uma marcha pela cidade de Lugansk, onde os
elementos pró-Maidan fizeram provocações, jogaram copos de
vidro nas pessoas. Mas não aconteceu nenhum grande conflito
porque a nossa manifestação era bem maior. Isso porque a
percentagem de pessoas a favor dos acontecimentos de

157
Maidan não era maior que 5, 6 por cento da população de
Lugansk. Os manifestantes pró-Maidan não encontraram nada
melhor para fazer e invadiram o edifício do conselho municipal,
que naquele dia estava fechado, porque era dia de folga, não
havia nenhum representante do conselho no local. Eles
montaram uma barricada no gabinete do conselho e nós
tentamos dialogar com eles. Nós não entendemos o motivo de
eles terem invadido o edifício. Após conversações com os
manifestantes pró-Maidan, que haviam fechado as portas do
gabinete, sugerimos que eles assinassem então uma
declaração com as suas pretensões. Foi chamada ao local a
polícia e eles então abandonaram o edifício. Então, nós
providenciamos uma equipe de segurança para que não
voltasse a acontecer o mesmo. Depois do dia 9 de março,
começou a repressão e a SBU começou a prender os nossos
ativistas. No dia 11 de março prenderam um deputado do
conselho regional que havia estado na manifestação e, no dia
13, eu fui preso e levado no mesmo dia para Kiev para a sede
do SBU. Fui colocado numa cela solitária por três meses, sem
direito a advogado, sem contato com familiares. A minha
esposa só conseguiu me ver no final desses três meses
quando permitiram enfim que ela pudesse me visitar. Isso tudo
aconteceu quando já havia sido formada a República Popular
de Lugansk. Eu fui levado a julgamento, mas como a Ucrânia é
um país com muita corrupção, eu fui condenado a cinco anos
de prisão com pena suspensa, mas fui proibido de praticar
qualquer atividade política, jornalística, fui proibido de sair do
país. Eu voltei então para Lugansk.
─ O que foi a Guarda de Lugansk?
─ A Guarda de Lugansk foi criada porque os partidos
existentes na Ucrânia ignoraram por completo o nosso
movimento. Esses partidos concentraram o seu trabalho
político em Kiev e inclusive nos deram instruções (neste caso
particular, o nosso partido) para não fazer nada. Eles viviam em
Kiev e nós vivíamos aqui. Por isso, da mesma maneira como

158
eles nos trataram, nós iríamos nos relacionar com eles. ─
Encosta suas mãos gordas e cheias de cicatrizes sobre a
mesa. ─ Nós criamos a nossa organização, a Guarda de
Lugansk. O objetivo e a tarefa da nossa organização eram
organizar atividades de caráter político. Desde 2005 que eu
tenho experiência nesse tipo de trabalho. O nosso trabalho
sempre foi conforme as leis, ao contrário daquele pessoal
pró-Maidan. Eles tentaram nos provocar, mas eram em menor
número. Tentaram trazer para cá elementos de fora,
especializados no confronto físico, mas quando percebiam que
nós estávamos em muito maior número, eles iam embora. Por
exemplo, traziam 30 desses elementos em um ônibus, mas,
quando confrontados com uma multidão de 600, 700 pessoas,
voltavam para o ônibus e iam embora. A única coisa que para
nós foi inesperada, no dia 22 de fevereiro de 2014, foi que eles
trouxeram dois ônibus cheios de nacionalistas armados. Todos
com armas automáticas, o chefe deles portava uma
metralhadora de guerra. Nesse momento, a gente não tinha
nada, estávamos desarmados, não tínhamos nem paus para
lutar. Ou seja, nós agíamos dentro da legalidade. Eles
chegaram na praça e começaram a atirar nas pessoas.
Mataram três homens que estavam bebendo cerveja, que
haviam saído do trabalho. Ninguém estava preparado para
uma coisa dessas. Nós já havíamos avisado que, no momento
que fosse derramada a primeira gota de sangue, aquilo não iria
ficar por isso mesmo. Dentro de uma hora, no parque,
reuniram-se cerca de 50 mil pessoas. Ou seja, assim que os
fascistas atacaram a população civil, a coisa começou. Com
toda a certeza, 22 de fevereiro foi o ponto de virada dos
acontecimentos. Talvez, se não tivessem assassinado essas
pessoas, as coisas teriam se desenvolvido de outra maneira.
Mas toda a cidade se levantou. As pessoas chegaram com
motosserras, com martelos. Chegou até uma senhora de 70
anos e disse: “rapazes, eu quero ajudar.” Alguém perguntou:
“babushka, como a senhora pode nos ajudar?” E ela então

159
mostrou um machado de cozinha de cortar carne. As pessoas
estavam dispostas a lutar pelas suas casas. A Guarda de
Lugansk cumpriu um importante papel que foi que as pessoas
se deram conta de que era preciso lutar. Naquele momento,
não tínhamos uma organização desse tipo. Até 22 de fevereiro,
as pessoas simplesmente se encontravam para discutir a
situação, não havia a intenção de lutar. Quando começaram a
prender as pessoas, entre elas estava eu, as pessoas
começaram secretamente a se organizar.
─ Qual tem sido a sua atividade depois de ter voltado da
Rússia em 2014?
─ Na verdade, eu estava em Kiev. Mas eu tive de
inicialmente ir para a Rússia, estava tudo bem comigo em
termos de saúde depois da prisão. Foi preciso então definir o
que fazer a seguir. Depois, eu voltei para cá, para Perevarsk,
onde foi criada uma guarda (milícia popular), onde
colaboramos um pouco com eles. E no ano de 2014 nós
criamos o Centro Eurasiano de Ajuda Humanitária e através
dele proporcionamos ajuda às populações civis. Depois, eu
trabalhei um pouco na universidade. Atualmente, eu trabalho
como vice-coordenador do centro de imprensa. Ou seja, todos
os jornais da república passam por mim. É um trabalho que eu
acho necessário. Nós temos ainda uma organização política
chamada Nash Donbass. O coordenador é Vyacheslav
Yakovenko, uma figura singular, ele era o comandante da
cidade de Lisichansk no ano de 2014. Ele chefiou a Unidade
Vostok 13. Mas foi ferido gravemente e teve de ir para a
Rússia. Depois de curado, resolveu que era preciso criar uma
organização de tipo ideológico. Porque um homem não pode
viver sem ideologia. E quando a ideologia é apenas ganhar
dinheiro, nada de bom pode daí resultar. O ser humano precisa
entender o que significa pátria, qual o objetivo de sua vida, e
qual o tipo de vida que ele pretende ter. Nesse trabalho,
tentamos fazer um paralelo histórico, contar a história de
Lugansk, de Donetsk, do Donbass, a história da Rússia, e

160
denunciamos a essência da ideologia dos banderistas, quais os
seus objetivos. E mostramos como alternativa a ideologia
comunista, socialista, trabalhamos com a internet. E agora
chegou um pessoal, jornalistas de guerra, fazem reportagens,
em suma, é esse o nosso trabalho.
─ Fale mais sobre a luta armada… ─ insistimos.
─ Eu teria muitas coisas para falar, mas em meia hora
isso não seria possível. Antes de mais nada, para que as
pessoas peguem em armas e defendam os seus ideais, elas
precisam ter um ideal. E explicar e convencer as pessoas de
que é preciso pegar em armas para defender esse ideal. Eu
não quero me vangloriar de nada, colocar uma coroa na minha
cabeça. Mas foi o que a situação impôs a mim e àqueles que
estavam perto de mim. E nós conseguimos transmitir às
pessoas que não era preciso ter medo, que não valia à pena
ficar em casa e esperar que as coisas se resolvessem.
Conseguimos demonstrar que as coisas não se resolvem por si
próprias. E essa é uma responsabilidade nossa. Se formos
fazer uma estimativa das nossas ações, daquilo que fizemos,
creio que ainda é cedo para falar sobre isso, os eventos ainda
estão acontecendo. Os historiadores irão escrever a verdade
dos fatos.
─ Você presenciou crimes perpetrados pelos ucranianos?
─ Eu mesmo fui uma vítima desses crimes. Imagine o que
é prender uma pessoa por suas palavras, levá-la para Kiev,
colocá-la durante três meses em uma cela solitária, não deixar
ter contato com um advogado, com os familiares, infligir maus
tratos físicos, isso é um crime. Isso aconteceu comigo. Eu
conheço muitas pessoas que passaram pelo mesmo em 2014.
Eu estive na linha de frente disso tudo. E depois, quando nos
libertaram, conheci pessoas que também haviam sofrido.
Infelizmente, não havia a possibilidade de denunciar o que
estava acontecendo, a guerra tem as suas particularidades,
você não leva máquinas fotográficas para os combates. Bem,
agora existem comissões que estão investigando o que

161
aconteceu, recolhendo testemunhos, tudo isso será
denunciado. E isso vai começar com aqueles que cometeram
crimes, que fuzilaram pessoas, que praticaram fuzilamentos em
massa. Nós temos casos nos territórios libertados, na aldeia de
Novosvetlovka, onde fuzilaram 18 pessoas, e depois as
colocaram em uma vala ao lado de um monumento em
homenagem a Lênin. Ou seja, fizeram as pessoas cavarem a
própria cova e depois fuzilaram-nas ─ seus olhos voltam a se
encher de lágrimas. ─ Se formos pensar que os
acontecimentos dos anos 40 são coisas do passado, estamos
completamente enganados. Isso tudo se manteve entre os
nazistas ucranianos, eles são possuidores de um sadismo que
os faz agredir pessoas indefesas. Eles vinham para cá e se
portavam como senhores de escravos. Mas depois, quando
encontram alguém mais forte que eles, ficam de joelhos,
começam a chorar e dizem que são “irmãos”. Quando estão em
grupo, fazem todo tipo de maldade. Mas quando estão
sozinhos, não se portam como verdadeiros combatentes, são
covardes. Houve uma situação em Nikolaev onde chegaram
dois ônibus cheios de jovens saudáveis e um grupo de
mulheres de meia-idade conseguiu fazer com que voltassem
aos veículos e fossem embora. Quando eles encontram
resistência, eles fogem. São fortes somente quando estão em
maioria. Agora, na linha de frente, onde estão ocorrendo os
combates... Por que o Azov ainda resiste? Porque eles sabem
que não têm saída, que ninguém irá salvá-los. A Ucrânia
sempre foi o “centro da traição mundial”. Eles sempre traíram
os seus aliados. Eles irão trair a Europa, irão trair os Estados
Unidos. A Ucrânia é uma criação artificial, não vou dizer que
não existe o povo ucraniano, mas, como Estado, foi formada
com o dinheiro dos outros. Uma parte do território era da
Hungria, a outra parte era da Polônia, mas a maior parte do
território era da Rússia. Criaram para os ucranianos um Estado,
que chegou a ser a terceira economia da Europa, mas em 10
anos eles acabaram com isso tudo. E nos últimos 30 anos eles

162
viveram das sobras da União Soviética. Não criaram nada por
conta própria. O que eles fizeram? Criaram uma microrregião
ao redor de Kiev e só. Nas outras cidades, o que fizeram?
Nada. Só desenvolveram os lugares onde havia ucranianos,
nas demais partes do território só causaram destruição. É a
mentalidade deles, que não é nada boa.
─ Você teve amigos e familiares mortos na guerra?
─ Na minha família, graças a Deus, não morreu ninguém.
Mas na família de amigos, morreu muita gente. Não sei como
na sua língua se traduz a palavra Punt [Пунт, em russo. O lar
ancestral dos egípcios e o berço dos deuses egípcios ─ NT].
Anteontem, nós enterramos um antigo colega de escola. Nós
praticávamos esporte juntos, eu fui padrinho de batismo da
filha dele. Era um amigo muito próximo, um tovarish. Muitos
amigos morreram, alguns que eu conheci em 2014, outros
antes disso.
─ Após oito anos de guerra, qual é a sua avaliação?
─ Em primeiro lugar, é preciso entender que, sob uma
máscara política e ideológica, foram feitas muitas coisas na
ilegalidade. Nos últimos oito anos, e inclusive depois dos
acordos de Minsk, na Ucrânia transformaram as pessoas em
zumbis no mais alto nível profissional. Mas aqui em Lugansk
isso não aconteceu, houve uma forte oposição. E esse foi um
fator muito importante. No leste da Ucrânia vivem eslavos como
nós. Infelizmente, nós deixamos que eles convencessem essa
população de que a pátria deles é a Ucrânia. Esse foi o nosso
grande erro, a nossa grande responsabilidade. Esses últimos
anos foram de muita tristeza ─ creio que seus olhos já estejam
embaçados de tantas lágrimas, que não caem. ─ Mas foram
criadas várias guardas em Lugansk, na Carcóvia, em Poltava,
inclusive na Volínia, no leste da Ucrânia, foi criada uma guarda.
Todos esses movimentos foram criados em oposição aos
acontecimentos do golpe de Maidan. Surgiram movimentos de
oposição nesses lugares todos, mas infelizmente o dinheiro
norte-americano financiou o Maidan. Mas aqui deste lado,

163
inclusive o suporte de informação, de parte da Rússia, não
aconteceu. E esse fato propiciou o momento em que vivemos
agora. Eu acredito (essa é a minha opinião pessoal) que se
tivesse havido esse suporte de informação, nós poderíamos ter
resolvido a coisa sem a guerra. Sim, é verdade que os
nacionalistas pegaram em armas, mas as leis do nosso
território são as da Ucrânia. Infelizmente surgiu essa ideia de
Nova Rússia, mas já que essa ideia surgiu, é claro que nós
apoiamos. Mas por que não criar “repúblicas varosh” [espécie
de região administrativa que vem da idade média ─ NT] como
Zaparojia, Carcóvia, Petrovsk? Por acaso, tem um fato
interessante que é que a região de Donetsk passou a fazer
parte da Ucrânia soviética através de um acordo. E nós
tínhamos uma ideia, que era criar com base no conselho
regional essas “repúblicas varosh”, mas, como a Ucrânia não
cumpriu o que estava escrito na sua constituição, nós nos
reservamos o direito de sair da composição da Ucrânia. Do
ponto de vista histórico, nós tínhamos esse direito. Mas, do
meu ponto de vista, isso foi um erro. É o meu ponto de vista, eu
não quero impor isso a ninguém. O município de Donetsk é o
resultado de uma revolução sem sangue. E Lugansk é um
município autônomo que, sob o poder soviético, foi criado cinco
meses antes de Petrogrado. E isso aconteceu sem
derramamento de sangue, através da escolha popular.
─ O que você espera para o futuro da RPL?
─ Eu considero que o melhor para o futuro da República
Popular de Lugansk é fazer parte da Federação Russa. O
importante é que venha a paz, a tranquilidade e a ordem legal
─ finalmente pega um guardanapo e seca as lágrimas. ─ Em
princípio, no dia 14 nós estabelecemos um caminho de adesão
à Rússia. A situação é que, neste momento, Lugansk já não faz
parte da Ucrânia, mas também não faz parte da Rússia. Para
fazer parte da Rússia, ainda vamos ter de lutar um pouco.
Apesar de que ainda muita gente defende aqui um caminho
independente, alguns objetivos mercantis se mascaram de

164
patriotismo. Mas nós não precisamos disso, nós precisamos da
Rússia. Nós de certa forma já somos cidadãos da Rússia, e
devemos tudo isso a Vladimir Vladimirovich Putin, que nos
proporcionou essa possibilidade de sermos cidadãos russos.
─ Tem mais alguma coisa a acrescentar?
─ Bem, o que eu poderia dizer... Você está vendo, nós
vivemos, trabalhamos, mas infelizmente existem forças que
resolveram entrar em guerra com a Rússia no nosso território.
E nós somos pela Rússia, é isso que nos toca neste momento.
Nós nunca quisemos a guerra. Mas não nos deixam seguir
esse caminho pela via da paz.
Depois da entrevista, Sasha nos convida para um passeio
por alguns dos pontos históricos de Lugansk. Visitamos outro
monumento de Lênin, mais distante do centro, em uma praça
um tanto descuidada ─ tanto que, na estátua, lê-se Lênin em
ucraniano (Ленін) e não em russo (Ленин). Quando estamos
atravessando a rua Oboronna em seu carro para sair da zona
urbana, olho para o lado e vejo que Sasha está dirigindo
alucinadamente a quase 120 quilômetros por hora sem o cinto
de segurança. Em um raro lampejo de amor à minha própria
vida, faço o movimento de pegar o meu cinto para travá-lo, mas
levo uma advertência, quase em formato de bronca:
─ Não precisa! ─ me fala, com sua voz grave. Começo a
me benzer loucamente, igual ao Chaves quando entrou na
casa da Bruxa do 71 e a ouviu chamar seu gato Satanás.
Nas ruas, rodam mais e mais carros do exército. Nas
calçadas, numerosos soldados fardados e cidadãos ostentando
o Z em suas camisas e bonés. Também são muitos os outdoors
com mensagens de independência, antifascistas e patrióticas.
Um deles retrata um soldado sobre um tanque segurando a
bandeira da RPL e, ao fundo, quatro soldados no front em meio
à Guerra Patriótica, com a bandeira vermelha da URSS. Para
completar, a mensagem: “Tudo pela defesa da pátria! O
Donbass é a nossa terra!”. O dia está horrível, com o céu

165
carregado de nuvens cinzentas e uma chuva que cai sem
trégua, embora não esteja forte.
Vamos a uma colina, na saída da cidade, já em uma zona
mais rural, onde foram travadas batalhas durante a Grande
Guerra Patriótica contra os invasores alemães. Após o passeio,
Sasha passa em sua casa ─ um apartamento relativamente
próximo ao centro da cidade ─ e diz que tem uma surpresa
para nós. Nos entrega uma medalha em comemoração aos
100 anos da Revolução de Outubro, produzida pelo PCFR em
2017, e mais: para Rafael uma medalha de Lênin em
homenagem aos seus 140 anos, de 2010 ─ também produzida
pelo Partido Comunista, assim como a que nos foi dada pelo
secretário-geral do Partido Comunista de Lugansk em nossa
chegada à cidade ─ e para mim uma medalha em homenagem
aos 140 anos de nascimento de Stálin ─ Sasha não teve a
oportunidade de Gumenyuk de entender que não somos
stalinistas, ao contrário, aparentemente, de todos os
comunistas russos e do Donbass. Como retribuição, lhe
presenteio com a minha bandeira do PCO.

166
Capítulo IV …

Confissões

─ Nós somos colegas. Eu era da milícia, mas fiz uma


graduação e sou também jornalista ─ confessa Vyacheslav
Yakovenko, com quem nos encontramos no Cult Coffee, ao
lado de onde havíamos entrevistado Sasha no dia anterior. Foi
Sasha quem combinou esse encontro com seu antigo amigo,
mas não pôde vir conosco. Em 2014, Vyacheslav tornou-se
comandante militar de Lisichansk, agora controlada pelos
ucranianos e prestes a ser assaltada pelos russos e pela
Milícia Popular de Lugansk.
─ Antes de tudo isso, eu era eletricista. Ou seja, eu tinha
uma profissão civil sem qualquer relação com assuntos
militares. Tinha apenas feito o serviço militar como um recruta
comum durante um ano e meio. Mas depois disso, quando
aconteceu o golpe de Estado na Ucrânia e Kiev começou com
uma política extraoficial que era inaceitável para a nossa
região, nós começamos um movimento pacífico de protesto
para expressar a nossa posição no Donbass, com uma
proposta de realizar um referendo para escutar o povo.
Evidentemente, o governo de Kiev não aceitou levar adiante
uma política social e começou com ações de caráter punitivo
no Donbass. Então, eu tive de pegar em armas e depois de
algum tempo liderar uma formação armada, já que eu tinha
alguma experiência militar por ter servido o exército.
─ Como foram os combates contra os ucranianos?
─ Bem, vamos desde já colocar os pingos nos “is”. Eu sou
ucraniano e eles também são ucranianos. Essa contradição

167
está profundamente enraizada em finais do século XIX e início
do século XX. Ou seja, eu lutei contra muitos ucranianos que
lutaram contra outros que também são ucranianos como eu. O
que aconteceu foi uma guerra civil. O que acontece é que a
ideologia deles e sua mentalidade derivam do fato de que,
inicialmente, eles pertenciam ao Império Austro-Húngaro e por
isso decidiram que não pertenciam ao mundo russo. Assim,
eles promovem a sua ideologia, a sua percepção de realidade
segundo a qual nós não seríamos ucranianos de verdade,
porque seríamos de um tipo impuro. E, portanto, afirmar que
nós lutamos contra ucranianos é uma espécie de beco sem
saída. Nós lutamos contra oponentes que promoveram a
ideologia nazista na nossa região, com a qual nós
evidentemente não concordamos. Stepan Bandera, Roman
Shukhevych e toda essa matilha são inaceitáveis para nós. Por
isso nós nos levantamos para defender a nossa verdadeira
história e os nossos verdadeiros valores. E o que eles nos
ofereceram foi uma falsificação, isso é o mais importante que
eu devo dizer para vocês. Em outras palavras, foi uma luta
entre ucranianos, eu sou ucraniano e eles são ucranianos. Só
que a percepção deles é outra, o que vai na cabeça deles é
completamente diferente.
A garçonete traz um cafezinho para cada um. Do lado de
fora, um sol forte e um leve vento que faz balançar as folhas
das árvores.
─ Como os militantes nazistas ucranianos tratam os civis?
─ Os ucranianos nazistas se relacionam com as pessoas
que não partilham a sua ideologia de uma maneira radical.
Primeiro, eles praticam um genocídio cultural, ou seja, eles
esperam que nós partilhemos de sua ideologia. Mas se alguma
pessoa não concorda, ou se opõe de alguma maneira, eles
liquidam fisicamente com essa pessoa. Aquelas pessoas que
não concordaram com a política deles, simplesmente foram
embora dos territórios ocupados pelos nazistas ucranianos.
Aqueles que concordaram em viver sob essas condições

168
simplesmente assumiram isso como um dever e começaram a
viver sob o regime atual.
─ Seus ataques se concentram sobre alvos civis ou
militares?
─ Eles atiram em alvos civis. Eles ocupam as habitações
dos civis e atiram contra alvos civis e contra alvos militares. O
Donbass não é a terra natal deles, é uma terra alheia. Eles não
se reconhecem nessa terra e por isso querem limpá-la de
pessoas como nós.
Todos olham para suas respectivas xícaras de café, com
clara vontade de começar a consumi-las. Mas permanecem
longe dos nossos lábios.
─ Como é organizada a defesa militar da RPL?
─ Neste momento, já não temos uma defesa militar. O
que temos agora é uma ofensiva e estamos indo libertar o
nosso território.
─ E a milícia popular, o que é?
─ No início, em uma primeira etapa em 2014, surgiu uma
milícia que era na verdade um corpo de voluntários. Mas, no
processo de formação da República Popular de Lugansk e da
criação de suas estruturas estatais, começou a se formar uma
milícia popular. Nós não temos um exército, por assim dizer,
nós temos uma milícia popular formada por voluntários do
povo. E dessa milícia popular foi se formando uma milícia que
é estruturada como se fosse um exército.
─ Qual é a sua opinião sobre a ajuda militar russa?
─ Resumidamente, o fato é que, se não fosse o apoio
moral e financeiro da Rússia, o oeste da Ucrânia (que é
apoiado pelos EUA, pela Grã-Bretanha e todos os demais
estados nazistas como a Lituânia, Letônia e Estônia) já tinha
nos esmagado, porque nós aqui temos uma memória viva dos
feitos soviéticos, homenageamos os nossos veteranos no 9 de
Maio, o que é inaceitável na situação histórico-política deles.
─ Se não houvesse a atuação dos nazistas, o conflito já
teria terminado?

169
─ Acho que não. Porque os nazistas ucranianos são um
mecanismo para a repressão física dos dissidentes. O conflito
só vai terminar quando não houver mais nenhuma estrutura em
contato com o Ocidente, com os EUA, a Grã-Bretanha e todos
esses lugares. Ou seja, é necessária uma mudança completa
de poder, porque o nazismo está tão profundamente assentado
nas estruturas do poder que os nazistas com armas na mão
são apenas um mecanismo que não decide nada. Apenas o
desmantelamento total e vertical do poder na Ucrânia é que vai
resolver o conflito.
─ A imprensa internacional conta a verdade sobre o
conflito?
─ Os meios de comunicação internacionais e todos
aqueles que estão trabalhando sob o controle dos governos
estrangeiros contam uma grande mentira. Existem alguns
pequenos veículos que tentam transmitir a verdade dos fatos,
mas eles são censurados e bloqueados de transmitir a verdade
à comunidade internacional. Quando alguns pequenos veículos
de imprensa vêm a Lugansk, infelizmente são apenas aqueles
que apoiam a política russa de desnazificação e
desmilitarização da Ucrânia.
─ Qual a sua opinião sobre os EUA?
─ Os EUA são um estado que se conservou
profundamente nazista, desde o momento em que, após a
derrota da Alemanha nazista, eles passaram a receber todo o
tipo de nazistas e a escondê-los. Basta assistir a filmes
interessantes como O porteiro da noite e uma série de filmes
parecidos para percebermos que não é possível simplesmente
derrotar o nazismo e destruir sua ideologia. O fato é que a
ideologia nazista está profundamente enraizada nas estruturas
de poder que se tornaram dominantes nos EUA e que,
consequentemente, adotaram todo o seu mecanismo.
Sabemos que neste momento os Estados Unidos usam muitas
ferramentas, em particular a propaganda, que foram usadas
pela Alemanha fascista durante a Grande Guerra Patriótica. E

170
todos esses mecanismos para desumanizar uma pessoa estão
sendo usados atualmente na Ucrânia.
─ Você acha que os outros povos também deveriam
pegar em armas para se livrar da opressão imperialista?
─ Nesta fase, eu não acho que todas as pessoas que
vivem em territórios sob a opressão imperialista pegariam em
armas. Há muitos outros mecanismos. Vivemos no século XXI,
existem muitos mecanismos que dão às pessoas o fogo e a
confiança para se levantar e substituir o poder. Pegar em
armas acontece quando já não existe diálogo. No século XXI
nós temos muitas ferramentas que permitem às pessoas
chegar à vitória de forma pacífica. Os nazistas pegaram em
armas contra nós porque eles não conseguiram nos vergar
ideologicamente. Nosso componente ideológico era tão forte
que eles ficaram sem argumentos e pegaram em armas para
nos destruir fisicamente.
─ Quantos homens você comandou na milícia?
─ Cerca de 100 pessoas. Nós tínhamos uma unidade
especial de inteligência, com 100 pessoas com as quais nós
efetivamente destruímos os nazistas ucranianos. Em particular,
um bom exemplo é que em 24 de julho de 2014, trinta de nós
defendemos a cidade de Lisichansk por três dias, realizamos a
defesa e eliminamos um número bastante grande de nazistas.
Mas devido ao fato de a cidade estar cercada e não haver
suprimento de munição, tivemos de deixá-la. Além disso, em 5
de setembro, destruímos ucranianos nazistas como o Batalhão
Aidar aqui perto de Lugansk.
─ Durante quanto tempo você atuou como militar?
─ Eu estava no exército até 5 de setembro de 2014,
quando derrotamos o Batalhão Aidar em uma batalha e eu sofri
um ferimento de combate muito grave. Eu passei então por um
período de reabilitação. Depois da reabilitação, eu percebi que
os métodos clássicos de guerra, ou seja, com armas nas mãos,
não funcionarão. Para resolver o problema e restaurar a paz,
você precisa seguir o caminho das questões humanitárias.

171
─ E por que você escolheu o jornalismo?
─ Porque essa é uma das maneiras de travar guerras não
clássicas, a chamada guerra psicológica da informação. É
quando você começa a trazer a verdade ao público por meio da
comunicação de informações.
─ Você trabalha em algum jornal ou é jornalista
independente?
─ Sou jornalista independente, porque às vezes os meios
de comunicação oficiais da RPL não transmitem a pauta
informativa que precisa ser transmitida ao povo, pois é preciso
combater a desinformação dos nazistas ucranianos. Isso é
devido a que a imprensa oficial está vinculada a certas
estruturas e normas.
─ Então aqui a imprensa é controlada pelo governo?
─ A imprensa de Lugansk está sob o controle das
autoridades oficiais. Nós não temos tantos recursos de
informação que pudessem possibilitar a existência de algum
tipo de recursos de informação de oposição. Temos uma
política única e um vetor de apresentação de informações.
Temos uma pequena república que não permite quaisquer
outros meios de comunicação de oposição.
O café está esfriando e sugiro fazermos uma pausa na
entrevista porque ninguém estava conseguindo tomá-lo
enquanto falava. Três minutos depois, retomamos a entrevista.
─ De onde vem a ajuda humanitária para Lugansk? Ela é
suficiente?
─ A ajuda humanitária é suficiente. Ela está vindo da
Rússia em grandes quantidades, a partir de um grande número
de territórios distintos da Federação Russa, de todas as
regiões praticamente. Ainda existem pessoas que por iniciativa
própria coletam ajuda humanitária e a levam para
determinados lugares.
─ Nós conversamos com o Partido Comunista de Lugansk
e vimos muito alimento para ser distribuído. O que você pensa
da colaboração deles?

172
─ Na minha opinião, eles não fazem aquilo que
apregoam. Existe o nome e existe o conteúdo. No caso desse
partido, o nome não corresponde ao conteúdo.
─ A comunidade internacional fez alguma coisa para
ajudar o povo de Lugansk nos oitos anos de guerra contra os
nazistas?
─ Não. Veja, oito anos se passaram e, se eles tivessem
feito alguma coisa, o que está acontecendo agora não teria
acontecido. Houve um momento em que eles condenaram o
Batalhão Azov, mas depois começaram a apoiá-lo. Eles não
percebem que no território da Ucrânia está florescendo o
nazismo? Pelo contrário, eles o estimulam e o financiam.
─ Oito anos atrás, a imprensa internacional dizia que os
separatistas eram terroristas. O que você pensa dessa
acusação?
─ Isso é colocar um rótulo em pessoas que têm um ponto
de vista diferente. Eles precisavam justificar sua operação
“punitiva” no Donbass. Por isso nós fomos chamados de
separatistas e fomos chamados de terroristas. No início de toda
a nossa atividade de protesto, nós, todos os cidadãos do leste
da Ucrânia, defendemos a realização de um referendo no
território da Ucrânia. Não tínhamos a intenção de dividir a
Ucrânia em estados separados.
─ Você acha que Lugansk deve se conservar um território
separado ou se integrar à Rússia?
─ Eu defendo a integração ao território da Federação
Russa. Nós somos um único povo e não devemos nos espalhar
em estados independentes. A nossa história secular está
interligada por uma chave única e inseparável. Devemos nos
integrar totalmente à Rússia e regressar à nossa pátria
histórica.
─ E quanto ao resto da Ucrânia?
─ O resto da Ucrânia também deve se libertar do nazismo
ucraniano e decidir por conta própria o que eles querem afinal.
É preciso cortar toda a comunicação que influencia o

173
pensamento do povo e então eles mesmos terão condições de
decidir por conta própria. A nossa escolha foi feita em 11 de
maio de 2014. O nosso caminho é longo, mas de qualquer
maneira regressaremos à Rússia. O resto da Ucrânia que
decida por conta própria. Se essa parte quiser viver sob um
regime nazista, então será destruída.
Vsiô. Terminada a entrevista, Vyacheslav diz que agora
ele é quem gostaria de nos entrevistar para o Nash Donbass,
que tem site, página no VK e canal no Telegram, os quais
mantém junto com um colega. Faz muito poucas perguntas,
dentre as quais…
─ Qual a opinião de vocês sobre Trótski? Vocês são
trotskistas ou leninistas?
Tal como no encontro com o secretário-geral do Partido
Comunista de Lugansk, Rafael e eu olhamos um para o outro e
começamos a discutir durante umas nove horas sobre qual
seria a resposta mais adequada, levando em consideração que
a chance de nosso amigo odiar Trótski do fundo da alma é de
99%.
─ Para nós, não há nenhuma contradição entre o
trotskismo e o leninismo.
─ Trótski sempre foi utilizado pelo imperialismo para
atacar a revolução, assim como Rosa Luxemburgo ─ retruca
Vyacheslav.
Mais uma pausa.
─ Consideramos que Rosa Luxemburgo também foi uma
importante revolucionária, embora ela tivesse divergências com
os bolcheviques ─ respondemos. ─ Na verdade, o que
acontece é que o imperialismo, e mesmo os
pseudorrevolucionários que servem de ponto de apoio para a
burguesia, deturpam e prostituem as ideias e a história de
Trótski e de Rosa Luxemburgo.
Para botar mais lenha na fogueira da discussão, pergunto
ao nosso entrevistador qual é a sua opinião pessoal sobre
Trótski. Estava curioso para ouvi-lo e talvez sem saber no que

174
eu estava me metendo ─ ou talvez soubesse disso mas, no
fundo, quisesse pagar para ver qual seria a reação do nosso
stalinista ucraniano.
─ Vou guardar a minha opinião para mim ─ responde,
com um sorriso amigável. Essa resposta já esclareceu
nitidamente o que Vyacheslav pensa de Trótski.
Quebramos o gelo quando, ao sair do café, o ex-militar
pede para uma moça tirar uma foto de nós três em frente à
estátua de Lênin. Depois, ele nos leva de volta ao hotel em seu
Renault Duster verde. Descemos a Oboronna e passamos em
frente à estátua de outro revolucionário bolchevique, Félix
Dzerzhinsky. É curioso como ele é popular entre os russos. Em
todas as lojas de souvenirs em Moscou e Rostov, bem como
nas feirinhas de objetivos da época soviética, é possível
encontrar algum busto, estatueta, broche ou outro tipo de
objeto lembrando o fundador da Tcheka, antecessora da KGB.
Isso desperta em mim o raciocínio sobre como Donbass e
Rússia são, na prática, a mesma coisa. Lugansk é,
evidentemente, muito mais atrasada que qualquer cidade russa
onde estive, mas mesmo assim é como se eu ainda estivesse
na Rússia. Apesar de não haver Yandex Go (aliás, não há
nenhum serviço de transporte individual a não ser o bom e
velho táxi), de não existirem os aplicativos de delivery de
comida, de a internet ser precária e muitos outras deficiências
que eu considero totalmente aceitáveis ─ aquele povo não vive
uma situação normal há oito anos! ─, sinto como se estivesse
em uma cidade do interior da Rússia. Vejo bandeiras russas
por todos os cantos, nas ruas inclusive. As lojas exibem
produtos com símbolos russos, dentre eles o mesmo Putin que
vi representado em tudo quanto era mercadoria na rua
Arbatskaya, em Moscou. A memória da Guerra Patriótica, da
União Soviética ou mesmo da revolução bolchevique está em
toda parte. Todos falam russo. Muitos vão e voltam da Rússia,
cruzando a fronteira frequentemente. Daqui a um mês e meio,
um canal de TV francês não conseguirá encobrir, em uma

175
reportagem, as boas-vindas dadas aos russos pela população
de Lisichansk quando de sua libertação, ao mesmo tempo em
que expressava sua hostilidade aos soldados ucranianos.
Nesses dias, eu já estava tossindo que nem um maníaco.
Na verdade, desde Rostov e sua brisa congelante eu vinha
catarrento, tossindo e espirrando. O clima em Lugansk também
não me ajudou: todo dia saio do hotel pela manhã todo
agasalhado para me proteger da friagem e acabo ensopado de
suor no final da tarde, mas não posso tirar o agasalho para não
pegar a friagem.
Quando nos despedimos, Vyacheslav presenteia Rafael
com uma moeda soviética.
Entramos no hotel Dominó e, enquanto Rafael ainda está
do lado de fora, admirando seu presente, vejo sentado no sofá
do saguão mais um soldado. Puxo conversa com ele.
─ Olá, prazer. Meu nome é Eduardo. Como você se
chama?
─ Meu nome é Roman.
Mais um Roman! Este, ao contrário daquele jovem
voluntário de Volgogrado, tem 52 anos.
─ Você é russo?
─ Não, sou ucraniano do Donbass.
Está fardado e um pouco sujo. Também exala um forte
cheiro de suor. Leva em seu braço um bordado com a bandeira
da Rússia ─ tenho assim a certeza de que a maioria dos
habitantes do Donbass, mesmo que entendam que nasceram
na Ucrânia e, portanto, são geograficamente ucranianos, na
verdade veem a Rússia como sua verdadeira pátria.
─ Estou me tratando no hospital aqui do lado ─ explica
meu novo amigo.
Do outro lado do saguão, a boneca que perambula pelos
corredores toda noite com uma faca na mão está fingindo que
não se mexe. Sei que ela me olha aguardando o momento
quando serei sua próxima vítima.

176
Capítulo V …

Uma verdadeira
democracia

Diversos retratos de Putin decoram as paredes da sala de


reuniões. Há também um de Leonid Pasechnik, o chefe de
Estado da República Popular de Lugansk. Ícones e outras
imagens religiosas completam o adornamento. Entramos na
sede da Federação dos Sindicatos acompanhados dos nossos
amigos do Ministério das Relações Exteriores. O prédio da
Federatsia Profsoyuz fica logo ali junto dos prédios do governo,
atrás do Soviete do Povo e ao lado da Praça do Teatro. À
primeira vista, alguém poderia pensar que ela não passa de
uma central sindical chapa-branca. Eu também tive essa
impressão antes de conhecer o poder e a influência dessa
entidade na vida política do país, bem como a própria estrutura
política, social e econômica da jovem república.
Sentamos à mesa para conversar com Igor Ryabushkin,
presidente da federação e ex-membro da Marinha de 1992 a
2000. Também está conosco o segundo em comando, Andrei
Kochetov, chefe do ramo sindical dos trabalhadores de
pequenas empresas.
─ Como os sindicatos se organizam em Lugansk?
─ O primeiro ponto era organizar os ramos nas fábricas e
empresas. Nosso principal objetivo é transmitir os problemas
dos trabalhadores para as autoridades da República.
─ Quantos trabalhadores a Federação representa?
─ São 167.000 trabalhadores em 32 ramos sindicais.
Temos representatividade em toda a República, com

177
trabalhadores da indústria do carvão, metalúrgicos, médicos,
educação, agricultura.
─ Vocês são membros de algum partido político?
─ Os partidos políticos hoje são proibidos. Vocês sabem
quantos partidos havia na Ucrânia? Quatrocentos e sessenta e
quatro partidos. Era um verdadeiro circo ─ responde o enorme
Andrei, de uns 1,80m e mais ou menos o mesmo tanto de
largura. Ele se parece com o Coisa, do Quarteto Fantástico.
Espero que não se sinta ofendido com a comparação, se não
estou fodido. ─ Lembro-me do partido dos milicianos
aposentados! Acho que foi uma boa decisão em 2014 termos
proibido os partidos políticos. Temos movimentos políticos, um
deles mais público, outro mais ligado a questões econômicas.
─ Mas vocês têm partidos políticos, por exemplo, o
partido comunista…
─ Veja, eles não são tão proibidos a ponto de serem
presos, mas eles não possuem representantes no nosso
parlamento. Pouco mais de dez por cento do Soviete do Povo é
de representantes das direções dos sindicatos: seis
parlamentares entre 50.
─ E os outros 90%?
─ São apenas deputados permanentes, suas atividades
estão conectadas apenas à atividade parlamentar. Nossos
representantes ocupam os cargos de representantes-chefe das
comissões do Soviete do Povo.
─ Há membros que fizeram parte de partidos ou do
governo ucraniano ainda em atividade na política ou nos
sindicatos?
─ É possível dizer que aqui temos algumas pessoas que
costumavam trabalhar na federação dos sindicatos do oblast
de Lugansk. Não me lembro dos partidos políticos. Havia
membros do Partido das Regiões e também do Partido
Comunista, mas não me lembro muito bem.
─ Qual é a principal questão, a principal reivindicação de
todos os trabalhadores?

178
─ As principais questões são as garantias sociais nos
locais de trabalho, como de costume. Agora, o nosso principal
objetivo são os territórios recém-liberados, que eram parte da
Ucrânia até março, mas que agora estão integrados à
República Popular de Lugansk. Nosso principal objetivo agora
é integrá-los e envolvê-los no processo e criar boas condições
para os trabalhadores.
─ Qual é a relação entre essa organização e o governo?
─ Nós cooperamos com o governo em uma base diária,
transmitindo os problemas para os líderes do governo. É um
trabalho diário.
─ Qual é o salário médio de um trabalhador em Lugansk?
Existe um mínimo fixo?
─ O salário médio depende, muda [de categoria para
categoria]. O salário mínimo é de 10.245,00 rublos. O principal
problema é que estamos bloqueados pelo lado ucraniano e
nossa indústria estava muito conectada com a Ucrânia. É muito
difícil para nossa indústria conseguir contatos com a Rússia.
Em novembro do ano passado, o presidente Putin permitiu que
nossas indústrias se conectem [com outras na Federação
Russa] sem problemas com a alfândega. Agora as condições
são melhores, mas depende porque a situação da nossa
economia é precária.
─ São empresas privadas ou estatais?
─ Temos ambas, empresas estatais e privadas. É difícil
dizer números. A indústria do carvão é propriedade estatal, a
indústria metalúrgica é na maioria privada. Mas a economia
estatal é a base da nossa economia. Saúde e educação são
estatais e os transportes, na sua maioria, são estatais.
─ Há uma luta pela estatização de toda a economia?
─ A principal preocupação da Federação dos Sindicatos é
com a estabilização dos locais de trabalho, o pagamento
regular de seus salários e garantias sociais, suas condições de
trabalho e com seus salários. Não nos preocupamos se é o

179
Estado ou a iniciativa privada, porque nossa principal
preocupação é com a situação dos trabalhadores.
─ Qual é o nível de desemprego?
─ Na verdade, nossas empresas estão sem
trabalhadores, precisamos de trabalhadores. Há postos de
trabalho vagos, por causa da guerra. Muitas pessoas deixaram
suas casas e foram para a Rússia ou para a guerra. Muitas
nunca vão voltar, infelizmente. Perdemos muita mão de obra.
Temos falta de trabalhadores braçais e de trabalhadores
qualificados e administradores.
─ Que setor precisa de mais trabalhadores?
─ Todos. Quase todos os setores, do carvão à metalurgia.
O problema dos trabalhadores se agravou com a pandemia de
covid-19 e a operação especial levou muitos trabalhadores
para a frente para defender nossa terra.
─ Houve greves durante esse período?
─ Não. A situação é muito difícil. Todas as pessoas na
nossa sociedade, do governo, dos sindicatos, são pessoas
simples. Os problemas na consolidação da República são
resolvidos pela unidade e a cooperação.
─ Há milionários em Lugansk?
─ Não sei, não os conhecemos. Nossa tarefa não é lutar
contra os ricos, mas contra a pobreza. Todo trabalhador deve
ter seu posto de trabalho, um bom salário para sustentar suas
famílias.
─ Qual foi o papel dos sindicatos na independência em
2014?
─ À medida que a Federação uniu os sindicatos e
organizações de trabalhadores, estas apoiaram o referendo e
não poderíamos ficar de fora. Defendemos nossa terra e o
referendo junto com comitês operários em todo o território.
Tomamos parte na organização do referendo simultaneamente
com o nosso trabalho regular. Trabalhávamos de dia e à noite
nos reuníamos com os que viriam a compor a milícia popular.
Em 2014, os membros dos sindicatos apoiaram o referendo, o

180
movimento [de independência] e a direção da Federação fez
todo o trabalho conectado com a ajuda humanitária, correios,
para conseguir pagar as pensões [para que os aposentados
continuassem a receber]. Aqui, na sede dos sindicatos,
formou-se um quartel-general da mobilização. Quem quisesse
defender a pátria podia vir aqui se alistar. A milícia popular
recrutava a partir daqui. Tínhamos também um livro de registro
das pessoas que queriam auxiliar. As pessoas vinham aqui se
cadastrar e assumir tarefas como descarregar os caminhões
com ajuda humanitária vindos da Rússia.
─ Os membros dos sindicatos participaram da luta
armada?
─ Claro. São membros da nossa sociedade. É impossível
que os membros dos sindicatos estivessem de fora. São quase
200.000 membros nos sindicatos, então, é claro, todo o país se
envolveu nessa mobilização para defender nossa pátria. Hoje,
mais precisamente, são 167.000 membros. Também as
pessoas que estão procurando emprego vinham aqui. Nos
tornamos também um centro para os desempregados.
─ Havia outras organizações fazendo esse trabalho de
organização da ajuda humanitária?
─ Na mesma medida, acredito que não. Mas o problema é
que também não havia telefone e internet e nosso edifício está
no centro da cidade. O edifício do governo estava sob controle
dos militares. Nós estávamos abertos e as pessoas vinham
aqui pedir ajuda se precisassem de comida ou de informação.
Nosso edifício sofreu com os bombardeios, que atingiram o
outro lado da rua. Não tínhamos janelas e não era seguro, mas
as pessoas vinham aqui, temos um porão e os corredores do
outro lado eram seguros.
─ Qual a relação com a milícia popular hoje?
─ A milícia popular é, hoje, uma instituição separada, mas
muitos membros dos sindicatos estão mobilizados nela. E
agora nós estamos tentando ajudar suas famílias e a eles

181
próprios, juntamente com a milícia popular, em cooperação
para resolver seus problemas, bem como a ajuda humanitária.
─ Parece que os sindicatos e a Federação são as maiores
organizações sociais, que não há nenhum outro órgão parecido
que faça o mesmo trabalho…
─ Talvez sejam os únicos, sim. Seus problemas mudam,
mas tentamos resolver todos, a começar pelas doações, ajuda
aos soldados e a suas famílias e assim por diante. Acho que
todos os eventos na República estão relacionados de alguma
forma com os sindicatos. E participamos, não importa se são
eleições, primárias, grandes eventos e celebrações, ou um
feriado em homenagem à memória nacional. O que quer que
esteja conectado à vida social passa pelos sindicatos.
─ Qual é a situação dos trabalhadores no oeste da
Ucrânia?
─ No oeste da Ucrânia? Não nos interessa. Para eles,
desaparecemos no verão de 2014. Tínhamos muitas conexões
com as organizações em outros países, mas nunca nos
conectamos. No início de março [de 2014], fui acusado
pessoalmente de ter trazido a guerra à Ucrânia, e não temos
relações desde então.
─ Quais são as relações com os sindicatos da República
Popular de Donetsk e da Rússia?
─ Acho que temos uma cooperação total. Temos uma
relação muito estreita com o movimento sindical da RPD. Eles
nos convidam para participar de suas atividades. Temos os
mesmos problemas e entendemos a situação uns dos outros.
Quanto aos sindicatos russos, eles nos apoiaram em 2014 e
desde então. Agora temos acordos de cooperação e estamos
compartilhando experiências com eles. Desde o início da
operação especial, nossa relação se estreitou. No 1º de Maio, a
Federação Independente dos Sindicatos da Rússia organizou
um grande comício e convidou nossa delegação e a de
Donetsk para participar e fomos representados aí. Cooperamos
o tempo todo, graças a Deus.

182
─ Vocês conhecem o ex-presidente Lula, do Brasil? ─
pergunto, pois vi uma semelhança física com Igor.
─ Sim, claro ─ diz Andrei. ─ Tenho uma camiseta dele.
Estivemos presentes em eventos no Brasil duas vezes. Uma
em São Paulo e outra em Porto Alegre, quando fomos
convidados pelos sindicatos locais.
─ Igor, vi que você não tem um dos dedos da mão. Lula
também não tem, ele perdeu em um acidente de trabalho
quando era metalúrgico. Você sofreu algum acidente de
trabalho?
─ Não, não foi em um acidente de trabalho ─ responde,
com alguma timidez.
─ Cachaça! ─ grita Andrei, lembrando da bebida nacional
do Brasil. K. também adora cachaça, e havia pedido para eu
levar uma garrafa para ele quando chegasse à Rússia. Andrei
ganhou de presente em sua viagem a Porto Alegre uma cuia
de chimarrão, o qual ele já consumiu por completo.
Nós voltamos à sede da Federação no dia seguinte, após
uma passada no Ministério do Exterior para ver o andamento
do nosso credenciamento como jornalistas. Queríamos que
Andrei nos colocasse em contato com mais algum membro do
sindicato para o entrevistarmos. Entramos meio de penetras na
sede, que aparentemente estava quase vazia. Finalmente,
encontramos Andrei. Ele nos atende em seu gabinete e
procura nos ajudar. Inclusive, pergunta se já conseguimos a
credencial de jornalista.
─ Passamos agora no Ministério e ainda não ficaram
prontas as credenciais ─ respondemos.
─ Como? ─ Imediatamente, pega o telefone e faz uma
ligação. Após uma conversa em russo, desliga e nos diz:
─ Pronto. Elas deverão estar disponíveis amanhã.
Isso foi uma prova cabal do poder dessa central sindical,
a única da RPL.
─ Aqui não temos as centrais amarelas! ─ orgulha-se
Andrei.

183
Agradecemos a ele, que nos acompanha até a saída do
prédio. Descendo as escadas, o informamos:
─ Nossas credenciais para trabalharmos como
correspondentes em Donetsk ficaram prontas hoje.
─ Eles sempre conseguem ser mais rápidos do que nós.
Eu não entendo. É o mesmo trabalho, mas eles sempre
terminam primeiro ─ brinca.
O nosso objetivo era partir para a República Popular de
Donetsk após terminarmos o nosso trabalho na RPL. Inclusive,
planejávamos pedir ajuda a Andrei para chegarmos com
segurança na RPD.
Quando estamos prestes a sair, esbarramos com uma
mulher que parece ser funcionária do sindicato. Andrei nos diz
que ela é deputada do Soviete do Povo. Natalia Sergun
pretendia ir embora mas aceita nos dar uma entrevista na hora.
Ela não tem assessor e não precisamos marcar previamente a
entrevista. Subimos novamente para uma das salas da
Federação.
Natalia é um dos seis deputados sindicalistas do Soviete
do Povo. Nenhum dos 50 parlamentares da Casa foi eleito por
algum partido político. São todos representantes de
movimentos sociais, populares e sindicais. Os seis
representantes da Federação dos Sindicatos ocupam o posto
de chefes de seus respectivos comitês parlamentares ─ sete,
no total. Por ser a presidenta do Sindicato dos Ferroviários,
Natália dirige o Comitê de Transportes do Soviete do Povo.
Sua rotina é totalmente diferente da de qualquer parlamentar
no Brasil, mesmo de qualquer vereador: seu escritório fica
dentro da estação de trem de Lugansk e lá ela recebe
diariamente os trabalhadores, com quem discute os problemas
da categoria e os leva para debate no Soviete do Povo. Natalia
não deixou de ser ferroviária nem sindicalista após se eleger
deputada. Pelo contrário: isso seria praticamente um crime na
República Popular de Lugansk, uma vez que ela foi eleita, em
2018, precisamente para atender às demandas de sua

184
categoria ─ particularmente o desenvolvimento das fábricas e o
crescimento industrial.
─ Os ferroviários são a categoria mais poderosa de
trabalhadores da RPL ─ diz.
São 4.500 trabalhadores na base do sindicato presidido
por ela. Até 2014, o Estado tinha um importante controle sobre
as ferrovias, mas somente após a independência da RPL é que
elas foram 100% estatizadas. Naquela época de levante contra
o golpe em Kiev ─ conta ─ os ferroviários estavam na linha de
frente e realizavam um trabalho militante para atender às
demandas nacionais, mesmo sem receberem salário. Desde
então, são eles quem garantem o transporte de carvão e metal
(os principais setores produtivos da República) e alcançaram o
melhor e mais amplo acordo coletivo com a empresa entre
todas as categorias. Agora já ganham um bom salário ─ os
maquinistas chegam a receber 60.000,00 rublos mensais. Com
a libertação do território da RPL desde o início da operação
militar especial da Rússia, dando suporte à milícia popular, os
ferroviários das novas regiões estão se integrando quase
automaticamente ao sindicato. No último mês, 500 já se
integraram. Todos os dias há novos membros.
─ Os sindicatos são muito poderosos porque unem todo o
povo e mostram a direção para onde ir ─ opina Natalia,
sindicalista desde 2003. ─ Os sindicatos se comunicam com o
povo e reúnem os seus problemas, depois conversam com o
governo sobre como resolver esses problemas. O governo é
muito aberto para trabalhar com os sindicatos. Não é uma
pressão sobre o governo, é mais um diálogo no mesmo nível.
Uma cooperação. Um trabalho conjunto.
Conforme a constituição do país ─ encontrada por Rafael
─, “a intervenção de autoridades de Estado da República
Popular de Lugansk, dos órgãos de autogoverno locais e seus
funcionários nos sindicatos é proibida, pois pode justificar a
restrição dos direitos dos sindicatos ou suspender a
implementação de suas atividades estatutárias”. Portanto, os

185
sindicatos são independentes. Não são controlados pelo
governo. Por quê, então, essa colaboração da central sindical
com o Estado, quando, visto o tamanho da sua força, ela
poderia ser um poderoso instrumento de luta contra o Estado
(até porque até os piquetes são nominalmente permitidos pela
lei!)? Ora, porque, na prática, o Estado está precisamente sob
o controle dos trabalhadores.
─ Somos uma república popular, como diz o próprio nome
do nosso país! ─ garante Andrei, que ajuda a traduzir a
conversa com Natalia.
─ O povo controla o poder. Estou certa disso. Temos um
diálogo direto com o governo ─ assegura a deputada.
Outras passagens da constituição indicam que essas
afirmações estão corretas. O “Estado social”, de que fala o
artigo 1°, está assentado, fundamentalmente, na propriedade
estatal dos meios de produção. Todas as empresas que hoje
pertencem ao Estado não podem ser privatizadas e "a
atividade econômica dirigida ao monopólio e à competição
desleal não é permitida". É lei. Tal como setores estratégicos
da indústria, a exemplo da eletricidade, da infraestrutura de gás
e calefação, da água e saneamento. A educação, a moradia e
a terra também não. A educação é gratuita para todos até o
ensino secundário profissionalizante e existe um regime de
concurso para que os que passarem possam cursar
gratuitamente o ensino superior. A assistência médica também
é gratuita e “os programas de proteção e promoção da saúde
pública são financiados na República Popular de Lugansk” pelo
Estado. Todo cidadão tem direito à moradia e “ninguém pode
ser privado de casa”, diz a lei. “Aos pobres e demais cidadãos
especificados na lei que necessitem de habitação, ela é
fornecida gratuitamente ou a preço acessível por fundos
estaduais, municipais e outros fundos habitacionais de acordo
com as normas estabelecidas por lei." Tanto é assim que não vi
nenhum morador de rua em Lugansk. Além do mais, a terra
pertence aos camponeses e não a grandes latifundiários e os

186
recursos naturais são do Estado: "a terra e outros recursos
naturais da República Popular de Lugansk são propriedade do
povo e usados e protegidos como base da vida e das
atividades do povo." A venda das terras é proibida.
Tudo bem, existem outros países onde a maior parte da
economia é estatal e os serviços públicos são gratuitos. Mas
aqui há uma diferença essencial: na RPL não existem grandes
capitalistas. Nem nacionais, nem estrangeiros. Enquanto na
Rússia, por exemplo, os capitalistas estrangeiros estão em
guerra contra o governo, o conjunto da burguesia nacional o
apoia. Mas em Lugansk não. Nenhum capitalista apoia o
governo. Porque não tem nenhum poder sobre ele (um
deputado do Soviete do Povo não pode realizar atividades
empresariais). Quem tem esse poder é a Federação dos
Sindicatos. A guerra civil iniciada pelos golpistas que tomaram
o governo em Kiev em 2014 fez com que os grandes
empresários fossem embora do Donbass. Bem que tentou-se
empossar os oligarcas até mesmo no governo dos antigos
oblasts da região, por parte de Kiev, mas isso foi rechaçado
pelo povo que declarou a independência das duas repúblicas.
O fato de ainda existir a propriedade privada não significa que
a RPL seja um Estado capitalista. Essa propriedade privada é
pequena. Os capitalistas que restaram são
pequeno-burgueses, na realidade. Na própria Rússia
revolucionária, havia a coexistência da propriedade estatal
(dominante) e da propriedade privada (subjugada pelo domínio
da propriedade estatal). Em Cuba e na Coreia do Norte
atualmente também há pequenos e médios negócios privados,
o que não conduziu à restauração do capitalismo nesses
países. Além da propriedade estatal sobre a maior parte dos
meios de produção, da terra e dos recursos naturais, se quem
detém o poder não são os capitalistas, então só podem ser os
trabalhadores. Não é à toa que o nome do país é República
Popular de Lugansk, que o da sua força armada é Milícia
Popular e que o do parlamento é Soviete do Povo ─ como na

187
União Soviética. Isso não é mera retórica. E o Soviete, o poder
legislativo, é o principal poder da República. Um importante
entrevistado nos confidenciou que o presidente da República
não tem grandes poderes, quem manda é o Soviete ─ onde os
trabalhadores têm muita força.
Na última eleição presidencial, eram oito os candidatos à
presidência. Três deles eram sindicalistas: Oleg Koval,
presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Educação e
Ciência; Yuri Ryaplov, presidente do Sindicato dos
Trabalhadores dos Serviços Públicos e a própria Natalia. Eles
não conseguiram se eleger, mas Natalia se juntou aos outros
cinco sindicalistas no Soviete do Povo ─ parlamento
unicameral, algo mais democrático do que o bicameral. Os
outros candidatos eram funcionários de órgãos públicos e o
próprio Pasechnik, que concorreu à reeleição e venceu.
─ Aqui não há tantas diferenças entre os operários do
chão da fábrica e a diretoria ─ diz Andrei, que mais uma vez
nos ajuda como intérprete em uma entrevista com os membros
do sindicato dos mineiros de Krasnodon e também da direção
da mina de carvão Samsonovskaya-Zapadnaya. Ela começou
a ser construída em 1965 mas o projeto foi abandonado e
recomeçado e finalmente a construção terminou em 1999.
Somos recebidos pelo presidente do sindicato, Nikolay Rabotin,
que é sósia do ex-líder soviético Nikita Khrushchev ─ menos de
1,60m de altura, careca e gorduchinho. Atualmente, há 1.100
operários trabalhando na mina, divididos em quatro turnos de
seis horas cada. Antes do início da guerra, em 2014, eram
3.000 os trabalhadores. A mina, assim como todas as minas da
RPL desde então, é de propriedade do Estado ─ as que eram
privadas foram estatizadas após 2014. Sua direção é escolhida
através de um acordo entre o governo e o sindicato, mas o
diretor não é membro do sindicato (isso é proibido por lei) e o
sindicato não faz parte da administração da mina, apenas os
trabalhadores da própria mina têm representação na direção ─

188
que, além do diretor, apontado pelo governo, é formada por
operários eleitos pela mina.
─ Eles organizam e controlam todo o processo de
produção da mina ─ afirma Khrushchev. Ops!, Rabotin.
Além da redução em quase dois terços no número de
funcionários devido à crise econômica que se abateu sobre a
indústria mineradora da RPL com a guerra, há atualmente 300
operários desta mina de armas na mão lutando pela milícia
popular na frente de batalha. Antes da guerra, eram produzidas
um milhão de toneladas de carvão por ano. Hoje, são
produzidas apenas 400 mil toneladas.
Na época soviética, o governo pagava salários muito bons
para os mineiros de Krasnodon, o que gerou um aumento da
população da região ─ cada família de mineiros tinha ao menos
cinco filhos, por isso mesmo há muitos jovens na cidade ainda
hoje, me diz Andrei em outro encontro. A vida era boa. Mas
mesmo hoje, ainda que a situação tenha piorado com o fim da
URSS e depois a guerra, os mineiros recebem um salário
considerado bom, comparado com o custo de vida na RPL:
entre 35.000,00 e 50.000,00 rublos por mês. Os operários da
mina também recebem atendimento médico gratuito e podem
descansar em pousadas nas férias de verão ─ sendo que seus
filhos podem ir gratuitamente para o acampamento de férias
bancado pelo sindicato.
Após a entrevista, subimos a torre da mina a uma altura
de 109 metros. Uma visão de todo o campo que rodeia
Lugansk ao sudeste. Depois, é a vez de descer abaixo da
superfície. Eu não vou porque estou doente e não consigo
fechar um dos olhos (poderia entrar carvão no olho, aí já viu…)
e quando vejo a explicação de um dos funcionários sobre como
usar o tubo de oxigênio do uniforme que necessitamos vestir
para entrar ali, então tenho certeza que não posso ir, pois além
de um zumbi sem conseguir dormir direito há quatro dias, ainda
por cima estou sob o efeito de vários medicamentos e meus

189
movimentos estão muito comprometidos. Rafael se veste de
mineiro e desce junto com nossos guias.

190
Capítulo VI …

Vodca

─ Os jornalistas devem transmitir o que eles veem por si


próprios, sem qualquer intervenção nossa ─ opina Deynego,
que nos recebe em seu gabinete no Ministério das Relações
Exteriores. Estamos fazendo os trâmites para conseguir as
credenciais de jornalistas. Lá embaixo, na recepção do prédio,
há um cartaz da campanha “Salve o povo do Donbass do
Exército Ucraniano” com fotos de crianças. Enquanto isso,
conversamos um pouco mais sobre como foi o processo de
independência da República Popular de Lugansk, em 2014,
quando se iniciou a guerra.
─ A princípio, foi um processo interno, independente, por
parte do próprio povo daqui. O povo procurou envolver a
Rússia no processo, de forma independente.
Após tomarem os postos policiais e militares em Kiev e no
oeste da Ucrânia, os golpistas se dirigiram ao leste, em abril. A
principal força do golpe, em seu início, foram os serviços de
segurança e repressão do Estado ─ em particular, a SBU, que
se transformou na polícia política do regime. Seus agentes
conseguiram, ao longo dos meses, infiltrar mais de 3.000 rifles
de assalto nas instalações da SBU em Lugansk. Eram 700
funcionários da agência na região, o que significa que haviam
quase quatro rifles para cada funcionário. Foram armados até
os dentes para orquestrar a tomada dos prédios
governamentais em Lugansk pela força.
─ Estavam preparando a agressão ─ conta o ministro.

191
Eram vários tipos de armas alocadas pelos agentes de
segurança para garantir o putsch. Eles também planejavam
utilizar 2.000 uniformes russos, o que levou a imprensa ─
atuando em coordenação com os golpistas ─ a acusar a Rússia
de estar por trás do movimento anti-Maidan.
─ Nós não permitimos isso. Eles não conseguiram repetir
o que fizeram em Kiev e no oeste. Tomamos o controle das
armas. As milícias populares recém-criadas tomaram os
edifícios da SBU e do governo e o povo elegeu novas
autoridades ─ conclui Deynego, antes de ser interrompido por
um lembrete de que precisa sair para participar de um
programa de rádio.
Quem continua a conversa conosco é Vera, especialista
que trabalha na contabilização das vítimas do genocídio
executado pelos ucranianos desde então, e Serguei Belov,
secretário do Grupo de Trabalho Interdepartamental para a
Busca de Vítimas da Agressão Ucraniana a serem enterradas e
um dos autores do livro que trata da história do morticínio de
crianças ─ livro este que está desatualizado, nos informa,
porque foi publicado em novembro passado, antes da escalada
ainda maior da violência. Até o início da operação especial da
Rússia, em 24 de fevereiro, haviam sido identificados os corpos
de 37 crianças na RPL e 105 na RPD. Em algumas cidades, o
serviço de identificação dos mortos parou de funcionar, uma
vez que esse trabalho é extremamente precário. Tanto é assim
que até mesmo os altos cargos do governo estão mobilizados
pessoalmente para fazer esse trabalho, como é o caso de
Anna Soroka, vice-ministra das Relações Exteriores, que
participa das missões de busca dos corpos nas zonas
recém-liberadas. O que também torna difícil a identificação das
vítimas civis é o fato de, no começo da guerra, muitas delas
terem sido mortas enquanto vestiam trajes militares ─ algo que
ainda é comum nas ruas de Lugansk, como nós mesmos
observamos (todas as lojas de roupas vendem uniformes
militares, que são os artigos mais procurados pelos homens).

192
Assim, segundo as estimativas, seria possível adicionar
aproximadamente mais 500 corpos na montanha de cadáveres
criada pelos ucranianos em Lugansk, o que elevaria para
quase 2.500 o número de vítimas civis documentadas. O
governo ucraniano diz que tudo isso não passa de mentira. No
começo de agosto, o grupo de Belov encontrará mais de 500
covas nos pátios dos prédios de Rubizhne ─ os moradores
haviam sido forçados a enterrar seus parentes e vizinhos lá
mesmo, durante os bombardeios das forças armadas
ucranianas, em sua retirada da cidade.
Mas esse ainda é um número distante da realidade. Não
se sabe ao certo quantas pessoas padeceram devido à
agressão ucraniana desde 2014. Nossos interlocutores só
podem trabalhar na busca de vítimas mortas dentro dos
territórios controlados pelos governos de Donetsk e Lugansk.
Metade da RPD está sob o domínio ucraniano, enquanto cerca
de 5% do território da RPL ainda é ocupado por Kiev neste
momento. Além do mais, o número de crianças vitimadas pela
guerra também é subestimado, uma vez que em Lugansk uma
pessoa é considerada menor de idade até os 18 anos,
enquanto que a nível internacional, para estes fins, a idade é
de 21 anos.
─ As crianças estão morrendo por todo o território ─ nos
dizem. ─ Mesmo onde já não há mais batalhas, as crianças
encontram armas e munições ativadas deixadas
propositalmente pelos ucranianos e, quando mexem nelas por
curiosidade, acabam disparando e muitas morrem.
Ouvimos novamente que os soldados ucranianos não
deixam a ajuda humanitária ─ nem médica ─ chegar aos
territórios que eles controlam. Atualmente, diz Belov, as forças
ucranianas controlam uma pequena parcela do oeste da RPL.
É uma região que compreende principalmente as cidades de
Severodonetsk e Lisichansk e que, apesar de pequena em
território, comporta mais de 200 mil habitantes ─ cerca de 10%
da população de toda a região que é reivindicada pela RPL,

193
antigo território pertencente ao oblast ucraniano de Lugansk.
Na semana passada, as cidades de Rubizhne e Popasnaya, na
mesma região, foram liberadas.
Essa é uma região estratégica e por estar localizada em
uma altitude maior o exército ucraniano tem conseguido manter
as suas posições. A região também é um entroncamento
ferroviário com diversas linhas de trem. O exército ucraniano
tem impedido a chegada de ajuda humanitária aos civis através
dessas que são as únicas vias de acesso. Utilizam os trens
para trazer munições e quando necessário bombardeiam as
vias. Há também trens que vêm da República Popular de
Donetsk, o que, somado ao fato de ter o rio Donets entre
Severodonetsk e Lisichansk, poderiam dar aos ucranianos a
possibilidade de partir para uma ofensiva para o sul, abrindo
um corredor na fronteira da RPL e da RPD. A intenção seria
isolar a RPL da RPD e depois partir para uma ofensiva à leste
para isolar a RPL da Rússia, cortando as comunicações da
república separatista a fim de asfixiá-la, inclusive em termos de
suprimentos alimentares.
Os ucranianos têm concentrado muitos tanques desde
março na região e chegaram a montar uma artilharia pesada a
fim de implementar os seus planos. Porém, duas semanas
antes do que seria o início da operação ofensiva em direção ao
sul, as forças russas e de Lugansk atacaram a região ─
tomando Rubizhne e Popasnaya.
A última zona de Rubizhne a ser tomada foi a fábrica
Zarya. Lá, a milícia popular de Lugansk disse ter encontrado
evidências da presença de instrutores dos Estados Unidos e da
Polônia, que coordenavam as forças ucranianas a partir da
fábrica. Além disso, sete mercenários americanos também
foram identificados, bem como um laboratório onde
experiências em seres humanos teriam sido realizadas. Porém,
mesmo após a saída dos ucranianos, Rubizhne e Popasnaya
continuam sendo cidades muito perigosas (não apenas por
estarem ao lado da linha de frente, mas também porque as

194
forças armadas ucranianas deixaram para trás explosivos e
minas espalhados por toda a cidade).
Segundo o prefeito de Severodonetsk, Alexander Striuk ─
alinhado com o regime ucraniano ─, apenas 15 mil dos 100 mil
habitantes permanecem na cidade. Apesar das dificuldades no
terreno, as forças russas e independentistas já estão em
combate na cidade e será questão de tempo até ela ser
tomada. O Ministério da Defesa da Rússia denuncia que “os
militantes de grupos ucranianos armados” têm utilizado uma
instalação médica como depósito de armas e munições. “A
equipe do hospital e todos os pacientes foram forçados a
deixar o local sob a ameaça de violência física”, diz o
comunicado. Ainda hoje, a milícia popular de Lugansk anunciou
a tomada da vila de Novozvanivka e o início do combate na
localidade próxima de Troitskoye.
Uma ferradura foi formada no nordeste, leste e sudeste
da Ucrânia, com as tropas russas e as milícias populares neste
momento já ocupando regiões além das repúblicas
separatistas, como os oblasts de Zaparojia, Carcóvia e
Kherson ─ cujo processo de integração à Rússia já está sendo
iniciado.
A capital da Carcóvia (a nordeste), bem como Odessa (ao
sul) ─ que também já é alvo das forças russas ─ são duas das
mais importantes cidades da Ucrânia, junto com Kiev
(centro-norte) e Lvov (a oeste). Se tomadas as cidades de
Odessa e Carcóvia, é possível que o regime político ucraniano
se desmantele de maneira mais acelerada. Diante dessa
possibilidade, há notícias de que o governo polonês estaria em
negociações com os Estados Unidos para invadir o oeste da
Ucrânia e anexar aquela região, sob a desculpa de que
antigamente pertencia à Polônia. O golpe de 2014 que levou o
fascismo à Ucrânia, aparentemente, tem um desfecho
inesperado para aqueles que diziam estar defendendo a sua
pátria: a aniquilação do seu território.

195
Muito disso foi explicado magistralmente por Serguei
Belov, mostrando-nos um mapa da RPL. Dentre as cidades que
ele apontou estavam Alchevsk (a cidade de Deynego), a 35
quilômetros de Lugansk, e Pervomaisk, a 60 quilômetros da
capital. Esta última continuaria a ser bombardeada pelos
ucranianos, bem como Alchevsk, que seria atingida pelo
Sistema de Foguetes de Artilharia de Alta Mobilidade (o
HIMARS, entregue pelos EUA à Ucrânia em junho) nos dias 9
e 16 de julho, resultando na morte de dois civis.
Neste momento, recebemos a informação de que
visitaremos Rubizhne e depois Popasnaya, antes de nos
despedirmos de nossos amigos e irmos almoçar em algum
lugar do centro de Lugansk.
Encontramos um restaurante chamado Chelsea. Bem, é
lá onde entramos para almoçar. Ele não está cheio, mas a
maioria da clientela é formada por militares. Não é um lugar
bem iluminado, embora aparentemente seja um dos melhores
restaurantes da cidade. Sento a uma mesa com Rafael e a
garçonete serve um cinzeiro. Sim, os fumantes podem
saborear os seus cigarros ali mesmo, como antigamente. Ao
nosso lado está sentado um grupo de três jovens soldados
russos. Aproximo-me para bater um papo com eles. Começo
dizendo que sou um jornalista brasileiro. Primeiro, eles ficam
desconfiados. Mas não demora muito para me convidarem
para sentar ao seu lado. Ganho sua confiança mostrando que
estou do lado da Rússia.
Um deles chama-se Evgeny e é o mais engraçadinho ─
toda hora gargalhando e fazendo gracinhas. O outro é Maxim,
pai de dois filhos (Artyom e Natsia ─ Anastasia ─, bem
pequenina). O terceiro me diz que se chama Vitcha (apelido de
Vyacheslav), que acaba fazendo algumas revelações meio sem
querer ─ por exemplo, que estão servindo nas forças que
assaltam Severodonetsk neste momento (“não era para revelar,
imbecil!”, repreendeu Maxim), e que está louco para voltar para
casa.

196
─ A imprensa brasileira e internacional mentem sobre o
que está acontecendo ─ afirmo.
─ Você quer escrever uma reportagem dizendo que o que
eles falam não é verdade? ─ pergunta Maxim.
Falamos um pouco sobre eles. Me dizem que os três são
de Rostov do Don. Digo que estive lá durante quase um mês e
que é uma bela cidade. Perguntam sobre o Brasil e falo que é
um país lindo. Me mostram vídeos dos torcedores brasileiros
fazendo palhaçadas nos jogos da seleção brasileira em Rostov
na Copa do Mundo de 2018 e eles caem na risada,
principalmente Evgeny. Maxim me oferece um cigarro, o qual
recuso educadamente. Mal acredito que ele, com seus vinte e
poucos anos, já tenha um filho de dez! Mas antes de eu
entender que ele tem filhos, ocorre uma situação hilariante.
─ Você é casado? ─ pergunto a Maxim.
Então ele se enrola na resposta e fala algo sobre gays.
Além disso, faz um gesto apontando para si e para Evgeny. Aí
pergunto, aproveitando a liberdade que me dão e o jeito
atrapalhado de Maxim, se ele é gay. Ele se apressa em dizer
que não, mas todos já estão caindo na gargalhada com o fato
de ele ter se atrapalhado.
─ Falta pouco para libertar a RPL dos nazistas?
Fazem que não sabem responder.
─ Os nazistas fazem prisioneiros civis ─ revela Maxim.
Então pergunto sobre os crimes dos grupos nazistas
ucranianos. Dizem que não viram nenhum com seus próprios
olhos, mas que esses grupos cometeram muitos. Informam que
esses grupos recebem armas novas todos os dias, vindas do
exterior.
─ Na sua opinião, quem são mais bonitas, as brasileiras
ou as russas? ─ Evgeny me deixa numa saia justa. Tenho de
ser diplomático. Mas não é só isso: é uma competição acirrada.
As russas também são lindas.
Evgeny está conversando com outras pessoas por vídeo
no seu celular. A todo o momento diz a elas que está ao lado

197
de um jornalista brasileiro. Me apresenta a um amigo do outro
lado da tela, que aparenta ser um soldado ferido e de cama.
─ Vocês estão na guerra há quanto tempo?
─ Não podemos falar.
─ Há muito tempo?
─ Mais ou menos.
─ Vocês gostariam de dizer mais alguma coisa, ou de
fazer mais alguma pergunta para mim? ─ ofereço, no final de
nossa conversa.
─ Vamos erradicar nossas terras do fascismo e do
nazismo ─ afirma Vitcha, meio que me puxando de canto.
No final, dizem que não podem tirar fotos comigo, mas
Evgeny tira uma minha junto dele, com seu próprio celular.
Rafael e eu nos encaminhamos para a Federação dos
Sindicatos, na cara dura, sem avisarmos ninguém. Lá, iríamos
acabar encontrando Andrei, o verdadeiro chefão do sindicato, e
conseguiríamos uma entrevista com Natalia, presidenta do
sindicato dos ferroviários. No final da tarde, voltaríamos ao
hotel.
A noite cai sobre nós e nós caímos no sono. No meio da
madrugada, ouvimos fortes estrondos e sentimos tremores no
chão. Eram explosões seguidas dos voos das aeronaves que
atacavam a cidade de Zolote, controlada pelos ucranianos, que
fica próxima a Severodonetsk, a 90 quilômetros de Lugansk.
Algo realmente impressionante e aterrorizante, que ouvimos
novamente alguns dias depois.
Acordo no dia seguinte com algumas notícias.
Os grupos nazistas da Ucrânia estão utilizando uma
escola para se abrigar no vilarejo de Novoye, no oeste da RPL.
Ali, alocam bombas alemãs e contêineres com mísseis da
OTAN.
O Ministério do Interior da RPL anunciou a captura de 15
a 16 mil soldados ucranianos e mercenários na região das
cidades de Severodonetsk e Lisichansk. Segundo o
assistente do Ministério, Vitaly Kiselyov, há menos de 20 mil

198
tropas ucranianas na região, o que contradiz o discurso de
Kiev. Além disso, na cidade de Rubizhne, munição proibida foi
encontrada em locais que indicam que elas estariam sendo
usadas pelo inimigo. Ele destacou, em declarações à Rússia 1,
que a principal tarefa das Forças Armadas da Ucrânia nas
proximidades de Severodonetsk e Lisichansk é a destruição da
infraestrutura. “Demolir o máximo possível [de estruturas],
causar danos e então jogar toda a culpa na Federação Russa
─ essa é a sua tarefa. Intimidar a população civil de tal modo
que ela sinta medo por muitos anos”, disse.
─ E aí, como é que vai? ─ encontro Roman, o soldado
cinquentão que está hospedado em nosso hotel, após
voltarmos de não sei onde. Ele dá aquele sorriso com os
dentes encolhidos (sua boca é daquelas meio murchas que
aparentam acolher poucos dentes). Após um breve bate-papo,
ele me convida para comer uns bolinhos e conversar. Alguns
minutos depois, Rafael e eu nos juntamos a ele, que, nesse
interregno, passou no mercado e comprou alguns ingredientes
para cozinhar um pelmeni.
Nos sentamos na sacada do corredor do segundo andar.
Roman começa a servir a refeição, acompanhada de uma
salada de pepino e tomate. Não perdemos a oportunidade de
realizar uma entrevista informal com nosso amigo.
─ O que você fazia antes da guerra?
─ Eu trabalhava na construção civil.
─ E qual a sua cidade?
─ Sou de Slaviansk.
Roman apresenta a garrafa de vodca que comprou para o
nosso almoço. Olho para ela e rapidamente direciono o olhar
para Rafael. É um mau presságio. Isso não vai terminar bem…
─ Um brinde à União Soviética!
─ Eu nasci na União Soviética.
─ Sim, percebi!
─ Vamos falar de futebol ─ sugere o soldado. ─ O futebol
brasileiro é o melhor futebol do planeta. Eu conheço grandes

199
jogadores. Pelé, Ronaldinho, Ronaldo… ─ como é bom ser
brasileiro, não é, Roman?
─ Neymar…
─ Neymar! Claro que eu conheço o Neymar! Eu jogava
futebol antes. Era cidade contra cidade.
─ Para qual time você torce?
─ Para o Shakhtar.
─ Ah, eu conheço o Shakhtar Donetsk!
─ O Vasco é um conhecedor do futebol russo.
─ Eu acompanho o futebol europeu, mas não sei nada
sobre o futebol latinol-americano. Lembro do Garrincha,
jogador brasileiro que mancava de uma perna.
Nós brasileiros temos muitas vantagens sobre outros
povos quando estamos em terras estranhas. Uma das
principais é sermos o país do futebol. Se você é brasileiro e
quer ficar amigo de um soldado russo que talvez tenha matado
alguns inimigos e quase morrido, converse sobre futebol com
ele!
Mas começamos a mudar um pouco de assunto, após
quebrar qualquer gelo que pudesse existir entre nós e Roman.
─ Você foi recrutado pelo exército russo?
─ Não, eu estava em uma milícia. Em 2014, eu era um
simples combatente da milícia. Isso coincide com os meus
interesses. Mas, de qualquer maneira, eu sou pela Rússia. Eu
sou russo de coração ─ diz o russo nascido na Ucrânia. ─
Depois ─ continua ─ eu firmei um contrato.
Roman tem os dedos sujos e um pouco feridos. Suas
orelhas também estão bem sujas. Salta aos meus olhos uma
tatuagem que ele tem no dedo médio da mão esquerda.
─ Conta pra gente alguma história sobre este conflito…
─ Bem, vocês sabem que esta é uma longa história… O
que vocês querem saber? Assim fica mais fácil. Falar sobre
tudo vai levar muito tempo.
Não conseguimos traduzir muito bem as palavras de
Roman, então ele diz:

200
─ Bom, fica para depois…
E ele serve a segunda rodada de vodca. São três goles
grandes em cada dose. Após a segunda dose e o sexto gole,
começamos a ficar bêbados.
─ O que você pretende fazer quando a guerra terminar?
─ Que Deus permita que a guerra acabe logo. Trabalhar.
Há muito o que fazer. Está tudo destruído, as aldeias, as
cidades…
─ Você gosta da Rússia?
─ Claro! Eu vivi muitos anos na Rússia. Estive em muitos
lugares. No norte, no extremo oriente, na taiga [floresta de
pântanos e maior zona paisagística da Rússia, abrangendo 800
quilômetros de extensão entre a Sibéria Ocidental e Oriental ─
NT].
─ Eu amo a Rússia ─ já estou bem “alegre”.
─ A Rússia é um país incomparável. Não há país igual,
pela sua beleza.
─ Eu e Roman estávamos cantando ali no corredor
Bandiera Rossa ─ digo a Rafael.
─ Essa canção me traz lembranças antigas ─ diz Roman.
─ Cantávamos nos acampamentos de pioneiros. Nos
reuníamos antes de assistir a algum filme e cantávamos. E
hoje em dia em todos os destacamentos. Eu gosto muito dessa
canção. Na infância, cantávamos ela com muito entusiasmo.
Então, começamos a cantarolar a música, nós três.

Avanti popolo, alla riscossa


Bandiera rossa, bandiera rossa
Avanti popolo, alla riscossa
Bandiera rossa trionferà

Bandiera rossa trionferà


Bandiera rossa trionferà
Bandiera rossa trionferà
Che viva il comunismo e la libertà

201
─ Urrá!! Uhhh! Iupi!!
Acabada a vodca, o combatente sai rapidinho e volta com
uma garrafa de conhaque, para o meu desespero.
─ É armênio.
Serve a primeira rodada. Roman aparenta estar
completamente sóbrio. Não posso dizer o mesmo sobre mim e
Rafael.
─ Qual é a sua opinião sobre este conflito? ─ questiona
Rafael.
─ Sinceramente, é difícil falar sobre isso. Meus irmãos
[aqui ele se refere aos seus amigos próximos, é como os
russos tratam os amigos ─ NT], muitos deles, eram pessoas
normais que viviam e trabalhavam. Eram pessoas pacíficas
que se transformaram em combatentes, em soldados. Este
conflito é, para mim, particularmente muito pesado porque
muitos bons ucranianos ficaram do outro lado.
─ A Rússia veio libertar o Donbass?
─ A verdade é que o Donbass sempre foi uma modesta
terra russa.
─ Quais são as suas palavras favoritas em russo? ─ com
essa pergunta absolutamente sem sentido, percebo que já
estou ridiculamente bêbado.
─ As minhas palavras favoritas são “glória a Deus” [que
em russo tem o mesmo sentido que “graças a Deus” ─ NT].
─ O que você acha do Brasil?
─ Um país bonito, com um rio admirável. Sempre tive
vontade de pescar no rio Amazonas. Assisti na televisão sobre
a pesca no Amazonas. Peixes que não temos aqui… peixes
que eu nunca tinha visto.
─ A Rússia é muito bonita.
─ Eu fico feliz que vocês tenham gostado.
─ Qual a sua opinião sobre o governo da Ucrânia, sobre
Zelensky?
─ É um ator que não faz o seu trabalho.

202
─ Como os soldados ucranianos tratam os prisioneiros?
Roman serve a segunda rodada do conhaque armênio
antes de responder. Agora corremos o risco de iniciar uma
conversa de anormais e não tenho culpa caso você leia alguma
obscenidade.
─ Quando nós fazemos prisioneiros ucranianos, nós não
os agredimos, que é o que eles fazem quando aprisionam os
nossos. Muitos deles não serão anistiados, como falou o
presidente Putin.
─ Os ucranianos são nazistas?
─ Não sei… em russo isso se chama Nêmesis (deusa
grega da vingança), isso é o que eu posso falar.
─ Como os soldados ucranianos tratam os civis?
─ Nos territórios recém-libertados, as pessoas não têm o
direito nem de ir a um hospital. Eles sempre bombardearam as
nossas cidades, atiraram na população civil com armamento
pesado. Mas isso está relacionado a esses batalhões tipo Azov,
Aidar… O exército ucraniano dispara contra nós e nós
disparamos contra eles.
─ O Batalhão Azov é nazista?
─ Sim. É um batalhão inteiramente nacionalista. Ninguém
sabe de onde eles tiram o dinheiro para a sua existência.
Provavelmente são financiados pelos oligarcas.
─ Os soldados russos tratam bem os ucranianos?
─ Os soldados russos vieram para morrer conosco, pela
nossa liberdade.
─ Você está bem de saúde? ─ estou alegre e admirado
com nosso amigo, essa pergunta foi motivada por uma
preocupação sincera com ele, que é um ser humano que
provoca muita empatia.
─ Sim ─ e dá uma leve risada, como se dissesse “na
medida do possível, veja que tenho 52 anos, estou me tratando
de um ferimento, fumo, me encho de vodca e conhaque…” ─
Estou muito feliz de estar aqui com vocês. Graças a Deus. Eu
jamais imaginei um encontro desses.

203
─ Quando você acha que a guerra vai acabar?
─ O meu desejo é que seja o mais rápido possível.
─ Você vai voltar para o front?
─ Sim, assim que eu estiver curado.
Como um verdadeiro mestre cuca, Roman começa a dar
explicações sobre o preparo do pelmeni, enquanto eu repito
pela terceira vez o delicioso pelmeni e raspo o prato da salada.
Ele também pode ser de peixe (mas geralmente a carne dentro
da massa é de porco ou boi) e é parecido com capeletti. É um
prato de rápido preparo e eu tasco ketchup nele.
─ Vivemos uma época de guerras e revoluções e isso só
vai acabar com o fim do capitalismo ─ reflete o filósofo Rafael,
que nunca vai admitir que estava tão bêbado quanto eu (é que
ele é mais contido).
─ Provavelmente sim ─ responde Roman. ─ Espero que
no meio da burguesia haja pessoas com pensamentos
saudáveis.
─ A vida na União Soviética era boa?
─ O ensino era gratuito. O sistema de saúde era gratuito.
Não havia desemprego. Havia alguns produtos deficitários,
mas a gente vivia com a graça de Deus. É possível dizer que
agora nós temos a oportunidade de reviver a URSS. De certa
forma, essa união da Rússia, Bielorrússia e Ucrânia é a União
Soviética.
─ Vamos brindar! ─ E mais um copo de conhaque para
cada um, pela terceira vez. A situação nos leva a cantarolar
novamente, desta vez A Internacional. Roman em russo,
Rafael e eu em português.

Bem uniii…iiidos façaaamos


Nesta luuta finaaaaaaaal
Uma teeerra sem aa…amos
A In…terna…cionaaaaal!

Время битвы настало (Vremja bitvy nastalo)

204
Все сплотимся на бой. (Vse splotimsja na boj.)
В Интернационале (V Internacionale)
Сольётся род людской! (Solʹëtsja rod ljudskoj!)

─ Bravo! Bravo! Bravíssimo!


─ As praias do Brasil são lindas ─ feito um retardado,
corto o barato na melhor parte da conversa, enquanto Rafael
derruba seu celular no chão e eu quase deito na mesa.
─ Gostaria de jogar futebol na praia ─ comenta Roman,
solidarizando-se comigo.
─ O seu país é um exemplo para o Brasil.
─ Era preciso que, no lugar da guerra, houvesse trabalho.
Seria ainda mais bonito.
Então faz uma breve pausa.
─ Três dias atrás, eu nem imaginava que este encontro
poderia acontecer. Mas agora eu estou muito feliz, conversar
com vocês gera um sentimento muito bom.
─ Onde você estava?
─ Na guerra, em Svetlodarsk.
─ Como? Severodonetsk?
─ Não, em Severodonetsk nós fizemos um bloqueio, um
cerco.
─ Como foi a batalha?
─ Estava tudo muito destruído. Já não havia mais quase
nenhuma população civil. Eu vi apenas três ou quatro pessoas
─ Roman demonstra que também sentiu o golpe da bebida,
comendo palavras e um pouco grogue.
Por algum motivo, começo a citar nomes de grandes
líderes da América Latina, como Hugo Chávez.
─ Salvador Allende ─ completa o bebum russo. ─
Lembro-me dele na minha infância, quando morreu defendendo
o palácio presidencial.
─ Os russos bebem muito!
─ Eu imagino que os outros não bebem como nós.

205
(Com dois capengas esborrachados em sua frente, já
com a mente toda embaralhada, não é difícil imaginar isso
mesmo… prova disso, é que retomamos a conversa sobre
futebol!)
─ Eu lembro quando, em 1986, nas quartas de final da
Liga dos Campeões da Europa, o Porto jogou contra o Dínamo
de Kiev. Nós acabamos perdendo.
Bêbado, perdi a oportunidade de questionar: “mas você
não torce pro rival do Dínamo, o Shakhtar?”
Roman lembra de Lev Yashin. Diz que foi um dos
melhores do mundo em sua época.
─ Ele foi o melhor goleiro da história ─ afirmo, uma vez
que isso é reconhecido por todas as autoridades futebolísticas.
─ Eu não sou especialista, não posso afirmar que sim ─
aponta, modesto.
─ Uma lenda.
─ Assim como o Pelé, três vezes campeão do mundo.
Ninguém conseguiu fazer a mesma coisa.
Diz que gosta do campeonato espanhol e sempre assiste
Real Madri vs. Barcelona. Parece que os bombardeios de
publicidade do futebol europeu estão surtindo efeito nesta
região…
─ A União Soviética foi campeã da Europa em 1988 ─
mais uma prova de que já estou em outro mundo, porque eu
sei perfeitamente que o único título soviético foi em 1960.
─ Ganhou a prata. Perdeu para a Holanda ─ me corrige.
─ A seleção soviética era muito boa.
─ A do Brasil era melhor ─ admite, mostrando que os
russos não são apenas modestos mas também que sabem
reconhecer a superioridade do Brasil no futebol, ao contrário de
outros…
Roman continua demonstrando seus conhecimentos
futebolísticos:
─ Eu não me lembro qual foi o famoso jogador brasileiro
que disse que “o adversário marca contra nós os golpes que

206
consegue, mas nós marcamos os gols que são necessários”
[foi Pelé, após amistoso em Moscou, em 1965 ─ NT]
─ Bom, Roman…
─ É melhor a gente ficar por aqui, porque amanhã eu terei
um dia pesado. ─ Roman provavelmente voltará ao hospital
para mais alguns exames.
─ Quando você volta para o front?
─ Dentro de três a cinco dias. Preciso fazer uma operação
antes. Ouvi que o meu pessoal já está na linha de frente. Eu
vou lutar em Lisichansk.
Nos despedimos de Roman, com quem combinamos de
nos ver ao menos mais uma vez antes de ele partir. Voltamos
tropegamente para o nosso quarto para fazer a única coisa que
conseguiríamos após essa bebedeira: dormir.
Mas não passam quinze minutos e toca o telefone.
Nossos amigos do Ministério das Relações Exteriores dizem
que em meia hora passarão no hotel para nos levar a uma
instalação do Ministério do Interior, onde receberemos nossas
credenciais.
E lá vamos nós, bêbados, com Maria e Andrei, nossos
jovens amigos da chancelaria.
Só havia mulher naquele recinto. A maioria delas estava
fardada. Elas estão no trabalho administrativo, tanto da polícia
como da milícia, enquanto os homens estão no front. Ficamos
algumas horas no local, esperando a liberação dos nossos
documentos. Não aguento e, na frente das oficiais, tiro um
cochilo sentado na minha cadeira.
─ ZzZzZ…zZzZzZ…zZzZzZz…
Finalmente, já no início da noite, recebemos as tão
aguardadas credenciais de jornalistas, que (em teoria) eram a
nossa carta branca para trabalhar livremente em Lugansk.

207
208
Capítulo VII …

Papai

─ Aqui, em toda esta zona, todos que falarem sobre os


nazistas não estarão se referindo ao Batalhão Azov, mas sim
principalmente ao Batalhão Aidar. Aidar é o nome de uma
localidade. Existe gente do Batalhão Azov aqui, mas poucos.
Tem mais do Batalhão Aidar.
Andrea é um italiano meio bad boy, que fala alto, se
impõe, gesticula, brinca e não tem muita paciência. Em
resumo, igual a todos os italianos. Nos encontramos com ele
próximo ao Khlebnoye Mesto. Ele nos levará de carro a
Rubizhne. Na verdade, levará Gianni e nós iremos de
agregados. O careca Gianni, por sua vez, é enviado especial
do Il Giornale e visitara a Crimeia e Melitopol antes de ir para
Donetsk, em março. Seguimos uma van da milícia, que leva
ajuda humanitária aos moradores de Rubizhne, que acaba de
ser liberada da ocupação ucraniana. Em seu pára-brisa
traseiro, o código ГРУЗ 200, que identifica os furgões
responsáveis por trazer os corpos das vítimas nas cidades
recém-libertadas. Neste momento, a carroça integrada à van
leva apenas uma lona que a cobre. Na volta de Rubizhne para
Lugansk, voltaremos dentro desta van, junto aos milicianos. A
carroça estará cheia de corpos logo atrás de nós.
─ Vamos agora em direção à primeira cidadezinha
liberada que encontramos. Chama-se Schastia. Ela é
importante porque lá existe a central elétrica que gera energia
para Lugansk. Em russo, a palavra “schastia” significa

209
“felicidade” ─ leve ironia para uma cidade que, durante oito
anos, esteve mergulhada na tristeza da guerra.
─ Como se chama a cidade? ─ pergunta novamente
Gianni.
─ Schastia. Se quiser escrever… foi a primeira cidade
liberada.
─ Qual a distância para Rubizhne?
─ São 86 quilômetros. Mas com postos de fiscalização.
Uma merda de estrada.
─ Qual o nome certo de Rubizhne? ─ aproveito para tirar
uma dúvida.
─ É Rubezhnoye. Não sei em italiano, mas em russo é
Rubezhnoye e em ucraniano Rubizhne, porque o “o” se torna
“i”. Foi conquistada em…
─ Em 11 de maio ─ completa Gianni.
Passamos por uma ponte que continua interditada após
um ataque a bomba ocorrido há um ano e meio.
─ Tenho alguns amigos que combatiam naquele batalhão
e eu os conheço. Faz muito tempo que eles… metade da
cidade sempre esteve com eles, mas não conseguiam “limpar”
a periferia, porque estavam… eu fiz um trabalho bastante…
Schastia foi liberada apenas quatro dias após o início da
operação especial russa. Ela fica a 31 quilômetros de Lugansk.
Não houve grande dificuldade para retomá-la. Os soldados da
milícia popular trabalharam sozinhos na libertação da cidade.
─ Os russos entraram pelo norte e, em seguida,
uniram-se aos soldados da República de Lugansk. Vocês estão
com os seus passaportes?
─ Sim.
─ E com os credenciamentos também?
─ Sim.
Os dois italianos continuam conversando entre si.
─ Não. Vamos ver. Se disserem que é… acho que sim,
eles têm… Antes de chegar lá, vamos parar… até porque

210
precisamos de um… esses não são militares, são amigos de
amigos que…
Andrea tem várias tatuagens nas mãos. Começo a
deduzir que ele saiu da Itália para se juntar à milícia e lutar
contra os ucranianos no início da guerra. É fluente em russo e
vive em Lugansk há oito anos.
─ Aqui começava a Ucrânia, antes da operação especial.
─ Começava em Schastia?
─ Sim. Schastia. Do ponto de vista administrativo,
Schastia faz parte da cidade de Lugansk. Está dentro do
município de Lugansk. Não é uma cidade separada, é um
bairro de Lugansk.
Cruzamos a ponte sobre o rio Donets. Essa região
representa 30% da produção de grãos do Donbass e nos
campos vemos cataventos para a produção de energia eólica.
─ Em quanto tempo você acha que a RPL será libertada?
─ perguntamos.
─ Talvez em um mês ou um mês e meio. Porque, quando
fecharem o cerco, eles vão ter de se retirar. Acredito que não
travarão uma batalha como em Mariupol. Acho que vão se
retirar. Mas de Slaviansk eles não vão se retirar. E vão ser
bombardeados até o fim.
─ Difícil?
─ Daqui, na minha opinião, eles vão se retirar. De lá, não.
Porque aqui não existe nenhuma possibilidade para eles. Se
forem cercados, acabou para eles. Lá, já na República de
Donetsk, talvez eles possam receber reforços por trás. Mas, de
qualquer modo, não vão conseguir fechá-los por trás. Mas aqui,
se ficarem cercados…
Começamos a nos aproximar de Dmytreevka.
─ De fato, essas zonas são facilmente… ninguém vai ter
problemas de ambientação… eles falam russo… os únicos
descontentes talvez sejam aqueles que recebiam privilégios da
velha administração. Não mudou nada. Em vez de vender as
coisas em ucraniano, vão vender em russo. Há sempre

211
mercado para o trigo e os outros produtos vendem… ou seja,
as coisas permanecem como eram.
Andrea começa a explicar as diferenças no idioma de
região para região dentro da Ucrânia. No leste, a maioria da
população fala russo. No oeste, a maioria fala galiciano ─ da
antiga região polonesa da Galícia. No centro-norte, onde fica
Kiev, falam uma mistura de russo com ucraniano.
─ Do galiciano, não entendo nem uma palavra. É
ucraniano misturado com polonês. Já as regiões ao norte de
Lugansk, elas não falam russo. Falam surjik, uma mistura entre
russo e ucraniano.
─ O governo da Ucrânia está suprimindo o idioma russo,
não?
─ Sim, desde 2014. Esse foi o erro deles. Se não
tivessem feito essa lei, provavelmente ninguém teria se
revoltado. Puseram o ucraniano como língua oficial e proibiram
o russo como língua oficial. O passo seguinte foi, nos anos
posteriores, tirar o russo das escolas. E não foi só nas escolas.
Nessa zona, isso é um problema. É como se você fosse
obrigado a falar espanhol. E o nível de instrução diminuiu
muito. O ucraniano é uma língua que precisa ser aprendida,
pois não é a língua materna dessas pessoas. Se não tivessem
proibido o russo em 2014, não teriam tido problemas. Esse foi
o estopim que desencadeou tudo. No Donbass, os jovens
sabiam falar, mas os velhos que vieram da Rússia não
conheciam nada do idioma ucraniano. E quando é preciso ir a
um órgão administrativo… imagine que antigamente havia o
passaporte em russo-ucraniano. Mas esse foi um pedido dos
galicianos, que, na prática, é aquele grupo que tomou o poder
em Kiev. Embora Poroshenko e Zelensky não sejam da Galícia,
os ucranianos ocidentais são, digamos, o braço armado desse
novo… novo curso. São aqueles que controlavam o exército e,
mais do que o exército, os batalhões paramilitares. São
aqueles que controlavam a situação em campo. Se não
tivessem proibido o russo, não teriam acontecido revoltas.

212
Talvez tivesse acontecido alguma coisa, mas não na proporção
em que está acontecendo.
Chegamos a Novoaidar, onde vemos prédios enormes
destruídos pelos bombardeios. Na estrada, tanques e
caminhões militares vão para um lado e outro.
─ Esses são os russos?
─ Sim. O exército russo.
Nosso carro passa em frente a uma igreja ortodoxa e
Andrea se benze como um cristão ortodoxo, com três dedos
juntos e tocando primeiro o ombro direito e depois o esquerdo.
─ Assim como os russos colocam pessoas do Donbass
em postos-chave para controlar os territórios tomados dos
ucranianos, os galicianos fizeram o mesmo na Ucrânia:
puseram galicianos como chefes de todas as administrações.
Paramos o carro para comer alguma coisa em uma
lanchonete na beira da estrada. Há quase um comboio de
carros junto conosco, todos com a missão de levar ajuda
humanitária a Rubizhnoye. Eis que sai da “kombi” da milícia o
nosso sempre surpreendente Ilya. Vemos um dos carros todo
furado com buracos de balas.
─ Você era combatente? ─ preciso confirmar essa
dedução com Andrea.
─ Sim, lutei em 2014. Mas eu não sou comunista.
─ É o quê?
─ Monarquista.
Então faz uma saudação reverenciando o presidente
Putin, como se este fosse um novo czar.
─ Vladimir Vladimirovich! ─ exclama, orgulhoso.
Continuamos na estrada e entramos em Staroborsk, cuja
fachada de boas-vindas para quem está chegando à cidade
está, neste exato momento, sendo pintada de azul e vermelho
por cima do azul e amarelo da bandeira ucraniana. As
construções da região estão completamente destruídas. Ela foi
atingida pela artilharia ucraniana em março. Paramos em um
hospital, onde trocamos de carro, pois o de Andrea é pequeno

213
e velho demais para resistir ao caminho esburacado e perigoso
que iremos trilhar para chegar ao nosso destino. Vestimos os
coletes à prova de balas. Ilya me empresta o seu. Antes, o
pessoal do Ministério das Relações Exteriores nos havia dito
que ganharíamos coletes de imprensa. Esses são dos
combatentes. Espero não cruzar com nenhum ucraniano, caso
contrário…
Entro no carro de Anna Soroka, que coloca a mão na
massa e separa os mantimentos a serem enviados para os
habitantes de Rubizhnoye. Ela dirige, desviando a todo o
momento de buracos e elevações na estrada causados por
bombas ─ parece até que estamos naqueles brinquedos dos
parques de diversão, de onde você sai zonzo e quase
vomitando (e mesmo assim, a nossa motorista está sem o cinto
de segurança, como uma verdadeira cidadã de Lugansk!). Em
determinado momento, sai da via principal, passa por trás de
árvores e arbustos e entra em uma via de terra, alternativa, no
meio do mato, utilizada com o objetivo de se esconder da
artilharia ucraniana. Cerca de uma semana antes, uma igreja
foi atingida e o padre e um dos fiéis morreram. No horizonte, é
possível ver sinais de mísseis. Ouvimos estrondos: são
explosões de bombas. Ela diz que essa região ainda é
perigosa para os civis, porque não há abrigos onde se
esconder. Estamos a 45 quilômetros de Severodonetsk, onde
os russos iniciam o cerco para tomá-la dos militares
ucranianos.
─ As pessoas morrem nas ruas e são enterradas lá
mesmo ─ diz Anna. Ela abre as janelas do carro e me pergunta
se consigo ouvir o barulho das bombas. O rádio toca I’m Yours,
de Jason Mraz.
─ Dinheiro é um grande problema para nós.
Dia sim, dia não, a vice-ministra das Relações Exteriores
da RPL está na estrada transportando ajuda humanitária para
os territórios liberados. Ela sempre foi uma antifascista. Antes
de trabalhar no Ministério, ajudava o projeto do memorial das

214
vítimas do genocídio. É uma pessoa comum que agora ocupa
um alto cargo governamental. Todos os membros do governo
da RPL são assim. Não há burocratas de carreira. Um governo
da gente comum de ideias socialistas e antifascistas.
Paramos na cidade de Nova Astrakhan. Também leva
consigo a marca da guerra. Um prédio dos correios não está
mais em funcionamento, pois um mês atrás foi destruído pelos
bombardeios. Do outro lado da rua, o hospital da cidade é
guardado por quatro soldados. Ele também está com o telhado,
janelas e fachada destruídos. Dois funcionários do hospital e
cinco pacientes morreram quando os Tochka-U caíram sobre o
local. É possível ver os buracos das explosões no chão, e ao
lado ainda estão os estilhaços dos foguetes.
Em Varvaravka, ao lado, entramos no terreno de uma
igreja. Seus muros têm marcas de disparos, com grandes
buracos. O chão está rachado. As casas na rua também foram
alvo dos ataques de março e abril. Ao lado da igreja, uma
escola infantil com as janelas quebradas e as paredes
metralhadas. A igreja tem uma cozinha que fica do lado de
fora. Nela, refugiados de Rubizhnoye comiam e descansavam
quando uma bomba caiu sobre eles. A cozinha está totalmente
destroçada. Ainda ouvimos o som das bombas caindo por
perto.
Finalmente chegamos a Rubizhnoye, cidade que tinha
400 mil habitantes antes de ser reduzida pela guerra. Seus
prédios demonstram claros sinais de deterioração devido à
batalha. Vemos a bandeira soviética em postos de controle e
em tanques que passeiam pela cidade. Nossa caravana para
em frente a um conjunto habitacional. Os moradores se
aglomeram e formam filas para receber a ajuda humanitária do
governo. Com certeza há mais de uma centena de pessoas.
Entre os milicianos que distribuem os produtos estão Vladimir,
de 40 anos, e Yuri, de 19. São pai e filho. Vladimir tem servido
no front há quatro anos e agora conta com a ajuda de seu
herdeiro. Duas gerações, sangue do mesmo sangue,

215
sacrificam esse sangue para salvar seus conterrâneos. Vladimir
é uma inspiração para Yuri e Yuri é um orgulho para Vladimir.
Os porões deste edifício são usados como abrigo pelos
50 moradores. Mas já não há luz. Nem água. Nem gás. Eles
têm de improvisar fogões à lenha. Tudo isso, em pleno inverno.
Mesmo agora, já na primavera, ainda está frio. Todos estão de
agasalho. Ou melhor, todas. Porque só existem mulheres aqui,
basicamente. Os homens estão no campo de batalha. Poucos
restaram e são menores de idade e idosos, em sua maioria.
Aqui, assim como em todo o Donbass, quem mais sofre é o
setor mais frágil da sociedade: as mulheres, os idosos e as
crianças. São as principais vítimas dos bombardeios e de suas
consequências. São os que passam frio, fome e sede. Quando
estou subindo as escadas do porão, no breu, uma velha
senhora agarra o meu braço. Está toda encapotada, apoia-se
em uma bengala e tem um gorro vermelho sobre a cabeça.
Parece-se com um gnomo. Diz que é comunista e eu respondo
que também sou. Ela e suas vizinhas começam a discutir.
─ Uma conserva, uma lata de peixe… ─ reclama uma
vizinha, igualmente velha.
─ Como não dão nada? ─ rebate a velhinha de gorro
vermelho. ─ Macarrão, arroz, trigo sarraceno…
─ Eu não posso comer macarrão. Acalme-se!
A outra silencia e começa a prestar atenção em suas
reclamações.
─ Falam que estão dando 25 quilos, mas para uma
pessoa poder viver… não dá para uma semana. Uma lata de
carne, uma pequena conserva de peixe e arroz…
─ Meio quilo! ─ protesta uma terceira vizinha. A de gorro
vermelho apenas observa, segurando-se na bengala, com a
cabeça meio abaixada e os olhos arregalados, esboçando uma
leve feição de sarcasmo.
─ Mas o arroz me deram só agora ─ continua a
reclamona, após ser interrompida. ─ E antes haviam me dado
roshki [um tipo de massa ─ NT]. Mas eu não posso comer

216
massa, o meu açúcar sobe. E não estou culpando ninguém. Eu
não sei, gente… Que seja alguma coisa! Nós estamos
morrendo de fome, as pessoas estão morrendo de fome. Olhe
para mim, eu pesava 95 kg!
─ Qual magra o quê? ─ irrita-se a senhora de gorro, com
seus dentes de prata. ─ Por que você está xingando? Não nos
envergonhe!
Ela se aproxima de mim, puxa meu braço novamente e
cochicha:
─ É por causa dessas que eu passo fome. Eu estou pela
Rússia. Somente pela Rússia. Eu estou comendo. Essas não
acreditam. Elas nos insultam o tempo todo.
Há alguns soldados russos dentro do prédio. Vejo
também um checheno, com o bordado da bandeira da
república autônoma em seu boné.
Do lado de fora, há covas das vítimas dos bombardeios.
Túmulos improvisados pelos próprios moradores. Buracos
onde os mortos foram jogados e um pouco de terra os cobriu.
Pequenas cruzes de madeira estão encravadas sobre a terra,
algumas com plaquinhas de papelão onde se lê os nomes das
vítimas. E pronto. Assim estão dois corpos enterrados à beira
de uma rua, próximos àquele prédio. Vitaliy Vladimirovich
Krekin (20 anos) e Dmitriy Ruslanovich Lemish (47) estavam
andando pelas ruas de Rubizhnoye quando foram atacados
pelo exército ucraniano em 26 de março. Receberam tiros nas
costas e no peito. Os estilhaços dos mísseis permanecem no
local. Eram civis, não militares. Um deles levava amarrado em
seu braço um pano branco para identificá-lo diante dos
militares russos que ele era um civil que não queria encrenca.
Hoje, seus corpos estão sendo exumados pelos tripulantes
daquela van para serem devidamente enterrados.
Me dirijo junto com Anna e Ilya a um hospital. Era o
hospital central de Rubizhnoye.

217
─ As bombas o atingiram por todos os lados ─ diz Ilya. ─
Os tanques ucranianos chegaram e bombardearam. Atingiram
a farmácia e a maternidade, também.
Era um hospital muito bem arborizado, com jardins,
banquinhos e uma área de descanso grande. Agora as árvores
estão caídas, mortas no chão. O chão está rachado e furado.
Ilya me mostra um projétil de 120 mm cravado no solo, que
ainda não explodiu. Esse tipo de coisa se espalha por
Rubizhnoye e por todas as cidades onde os ucranianos tiveram
de evacuar. Os civis que ficaram ainda correm risco de vida por
causa disso. Estão espalhados pelo chão os destroços dos
projéteis.
─ Todas as pessoas com problemas vinham para cá ─
conta Ilya, que me apresenta o diretor do hospital.
─ Foram 45 dias de bombardeio ininterrupto a 300 metros
daqui. Cem pessoas morreram ─ denuncia o responsável.
Deixamos o hospital e cruzamos a cidade. Passamos por
novas áreas residenciais, onde os moradores penduraram
placas nas janelas de seus apartamentos. Elas dizem “Há
crianças, mulheres e idosos aqui. Não atire!”.
Mas os ucranianos atiraram.
Hospitais. Escolas. Prédios. Casas. Padarias. Farmácias.
Ginásios esportivos. A sede da companhia de trem. Árvores.
Carros. Não foi deixada pedra sobre pedra. Nunca vi nada
parecido com isso na minha vida. Neste ponto, entramos nos
bairros residenciais da periferia da cidade, onde as pessoas
moram em casas, não em prédios. A destruição continua, ela
não acaba. Passamos alguns minutos mais dentro do carro,
nos deslocando, e tudo está em ruínas. Encontramos na rua
uma mulher com seus quatro filhos, sentada na calçada, com
um cachorro os cheirando. Recebem algumas maçãs verdes,
batatas e leite em pó. Entram no nosso carro e os levamos
para sua casa.
Katya tem 34 anos. Seus filhos são Diana, de oito, Kiril,
de seis, Sofia, de dois, e Tatiana, de um aninho. O agasalho de

218
Sofia está todo sujo no peito, assim como seu rosto e suas
mãos. Ela e Tatiana são as crianças mais lindas que já vi.
Cabelos loiros, pele quase rosa, braços rechonchudos,
bochechas cheias e lábios vermelhos.
Mas onde está seu pai?
─ Mataram o meu marido às 9 horas da manhã do dia 13
de março. Caminhávamos juntos. Eu fui atingida por
fragmentos de morteiro. Veja… ─ Katya me mostra as marcas
na garganta e no braço esquerdo, enquanto segura Tatiana no
colo. Diz que também foi atingida na perna. Estavam voltando
do mercado. Chamava-se Andrei. Tinha 42 anos.
─ Ele morreu na entrada do prédio.
Os vizinhos ucranianos que moravam no mesmo prédio
de Katya jogaram o cadáver de Andrei fora.
─ Durante duas semanas ninguém pôde enterrá-lo. Os
soldados não deram bola.
─ Ucranianos?
─ Ah, eles eram da milícia de Lugansk. Mas eu não os
culpo. Estavam ocorrendo bombardeios naquele momento ─
conta a mãe, enquanto coloca Tatiana no chão. Ela se
aproxima de Sofia e tenta pegar a sua maçã. A irmã rejeita a
investida, levanta e as duas olham para mim, sorrindo.
─ As crianças passaram pelo corpo do pai. Eu cobri os
seus olhos. Nos tiraram dali e nos ajudaram, mas com má
vontade. ─ Enquanto isso, Tatiana faz uma nova tentativa de
roubo da maçã, mas Sofia se esquiva mais uma vez e dá uma
mordida. A menor perde a paciência e agarra a mais velha,
ameaçando um choro.
A mãe me convida para entrar na sala de casa. É uma
casa térrea de um bom tamanho, começando com um corredor
na entrada, ao lado do portão um espaço para manter os
cachorros presos, a porta da sala no final do corredor, cozinha,
quartos e banheiro, todos relativamente espaçosos.

219
─ Os soldados de Lugansk me deram esta casa. Tem
uma cama ali, vamos ter de consertar tudo. Estou limpando
isso tudo. Água, só lá fora.
Diana passa pela sala. A mãe pede para que ela também
dê um depoimento.
─ Fala. Vem cá. Não quer falar…
Ela tem um forte sotaque interiorano.
─ Eu cozinho na fogueira. Os vizinhos ajudam. Ninguém
liga para nós. “Se virem! Peçam comida!”. Eu não vou pedir
nada, nunca. Melhor pedir para vocês…
Tem cabelos negros até os ombros. Sua pele é muito
branca. Possui uma fina pelugem no bigode e olhos azuis.
─ Não filme mais, se não eu vou chorar.
Saio de volta ao corredor. Vejo Tatiana sentada no chão e
Sofia caminha até ela. Parece entregar-lhe um pedaço de sua
maçã. Anna e Ilya estão depositando a ajuda humanitária para
a família de Katya. Conto oito galões de água com seis litros
em cada um, chocolate, macarrão, açúcar, arroz, carne, peixe,
feijão enlatado, suco, bolacha, fraldas, sapatos, roupa e
remédios. Ilya me diz que isso é distribuído até uma vez por
semana em cada casa.
Vou para a rua a fim de apreciar, horrorizado, a
destruição. Do local onde estamos, são cerca de dez
quilômetros para Severodonetsk, ao sul, onde a guerra ainda
está a todo o vapor. Ou a todo o pavor. A partir da nossa
região, a artilharia russa operada pelos milicianos de Lugansk
dispara mísseis contra as posições ucranianas. Posso ouvir o
som violento dos disparos. De algum modo, esse som é
amplificado em minha cabeça e o barulho se torna insuportável
quando vejo aquelas casas destruídas, em pedaços,
esburacadas, metralhadas, bombardeadas, os entulhos caindo.
Posso ouvir o barulho dos projéteis ucranianos cruzando o céu
e explodindo sobre a cabeça daquelas pessoas inocentes que
morreram exatamente aqui há poucas semanas.
─ Cabum!

220
As portas de uma casa estão furadas de balas. Posso
ouvir os gritos das idosas implorando para os soldados não
atirarem e rezando a Deus por suas vidas e as dos seus netos.
─ Santo Deus, Santo Poderoso, Santo Imortal. Tem
piedade de nós.
Uma espiral de selvageria. Uma onda de insanidade. De
delírio. De demência. Nada faz sentido. Ouço as crianças e
bebês chorando desesperados. Vejo um recém-nascido
cercado por lobos selvagens.
─ Buááááá!
─ Mama! Mama!
─ Santo Deus, Santo Poderoso, Santo Imortal. Tem
piedade de nós.
Vejo um galho negro pingando sangue. Vejo um quarto
cheio de homens com seus martelos sangrando.
─ Entre, batiuchka.
─ Cale a boca!
─ Santo Deus, Santo Poderoso, Santo Imortal. Tem
piedade de nós.
Vejo uma escada branca toda coberta de água. Vejo dez
mil oradores cujas línguas estão cortadas. Vejo armas e
espadas afiadas nos pescoços de crianças.
─ Senhor, tem piedade.
─ Te divertes em atormentá-la.
Consigo escutar a batida de seus corações. Estão
disparados. Apuro ainda mais a audição para escutar a batida
do coração dos soldados.
Mas não consigo ouvir nada.
─ Senhor, tem piedade.
─ Plow!
Do outro lado da rua, há uma base de soldados russos.
Já estou relativamente longe da casa de Katya. A destruição
não cessa.
─ Senhor, tem piedade.

221
─ Eu disse a eles para virem no domingo, e até lá não
incomodá-lo ou se incomodar por nada.
─ Clash!
Ilya me dirá depois que cerca de dois mil civis morreram
em Rubizhnoye. Em sua retirada da cidade, o exército
ucraniano continuou disparando contra eles. No dia 24 de julho,
a artilharia ucraniana voltará a bombardear a cidade, matando
quatro civis.
─ Perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós
perdoamos a quem nos tem ofendido.
Ouço mil socorristas cujas mãos estão em brasa. Ouço
dez mil sussurrando e ninguém os ouvindo. Ouço uma pessoa
morrer de fome, e ouço muitas pessoas rindo. Ouço a canção
de um poeta que morreu numa sarjeta. Ouço o som de um
palhaço que chorava no beco. Uma dor aguda ataca o meu
ouvido direito.
─ Meu bom senhor, lembre-se de um pobre órfão!
─ Dá-me um sono calmo e pacífico, envia-me o anjo da
guarda para me proteger e amparar contra todo o mal.
─ Trátrátrátrátrátrátrá!
E foi uma forte, uma forte, uma forte, uma forte, uma forte
chuva de bombas e balas e sangue e lágrimas a que caiu aqui.
Ilya vem me procurar e me dá uma bronca.
─ Eu preciso ficar de olho em você. Aqui é perigoso, pode
ser bombardeado.
Na volta para a casa de Katya, encontro Tatiana sozinha
no cruzamento de sua rua. A criança de um aninho parece
pensativa. No que estará pensando? Ela não expressa nada.
Papai foi para o céu. É uma filha da guerra. Ou melhor, uma
filha do genocídio. Parece perdida e não sabe para onde ir.
Qual destino a espera? Eu me aproximo. Ela olha para mim,
sem nenhuma expressão. Ao fundo, as casas vizinhas
destruídas. Aponto a câmera e tiro uma foto sua que, como
todas as fotos, não é capaz de refletir aquele momento. Logo

222
em seguida, Tatiana se vira e olha o horizonte, em direção a
Severodonetsk. Em direção à guerra.

223
224
Capítulo VIII …

Rodolfo

Roman, Andrea e os soldados no Chelsea são amostras da


realidade da mobilização das forças do Donbass e da operação
russa. Dentro de algumas semanas, Tatiana Vladimirskaya, do
grupo Grenada e do Comitê Russo de Cooperação com a
América Latina, dirá as seguintes palavras:
─ A Rússia está ajudando Donetsk e Lugansk a levantar a
bandeira vermelha e a força mais importante que está levando
ajuda humanitária russa ao Donbass é a parte que quer
levantar a bandeira vermelha. No Donbass, as pessoas querem
e estão levantando a bandeira vermelha. A maioria dos
militares russos que estão lá não é comunista, mas antifascista.
Na Europa, o fascismo se levantou e isso fez com que as
diferentes forças políticas e ideológicas da Rússia se unissem
contra isso e a RPD e a RPL estão na frente de batalha contra
o fascismo e o imperialismo.
Sim, vemos na Rússia aquilo que muito bem pode ser
uma tendência no conjunto dos países oprimidos: uma união
nacional de diversos setores da sociedade contra o
imperialismo. Pessoas tanto de esquerda como
autoproclamadas de direita. Há um setor na Rússia que é
conservador nos costumes, contra muitos dos direitos
individuais, religioso e até mesmo ideologicamente
anticomunista. Mas mesmo nesse setor há uma defesa da
União Soviética, como entre os membros do Movimento de
Libertação Nacional e os seguidores do filósofo Alexander
Dugin. Em comum, a luta fundamental da nossa época: aquela

225
contra a dominação imperialista, resultado da principal
contradição do regime capitalista em sua “fase superior”, como
disse Lênin, a contradição entre os países de capitalismo
atrasado, oprimidos, e os países de capitalismo desenvolvido,
opressores. Esse tipo de movimento já foi visto em outros
momentos, como na Revolução Cubana, por exemplo, tanto é
que ela não foi liderada pelos comunistas e, corroborando a
tese trotskista da revolução permanente, começou como uma
revolução de libertação nacional para depois ser declarada
como revolução socialista. Mas mesmo nos países
desenvolvidos estamos vendo um movimento semelhante, de
amplos setores sociais com as mais diferentes ideologias se
rebelando contra o “sistema”.
Desde 2014, esse movimento é visto no Donbass. A
influência dos monarquistas é notória nos símbolos das
repúblicas populares de Donetsk e Lugansk, com a águia de
duas cabeças. Quando a revolta armada estourou, oito anos
atrás, muitos monarquistas russos, ucranianos e de outras
nações se voluntariaram para combater ao lado daquele povo,
como foi o caso de Andrea. Ao mesmo tempo, adotou-se o
nome oficial de “República Popular” para esses dois Estados,
uma clara influência comunista. E, o mais importante: a
economia foi fundamentalmente nacionalizada e o Estado
colocado sob o controle popular. Sobre isso, Lênin escreveu
que

Porque pensar que a revolução social é concebível sem


insurreições das nações pequenas nas colônias e na
Europa, sem explosões revolucionárias de uma parte da
pequena burguesia, com todos os seus preconceitos, sem
o movimento das massas proletárias e semiproletárias
inconscientes (...) pensar assim significa abdicar da
revolução social. Em um local se pensa, pelo visto, em
formar um exército e se diz: “Vamos pelo socialismo”; em
outro local, forma-se outro exército e se proclama: “Vamos
pelo imperialismo” e isso será a revolução social! (...)

226
Quem espera a revolução social “pura” jamais a verá. Será
um revolucionário apenas pelas palavras, que não
compreende a verdadeira revolução. A revolução russa de
1905 foi democrático-burguesa. Contou com uma série de
batalhas de todas as classes, grupos e elementos
descontentes da população. Entre eles, havia massas com
os preconceitos mais selvagens, com os objetivos de luta
mais confusos e fantásticos; havia grupinhos que pegaram
dinheiro japonês, havia especuladores e aventureiros, etc.
(...) A revolução socialista na Europa não pode ser outra
coisa senão uma explosão da luta de massas de todos e
cada um dos oprimidos e descontentes. Nela, participarão
inevitavelmente partes da pequena burguesia e dos
operários atrasados ─ sem essa participação não é
possível uma luta de massas, não é possível nenhuma
revolução ─, que contribuirão com o movimento, também
de modo inevitável, seus preconceitos, suas fantasias
reacionárias, suas debilidades e seus erros.

Neste momento, algumas estimativas dão conta de que


há entre oito e 15 mil soldados ucranianos na região de
Severodonetsk. Os militares têm colocado famílias em
cativeiro, ao lado de minas e munições, nos arredores da
cidade. Ontem, as forças armadas da Ucrânia estavam
defendendo as suas imediações, mas hoje já tiveram de recuar
para dentro da cidade. Mais uma vez, utilizam prédios
residenciais para se esconder dos bombardeios russos e
transformam civis em escudos humanos. O exército russo
adotou uma nova tática, chamada de caldeirão, dividindo as
forças ucranianas para facilitar o seu cerco, captura e rendição.
Serguei Shoigu, ministro da Defesa de Vladimir Putin, disse
que a República Popular de Lugansk está próxima de ser
totalmente liberada.
A dor no ouvido torna-se cada vez mais aguda. Tento
dormir de noite, mas é impossível. Tomo coragem e, no meio
da noite, saio do quarto, atravesso o corredor muito mal
iluminado, desço as escadas, escuras como breu. Sinto que

227
estou sendo vigiado e perseguido pela boneca assassina, com
seu vestido colorido e seu olhar penetrante. Não vou até o
saguão para conferir se ela não está em seu lugar. Entro na
sala da recepcionista e explico a ela a minha situação. Me dá
um remédio para pingar no ouvido, e um algodão.
─ Isso irá curá-lo.
Consigo dormir, finalmente. A dor diminuiu. Mas, no dia
seguinte, ela volta. E, por dois ou três dias, mergulho
madrugada adentro, acompanhado daquela dor incessante,
que não me deixava em paz por um minuto sequer.
Posteriormente, ouvirei de uns três amigos meus que leram a
respeito do meu problema que essa dor é a mais forte que um
ser humano pode sentir. A verdade é que, em mais de uma
ocasião, eu queria ter nas minhas mãos uma estaca para poder
martelá-la até o fundo do meu ouvido, como se isso fosse parar
a dor.
Começo a ter a impressão de que minha orelha direita, de
uma hora para outra, havia ficado dormente. Eis que, na
madrugada de sábado para domingo, dois dias após a viagem
a Rubizhnoye, eu percebo que a metade direita do meu rosto
parou de se mexer. De manhã cedo, aviso a Rafael e vamos
correndo ao hospital, acompanhados de Ilya, que servirá como
nosso intérprete para os médicos. Entramos no hospital
municipal, do outro lado da rua do nosso hotel. Ele não
funciona neste dia para este tipo de caso. Vamos ao hospital ao
lado, do governo estadual. É que se trata de um complexo de
prédios de saúde naquela região da entrada da cidade de
Lugansk. Onde são tratados os soldados feridos, como os dois
Roman. O hospital está vazio. Dentro dele, apenas os
funcionários e um ou outro soldado como paciente. Os
equipamentos são antigos. Mas qualquer cidadão ─ inclusive
um estrangeiro sem nenhum tipo de documento local, como eu
─ tem o direito de ser atendido gratuitamente. São feitos
exames em meu ouvido e muita cera é retirada de dentro dele.
O diagnóstico, ao qual chegamos também após uma

228
investigação própria, é que o nervo trigêmeo do lado direito do
rosto foi infeccionado a partir da friagem à qual me expus em
Rostov e Lugansk. Ele inflamou e paralisou, congelando toda a
estrutura nervosa de metade do meu rosto, pela qual ele é
responsável. Uma das médicas, chamada Daria, uma loira
bonitinha, começa a dar em cima de mim. Tomo uma injeção e
na farmácia do hospital compramos os remédios prescritos
pelos médicos e um bocado de seringas. Deverei tomar quatro
injeções por dia, totalizando 60 aplicações, em duas semanas.
Todas elas no meu bumbum ─ as duas últimas, já em Moscou,
eu mesmo tive de aplicá-las (e nem doeu, indicando que sou
literalmente um bunda mole!).
Perdi a conta de quantos remédios tomei diariamente. O
total deve ter girado em torno de 200 em umas três semanas.
As três aplicações da manhã serão feitas na clínica
Bio-lain, perto do centro de Lugansk. Andrei me leva lá no
primeiro dia, conversa com as funcionárias e no final me diz:
─ Pode vir aqui todos os dias.
─ Essa é uma clínica pública?
─ Não, é privada. Mas os filiados e amigos da Federação
Sindical não pagam.
A injeção da noite não podia ser aplicada na clínica
porque ela fechava cedo. Alguém teria de ir ao hotel aplicá-la.
E essa pessoa foi, ninguém mais ninguém menos, do que o
próprio Andrei. Isso mesmo, o Coisa! Quando ele tocou a
campainha e eu abri a porta, me curei na hora, como num
passe de mágica! Não precisava mais enfiar aquela agulha na
minha bunda! Um milagre aconteceu!
─ Nada disso ─ tratou de responder Andrei, já inserindo o
remédio na ampola. Não consegui escapar. Ele tem
experiência no ramo. Foi médico do Exército Vermelho quando
serviu na Hungria entre 1985 e 1989. Após isso, estudou para
ser professor de russo em língua inglesa e se formou na
Universidade de Línguas Estrangeiras de Donetsk.

229
─ Na época de Gorbatchov, pensava-se que o mundo
inteiro falaria russo ─ diz, brincalhão, enquanto enfia a agulha.
Depois, ainda se formou em Economia, também em Donetsk.
Eu preferia que fosse a Daria que viesse aplicar as
injeções…
─ Eu te entendo ─ me consola Andrei. ─ Eu também iria
querer uma garota, se estivesse no seu lugar. Vou tentar enviar
uma bela moça da próxima vez.
A partir do momento em que fiquei doente, não pude mais
escrever matérias nem gravar os boletins diários, como havia
feito até então. Mas consegui acompanhar Rafael nas
entrevistas, na visita à mina de carvão e a Popasnaya.
Andrei conhece todo o mundo da cidade e parece até o
homem mais popular de Lugansk (certamente é o mais
carismático). Alguns dias depois, ele nos leva ao hospital de
Novosvetlovka, cidade onde havíamos passado quando
atravessamos a fronteira da Rússia para a RPL. Somos
recebidos por seu amigo, Roman Fedorovich, diretor do
hospital. Ele me dará novas orientações sobre o tratamento da
paralisia facial.
Novosvetlovka ficou sob o controle das forças ucranianas
ainda no começo da guerra, durante três semanas de agosto
de 2014. Não se sabe ao certo quantas pessoas morreram e
ainda há muitos desaparecidos. Vemos de novo o pedestal que
sobrou da antiga estátua de Lênin, derrubada pelo Batalhão
Aidar, ao lado da igreja onde 50 civis foram detidos ─ a maioria
idosos. O Aidar os trancou e começou a atirar a partir de fora
da igreja. A sorte era que as paredes eram muito resistentes.
Não parece ter sido um ataque com o objetivo de executar as
vítimas. Parece mais algo sádico, por puro divertimento em
aterrorizar inocentes. O Aidar foi o principal grupo de combate
ucraniano naqueles dias na RPL. Andrei me diz que, em 2016,
conversou com uma pessoa muito idosa, que sobreviveu à
ocupação nazista em 1942, e que lhe disse que os ucranianos
de agora são piores do que os alemães de então. O aeroporto

230
ficava ali próximo a Novosvetlovka. Dois mil soldados do
exército ucraniano o haviam ocupado. A milícia teve de
bombardeá-lo e destruí-lo. Segundo Andrei, os milicianos
mataram ao menos metade dos soldados que estavam ali
dentro. Conseguiram retomá-lo em seguida. Oito anos depois,
não há sequer previsão de quando ele começará a ser
reconstruído.
Roman nos mostra como, até hoje, há várias partes do
hospital que estão danificadas. Mas não por bombardeios
ucranianos, e sim pelos ataques das próprias forças armadas
de Lugansk. Isso porque ele também estava sob o controle dos
ucranianos naquele mês de agosto. Os ocupantes impediam os
funcionários e pacientes de fugirem. Foram utilizados como
escudos humanos. Conseguiram se abrigar no subsolo e
escapar dos disparos. Felizmente, nenhuma pessoa morreu.
No começo da guerra, apenas os russos voluntários
estavam ajudando a resistência da RPL. Com a operação
especial, o governo russo decidiu enviar os militares
profissionais. ─ Para nos salvar ─ comemora Andrei.
─ Quando a RPL será completamente liberada?
─ Acho que em algumas semanas. Quem sabe, em duas
semanas.
O principal armamento utilizado pelas forças armadas da
Ucrânia na guerra tem sido o míssil Tochka-U. Andrei me
explica que ele mede seis metros de comprimento e sua ponta,
quando explode, espalha os estilhaços que acabaram matando
civis em todas as partes do Donbass. É o míssil mais utilizado
pelos ucranianos. A Rússia já não os utiliza mais porque está
ultrapassado para os padrões de suas forças armadas. O
Iskander, por exemplo, é mais moderno. A milícia de Lugansk
também não o utiliza. Mas o equipamento que ela recebe da
Rússia também não é de última geração, porque seus homens
precisariam de treinamento e capacitação especiais para
poderem manejá-los.

231
Quando retornamos a Moscou, uns quinze dias depois,
visitamos um outro hospital. No Hospital Militar de Sergiev
Posad, cidade ao norte da região metropolitana de Moscou, a
70 quilômetros da capital, nos encontramos com um herói
brasileiro.
Ele tem um sotaque russo carregado, pois praticamente
não fala português há oito anos. Somos alguns dos poucos
brasileiros que vê pessoalmente em todo esse período. Seus
pais moram em sua cidade natal, Presidente Prudente, interior
de São Paulo, têm orgulho de seu filho e sabem que está
lutando por uma boa causa. Não tem esposa nem filhos e é o
filho do meio com dois irmãos. Está com 34 anos e desde
criança tinha o objetivo de ser um militar de carreira e lutar em
uma guerra.
“Magayver” Rodolfo é tenente da Milícia Popular de
Donetsk há sete anos. Está apto a comandar até mesmo um
grupo de 100 pessoas em uma operação (94 soldados e seis
sargentos e oficiais) como comandante de companhia. Tem
uma série de condecorações, dadas pelas autoridades de
Donetsk, de Lugansk e também pelos cossacos, por exemplo.
Nesses oito anos, sempre trabalhou na defesa do Donbass,
seja no front ou seja mais recuado no combate antiterrorista na
polícia de operações especiais. Sua especialidade é em
combates urbanos. Lutou nas duas repúblicas populares.
Esta é a sexta vez que é ferido na guerra. Nos mostra os
últimos ferimentos. Os projéteis penetraram as costas e a
perna esquerda, entrando por um lado e saindo por outro. Teve
muita sorte de não ser atingido em nenhum órgão vital. Estava
em uma missão de reconhecimento, por isso não usava
capacete nem colete à prova de balas.
Ele explica que em uma guerra, infelizmente, se você não
atirar e matar o seu inimigo, ele pode te matar. É uma questão
de sobrevivência. Logicamente, se não há verdadeira
necessidade de eliminar o inimigo, pois ele não representa
risco à vida, o correto é fazê-lo prisioneiro. Quando foi ferido

232
desta última vez, em uma floresta na divisa da RPL com a
Carcóvia, ordenou aos seus companheiros deixarem-no
sozinho e irem buscar acesso à comunicação. Ficou três horas
ali parado, protegido, trocando tiros com cerca de 15 soldados
ucranianos. Acredita ter acertado pelo menos cinco, pois todos
tiveram de se mobilizar para socorrer os atingidos. Caído, com
projéteis dentro de suas costas e pernas, sem poder se mexer,
segurou suas posições contra 15 ucranianos, e os venceu.
Seus companheiros conseguiram voltar e resgatá-lo.
─ Quando meus companheiros estavam saindo, vi que
estava todo sujo de sangue.
─ Você não sentiu?
─ Não senti nada. Acredito que já fazia uns vinte minutos
que eu havia sido ferido. Primeiro, eu vi bastante sangue na
perna. Depois, olhei melhor e vi que tinha perfuração nas
costas e no abdômen. Fiz os meus primeiros-socorros
enquanto eles iam buscar o sinal de rádio. Finalmente voltaram
e o helicóptero me evacuou para Izium e depois para a Rússia.
Peguei um avião de paraquedistas onde havia umas 250
pessoas, gente amputada, gente que não aguentava nem se
mexer direito. Contra nós, foram disparados tiros, estilhaços,
morteiros, granadas, um lançador automático de granadas
chamado AGS, mísseis Uragan. Na hora eu não senti dor, mas
depois de um tempo começou a queimar. Isso ocorreu no dia
10 de maio.
Há bombas que caem dos aviões ucranianos cujos
estilhaços chegam a uma velocidade de 1.500 metros por
segundo. Podem ser fatais.
Chegou a Donetsk em setembro de 2014. Via as notícias
e resolveu defender o povo do Donbass: vendeu sua moto,
comprou as passagens para Moscou e lá conheceu voluntários
franceses com quem se juntou para se alistar na milícia
popular. Não falava nada de russo e em seis meses já
conseguia se virar. Hoje, é fluente, e aprendeu graças à

233
convivência no front. É cidadão da República Popular de
Donetsk e está em busca da cidadania russa.
─ Eu já me acostumei com o ritmo da guerra. Durante
esses oito anos, os ataques da artilharia ucraniana foram
constantes, tanto na frente de combate como nas áreas civis. A
Ucrânia não respeita os Acordos de Minsk, sempre ataca
regiões civis. Na semana passada, mesmo, a casa de um
amigo foi atingida por mísseis Grad. As escolas, o mercado,
foram todos atacados. Não há militares nessa região, ela está
bem longe do front. Ali só tem civis, aposentados, mulheres,
crianças. Eu não entendo.
Com o início da participação russa na guerra, em 24 de
fevereiro, Rodolfo integrou as forças que utilizam o V como
símbolo, pois faz parte do comando do leste (embora
geograficamente esteja no oeste, e não na direção de
Vladivostok). A letra O é usada pelo comando da Rússia
central e o Z pelo comando ocidental. Ele entrou na Ucrânia a
partir da Bielorrússia e se dirigiu a Kiev, mas os russos deram a
ordem de não avançar para a capital.
─ Seria bacana se a gente fosse tomar Kiev de vez.
O objetivo da Rússia nunca foi conquistar Kiev. As tropas
ficaram na periferia e recuaram.
─ A operação especial significou um grande reforço para
o Donbass. Durante oito anos buscou-se um acordo de paz
com a Ucrânia mas ela nunca respeitou. Em Donetsk e
Lugansk sempre houve altas penalidades para os militares que
abrissem fogo contra o lado ucraniano: perdiam a farda, eram
desligados do exército, podiam ir presos, receber multa. Agora,
do lado contrário, todo dia tinha violação do acordo de paz.
Eles não estavam nem aí. Essa operação de desmilitarização
era necessária para a segurança dos povos de Donetsk e
Lugansk. O presidente ucraniano é uma marionete, ele não
manda nada. Se tivesse amor à população ucraniana, antes
mesmo de começar a operação ele já teria negociado. Muitos
ucranianos têm se rendido, enxergaram que essa guerra não

234
faz sentido e que eles não irão morrer por causa de um
presidente. Só espero que a guerra acabe logo e que tanto os
ucranianos como o povo do Donbass possam viver em paz.
─ Você se deparou com armadilhas, minas e coisas
deixadas para trás pelos ucranianos?
─ Sim, eles fazem muito isso. Tanto em região de mata
como nas cidades. Eles também colocam explosivos nos
corpos dos próprios companheiros que eles abandonaram.
Então, os membros das organizações que fazem a retirada do
corpo para enviar para o lado ucraniano acabam sendo vítimas
dessas explosões.
─ Os ucranianos cometem muitos crimes de guerra?
─ Sim, muitos. Os ataques ao centro de Donetsk ─ uma
região civil, sem militares ─ são um exemplo. As torturas e
assassinatos de prisioneiros também são crimes de guerra.
Não é de hoje, esses crimes são cometidos desde 2014.
Logo após a gravação da entrevista, Rodolfo desabafa:
─ Rapaz, esse último combate foi muito pesado. Os
ucranianos realizaram ataques aleatórios em regiões civis e
militares. Quando você percebe que alguém próximo já se
feriu, você se vê em uma situação muito complicada.
─ Você sente como se estivesse na mira do inimigo?
─ Sim, praticamente.
─ A RPD estava bem armada para o conflito, quando ele
começou?
─ O nosso armamento era antigo, fabricado na época
soviética. Os armamentos que utilizávamos antes da operação
especial eram os troféus que capturávamos da Ucrânia ou os
que buscávamos em galpões.
─ Antes da operação a Rússia não enviava armamentos?
─ Nunca vi, eram sempre armas antigas que já estavam
em nosso território desde a época soviética.
“Magayver”, o homem que consegue resolver até mesmo
os problemas que parecem impossíveis para os demais,
compreende a sua importância na frente de batalha.

235
─ Não vejo a hora de receber alta para voltar e ajudar
meus companheiros.
─ Então você quer voltar para o front?
─ Eu não tenho escolha, né? Eu sou um militar, recebo
ordens. Após a recuperação, com certeza.
─ Mas você está com disposição para voltar?
─ Sim, tenho o meu grupo, o pessoal ficou bem
preocupado. Se o líder do grupo se afasta, o moral do grupo
diminui. Quando o líder volta de cabeça erguida e motivado, o
moral já levanta novamente. Então, logo logo estou de volta ao
trabalho.
Rodolfo pediu formalmente ao hospital militar para que
recebesse alta, e foi atendido quatro dias depois do nosso
primeiro encontro. No dia seguinte, o encontro no
estabelecimento do Vkusno & tochka ─ novo nome do
McDonald’s nacionalizado ─ na rua Tretyakovskaya, centro de
Moscou. A comida é a mesma, o gosto é o mesmo, o tamanho
ínfimo do lanche é o mesmo. Rodolfo está vestido com as
roupas disponibilizadas pelo hospital: dois casacos militares,
calça, um tênis e na sua mala enorme leva um par de botas. Só
pôde passar uma noite no hostel que encontrou, próximo à
Arbatskaya, porque estava sem os documentos ─ um amigo
brasileiro os traria no mesmo final de semana para dar entrada
ao passaporte russo.
Ali, e depois andando pelo centro de Moscou,
conversamos bastante sobre os oito anos em que lutou na
guerra. Rodolfo perdeu a conta das inúmeras cidades que
ajudou a libertar desde 2014 e travou batalhas contra os mais
temidos grupos nazistas ucranianos: Batalhão Azov, Batalhão
Aidar e Pravy Sektor.
─ Tem muitos nazistas nas forças ucranianas. É fácil até
encontrar os prisioneiros com tatuagens nazistas, com
insígnias fascistas nos uniformes. As pessoas não acreditam.
Quando se fala que tem muitos nazistas do lado ucraniano, o

236
pessoal acha “ah, são nacionalistas, não tem nazismo”. Tem,
cara! E muito.
Neste mesmo dia, o bairro onde Rodolfo vive sofreu um
ataque de mísseis ucranianos. Sua casa por pouco não foi
atingida. Cinco pessoas morreram.
─ Donetsk sempre esteve sob bombardeio ucraniano,
mas nos últimos meses isso se intensificou muito. O exército
ucraniano dispara indiscriminadamente, sem se preocupar se
vai atingir civis. Na verdade, atualmente os alvos atingidos são
sempre civis, nunca em áreas onde exista alguma instalação
militar. É algo deliberado.
─ Mas o sistema antimísseis não bloqueia esses
ataques?
─ É impossível bloquear todos, chegam a ser centenas
por dia.
─ Qual é o tratamento que os soldados ucranianos
destinam aos civis nas regiões que eles dominam?
─ Eles se infiltram no meio dos civis e os utilizam como
escudos humanos. Então não podemos utilizar a artilharia,
temos de tomar muito cuidado. Isso porque a nossa principal
função é desmilitarizar a região. Aquelas pessoas não querem
fazer parte da Ucrânia. Já foi feito um referendo, mas a Ucrânia
não aceita. Se você for a Donetsk e perguntar se eles querem
fazer parte da Ucrânia, todos dirão que não. Os ucranianos
bombardeiam a região. Quantas crianças não foram mortas?
Mais de 130 antes dessa operação especial. Perdi muitos
amigos nestes anos, pessoas que morreram no caminho do
trabalho. Cai uma bomba, cai um míssil no automóvel ou na
casa. Se o exército ucraniano não usasse os civis de escudos
humanos ou não posicionasse a artilharia junto aos civis, ficaria
bem mais fácil para nós.
Contra os soldados, as forças armadas ucranianas
também fazem jogo sujo. Atiram para matar quando um inimigo
está indo fazer suas necessidades, por exemplo, me diz

237
Rodolfo. Matam quando não precisam matar, como se fosse
uma brincadeira sádica.
─ Vocês tratam bem os prisioneiros?
─ Sim, não temos permissão para fazer nada de mal
contra eles. Se eles se rendem, nós capturamos o armamento,
fazemos uma revista e os enviamos para os órgãos
competentes.
Não resisto e pergunto se faz ideia de quantos inimigos
ele eliminou.
─ É impossível saber. Quando você vê uma
movimentação, você atira. Pode acertar uma, duas, três
pessoas, ou pode acertar ninguém. Pode apenas ferir ou pode
matar. Mas cinquenta é certeza.
Mesmo nas missões de inteligência, diz que é comum
carregar 30 quilos nas costas (munições, armas,
equipamentos, kit de primeiros socorros, alimentos, roupas
etc.). Em uma de suas missões, passou o dia inteiro andando
sem parar com 20 quilos sobre si.
─ Em uma situação de adrenalina, parece que você se
torna o Super-Homem. Não sente a dor, corre mais rápido,
seus músculos fazem mais força. Faz coisas sobre-humanas.
─ Houve alguma vez que você chorou?
Dá uma pausa. Respira. Vira os olhos para mim a meia
velocidade.
─ Tem que manter a frieza. Os seus homens não podem
baixar o moral. Eles não podem ver o líder fragilizado, ele não
pode dar sinais de fraqueza.
De repente me cai a ficha de que “Magayver” Rodolo é
humano, quando diz que não aguentava mais comer peixe
enlatado. Às vezes passava um dia inteiro trocando tiros e
recebia uma lata de sardinha ou atum.
─ Eu não aguentava mais o cheiro ─ brinca.
Mas é melhor isso do que passar fome. E isso aconteceu
inúmeras vezes. No Dia da Vitória, véspera de seu ferimento

238
que o levou ao hospital, não comeu nada. Somente no dia
seguinte teve acesso a um pedaço de pão.
Contudo, nem só de sofrimentos vive um herói. A fama,
mesmo que limitada, de um homem que largou tudo para ir
lutar em uma guerra do outro lado do mundo lhe rendeu o
desejo de algumas mulheres. Inclusive o de uma ex-namorada,
que, ao saber que estava ferido, procurou-lhe nas redes sociais
para dizer que, mesmo agora sendo esposa de um outro
homem, gostaria de ter um caso com ele.
Em um determinado momento, Rodolfo começa a cantar
uma música russa, com o vozeirão gravíssimo de um típico
locutor da Rússia. Me diz que sabe cantar várias canções
russas. Nos momentos em que está fora dos combates, entre
os civis, muitas vezes se sente como um “bicho do mato” e lhe
ataca uma leve paranóia que o faz desconfiar de qualquer um
que olhe para ele.
Após oito anos, Rodolfo mantém a mesma convicção que
tinha quando chegou a Donetsk.
─ Tem que estar bem preparado física e
psicologicamente, porque é bem pesado. A rotina não é para
qualquer um.
─ Tem saudades do Brasil?
─ Sim, tenho. Mas antes do final da guerra não pretendo
voltar. Porque só então me sentirei com o dever cumprido.
Я (ya) é a última letra do alfabeto russo. Significa “eu”. É
uma alegoria perfeita de um povo desprendido de
individualismo. Os meus iguais primeiro. Rodolfo é assim. Este
homem é tão despido de egoísmo e tão entregue à causa
coletiva que me dá uma resposta comovente e absolutamente
inesperada quando pergunto do que mais ele sente falta.
─ Tem muita gente que reclama do Brasil, de que lá nada
funciona etc. Mas há programas sociais como o Bolsa Família
que não existem em outros países.
Também sente falta do pão de queijo, do churrasco, da
feijoada. Pensou que iria conseguir finalmente fazer uma

239
feijoada quando seu amigo brasileiro trouxe os documentos.
Havia pedido que trouxesse junto uma farofa, chegou a avisar
a nossa amiga que o hospedou por uma noite em sua casa que
naquela noite ele faria uma deliciosa feijoada… Mas a farofa
não chegou. “Magayver” passou o dia seguinte inteiro tentando
comprar o bilhete de trem para a cidade de Belgorod, de onde
partiria para a Carcóvia. Mas ninguém quis vender.
─ Eu estava com o documento que me haviam assinado
no hospital autorizando comprar as passagens para qualquer
lugar, e não quiseram me vender.
Armou a maior confusão no terminal ferroviário de Kursky,
no centro de Moscou. Chamou a polícia para prestar uma
queixa contra os funcionários da ferrovia, deitou no chão no
meio do saguão da estação para descansar ─ os guardas
passavam, ele fazia cara de brabo e eles davam meia-volta ─,
deu um esporro em um coronel da polícia. Como é oficial do
exército, todos os policiais ficaram com medo dele. Sabia que
não iria acontecer nada de ruim, e que o máximo que poderia
ocorrer seria chegarem os militares para lidar com o
problemático mas acabar por resolver o seu problema e o
despacharem para a Ucrânia.
─ Não rela em mim se não eu quebro vocês dois no soco!
─ ameaçou dois policiais que tentaram tratar com ele no meio
da noite.
─ Calma, calma, senhor tenente. Não é assim, nós só
queremos te ajudar ─ imagine uma dupla de policiais russos,
aqueles dos filmes de Hollywood, autoritários, agressivos.
Imagine-os agora com o rabinho entre as pernas! Foi assim
que “Magayver” os deixou.
Vagou madrugada adentro pelas ruas do centro de
Moscou. Finalmente conseguiu comprar a passagem e às 14h
do dia 21 de junho partiu mais uma vez em direção à frente de
batalha na Carcóvia.
Eu tive tempo de encontrá-lo pela última vez poucos
minutos antes de sua partida. Haviam concedido a ele um

240
espaço na sala VIP do terminal. Pagou 200 rublos pela minha
entrada. Batemos um papo. Deu-me a ideia de, posteriormente,
produzirmos um documentário juntos sobre o que ele viveu na
guerra. Me impressiona a animação de Rodolfo. Infelizmente,
precisei ir embora para uma entrevista. Nos despedimos
calorosamente com um abraço e prometemos manter contato.
Mas nunca mais respondeu às minhas mensagens. A
guerra não lhe permitiu.

241
242
Capítulo IX …

Silêncio

─ Você está em condições de ir? ─ me pergunta Rafael.


Eu não podia aceitar que, após descer sozinho à mina,
ele fosse o único de nós a visitar Popasnaya. Também queria
aventura!
Nos encontramos em frente à sede da Federação dos
Sindicatos com Andrei. Ele, novamente, irá conosco. Andamos
algumas ruas e esperamos pelo restante da equipe de
jornalistas e milicianos que nos acompanharão. Encontramos,
de saída do Cult Coffe, nossos amigos Andrea e Gianni. Não
irão conosco. Têm sua própria agenda. Aparecem Kiril, um
jovem miliciano, e um grupo de jornalistas de um canal de
televisão francês. Andrei também nos apresenta Okay Deprem,
jornalista turco que vive em Donetsk.
Entre as cidades que ficam no caminho que liga Lugansk
a Popasnaya estão Alchevsk, Stakhanov e Pervomaisk. Mesmo
depois de terem sido libertadas, elas continuaram a sofrer com
bombardeios ucranianos. No dia 9 de junho, a artilharia
ucraniana irá tirar a vida de 22 pessoas em Stakhanov, que fica
a 60 quilômetros de Lugansk. Em outro bombardeio, duas
mulheres grávidas virão a falecer e 24 civis ─ incluindo oito
crianças ─ ficarão feridas. Ela tem sofrido diariamente, com
eventuais vítimas civis. Em nossa última noite em Rostov, irei
conhecer um hóspede de nosso hostel chamado… Roman
(creio que até o final desta guerra todos os homens da Rússia
já terão sido batizados de Roman, e as mulheres de Tatiana).

243
Me diz ser cidadão da RPL, nascido em Stakhanov. Respondo
que estive na região.
─ Popasnaya e Rubizhnoye estão totalmente destruídas
─ comento.
─ Foram os ucranianos ─ responde.
Os ataques incessantes, mesmo não havendo mais
batalhas na região, explicam a situação da estrada que
pegamos. Além disso, por toda ela havia postos de controle da
milícia de Lugansk ─ alguns deles com a bandeira soviética a
tremular. Ao nos aproximarmos de Popasnaya, vemos uma
destruição chocante das florestas, com as árvores pela
metade, caídas, derrubadas, esfoladas. É um longo caminho
de devastação. Se nem mesmo as crianças são poupadas do
genocídio, obviamente ninguém terá piedade dos pinheiros e
dos esquilos. Perco a conta de quantos tanques cruzaram
nosso caminho. Eles também sofreram muitas baixas, tanto de
um lado como de outro: esmagadas, explodidas,
bombardeadas e atoladas, as suas carcaças transformam
aquela estrada que mais parece a superfície lunar em uma
espécie de cemitério de máquinas de guerra. Um civil que
passa pelo local foi inteligente: pintou seu carro da cor daquela
estrada, para se camuflar e não ser alvo dos ataques.
Duas bandeiras soviéticas e uma outra contendo o brasão
de armas do extinto país nos dão as boas-vindas na estrada.
Quando entramos em Popasnaya, a única coisa que vejo além
de destruição é um vira-lata junto à base da milícia, onde
vestimos nossos coletes e ─ ao contrário de Rubizhnoye ─
recebemos um capacete para cada um (indicando que aqui é
ainda mais perigoso). Faz pouco mais de dez dias que as
batalhas se encerraram por aqui. Após recebermos algumas
instruções, somos levados para a periferia da cidade, um
vilarejo que ainda abriga alguns moradores e também um
acampamento de milicianos.
─ Essa região foi bombardeada por ambos os lados ─ nos
conta Pavel, um aldeão nascido em Novasvanovka, povoado

244
próximo a Popasnaya. ─ Sempre encontramos destroços dos
mísseis em nossas plantações…
─ Pá! ─ um disparo de míssil bem do nosso lado. Eles
cruzam os céus em baixa altitude, sobre nossas cabeças, a
cada vinte ou trinta segundos. Os milicianos operam as armas
de artilharia fornecidas pela Rússia a partir daqui. A apenas 1,5
km floresta adentro, encontram-se as posições ucranianas.
Este lugar é de uma importância estratégica, pois as estradas
que passam perto do vilarejo levam a Lisichansk.
─ Muitas pessoas de Popasnaya vieram do lado
ucraniano, especialmente quem tinha parentes no lado de cá ─
relata Serguei, irmão de Pavel. Ele veio de Popasnaya para
este vilarejo em março para ficar junto de seu pai e de seu
irmão, precisamente para fugir da guerra, porque a linha de
frente se aproximava da cidade. Não há eletricidade e por isso
os moradores não conseguem se comunicar com ninguém de
fora, tampouco ter acesso às informações sobre a guerra.
Ele conta que os batalhões nazistas também operaram ao
longo desses anos em Popasnaya. Aparentemente, eram a
principal força militar na cidade, porque os soldados do exército
ucraniano não estavam baseados em Popasnaya, mas em
localidades em seus arredores e, portanto, não haviam muitos
soldados operando nela.
─ Geralmente usam a artilharia nesta vila ─ diz.
─ Quem bombardeia esta área são os ucranianos?
─ Sim, somente os ucranianos. Mas não são mais os
membros dos batalhões de extrema-direita. Então neste
momento não há nada de especial com relação a hostilidades
entre os moradores e os militares.
Os estrondos continuam a agredir os nossos ouvidos.
Atrás de Pavel há um vasto campo maltratado pelo clima e
pelas bombas. Vejo uma pequena nuvem de poeira se
dispersar a partir do chão. Aparentemente, alguma coisa caiu
ali.
─ Qual lado do conflito tem razão?

245
─ É difícil explicar, porque a única coisa que queremos é
paz na nossa terra. Estamos muito cansados disso, então é
difícil dizer quem está certo e quem está errado. Eu sou
somente um homem simples ─ percebe-se. Deve ser um pouco
mais velho que Pavel, entre 35 e 40 anos. Ambos vestem uma
camisa de flanela xadrez, com barba sobre bocas murchas e
têm um nariz pontudo e cabelos despenteados, com grandes
entradas acima da testa. ─ Só quero poder reconstruir minha
casa quando esta guerra acabar.
─ Você pretende viver na Ucrânia ou na Rússia?
─ Talvez eu consiga cidadania russa, pois minha casa
está neste território. É mais prático.
Quando saímos à rua para tomar um ar, vemos um
tanque com a letra Z pintada em sua lataria. Ele está atrás dos
arbustos, escondido, envergonhado. Mas é inofensivo. Ferido e
indefeso, agoniza em seu leito de morte. Assim como agonizou
um homem virado de barriga para cima em meio aos
escombros de uma casa. Pode-se ver de longe o furo na lateral
direita de seu estômago. Mas é do tanque que eu sinto mais
pena. Ele, que já fora o imponente rei dos confrontos terrestres,
senhor da guerra, agora está reduzido a uma insignificância
patética, melancólica e se vê despido de qualquer vestígio de
dignidade. Deitado de bruços, maltratado, acuado, é incapaz
de qualquer ação. Desprezado e esquecido, não merece mais
do que a minha humilhante compaixão. Provoca uma piedosa
empatia, tal como um enorme boi prestes a ser sacrificado.
Agoniza há semanas sem que ninguém ouse chegar perto de
si, sabendo que é apenas questão de tempo para sua vida se
esvair. Eu tampouco arrisco uma aproximação. Melhor deixá-lo
descansar em paz. As portas e muros da vizinhança estão
cobertos de buracos de bala. Um helicóptero sobrevoa o
vilarejo. Seu barulho substitui por alguns instantes o das
bombas e mísseis que não param de ser disparados.
Conversamos com o comandante local da milícia, cujo
codinome é Starshina. Com 60 anos de idade, é um veterano

246
da ocupação soviética do Afeganistão. Nasceu em Lugansk e
diz estar lutando porque quer defender sua terra contra o
fascismo e o nacionalismo. Encontra-se na região de
Popasnaya há três meses, mas é voluntário desde o início da
guerra, em 2014. Noventa por cento daqueles que se juntaram
à Milícia Popular de Lugansk há oito anos ainda estão nas
fileiras do que agora são as forças armadas da RPL.
─ Eu tenho uma experiência e tenho de proteger as vidas
dos jovens para evitar que morram nesta guerra. Ficarei na
minha própria terra ─ garante o senhor de 1,66 m de altura,
magro em boa forma, olhos claros, com poucos dentes na
boca. De barba raspada, mantém apenas um grosso bigode
sobre os lábios, tal como seu cabelo (coberto por um boné do
exército). Leva pendurado em seu ombro esquerdo um rifle, do
qual não tira as mãos.
O som das bombas continua dando o ritmo da vida no
povoado. Há alguns cães deitados no chão. Mas eles nem
ligam para o barulho assustador dos foguetes. Já estão
acostumados com a violência da guerra. Um dos milicianos que
monta guarda do lado de fora está com um cinto em volta do
quadril com uma fivela dos tempos soviéticos, ornamentada
com a estrela, a foice e o martelo ─ comprovo com meus olhos
o que viria a nos contar “Magayver” Rodolfo em Moscou: os
equipamentos e armas dos combatentes do Donbass são
aqueles que eles mesmos conseguiram nos galpões antigos. A
infantaria é local nesta região dos arredores de Popasnaya.
Modernas são as aeronaves, helicópteros, artilharia e sistema
antimísseis que os russos estão usando em outras direções.
─ Muitos ucranianos querem fugir da linha de frente, se
recusam a lutar aqui ─ diz Starshina. ─ Nunca tivemos um
prisioneiro, então é difícil te responder como nossos soldados
são tratados pelos ucranianos. Só perdemos um combatente e
ele foi trocado. Recentemente, um dos nossos salvou um
ucraniano ferido e o levamos ao hospital de Pervomaisk.
─ Quando a RPL será liberada totalmente?

247
─ Muito em breve.
O acampamento fica no meio das casas dos aldeões. Dez
milicianos vivem aqui. Eles levam ajuda humanitária para seus
vizinhos, alguns deles inválidos. Seus vizinhos comem duas
vezes ao dia junto deles no acampamento. Também fornecem
eletricidade, mas aparentemente não está dando certo.
No meio das árvores e sobre terra batida, o acampamento
reúne uma quantidade indecifrável de bugigangas: telhas,
machados, serrotes, garrafas plásticas, sacos, cordas, potes de
vidro, baldes, troncos serrados, caixas de papelão… O seu
centro é uma peça de artilharia velha, ainda com duas rodas
firmes e o estepe atrás, que se transformou em forno onde a
comida é preparada pelos rapazes. Há duas mesas próximas
ao veículo, uma cheia de copos e canecas e outra para se
sentar, comer e conversar. Uma rede com fiapos verdes se
espalha sobre todo o acampamento, estendida ao alto, a fim de
camuflar a base, escondendo-a da aviação inimiga. Um gato
esfarrapado que, assim como os cães, não liga a mínima para
o barulho dos disparos, se coça enquanto me sento em um
banquinho para conversar com dois milicianos e os foguetes
continuam a assobiar.
─ Pow-Pow!
Valeri tem 53 anos, um filho e uma neta. Antes da guerra,
ganhava a vida como motorista. Volodia, de 51, tem três filhos.
Trabalhava na construção civil. Ambos serviram no Exército
Vermelho, mas essa é sua estreia em guerras.
Voluntariaram-se há três meses.
─ Para defender a pátria ─ diz Volodia.
─ O que você pensa sobre o exército ucraniano?
─ Não entendo por que eles lutam, não há sentido para
lutarem ─ responde Valeri.
─ E há sentido para vocês?
─ Essa é nossa pátria e é por isso que temos de
defendê-la.
─ Como vocês se sentem após três meses aqui?

248
─ Esperando pela vitória, porque quero voltar para casa.
─ E quando vamos vencer?
─ Espero que logo. Esperamos por isso todos os dias.
Enquanto isso, mais bombas caem sobre nossas
cabeças.
─ É difícil viver aqui?
─ É, não é fácil. Sempre nos mudamos de posição, a
linha de frente é perto.
Partimos de volta ao centro de Popasnaya. No caminho,
voltamos a ver o cemitério de tanques. Dois deles descansam
no acostamento da estrada, um fazendo companhia para o
outro. Logo à frente, mais um tanque incendiado. E outro. E
mais um. Ao fundo, os primeiros bairros, conjuntos de prédios
esburacados em andares inteiros, caindo aos pedaços.
Chegando ao centro da cidade, os edifícios nos observam de
ambos os lados da rua. Estão tristes. Choram com olhos
enormes, abertos, que derramam fuligens sobre as paredes
dos últimos andares e dos intermediários. Suas entranhas
estão expostas. Todos os seus ossos, nervos, músculos estão
visíveis a olho nu. De alguns, restou-lhes apenas o esqueleto.
São filas de prédios de dez andares cada um, iguais àqueles
do restante da Rússia, construídos entre as décadas de 1970 e
1980.
Descemos do carro enquanto helicópteros russos
sobrevoam a área e os tanques rodam a estrada. E enquanto
os restos da Casa de Cultura e de uma igreja estão prestes a
desmoronar. A equipe está parada, estarrecida, atordoada com
o que vê. Começo a andar pela rua, inquieto e abismado.
Fotografo as ruínas daquilo que até poucos dias atrás foi uma
civilização. Nenhuma árvore escapou. Todas estão caídas ou
aleijadas. No chão das calçadas, buracos enormes de bombas.
Sujeira total. Destroços, galhos, pedras, vidro, estilhaços. As
paredes e muros, derrubados. Carcaças de carros
abandonadas por seus donos. Parquinhos vazios dentre os
prédios inabitados. Mas o que mais vejo aqui é poeira.

249
Nada se move em Popasnaya. Apenas os tanques, a
meia dúzia de jornalistas da qual faço parte e um pedaço de
metal no meio dos destroços, balançando com o vento. Uma
cidade completamente abandonada, assim como Pervomaisk.
Uma cidade-fantasma, órfã de todos os seus 20 mil habitantes.
Procuro repetir a experiência de Rubizhnoye: aguço os meus
ouvidos e o meu cérebro para usar a memória auditiva. Tento
reconstruir as vozes e sons da violência que se abateu sobre
este lugar pouco antes de eu chegar. Mas não consigo. Não
escuto nada. Um silêncio sepulcral toma conta de Popasnaya.
Até mesmo os estrondos das bombas que explodem ao meu
redor, de fazer inveja aos furiosos trovões de Zeus, cessam de
repente. Após batalhas que custaram a vida de mais de mil
militares de ambos os lados e de um número ainda obscuro de
civis, a mais absoluta paz reina diante dos meus olhos.
Continuo registrando aquelas imagens infernais daquela terra
inteiramente arrasada, que voltou a ser oprimida pelas bombas
ucranianas alguns dias depois de nossa passagem. Mas eis
que, da casa menos destruída, surge um soldado. Ele me
chama. Finjo que não é comigo e dou meia-volta. Só aí que
percebo que me isolei completamente da minha tropa e me
tornei um alvo fácil. Ele me chama novamente e surgem mais
dois soldados. Então aparece Rafael, lá na esquina com a
avenida principal.
─ Vasco! ─ grita. “Mas que diabos esse filho da puta
aprontou?”, pensou, certamente.
─ Quem é você? O que está fazendo aqui?
─ Sou jornalista, brasileiro. Meus amigos jornalistas e da
milícia estão logo ali ─ aponto na direção de onde veio a voz de
Rafael.
─ Me dê seus documentos.
É quando chega Andrei, que me bota mais medo do que
os três soldados juntos.

250
─ Você ficou louco? ─ grita. ─ Você ficou louco? ─ repete,
irritado, querendo me matar, com as enormes bochechas
ruborizadas.
Coloco as mãos protegendo minha cabeça e quando
levanto o olhar novamente para Andrei, vejo um gigantesco
vulcão entrando em erupção. Está explodindo, cuspindo lava
para todos os lados. Aquele monstro me absorve por completo.
Afogado na lava, consigo mexer os lábios mas nenhuma
palavra sai da minha boca. Fico mudo.
─ Você ficou louco? ─ “seu pivete deformado, está
botando todos nós numa grande encrenca”, completou, para si,
enquanto me engole com toda a força de sua fúria. Finalmente
sai alguma coisa da minha boca, mas são palavras
absolutamente desconexas, como as de um bêbado que
prefere morrer de vodca do que morrer de tédio. “Eu não fiz
nada”, foi o que tentei falar, gaguejando, mas não consegui.
São agentes da FSB, o serviço de inteligência russo. Eles
pedem o meu celular. Desconfiam que eu possa ser um espião,
ou então, mesmo sabendo que sou um reles jornalista, ficam
com meu aparelho para apagar qualquer vestígio que possa
ser acessado remotamente pelo serviço de inteligência
ucraniano. Então percebo que é proibido tirar fotos daquele
lugar específico, utilizado como base pelos russos e o qual não
pode ser descoberto pelo inimigo. Babau! Nunca mais vi meu
celular, confiscado.
Após se tranquilizar e esfriar, o vulcão Andrei ainda tenta
parlamentar com os soldados, mas de nada adianta. Essa foi a
última coisa que fizemos em Popasnaya e, na saída da cidade,
de dentro do carro, vemos a poucos metros de nós a beleza de
um lança-foguetes disparando suas rajadas na direção de
Severodonetsk e Lisichansk.

251
252
Capítulo X …

Fim

Os uniat são considerados traidores pelos ortodoxos, pois


assimilaram o catolicismo. Os oblasts de Ivano-Frankivsk, Lvov
e Ternopil, por exemplo, são de maioria católica grega. Todos
ficam no oeste da Ucrânia. As crescentes tensões inflamadas
de fora do país também transformaram a religião em desculpa
para as hostilidades. Mas ela é um fator de análise
interessante. Porque o oeste da Ucrânia é exatamente a região
sob maior influência da Europa Ocidental, onde estão
localizadas as grandes potências imperialistas do continente. O
oeste da Ucrânia também é a região onde menos pessoas têm
o russo como idioma nativo. E foi lá onde Yulia Tymoshenko,
candidata apoiada pelo “Ocidente” (ou seja, o imperialismo),
arrebanhou mais de 75% dos eleitores nas eleições
presidenciais de 2010. Ela venceu as eleições em todos os
oblasts onde a maioria da população não fala o russo como
língua nativa. Mas perdeu no número total de votos no país,
porque Viktor Yanukovich teve maioria na metade sudeste,
onde mais de 50% da população é de origem linguística russa.
Cinco anos depois, em 2014, quando Yanukovich foi
derrubado, os habitantes daquela vasta região tiveram vários
motivos para se opor: haviam votado no presidente deposto,
seus algozes proibiram o idioma russo e uma parte deles
atacava até mesmo a religião ortodoxa. Logo, o sentimento de
opressão não foi sentido apenas em Donetsk e Lugansk (e na
Crimeia, retomada pelos russos no primeiro instante). Outros
seis oblasts viram-se nas mãos de um novo regime hostil:

253
Odessa, Nikolaev, Kherson, Dnepropetrovsk, Zaparojia e
Carcóvia. Mas apenas Donetsk e Lugansk, onde o movimento
era mais forte e organizado, conseguiram êxito. Esse é um dos
motivos pelos quais a operação militar especial russa não se
resume aos territórios das, desde então, repúblicas populares
de Donetsk e Lugansk.

254
Em julho, Serguei Lavrov irá anunciar oficialmente a
disposição da Rússia em tirar das mãos da Ucrânia toda essa
região: “não são apenas a RPD e a RPL, é também o oblast de
Kherson, o oblast de Zaparojia e vários outros territórios. E
esse processo continua consistente e persistentemente à
medida que o Ocidente, com raiva impotente, ou com vontade
de piorar a situação, enche a Ucrânia com armas de longo
alcance (por exemplo, o HIMARS). Isso significa que os
objetivos geográficos serão afastados ainda mais da linha
atual. Porque não podemos permitir que na parte da Ucrânia
que Zelensky (ou quem o substitua) controle haja armas que
representam ameaça direta a nosso território e ao território das
repúblicas que declararam independência ─ àqueles que
querem determinar seu futuro de forma independente.”
Enquanto isso, Donetsk continua sendo bombardeada
diariamente pela artilharia ucraniana, causando mortes e
ferimentos de civis pelo armamento fornecido por países como
Estados Unidos e França.
─ Neste momento, a situação em Donetsk é muito tensa.
Há intensos bombardeios contra a cidade, mais do que no

255
início da operação especial ─ nos informa Boris Litvinov,
primeiro-secretário do Partido Comunista da República Popular
de Donetsk, com quem nos encontramos em Moscou. ─ Ao
contrário do estágio inicial desta operação, eles estão usando
armamentos não apenas de tipo soviético, mas também
fornecidos pelo Ocidente. A característica desses armamentos
é que são de maior potência e precisão com o intuito de
destruir a infraestrutura civil, não militar. Isso está muito
evidente agora. A tática das nossas forças armadas conjuntas,
assim, é a de cercar o exército ucraniano e impedi-lo de
receber suprimentos e munições. Para nós está claro que hoje
não é tanto a Ucrânia que está lutando contra nós, mas sim o
“mundo anglo-saxão” (dito de outra forma, os Estados Unidos
da América).
─ Muitos crimes de guerra foram cometidos pelos
ucranianos?
─ De acordo com o direito internacional, há algumas
regras de guerra. Um exército pode mirar outro, mas não a
população civil. O Estado ucraniano considera que a RPD é
seu território, então eles estão guerreando contra sua própria
população. Então, as negociações durante mais de oito anos
não deram em nada até agora. A parte ucraniana não foi a
nenhuma negociação para discutir o fim deste conflito. Muitas
cidades têm sido destruídas, como Volnovakha, Makeevka,
Gorlovka e Donetsk, com dezenas de milhares de pessoas que
morreram e mais de 60 mil que ficaram feridas até o momento.
O exército ucraniano se esconde atrás dos civis, o que é algo
terrível pois essa tática é muito semelhante ao que os nazistas
alemães faziam durante a Grande Guerra Patriótica. Em
qualquer parte da região você os verá fazendo isso.
─ Podemos dizer que, portanto, há um genocídio em
curso?
─ Sim, há um tipo de genocídio sendo cometido contra o
povo do Donbass, que deseja restaurar a amizade com o povo

256
russo. E, é claro, também deseja restaurar alguns elementos
do antigo poder soviético.
─ E qual o sentimento do povo de Donetsk nestes dias de
intensos bombardeios?
─ O sentimento geral que é compartilhado pela população
é o desejo de vencer e de nunca deixar os nacionalistas
tomarem nossa terra. Ou seja, o povo não quer saber de volta
dos nacionalistas ao poder, especialmente na nossa região. A
maioria absoluta da população está pronta para lutar por sua
pátria, pela República Popular de Donetsk e pela República
Popular de Lugansk até o fim, até a vitória. Esperamos muito
que a Federação Russa nos ajude a resolver este problema e
fomos nós que convidamos o exército russo a nos ajudar.
─ Como você avalia essa presença das tropas russas no
Donbass?
─ Achamos positivo que as forças armadas russas
estejam em Donetsk. Mas acreditamos que isso já deveria ter
sido feito antes. A Rússia reconheceu nosso direito de
soberania e então assinamos um acordo de ajuda mútua. Por
isso, esperamos muito que a Rússia nos ajude a estabelecer a
justiça em nossa terra. Como eu disse, a situação guarda
semelhanças com a ocupação nazista na Grande Guerra
Patriótica, quando todo o povo soviético conseguiu libertar
nosso país, a Europa e o mundo do fascismo. Foi apenas
devido àquela vitória que hoje nós estamos juntos. Então
temos muita esperança de que hoje as pessoas que vivem nos
territórios que já foram liberados unam-se para sermos capazes
de colocar um fim no regime fascista que comanda a Ucrânia.
O Partido Comunista foi o primeiro partido político a ser
fundado na República Popular de Donetsk após a sua
declaração de independência, em 8 de outubro de 2014. Boris
Litvinov foi eleito seu líder máximo naquela ocasião. Ele era, na
época, presidente do Conselho Supremo da RPD e declarou
que Alexander Zakharchenko (então líder do país, morto em

257
um atentado em 2018) teria o apoio de seu partido na reeleição
para primeiro-ministro.
─ Vocês têm militantes lutando na linha de frente da
guerra?
─ Sim, claro. Neste momento que visito Moscou, estou de
terno e gravata, mas por todos esses meses eu tenho visitado
a linha de frente porque, como primeiro-secretário do PCRPD,
devo me encontrar com meus camaradas. Muitos dos
comunistas pegaram em armas e agora estão protegendo a
soberania de sua pátria. Eu levo para eles tudo o que posso,
como comida e remédios ─ explica o senhor simpático e
sorridente, enquanto Tatiana (outra!) Desiadova, da Secretaria
de Relações Internacionais do PCFR, faz a tradução. ─ A
situação tem sido sempre muito complicada, então quando vou
à linha de frente tenho de parar meu carro e garantir minha
proteção, porque nos últimos anos sofri cinco tentativas de
assassinato, por isso meus camaradas me fornecem todos os
equipamentos necessários para minha proteção, como
capacete e colete à prova de balas.
─ Você acha que o movimento anti-Maidan no Donbass
em 2014 foi uma espécie de revolução?
─ Eu gostaria que os eventos de 2014 tivessem sido uma
revolução, mas infelizmente não foram. Tratou-se de uma
insurreição contra a derrubada do regime em Kiev. Uma
revolução é uma mudança muito profunda na vida social,
política e econômica. São mudanças muito sérias, cruciais,
quando tudo se modifica. O regime que tomou o poder em
2014 em Kiev tinha como meta a completa supressão de tudo
que fosse relacionado com a Rússia e o passado soviético e o
comunismo. O povo do Donbass, por sua vez, guarda as
características do coletivismo e da justiça social, muitas
pessoas viveram no sistema soviético e ainda se lembram
como era. Mas o regime que tomou o poder em Kiev era contra
essas aspirações básicas do povo do Donbass. Então, essa
contradição levou à revolta do nosso povo.

258
─ Não poderíamos considerar a RPD como um tipo de
república socialista?
─ Eu, pessoalmente, e meus camaradas, estamos
fazendo todo o possível para tornar essa ideia realista, para
colocar o socialismo em prática. Trabalhamos juntos para
influenciar as pessoas. Tentamos superar as barreiras.

Luda (apelido de Ludmila) é uma senhora muito


simpática. Puxa conversa conosco e digo que não
conseguimos entendê-la porque somos brasileiros. Apresenta
sua amiga Yulia e me ajuda a fazer a cama para que eu possa
dormir sossegado em meu leito no trem de Rostov para
Moscou. O comissário de bordo do nosso vagão, percebendo
que somos estrangeiros, apresenta-se e mostra-se muito gentil
e atencioso. Em francês, afirma que está à nossa disposição e
pergunta se estamos gostando da Rússia. Mais tarde, ele volta
falando em espanhol e se desculpa por não saber falar
português. Antes, pensou que éramos franceses. Diz estar
muito feliz por nos atender e que seu nome é Sergio.
─ Serguei? ─ pergunto, para confirmar seu nome russo.
─ Isso, Serguei.
Compartilho um iogurte com Luba e outro com Yulia, que
me devolve um biscoito mais tarde. Às 4h30 da manhã,
preocupada se estou passando frio, Luba pega uma manta e
me cobre, como se fosse minha mãe. Mas eu não estava
dormindo. Estava tentando lembrar o trecho de um poema de
Maiakóvski, que havia lido ainda em Lugansk.

Teu corpo
eu quero acariciar e amar
como um soldado
diminuído pela guerra,
inútil,

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sem ninguém,
acaricia sua única perna.

Mal começava a amanhecer. Seria nosso último dia na


república popular. Eu não sabia que, um mês e meio depois, a
cidade voltaria a ser bombardeada após anos. O Tochka-U e o
HIMARS seriam utilizados no ataque. Por sorte, o sistema de
defesa antiaérea conseguiria interceptar os disparos contra a
zona oeste da capital. Isso iria ocorrer mais ou menos nos
mesmos dias quando o status de república independente seria
reconhecido pela Síria e pela Coreia do Norte, iniciando o
rompimento da invisibilidade das repúblicas do Donbass aos
olhos do mundo. Severodonetsk ainda não havia sido libertada,
o que ocorreria dentro de um mês. Uma semana depois, seria
a vez de Lisichansk. A República Popular de Lugansk, assim,
após oito anos de guerra, tornar-se-ia um território livre do
fascismo.
Passamos o dia todo junto com nossos amigos do
Ministério das Relações Exteriores, particularmente com o
jovem Andrei. Estavam preparando os documentos
necessários para nossa partida. Era quase uma questão de
urgência, pois eu deveria ser tratado na Rússia, sob o risco de
não me recuperar. Por isso tivemos de abandonar a ideia de ir
de Lugansk para Donetsk. No final da tarde, estamos prontos
para ir embora. Do lado de fora do Ministério, enquanto
esperamos um táxi, trombamos com Ilya, Serguei Belov e
outros camaradas que haviam acabado de voltar de mais uma
missão inglória do que restou da cidade de Rubizhnoye. Ilya
me cumprimenta, com as mãos enegrecidas. Haviam
encontrado mais de 20 corpos escondidos sob os escombros
de um asilo desde março. Este é o trabalho de cada um dos
cidadãos de Lugansk, mesmo dos membros do governo:
encontrar e enterrar os seus mortos até depois de a guerra
terminar. O povo esquecido nunca esquecerá nem perdoará os
crimes dos quais foi vítima.

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