Status Vitalis-Leticia C.
Status Vitalis-Leticia C.
Leticia C.
PRÓLOGO
CAPÍTULO UM
CAPÍTULO DOIS
CAPÍTULO TRÊS
CAPÍTULO QUATRO
CAPÍTULO CINCO
CAPÍTULO SEIS
CAPÍTULO SETE
CAPÍTULO OITO
CAPÍTULO NOVE
CAPÍTULO DEZ
CAPÍTULO ONZE
CAPÍTULO DOZE
CAPÍTULO TREZE
CAPÍTULO QUATORZE
EPÍLOGO
Agradecimentos
PRÓLOGO
O bar era um lugar esquecido pelo tempo, o tipo de estabelecimento em que
as paredes pareciam absorver tanto os sussurros dos clientes quanto a fumaça
dos cigarros queimada noite após noite. As paredes, de um verde desbotado,
estavam manchadas e cobertas de posters antigos e desbotados de bandas e
corridas de cavalos, ecos de um passado mais agitado.
A iluminação era mínima, com algumas lâmpadas penduradas em fios
desgastados ao longo do bar, que emitiam uma luz amarela e fraca que mal
iluminava o espaço, mas criava um jogo de sombras perfeito para negócios
clandestinos. As mesas de madeira eram gastas e riscadas, marcadas por anos
de descuido e, talvez, alguns confrontos de faca, contando histórias
silenciosas de encontros anteriores.
O bar também contava com uma área mais afastada, uma mesa maior nos
fundos, onde o líder local iria aguardar, observando tudo das sombras. Essa
seção parecia ser reservada para reuniões discretas, um espaço onde acordos
de negócios eram firmados longe de olhares curiosos.
Lira Zamorano entrou primeiro, deslizando pela porta com a serenidade de
alguém que conhecia cada canto do submundo. Vestida com um casaco
escuro, seus olhos atentos varreram o ambiente, identificando cada potencial
ameaça antes de se aproximar do homem com quem viera negociar. Ali
estava uma nova oportunidade para o Cartel da Estrela Negra expandir seus
tentáculos, e Lira estava determinada a garantir que seu nome, e o de sua
família, ecoasse ali.
Mas, antes que pudesse tomar seu lugar à mesa, a porta se abriu novamente,
revelando a presença de alguém que ela conhecia bem demais. Ayra Arellano
atravessou a entrada como uma tempestade, o cabelo em um tom quente
refletindo a luz baixa. Ela não era capaz de entrar em qualquer ambiente sem
ser notada, e Lira sentiu o coração acelerar de imediato.
O Cartel do Dragão Vermelho estava na cidade com os mesmos planos de
Lira, aparentemente. Ayra não precisava dizer nada, seu olhar, cheio de
desprezo e uma chama de desafio, comunicava tudo.
Por um instante, o ar pareceu estalar com a tensão entre as duas. Os soldados
de cada lado, posicionados próximos à entrada, permaneceram em silêncio,
trocando olhares desconfiados, mas sem ousar se mover. Eles sabiam que
qualquer conflito entre Lira e Ayra era assunto pessoal, uma batalha que as
duas preferiam resolver sozinhas.
— Você deveria ter marcado outro dia…
Lira disse, em um tom controlado, mas ácido, enquanto estreitava os olhos na
direção de Ayra.
— Engraçado... Eu ia dizer o mesmo — Ayra retrucou, erguendo o queixo.
— Ou será que está com medo de me enfrentar cara a cara?
As palavras foram o suficiente. O bar, embora vazio, parecia pequeno demais
para as duas.
— Quem tem histórico de fugir de briga é a sua gente, não a minha.
A provocação velada foi o que bastou para Ayra. Num piscar de olhos, Ayra
avançou contra Lira, em uma dança letal de precisão e fúria.
Lira foi para cima respondendo com um soco direto que Ayra desviou com
um giro rápido do corpo, a expressão séria e focada. Ayra então contra-
atacou, desferindo um chute baixo que acertou a perna de Lira, fazendo-a
cambalear por um instante. Mas Lira se recuperou rápido, esquivando-se para
o lado e usando a mão esquerda para empurrar Ayra para longe. O impacto
foi o suficiente para desequilibrar a rival, e o som abafado de corpos
colidindo ecoou pelo bar vazio.
Os soldados de ambas tentaram se mover, mas as duas gritaram ordens para
que ficassem de fora. Aquela era uma luta delas, uma rivalidade antiga das
famílias Zamorano e Arellano, banhada em uma ferocidade e cheia de ódio.
Lira se movia com precisão calculada, cada gesto meticuloso e controlado,
como se planejasse seus ataques com antecedência. Ela mantinha uma
postura defensiva, desviando de ataques e estudando as falhas na guarda de
Ayra. Ayra, por outro lado, atacava com uma intensidade brutal, cada
movimento carregado de força e emoção. Sua expressão era de raiva pura, e
ela desferiu socos e chutes com força total, como se quisesse destruir Lira ali
mesmo.
Em um momento crítico, Ayra agarrou o braço de Lira e a puxou para perto,
tentando finalizar com um golpe rápido no rosto, mas Lira desviou, acertando
um soco no estômago de Ayra que a fez dobrar o corpo por um segundo,
apenas o suficiente para ela se recompor e avançar com mais fúria. A troca
era implacável; ambas se moviam com precisão, o corpo em alerta total,
como duas predadoras em confronto.
Então, num movimento quase imperceptível, Lira sacou uma faca pequena e
brilhante de sua cintura. Ayra viu o reflexo já era tarde demais; Lira já havia
se aproximado com velocidade e precisão, pressionando a lâmina contra o
flanco da rival e aplicando uma facada controlada, bem abaixo das costelas.
O corte foi profundo, mas calculado para evitar danos vitais. Ayra soltou um
grito contido de dor, segurando-se para não dar mais essa satisfação a Lira.
Lira, ainda próxima, manteve a lâmina de modo ameaçador, o olhar frio e
calculista. Ela inclinou-se e murmurou com um tom de desprezo:
— Não se preocupe, o golpe não é fatal, Ayra — murmurou e girou a faca,
fazendo a herdeira gemer de dor. — Mas se interferir novamente, posso não
ser tão precisa.
Retirando a faca, Lira jogou Ayra no chão. Que mesmo ferida, encarou a
inimiga com um sorriso desafiador.
— Vai para o inferno, Zamorano.
Lira riu sombriamente. A tensão entre elas era palpável, um presságio das
batalhas que viriam. Sem mais palavras, Lira saiu do bar, deixando Ayra e
seus soldados para lidar com as consequências do golpe. A disputa pelo
território estava longe de ser resolvida, e naquela noite o seu encontro tinha
sido estragado. Mas uma vez culpa da herdeira Arellano.
CAPÍTULO UM
Ayra Arellano
Me movi desconfortavelmente, disfarçando o leve ardor que eu ainda sentia
na ferida quase curada da facada que levei.
— Ayra, o que está pedindo é demais.
— Eu não estou pedindo — coloquei os pés cruzados sobre a mesa. — Eu
estou comunicando, titio.
— Não podemos atacar os Zamorano agora, precisamos ter paciência.
Eu rolei os olhos, cansada daquela ladainha de “paciência”, coisa que meu tio
gostava de pregar. Desde que ele assumiu o Cartel Dragão Vermelho, depois
da morte do meu pai, as coisas têm andado num ritmo que me desagradava
bastante.
— Temos a informação sobre o armazém de abastecimento deles. É uma
chance rara. — Explico, tentando fazer ele entender. — Você me deu
autonomia de coordenar a segurança do Cartel e consequentemente, nos
defender. Eu ser atacada, mandar um recado forte, e não responder isso
também.
Ele suspirou, passando a mão pela testa. Meu tio, Javier, é um homem grande
como um armário, com cabelos escuros, olhos num tom verde discreto e
carregava no rosto uma cicatriz que o deixa mais severo do que realmente é.
— Não podemos deixar rastros que fomos nós, Ayra. — ele diz, desistindo.
— Faça o que quer, mas não seja pega.
Eu abro um sorriso. Tiro meus pés de cima da mesa do escritório dele.
— Assim será feito, tio.
Ele apenas balançou a cabeça, reprimindo um sorriso. Mesmo em um
momento sério como esse, havia um entendimento tácito entre nós, como se
ele soubesse que eu não sossegaria até fazer as coisas ao meu modo. Javier
me dava a liberdade que eu queria, isso era bom, ou talvez a gente começasse
a não “falar a mesma língua”.
Saí do escritório dele com a mente já fervilhando de ideias. A informação
sobre o armazém dos Zamorano era ouro puro; saber a localização de um
centro de abastecimento do Cartel da Estrela Negra era uma oportunidade que
não surgia todo dia. Conseguimos isso por meio dos muitos informantes que
pagamos todos os meses.
Atacar lá não era apenas uma questão de represália pessoal. Claro que eu
queria me vingar da Lira Zamorano, aquela pedra no sapato que me
incomodava há anos. Entretanto, também era uma jogada estratégica, uma
chance de enfraquecer a rede bem calculada que ela e seu cartel tinham
construído. Eles eram nosso único inimigo em números e estrutura.
Desci os degraus que levavam até a área de operações e encontrei meus
homens, fiéis soldados.
— Reunião em cinco minutos. Quero todos na sala. — anunciei, minha voz
carregada de entusiasmo. — Temos uma nova missão!
Enquanto eu entrei na sala, eu não conseguia deixar de pensar naquela praga
da herdeira Zamorano. A facada que ela me deu ainda latejava de vez em
quando, um lembrete constante da humilhação que me infligiu naquele bar.
Uma dívida que, em breve, ela teria que pagar com juros.
☙❧
Analisei as minhas unhas perfeitamente pintadas de vermelho sangue. Era
uma pena que eu não ia poder derramar algum sangue com as minhas
próprias mãos, para combinar. Dei de ombros, sorrindo, colocando minha
máscara. Não seria nada interessante deixar que meu rosto fosse registrado
como prova do ataque. Mesmo assim, a noite estava perfeita para uma
vingança.
Eu observei o armazém dos Zamorano, que ficava bem no centro de uma área
abandonada, ele por si só parecia abandonado, mas eu sabia que guardava
parte vital da operação do Cartel da Estrela Negra.
O “abandono” era apenas uma nuvem de fumaça, para disfarçar o que
passava ali dentro. Eu sabia que as operações ali se concentravam em apenas
duas vezes da semana pela madrugada, sem frequência correta dos dias,
assim diversificando e chamando menos atenção.
Entretanto, nesse dia, eu sabia que não haveria movimentação. Eles já tinham
realizado e por isso seria bem fácil agir. Pois para haver descrição, o lugar era
cercado por muros altos e sem qualquer sinal de vida visível. A entrada era
protegida por dois guardas, mas com um pouco de criatividade, eles foram
facilmente distraídos, permitindo que eu e meus homens nós nos
esgueirássemos por dentro sem dificuldades.
Eu adorava esse tipo de ação, a sensação de estar um passo à frente, de
orquestrar um plano e executar. Entramos pelo lado oeste do armazém, onde
arrombaram uma porta lateral.
A entrada ali podia ser uma surpresa, não sabíamos o que tinha lá. Mas a
segurança baixa lá dentro, mostrava como os Zamorano eram arrogantes. Por
isso permitiu a minha equipe neutralizar seus dez homens, usando apenas
alguns tiros com armas silenciosas. Nos movemos com precisão, sabendo que
cada passo depois de tirar todos os homens de foco. Mesmo porque eu sabia
que teríamos pouco tempo, antes de algum alarme soar.
No interior, a estrutura era exatamente como imaginei: caixas e mais caixas
empilhadas com mercadorias de valor, desde drogas a equipamentos. No
escritório que tinha lá dentro, eu me sentei na frente do computador tentando
invadir os arquivos. Eu era uma especialista em invadir sistemas e foi quase
frustrante não ter tanta dificuldade.
— Que despreparo, Lira…
Eu disse, sorrindo por trás da máscara. Ouvi os comandos dos meus homens,
que estavam agindo rapidamente espalhando gasolina em pontos estratégicos.
Eu peguei o que podia de arquivos e destruí o que pude, com vírus, para que
nem eles pudessem ter acesso.
— Senhora, terminamos… — meu líder de equipe me avisou. — As bombas
estão prontas.
Dei uma aceno, pegando meu pendrive. Eu deixei o escritório, observando as
pilhas de caixas e equipamentos, me permiti uma risada baixa.
— Isso é por aquela facada, Zamorano…
Eu tirei do bolso e liguei um temporizador em um pequeno detonador. A
gasolina era apenas para acelerar o incêndio que se espalharia e transformaria
tudo em cinzas.
— Vamos embora, garotos!
Dei a ordem, com a missão cumprida. Meus homens estavam em silêncio,
mas eu via nos olhos deles o mesmo entusiasmo. Saímos do lugar, cada um
retomando seu posto, eles entrando na van escondida nas sombras como
fantasmas. Nenhum rastro. Nenhum vestígio que pudesse levar de volta ao
Cartel do Dragão Vermelho.
Eu caminhei tranquilamente, entrando no meu Mustang preto, que estava
escondido, num ponto estratégico de fuga e claro, no lugar certo para
observar os “fogos de artifício”.
Eu entrei no veículo me acomodando no banco de couro. Tirando minha
máscara, assobiando, contando mentalmente em ordem decrescente.
— E… três, dois, um… kabum…
A explosão refletiu em meus olhos. Eu bati palmas sorrindo, adorando ver
aquele lugar ir pelos ares. Eu estava pronta para ligar o motor do carro, afinal
de contas, já tinham assistido o que queria. Mas então quando eu ia sair da
área, meus olhos captaram um movimento.
Uma Lamborghini em alta velocidade passou. Para do diante do mais puro
fogo. E eu soube antes de realmente ver, quem era: Lira Zamorano.
A desgraçada desceu do carro, sozinha, observando o caos que começava a
consumir seu armazém. Com certeza ela tinha deixado todos para trás,
arrogante e feroz, querendo chegar na frente para capturar os responsáveis
pela destruição instaurada.
De repente, senti uma onda de excitação tomar conta de mim. O riso escapou
dos meus lábios, crescendo em intensidade. Eu queria que ela soubesse, que
me visse e entendesse quem estava por trás daquele ataque.
Por isso eu liguei os faróis do carro, apertando um botão especial
personalizado do meu lindo bebezinho, que fez os motores rugirem. Então
acelerei, parando no meio da estrada, numa distância perfeita para ver Lira
girando o corpo, me notando. Ela apertou os olhos, mas a expressão de
choque em seu rosto era um presente que eu não esperava naquela noite.
Sem pensar duas vezes, apertei o acelerador de uma única vez até o fim,
conduzindo o carro diretamente em sua direção. Indo de zero a cem
quilômetros em menos de quatro segundos. Ela tentou pular para o lado, mas
eu estava muito próxima, e o impacto foi inevitável. O carro a pegou de
raspão, mas as suas costas batendo contra o parabrisa, destruindo o meu lado.
O impacto foi suficiente para lançá-la alto e em seguida ao chão e deixá-la
ferida.
Eu freie de uma única vez. Abaixei o vidro e fiz questão de colocar a cabeça
para fora observando minha brincadeirinha. Assistir a Lira no chão, mas se
mexendo, o que queria dizer que estava viva. Quando ela ergueu o rosto, e os
nossos olhares se cruzaram, meu sorriso se alargou.
Ela estava ali no chão, sangrando, e o rosto marcado pela dor, e eu saboreava
cada detalhe da cena. Mandei um beijo para ela e dei um tchauzinho, o ódio
queimou em seus olhos, mas eu já estava acelerando para fora dali, deixando-
a meu rastro de destruição para trás.
☙❧
Lira Zamorano
Um armazém destruído, custando milhares de dólares em prejuízo. Três
costelas quebradas. Um ombro deslocado. Uma pequena hemorragia. Foi
exatamente o que ganhei de Ayra Arellano. Aquela vadia.
Sinceramente, minha vontade era sair da cama de hospital, e ir caçar aquela
garota. E dessa vez eu não iria ser “boazinha”, e deixar de acertar um ponto
vital, com a minha faca.
— Não faça essa expressão. — Valentina disse enquanto arrumava meu
travesseiro. — Está assustando todos os médicos.
— Talvez assim eles me concedam a alta de uma vez — comentei azeda
fazendo um sinal para ela se afastar. — Estou bem, chega de afofar os
travesseiros.
Valentina, ou Val, era o braço direito do meu pai no cartel, sabia de cada
maldito passo meu e reportava para ela. Costumava dizer que ainda me via
como alguém que precisava da sua proteção.
— Você foi atropelada, Lira. Não foi algo bobo.
— E por isso eu já devia estar cuidando do que importa.
— Tem outras pessoas no Cartel, que estão cuidando disso.
— Não importa, aquela operação naquele armazém era minha. Então eu
deveria estar na rua indo atrás da culpada pela explosão. — Respondi, com
um lampejo de ódio sobressaindo ao meu controle.
— Não tem provas que foi a Ayra Arellano. — Valentina suspirou.
— Eu a vi!
— Isso não prova nada.
Ela alertou. Seus olhos escuros, que combinavam com os cabelos do mesmo
tom, estavam fixos em mim, como se tentasse me acalmar, mas isso não ia
adiantar.
— Eu vou retaliar.
— Seu pai não vai deixar, se não houver provas contundentes. — Val me
alertou. — Ele não quer arriscar a operação com a máfia, numa briga, que
não vai levar a nada. O prejuízo que houve, pode ser contornado.
— Se são provas que precisam, então eu vou dar um jeito de consegui-las.
O Cartel do Dragão Vermelho era um empecilho nos nossos negócios há anos
na Cidade do México. E as coisas só foram piorando com o tempo, as
disputas ficando mais acirradas, principalmente depois que eles e o nosso,
Cartel da Estrela Negra, passamos a fornecer serviços ao principal braço de
atuação da máfia italiana nos Estados Unidos.
As brigas por territórios, já frequentes, foram se tornando cada vez mais
sangrentas. E um agravante a essa situação, foi Ayra Arellano.
A maldita era filha do ex-chefe do cartel. E assumiu o controle da segurança
das operações e tecnologia, recebendo autonomia para agir de forma
independente, o que a coloca frequentemente no meu caminho.
Eu era líder estratégica do meu cartel, responsável por planejar e
supervisionar as operações logísticas e financeiras. Eu cuido da organização
das rotas de distribuição e do controle minucioso dos pontos de
armazenamento, mantendo o cartel operando de forma discreta e segura.
Entretanto, em cada investida da Arellano, sinto que minha estratégia é posta
à prova. Ayra é como um incêndio descontrolado, uma força que não se
importa com o que destrói desde que deixe sua marca. Ela quer ser notada,
quer que saibam que ela está disposta a tudo para se impor, e isso,
ironicamente, a torna previsível.
No entanto, é exatamente essa imprevisibilidade camuflada pela
impulsividade que a torna um problema constante e, para mim, um incômodo
insuportável. Mas, eventualmente, essa chama que ela tanto gosta de
alimentar irá queimá-la. E dessa vez, eu preciso encontrar as provas
necessárias, para fazê-la explodir, e estar lá para assistir.
☙❧
Deixei o hospital um dois dias depois do atentado, simplesmente não podia
ficar lá. Voltei para casa, e apesar de ainda sentir uma dor incômoda nas
costelas, cada vez que eu respirava. Claro, Valentina me disse para repousar e
me deu aquele olhar protetor, mas eu sabia que descanso era um luxo que eu
não podia me permitir agora.
Sentada na sala, observei meu pai, Arturo Zamorano, enquanto ele revisava
documentos. Ele era um homem que exalava poder sem precisar erguer a voz,
algo que sempre desejei fazer igual. Meu pai carregava uma postura rígida, o
olhar calculista e frio.
Quando soube do ataque, principalmente do que houve comigo, ficou furioso,
e agora, ao olhar para ele, percebi que parte daquela raiva ainda estava ali,
queimando sob a superfície. E justamente isso, que eu estava buscando
explorar, antes do arrefecimento.
Eu mantive minha postura indiferente, tentando conter a impaciência,
esperando a resposta dele. Queria vingança, queria retaliação. Cada minuto
que passava sem uma resposta ao ataque de Ayra era uma afronta pessoal
para mim.
— Não vamos responder a isso.
— Como não vamos? — Minha voz saiu mais dura do que eu pretendia. —
Ela destruiu nosso armazém, atropelou sua própria filha, eu a vi, ela fez
questão de mostrar o rosto. Isso foi um insulto. Ayra tem que pagar.
Meu pai suspirou, largando os papéis e me encarando com aquele olhar
profundo e meticuloso, que sempre me fez lembrar o quanto ele via além das
aparências.
— Lira, eu entendo sua frustração, e não pense que não quero vê-la pagar
pelo que fez. Mas a nossa prioridade agora não pode ser uma retaliação
impulsiva, sem provas. — Ele disse, com voz grave e firme. — Temos uma
negociação importante com a máfia italiana em andamento. Qualquer
movimento descuidado agora pode comprometer meses de planejamento.
— Mas essa negociação está justamente em risco por causa dela! — insisti, a
irritação fervendo sob minha pele. — Ela desafiou nossa autoridade. Se não
respondermos, isso pode enfraquecer nossa posição, mostrar que somos
fracos, e você sabe o que isso significa neste mundo.
Ele estreitou os olhos, analisando cada palavra. Discutir com meu pai nunca
era fácil, por mais ardilosa que eu fosse, quase nunca conseguia o que queria
se ele não permitisse.
— Agir com raiva, só vai fazer você se perder, Lira — Ele se inclinou para
frente na mesa, a voz baixa, mas carregada de autoridade. — Os Arellano se
aproveitam de situações como essa. E nós não vamos correr o risco de perder
o acordo com a máfia italiana por uma vingança mal calculada.
Eu respirei fundo, lutando contra o impulso de responder.
— Então o que quer que eu faça? Simplesmente aceite? — murmurei,
tentando manter o tom frio, mas a frustração vazando pelas palavras.
— Quero que aguarde.
Meu pai disse, enquanto se levantou. Era um homem alto, elegante, de
cabelos pretos com olhos cinzas tão frios que poderiam cortar. Nem sempre
foi assim, mas o mundo que vivíamos não permitia fraqueza, e ele me
ensinou isso bem cedo.
— Está me pedindo algo difícil — Eu disse e ele deu um aceno, antes de se
aproximar pousando uma mão firme em meu ombro.
— Vamos seguir com o acordo com a máfia. Esse é o nosso foco agora. A
máfia confia no Cartel da Estrela Negra por nossa estabilidade, por nosso
controle. Precisamos manter essa imagem intacta — ele me alertou, antes da
sua voz ganhar contornos mais frios. — Quando for o momento certo,
quando não houver riscos externos, você terá sua chance de lidar com Ayra.
Eu prometo.
Aquelas palavras eram uma mistura de consolo e um lembrete de quem
éramos. Respirei fundo, tentando conter o turbilhão dentro de mim. Não era o
que eu queria ouvir, mas por enquanto era o suficiente para agora.
— Certo, pai. Eu vou esperar.
☙❧
Ayra Arellano
A música pulsava nas paredes e no chão da boate, o tipo de som que você
sente em todo o corpo. Eu adorava a sensação. Eu adorava esse lugar, uma
das boates mais exclusivas da cidade. Onde todos vinham em busca de algo,
seja diversão ou algo mais picante, aqui o anonimato e a exposição andavam
de mãos dadas, dependendo do que você queria naquela noite.
Eu estava plenamente me divertindo. Dançando na pista, sentindo o suor
descer entre os meus seios, enquanto brilhava dentro do meu vestido
prateado, perigosamente curto. Escolhi essa noite para extravasar, o álcool
nas minhas veias era um entorpecente dos problemas, eu amava a sensação de
estar chapada.
Sorri provocativamente ao meu parceiro de dança. Ele segurou na minha
cintura, mas o empurrei, eu não queria controle. E foi quando eu me virei,
então vi algo bem interessante.
Lira Zamorano.
Ela estava sozinha no bar, um copo de bebida entre os dedos e o olhar fixo à
frente, como se tudo e todos ao redor fossem meras sombras. Vestida com
aquela elegância irritante que era tão sua marca, como se estivesse acima de
todo mundo ali. Impecavelmente séria e composta, até em um lugar feito para
a distração e caos.
Deixei de lado meu acompanhante, que me lançou um olhar confuso, mas
não veio atrás de mim. Ainda mais quando um dos meus seguranças
bloqueou o caminho, apesar de discretos, eles estavam por toda parte. Eu
sabia que aquela era a condição do meu tio para que eu pudesse escapar um
pouco das suas rédeas. Atravessei a pista de dança na direção dela.
A luz piscante ao meu redor, transformou a imagem da Lira quase como uma
miragem. Ela usava um vestido preto que abraçava suas curvas com um
ajuste perfeito, o tecido parecia quase líquido, deslizando sobre sua pele de
forma que era impossível ignorar.
Quando me aproximei o suficiente para distinguir suas formas do que era real
ou não, odiei a realidade. Cada detalhe do que Lira vestia parecia feito para
exibir uma beleza que, sinceramente, era um insulto vindo dela.
O decote era ousado, mas nada vulgar, continha aquele toque de elegância
afiada, calculada.. Uma fenda lateral deixava uma perna à mostra, revelando
pele com um brilho sutil sob as luzes da boate.
— Dois [1]shot de tequila.
Eu pedi, aumentando a minha voz, parando ao lado dela. Me deixei ser
notada, enquanto eu mesma não fazia questão de disfarçar como a avaliei.
Lira tinha cabelos tão escuros quanto o petróleo, eles caíam em ondas suaves,
descansando sobre os ombros e emoldurando o rosto de um jeito que dava a
ela um ar de realeza, algo quase distante, intocável. Aquilo me tirava do
sério.
Os dois shots foram colocados no balcão, eu bebi o primeiro de uma única
vez, apreciando como ele queimou em minha garganta. Observei Lira ao meu
lado, sem mexer um músculo, como se a minha presença não a afetasse em
nada.
Era quase frustrante o quanto ela conseguia parecer imaculada, mesmo num
ambiente que implorava por desordem. Infelizmente, Lira Zamorano era
linda, quase uma figura que parecia mais emoldurada do que viva.
Um desperdício, era o que era.
— Olha só, se não é a própria estrela solitária — provoquei, deixando o
sarcasmo pingar na voz enquanto brinquei com meu copo vazio. — Vejo que
se recuperou do… pequeno acidente.
Lira virou a cabeça lentamente, seu primeiro sinal que me notou. Entretanto,
quando o olhar encontrou o meu, era frio e desinteressado como sempre, mas
eu pude perceber o brilho de irritação nos olhos dela, como se minha
presença fosse o último incômodo que ela precisava naquela noite.
— Para acabar comigo é necessário mais que um… “pequeno acidente” —
respondeu, com a voz tão calma e controlada que chegou a me dar nos
nervos. — Mas não esperava que tivesse coragem de me abordar depois
daquele ataque mal feito e tão infantil. Uma pena que o saldo não tenha
sido... fatal, pois vai haver retorno.
Mordi o lábio, contendo o impulso de partir para cima dela ali mesmo. Ela
queria isso, eu sabia. Queria ver até onde eu estava disposta a ir. Respirei
fundo e, em vez de perder o controle, me aproximei um pouco mais, até que
nossos rostos estavam perigosamente próximos. Eu pude ver o ódio brilhando
nos seus olhos cinzentos.
— Confie em mim, Lira, se eu quisesse que tivesse sido fatal, você não
estaria aqui agora — murmurei, deixando o sorriso crescer lentamente. —
Mas vê-la naquele chão, tentando se erguer... foi quase tão satisfatório quanto
qualquer golpe mortal.
Ela riu, uma risada fria que não combinava com o ambiente à nossa volta. Os
lábios esculpidos carregavam um som quase desdenhoso, como se estivesse
me ridicularizando sem precisar de palavras.
— Que bom que aproveitou o momento, então. Porque não vai ter muitos
outros como aquele. — Ela ergueu o copo de uísque e tomou um gole, em
seguida me observou por cima da borda. — Enquanto você está se divertindo
com esses ataques impulsivos, eu estou planejando o próximo passo. E,
acredite, sou muito melhor que você quando assunto é vingança.
A raiva subiu por mim como fogo, mas eu mantive o sorriso. Ela achava que
podia intimidar alguém com palavras ensaiadas e ameaças veladas. Se Lira
queria um jogo de provocações, eu estava mais do que disposta a brincar.
Me afastei, o suficiente para pegar meu último shot, pegando um pouco de sal
deixando na minha mão, que lambi, olhando para a Lira e dei uma risadinha.
— Vou adorar ver você tentando, Lira.... — Eu mordi uma fatia de limão e
tomei o último shot, em seguida bati copo forte diante dela. — Talvez
finalmente encontre o seu irmãozinho.
Eu exibi meu melhor sorriso canalha e então os olhos de Lira Zamorano
viraram chamas, quando me atacou.
☙❧
Lira Zamorano
A menção ao meu irmão, foi o último golpe que aguentei. O sorriso dela era
pura provocação, um convite para que eu perdesse o controle e funcionasse.
Eu simplesmente queria acabar com aquela garota. Anos daquela sua
provocação e seus jogos sujos. Ayra Arellano, com aquela expressão
arrogante e aquele sorriso canalha, sabia exatamente o que estava fazendo.
Ela queria me fazer explodir, queria ver até onde eu iria. E bem ali, naquele
bar cheio de gente, eu me dei o prazer de mostrar.
Sem hesitar, avancei para cima dela, quase acertando um soco no seu rosto. O
sorriso dela se desfez por um instante, dando lugar a um lampejo de surpresa,
e isso me deu uma satisfação que eu não sentia há tempos. Mas Ayra se
recuperou rápido, e antes que eu pudesse segurar seus braços, ela rebateu
com um golpe no meu ombro que me fez cambalear, recuperando o equilíbrio
a tempo de ver o brilho predador no olhar dela.
— Finalmente resolveu deixar a máscara cair, hein, Zamorano? — ela gritou,
sarcástica, enquanto tentava segurar meu pulso. — Vou te deixar no chão de
novo.
Eu me desvencilhei, a respiração rápida, o olhar fixo no dela, cada fibra do
meu corpo ardendo com a raiva. Sentia os olhares ao redor, a música
diminuindo de volume, enquanto as pessoas percebiam que o centro da
atenção agora era a nossa briga, bem como os nossos seguranças que
começaram a se engalfinhar. Mas nada daquilo importava.
Eu só via Ayra, só queria esmagar aquele sorriso presunçoso que ela tinha.
Agarrei-a pelo braço e a puxei com força, levantando-a para lançá-la contra o
balcão, onde ela bateu de costas, derrubando garrafas que se estilhaçaram ao
redor. Ela reagiu rapidamente, esticando a mão para pegar uma das garrafas
quebradas ao lado e, antes que eu pudesse me afastar, senti o vidro rasgar a
lateral do meu braço. A dor foi intensa, mas isso só alimentou minha fúria.
— Acha que uma garrafa vai me parar? — rosnei, segurando outra garrafa
caída, quebrando-a com um golpe na borda do balcão, deixando apenas os
cacos pontiagudos na minha mão.
Ayra deu um sorriso selvagem, e, por um segundo, percebi que ela estava tão
consumida pela briga quanto eu. Ela me atacou com o vidro, e eu desviei,
girando para o lado e desferindo um golpe em direção ao braço dela. O vidro
rasgou sua pele, um corte que fez o sangue escorrer, manchando seu vestido e
revelando o quanto aquela briga era pessoal.
Sem pensar duas vezes, ela avançou, e nós nos engalfinhamos, puxando o
cabelo uma da outra, nossas unhas cravando a pele conforme lutamos para
tomar vantagem. Em meio aos golpes e às tentativas de se soltar, ouvi Ayra
murmurar, entre dentes, com um ódio que refletia o meu:
— Vou te ensinar o que acontece com quem tenta me desafiar, Zamorano.
Eu ri, um som frio e sem humor, segurando-a pelos ombros e empurrando-a
contra o corrimão que dividia o segundo andar. O impacto foi forte, e Ayra
soltou um grunhido, mas não recuou; em vez disso, ela agarrou o meu ombro
e me empurrou de volta com a mesma força.
Sentimos a pressão do limite se aproximando, o corrimão atrás de nós
ameaçando ceder com cada movimento. O instinto de sobrevivência deveria
ter surgido, mas tudo o que eu queria era vencê-la. Numa tentativa de
desestabilizá-la, empurrei-a de novo, mas ela se aproveitou do impulso para
nos desequilibrar, e, antes que eu pudesse me dar conta, nossos corpos
ultrapassaram o limite do corrimão.
Caímos juntas, uma entrelaçada na outra, em um turbilhão de raiva, vestidos
rasgados e gritos abafados pela adrenalina.
A queda foi rápida, mas o impacto foi brutal. A mesa de vidro abaixo
estilhaçou-se sob o peso dos nossos corpos, pedaços afiados se espalhando ao
nosso redor enquanto o som da quebra ecoava pela boate. Senti o choque da
dor, cacos de vidro arranhando minha pele, o vestido rasgado, mas, de
alguma forma, me forcei a levantar, ainda encarando Ayra. Ela também
tentava se erguer, com o mesmo olhar feroz, desafiador, manchada de sangue
e com o vestido em frangalhos.
Nos encaramos, ofegantes, feridas, mas sem nenhum sinal de rendição. Eu
sabia que essa briga não terminaria ali. E, pelo brilho assassino nos olhos
dela, Ayra sabia disso tão bem quanto eu.
— Lira, pare agora…
Senti a mão de Valentina apertar meu ombro, firme e implacável, como uma
âncora me puxando de volta à realidade. O barulho ao redor tinha
desaparecido em meio à nossa luta, mas agora tudo voltava com força total,
os murmúrios, os gritos abafados, os celulares, e os olhares de quem pararam
para assistir à nossa batalha insana.
Meus seguranças e os homens de Ayra estavam em um impasse, armas em
punho e olhos fixos uns nos outros, prontos para agir ao menor sinal. Bastava
um movimento errado, um único deslize, para que a boate se transformasse
em um campo de guerra de verdade.
— Não vale a pena, Lira. Olha ao redor.
Val disse e eu dei um aceno. Respirei fundo, sentindo o gosto metálico de
sangue na boca, e olhei novamente. Ayra ainda estava a poucos passos de
mim, os cabelos emaranhados, com cortes pelo rosto e o vestido igualmente
destroçado, mas o sorriso ainda estampado, como se estivesse se divertindo
com a confusão.
— O que foi, Lira? — Ayra provocou, endireitando o corpo e lançando um
olhar de escárnio. — Vai desistir por medo do “papai” e da sua “babá”?
Apertei os punhos, sentindo a raiva ainda pulsando sob a pele, mas um último
vislumbre dos seguranças me fez engolir a resposta que eu queria dar. Se eu
respondesse, não haveria volta. A linha já estava tênue demais, e Valentina
sabia disso, com o olhar sério fixo em mim, como se pudesse ler minha
mente.
— Isso não acabou, Ayra — disse entre dentes, a voz fria e contida, mesmo
que tudo dentro de mim estivesse em chamas.
Ayra deu de ombros, o sorriso dela apenas se alargando, como se tivesse
conquistado exatamente o que queria. A boate estava um caos, mas ela
continuava ali, triunfante, indiferente ao rastro de destruição.
— Adorei brincar com você, Lira — respondeu, sem tirar os olhos dos meus.
Senti Valentina me puxando suavemente para trás, os seguranças recuando
aos poucos, armas ainda erguidas. E assim, lentamente, nos afastamos,
deixando Ayra e seus homens atrás. Mas uma coisa estava clara: Eu queria
matar aquela desgraçada.
☙❧
Ayra Arellano
Aquela vaca tinha me feito quebrar três unhas…
Pensei, enquanto eu estava sentada no escritório do meu tio, com um gelo
pressionado contra a lateral do rosto onde o soco de Lira tinha deixado sua
marca. Não que cada músculo do meu corpo não estivesse doendo, e o fato
que meu vestido Chanel foi arruinado.
Eu tinha trocado por algo mais confortável, antes de receber o último do meu
tio. Tentei cobrir os cortes que os estilhaços de vidro que me deixariam
alguns dias com a lembrança vívida daquela “briguinha” de bar.
— Usou algo além de álcool, Ayra? — Ele perguntou. O ar estava denso,
carregado daquela tensão. Javier estava parado atrás da mesa, olhando para
mim com uma expressão de pura frustração.
— Não, eu não sou tão idiota assim.
— Será que não, Ayra? — ele começou, a voz baixa e carregada. — Você
simplesmente se expõe, e expõe a nós. Numa boate pública. Diante de
celulares. Com Lira Zamorano.
Não era a primeira vez que ele me dava um sermão, mas havia algo na forma
como ele falava agora, uma decepção que, por algum motivo, realmente me
incomodava. Entretanto, eu não deixei de encarar seu olhar, suportando o
peso de ser uma decepção.
— Tio, ela começou, eu apenas me defendi — tentei justificar, erguendo o
queixo em desafio. — Queria que eu fosse agredida?
Ele soltou um suspiro profundo, esfregando o rosto, e eu sabia que estava
tentando controlar a irritação. Javier não era do tipo que perdia o controle
facilmente..
— Ayra, eu não estou interessado em quem começou. O que me importa é
que você sabe muito bem o que está em jogo. — Ele se inclinou, apoiando as
mãos sobre a mesa, me encarando diretamente. — E ainda assim, preferiu
esquecer completamente o que importa para se jogar em uma briga. Sabe
quantas pessoas estavam lá? Quantas testemunhas? Quantos viram você e a
herdeira dos Zamorano destruindo metade daquele lugar como se fossem
crianças?
Eu abri a boca para responder, mas ele levantou uma mão, me silenciando
imediatamente.
— Esse tipo de comportamento não é apenas imprudente. É perigoso para os
nossos negócios — ele continuou, a voz mais firme agora. — Nós estamos
em meio a negociações importantes, Ayra. Negociações com a máfia. A
última coisa que precisamos é chamar atenção com briguinhas públicas.
Claro, sempre a porcaria da máfia. Isso estava me dando no saco, mas eu
sabia o quanto esse acordo significava para ele, para o Cartel. Javier sempre
foi mais do que um líder; ele era a espinha dorsal do Cartel do Dragão
Vermelho, e a ideia de que eu pudesse ter colocado os negócios em risco,
mesmo que por uma distração momentânea, me incomodou.
— Tudo bem, admito que errei. — falei a contragosto.
— Ayra, você é responsável pela segurança do Cartel. E a segurança começa
com a discrição. Com o controle. — ele disse, cruzando os braços. — Sua
rivalidade com a herdeira Zamorano, precisa ser colocada em segundo plano.
Eu bufei, abaixando o gelo e encarando meu tio com uma expressão
desafiadora.
— Você quer que eu simplesmente a deixe fazer o que quiser? Que ela me
provoque e eu apenas... sorria e acene? — Ergui minha sobrancelha — Não é
assim que as coisas funcionam.
— Não estou dizendo que você deve abaixar a cabeça para ninguém. Não ia
ser minha sobrinha se o fizesse — Ele balançou a cabeça lentamente, um
sorriso sem humor passando pelos lábios. — Mas há uma diferença entre
responder e perder o controle. Uma briga pública com a filha de Arturo
Zamorano não é apenas uma provocação resolvida. É uma declaração de
guerra. E se isso se transformar em um conflito aberto, você sabe muito bem
o que vai acontecer.
Eu suspirei. Parte de mim odiava admitir, mas ele estava certo. Mas mesmo
que eu soubesse que qualquer movimento contra Lira significava mexer com
o Cartel da Estrela Negra, e, pior, colocava em risco o trabalho que fizemos
para manter a máfia italiana ao nosso lado. Eu não conseguia resistir em
testar os limites daquela desgraçada.
— O que quer que eu faça? — murmurei, a raiva substituída por uma
sensação incômoda de resignação.
— Quero que você pense. Que você avalie as consequências antes de agir. —
Ele se aproximou, suavizando um pouco o tom. — E lembre-se: uma batalha
vencida na hora certa vale muito mais do que um golpe impulsivo.
Eu assenti, mordendo o lábio enquanto processava tudo o que ele disse.
— Certo, tio — respondi, finalmente. — Desculpe pelo que fiz, prometo não
atirar na cara dela assim que a vir de novo.
Abri um sorrisinho inocente. Javier suspirou, mas sorriu e então eu soube que
estava livre de qualquer problema com ele.
☙❧
Lira Zamorano
O silêncio do porão era quase absoluto, quebrado apenas pelo som abafado da
respiração pesada que escapava dos meus lábios. Eu tentei mover as minhas
mãos, mas elas estavam amarradas acima da cabeça, presas por uma corrente
de ferro que descia do teto, deixando meus pés a centímetros do chão.
A tensão nos pulsos, o peso do próprio corpo, tudo parecia ser feito para
intensificar o desconforto. Eu estava bem acostumada com esse tipo de coisa,
afinal de contas, era onde eu vinha parar sempre que fazia algo de errado,
desde a infância.
Ali eu fui moldada para ser quem meu pai queria depois que meu irmão foi
morto, junto com a minha mãe em um atentado. Naquele dia um pedaço do
meu pai morreu com eles. E eu me tornei mais que a segunda filha, eu me
tornei a sua substituta.
Na penumbra, eu podia sentir a presença de meu pai, Arturo Zamorano,
observando enquanto o castigo era executado. Eu sabia que ele estava
desapontado, que considerava minha briga com Ayra um ato impulsivo e
estúpido, uma fraqueza inaceitável para alguém que carregava o nome
Zamorano.
O carrasco, um homem alto e robusto que eu conhecia bem, estava ali apenas
para cumprir ordens. Ele se aproximou lentamente, e eu prendi a respiração,
tentando preparar o corpo para o impacto.
O primeiro soco foi direto ao estômago, afundando com força e me fazendo
soltar um gemido baixo, o corpo se curvando por reflexo. A dor irradiou
como fogo, se espalhando pelo abdômen enquanto eu me forçava a retomar o
controle da respiração. Não queria mostrar fraqueza. Sabia que, se meu pai
estivesse ali para assistir, o mínimo que eu poderia fazer era suportar em
silêncio.
— Você sabe por que está aqui, Lira?
A voz fria de Arturo ressoou atrás de mim, quase suave, mas carregada de
decepção. Eu não respondi de imediato, lutando para recuperar da dor e
buscando algum ar, que o golpe me roubou. Mas ele não esperava uma
resposta.
Veio em seguida uma sequência de socos. Desta vez mais forte, atingindo o
mesmo ponto com precisão, fazendo o corpo inteiro estremecer de dor.
Fechei os olhos, o gosto amargo de bile subindo à garganta, mas me recusei a
ceder.
— Estou aqui porque... — engasguei, a voz quase um sussurro. — Porque…
eu não deveria ter perdido o controle.
Outro soco, mais uma vez no estômago, me arrancou um gemido de dor,
enquanto senti o gosto de sangue na boca.
— Uma Zamorano, minha herdeira, se comportando como uma qualquer,
como uma briguenta sem autocontrole… — a voz dele era uma faca cortando
o ar. — Você sabe o quanto isso me envergonha, Lira?
O carrasco me deu mais um golpe, desta vez um gancho que me atingiu o
lado do corpo, fazendo uma dor aguda rasgar minhas costelas, que ainda
estavam machucadas pelo “acidente”. Um som escapou dos meus lábios antes
que eu pudesse conter, e eu mordi a língua para engolir o grito que ameaçava
sair.
— Acha que ser herdeira é apenas um privilégio? — Arturo continuou, dando
um passo mais perto, a voz baixa mas implacável. — Se quer liderar, Lira,
vai ter que aprender a controlar esse fogo inútil que você acha que é força.
A raiva queimava sob a superfície da dor, uma vontade irracional de retrucar,
de gritar, mas me obriguei a permanecer em silêncio, a manter o controle. Eu
sabia que essa era a única forma de mostrar que entendia, que tinha absorvido
o recado.
Não ceder. Não chorar. Não mostrar fraqueza.
Mais um soco, e desta vez o ar escapou dos meus pulmões, uma dor
lancinante que me fez curvar o corpo novamente. Senti as lágrimas
queimarem nos olhos, mas mantive o rosto erguido, o olhar fixo no vazio. E
mesmo quando mais socos vieram, eu suportei, afinal de contas sempre foi
assim. Cada vez que desagradei meu pai, ele me fez aprender com a dor.
Finalmente, o carrasco recuou, os passos ecoando pelo porão enquanto ele se
afastava. Arturo permaneceu em silêncio por um momento, avaliando. Eu
sabia que ele estava ali, me observando, esperando qualquer sinal de
fraqueza. Mas não lhe dei isso.
— Espero que agora entenda o que significa carregar nosso nome — ele
disse, a voz como uma sentença final. — E da próxima vez que olhar para
Ayra Arellano, lembre-se disso. Cada erro, cada ato impulsivo, custará caro.
Ele deu as costas e saiu, deixando-me sozinha, pendurada, com a dor
irradiando em cada fibra do corpo. Mas, mesmo na escuridão e no silêncio,
uma promessa reverberava em minha mente. Ayra iria pagar por isso que eu
sofria também.
CAPÍTULO DOIS
Ayra Arellano
A noite estava fria e silenciosa, e o ar carregado do cheiro das docas criava
uma atmosfera sufocante. Eu e meu tio, Javier, havíamos sido convocados ali
sem muitas explicações pelo contato da máfia italiana, foi dito apenas que era
uma reunião urgente e que não podíamos ignorar.
Eu sabia que aquilo significava algo grande, e embora minha curiosidade
estivesse à flor da pele, mantinha a expressão impassível, seguindo meu tio
com a postura controlada que ele tanto exigia de mim. Mas então, à medida
que nos aproximávamos do ponto de encontro, avistei mais homens que não
pareciam da máfia italiana, bem como duas silhuetas que imediatamente me
fizeram travar o passo, assim como Javier.
A raiva misturada à surpresa me atingiu com uma força quase física, e senti
meu corpo enrijecer. Ali estavam Lira Zamorano e, ao lado dela, seu pai,
Arturo. Eles estavam ali, ambos com aquela postura de quem se considera
intocável, como se dominassem cada centímetro do lugar. Meu sangue
ferveu.
Observei vadia da Lira, com o queixo erguido, irradiando aquele ar de
superioridade irritante. Ela vestia preto da cabeça aos pés, quase como se
quisesse se misturar à escuridão. Em contraste com o rosto, exposto, com o
cabelo preso em um rabo-de-cavalo, que mesmo assim a deixou
insuportavelmente elegante.
Eu troquei um olhar rápido com Javier, mas ele se manteve ilegível, como se
já esperasse por isso. E então, sem dizer nada, continuei caminhando,
mantendo meus olhos fixos na figura de Lira.
O som de um motor se aproximando quebrou o silêncio e, então, três carros
pretos, de vidro escurecido, parou a alguns metros de distância entre nós e os
Zamorano.
As portas se abriram, e seguranças saíram, analisando o ambiente com um
cuidado que indicava a importância de quem quer que estivesse ali dentro.
Em meio ao suspense, uma figura elegante e imponente saiu do carro. Engoli
em seco.
Lyza Ferraro, a própria “mercadora da morte”, conhecida tanto pela sua
postura ártica, quanto pela crueldade, deixou o veículo. Seus olhos
percorreram o ambiente com uma calma perturbadora, mesmo quando se
moveu. Ela usava um terno escuro que a fazia parecer uma sombra
horripilante no meio da penumbra, o cabelo negro caindo sobre os ombros
com uma precisão que eu apostaria que era intencional.
Não havia ninguém no méxico que já tivesse visto ela de perto, ou pelo
menos que tivesse ficado vivo para contar história, mas a sua reputação a
precedia. Lyza era claramente uma pessoa no controle, e, enquanto se
aproximava de nós, seu olhar frio analisava cada um, deixando claro que
ninguém ali representava uma ameaça para ela.
— Boa noite, cavalheiros… e senhoritas, — disse Lyza, com um sorriso que
mal tocava os olhos. Havia algo naquele sorriso, uma ameaça velada que
deixava todos em alerta, como se só ela conhecesse uma piada mortal.
Notei o Arturo trocando um olhar com meu tio. Havia um entendimento
silencioso ali, uma trégua forçada pelo simples fato de que Lyza Ferraro
estava no comando daquela situação. Não era o momento de deixar a
rivalidade explodir.
— Imagino que estejam se perguntando por que eu os reuni aqui —
continuou Lyza, colocando as mãos nos bolsos do terno com uma postura
relaxada. — Mas a verdade é simples. As desavenças entre o Cartel do
Dragão Vermelho e o Cartel da Estrela Negra estão começando a afetar meus
negócios.
Ela parou, deixando o peso de suas palavras se estabelecer. O rosto de Arturo
permaneceu impassível, mas eu percebi a tensão em Javier, que me lançou
um olhar breve. Eu mesma senti a fúria se acumulando ao ouvir aquilo.
Que a máfia interferisse em nossa rivalidade era, no mínimo, uma afronta…
E imediatamente quis responder, mas eu sabia que não podia. Por isso mordi
a parte interna da minha bochecha, tentando me manter calada.
— Nosso Cartel está comprometido com os acordos com a senhora — Javier
tenta se explicar. Aquela submissão me deixou enojada, mas afinal, era Lyza
Ferraro.
— Eu posso dizer o mesmo do Cartel da Estrela Negra. — Arturo se
manifestou também.
Lyza deu um aceno, enquanto respirou fundo, um sorrisinho frio cruzou seu
rosto tão bonito quanto de um anjo caído.
— Irônico ouvir isso, quando tudo que tenho ouvido vindo de vocês são
problemas. — O tom de Lyza cortou o ar como uma lâmina afiada, e suas
palavras ecoaram pelo silêncio pesado das docas, carregadas de sarcasmo e
reprovação. — Cada ataque, cada retaliação, cada briga pública coloca em
risco os nossos acordos e, claro, a estabilidade que tanto prezamos no
mercado.
— Foram apenas episódios isolados, que foram contornados — Arturo disse,
e ele claramente parecia doente ao admitir isso. Notei como a Lira encarou o
chão, como se soubesse que ela era parte do problema.
— Contornado? — Ela pronunciou as palavras com um desdém controlado,
então seu olhar vagou entre mim e Lira. — Vocês podem até ter controle
sobre seus homens, sobre suas operações… mas sobre as consequências?
Sobre o impacto nos negócios de outros? Isso está fora do seu alcance.
— Com o devido respeito, senhora Ferraro — Javier começou, em um tom
educado, porém firme. — Nós cuidamos para que essas rivalidades não
atinjam outras organizações.
— Será mesmo? — Lyza o interrompeu, a voz gélida e carregada de
desprezo, os olhos fixos nele. — Se isso fosse verdade, você acha que eu
perderia meu tempo vindo até aqui?
Eu senti um calor subir pelo rosto ao ouvir aquilo, e meu primeiro impulso
foi rebater, deixar claro que não éramos nós os responsáveis por atrapalhar os
negócios dela. Mas antes que eu pudesse abrir a boca, vi o olhar de Javier,
um aviso silencioso para que eu me controlasse.
Do outro lado, Arturo e Lira mantinham expressões controladas, mas eu via
no rosto dela o mesmo desconforto que eu sentia. Era como se as palavras de
Lyza fossem uma sentença, um lembrete de que, para ela, nossos conflitos
eram nada mais que inconveniências, distrações que ela não podia se dar ao
luxo de tolerar.
— E não vejo alternativa além de intervir diretamente. Perder dinheiro e
tempo não é algo que eu tolero. — Lyza deu um passo à frente, olhando
novamente para mim e depois para Lira, um olhar afiado. — Vocês duas são
um problema.
— Problema? — Eu soltei uma risada que escapou antes que eu pudesse
controlar, um som curto e afiado. No mesmo instante, senti o olhar de Javier,
pesado e ameaçador, como se quisesse me amordaçar ali mesmo.
Foi então que Lyza mudou de postura. Ela me observou por um instante, e,
em um movimento lento e deliberado, começou a caminhar em minha
direção. Eu mantive o queixo erguido. Aqueles olhos azuis me encararam,
frios e calculistas, carregados de uma intensidade que parecia cortar o ar entre
nós. Naquele instante, entendi o que todos sentiam quando eram alvos
daquele olhar.
Era como se o gelo que ela trazia nos olhos pudesse penetrar a pele,
alcançando até os ossos. Pela primeira vez, senti um aperto no estômago que
não era apenas irritação. Era uma pontada incômoda de medo.
— Agir sem pensar não leva a lugar nenhum, boneca. Seria bom aprender a
manter a boca fechada. — Era ironizou e me encarou por mais um segundo,
como se me desafiasse a tentar algo. Dessa vez me contive, sentindo meu
sangue ferver. Ela riu, se virando, voltando a assumir o centro do espaço. —
Como eu falava, a briga das herdeiras dos cartéis… São um risco. E, sendo
franca, uma distração desnecessária. E por isso, proponho uma solução.
Lira ergueu o queixo, desafiadora, e eu cruzei os braços, esperando pela
próxima palavra dela. Lyza tinha nossa atenção total.
— Uma união — disse Lyza, a voz ecoando pelo silêncio ao redor. — Uma
parceria estratégica entre as herdeiras dos dois cartéis. É a única maneira de
garantir que os conflitos internos sejam eliminados e, ao mesmo tempo, de
fortalecer suas operações. Juntas, vocês poderiam consolidar rotas, expandir
territórios, e eliminar a interferência de outras organizações e
consequentemente, servir melhor ao contrato com a máfia.
A proposta caiu como uma bomba. Eu senti meu corpo enrijecer ao ouvir
aquilo, e o choque estampado no rosto de Lira foi quase satisfatório. O
sangue fervia em mim com o absurdo daquela ideia, mas eu sabia que, para
Lyza, nada era absurdo. Cada palavra dela era medida, cada gesto calculado.
— Isso é ridículo — Lira sibilou, a raiva em sua voz tão palpável. Aquela
reação de alguém sempre tão composto e frio com a Zamorano, me
surpreendeu.
— Ridículo é o caos que vocês duas estão causando — retrucou Lyza,
afiadíssima, sem perder a compostura. — Esse é um mercado onde alianças
são a diferença entre prosperar e ser devorado. Vocês duas têm talento, isso
eu admito. Mas estão desperdiçando tempo e energia em uma briga que não
leva a nada. Não acham que é hora de amadurecer e servir ao cartel de
maneira decente?
Eu troquei um olhar com Javier, buscando apoio, mas ele parecia intrigado
demais com a proposta de Lyza para refutá-la. Ele sempre fora ambicioso, e a
ideia de uma expansão vantajosa mexia com ele. Arturo, por outro lado,
analisava Lyza com olhos estreitos, como se tentasse encontrar uma falha em
suas intenções ou simplesmente quisesse vomitar.
— E o que exatamente espera dessa… união? — Javier perguntou, a voz
gélida. Lancei um olhar chocado para ele, afinal a última coisa que eu queria
era sequer considerar uma aliança com Lira.
— Um pacto de cooperação, onde os cartéis têm responsabilidades conjuntas
— respondeu Lyza, sem hesitar. — A atuação em territórios específicos será
coordenada, e as rotas e redes de distribuição, otimizadas, a entrada de mais
dinheiro. Isso beneficiaria ambos os cartéis… e, claro, garantiria que meus
negócios continuem intocados e possa expandir esmagando qualquer
concorrência, sem a dor de cabeça das brigas.
Houve um silêncio tenso, pesado. Era uma proposta que ia contra cada fibra
do meu ser, cada princípio que me sustentava. Mas aquilo era mais do que
uma proposta; era uma ordem disfarçada de sugestão.
— Pensem nisso — Lyza disse, ao ver nossas expressões desconfortáveis. —
Ou podem continuar se destruindo e arriscar perder tudo que tem com a
máfia… Há sempre outros interessados em me fornecer serviços e com meu
apoio podem esmagar os dois. A escolha é de vocês… mas eu espero uma
resposta logo.
Ela então se virou, dando a conversa por encerrada, caminhando de volta para
seu carro com a mesma tranquilidade com que havia chegado. O som de seus
passos ecoava pelas docas, deixando-nos num silêncio incômodo, cheios de
uma tensão que nenhuma palavra conseguiria dissipar.
☙❧
Lira Zamorano
Eu estava sozinha na garagem da mansão Zamorano, o cheiro de óleo, graxa
e metal queimado, não me incomodavam, longe disso. As ferramentas
estavam espalhadas pela bancada, e eu ajustava os parafusos de uma
motocicleta que vinha montando há semanas.
A tarefa para mim era mecânica, relaxante, algo que sempre me ajudava a
organizar os pensamentos, ou simplesmente me distrair. Mas hoje isso não
estava funcionando, talvez porque eu estivesse muito irritada.
A ideia de Lyza Ferraro ainda latejava na minha mente. União. Ela realmente
teve a ousadia de propor isso. Cada vez que pensava na palavra, sentia uma
onda de indignação me invadir, como se tivesse sido insultada da maneira
mais profunda possível.
Como ela ousou? União com Ayra Arellano? Com aquela maluca e
impulsiva herdeira do Dragão Vermelho? Era ultrajante. Não apenas pelo
absurdo da ideia, mas pelo fato de que Lyza supor que a Estrela Negra
precisava de qualquer “intervenção”, ainda mais daquele tipo.
Respirei fundo, apertando a chave inglesa com mais força do que deveria.
Girei o parafuso da motocicleta com força, o som do metal se ajustando me
trazendo um breve alívio. O motor reluziu sob a luz da garagem, e por um
instante, pensei que talvez eu devesse acelerar com ela para bem longe. Mas
não, isso seria covardia, algo que eu não poderia sequer considerar.
Meus pensamentos voltaram a Ayra. Recordando cada detalhe daquela noite,
da forma como ela me olhava durante a reunião, aquele misto de provocação
e arrogância. Aquela mulher era o oposto de tudo o que eu acreditava. Era
caótica, descontrolada, impulsiva, que parecia se divertir em se aproximar da
destruição. Tudo que eu desprezava. Ayra não conhecia limites. E agora, de
alguma forma, Lyza esperava que eu… colaborasse com ela.
Soltei uma risada baixa e sem humor, jogando a ferramenta de lado. A ideia
toda era absurda. Meu pai, Arturo, tinha permanecido em silêncio após o
encontro, mas eu sabia que ele estava pensando, calculando, considerando. E
isso me incomodava ainda mais. Porque, por mais que eu odiasse admitir,
Lyza Ferraro era alguém que não podia ser ignorada.
— Se Lyza quer tanto uma “união”, ela que case com aquela vadia… —
murmurei para mim mesma, o som da palavra saindo como veneno.
Me afastei da moto para pegar um pano e limpar as mãos. As luzes
fluorescentes lançavam sombras nas paredes da garagem, e por um momento,
pensei na ideia de ceder, de sequer considerar a possibilidade de união dos
cartéis, e fez meu estômago revirar.
Suspirei, jogando o pano sobre a bancada e encarando a motocicleta
inacabada. Lyza Ferraro deu uma ordem disfarçada de sugestão. Meu pai
tinha nas mãos a decisão sobre isso, e eu precisava conversar com ele,
encontrar um modo de dissuadi-lo.
☙❧
O sol da manhã entrava pelas janelas da casa, lançando sombras suaves pelas
paredes enquanto eu descia as escadas em direção ao escritório do meu pai. A
noite passada havia sido uma batalha interna.
Quando entrei no escritório, encontrei meu pai em pé, ajustando os punhos da
camisa enquanto conversava com Valentina. Sua postura era impecável,
como sempre, e seus olhos me encontraram no instante em que entrei. Ele
dispensou Valentina com um gesto, e eu dei um aceno a ela que saiu
silenciosamente, deixando-nos sozinhos.
— Bom dia, pai — cumprimentei, ainda cautelosa.
— Bom dia — Ele me respondeu com um aceno breve e disse algo que
imediatamente me deixou alerta — Estamos saindo.
Franzi o cenho, confusa. Meu pai não era do tipo que se movia sem
propósito, e qualquer encontro ou ação era cuidadosamente calculado.
— Para onde? — perguntei, a curiosidade se misturando à desconfiança.
— Javier Arellano pediu um encontro — respondeu ele, com a calma que
sempre carregava, mas que eu sabia esconder o peso da situação. — E eu
concordei.
Senti meu corpo ficar rígido. Javier Arellano, o homem que comandava o
Dragão Vermelho com brutalidade metódica. Ele nunca tinha pedido nada
diretamente a nós. Para ele solicitar um encontro… só podia significar algo.
— E por que, exatamente, nós estamos atendendo a esse pedido? —
perguntei, cruzando os braços. Meu pai ajustou a gravata, sem me olhar.
— Porque Lyza Ferraro tornou isso necessário.
A menção do nome dela foi suficiente para que a raiva da noite anterior
voltasse, embora eu tentasse não demonstrar. Fiz um esforço para manter
minha voz controlada.
— Acha que esse encontro vai resolver alguma coisa? Lyza pode querer
união, mas isso não significa que precisamos nos submeter.
Ele finalmente me encarou, com aquele olhar frio e calculista que sempre
usava para me lembrar de quem estava no comando.
— Não é uma questão de nos submetermos, Lira. É uma questão de
sobrevivência. Vamos.
Meu pai passou por mim, e não esperou nenhuma resposta. Respirando
fundo, eu fui atrás dele, mesmo que eu não quisesse, era necessário. No carro,
enquanto as ruas desfilavam pela janela, a tensão no ar era palpável. Meu pai
estava ao volante, algo raro, o que apenas enfatizava a gravidade do
momento.
Finalmente, ele quebrou o silêncio.
— Você entende o que está em jogo, não é? — perguntou, sem desviar os
olhos da estrada. Eu permaneci em silêncio por um instante antes de
responder, a voz cautelosa.
— Sei que Lyza está pressionando. Mas o Cartel da Estrela Negra nunca
precisou de ninguém.
Ele riu baixinho, um som sem humor, que eu conhecia muito bem. Papai
passou a mão pelo cabelo, ainda encarando a estrada.
— Isso é o que você pensa. Mas ninguém neste jogo está sozinho, Lira. A
máfia italiana tem operado por décadas como a força mais influente no
mercado europeu, e agora estão expandindo ainda mais suas rotas. Eles
precisam de estabilidade nas Américas para manter seus negócios intactos.
Cocaína, heroína, sintéticos... tudo passa por nós, pelos cartéis. E quando
algo ameaça essa estabilidade, eles intervêm. — Ele me lançou um olhar
breve, mas significativo. — E você sabe o que acontece com quem não se
adapta.
Senti o peso de suas palavras como um soco. A máfia não era apenas uma
parceira logística; era uma entidade superior, uma força que controlava
mercados, rotas e vidas com o mesmo desapego com que descartavam
problemas. E nós éramos, para eles, peças em um tabuleiro.
— Não quero fazer isso, pai — eu respondi sinceramente e senti o seu olhar.
— Eu também não quero — A voz dele era dura, contendo um desgosto
difícil de esconder. — Mas bater de frente com a Ferraro seria pouco
inteligente. Hoje nossa única ameaça é o Dragão Vermelho, podemos lutar
contra eles. Porém não contra a família mais poderosa da máfia ítalo-
americana, nem nos darmos ao luxo de perdemos nossos acordos comerciais.
E precisamos levar em consideração que há outros cartéis atuando, Lyza pode
transformá-los numa potência e teríamos mais um problema.
— Não temos saída — murmurei, entendendo perfeitamente o que ele queria
dizer.
— Exatamente, infelizmente, não consegui ver nenhuma por mais que
tentasse — Ele fez uma pausa, os dedos apertando o volante. — Não pense
que Javier está feliz com isso. Ele também está sob a mesma pressão. Esse
encontro é uma negociação.
A ideia me irritava profundamente, mas eu sabia que ele estava certo. Lyza
não estava nos dando escolhas. A máfia tinha um alcance que nenhum de nós
podia desafiar diretamente, e a pressão que colocava sobre nós era clara: ou
trabalhávamos juntos, ou seríamos varridos do jogo. Suspirei, olhando pela
janela.
— E o que você espera conseguir com esse encontro? — perguntei, tentando
conter o cinismo na voz.
— Precisamos ouvir. Ver o que Javier quer. E, mais importante, entender
como manter nossa posição intacta.
Eu não respondi, mas o desconforto crescia no fundo da minha mente. Não
importava o que Javier dissesse; uma coisa era certa: eu não confiava nele,
nem em Ayra, e a ideia de uma união com eles era tão absurda. E, ainda
assim, eu estava sendo empurrada em direção a isso, quer quisesse ou não.
Quando nós chegamos ao restaurante que ficava em um ponto discreto da
cidade, numa rua calma, longe do movimento intenso do centro. O
estacionamento estava vazio, exceto por alguns carros pretos de luxo que
reconheci como pertencentes aos homens de Javier Arellano.
Assim que entramos, senti a tensão aumentar. Javier já estava lá, sentado em
uma mesa no centro, com dois de seus homens em pé logo atrás dele. Ele
parecia relaxado, mas eu sabia que era uma máscara. Javier era conhecido por
sua dureza, um homem que raramente mostrava as cartas que tinha na mão.
Meu pai cumprimentou-o com um aperto de mão firme, e os dois trocaram
palavras cordiais. Eu permaneci em silêncio, observando enquanto eles se
sentavam. Eu podia sentir os olhos de Javier me analisando brevemente, mas
ele logo desviou o olhar, e focando apenas no meu pai.
— Vamos direto ao ponto — disse Javier, sua voz grave preenchendo o
ambiente. — Lyza quer que nossos cartéis cheguem a um acordo. E embora
eu não goste da interferência dela, não há como não nos submetermos.
— Concordamos nisso, — respondeu meu pai calmamente, inclinando-se
ligeiramente para frente. — O que tem em mente?
— Quero um acordo vantajoso, pois o Dragão Vermelho não aceita ser
tratada como uma extensão da Estrela Negra.
Meu pai soltou uma risada curta e fria, sem qualquer humor, e balançou a
cabeça.
— Javier, não estamos aqui para discutir quem comanda quem. O que Lyza
quer é eficiência, estabilidade. Isso significa que precisamos dividir
territórios de forma justa, ajustar as rotas de distribuição e, principalmente,
evitar que essa rivalidade atrapalhe o fluxo das operações.
Eu me mantive em silêncio, mas meus olhos saltaram de um para o outro
enquanto eles falavam. Era surreal ouvir as palavras "divisão justa" quando
tudo que sempre fizemos foi combater o comportamento do Dragão
Vermelho, que até ali tinha sido sobre invadir e dominar.
Javier suspirou, e fez um gesto para um dos seus homens, que entregou um
pequeno envelope com documentos a ele. Javier abriu o envelope, mas não
tirou nada de dentro; apenas colocou as mãos sobre a mesa e fixou o olhar no
meu pai.
— Rota norte para vocês. Distribuição internacional compartilhada, com
prioridade para o envio europeu sendo coordenado pelo Dragão. Controle
total de operações internas dividido igualmente. Isso significa que nenhum de
nós interfere nas áreas do outro sem autorização.
A frieza com que ele falava, como se estivéssemos discutindo a logística de
uma empresa legítima, me irritou profundamente. Era como se ele ignorasse
completamente o peso do que aquilo significava.
— Rota europeia variando entre o controle a cada carga, isso é o mais justo
— meu pai disse e Javier pensou.
— A maior rota é nossa — Javier apontou. — Temos que ter a prioridade.
— Uma para duas cargas então.
Os dois deram um aceno, como se estivessem se ajustando. Aquilo para mim
nem parecia real, o que me deixou com a sensação de estar vendo tudo, por
um filtro arranhado.
— E o que exatamente Lyza acha que isso resolve neste acordo? —
perguntei, incapaz de me conter. — Isso soa mais como um pacto para evitar
guerras do que como uma aliança verdadeira.
Javier me lançou um olhar breve, algo entre o desdém e a indiferença.
— Porque é exatamente isso que é, Zamorano. Um pacto para manter vocês
longe dos nossos territórios e, em troca, deixarmos vocês em paz.
Eu ri baixinho, mas a raiva era palpável na minha voz.
— E onde está Ayra nisso tudo? Ela deveria estar aqui, não? Afinal, é ela, a
"segurança" do Dragão Vermelho que vive causando problemas.
O sorriso de Javier desapareceu, e ele se inclinou para frente, os olhos fixos
nos meus com um brilho frio, que beirava violência que todos conheciam
bem.
— Ayra não tem opinião aqui — respondeu ele, a voz gélida. — Ela fará o
que eu mandar. Este é o meu cartel, e as decisões são minhas.
Meu pai trocou um olhar rápido comigo, mas permaneceu em silêncio,
observando Javier com atenção. Havia algo no tom dele, algo que me fazia
pensar que Ayra talvez não concordasse tão facilmente quanto ele dizia.
Javier voltou-se para meu pai.
— O que me interessa é saber se você concorda com os termos. Porque Lyza
deixou claro que a alternativa não é algo que nenhum de nós quer.
— Parece bom o que temos — Meu pai ponderou por um momento, os dedos
tamborilando na mesa antes de falar. — Mas quero garantias de que o
Dragão Vermelho respeitará as fronteiras acordadas.
Javier sorriu de forma lenta, quase predatória.
— Arturo, você tem a minha palavra. E, sinceramente, não vejo motivos para
quebrar um acordo que nos beneficia tanto.
A reunião continuou com detalhes sobre rotas e porcentagens, mas minha
mente estava distante. A ideia de Ayra sendo deixada de fora da decisão
parecia tão errada quanto toda essa aliança. Mas, ao mesmo tempo, eu sabia
que ela não ficaria calada por muito tempo. E isso só aumentava minha
inquietação.
☙❧
Ayra Arellano
☙❧
Lira Zamorano
Lyza estava sentada tranquilamente, com a xícara de chá delicadamente
apoiada entre os dedos, naquela casa de chá elegante no coração de Nova
Iorque. O lugar era uma fusão de sofisticação e tradição, com móveis de
madeira escura, luzes suaves e janelas amplas que deixavam a luz natural
iluminar o ambiente. Mas, mesmo naquele cenário impecável, a presença de
Lyza dominava tudo. Sua postura era impecável, o corpo relaxado, mas
carregado de uma autoridade silenciosa.
Eu estava sentada à mesa com meu pai, Arturo, observando enquanto Lyza
mexia a colher na xícara com movimentos lentos e calculados. O silêncio
entre nós era tão pesado quanto a importância daquele encontro. Não havia
espaço para conversa fiada, apenas para o motivo que nos trouxera até ali: o
pacto que selaria a aliança entre o Cartel da Estrela Negra e o Dragão
Vermelho.
Meu pai estava quieto ao meu lado, a postura rígida como sempre, mas eu
percebia o brilho nos olhos dele. Arturo Zamorano era um homem de
negócios, acima de tudo, e via naquela união forçada uma oportunidade para
consolidar seu poder. Eu, por outro lado, estava com os nervos à flor da pele.
A ideia de ser usada como peça nesse acordo me corroía, mas sabia que não
tinha escolha.
Lyza finalmente ergueu o olhar, seus olhos azuis me analisando como se
pudesse ler cada pensamento que eu tentava esconder. Era desconcertante,
mas eu não desviei o olhar. Não daria a ela o prazer de me ver hesitar.
— Então, Arturo — começou ela, sua voz tão suave quanto perigosa. —
Espero que tenhamos alinhado todos os detalhes. Não gosto de perder tempo
com decisões mal resolvidas.
Meu pai assentiu, inclinando levemente a cabeça.
— Está tudo nos conformes, Lyza. Os termos foram discutidos, e
concordamos com a divisão proposta. A união entre Lira e Ayra consolidará
o acordo.
— Que bom ouvir isso. — Lyza esboçou um sorriso, algo entre satisfação e
ironia, o gesto era extremamente irritante. — Odeio interferências, mas devo
admitir que gosto quando as coisas caminham como planejado.
A porta da casa de chá se abriu nesse momento, e eu senti um arrepio
percorrer minha espinha. Mesmo antes de virar a cabeça, sabia quem estava
entrando. Eu virei o rosto lentamente, assistindo Javier Arellano. E, claro, ao
lado dele, Ayra.
Era óbvio que Ayra não estava ali por vontade própria; a contrariedade
transbordava de cada gesto, desde a rigidez nos ombros até o jeito que seus
olhos percorreram o ambiente, ardendo com uma raiva mal contida.
Ela usava um vestido bege que abraçava seu corpo com elegância, sem
precisar de detalhes chamativos; o corte simples e impecável realçava sua
figura de uma maneira que exalava uma autoconfiança quase insolente. Seus
cabelos caíam em ondas suaves sobre os ombros, a cor castanho claro
iluminada de uma forma que dava um ar quase angelical, mas eu sabia que
essa suavidade era apenas aparente.
Ayra era um paradoxo. Uma beleza suave e serena por fora, mas que
escondia uma intensidade caótica, quase selvagem. Cada detalhe dela parecia
pensado para disfarçar o perigo que carregava, como uma faca de lâmina
escondida em uma bainha de seda.
Aquela combinação de força e delicadeza era, no mínimo, irritante. Aquele
tipo de beleza não deveria ser dada para alguém como Ayra, mas
infelizmente, o mundo não era justo. E eu odiava admitir, mas a presença dela
preenchia o espaço, era quase hipnotizante, que dominava os olhares.
Os dois caminhavam com a mesma confiança típica dos Arellano. Mas
quando o seu olhar encontrou o meu imediatamente, notei o brilho de desafio
nos olhos dela foi como uma provocação direta. Eu suportei sua afronta, sem
deixar minha expressão impassível deslizar.
Logo eles se sentaram à mesa, e o ambiente ficou ainda mais pesado. Ayra
evitou olhar para Lyza, fixando os olhos em mim, agora com uma mistura de
raiva e frustração. Enquanto Lyza, como sempre, permaneceu tranquila,
como se fosse apenas mais um dia de negócios.
— Javier, Ayra — cumprimentou Lyza, cruzando as pernas e pousando a
xícara de chá na mesa com um cuidado meticuloso. — Que bom que
puderam vir. Acredito que agora podemos oficializar o acordo.
Javier assentiu, lançando um olhar breve para Ayra, como se a advertisse em
silêncio para se comportar.
— Estamos aqui para isso, Lyza. O Dragão Vermelho está comprometido em
garantir que esse pacto traga estabilidade para todos os envolvidos.
Eu quase ri da formalidade, mas Ayra parecia prestes a explodir. Ela estava
sentada ao lado do tio, com as mãos apertadas sobre o colo, os lábios
franzidos em uma linha fina de pura indignação. Eu podia sentir a fúria dela
irradiando como calor.
— Estabilidade é a palavra certa — disse meu pai, sua voz firme, mas parecia
mórbida. — Esse acordo beneficiará a todos nós, tanto no controle de
territórios quanto na logística.
Lyza inclinou a cabeça ligeiramente, os olhos passando de Javier para Arturo,
e então para mim e Ayra. Aquele ar superior, perigoso e desdenhoso.
— Isso significa que ambos os lados estão dispostos a cumprir com suas
partes. E, mais importante, que nossas herdeiras também.
Ayra bufou, o som cortando o silêncio. Todos os olhares se voltaram para ela,
e eu vi Javier apertar os lábios em irritação. Ela cruzou os braços, finalmente
se inclinando para frente.
— Não vou fingir que concordo com isso, — disse Ayra, a voz carregada de
veneno. — Mas se é isso que querem, então que fique claro: eu faço minha
parte, mas não espere que seja fácil.
— Ayra, querida, eu não espero que seja fácil. Apenas espero que seja feito.
— A voz de Lyza cortou o ar como uma lâmina, suave, mas afiada o
suficiente para deixar uma marca. Então, seus olhos frios se voltaram para
mim, e um sorriso irônico surgiu em seus lábios. — Parece que você tem uma
gata raivosa a domar, Lira.
Senti meu estômago revirar, a mistura de raiva e humilhação queimando por
dentro. Lyza não estava apenas falando sobre o acordo; ela estava se
divertindo com a situação, deixando claro que, para ela, isso era um jogo.
Olhei para Ayra, e ela já estava me encarando com o mesmo olhar desafiador
de sempre, como se essa fosse mais uma disputa entre nós. Mas desta vez,
não havia vencedor. Só havia nós duas, peças sacrificadas no tabuleiro da
máfia e dos cartéis.
— Isso não é um acordo — falei, sentindo a tensão crescer no peito e me
dirigir a Lyza. — É uma sentença.
Ela ergueu uma sobrancelha com curiosidade, o sorriso frio em seus lábios se
ampliando, como se minha revolta fosse exatamente o que ela esperava, ou,
pior, o que ela queria. Ela repousou a xícara de chá com cuidado, o som do
contato da porcelana com o pires cortando o silêncio.
— Então, Lira, Ayra — concluiu Lyza, os olhos alternando entre nós duas. —
Escolham como querem encarar isso. Como um acordo ou sentença… Eu
garanto que, comparado ao que a máfia é capaz de exigir, isso é uma oferta
generosa. Me mandem fotos do casamento.
A mafiosa italiana se ergueu, e sem se despedir ela deixou a sala, assobiando.
O silêncio caiu novamente, e senti minha respiração pesar. Generosa. Aquela
palavra parecia uma ironia cruel, considerando o que ela estava pedindo de
nós. Mas, ao mesmo tempo, não havia como ignorar a gravidade do que Lyza
estava dizendo. Essa “união” não era uma escolha. Era a última alternativa
antes de algo muito pior.
— Agora que aquela vadia italiana saiu, eu quero falar com a Zamorano a sós
— Ayra disse de repente, sua voz cortando o silêncio que Lyza havia deixado
para trás. Seus olhos estavam fixos em mim, um brilho desafiador que
parecia atravessar a mesa. Então, ela se virou para Arturo e Javier, como se
exigisse algo que já era de direito dela. — Eu acredito que pelo menos essa
autonomia temos.
Meu pai trocou um olhar com Javier, e o silêncio entre eles foi curto, mas
carregado de significado. Arturo inclinou-se levemente para frente, seu olhar
passando de Ayra para mim, avaliando a situação.
— Seja breve, Ayra, — Javier respondeu finalmente, com um tom firme que
não deixava espaço para negociações. — E controle-se. Isso vale para as
duas.
Arturo se levantou lentamente, ainda me lançando um olhar como quem diz
para eu ter cuidado, antes de sair com Javier. Os passos deles ecoaram pelo
chão, até que o som desapareceu completamente. Agora era só nós duas.
Ayra cruzou os braços, o maxilar tenso e os olhos cheios de raiva me
encarando como se quisesse me destruir ali mesmo. Eu continuei sentada,
mantendo minha postura ereta e calma, mesmo que por dentro meu corpo
inteiro estivesse em alerta. Ficar diante daquela criatura era sempre algo
complicado e totalmente imprevisível.
— Fale logo, Ayra — disse, o tom gélido, cruzando as mãos no colo. — O
que é tão urgente que você precisava me confrontar aqui?
Ela riu, uma risada curta e carregada de cinismo, antes de se inclinar um
pouco para frente. Mesmo com a mesa entre nós, eu pude sentir o cheiro
fresco e floral vindo dela.
— O que é tão urgente? — repetiu, como se a pergunta fosse absurda. —
Talvez o fato de que estou sendo arrastada para um acordo que ninguém
pediu a minha opinião? Talvez o fato de que vou ter que “unir forças” com
alguém que eu mal consigo tolerar?
— Bem-vinda ao clube, Arellano. Acha que eu pedi por isso?
Levantei uma sobrancelha, sem controlar o impulso de retrucar
imediatamente. Ela me encarou, o fogo nos olhos se intensificando, mas
dessa vez misturado com algo mais, talvez frustração, talvez exaustão.
— Pelo menos você tem seu pai decidindo as coisas com base em lógica. —
Ela bugou, então se jogou contra a cadeira, cruzando os braços. Ela parecia
uma criança birrenta, de repente. — Javier só me colocou nisso porque acha
que pode me usar como peça nesse jogo.
A declaração me pegou de surpresa por um instante, mas me recusei a
demonstrar. Em vez disso, inclinei-me levemente para frente, o olhar fixo no
dela.
— Peça no jogo ou não, Ayra, estamos ambas na mesma posição. Isso não é
algo que podemos evitar.
Ela bufou, desviando o olhar por um segundo antes de voltar a me encarar.
— Infelizmente — Ela mordeu a parte interna da bochecha, como se
estivesse pensando. — Mas o fato é que nós nos odiamos, Lira. E, no final,
um de nós vai acabar destruindo o outro. É assim que funciona.
— Talvez. Mas, por enquanto, somos obrigadas a jogar o jogo. E, se for para
isso funcionar, é melhor você aprender a se comportar.
— E você acha que vai me domar, Zamorano? — Ela riu, mas era um som
carregado de desafio. — Boa sorte com isso.
Permaneci onde estava, sem recuar, mantendo o olhar fixo no dela.
— Não se trata de te “domar”, Ayra. Se trata de sobreviver. E se isso
significa que vou ter que tolerar você, então é o que vou fazer.
O silêncio caiu entre nós, pesado e carregado de tensão. Ayra ficou ali por
um segundo, os olhos ainda ardendo, antes de finalmente quebrar a
monotonia, soltando um suspiro frustrado.
— Isso ainda vai ser um desastre, — ela murmurou, mais para si mesma do
que para mim, antes de se levantar de repente e sair, deixando-me sozinha
com meus próprios pensamentos. E a certeza de que ela tinha razão.
☙❧
Ayra Arellano
Duas semanas. Fazia duas semanas desde aquele maldito encontro em Nova
Iorque, desde que a sentença, foi anunciada ao mundo dos cartéis. A união do
Dragão Vermelho e da Estrela Negra. E junto com essa notícia, veio o peso, o
sufoco de saber que todos agora pesavam em mim como uma mandada, dócil
e obediente.
Mas eu não era dócil. Eu nunca fui.
Desde então, minha vida virou uma sequência de erros. A única maneira que
encontrei de lidar com a raiva, com a humilhação de ser jogada em uma
aliança forçada com Lira Zamorano, foram as festas, bebidas, apostas de
corrida, ou qualquer coisa que me fizesse esquecer por algumas horas o que
estava acontecendo.
Eu queria ruído, queria me perder no som, nas luzes, nas pessoas. E, para ser
honesta, eu também queria me destruir um pouco no processo. Porque no
fundo eu estava me odiando tanto.
Nessa noite, eu escolhi uma festa especial, de longe, a mais caótica. O tipo de
evento cheia de sexo, bebidas e drogas, que atraía todo tipo de gente:
corredores ilegais, herdeiros de famílias ricas buscando perigo, e claro, outros
nomes do submundo, todos se misturando em um lugar que pulsava com
música e energia.
Era o cenário perfeito para afogar minha raiva. Entrei na festa com um
vestido curto, preto e justo, algo que parecia combinar com a energia
selvagem que eu carregava. No segundo que cruzei as portas, fui envolvida
pelo som ensurdecedor, pelas luzes piscando em tons tão variados que me
deixava zonza, junto com cheiro de álcool misturado com perfume caro e
cigarro. Era o caos que precisava disso mais do que nunca.
Logo encontrei uma turma conhecida. As rodadas de tequila foram abertas.
Mas logo eu estava tomando dose atrás de dose, misturando a outras coisas,
sentindo meu corpo entorpecer. Não demorou para que eu estivesse na pista
de dança, me movendo ao ritmo da música como se pudesse me perder ali
para sempre. Cada passo, cada movimento era um jeito de extravasar o que
eu sentia, a raiva, a frustração, a sensação de que eu estava perdendo o
controle da minha própria vida.
Os olhares me seguiam. Eu sabia disso. Sempre me seguiam. Mas naquela
noite, eu não me importava. Flertava descaradamente, deixando que os
olhares permanecessem, que os sorrisos se prolongassem. Beijei um estranho
no canto da pista, sem nem me importar com o nome dele, e quando ele
perguntou se queria sair dali, eu apenas ri e voltei para o bar para mais uma
rodada de tequila.
Na próxima música eu beijei duas garotas, isso foi divertido. A música subia,
e eu subia com ela. Dançando, rindo, bebendo. Em algum momento, não
lembro quando, fui parar sobre uma mesa de pole dance. Homens e mulheres
tocavam em mim, dinheiro era colocado no meu decote, cada vez que eu
rebolava mais ao som da música pulsante. A essa altura eu sentia apenas
flutuando no caos, esse caos era bem-vindo, sem me sentir domada.
Sem noção do tempo, notei bem tarde, que as coisas começaram a sair do
controle. Uma discussão estourou perto do bar, alguém puxou uma faca, e as
vozes começaram a subir. Eu estava sentada no balcão, com um copo de
uísque na mão, observando tudo como se fosse um espetáculo montado só
para mim. Quando a briga explodiu, com copos se quebrando e gritos
ecoando, eu apenas ri, balançando a cabeça e tomando mais um gole.
Era isso que eu queria. A confusão. Aquela diversão perigosa. Qualquer coisa
que não fosse a maldita ideia de estar presa a Lira Zamorano e ao inferno que
essa união representava. Mas mesmo enquanto ria, mesmo enquanto fingia
que tudo aquilo era suficiente para me distrair, algo em mim sabia que isso
não duraria.
No final, eu cedi. No final eu perdi e seria acorrentada a minha pior inimiga.
☙❧
Acordei com uma pontada latejante na cabeça e o corpo pesado, como se
cada músculo estivesse protestando contra qualquer movimento. O quarto era
estranho, um espaço decorado com móveis modernos e minimalistas, mas
sem nada que eu reconhecesse. O cheiro de perfume doce misturado com
álcool ainda estava no ar, junto ao som abafado de alguém respirando ao meu
lado.
Virei lentamente a cabeça e vi dois corpos deitados na mesma cama que eu.
Um homem, alto, com tatuagens nos braços e o cabelo bagunçado, e uma
mulher de cabelos loiros e curtos, que parecia tão apagada quanto eu.
Fragmentos da noite anterior começaram a surgir, como flashes desconexos.
A festa. O riso. Os olhares. O convite.
Aceitar sair com eles havia parecido uma ótima ideia depois de tantas
bebidas. E, pelo calor residual na pele e o cansaço no corpo, eu sabia que a
noite tinha sido animada. Muito animada.
Soltei um suspiro, me espreguiçando com cuidado para não acordar nenhum
dos dois. Era melhor sair antes que precisasse trocar qualquer palavra
constrangedora com pessoas que, sinceramente, eu nem me lembrava do
nome. Peguei minhas roupas do chão, onde estavam espalhadas, e as vesti
rapidamente, o vestido preto amassado e com o cheiro da festa impregnado
nele.
Encontrei meu telefone na mesinha de cabeceira e chamei um táxi, saindo do
apartamento silenciosamente. O ar fresco da manhã bateu no meu rosto assim
que a porta se fechou atrás de mim, e eu respirei fundo, tentando organizar
meus pensamentos.
A noite anterior tinha sido um borrão de caos, mas mesmo assim, não era
suficiente para apagar o peso que eu carregava.
No táxi, permaneci em silêncio, observando a cidade passar pela janela
enquanto massageava as têmporas na esperança de aliviar a dor de cabeça.
Pedi para me deixar na garagem do prédio onde meu carro estava
estacionado. Eu mantinha um apartamento ali, um lugar que raramente usava,
mas que agora parecia o refúgio perfeito.
Ao chegar, entrei rapidamente no apartamento, trancando a porta atrás de
mim. O espaço era pequeno, mas funcional, com uma cozinha compacta, uma
sala de estar bem decorada e um quarto aconchegante. Fui direto para o
banheiro, tirando o vestido e jogando-o em um canto antes de ligar o
chuveiro. A água quente escorria pelo meu corpo, levando embora o cheiro
da noite, mas não o cansaço que parecia impregnado na minha alma.
Enquanto lavava o rosto, olhei para o espelho embaçado e vi meus olhos
cansados refletindo de volta. Eu estava péssima, e sabia disso. Cada festa,
cada corrida, estava cobrando seu preço, por um prazer momentâneo. Não
importava o quanto eu tentasse escapar da realidade, não havia fuga possível.
Depois do banho, vesti uma calça jeans e uma camisa branca, algo simples,
mas confortável, e prendi o cabelo em um coque, colocando óculos escuros.
Peguei minha bolsa, passando reto pela cozinha, não tinha nada para comer, e
no final, meu estômago não estava pronto para nada sólido. O gosto amargo
na boca e a náusea leve me lembravam que meu corpo ainda estava se
recuperando. Peguei as chaves do carro e desci até a garagem.
Meu lindo Mustang GT estava ali, brilhando. Dirigir foi quase automático, as
mãos firmes no volante enquanto eu cruzava a cidade. Acabei parando em
uma cafeteria pequena, o tipo de lugar onde ninguém se importava com quem
você era ou o que estava fazendo ali. Pedi um café forte e me sentei em uma
mesa no canto, longe da janela, no lugar mais escuro e quieto.
O aroma do café quente ajudava a afastar um pouco da névoa na minha
mente, mas a inquietação permanecia. Olhei para a fumaça que subia da
xícara, tentando encontrar algum tipo de clareza ali. Suspirei, tomando um
gole do café, o amargor do líquido ecoando o que eu sentia por dentro.
Talvez eu pudesse continuar me afogando no caos. Ou talvez fosse hora de
começar a encarar a realidade.
Quando sai da cafeteria, abri minha bolsa, procurando meu óculos e a chave
do carro. Entretanto, quando virei até a esquina onde eu tinha estacionado,
meus pés simplesmente travaram e eu tive que piscar várias vezes, até
racionalizar o que tinha acontecido.
Meu carro. Meu Mustang GT preto lindo estava destruído.
A lataria amassada, os vidros completamente pinchados, o capô retorcido
como se um trator tivesse passado por cima. Fiquei parada, o choque me
imobilizando por um momento, antes que a raiva explodisse como um vulcão
dentro de mim.
— QUE DROGA É ESSA?! — gritei, minha voz ecoando pelo vazio. —
QUEM FEZ ISSO?
Senti meu corpo inteiro queimar, cada músculo tenso enquanto passava as
mãos pelo cabelo, tentando conter a vontade de arremessar alguma coisa. Não
era só um carro. Era o meu carro. Meu bebê. Meu orgulho. E alguém tinha
feito isso de propósito.
Foi então que ouvi o som inconfundível de um motor potente, ronronando
como um predador à espreita. Olhei na direção do som e vi um Mercedes
AMG GT prata, brilhante e impecável, deslizando pela rua, como se estivesse
em um comercial. O carro parou a poucos metros de mim, e o sol refletiu nos
vidros transparentes, revelando a figura que estava ao volante.
Lira Zamorano.
Sentada no banco de couro, com uma postura relaxada e carregando um
sorriso de canto, ela parecia a personificação da arrogância. A Mercedes
reluzia, assim como a Lira ali dentro, mas o que mais me irritou foi o olhar
dela, fixo em mim, carregado de provocação.
Lira ergueu a mão, fazendo um pequeno gesto na direção do meu Mustang
destruído, como se estivesse apresentando uma obra de arte. Então, abriu um
sorrisinho cínico, inclinando a cabeça levemente.
— Que pena, Arellano. Parece que seu precioso Mustang teve um dia ruim.
Eu não precisei ouvir a voz dela. Eu li seus lábios e aquelas palavras foram
como gasolina jogada no fogo. Senti meu corpo inteiro vibrar de raiva. Antes
que percebesse, já estava marchando na direção do Mercedes AMG, minha
bolsa pendurada no ombro, os dedos já procurando pela arma que sempre
carregava.
Meu coração martelava, a raiva pulsava em cada fibra do meu corpo.
Cheguei até a frente do carro dela e parei ali, bloqueando seu caminho. Puxei
a pistola da bolsa e apontei diretamente para o para-brisa, a raiva cegando
qualquer pensamento lógico. Sem hesitar, comecei a atirar.
Bang. Bang. Bang. Bang. Bang. Bang.
Eu descarreguei minhas balas, o som dos disparos ecoou pela, mas o vidro do
carro nem se arranhou. Blindado. Claro que era blindado. Era Lira Zamorano,
afinal. Ela não se moveu. Nem piscou. Ainda estava lá, sentada no carro, com
aquele mesmo sorriso irritante no rosto, como se nada tivesse acontecido.
Minha respiração estava descontrolada, enquanto seus olhos encontraram os
meus através do vidro, e vi algo neles que me fez explodir ainda mais:
divertimento. Ela estava gostando disso. Soltei um grito de frustração. Eu
andei até o lado do motorista.
— Sua cadela desgraçada. Baixe esse vidro!
Lira apenas arqueou uma sobrancelha, como se estivesse me analisando. Mas
então lentamente baixou o vidro. O sorriso dela se ampliou com provocação.
— Terminou? — perguntou, com a voz suave, mas carregada de sarcasmo.
— Se quiser, posso esperar enquanto você recarrega a arma. Mas já aviso,
Blindagem nível três.
— Eu devia atirar em você, não no carro! — gritei, minha voz tremendo de
ódio. Segurei a arma com tanta força que minhas mãos doíam, mas a ideia de
vê-la rindo de mim era ainda mais insuportável. — Por que você destruiu
meu carro?
Ela inclinou a cabeça, batendo de leve no volante com a unha, como se
estivesse entediada.
— Um recado para você se comportar.
— O que? — pisquei confusa.
— Pare com as suas noitadas. Você afinal é comprometida agora e eu não
vou tolerar piadas sobre mim, por sua causa.
Eu queria arrancá-la daquele carro. Queria rasgar aquele sorriso do rosto dela.
Mas antes que pudesse dar mais um passo, ela fechou o vidro, mas eu bati
com a arma nele. Lira sorriu, dando um tchauzinho então acelerou o carro
levemente, o motor rugindo com ela indo embora.
Aquela cadela sádica. Ela fez isso por puro ego. Mas isso não ia ficar assim,
com certeza não iria.
☙❧
Lira Zamorano
Eu ainda me divertia com a memória de Ayra completamente histérica,
descarregando a raiva em meu carro blindado, enquanto gritava como se
pudesse me destruir junto. Foi, sem dúvida, uma das cenas mais satisfatórias
que já presenciei.
Ela não conseguia esconder o temperamento explosivo nem por um segundo,
e vê-la perder o controle por causa do Mustang, um carro bonito, admito, mas
ainda assim substituível, foi quase terapêutico.
Mandar destruir o carro foi uma decisão impulsiva, mas também calculada.
Eu sabia que aquilo a atingiria onde doía mais, aparentemente ela amava
aquele carro. Aquele castigo foi merecido.
Ela vinha provocando com as notícias de suas escapadas constantes, de festas
até o amanhecer, corridas clandestinas, apostas arriscadas. Até que meus
parceiros de negócios, alguns dos mais tradicionais e sérios, começaram a
comentar comigo, sempre com aquele tom levemente sarcástico que me
deixava com os dentes cerrados.
“Parece que sua futura noiva está aproveitando bem a vida, não é”... um
deles disse, com um sorriso malicioso enquanto folheava alguns documentos
durante uma reunião.
Eu sorri de volta naquele dia, mas apertando o punho por baixo da mesa.
Futura noiva. Aquelas palavras eram um lembrete cruel da situação em que
estávamos. Não importava o quanto a ideia fosse terrível, o mundo já nos via
como um par, uma união forçada que deveria simbolizar a estabilidade entre
os cartéis. E Ayra estava jogando isso no lixo, com aquele seu temperamento
volátil e imprudente.
Cada notícia, cada rumor sobre suas aventuras noturnas, fazia com que eu
precisasse trabalhar ainda mais para manter a minha imagem intacta. Afinal,
eu era Lira Zamorano, a filha disciplinada, a herdeira que seguia as regras.
Enquanto isso, Ayra parecia determinada a desestabilizar tudo.
Suspirei, tentando afastar os pensamentos sobre Ayra e me concentrar na
negociação que tinha naquela noite.
Entrei no restaurante, o ambiente era uma mistura de sofisticação e tensão
contemporaneidade, como sempre era em encontros de negócios. O lugar
reservado estava iluminado suavemente, com mesas afastadas o suficiente
para garantir privacidade.
Quando tomei meu lugar na mesa, foi junto a dois de nossos parceiros
estratégicos, homens que controlavam redes de distribuição no norte e que
tinham influência suficiente para complicar nossas operações caso as coisas
não corressem bem.
— A questão não é só manter as rotas seguras, — disse um deles,
gesticulando com um copo de vinho na mão. — É garantir que a logística
funcione como um relógio. Qualquer atraso afeta a nossa imagem e, mais
importante, o lucro.
Assenti, mantendo minha postura controlada. Era o mesmo discurso de
sempre. Todo mundo queria eficiência, mas ninguém considerava o trabalho
que isso exigia.
— Concordo, e é exatamente por isso que estamos ajustando as rotas
principais, — respondi, minha voz firme. — O acordo com o Dragão
Vermelho vai solidificar os envios, especialmente para o norte. A integração
das nossas redes é uma questão de tempo, e isso vai simplificar as operações.
Eles trocaram olhares rápidos, e eu sabia que estavam testando o quanto
podiam confiar em mim. Arturo tinha me dado autonomia para conduzir essa
negociação, e eu sabia que qualquer deslize aqui cairia sobre mim.
— E quanto à… instabilidade entre vocês e os Arellano? — um deles
perguntou, a voz casual, mas o olhar atento.
Minha mandíbula apertou levemente, mas mantive o sorriso.
— Instabilidade? Não há instabilidade. — Fiz uma pausa, tomando um gole
do meu vinho antes de continuar. — O que houve foi resolvido, e agora
estamos trabalhando juntos em prol de algo maior.
Uma mentira educada, mas eficiente. Eles pareceram satisfeitos com minha
resposta, e a conversa começou a fluir para questões mais técnicas.
Eu me concentrei nos números, nas rotas, em todos os detalhes que
garantiriam que essa negociação fosse um sucesso. Mas, enquanto um deles
falava, percebi um movimento no bar, algo que chamou minha atenção.
Meus olhos se desviaram por reflexo, e foi quando eu a vi. Ayra.
Ela estava encostada no balcão, vestindo um conjunto de couro preto que
gritava provocação, e segurava um copo de uísque enquanto sorria para um
homem ao seu lado. Não era só um sorriso qualquer. Era um sorriso sujo.
Meu sangue ferveu instantaneamente. O que ela estava fazendo aqui? Isso
não era uma coincidência. Com certeza não era, isso estava mais para uma
provocação descarada, uma forma de retaliação pela destruição do maldito
Mustang.
Ela riu, jogando a cabeça para trás de forma exagerada, como se a conversa
com o homem fosse a coisa mais interessante do mundo. Se ele fosse
inteligente iria notar que ela estava sendo uma falsa. Mas aparentemente o
idiota só tinha olhos para os seios daquela desgraçada. Os dedos dela tocaram
levemente o braço dele, e, por um segundo, eu quase me levantei.
Isso não era apenas flerte. Era um show. Para mim.
Forcei um sorriso para os homens na minha mesa, fingindo que nada estava
fora do normal, mas minha atenção estava completamente voltada para Ayra
agora. Ela sabia exatamente o que estava fazendo.
Tomei um gole longo do meu vinho, tentando acalmar a raiva crescente. Eu
precisava manter aquele encontro, longe de problemas. Mas quando Ayra
virou a cabeça e nossos olhares se cruzaram, o sorriso dela se alargou. Era
um sorriso de triunfo, de desafio e então jogou a sua bebida no homem a sua
frente, fingindo que foi um acidente.
Ela provocou uma cena atraindo a atenção de todos. Inclusive dos meus dois
negociantes.
Merda.
— Aquela não é a Ayra Arellano? — um deles indagou. Seus olhos brilhando
com um conhecimento claro. Sua pergunta era retórica.
— Ela está me esperando — eu disse, jogando o guardanapo na mesa, me
levantando. — Com licença.
Eu precisava tirar aquela “bomba relógio” daquele salão. Antes que todos
percebessem que os representantes da “união” dos cartéis mais poderosos do
México, continuavam em pé de guerra.
— Oh, eu sou tão desastrada, me deixe limpar isso. — Eu ouvi Ayra dizer,
pegando um guardanapo, levando a mão ao peito do homem à sua frente.
— Ele pode fazer sozinho! — eu disse, arrancando o pano da mão dela,
empurrando no peito do estranho. — Saia daqui.
Lancei um olhar cortante ao homem. Ele piscou, claramente em choque, sem
entender o que estava havendo, lançando um olhar para Ayra. Que por sua
vez, usava de uma expressão inocente sexy demais para ser natural.
— Oi noivinha, surpresa? — Ayra praticamente ronronou para mim. — Não
mande meus convidados embora.
— Ela é sua noiva? — O homem perguntou. Ayra lançou um olhar malicioso
para ele.
— Sim… Mas ela sabe dividir.
— Ayra — Advertir e me aproximei, fechando a distância entre nós. Ela
estava sentada, ficando alguns centímetros mais baixa, e teve que erguer o
rosto para mim. — Estou em uma reunião de negócios, e eu quero que vá
embora. Agora.
— O restaurante não foi fechado, meu amor. Por isso, posso continuar aqui.
Eu queria atirar no meio daquele rosto infernalmente bonito e arrogante.
Manchar aquela pele tão clara, suave, que parecia frágil. Mas eram os olhos
que mais me irritavam. Aqueles olhos castanhos profundos, que pareciam
carregar um desafio constante, um fogo que nunca se apagava.
Ayra tinha um talento infeliz para usar o olhar como uma arma. Cada
movimento das sobrancelhas, cada lampejo de diversão e escárnio, era uma
provocação calculada, como se ela pudesse me despedaçar com um simples
piscar.
Eu respirei fundo, então virei o rosto para aquele idiota com cara de asno, que
ainda estava ali. Usei cada grama do meu controle para não socar ele ali
mesmo.
— Você é surdo? — rosnei — Vá embora ou vão morrer até o fim da noite.
Pela primeira vez, ele fez algo inteligente, pulou da cadeira do bar.
Provavelmente notando que meu tom não continha nenhuma grama de blefe.
Ele praticamente correu com o “rabo entre as pernas”, enquanto Ayra deu
uma risadinha ao meu lado. Eu voltei a encará-la.
— Não sabia que você era ciumenta!
— Pare de tentar me humilhar publicamente…
— Foi você que me provocou — Ayra fez biquinho e então estendeu as
mãos, agarrando as lapelas do meu blazer, aproximando-nos. — Eu vou
adorar espalhar por aí que você é ruim de cama e não dá conta de mim.
Meu sangue ferveu. A audácia dela não tinha limites. A aproximação me
deixou ainda mais irritada. O perfume dela, leve e floral, misturava-se ao
cheiro de uísque vindo de sua respiração, criando um contraste que apenas
amplificou minha raiva.
— Solte. — Minha voz saiu baixa, ameaçadora, um aviso claro de que ela
estava cruzando a linha.
Ayra inclinou a cabeça, os olhos castanhos brilhando com diversão, como se
o meu desconforto fosse o maior entretenimento da noite.
— Se eu não soltar? Vai me bater aqui, no meio de todo mundo? —
sussurrou, a voz carregada de malícia. — Isso daria uma ótima manchete:
‘Zamorano agride a noiva em público.’
Puxei o blazer com um movimento brusco, soltando-me do toque dela, mas
mantendo o controle.
— Você não vale a manchete — retruquei, erguendo o queixo e encarando-a
com o máximo de frieza que consegui reunir. — Mas não me teste, Ayra.
Você não vai gostar de descobrir onde estão os meus limites.
Ela sorriu. Um sorriso lento e cheio de escárnio, que só aumentou meu desejo
de atirá-la pela janela mais próxima.
— Adoro testar limites — respondeu, provocativa, enquanto recostava-se de
forma casual no banco do bar, como se todo o salão não estivesse nos
observando agora. — Mas você não faz meu tipo. Gosto de fogo e paixão.
Coisa que claramente não tem, é só uma pedra de gelo… Mas pense pelo lado
bom, ninguém vai estranhar por eu encher sua cabeça de chifres.
— Vá embora, agora.
Minha voz saiu estrangulada, cada palavra carregada de uma ameaça
silenciosa. Estava levando cada grama da minha força de vontade para não
socar Ayra ali mesmo, no meio daquele salão. Ela ergueu uma sobrancelha,
fingindo considerar minha ordem, mas o brilho desafiador em seus olhos
nunca vacilou. Ayra Arellano não seguia ordens. Nunca. E eu devia ter
previsto isso antes mesmo dela agir.
— Não. — A palavra saiu com aquela maldita confiança que fazia meu
sangue ferver. — Eu quero conhecer seus parceiros de negócios!
Antes que eu pudesse reagir, Ayra se levantou com um movimento lento e
calculado, como se quisesse garantir que todos no salão notassem sua
presença. Seus cabelos balançavam suavemente enquanto ela ajeitava o
conjunto de couro impecável, e eu senti o olhar de alguns homens próximos
se voltarem para ela.
Exatamente como ela queria. Cadela.
Ela começou a andar na direção da mesa onde meus parceiros estavam
sentados, e meu coração disparou. Maldita.
— Ayra! — chamei, meu tom baixo, mas urgente. Ela ignorou, obviamente.
Eu a segui, tentando manter a compostura enquanto sentia todos os olhos do
salão fixos em nós. Quando finalmente alcancei Ayra, ela já estava parada ao
lado da minha mesa, com um sorriso encantador nos lábios, o tipo de sorriso
manipulava qualquer um.
— Boa noite, senhores. — Sua voz era suave, quase doce. Uma armadilha
disfarçada. — Espero não estar interrompendo, mas não pude deixar de notar
como a conversa parecia interessante.
Um dos homens olhou para mim, confuso, enquanto o outro parecia mais
interessado na figura que Ayra representava. E não deixei de notar como eles
olharam para as pernas longas e expostas da Ayra.
— Senhorita Arellano — um deles cumprimentou, um sorriso educado no
rosto. Ayra estendeu a mão, um gesto elegante e casual, para um e depois
para o outro.
— É um prazer conhecê-los.
— Ayra… — murmurei, tentando soar controlada, mas o tom estava
carregado de irritação. Ela virou o rosto para mim, ainda com aquele maldito
sorriso nos lábios.
— O que foi, querida? Achei que quisesse que eu participasse dos seus
negócios. Afinal, não é isso que fazemos agora?
A provocação era clara, cada palavra um golpe calculado. Eu respirei fundo,
lutando contra a vontade de explodir ali mesmo. Os homens ainda nos
olhavam, claramente desconfortáveis, mas também intrigados.
Ayra se sentou na poltrona e deu batidinhas para que eu fizesse o mesmo. Eu
a contragosto me sentei, mas antes que pudesse dizer qualquer coisa, Ayra se
inclinou para mim.
Fiquei tensa, subitamente sem saber o que ela faria. Mas para minha surpresa,
ela envolveu seu braço no meu, a mão deslizando até segurar no meu ombro.
O calor do corpo dela, o cheiro, tudo me acertou mais forte que um golpe.
Aquilo era tão íntimo e ela fez como se fosse comum.
— O que estamos negociando hoje, querida? — ela perguntou, num tom
rouco, baixo, que fez os pelos da minha nuca se arrepiarem.
— Rotas do Norte. — Respondi secamente.
— Ah, Rotas do Norte — ela disse, deixando a palavra pairar no ar enquanto
um sorriso lento se formava em seus lábios. A maneira como ela me olhou
fez minha respiração falhar por um segundo, embora eu tivesse certeza de
que não era perceptível. — Tenho certeza que os senhores sabem que agora
não tem mais intervenção do Dragão Vermelho, ou seja, a passagem próxima
ao nosso território está segura.
Ayra se dirigiu aos dois, enquanto seus os dedos traçavam círculos no meu
ombro, para me provocar ainda mais. E estava funcionando. O calor do toque
dela parecia queimar através do tecido do meu blazer, enquanto seu perfume
me intoxicava completamente.
— A Senhorita Zamorano avisou sobre isso — respondeu um dos
negociantes.
— Nosso casamento está próximo, sabe? — Ayra inclinou a cabeça
ligeiramente, me observando com aqueles olhos castanhos que carregavam
tanto desafio quanto diversão. — Não é minha querida?
— Hum… — Respondi de má vontade. Ayra voltou-se para eles.
— Lira é tímida. Não sabe o que fazer comigo na verdade…
Seu comentário fez os homens soltarem risadas educadas, mas tudo que eu
queria era me levantar e sair dali. Ayra estava jogando, como sempre.
— Ayra, — advertir e ela só riu ao meu lado. — Não estamos aqui para falar
da nossa vida pessoal.
Ela virou o rosto na minha direção, o sorriso ampliou-se de um jeito que me
fez querer arrancá-lo à força.
— Mas eles estão curiosos, querida. — Ayra gesticulou casualmente para os
negociantes, que agora observavam a cena com um interesse indisfarçado. —
Sabem o que é [2]Swing? A Lira pratica comigo, mas não participa, estamos
em busca de parceiros…
O choque ficou gravado instantaneamente nos rostos dos dois homens. Um
deles engasgou levemente com a bebida, enquanto o outro arregalou os olhos,
claramente tentando processar o que tinha acabado de ouvir.
Eu senti meu corpo congelar por um segundo, mas, no instante seguinte, o
calor da indignação subiu como uma onda.
Ela realmente havia dito isso.
— Ayra! — Sibilei, minha voz cortante o suficiente para arrancar a atenção
dela. Ela se virou para mim, um sorriso inocente, ou melhor, cínico,
espalhando-se pelo rosto. — Acabou a brincadeira.
— O que foi? — ela sussurrou.
Eu cansei de suportar a brincadeira. A empurrei, ao mesmo tempo que me
levantei, pegando o seu pulso sem cuidado nenhum.
— Me desculpem pela… inconveniência, — disse, apertando o maxilar. —
Ayra provavelmente usou alguma substância hoje, por isso vamos encerrar a
reunião. Eu volto a entrar em contato.
Os dois homens assentiram, aliviados por eu ter colocado um ponto final
naquela situação constrangedora. Não me preocupei em ser sutil ao arrastar a
Ayra pelo braço. Ela não apresentou resistência, deixando-se ser arrastada,
mas o sorriso de satisfação que ela usava me dizia tudo. Ela tinha conseguido
o que queria.
Conforme saímos do salão, eu podia sentir os olhares queimando em nossas
costas, mas Ayra não parecia se importar. Na verdade, ela parecia estar se
divertindo com tudo. O silêncio entre nós era cortante, mas eu não daria a ela
o prazer de explodir ali, onde qualquer um poderia ouvir. Mas assim que
atravessamos a porta e chegamos a um corredor mais isolado, parei
bruscamente, empurrando Ayra contra a parede com violência.
Ayra gemeu, mas não tirou o sorriso, inclinando a cabeça para me olhar, os
olhos castanhos brilhando com puro deboche.
— Não gostou do meu show? — perguntou, o tom doce e carregado de
sarcasmo.
Eu dei um tapa na cara dela. Sem conseguir me conter. Essa mulher tinha um
talento único para me tirar do eixo. Mas foi em vão, porque ela gargalhou, e
reagiu rapidamente, me dando um tapa com ainda mais força.
— Não me toque sua cadela — Ayra disse num tom selvagem. Eu ergui o
rosto, querendo dar outro tapa nela.
— Qual é o seu problema, Ayra? — perguntei, minha voz baixa, mas
carregada de raiva. — Você está deliberadamente sabotando tudo o que está
sendo construído. Não vê que isso só piora as coisas?
Ela arqueou uma sobrancelha, como se minha indignação fosse uma piada.
— Construir? — repetiu, com uma risada curta. — Vamos ser honestas, Lira.
Não estamos construindo nada. Isso aqui é uma farsa, e todo mundo sabe
disso.
— Isso não é um jogo! — exclamei, me aproximando, apontando um dedo no
rosto dela. — Você está me fazendo passar vergonha, está colocando a
aliança dos nossos cartéis em risco, tudo por causa do seu ego ridículo!
Ayra ficou em silêncio por um momento, observando-me como se estivesse
estudando cada movimento meu. Então, o sorriso dela se alargou, mas dessa
vez havia algo mais, algo sombrio, quase desafiador.
— Eu não sou o problema aqui, Lira, — disse ela, a voz repentinamente mais
séria, mas ainda provocativa. — O problema é que todos acham que podem
me controlar. E isso nunca vai acontecer.
Senti o calor subir pelo meu rosto, mas, antes que pudesse responder, Ayra se
afastou da parede, me empurrando para longe. Mas dessa vez ela não disse
nada. Apenas se virou, caminhando pelo corredor com aquela confiança
irritante que era tão característica dela. E eu fiquei ali, tentando decidir se
queria matá-la ou apenas dar a surra que merecia.
Respirei fundo, me acalmando, e então deixei o corredor indo até o
estacionamento. Quando me aproximei do meu carro, meus seguranças
estavam ali, o olhar deles pareciam assustados, e ao me verem pareciam em
pânico. Eu andei mais rápido, chegando até meu carro, descobrindo o motivo.
— Vocês a deixaram fazer isso? — Minha voz pingava frieza e
incredulidade.
— Ela é sua noiva, senhorita, disse para não interferimos. — um deles disse,
quase se encolhendo.
— Eu vou matá-la antes do casamento… — sussurrei me aproximando do
carro, vendo o que Ayra aprontou. Na lataria estava escrito, na verdade,
arranhado com que parecia a ponta de uma faca: “Eu sempre venço!”.
CAPÍTULO TRÊS
Ayra Arellano
A xícara de café quente estava sobre a mesa à minha frente, o aroma forte me
mantendo acordada depois de dias de confusão. Levei a xícara aos lábios e
tomei um gole, o amargor familiar me acalmando enquanto olhava pela janela
da mansão que cresci. Há muito tempo não sentia mais que fosse meu lar.
Entretanto, sentia ainda um pouco de paz, usando as poucas lembranças que
eu ainda tinha dos meus pais. Antes deles morrerem.
Ainda lembro, tão claro como se tivesse acontecido ontem, a última vez que
os vi. Era meu aniversário. Estávamos no carro, indo para o parque de
diversões, exatamente como eu tinha pedido. Mamãe estava no banco da
frente, virando-se de vez em quando para me perguntar qual brinquedo eu
queria ir primeiro, enquanto papai ria ao volante, dizendo que o dia seria
especial porque “a princesa da casa estava fazendo anos”.
Eu me lembro de cada detalhe. O cheiro do perfume dela, as brincadeiras do
meu pai sobre como eu ia passar mal depois de tanto algodão-doce, e a
felicidade simples de estar com eles. Mas o que eu não sabia, o que nenhuma
de nós sabia, era que seria a última vez.
A estrada estava tranquila, até que não estava mais. O barulho de motores
acelerando atrás de nós, luzes altas cegando o retrovisor… Foi tudo tão
rápido.
Lembro-me de papai falando com calma, tentando acalmar mamãe enquanto
acelerava para tentar fugir. Mamãe segurou minha mão, apertando com força,
o suficiente para me deixar tensa, mas eu confiei neles. Eu acreditava que
eles iam me proteger, que tudo ficaria bem.
Então ouvi os tiros. Os vidros quebraram. O carro saiu da estrada, e antes que
eu pudesse entender o que estava acontecendo, estávamos caindo. O mundo
virou de cabeça para baixo, o som de metal sendo esmagado preenchendo
meus ouvidos. E então, silêncio.
Quando abri os olhos, o cheiro de gasolina e sangue estava em todo lugar.
Minha cabeça latejava, mas o que realmente me atingiu foi a visão. Mamãe
estava imóvel, presa no banco da frente. Papai não se mexia. Eu gritei por
eles, mas nenhum dos dois respondeu.
A última coisa que lembro é de alguém me puxando dos destroços, uma mão
forte me levantando enquanto eu chorava e tentava alcançá-los. Depois, tudo
se apagou.
Eu fui a única sobrevivente. A única. E eu me perguntava o porquê dessa má
sorte.
O som de passos, me trouxe de volta a realidade. Eram passos pesados,
firmes, e pude reconhecê-los imediatamente.
— Tio Javier — murmurei sem olhar, já sentindo o peso da sua presença.
Vinha sendo difícil suportar estar no mesmo espaço, por isso eu evitei.
— Bom dia. Uma surpresa vê-la em casa.
Ele se sentou à minha frente sem cerimônia, tirando o casaco e ajustando os
punhos da camisa. Parecendo tão tranquilo como sempre, como se nada entre
nós houvesse acontecido. Como se ele não estivesse destruindo a minha
existência já miserável.
— Posso ainda chamar isso de casa? — Eu perguntei, friamente. Ele
suspirou.
— Ayra, sem pedras na mão. — Ele começou, sua voz grave, mas calma. —
Fiquei sabendo que você e Lira tiveram algumas… tensões nos últimos dias.
☙❧
Eu cheguei ao local decidido pela equipe de organização do casamento, uma
sala privada de um restaurante luxuoso, cheia de pessoas que claramente
levavam aquilo mais a sério que eu.
Escolhi vestir o que muitos provavelmente chamariam de “inapropriado” para
o momento. Era um micro vestido vermelho, com um decote em “v”, com
uma fenda provocativa, entre meus seios. E eu fiz questão de andar
lentamente, meus saltos ecoando contra o chão polido. Era o meu jeito de
anunciar que estava ali sem precisar abrir a boca.
Quando entrei na sala, o burburinho das conversas morreu por um instante.
Todos olharam para mim, alguns visivelmente atraídos, outros claramente
julgando minha escolha de roupa. Eu não me importava. Não estava ali para
agradar ninguém, na verdade, meu objetivo era totalmente outro.
Então, meus olhos encontraram Lira Zamorano, já sentada à mesa principal.
Claro, sempre tão impecável. Ela vestia um blazer branco ajustado ao corpo,
com uma camisa de seda e calças igualmente bem cortadas. O look era
clássico, elegante, e gritando compromisso, exatamente o oposto do meu. O
cabelo estava preso em um coque baixo, e as joias discretas adicionam um
toque de sofisticação que fazia com que todos no ambiente sentissem o poder
dela.
Quando Lira me viu, seus olhos cinzentos se estreitaram. Eu sorri, um sorriso
carregado de provocação, e deslizei até a cadeira ao lado dela, jogando-me no
assento sem cerimônia.
— Você está atrasada, — Lira comentou, seu tom controlado, mas cortante.
— Estou aqui, não estou? — retruquei, pegando um dos papéis sobre a mesa
e fingindo analisá-lo.
Uma mulher alta, de cabelos presos e óculos, que claramente liderava a
equipe de organização, limpou a garganta, tentando retomar o controle da
reunião.
— Bom, agora que ambas estão aqui, podemos continuar. Vamos discutir os
detalhes da cerimônia. — Ela fez um gesto amplo com as mãos. — Temos
algumas opções de locais, como a cobertura de um hotel de luxo ou os jardins
de um Castelo, mas em ambas vamos incorporar elementos das tradições das
duas famílias…
— Eu não gosto disso — interrompi, atirando o papel de volta à mesa. —
Não vamos fingir que isso é algo sentimental. Apenas escolham um lugar
bonito e resolvam logo.
A organizadora me olhou, claramente surpresa com a minha falta de tato,
enquanto Lira respirava fundo ao meu lado.
— Ayra — Lira começou, seu tom cheio de paciência forçada, — essa é uma
oportunidade para mostrar respeito às tradições. Você deveria pelo menos
tentar parecer interessada.
— Respeito? — Ri, me virando para ela. — Isso não tem nada a ver com
respeito, Lira. Isso é um teatro. Vamos parar de fingir que alguém aqui se
importa com tradições.
Lira me encarou, os olhos dela queimando com aquela irritação controlada
que eu sabia que ia explodir a qualquer momento. Aparentemente eu só tinha
que apertar seus botões com mais força, uma hora, ela sempre cedia a sua
raiva por mim.
— Ayra, você quer nos ajudar ou só veio para causar problemas? —
perguntou, o tom calmo, mas com um veneno pujante.
— Ora, eu não saio de casa se não for para causar problemas? — respondi,
inclinando-me levemente na direção dela, o sorriso desafiador ainda no rosto.
— Afinal que graça tem em seguir as regras?
Mandei um beijo debochado para Lira, que rolou nos olhos. A organizadora
limpou a garganta de novo, visivelmente desconfortável.
— Bom… podemos passar para a decoração, então. A proposta inicial era um
tema clássico, com tons neutros, branco e dourado…
— Monótono — cortei, revirando os olhos. — É um casamento ou uma
cerimônia ou um aniversário de ancião?
— Eu gosto da proposta — Lira interveio imediatamente, olhando para mim
com firmeza. — É sofisticada, elegante. Algo que combina com o evento.
— Algo sem graça, que combina com você, você quer dizer — retruquei,
cruzando as pernas e apoiando o queixo na mão. — Mas o que seria divertido
nisso? Adicione vermelho. Um pouco de drama.
— Drama já temos o suficiente com você — Lira retrucou, seca, e acabou me
arrancando uma risadinha.
— Sorte a sua. Ou ia morrer sem alguma diversão!
Lira bufou, me ignorando, enquanto continuou falando com a organizadora.
Eu apenas me mantive ali discordando de cada coisa, pois esse era o meu
propósito. Apesar de já ter me conformado em ser arrastada para aquilo, eu
não aceitava ser um “bichinho dócil” nas mãos de ninguém. Eu ainda seria eu
e não ia esquecer os anos em que Lira com seu cartel puxaram meu tapete .
Javier era um vendido, mas eu não.
Quando a porta foi aberta e o som alto de pneus invadiu o ar, meus sentidos
ficaram em alerta, mas antes que eu pudesse processar qualquer coisa, Lira
bloqueou minha visão, parando abruptamente na minha frente. Eu estava
prestes a reclamar, mas a próxima coisa que ouvi foi um estampido
ensurdecedor. Um tiro.
— No chão! — Lira gritou, e antes que eu pudesse reagir, ela virou-se e
lançou seu corpo sobre o meu, me derrubando no chão com força.
Eu bati as costas contra o piso duro, o impacto arrancando o ar dos meus
pulmões. O que diabos estava acontecendo? Meu coração disparou enquanto
o som de tiros ecoavam no corredor. Cada disparo parecia mais próximo que
o anterior, e o peso de Lira sobre mim era a única coisa que me mantinha
ancorada naquele caos.
— Fique abaixada! — ela rosnou, sua voz carregada de uma autoridade crua.
— Não é como se tivesse escolha, você está se jogando em cima! —
retruquei, o sarcasmo vindo como um reflexo automático.
— Cala a boca, Ayra, — ela respondeu com firmeza, enquanto se arrastava
para tentar nos mover. Com uma mão pressionada contra meu ombro, Lira
me empurrou para trás de uma mesa de madeira caída, tentando nos proteger.
Os tiros continuavam, uma chuva de balas que parecia interminável. Os gritos
e o som de passos rápidos aumentavam enquanto os homens de Lira reagiam.
Era uma guerra, ali, na entrada do restaurante. Dentro as pessoas pareciam
histéricas e eu via algumas caindo, quando tiros a acertavam.
Lira ergueu o rosto por um segundo, seus olhos avaliando a situação com a
precisão calculada. Ela ainda usava o seu corpo para me proteger. Eu fiquei
em choque porque Lira Zamorano, de todas as pessoas, estava tentando me
salvar.
Eu me movi, empurrando-a levemente para o lado e nos reposicionando atrás
de uma mesa virada, que parecia ser a única cobertura decente.
— Por que você está fazendo isso? — perguntei, minha voz baixa, mas
carregada de confusão.
— Porque, se você morrer, a máfia italiana vai colocar minha cabeça numa
bandeja, — ela respondeu rapidamente, sem nem me olhar. O tom era
prático, mas algo me dizia que não era só isso, porém ignorei.
— Se a gente não sair logo daqui, outra pessoa vai colocar sua cabeça e a
minha numa bandeja — sussurrei, já procurando algo ao meu redor que
pudesse usar. A minha bolsa onde estava a minha arma estava perdida.
— Então pegue isso e faça algo útil, — Lira disse de repente, entregando-me
uma pistola extra que tirou do coldre na cintura.
A arma parecia pesada em minhas mãos, mas familiar. Respirei fundo,
deixando a adrenalina tomar conta enquanto me concentrava. Eu não era
indefesa, e definitivamente não ia ficar esperando enquanto alguém tentava
nos transformar em peneiras.
— Tem quantos lá fora? — perguntei, meu tom mais controlado agora.
— Dois carros, menos quatro homens em cada, talvez mais, — Lira
respondeu, seu olhar atento enquanto avaliava os tiros que continuavam. —
Meus homens vão segurar eles, mas não por muito tempo. Só temos a nós
mesmas.
— Então vamos dar um jeito, não é? — respondi, ajustando a arma e me
preparando. — Pronta?
Ela assentiu, e por um segundo, foi como se estivéssemos sincronizadas.
Rivais ou não, sabíamos trabalhar juntas quando a situação exigia. A porta
explodiu, alguém entrou, a Lira se inclinou levemente, disparando um tiro
certeiro em direção ao atirador mais próximo. O som de vidro se quebrando
ecoou, e alguém gritou ao longe.
Aproveitei o momento para me erguer parcialmente, mirando no extintor de
incêndio na entrada. Meu tiro atingiu o alvo, criando uma cortina de fumaça
que dificulta a visão deles.
— Boa ideia, Ayra, — Lira murmurou, com um sorriso de aprovação. E foi
irritantemente satisfatório. — Vamos pelos fundos!
Ela gritou, apontando para uma saída lateral. Os tiros continuaram, mas agora
tínhamos a vantagem de sermos imprevisíveis. Lira avançou rapidamente,
movendo-se como um soldado treinado, enquanto eu dava cobertura,
disparando para forçar os atiradores que tentavam entrar.
— Estou contigo, — respondi, cobrindo-a enquanto ela empurrava a porta
com o ombro. — Vai, vai, vai.
Assim que saímos para o beco, outro atirador apareceu. Lira se jogou contra a
parede, enquanto eu me virei rapidamente, disparando três vezes. Um dos
tiros acertou o ombro dele, fazendo-o recuar.
— Quem diria que você tem mira — Lira comentou, ofegante, enquanto
corríamos pelo beco estreito.
— Você não faz ideia, — retruquei, segurando a arma com firmeza e
mantendo meus olhos atentos a qualquer movimento.
Finalmente, conseguimos nos afastar o suficiente, e o som dos tiros ficou
distante. Encostei-me na parede de um novo beco, tentando recuperar o
fôlego, enquanto Lira fazia o mesmo. O silêncio entre nós era pesado, mas
dessa vez a tensão era diferente, algo compartilhado e não era ódio.
— Isso foi uma emboscada, — comentei, quebrando o silêncio — Eles só não
sabiam que íamos reagir.
Lira virou a cabeça na minha direção, ainda com a respiração pesada. Seu
terno branco arruinado, seu cabelo bagunçado, mas ela ainda era a coisa mais
atraente que já tinha visto. Era quase repugnante tanta beleza.
— Não, não sabiam. — Então, após uma pausa, acrescentou: — Você não é
tão inútil quanto eu pensei. Mira boa.
— Ah jura, noivinha? — Eu ri, embora estivesse exausta. — E você não é tão
insuportável… pelo menos não quando estamos sendo alvejadas.
Ela me lançou um olhar que parecia uma mistura de cansaço e irritação, mas
havia algo perto de diversão ali.
— Vamos sair daqui antes que eles mandem reforços, — Lira disse
finalmente, ajustando a arma na mão. — Precisamos descobrir quem teve a
coragem de fazer isso.
E, sem mais uma palavra, começamos a caminhar juntas, ainda alertas, mas
cientes de que, pelo menos por hoje, éramos uma equipe. Mesmo que apenas
por necessidade.
☙❧
Lira Zamorano
A madrugada estava gelada, e o silêncio do armazém fazia com que cada
pequeno ruído ecoasse como um trovão. Eu estava encostada contra uma das
pilastras de concreto, os braços cruzados e o olhar fixo na mesa improvisada
onde Arturo e Javier analisavam as informações que recebemos da operação
fracassada contra mim e Ayra.
Era claro que aquilo não tinha sido um ataque aleatório. Eles sabiam que
estaríamos juntas e tentaram matar nós duas. O cartel do sol, era o
responsável, grandes o suficiente e burros na mesma medida.
Do outro lado da sala, Ayra andava de um lado para o outro como um animal
enjaulado, a raiva irradiando de cada movimento. O vestido que ela usava
durante o ataque estava rasgado na altura da bainha, e seu cabelo estava
desalinhado, mas nem isso tirava o brilho selvagem dos olhos dela.
Ayra Arellano estava pronta para a guerra, e, honestamente, isso me
preocupava, mas algo dentro de mim admirava. Ela não queria se esconder.
Assim como no momento do ataque, quando agiu, friamente e perfeita. Foi
estranho agir ao lado dela, mas ainda assim pareceu familiar.
— Isso foi um aviso. Um insulto. — Ayra disparou, sua voz cortando o
silêncio. — Eles não querem que a união dos nossos cartéis aconteça.
Aqueles imundos ousaram atacar, e eu vou acabar com cada um deles antes
que tentem de novo.
Javier levantou a cabeça, lançando um olhar firme para ela. Eles dois
pareciam estremecidos, notei no momento em que ele chegou. Ayra não fez
nem questão de cumprimentá-lo, e nem ele, de ir checar se ela estava bem.
Aparentemente o fato dela estar andando, destilando ódio, configurava que
estava bem.
— Ayra, controle-se. Ir atrás deles agora, no calor do momento, vai colocar
tudo em risco.
Ela se virou para ele, apontando um dedo no seu rosto como se fosse uma
arma. Eu e meu pai trocamos um olhar.
— Eles tentaram me matar, Javier. E, por tabela, tentaram acabar com o
futuro dessa aliança ridícula que você tanto quer. — Ela olhou para Arturo,
que permanecia impassível. — E você vai sugerir também que nos
mantenhamos parados enquanto eles riem na nossa cara?
Arturo suspirou, encarando o olhar acalorado da Ayra. Sua voz estava calma,
quando finalmente se manifestou:
— Ninguém disse que vamos ficar parados. Mas agir sem pensar nos coloca
exatamente no jogo deles.
Eu respirei fundo, aproveitando o momento de silêncio para intervir. Antes
que a Ayra começasse a quebrar algo.
— Ayra, eles esperam um ataque imediato. Temos que ser inteligentes.
Ela parou de andar e virou-se para mim, os olhos brilhando com desafio.
— E qual é a sua grande ideia, Lira? Esperar um novo ataque e aí agir?
— Não, — respondi, erguendo o queixo. — Nós vamos reagir. Mas do jeito
certo. E, se você ouvir, posso te mostrar como acabamos com eles de uma
vez por todas.
Os olhos dela se estreitaram, mas percebi que ela estava curiosa, mesmo que
relutante. Javier cruzou os braços, observando em silêncio, enquanto Arturo
parecia satisfeito.
— Eles esperam que você ataque diretamente, sem pensar. É o que você faz,
Ayra. E, francamente, é o que qualquer pessoa faria depois do que aconteceu.
— Fiz uma pausa, andando até a mesa onde os relatórios estavam espalhados.
— Mas, se formos mais inteligentes que eles, nós podemos não apenas acabar
com a ameaça, mas tomar o território deles no processo.
Ayra arqueou uma sobrancelha, cruzando os braços enquanto se encostava
em uma pilastra próxima.
— Continue. Estou ouvindo.
Eu passei a mão pelos mapas e relatórios até encontrar o que queria: um
esboço das operações do cartel rival. Eles tinham investido pesado em
território, mas isso significava que estavam expostos em várias áreas.
— Eles estão centralizados aqui, — apontei para o mapa. — Esse armazém e
esses dois pontos são os principais nós de distribuição deles. Se tirarmos isso,
eles perdem o controle sobre grande parte da logística. O caos vai se espalhar,
e seus aliados vão recuar.
— E o que sugere? — Javier perguntou, inclinando-se para olhar melhor o
mapa.
— Primeiro, distração, — comecei, meu tom firme e calculado. — Fazemos
parecer que estamos retaliando diretamente, mas com um alvo secundário.
Enquanto isso, infiltramos nossos homens aqui, — apontei para um dos
armazéns menores, — e destruímos a estrutura deles de dentro para fora.
— Isso vai nos dar tempo para tomar esse território aqui, — Arturo interveio,
acompanhando minha linha de raciocínio. — Com a logística deles
comprometida, os aliados vão recuar.
Ayra ainda estava em silêncio, mas eu pude sentir a tensão dela. Finalmente,
ela se aproximou, olhando diretamente para mim.
— Então, sua ideia é… paciência? — perguntou, sua voz carregada de
sarcasmo.
— Não paciência. Estratégia, — respondi, sem desviar o olhar. — Você quer
sangue, Ayra? Eu também, mas quero território. Podemos conseguir os dois,
mas isso só vai funcionar se você seguir o plano.
Ela me encarou por um longo momento, como se estivesse tentando decidir
se me desafiaria ali mesmo. Mas então, para minha surpresa, um sorriso lento
e perigoso se formou em seus lábios.
— Tudo bem, noivinha. Vamos fazer do seu jeito. Mas, se der errado, o
sangue vai ser por minha conta.
— Eu não esperaria menos, — retruquei, virando-me para Javier e Arturo. —
Precisamos mobilizar nossos homens agora. Isso precisa ser rápido e preciso.
— Vamos começar imediatamente. — Javier assentiu, finalmente satisfeito
com o rumo da conversa. — Tem meu apoio.
— Isso vai ser divertido. — Ayra pegou a arma que estava na mesa e girou-a
nos dedos com um sorriso de puro desafio. — Vamos lá.
Eu apenas respirei fundo, sabendo que, mesmo com um plano em mãos,
trabalhar com Ayra seria sempre um campo minado. Mas, pelo menos desta
vez, estávamos jogando no mesmo time.
Que Deus ajudasse quem estivesse no nosso caminho.
☙❧
Ayra Arellano
O som do motor abafado do carro era o único ruído enquanto nos
aproximávamos do armazém. O silêncio era denso, carregado de expectativa
e tensão. Eu estava no banco da frente, os dedos tamborilando levemente no
cabo da pistola que descansava no meu colo. Minha mente estava afiada,
focada, mas não podia negar a adrenalina correndo pelas minhas veias.
Finalmente. Depois de tanta conversa, estávamos prontos para agir.
O plano de Lira era bom, ouso dizer a contragosto, brilhante. Eu não podia
negar que era exatamente o tipo de abordagem que confundiria aqueles
bastardos. Eles esperavam que viéssemos como animais selvagens, atacando
de forma impulsiva. Mas não. Nós íamos cortar as pernas deles antes que
sequer percebessem.
— Estamos chegando, — um dos homens disse do banco de trás, a voz baixa.
Olhei para o lado e vi Lira no carro ao lado, com o rosto sério, o olhar fixo na
estrada. Mesmo de longe, dava para ver a calma calculada na postura dela.
Sempre tão controlada.
Admito que gostava de ver ela perder a paciência. Mas aquela postura de
“sou eu que mando” era definitivamente seu elemento. Lira estava no
comando da distração, enquanto eu cuidaria da parte divertida, a infiltração.
Quando o carro parou, minha equipe e eu saímos em silêncio, movendo-nos
como sombras em direção ao armazém menor. Eles não tinham ideia do que
estava para acontecer. O lugar era protegido por um par de guardas na
entrada, mas eram descuidados, claramente confiantes de que ninguém
ousaria atacá-los.
— Dois na entrada, — murmurei para um dos meus homens, que apenas
assentiu.
Em poucos segundos, os guardas estavam no chão, neutralizados antes que
pudessem sequer gritar. Silencioso. Rápido. Efetivo. Do jeito que Lira queria.
Mas eu não podia negar que preferia o barulho, a confusão e a adrenalina de
um confronto direto. Minha parte viria em breve.
Entramos no armazém, os passos leves ecoando no chão de concreto. O
cheiro de gasolina e ferrugem estava no ar, misturado ao som distante de
máquinas funcionando. O lugar era um nó estratégico, carregado de
mercadorias e equipamentos. Destruir isso não apenas os enfraqueceria, mas
enviaria uma mensagem clara.
— Ayra, estamos posicionados, — uma voz veio pelo rádio, confirmando que
os homens de Lira estavam em posição para atacar o armazém principal e
causar a distração planejada.
— Entendido, — respondi, ajustando o rádio no meu ouvido.
Eu me movi pelo espaço, observando tudo ao meu redor. Havia caixas
empilhadas, uma quantidade absurda de armas e munições, e o que parecia
ser um estoque de produtos químicos que provavelmente alimentava a
produção deles. Perfeito.
— Plantem os explosivos aqui e aqui, — indiquei aos meus homens,
apontando para os pontos mais críticos da estrutura.
Enquanto eles trabalhavam, peguei meu rádio e murmurei:
— Lira, estamos quase prontos. Qual a situação aí?
A voz dela veio firme, mas um tom rouco, que parecia estar sendo sussurrado
com ela bem ao meu lado. Senti um frio estranho na barriga, que busquei
ignorar. Ela era só um rosto e voz bonita, mas nada.
— Distração funcionando. Eles estão mobilizando metade dos homens para
nos conter. Vocês têm pouco tempo. Seja eficiente, Ayra.
— Relaxa, noivinha, — retruquei, um sorriso brincando nos meus lábios. —
Estamos no controle aqui.
Mal terminei de falar, um som metálico ecoou pelo armazém, seguido por
passos rápidos. Merda. Eles tinham enviado reforços antes do previsto. Pelo
canto do olho, vi dois homens que surgiram de uma entrada lateral, armas
erguidas.
— Ataquem! — um dos meus homens gritou, já disparando contra eles.
A adrenalina explodiu em mim. Apontei minha pistola e disparei duas vezes,
acertando um dos homens no peito. O outro conseguiu cobertura atrás de uma
pilha de caixas, mas não por muito tempo. Avancei antes que ele tivesse
tempo de reagir, chutando a arma de sua mão e derrubando-o com um golpe
rápido.
— Continuem plantando os explosivos! — gritei, enquanto o restante dos
meus homens se movia para garantir que os pontos críticos fossem
preparados.
O som de tiros agora ecoava pelo armazém, misturado ao caos do lado de
fora, onde Lira e seus homens mantinham a atenção do cartel rival focada
neles. Tudo estava acontecendo ao mesmo tempo, rápido e brutal, mas era
assim que eu gostava. E quando o último explosivo foi plantado, eu me virei
para meus homens.
— Recuem! Hora de sair daqui antes que tudo vá pelos ares.
Enquanto corríamos de volta para a saída, senti meu coração quase na boca.
Quando finalmente saímos do armazém, vi as primeiras explosões
iluminarem o céu, uma sequência de fogos de artifício destrutivos que fez
meu coração bater mais rápido.
— Lira, missão cumprida. O show começou, — murmurei pelo rádio,
sorrindo enquanto via a fumaça subir.
Agora era a hora de ver o plano dela em ação. E, pela primeira vez, senti que
talvez, só talvez, trabalhar juntas pudesse ser… interessante. Mas só dessa
vez.
☙❧
Lira Zamorano
A fumaça do armazém menor ainda subia ao longe quando recebi a
confirmação pelo rádio: a primeira parte do plano estava completa. A
explosão chamou a atenção de todos os homens do cartel rival, exatamente
como planejado. Mas agora, o verdadeiro teste começava: a segunda fase.
O ataque direto ao armazém principal. O local que eles não imaginariam que
íamos atacar e que achavam estar seguros, inclusive o líder deles.
— Eles estão dispersos, Lira, — disse Valentina pelo rádio. — Hora de
finalizar.
Assenti, respirando fundo enquanto ajustava a arma na mão. O armazém
principal era maior, mais protegido, mas também o coração das operações do
cartel rival. Tirar aquilo deles não só quebraria sua força, mas também
enviaria uma mensagem de que a Estrela Negra e o Dragão Vermelho eram
uma aliança que ninguém podia desafiar.
— Vamos, — falei para meus homens, movendo-me rapidamente em direção
à entrada lateral.
Entramos silenciosamente no armazém. O lugar era um labirinto de
corredores estreitos e pilhas de caixas que pareciam intermináveis. O cheiro
de óleo e ferrugem pairava no ar, misturado ao som distante de vozes e
passos apressados. Eles sabiam que estávamos aqui.
— Dividam-se, mas mantenham o contato, — ordenei, meus homens se
espalhando rapidamente para cobrir os flancos.
Mal terminei de falar, o som de passos apressados e vozes altas ecoou pelo
corredor à nossa esquerda. Um grupo de cinco homens surgiu, armas
erguidas, e o caos começou.
Me abaixei atrás de uma pilha de caixas enquanto os tiros ricocheteavam ao
meu redor. Eu respondi com a mesma velocidade, disparando com precisão
contra dois dos homens. Um deles caiu imediatamente, enquanto o outro
recuou para trás de uma cobertura. Eu me levantei o suficiente para disparar
contra o terceiro, que tentou avançar, mas caiu antes de chegar perto.
Avancei, o som dos tiros ecoava cada vez mais alto. O armazém parecia um
campo de guerra, e o chão estava coberto de detritos e manchas de óleo.
Meus homens e o Dragão Vermelho atuavam bem, conseguimos conquistar o
espaço.
Mantive a minha busca. Eu queria o líder. E me movi pelo corredor estreito,
apenas para dar de cara com mais dois homens armados. Eles dispararam
imediatamente, me escondi atrás de uma pilha de caixas, salvando-me de um
tiro certeiro. Em seguida me inclinei e disparei contra os dois, acertando um
no ombro.
Porém, a luta corpo a corpo começou quando o outro homem avançou contra
mim. Eu me movi rapidamente, acertando-o com um golpe no rosto que o fez
cambalear, mas ele era maior e mais forte, e logo estávamos trocando socos.
Minha arma foi perdida, tive que ser criativa, acertando pontos chaves.
Mas senti alguém atrás de mim. Foi como sentir um frio correr pela minha
espinha. Outro homem surgiu do nada, com uma faca em punho, e avançou
contra mim. Antes que pudesse reagir, Ayra surgiu e entrou no caminho,
empurrando-me para o lado.
A luta entre os dois foi brutal, e eu não pude ajudar, ainda presa ao outro
homem. Pulei sobre suas costas, tentando sufocá-lo, mesmo ele me jogando
contra a parede. Foi quando eu vi a Ayra vacilar, então a lâmina acertou a
lateral da sua coxa, ela gritou, o som me fez congelar por um segundo.
O homem que eu lutava caiu aos meus pés, eu me movi para ir ajudá-la, mas
Ayra não precisou. Ela não recuou.
Parecendo possuída. Usando uma força que eu não sabia que ela tinha, Ayra
segurou o braço do homem, girando-o e desarmando-o antes de derrubá-lo no
chão com um golpe brutal. Ela cambaleou para trás, pressionando o lado
ferido, mas ainda estava de pé, com um sorriso desafiador.
— Só um arranhão, — ela disse, ofegante. — Esse filho da puta é ruim de
mira.
Eu me movi rapidamente para ajudá-la. O silêncio caiu sobre nós, tudo que
restava era o som de nossas respirações pesadas.
— Você é louca, — murmurei, aproximando-me dela enquanto ela se apoiava
contra uma das pilastras.
— Sim, e só por isso estou viva, — ela respondeu, com aquele sorriso
irritante. — Não vai me dizer obrigada não?
— Não precisava ter se colocado na frente da faca — murmurei rasgando um
pedaço do tecido da parte interna da minha jaqueta. Me ajoelhei fazendo um
[3]
torniquete.
— Estava sem munição, queria que fizesse o que? — Ela bufou e gemeu
quando apertei mais forte a sua perna. — Você foi babaca de perder sua
arma, e lutar na mão.
Eu quase ri. Talvez ela tivesse razão e era bem louco admitir.
— Hum… Obrigada.
— Oh, ela agradeceu mesmo… Aí.
Apertei mais forte. Ela fez careta, mas não disse mais nada, enquanto
analisou suas unhas. Eu me levantei, pegando a minha arma que estava
jogada. Apesar do caos que acabáramos de enfrentar, ainda faltava a peça
mais importante do plano.
— O líder ainda está aqui, — murmurei, apontando para o escritório no alto
de uma plataforma metálica. — Se quisermos acabar com isso de vez,
precisamos dele.
Ayra concordou e seguiu meu olhar. Mesmo machucada, ela ainda tinha
aquele brilho perigoso nos olhos.
— Vamos buscá-lo, — ela respondeu, determinada, ignorando a dor evidente.
— Ayra, você deveria recuar. — Falei baixo, mas firme. — Você já fez o
suficiente.
Ela riu, um som rouco que parecia tanto diversão quanto desafio.
— E perder a melhor parte? Nem morta, noivinha. Vamos.
Ayra Arellano era uma tempestade, e eu estava começando a entender que
não havia como controlá-la.
Ela pegou a arma do homem caído, que estava presa ao coldre. E subimos
pela escada metálica que levava ao escritório, cada passo ecoando como um
aviso. No caminho nos deparamos apenas com um guarda, que eu abati.
Quando chegamos a porta estava parcialmente aberta, e do outro lado, o líder
do cartel rival estava sentado, desesperado, com uma pistola na mão. Ele
apontou a arma para nós assim que entramos, mas Ayra, com a rapidez que
só ela tinha, atirou antes que ele pudesse sequer mirar. Acertou o ombro dele,
que gritou.
— Abaixe isso, ou vou acertar sua cabeça logo — ela rosnou, o tom
carregado de um ódio que eu reconhecia bem.
Ele largou a arma, os olhos arregalados enquanto levantava as mãos. Sua
respiração estava pesada, e o suor escorria por sua testa. Ele sabia que não
tinha para onde correr.
— Então, esse é o grande estrategista? — Ayra zombou, aproximando-se
lentamente, mesmo mancando levemente por causa da facada. — Você achou
que ia nos dividir? Nos matar? Má ideia, amigo.
— Você está cometendo um erro, — ele tentou, a voz tremendo. — Se me
matarem, não vai acabar aqui. Meus homens vão atrás de vocês.
Eu me aproximei, ao lado de Ayra, cruzando os braços enquanto o encarava.
— Seus homens? — perguntei, o tom frio. — Olhe ao redor. Eles estão todos
mortos ou fugindo. Você não tem mais nada.
O homem tentou disfarçar o medo, mas era inútil. Ele estava encurralado, e
nós duas sabíamos disso.
— Isso é pessoal, — Ayra continuou, sua voz baixa, mas letal. — Não foi
apenas uma tentativa de destruir os cartéis. Foi um ataque direto contra nós.
Eu olhei para ela, percebendo o quanto a raiva ainda ardia em seus olhos.
Ayra estendeu a arma, mas para minha surpresa, ela não apertou o gatilho.
— Vamos acabar com isso juntas. A afronta foi dividida.
Eu dei um sorriso, então ergui a minha arma. O homem começou a balbuciar
algo, implorando por sua vida, mas já era tarde demais. Nós trocamos um
olhar rápido, e por um segundo, foi como se tudo ao nosso redor tivesse
desaparecido. Rivais, aliadas, herdeiras. Não importava. Naquele momento,
éramos executoras.
— Três. — Ayra começou a contar, um sorriso sombrio nos lábios.
— Dois. — Completei, sentindo a tensão no ar crescer.
— Um. — Falamos juntas, os disparos saindo ao mesmo tempo.
O som dos tiros preencheu o escritório, e o corpo dele caiu para trás, sem
vida. O silêncio voltou a cair, mas dessa vez, parecia diferente. Definitivo.
Ayra baixou a arma, suspirando e apoiando-se levemente na mesa do
escritório.
— Bom trabalho, noivinha. Acho que somos uma equipe e tanto.
Eu revirei os olhos, mas não consegui conter um pequeno sorriso.
— Talvez. Só não se acostume.
— Missão cumprida — Ayra disse, dando uma risada rouca, o cansaço
evidente na voz. — E com estilo.
— De fato, missão cumprida, — concordei, enquanto me virava em direção à
porta. — Vamos sair daqui.
Dei dois passos em direção à saída, mas o som de um tropeço atrás de mim
fez com que eu parasse imediatamente. Ao olhar por cima do ombro, vi Ayra
cambaleando, a mão pressionada contra o lado da perna onde a faca havia
acertado. Ela tentava manter a postura confiante de sempre, mas a careta de
dor que cruzava seu rosto era impossível de disfarçar. Por mais invencível
que Ayra gostasse de se comportar, ela ainda era humana.
— Consegue se mover? — perguntei, mesmo já sabendo qual seria a
resposta.
— Sim, claro que sim — respondeu, a voz firme, mas tremendo levemente ao
final. Ela respirou fundo e deu um passo, mas a vacilou de novo. Suspirei,
balançando a cabeça.
— Mentirosa e teimosa!
Eu bufei e me aproximei, passando o braço dela pela minha cintura antes que
ela pudesse protestar. Se tinha algo que aprendi sobre Ayra Arellano era que
ela nunca admitiria fraqueza, mesmo que isso a matasse.
— Não preciso de ajuda, Lira, — resmungou, embora não fizesse o menor
esforço para se afastar.
— Claro que não precisa, — retruquei com sarcasmo. — Você está
completamente bem.
Ela riu, um som breve e seco, antes de se apoiar um pouco mais em mim,
como se finalmente admitisse, sem palavras, que não conseguiria sair
sozinha.
Apertei o braço envolta da cintura dela, notando como era pequena. O calor
do corpo dela contra o meu era algo que eu tentei ignorar. Caminhamos
juntas em silêncio, os sons do caos e da batalha ficando para trás enquanto
nos aproximávamos da saída do armazém.
Apesar do peso dela sobre mim, Ayra mantinha o que restava de sua postura
orgulhosa, o que me fez revirar os olhos. Quando finalmente alcançamos a
saída, o ar fresco da madrugada nos envolveu, e eu senti Ayra relaxar
levemente ao meu lado.
— Está vendo? — disse ela, com aquele sorriso desafiador que parecia nunca
a abandonar. — Eu disse que conseguia me mover.
— Claro, claro. Agora só entre no maldito carro, Ayra — murmurei,
ajudando-a a se acomodar no banco.
Enquanto ela se ajeitava, ainda mantendo aquele sorriso irritante, pensei em
tudo o que havíamos feito e conquistado naquela noite. Juntas, tínhamos
destruído um inimigo e consolidado algo que nenhum de nós queria admitir:
parceria.
☙❧
Ayra Arellano
O salão do hotel estava cheio, o som abafado de conversas e o tilintar de
taças criando um pano de fundo constante. Era uma celebração em grande
estilo, como os cartéis gostavam. A conquista do território rival havia
consolidado nossa posição ainda mais, porém eu não estava ali para me
divertir.
Esses eventos eram, acima de tudo, jogos de poder disfarçados de
comemoração. E eu já estava entediada, antes mesmo de começar.
Escolhi para aquela noite um conjunto branco elegante de um terninho,
simples, mas comportado. Algo apropriado para a ocasião, o suficiente para
não atrair atenção demais. Meu cabelo estava preso em um rabo de cavalo
baixo, discreto.
Quando entrei no salão, não demorou muito para vê-la. Lira Zamorano. Ela
estava de preto, o contraste perfeito para o meu branco. Seu blazer
perfeitamente ajustado e sua postura impecável exalavam controle. Mesmo à
distância, eu podia sentir a tensão que sempre pairava entre nós, mas agora
era diferente. Menor, mas ainda presente. Talvez fosse o peso da aliança que
nos forçava a coexistir, ou talvez a nossa colaboração para a derrubada do
cartel inimigo.
Ela se aproximou sem pressa, os passos calculados e o olhar fixo em mim.
Todos abriam caminho para ela, como se somente o ato de se mover, fosse
uma ordem. Tudo nela parecia calculado, como sempre. Seus cabelos
estavam soltos, uma cascata brilhante que contrastava com o conjunto escuro.
Lira tinha o poder irritante de sempre parecer perfeita.
Quando finalmente estávamos frente a frente, Lira cruzou os braços,
inclinando a cabeça levemente enquanto me avaliava.
— Ayra, — começou, sua voz firme, mas sem hostilidade. — Pensei que não
estaria aqui. Está… bem?
— Por que a preocupação, Lira? — perguntei, um sorriso leve surgindo nos
meus lábios, provocando. — Não me diga que está começando a se importar
comigo.
Ela não mordeu a isca, como costumava fazer antes. Em vez disso, deixou
escapar um pequeno sorriso, mas havia algo quase desafiador naqueles olhos
cinzentos dela.
— Só estou sendo educada, Ayra — disse, o tom pragmático que era tão
típico dela. — E não quero que você me dê mais problemas por insistir em
bancar a indestrutível. Não vou te carregar hoje.
— Não pedi para me carregar— Dei de ombros, ajustando a postura. — E eu
estou ótima, “obrigada” por perguntar.
Ela estreitou os olhos levemente, mas não disse nada de imediato. Seus olhos
analisaram rapidamente meu conjunto, o olhar de Lira sempre afiado para
notar qualquer detalhe.
— Bom, perfeito. Porque o território recém-conquistado precisa de
estabilidade, e a última coisa que precisamos é você criando mais…
distrações.
— Distrações? — retruquei, erguendo uma sobrancelha. — Achei que você
estivesse satisfeita com os resultados. Afinal, trabalhamos juntas e vencemos,
não foi?
— Trabalhamos juntas, sim — ela admitiu, a voz mais baixa agora. — Mas
uma coisa é vencer uma batalha, Ayra. A guerra continua. E agora
precisamos manter o que conquistamos.
Aquela criatura estava sempre pensando em “trabalho”. Eu suspirei,
exasperada, inclinei-me ligeiramente para ela, deixando um sorriso ainda
brincando nos meus lábios.
— Sempre tão prática, Lira — murmurei, minha voz baixa. — Deve ser
cansativo agir como um robô o tempo todo.
— E você? Sempre tão imprevisível. Deve ser cansativo nunca levar nada a
sério. — Ela me lançou um olhar cortante, porém que apenas me animou a
provocar mais.
— Você ficaria surpresa com o que levo a sério, noivinha — rebati, deixando
a última palavra pairar entre nós.
Antes que ela pudesse responder, alguém veio chamá-la, mencionando Arturo
e a necessidade de nós duas irmos ao seu encontro. Lira concordou por nós.
— Apenas… não faça nada que eu tenha que corrigir depois — disse, seca,
mas não tão ríspida quanto eu esperava. — Vamos?
Ela estendeu o braço, me oferecendo. Eu sabia que era porque haviam
pessoas olhando. Essa noite tínhamos que ser um casal que aparentemente
não queria se matar. Javier foi bem incisivo quando saímos de casa ao me
dizer: “por favor, essa noite seja razoável e finja não odiar a Lira”. Eu não
disse nada na hora, mas a promessa de ser “razoável” era, no máximo,
relativa.
— Ah que docinho você está hoje, Lira — eu disse aceitando o braço dela,
com a voz carregada de doçura falsa. — Assim vou acabar me apaixonando.
— Deus… — ela bufou, enquanto nos movemos — Só pode ser castigo
aturar você.
Dei uma risadinha curta, satisfeita. Eu já sabia como ia me divertir essa noite.
Não era xingando ou batendo de frente com Lira Zamorano. Era provocando.
Maliciosamente.
E foi exatamente isso que fiz. Inclinei-me levemente e dei um beijo estalado
na bochecha dela. Nada sutil, nada discreto. Um gesto teatral,
propositalmente exagerado. Lira parou imediatamente, como se tivesse
levado um tiro. Ela me olhou, os olhos arregalados, o rosto mais cômico que
já tinha visto.
— Ficou maluca de vez? — sussurrou, a voz baixa, claramente surpresa.
— Só estou sendo fofa. Essa noite mandaram eu me comportar e ser uma
noiva exemplar. — usei da minha melhor expressão e voz de inocência — Eu
vim até de branco!
— Desde quando é obediente?
— Sempre tem uma primeira vez, agora se mova — empurrei ela para andar
— Não vamos deixar meu sogrinho esperando.
Lira começou a se mover novamente, mas agora parecia tensa como um
bloco de concreto. Notei que ela passou a mão no rosto, limpando o lugar
onde eu a tinha beijado. Isso só me fez rir ainda mais.
— Você realmente é insuportável, — murmurou, sem olhar para mim.
— Ah, noivinha — retruquei, com um sorriso largo. — E isso é só o começo.
Enquanto nos aproximávamos do centro do salão, o foco inevitavelmente
recaindo sobre nós, percebi que talvez esta noite não fosse tão entediante
quanto imaginei. Provocar Lira Zamorano, afinal, sempre tinha seus
momentos de diversão.
☙❧
Lira Zamorano
O ambiente era repleto de sorrisos falsos, brindes exagerados. O cheiro de
perfume caro misturado ao de uísque formava uma nuvem no ar. Eu já estava
acostumada a esses eventos, mas esta noite parecia diferente. Talvez porque
Ayra estivesse comigo. E talvez porque eu soubesse que isso significava
problemas.
— Lira! — ouvi a voz de meu pai. — Finalmente chegou.
Ele estava parado ao lado de dois homens, que claramente eram estrangeiros.
Suas roupas elegantes e a postura confiante gritavam que eram poderosos,
mas era o sotaque ao falar com meu pai que confirmou minhas suspeitas:
americanos. Contatos da máfia.
Respirei fundo, ajustando o blazer enquanto me aproximava com Ayra ao
meu lado. Seu braço ainda estava entrelaçado ao meu, algo que ela fazia
questão de enfatizar com pequenos apertos e toques calculados. Eu sabia que
ela estava gostando de bancar a “noiva” para um público tão influente.
— Pai — cumprimentei, mantendo o tom educado e firme. — Olá, boa noite.
— Boa noite, Lira. Estes são os senhores Carter e Dawson, nossos parceiros
americanos, — meu pai disse, apontando para os homens ao seu lado. — Eles
estão animados com a expansão que conseguimos.
— Muito prazer — disse, estendendo a mão para cada um deles. — Sou Lira
Zamorano.
— Ah, então é a famosa herdeira da Estrela Negra, — Carter comentou com
um sorriso calculado. — Ouvi dizer que você foi peça-chave na conquista do
novo território.
Antes que eu pudesse responder, Ayra abriu a boca, inclinando-se levemente
para mim, apertando meu braço. Enquanto ainda mantinha aquele sorriso que
eu sabia ser puro deboche.
— Não apenas peça-chave — ela disse, sua voz carregada de falsa adoração
que me fez querer bufar. — A minha noiva foi brilhante. Eu tive o privilégio
de assistir ela em ação. Uma verdadeira líder.
Eu a encarei pelo canto do olho, tentando manter a expressão neutra. Seu tom
para todos era de “noiva dedicada”. Mas eu sabia que ela estava rindo por
dentro as minhas custas.
— Ah, sim… Você então é a noiva? — Dawson perguntou, claramente
surpreso, mas interessado.
— Sim — Ayra respondeu antes que eu pudesse dizer qualquer coisa,
apertando meu braço de novo e olhando para mim com aquele brilho travesso
nos olhos. — E eu não poderia estar mais orgulhosa dela.
Meu pai observou impassível, enquanto os americanos trocavam olhares
curiosos. Eu, por outro lado, queria desaparecer. Aquela idiota ia passar a
noite daquele jeito? E o pior, era que as mentiras dela até pareciam
convincentes.
— Uma união poderosa, sem dúvida — Carter comentou. — Deve ser
interessante trabalhar tão de perto, considerando… as circunstâncias.
— Oh, é, — Ayra disse, rindo levemente. — Trabalhar tão “de perto” nos
trouxe… muito mais próximas. Teremos o casamento perfeito.
Ela deslizou o braço pelo meu, fingindo ajustar algo no meu blazer, mas o
toque deliberado na curva do meu ombro enviou um arrepio inesperado pela
minha espinha. Meu corpo reagiu, traidor, e por um momento, minha
respiração falhou. Consegui disfarçar com tossindo e me odiando por me
deixar ser afetada.
— Lira, querida, está tudo bem? — Ela perguntou.
Seu tom era doce e falso enquanto seus dedos se ergueram, tocando meu
rosto. Engoli em seco, chocada com a maciez e gentileza do toque. Aquilo
não parecia em nada com a Ayra que eu conhecia, apesar dos seus olhos
castanhos terem aquele brilho malvado e selvagem. Maldita. Ela sabia
exatamente o que fazia.
— Perfeitamente — respondi com firmeza, forçando um sorriso e me
afastando levemente do toque dela. — Estou ótima.
Antes que a conversa continuasse, Javier se aproximou, sua presença
imediatamente trazendo mais seriedade ao ambiente. Ele cumprimentou os
americanos com a mesma autoridade bruta de sempre, mas não perdeu a
chance de olhar para mim e Ayra.
— Espero que estejam mantendo as aparências — ele murmurou para nós
duas, baixo o suficiente para que apenas eu e Ayra ouvíssemos.
— Ah, tiozinho, você ficaria orgulhoso — Ayra respondeu, piscando para ele
antes de deslizar a mão para a minha cintura, sob meu abdômen, num gesto
íntimo. Meu corpo ficou tenso imediatamente.
— Ayra… — murmurei, tentando me afastar de forma discreta. Mas ela me
segurou, agarrando a minha cintura, se abraçando em mim.
— Estamos apenas sendo nós mesmas, não é, minha coisa linda? — disse ela,
agora me olhando diretamente. O tom provocativo era claro.
— Sem dúvida, — respondi entre os dentes, forçando outro sorriso enquanto
os americanos observavam com curiosidade.
A conversa continuou, mas minha mente estava em outro lugar. Cada toque
de Ayra parecia queimar, como se ela soubesse exatamente o que estava
fazendo. E o pior era que estava funcionando.
Eu odiava ser uma mulher de vinte e nove anos, reagindo aquela garota
mimada, como uma adolescente. Mas cada vez que ela se aproximava,
deslizava a mão sobre mim, ou dava um beijo nos meus cabelos. Tudo em
mim reverberava, com calor e calafrios, e isso era bem ridículo. Afinal de
contas era a Ayra, a minha maior inimiga. A pedra no meu sapato.
Quando finalmente conseguimos nos afastar dos americanos e de Javier,
virei-me para ela, mantendo minha voz baixa para que ninguém ouvisse.
— O que você está tentando fazer, Ayra? — perguntei, a raiva misturada com
algo que eu me recusava a admitir.
Ela deu de ombros, aquele sorriso irritantemente charmoso ainda no rosto.
Era nojento admitir que ela ficava ainda mais linda, e perigosa, sorrindo
daquele jeito.
— Só estou fazendo meu papel, noivinha. Não gostou?
Eu a encarei, tentando ignorar o calor que ainda corria pelo meu corpo. Ela
era um problema que eu não sabia como resolver.
— Não, não gosto dessa proximidade — Eu me afastei dela. — Vou ao
toalete, tente não explodir nada.
Antes que eu pudesse sair, a Ayra agarrou a minha lapela, invadindo meu
espaço pessoal. Seu sorriso charmoso se tornou mais letal.
— Não gosta mesmo da proximidade ou nunca sentiu alguém tão perto
assim? — Ayra sussurrou como um anjo caído, sedutor.
— Ayra, você se superestima demais…
Empurrei as mãos dela de cima de mim e saí. Eu não ia admitir, pelo menos
não para ela, mas a verdade era que aparentemente tesão a gente não escolhe
por quem ter. Independente se for um inimigo.
Eu subi as escadas com passos firmes, sentindo ainda o calor do toque de
Ayra. Respirei fundo enquanto alcançava o corredor que levava ao toalete. Eu
precisava de um momento para me recompor, para afastar da mente os
pensamentos irritantes que ela conseguiu implantar com tanta facilidade.
O corredor estava silencioso, um contraste agradável ao barulho constante da
festa. Abri a porta do toalete, a luz suave preenchendo o pequeno espaço.
Lavei as mãos e passei um pouco de água fria no rosto, olhando meu reflexo
no espelho.
“Controle, Lira. Sempre controle” pensei comigo mesma. Não era o
momento de perder o foco.
Quando sai do toalete, já preparada para retomar meu papel na festa, o som
da música e das conversas voltou a preencher o ar. O brilho do enorme lustre
no salão principal iluminava tudo com uma grandiosidade que combinava
com o evento. Mas de repente senti como se algo estivesse errado.
No instante seguinte, uma figura surgiu das sombras, um homem robusto e
desconhecido, com olhos ferozes e uma arma em mãos. Ele se moveu
rapidamente, o som abafado de seus passos perdido no ruído da festa.
Instinto. Foi a única coisa que me salvou naquele momento. Ele ergue a
arma, mas eu já estava em movimento, avançando. Ele tentou agarrar meu
braço, mas me movi rapidamente para o lado, desviando e empurrando-o com
o cotovelo. A arma caiu da mão dele, deslizando para o canto próximo da
escada. Mas ele não desistiu.
O desgraçado veio para cima de mim de novo, e desta vez acertou um soco
no meu ombro, me desequilibrando. Eu recuei, sentindo minhas costas
tocarem a parede do corredor. Ele lançou um chute, mas segurei sua perna
com força, girando o corpo para desequilibrá-lo. Ele caiu de lado, mas se
recuperou rápido demais, agarrando meu pulso com força e puxando-me para
mais perto.
Acertei um soco na sua costela, um chute, me livrando do seu aperto. Mas ele
parecia uma massa sólida e voltou a me atacar, chutes, que fui defendo. A
luta se tornou mais feroz. Meus saltos já não eram uma vantagem, mas não
tinha tempo para pensar, fui esquivando-me dos golpes dele enquanto tentava
derrubá-lo.
Em certo ponto, notei que alcançamos o limite da escada. As minhas mãos
encontraram o corrimão, e, sem pensar duas vezes, usei o metal como apoio
para dar um chute direto no estômago dele. Ele tropeçou para trás, mas a
raiva em seus olhos só aumentava.
— Você é uma lutadora, mas isso não vai salvar você — ele zombou,
puxando uma faca da cintura.
Eu me movi rapidamente, pegando uma das taças de cristal de um suporte ao
lado da escada e atirando-a contra ele. A taça se estilhaçou contra seu ombro,
mas não o parou. Agora, era vida ou morte.
Quando ele investiu contra mim com a faca, consegui segurá-lo pelos pulsos,
lutando para impedir que a lâmina chegasse perto de mim. Mas estávamos
perigosamente perto do topo da escada. Senti meu equilíbrio vacilar enquanto
ele me empurrava com força. Minha mente corria. Eu precisava de uma saída.
E então, tomei uma decisão que só parecia loucura à primeira vista. Mas não
tinha saída, a não ser puxá-lo com toda a força que tinha e então me joguei
para trás, levando-o comigo. O mundo virou de cabeça para baixo quando
caímos do alto da escada.
O impacto foi brutal, o som de madeira estalando e o baque de nossos corpos
contra o piano ecoando pelo salão. Ouvi gritos de surpresa ao meu redor, mas
o único som que eu conseguia focar era o meu próprio coração martelando.
Eu queria me mover, mas a minha cabeça girava.
Tentei encontrar meu agressor, ele estava ao meu lado, o corpo parcialmente
sobre as teclas quebradas do piano. Parecia sofrer os mesmos efeitos da
queda que eu, porém me forcei a me mover, apesar da dor que pulsava por
todo o meu corpo. Uma pontada no meu ombro indicava que provavelmente
tinha deslocado algo, mas eu estava viva.
Notei ele erguendo a faca, parecia que ia atacar novamente, e eu estava lenta,
lenta demais para evitar o ataque. Enquanto tentava me levantar, uma figura
familiar se aproximou rapidamente. Ayra.
Então em seguida tudo que ouvi foi o barulho de três tiros. Rápidos, limpos e
perfeitos, bem na cabeça do homem ao meu lado. Eu respirei fundo, então
meu corpo relaxou sobre os escombros do piano.
— Se queria atenção, podia só gritar, Lira. Não precisava se jogar de uma
escada — ela disse, ajoelhando-se ao meu lado.
— Você atirou… — falei com o ar faltando em meus pulmões, mas meus
olhos focando na imagem da Ayra pairando sobre mim.
— Atire primeiro. Pergunte depois. Esse é o meu lema — Ela disse. Eu dei
uma risada, mas doeu tudo. — Vai sobreviver?
— Acho que sim, para sua tristeza.
— Definitivamente. Vem, aqui.
Ayra me envolveu, me fazendo sentar. Seus olhos castanhos pareciam
estranhamente sérios, sem a diversão e provocação aparente. Ela tocou minha
testa, e só então notei o sangue. Ayra suspirou, então colocou meu braço
sobre o seu ombro, me ajudava a ficar de pé.
— Você é pesada! — ela resmungou.
— Idiota…
Ayra deu uma risadinha. O salão inteiro ainda nos observava, mas, naquele
momento, nada disso importava. Eu estava viva. E mais uma vez, tinha
vencido, só precisava saber o que.
Notei Javier e Arturo se aproximando, os olhos chocados ao verem a cena.
Olhei para o homem com a cabeça destruída, formando uma poça de sangue.
Um dos seguranças da festa cobriu com um blazer a cena.
— O que diabos houve aqui? — Javier perguntou e olhou para a Ayra.
— Que? — Ela bufou. — Tudo tem que ser minha culpa?
Eu quis rir. Olhei para ela, que me segurava firmemente. Definitivamente
naquela noite Ayra não tinha culpa de nada, ela simplesmente me defendeu,
sem se importar com as consequências.
☙❧
A festa foi por água abaixo. Não tinha como não.
— Todas as imagens foram apagadas. Checamos três vezes, senhor. — o
chefe da segurança disse a Arturo.
Eu me mantive quieta, deitada no sofá de uma sala privada do hotel, com
uma compressa de gelo na cabeça e uma no ombro. Mas sinceramente eu
preferia estar dentro de uma banheira, coberta de gelo, pois estava doendo em
cada pedaço de mim.
— Definitivamente não precisava de três tiros, Ayra. — Javier sinalizou para
a sobrinha.
— Fiquei irritada — Ayra deu de ombros, enquanto comia salgadinhos no
sofá ao lado do meu. — E a Lira não ia ter todo o mérito da noite com a sua
“acrobacia”.
Soltei uma risadinha, que fez doer meu ombro, mas foi inevitável. Olhei para
a Ayra.
— Dramática — Murmurei e ela me deu língua. Eu quis rir de novo, mas me
abstive.
— O que importa é que precisamos manter os olhos abertos. Cuidamos do
cartel do sol, mas aparentemente, deixamos algumas pontas soltas. — Arturo
falou enquanto se servia de uma bebida. — Quem atacou você era um filho
bastardo, queria vingança e sinto que podemos ter outros problemas.
— Se vierem de novo vão ser recebidos como hoje — Ayra afirmou.
— De qualquer modo, precisamos procurar por outras possíveis ameaças. —
Javier apontou para Ayra. — Faça um rastreio dentro do sistema do que
temos do cartel do sol. Talvez possamos encontrar algo lá.
— Já fiz, não tem nada, nem conexões. Um exemplo era o bastardo que não
estava nos registros — Ayra falava tranquilamente comendo, como se
debatesse sobre o tempo. — Temos que procurar nas ruas. Eu posso fazer
isso.
— Não, você e a Lira são os alvos agora. — Arturo comentou. — Até a união
se consolidar com o casamento, não vamos arriscar.
— Precisamos trocar a equipe de segurança. Não confio nesses homens. —
Eu falei, ajustando o gelo. — É o segundo ataque.
— Nisso ela tem razão. Vocês foram bem ineficazes… — Ayra comentou
num tom debochado.
— Não se mete — falei e joguei a bolsa de gelo nela. Ayra aparou, jogando
com força em mim de volta, e doeu. — Aí…
— Chega as duas! — Arturo falou. — Essa noite já foi longa demais. E eu
ainda preciso cuidar de alguns assuntos, como a segurança. Vá para casa,
Lira.
Concordei, me levantando, porém ao tentar usar o ombro, senti a dor se
espalhar de novo. Merda.
— Está deslocado — Ayra cantarolou, claramente se divertindo com a minha
dor.
— Jura? Se não falasse eu não ia nem notar.
— Sou especialista em colocar ossos no lugar — Ela disse e se aproximou.
— Que?
— Não vai tocar em mim.
— Ayra realmente sabe colocar ossos no lugar. Deslocou vários dela
mesma… — Javier disse, então deu um suspiro. — Não se matem. Eu vou
com o Arturo.
Os dois saíram da sala, nos deixando sozinhas. Eu suspirei, já prevendo que
isso não ia acabar bem. Ayra se aproximou devagar, mas o sorriso no rosto
dela já dizia tudo. Ela estava se divertindo com isso.
— Então, noivinha, parece que você vai precisar da minha ajuda — ela disse,
posicionando-se atrás de mim no sofá onde eu estava sentada, ainda
segurando o ombro deslocado.
— Por favor, seja rápido e não torne isso pior — murmurei.
— Oh, querida, eu sempre sou rápida, mas… não prometo nada sobre a parte
de não piorar.
Ela retrucou, aquele sorriso sádico brilhando enquanto colocava as mãos no
meu ombro. Eu já me arrependia de ter permitido isso.
— Respira fundo, Lira. Vai doer só um pouquinho… ou muito. — Ela estava
claramente se divertindo enquanto pressionava meus ombros de forma quase
teatral.
— Ayra, só faz isso logo, porra. — rosnei, já impaciente.
Ela colocou um joelho no sofá para se posicionar melhor e agarrou meu
braço. O brilho no olhar dela era quase assustador, como se ela estivesse
prestes a arrancar minha alma e não apenas colocar meu ombro no lugar.
— Três, dois…
Ela puxou antes de terminar a contagem. O estalo foi alto e a dor intensa,
como se uma onda quente atravessasse meu corpo.
— Vadia! — Soltei um grito, mas me segurei para não fazer mais do que
isso. — Merda, Ayra.
Ayra, por outro lado, explodiu em uma risada. Ela estava adorando cada
segundo disso.
— Você gritou! — ela zombou, ainda rindo. — Lira Zamorano gritou! Que
momento glorioso.
— Você é uma sádica — retruquei entre dentes, respirando fundo enquanto
sentia o ombro finalmente voltar ao lugar. — Se você disser isso para
alguém, eu juro que…
— Relaxa — ela disse, dando um tapinha no meu ombro machucado, o que
me fez soltar um xingamento baixo. — Seu segredo está seguro comigo.
Embora eu possa usar isso contra você um dia.
Eu a encarei, irritada, mas, honestamente, já esperava esse tipo de
comportamento dela.
— Você vai me levar até a mansão — anunciei, tentando me levantar.
— Ah, é? — Ayra cruzou os braços, claramente se divertindo. — E por que
eu faria isso?
— Porque eu não consigo dirigir com o braço assim, e eu não confio nos
meus homens para me levar. Você é minha única opção. Infelizmente. —
Ajustei minha postura, lançando um olhar firme. — E, francamente, é o
mínimo que você pode fazer depois de quase arrancar meu braço.
Ela me olhou por um momento, como se estivesse considerando, antes de dar
de ombros e em seguida dar uma risada debochada.
— Tudo bem. Mas só porque eu quero ver o quão mandona você consegue
ser com um braço ruim.
Eu respirei fundo, decidindo que não valia a pena responder.
Quando finalmente chegamos ao carro, Ayra se jogou no banco do motorista
com uma facilidade irritante. Eu me acomodei no banco do passageiro, ainda
tentando encontrar uma posição que não causasse dor.
— Sabe — ela começou enquanto ligava o motor — dirigir para você faz
com que eu me sinta quase… cavalheiresca.
— E pensar que eu prefiro isso a um dos meus homens. — Revirei os olhos.
— Não me culpe por ser sua melhor opção — ela retrucou com um sorriso
satisfeito enquanto acelerava. — Mas não vou para a sua mansão.
— Como assim não vai para a mansão? — perguntei indignada.
— Eu não confio em entrar no covil da Estrela Negra — ela bateu os dedos
no volante do carro, despreocupada.
— Então vai me levar para a toca do Dragão Vermelho?
— Negativo, não confio em você lá também. — Ela me lançou um sorrisinho
irritante. — Vamos para o apartamento que mantenho, é neutro, pelos menos.
E você já conhece, desde que estava me seguindo, quando acabou com meu
carro.
Suspirei, sabendo que não tinha opção. Eu encarei a estrada pela janela,
tentando ignorar o fato de que, apesar de ser irritante estar ao lado de Ayra,
era estranhamente menos insuportável do que deveria ser. Mas eu nunca diria
isso em voz alta. Nunca.
☙❧
Ayra Arellano
Estacionei o carro no pequeno estacionamento do meu apartamento. Não era
nada glamouroso, especialmente para os padrões da Zamorano, eu apostava.
Desliguei o motor e me virei para ela.
Lira parecia desconfortável, tentando ajustar a postura no banco com o ombro
ainda sensível. O olhar dela percorreu o lugar com um misto de confusão e
julgamento. Deixei o carro, abrindo a porta do carro e dando a volta para
ajudá-la.
— Antes que você pergunte, não, não é um esconderijo, nem uma base
secreta. É só onde eu moro.
Ela aceitou minha ajuda para sair do carro, o que foi um pequeno milagre.
Apesar de toda a pose de autossuficiência, estava claro que cada movimento
era doloroso para ela. Quando começamos a subir as escadas, ouvi o suspiro
exasperado dela ao ver a longa fileira de degraus.
— Você não tem elevador? — Lira perguntou, com frustração e surpresa.
— Não — respondi com um sorriso divertido. — Acredite ou não, eu quis
um lugar simples. Queria me sentir como… alguém normal.
Ela me lançou um olhar, mas não respondeu. Talvez porque estivesse
ocupada tentando não tropeçar nos degraus enquanto eu a segurava.
— Se queria ser normal, por que não escolheu algo no térreo? — Lira
murmurou, ofegante quando chegamos ao último degrau.
— Ah, isso seria fácil demais, — retruquei, rindo enquanto abria a porta do
apartamento. — Entre fracote.
Empurrei ela para dentro. Era o meu lugar pequeno, mas aconchegante. A luz
suave da sala de estar iluminava os móveis simples, mas bem escolhidos.
Levei a Lira até o sofá e, sem cerimônia, a joguei nele. Ela soltou um
pequeno grunhido, me olhando como se eu tivesse perdido a cabeça.
— Você vai me deixar jogada aqui? — reclamou, ajeitando-se com
dificuldade.
— Claro que vou, na minha cama é que não vai ficar — respondi com um
sorriso travesso, tirando meus saltos e chutando-os para o canto da sala. —
Agora fique aí quietinha. Por caridade, eu vou pegar mais gelo para a sua
cabeça.
Ela me lançou um olhar cortante, mas eu ignorei, indo para a pequena
cozinha. O som do gelo caindo no copo foi acompanhado por meu
pensamento inevitável: Lira Zamorano, no meu sofá, no meu apartamento.
Quem diria que o destino teria esse senso de humor?
Voltei com o gelo e um dois guardanapos, e me abaixei ao lado dela. Lira fez
uma careta, desconfiada de cada gesto meu. Aqueles olhos cinzas
avaliadores, como se tentasse entender algo muito complicado.
— Por que você faz isso? — ela perguntou de repente, o tom mais suave do
que eu esperava.
— Isso o quê? — retruquei, fingindo desinteresse enquanto ajustava o gelo
no guardanapo.
— Querer ser normal, querer viver assim. — Ela gesticulou ao redor da sala.
— Você tem tudo, Ayra. Por que se limitar a algo tão… simples?
— Talvez porque o que eu tenho não seja realmente meu — respondi dando
de ombros, sem olhá-la. — Isso aqui, esse lugar, essas coisas simples… isso é
meu. Não é do cartel, não é do Javier, não é de ninguém. É só meu.
— Mas o cartel é seu, você é a herdeira. — Ela disse, soando confusa. Eu
ergui os olhos e encontrei os seus.
— Javier tem um filho, seu precioso garoto que ele mantém escondido. O que
acha que vai fazer comigo, quando o garoto tiver idade suficiente para
assumir os negócios? — Lira me encarou por um momento, como se
estivesse tentando decidir se acreditava em mim ou não. Eu continuei. —
Depois que meu pai morreu, eu me tornei uma peão. Javier cuidou de mim
porque era o esperado, mas me usou como bem entendeu, porque é para o
que eu sirvo. Se eu não casar com você, vou ser expulsa do Dragão
Vermelho.
— Por que está me contando sobre isso? — Lira perguntou, seu tom
desconfiado.
— Não tenho nada a perder e não ligo para o herdeiro do Javier. Pouco me
importa se a Estrela do Norte o mandar para o inferno.
O silêncio na sala ficou pesado. Ela me olhava como se estivesse tentando
juntar as peças de um quebra-cabeça que não fazia sentido.
— Bom, chega de papo triste — murmurei, decidindo mudar de assunto antes
que ela resolvesse cavar mais fundo. — Não combina comigo!
Estendi as mãos, abrindo os botões centrais do seu blazer, puxando sem
cuidado até abrir.
— Ei, pare com isso — Ela tentou resistir, segurando as minhas mãos. —
Pare de tentar me despir.
— Deixa de ser “tímida”, noivinha. — Eu empurrei as mãos dela. — Preciso
ver o estrago e se morrer no meu sofá, quem vai ser a culpa?
— Não estou morrendo — Lira retrucou, revirando os olhos. — Ei pare…
— Você subiu se arrastando como uma lesma. É claro que está toda ferrada,
mas está se fazendo de forte. — Eu disse, dando um tapa nas suas mãos. —
Agora fica quieta, porra.
Puxei o blazer dela com mais força, revelando o que estava por baixo. Lira
não usava uma blusa por baixo, apenas um sutiã escuro. A criatura era linda,
mas o que me chamou atenção imediatamente foram os hematomas nas
costelas e no ombro. Grandes manchas roxas espalhadas pela pele clara,
contrastando com a perfeição que era ela.
— Droga, Lira — murmurei, minha voz saindo sem pensar enquanto meus
olhos percorriam os ferimentos. — Você devia ter dito que estava assim
antes.
— Estou bem — ela respondeu rapidamente, mas o jeito que desviou o olhar
entregou que ela sabia que não estava.
— Ah sim, está ótima!
Provoquei, analisando o contraste entre os hematomas, e sem poder evitar,
aquele abdômen perfeitamente definido. Era hipnotizante como ela era
bonita. Minha mão, quase por conta própria, deslizou pela lateral dela, os
dedos percorrendo a pele quente e marcada. Lira arqueou uma sobrancelha, o
olhar fixo em mim.
— O que você está fazendo? — perguntou, o tom sério, mas com uma pitada
de curiosidade.
— Estou verificando os danos — respondi, tentando disfarçar o fato de que,
por um momento, esqueci completamente o que estava fazendo. —
Aparentemente não quebrou nada.
Eu comentei, apertando as costelas, Lira gemeu, me permitindo a análise.
— Elas ainda doem por causa de um certo atropelamento que sofri.
Dei uma risada, ainda tocando nela. Mas percebi o quanto a Lira estava
tentando esconder o desconforto. Decidi focar na tarefa. Peguei uma
compressa de gelo e coloquei no ombro dela, em seguida nas costelas. Ela
soltou um suspiro baixo, quase inaudível, e, por um instante, tudo ficou em
silêncio novamente.
— Isso vai ajudar!
Avisei, enquanto continuava com a mão ainda estava na lateral dela, mas
claro com um propósito claro: apoiar o gelo. Ela não respondeu, mas havia
algo no olhar dela que parecia menos… calculado. Menos controlado. Era
estranho, desconcertante até.
— Agiu rápido hoje — Lira disse de repente e me fez encarar seus olhos
cinzas.
— Você faria o mesmo. Na verdade o fez, quando me protegeu daquelas
balas no restaurante. — Eu dei de ombros. — Apesar de sermos o que somos,
não somos capazes de voltar atrás em um acordo.
Eu ajustei a compressa, percebi que minha mão ainda estava no abdômen
dela, os dedos levemente pressionando a pele. Soltei um suspiro, retirando a
mão antes que ela dissesse algo. Fiquei de pé, tentando parecer casual
enquanto me afastava. Lira ainda me observava, o olhar fixo como se
estivesse analisando cada movimento meu.
— Valeu pelo gelo e o sofá. — Ela se ajeitou entre as almofadas. Mas algo
me dizia que ela estava tão confusa quanto eu sobre o que havia acabado de
acontecer.
CAPÍTULO QUATRO
Lira Zamorano
Acordei cedo como de costume, mas estranhando o lugar. Era uma
apartamento pequeno, com uma decoração simples, mas de alguma forma
aconchegante. Eu pensei um minuto, até me lembrar. Ayra. Eu estava no
apartamento dela.
Me sentei devagar, sentindo a dor na lateral do meu corpo, mas com certeza
bem melhor que na noite anterior. Eu movi meu ombro, doeu, porém a
manobra de recolocação da Ayra funcionou. Suspirei olhando ao redor,
procurando meu blazer, nem sinal, em algum momento a dona do lugar deve
ter sumido com ele.
Fiquei de pé, indo em busca de algo para vestir, não podia ficar andando
somente de calça e sutiã. E eu estava com fome.
Andei da sala até um pequeno corredor, havia duas portas. Uma eu descobri
que levava ao banheiro e a outra entreaberta revelava um quarto. Lá dentro,
estava a Ayra dormindo o sono dos justos numa cama enorme, cheia de
travesseiros, o notebook ao seu lado em pleno funcionamento. Ela devia ter
passado a noite fazendo o que Javier mandou, procurando “pontas soltas” do
cartel do sol.
Entretanto, o que me chamou atenção, foi ela dormindo abraçada a um urso
bonitinho. Parecia ser um coelho, ou algo do tipo, era branco com azul, e era
simplesmente, muito adorável para estar nos braços de uma doida sádica
daquelas.
— Quem diria que ela gosta de ursinhos — me estiquei, olhando dentro do
quarto, não tinha nada demais.
Suspirando, me afastei dali, entrando no banheiro e passando uma água no
rosto. Encontrei uma camisa regata pendurada atrás da porta, peguei, sentindo
o cheiro doce floral na peça. Dei de ombros, pelo menos parecia limpa, e por
isso eu vesti.
Quando voltei para a cozinha, abri os armários, estavam praticamente vazios.
Coloquei os poucos ingredientes sobre a bancada, comecei a preparar as
panquecas e o café. Era o máximo que podia fazer com o arsenal limitado
daquela cozinha.
Misturei a massa em silêncio, os movimentos mecânicos me ajudando a
organizar os pensamentos. A sensação de estar no apartamento da Ayra ainda
era estranha, e a lembrança dela me ajudando na noite anterior e tudo que ela
contou tornava tudo ainda mais… desconfortável.
O cheiro das panquecas começou a preencher o ar, quente e adocicado,
quando ouvi o som de passos leves atrás de mim. Claro. Ela tinha que
aparecer.
— Bom dia, noivinha…
A voz de Ayra soou rouca, preguiçosa, como se ela ainda estivesse meio
adormecida. Virei-me para respondê-la, mas qualquer palavra morreu na
minha garganta quando a vi.
Ela estava encostada no batente da cozinha, usando uma camisa larga que
descia até quase a metade das coxas. E só. A ausência de qualquer outra peça
de roupa era óbvia, com as pernas dela expostas, alongadas e completamente
à vontade. A única coisa que destoava era o curativo na coxa, onde ela tomou
a facada. O cabelo castanho estava bagunçado, mas de um jeito sexy, e ela
tinha aquele sorriso irritantemente charmoso no rosto. Eu tentei me
concentrar na panela.
Foque na comida, Lira. É só Ayra sendo Ayra.
— Não sabia que tinha alguém que sabia cozinhar por aqui — ela comentou,
entrando na cozinha e pegando um copo de água no armário como se
estivesse completamente sozinha.
— Alguém tem que fazer isso, já que você claramente só vive de café e
confusão — retruquei, tentando manter o tom firme enquanto virava a
panqueca.
— Ah, mas você está errada. Às vezes como cereal — ela disse com um
sorriso provocador, antes de abrir a geladeira e se servir um copo de água. —
Também adoro panquecas.
Falou recostando-se contra a bancada e cruzando os braços, o que apenas fez
a camisa subir levemente.
— Que alimentação balanceada, — murmurei, desviando o olhar rapidamente
para a frigideira.
Ayra era irritante. Sempre foi. Mas, de alguma forma, ali naquele momento,
era diferente. Estranhamente desconcertante. Ela inclinou a cabeça, me
observando de uma forma que me fez sentir como se estivesse sob um
holofote.
— Essa é minha camisa, sabia? — comentou, o tom casual, mas os olhos
brilhando com diversão.
— Eu precisava de algo para vestir, não encontrei meu blazer — comentei,
dando de ombros — E você parece não precisar dela, considerando que
decidiu andar praticamente nua.
— Nua é? — Ela arqueou uma sobrancelha. — Só estou confortável na
minha própria casa.
— Então, pelo menos, vista algo mais… decente, considerando que não está
sozinha — respondi, finalmente me virando para encará-la, segurando a
espátula como uma espécie de escudo imaginário.
— Decente? — Ela deu um passo à frente, o sorriso crescendo no rosto. —
Qual é, Zamorano, eu estou te deixando distraída?
Eu bufei, virando-me de volta para o fogão, mas senti o rosto esquentar.
Maldita. Ela sempre sabia exatamente como me irritar.
— Vai sonhando — retruquei, mantendo o tom seco. — Idiota.
Ela deu uma risada curta, aproximando-se mais. Senti o calor dela atrás de
mim antes mesmo de ouvir sua voz baixa, perto demais. Eu fechei os olhos
por um segundo, tentando não deixar aquilo me atingir.
— Eu te odeio, mas preciso admitir, você fica um tesão cozinhando — ela
provocou, e então deu uma mordida no meu ombro.
— Ayra! — Eu me encolhi, enquanto ela riu — Se você não sentar, eu juro
que jogo essa panqueca em você.
Minha voz saiu menos firme do que eu esperava, e isso pareceu diverti-la
ainda mais.
— Tudo bem, tudo bem. — ela disse, levantando as mãos em rendição
enquanto recuava. — Não quero atrapalhar a chef.
Ela se jogou em uma das cadeiras da pequena mesa da cozinha, descansando
o queixo na mão enquanto me observava. Por um instante ela pareceu
adorável demais, nunca tinha reparado que ela podia ser assim. Tentei ignorar
sua presença, mas era quase impossível.
Finalmente, terminei as panquecas, colocando o prato na mesa e pegando
dois garfos. Coloquei o café nas xícaras que estavam na bancada. Quando me
sentei, Ayra pegou uma fatia imediatamente, sorrindo de forma satisfeita.
— Sabe — ela começou, mastigando. — É uma loucura né?
— O que é uma loucura? — perguntei, erguendo uma sobrancelha,
desconfiada.
— Você aqui, cozinhando no meu apartamento, usando minha camisa, e sem
eu te dar um tiro. — Ela riu, balançando a cabeça. — É quase fofo.
Eu a encarei, tentando ignorar a onda de calor que subia pelo meu rosto.
— Bom, eu só estou tentando sobreviver um dia de cada vez, e sem te matar,
Ayra.
— Por enquanto, está se saindo muito bem — ela disse, inclinando-se
ligeiramente sobre a mesa, o olhar fixo em mim. — Onde aprendeu a
cozinhar? Não está mal isso aqui.
— Se você fosse educada, diria “obrigada” por eu te alimentar — comentei
levando um pedaço de panqueca à boca, mastigando.
— Se eu fosse, mas não sou — Ela deu de ombros — Não me respondeu.
— Eu não gosto de depender de ninguém. Nem para me alimentar, então
aprendi.
— Ora, ora, a senhora autossuficiente, — comentou, com aquele tom
zombeteiro característico que eu já começava a antecipar.
— Sim, sou — retruquei, erguendo uma sobrancelha. — Você por acaso sabe
fazer alguma coisa que não seja espalhar caos?
Ela riu, se recostando na cadeira e cruzando as pernas de forma
exageradamente relaxada, a camisa grande subindo um pouco mais, mas ela
parecia não se importar, o que só servia para me irritar mais.
— Nunca em meus vinte e cinco anos precisei entrar numa cozinha — disse
com um ar de superioridade teatral. — Aprendi a fazer coisas mais legais,
como atirar. Bem melhor que você, diga-se de passagem.
Eu revirei os olhos, largando o garfo no prato. Claro, ela tinha que
transformar tudo em competição.
— Atirar é legal, mas não resolve a fome — rebati, cruzando os braços. —
Talvez você devesse aprender algo útil. Sabe, no caso de algum dia acabar
em uma situação onde não tenha seguranças ou cozinheiros à disposição.
Ayra riu de novo, inclinando-se sobre a mesa, os olhos brilhando com
diversão.
— Eu vou me casar com você. Então posso ficar tranquila que quanto a parte
de cozinhar, você faz para a gente.
Eu respirei fundo, tentando não deixar a provocação me atingir. Era
impressionante como ela conseguia transformar até uma simples conversa em
uma montanha russa de emoções.
— Você realmente é impossível — murmurei, voltando a focar na minha
panqueca.
— Impossível, não — corrigiu ela, com um sorriso malicioso. — Apenas…
inigualável. E você sabe disso.
Eu bufei, mas não respondi. Porque, no fundo, Ayra Arellano era, de fato,
única. Irritantemente única.
— Só cala a boca e volta a comer.
Eu suspirei, balançando a cabeça enquanto pegava outro pedaço da panqueca.
Para minha surpresa, Ayra riu e, por um milagre inexplicável, fez exatamente
o que pedi. Sem mais comentários, sem provocações, pelo menos por um
minuto. Algo raro e, honestamente, um pouco suspeito.
☙❧
Ayra Arellano
Dias depois do fiasco que aconteceu na festa de comemoração de expansão.
Eu estava entrando em uma loja de noivas, que era o tipo de lugar que fazia
você sentir que entrou em um mundo paralelo. Tudo parecia brilhar, do
mármore impecavelmente polido do chão aos enormes espelhos dourados que
cobriam as paredes.
Os vestidos estavam expostos como obras de arte, cada um mais extravagante
e brilhante do que o outro. Definitivamente não era o meu tipo de lugar.
— Senhorita Arellano, tente parecer mais animada — a cerimonialista
comentou, enquanto caminhava à nossa frente com a postura perfeita e um
sorriso profissional. — Este é um momento especial.
Eu a observei com um olhar entediado, lutando contra o impulso de revirar os
olhos. “Especial” não era a palavra que eu usaria. Tortura parecia mais
adequada.
A Lira, por outro lado, parecia perfeitamente à vontade. Claro que parecia.
Este tipo de ambiente era praticamente o habitat natural dela. Estava
impecável, como sempre, com um vestido tubinho ajustado ao seu corpo e
aquele ar de superioridade que fazia com que todos ao redor se sentissem
deslocados.
Eu, por outro lado, escolhi calças jeans e uma camisa branca, com jaqueta de
couro, assim como minhas botas. Por fim, óculos escuros. Eu estava
totalmente destoante daquele lugar, mas não me importava, era meu ato de
protesto, vamos dizer assim.
— Não é tão ruim assim, Ayra — Lira comentou, percebendo minha
expressão. — Pense nisso como uma missão. Escolher o vestido mais
adequado para impressionar os aliados.
— Impressionar? — retruquei, ao baixar o óculos até a ponta do nariz,
enquanto julgava um vestido exagerado. — Tenho certeza de que o simples
fato de estarmos nos casando já é suficiente para chocar meio mundo.
— Você tem razão — ela respondeu, sem nem me olhar, focada em uma
outra fileira de vestidos. — Mas é melhor que o choque venha acompanhado
de estilo.
Suspirei, me jogando em uma das cadeiras luxuosas próximas enquanto a
cerimonialista começava a trazer algumas opções. Eu sabia que seria
obrigada a vestir pelo menos meia dúzia de vestidos antes que alguém
decidisse qual era “o certo”. E eu odiava cada segundo disso.
— Muito bem, senhoritas — a cerimonialista disse, com entusiasmo
exagerado. — Não é comum que as noivas escolham seus vestidos juntas.
— Não teríamos a sorte sobre a superstição do “azar” em ver o vestido de
noiva. — Eu disse sem secamente. A cerimonialista engoliu em seco,
olhando para Lira, que só deu de ombros.
— Hum… Bom, como ia dizendo, eu escolhi algumas opções que acredito
que combinem com o estilo de cada uma. — Ela falou tentando manter a
postura profissional.
— Estou curiosa para saber o que você considera o meu estilo — murmurei,
tirando os óculos, lançando um olhar de canto para Lira, que fingiu não me
ouvir.
As atendentes começaram a trazer os vestidos. O primeiro era um modelo
longo, cheio de rendas e brilho, algo que parecia ter saído de um conto de
fadas. Olhei para aquilo como se fosse uma arma apontada para mim.
— De jeito nenhum — declarei, cruzando os braços.
— Concordo — Lira disse, para minha surpresa, enquanto examinava outro
vestido. — Muito brilho. Ela ficaria ridícula.
Virei-me para encará-la. Eu quis arremessar nela, um vaso de flores, que
estava ao meu lado.
— Obrigada pela honestidade, querida noiva.
— Só estou sendo prática — ela respondeu com um sorriso debochado,
acenando para trazer outro vestido.
— Ah, claro, parece uma mortalha. Nada mais apropriado para um casamento
— provoquei, quando trouxeram um novo modelo.
— É sofisticado — Lira retrucou, o tom seco. — Algo que você claramente
não compreende.
Antes que eu pudesse responder, a cerimonialista interrompeu.
— Vamos experimentar alguns senhoritas! Nada como vestir para saber o que
realmente funciona.
O sorriso dela era tão forçado que me deu vontade de rir. Claramente, ela
estava tentando manter o controle da situação entre nós. Boa sorte com isso.
Enquanto as atendentes me empurravam para um provador, Lira já estava
escolhendo outro vestido para experimentar. Eu a observei pelo espelho,
percebendo como ela se movia com confiança. Era irritante. E infelizmente,
fascinante.
— Vai encarar um vestido ou vai ficar aí me olhando? — Lira perguntou,
com um tom desafiador.
— Não enche, Zamorano. — Peguei o vestido menos exagerado que consegui
encontrar na pilha e fui para o provador. Se isso era uma missão, eu só queria
que acabasse logo.
Entrei no provador com um suspiro pesado. O vestido tinha tantas camadas
de tule que parecia mais um bolo de casamento ambulante. Coloquei-o com
esforço, ajustando as alças enquanto tentava ignorar o quanto aquilo me fazia
sentir deslocada. Quando finalmente consegui ajeitar tudo, olhei para o
espelho e precisei conter a risada. Eu parecia uma piada.
— Ayra, você está pronta? — A voz de Lira veio do lado de fora, soando tão
exasperada quanto eu me sentia.
— Pronta para fugir daqui, talvez, — retruquei, abrindo a cortina com um
movimento brusco.
Lira estava ali, também usando um vestido branco completamente exagerado.
Era cheio de rendas, bordados e brilhava mais do que qualquer coisa deveria
brilhar. E, claro, a expressão no rosto dela era de puro desgosto.
— Você está horrível — disparei, apontando para o vestido dela.
— Ah, e você está divina, claro — ela respondeu, com um tom carregado de
sarcasmo enquanto me avaliava. — Você parece… um bolo. Literalmente.
— E você parece que foi enrolada em papel de presente — retruquei,
cruzando os braços. O tule no vestido subiu ainda mais, me fazendo bufar de
irritação.
A cerimonialista apareceu do nada, com aquele sorriso forçado que já me
fazia querer fugir.
— Senhoritas, esses modelos são os mais pedidos por noivas tradicionais.
Elegância e sofisticação.
— Pare — Lira a interrompeu, erguendo uma mão. — Isso não é elegância.
Isso é… um carnaval.
— Concordo com ela, pela primeira vez — acrescentei, girando no vestido
para mostrar o volume absurdo das saias. — Isso aqui não funciona. Para
ninguém.
A cerimonialista pareceu ofendida, mas conseguiu se recompor.
— Talvez algo mais… minimalista? Menos camadas?
— Menos tudo, por favor — Lira disse, já se movendo para o provador para
se livrar daquela monstruosidade.
Eu também fiz o mesmo. Voltei antes e, sentei-me em uma das cadeiras,
arrancando os sapatos desconfortáveis enquanto esperava. Lira logo voltou,
agora vestindo outro modelo, igualmente branco, mas desta vez sem tantas
camadas. Era elegante, mas ainda assim, parecia errado.
— Melhor? — ela perguntou, olhando para mim enquanto ajeitava o tecido
nos ombros.
— Um pouco. Mas ainda não parece você. — Eu inclinei a cabeça,
avaliando-a.
— E como você acha que eu sou? — Ela me encarou, o rosto sério.
— Sei lá, só não combina — admiti, dando de ombros. — Esse vestido faz
você parecer… uma pessoa comum.
— E isso é ruim? — Ela soltou um riso baixo.
— Nem você ou eu, somos comuns.
Eu disse, e o silêncio se instalou. A cerimonialista voltou com outro modelo
para mim. Dessa vez, era mais ajustado, sem tantas rendas ou brilho, mas
parecia errado. Quando experimentei e saí do provador, Lira olhou para mim
e franziu o cenho.
— Parece que você está indo para um culto religioso.
— Melhor do que parecer um cupcake, — retruquei, e ela soltou um pequeno
sorriso, o primeiro genuíno desde que chegamos ali.
— Realmente — Ela concordou.
E depois de mais uma rodada de vestidos que não pareciam certos para
nenhuma de nós, finalmente nos encaramos, exaustas e frustradas.
— Nenhum desses vai funcionar — Lira declarou, tirando o último vestido
com uma expressão de puro alívio.
— Finalmente concordamos em algo, noivinha — respondi, jogando-me na
cadeira exausta.
A cerimonialista parecia prestes a desmaiar. Ela sabia que tinha que fazer a
gente aprovar os vestidos, porque o cronograma do casamento estava
apertado.
Ela continuava falando sobre “elegância clássica” e “tradição” enquanto
puxava mais vestidos brancos que eram praticamente idênticos. Eu, por outro
lado, estava prestes a perder a paciência.
— Chega — interrompi, me levantando da cadeira e ignorando o olhar
surpreso da cerimonialista. Lira, que estava ao lado, ergueu uma sobrancelha,
claramente intrigada.
— Ayra, o que você está fazendo? — Lira perguntou, com aquele tom
irritantemente calmo.
— Estou resolvendo o problema, noivinha — respondi sem olhar para trás
enquanto caminhava pela loja, indo direto para a sessão onde vi algo que
chamou minha atenção antes.
— Senhorita — a cerimonialista tentou argumentar, soando quase ofendida.
— Esses modelos não são brancos puros. Fugiriam completamente do tema
tradicional.
— Ótimo — cortei, abrindo uma porta que levava ao estoque. — O
tradicional é um tédio. Estou procurando algo que tenha, pelo menos, um
pouco de alma.
— Não adianta, ela vai fazer o que quiser — ouvi Lira murmurar atrás de
mim para a cerimonialista. Mas quando me virei, ela estava me seguindo,
cruzando os braços como quem estava resignada. — Você realmente é uma
confusão ambulante.
— E você realmente gosta de reclamar — retruquei, puxando um cabide com
um vestido off-white que parecia promissor. — Vai ficar aí parada ou vai me
ajudar?
Lira suspirou, mas começou a olhar os vestidos, mesmo que com uma
expressão de tédio. Enquanto isso, passei pelos cabides, separando modelos
que pareciam menos sufocantes do que os brancos exagerados da frente da
loja.
E foi então que eu o encontrei. Era um vestido minimalista, elegante e
sofisticado. Feito de um tecido liso, seda talvez, com um brilho discreto que
reflete a luz de maneira discreta. A cor, era off-white sutil, fugindo do branco
puro tradicional, mas mantendo o ar clássico.
O corte era ajustado ao corpo, com um drapeado assimétrico na parte
superior. A ausência de detalhes exagerados, como rendas ou bordados,
mantém o design limpo e impactante. A saia longa se estende em um
caimento fluido até o chão, formando uma pequena cauda que adiciona um
toque de grandiosidade.
Este é um vestido que combinava perfeitamente com Lira Zamorano.
— Esse é diferente — murmurei para mim mesma, puxando o cabide.
— O que é isso? — Lira perguntou, aproximando-se e analisando o vestido
na minha mão.
— Acho que combina com você — respondi, com um sorriso satisfeito e
resolvi provocar. — Tão entediante, mas elegante, do jeito que você gosta de
ser.
Ela me lançou um olhar que poderia ter queimado um buraco no chão, mas
pegou o vestido e o segurou, como se estivesse considerando. Eu dei risada.
Continuei procurando, passando pelos cabides até que meus dedos tocaram
outro modelo.
Este já era de design [4]off-shoulder. O tecido liso, formava um decote
assimétrico, com um detalhe de dobra no busto que cria um efeito escultural,
equilibrando a sensualidade com um toque sofisticado.
O drapeado na lateral do vestido desce em direção à cintura e se transforma
em uma grande flor feita de tecido. A fenda lateral alta adiciona um ar
provocativo, com a saia ajustada ao corpo na parte superior, mas flui
suavemente a partir do quadril, criando um equilíbrio entre estrutura e leveza.
A pequena cauda completa o design, tornando-o perfeito para quem não tem
medo de ser o centro das atenções.
— Bem, bem… — murmurei, erguendo o cabide e analisando o design. —
Agora esse é mais o meu estilo.
— Deixe-me adivinhar — Lira comentou atrás de mim. — Esse é para você?
— Obviamente — respondi, me virando com um sorriso malicioso. — Ou
você acha que eu deveria usar algo… tradicional?
— Tradicional e você na mesma frase? — Ela bufou, mas não conseguiu
esconder um pequeno sorriso. — Pelo menos tem um pouco mais de
personalidade do que o que a cerimonialista sugeriu.
— Ah, então concordamos em algo? — perguntei, segurando o vestido contra
o corpo e girando para ela.
— Não estique demais sua sorte, Ayra — ela retrucou, mas havia diversão na
voz dela.
— Bem, vou experimentar — eu disse pela primeira vez animada em provar
algo — vá experimentar o seu.
Lira suspirou, mas com um olhar de vencido, desapareceu em um dos
provadores. Eu fui para o outro, sorrindo para mim mesma. Talvez essa ideia
maluca de escolher nossos próprios vestidos não fosse tão ruim.
Quando saí do provador, usando o meu vestido, encontrei Lira já em frente ao
espelho, ajustando o seu. Por um momento, esqueci como falar. Ela estava
incrível. Lira percebeu meu olhar e cruzou os braços.
— Vai ficar aí me olhando ou vai dizer algo útil?
— Eu fiz um ótimo trabalho — Eu sorri, colocando as mãos na cintura. —
Acho que finalmente encontramos algo que funciona.
— Hum… Não é para tanto — ela disse, olhando para mim pelo espelho.
— Gostou do meu modelo? — mostrei a ela com um giro.
— Não parece um cupcake… Não está mal.
— Isso foi um elogio? — perguntei, arqueando uma sobrancelha.
— Interprete como quiser…
Lira respondeu, mas havia algo nos olhos dela, uma faísca de aprovação que
me pegou de surpresa. Eu me aproximei, parando ao lado dela enquanto nos
olhamos no espelho. Nós duas, em vestidos que pareciam feitos sob medida.
— Então — comecei, um sorriso malicioso surgindo. — Quem diria que
podíamos funcionar tão bem juntas?
— Não exagere — Lira disse, mas o canto da boca dela tremia, quase
formando um sorriso.
☙❧
Lira Zamorano
A luz do sol já estava sumindo com o fim da tarde quando saí da loja de
noivas com um suspiro de alívio. Finalmente tínhamos terminado aquela
sessão de tortura. A cerimonialista, visivelmente exausta de lidar conosco, se
despediu com um sorriso forçado que quase me fez rir. Ela provavelmente
estava contando os segundos para nunca mais nos ver.
Me apressei, com passos firmes, apertando a chave da minha [5]Lamborghini
Veneno Coupé preta na mão. Eu só queria ir embora e recuperar um pouco da
minha paz, arrancada por Ayra Arellano. Era tanta energia caótica que eu
precisava de um tempo. De preferência, o mais longe possível dela.
— Não vai me oferecer uma carona, noivinha? — Ayra perguntou atrás de
mim, com aquele tom meloso que me fazia revirar os olhos automaticamente.
— Você tem um motorista. Use-o.
Eu respondi secamente, sem nem olhar para trás, enquanto caminhava mais
rápido em direção ao carro. Se eu parasse para dar qualquer atenção a ela,
sabia que isso só prolongaria o meu tormento. Ayra, claro, não se deu por
vencida. Ouvi seus passos rápidos me seguindo, e, antes que eu pudesse
destrancar o carro, senti a mão dela puxando minha chave com destreza.
— Ayra! — rosnei, girando para encará-la. — Me devolva.
Ela estava ali, com a chave na mão, girando-a no dedo como se fosse um
prêmio que acabara de conquistar. E era mesmo, aquele carro só tinha três
unidades no mundo. Eu queria gritar de frustração diante do perigo que era as
minhas chaves na mão daquela maluca.
— Essa máquina merece alguém que saiba realmente como dirigir, — ela
disse, com aquele sorriso presunçoso no rosto
— Me devolva — ordenei, aproximando-me dela. — Agora.
Ela riu, dando um passo para trás como se estivéssemos em algum tipo de
brincadeira infantil. Só que não havia nada divertido nisso.
— Relaxa, Lira. Vou só dar uma voltinha — ela disse, já se movendo em
direção ao lado do motorista. — Prometo que devolvo inteira, ou não…
Eu fui atrás, tentando agarrá-la, mas Ayra era rápida. No momento em que
tentei alcançá-la, ela se virou de repente e bateu de leve nas minhas costelas,
exatamente onde eu ainda estava machucada do último incidente. A dor foi
instantânea, me fazendo tropeçar por um segundo. Maldita.
— Você joga sujo! — ofeguei, tentando me recompor.
— Sempre — ela respondeu com um sorriso inocente, já abrindo a porta do
motorista. — Beijos querida.
Ela mandou um beijo debochado, abrindo a porta e entrando. Mas eu não ia
desistir tão fácil. Mesmo com a dor nas costelas latejando, corri até o carro e
consegui me jogar no banco do passageiro antes que ela pudesse arrancar.
— Não ligue esse carro. — Eu tentei impedi-la, mas Ayra deu tapas na minha
mão.
— Sai daí, Lira — ela disse, lançando-me um olhar que era metade irritação,
metade diversão e ligou o motor. — Se continuar me atrapalhando, eu vou
enfiar esse carro contra o muro.
O fogo naqueles olhos castanhos, que à noite pareciam mais escuros que o
normal, não deixava dúvidas que ela tinha a total coragem de destruir meu
carro. Eu sabia que ela não tinha se conformado com o que eu fiz com o que
eu mandei fazer com o seu Mustang.
— Sua desgraçada — retruquei, ajeitando-me no banco. — Se você acha que
vou deixar você dirigir meu carro sozinha, está mais maluca do que eu
imaginava.
Ela suspirou dramaticamente, colocando as mãos no volante. O ronco da
Lamborghini reverberou no estacionamento, chamando atenção de algumas
pessoas ao redor. Ayra lançou-me um olhar de lado, o sorriso voltando aos
lábios.
— Tudo bem, noivinha. Mas não reclame se eu te der um passeio
inesquecível.
— Se você arranhar esse carro — murmurei entre dentes, prendendo o cinto
de segurança — eu juro que vai pagar por isso.
— Ah, Lira — ela respondeu, pisando fundo no acelerador. — Espero que se
lembre que você destruiu o meu carro.
Antes que eu pudesse responder, Ayra arrancou com o carro. A força do
veículo me jogou contra a cadeira, enquanto a maluca do meu lado soltou
gritinhos animados. No primeiro giro do volante, eu senti meu estômago ir na
lua e voltar. Ayra dirigia como uma completa lunática.
O motor da Lamborghini rugia como um predador enquanto ela fazia curvas
fechadas e acelerava como se o próprio diabo estivesse em seu encalço. Eu
podia sentir cada músculo do meu corpo se tensionar, enquanto eu
preocupava com a integridade do veículo e a minha.
— Você está louca! — rosnei, segurando no apoio da porta com tanta força
que meus dedos começaram a doer.
☙❧
Ayra Arellano
O ronco do motor preenchia o silêncio do carro. Eu dirigia com uma mão no
volante, a outra descansando apoiada na porta, enquanto o ronco suave da
Lamborghini preenchia o silêncio entre nós. Era estranho. Lira, geralmente
tão rápida para reclamar ou me dar ordens, estava calada no banco do carona.
Calada demais.
Dei uma olhada pela conta do olho, nela, no banco do passageiro. Estava
quieta, apoiada contra a porta, com o rosto ainda marcado pelo corte que
levou. Havia uma vulnerabilidade nela agora que eu nunca tinha visto antes.
Lira sempre foi impecável, sempre tão controlada, tão… impenetrável.
Lembrei dela sendo arrastada para fora do carro. Sendo sincera comigo
mesma: Eu me assustei. O grito que dei pelo nome dela saiu sem eu perceber,
e quando dei por mim, já estava com a arma na mão, pronta para atirar. Foi
como se meu corpo tivesse reagido antes que minha mente pudesse processar,
para ajudá-la.
Segurei o volante com mais força, os dedos apertando o couro enquanto
lembrava da cena. Era um reflexo, claro. Se algo acontecesse a ela, seria um
problema para mim, para Javier, para os cartéis. Eu me preocupei porque era
lógico me preocupar. Apenas.
Olhei para ela novamente. Parecia perdida em pensamentos, e isso não
combinava com a Lira Zamorano que eu conhecia.
— O que foi, noivinha? Perdeu a língua?
Resolvi perguntar, tentando trazer de volta aquele tom provocador que tanto a
irritava. Nada. Ela apenas continuou a olhar o vazio pela janela, ignorando
completamente meu comentário. Ok, isso estava ficando esquisito.
— Tudo bem, então. — Suspirei dramaticamente, girando o volante para
entrar em uma rua mais tranquila. — Onde devo te desovar? Mansão
Zamorano? Hospital? Ou deixo você no meio da rua para refletir sobre sua
vida?
— Você que deve ser desovada — ela respondeu finalmente, mas o tom dela
estava fraco, sem aquela acidez usual. Isso só me deixou mais intrigada.
— Ah, então ela fala! — exclamei, fingindo surpresa enquanto trocava de
marcha. — Mas sério, para onde você quer ir? Não sou motorista de Uber.
Lira respirou fundo, como se estivesse tentando decidir se ia me responder ou
não. Finalmente, ela virou a cabeça para mim, os olhos fixos no meu rosto.
— Não posso ir para a mansão, — disse, com um tom cansado, mas firme. —
Meu pai vai me ver assim e vai fazer um interrogatório interminável. E eu
não estou com paciência para isso agora.
Eu ergui uma sobrancelha, surpresa pela honestidade repentina. Era raro Lira
admitir que precisava de ajuda ou que não queria lidar com algo.
— Por acaso está querendo que eu dê abrigo para você? — provoquei
baixinho.
— É sua culpa eu estar ferrada — Lira suspirou. — Então sim.
— Estou me sentindo caridosa hoje. Vou te levar para o meu humilde lar…
Concordei, enquanto virava para a rua que levava ao meu apartamento. Ela já
tinha estado lá mesmo, não faria diferença, e além do mais eu podia prender
seu carro na minha garagem. Eu não tinha intenção nenhuma de devolver.
Lira apenas suspirou, voltando a encarar a estrada. Seja lá o que estava
passando pela cabeça dela, parecia deixá-la mais exausta do que os próprios
ferimentos.
O resto do trajeto foi silencioso, mas não o tipo de silêncio desconfortável.
Era quase… natural. E, por mais que eu quisesse provocar Lira mais um
pouco, algo em mim me disse para deixá-la em paz. Pelo menos por agora.
Quando finalmente chegamos ao meu apartamento, estacionei e saí do carro,
dando a volta para abrir a porta do passageiro. Lira olhou para mim com uma
expressão que era metade cansaço, metade desconfiança.
— Vai me carregar no colo? — ela perguntou, a acidez voltando à voz.
— Só se você pedir com jeitinho, — respondi, oferecendo minha mão para
ajudá-la a sair. Ela bufou, mas aceitou. — Boa garota.
Eu dei apoio para ela, enquanto subíamos as escadas, a dor na lateral do
corpo dela era evidente, mas Lira se recusava a reclamar. A proximidade era
desconcertante. O calor do corpo dela contra o meu, mesmo através das
roupas, me deixava mais consciente do que eu queria admitir. Era irritante
e… intrigante.
Quando chegamos ao apartamento, Lira entrou na frente, como se estivesse
avaliando tudo novamente, apesar de já ter estado ali antes. Eu sabia que ela
lembrava. Mas, dessa vez, ela parecia mais atenta, como se buscasse algo
diferente. Ou talvez estivesse apenas desconfortável por estar ali de novo.
— Não é como se fosse a primeira vez que você pisa aqui — comentei,
fechando a porta atrás de nós e trancando-a. — Sofá para você de novo.
Ela lançou-me um olhar irritado, mas não disse nada. Em vez disso,
caminhou até o sofá e desabou nele.
— Pelo menos você limpou depois da última vez — murmurou, ajeitando-se
com cuidado. Eu percebi que ela estava evitando apoiar o lado machucado.
— Sempre tão grata — respondi, revirando os olhos antes de tirar minha
jaqueta e jogá-la sobre uma cadeira. Fui até a cozinha, abrindo o freezer para
pegar gelo. — Quer um drink para suas feridas com muito gelo?
— Quero que você cale a boca e seja útil — ela retrucou, mas sua voz estava
mais cansada do que irritada. — Tem algum remédio para dor?
— Você acha que sou tipo sua enfermeira? Peguei um pano limpo, envolvi o
gelo e voltei para o sofá. — Agora toda vez que acabar machucada vai vir
parar aqui?
— Só estou machucada por sua causa. Devia se sentir culpada.
— Que pena — estendi o gelo para ela — Não me sinto!
— Você é uma pessoa horrível — murmurou, pegando o gelo, colocando
sobre a roupa.
— Melhor colocar o pano com gelo direto contra a pele.
— Você por acaso quer me ver sem roupa? — respondeu, olhando para mim
com uma mistura de cansaço e algo que parecia quase… divertido.
— Seu sonho, não o meu, Zamorano. — Rolei os olhos e me afastei.
Enquanto passava pelo sofá do lado, peguei um cobertor que estava jogado
ali e o joguei no colo dela. — Tire esse vestido e se cubra com isso enquanto
eu vou pegar algo mais decente para você. A menos que queira continuar
sendo um desastre ambulante.
— Isso está limpo? — Lira fez careta, pegando o cobertor com uma mão.
— Cala boca ou vou te jogar na rua — respondi, já entrando no quarto para
procurar alguma roupa limpa.
Quando voltei, a Lira já estava enrolada no lençol, deitada. Ela parecia muito
confortável no meu sofá, se ajustando às minhas almofadas. Eu joguei nela
agora calças moletom e uma camisa larga, confortável.
— Ah, quanto gentileza — Ela ironizou.
— Se veste, eu vou para a cozinha. Quer macarrão instantâneo?
— Você não tem comida de verdade?
— A porta da rua é serventia da casa…
Eu cantarolei, enquanto coloquei a água para aquecer, e mexia nos armários,
procurando meus pacotes de comida instantânea, tentando não olhar para trás.
Mas acabei espiando, já que eu conseguia ver parte da sala.
Foi então que vi a Lira de pé, apenas de sutiã e calcinha, vestindo a calça. E
nossa… Por um momento, o tempo pareceu desacelerar.
Mesmo com os hematomas escurecendo a lateral do corpo, ela era… perfeita.
As pernas longas e bem torneadas, cada movimento fluido e controlado. Os
músculos discretos em seus braços e abdômen que denunciavam que ela não
era só elegância, mas força. Os seios, livres do tecido do vestido, pareciam
maiores, mais definidos, como se zombasse da minha tentativa de ignorar o
óbvio. Eu devia olhar para outro lugar. Mas não consegui.
Meu olhar seguia cada detalhe dela, desde o jeito como os cabelos caiam
levemente desarrumados. Ela era gostosa demais. Era quase injusto.
— Eu estou vendo você espiando… — A voz dela me tirou do transe, e meu
corpo congelou no ato. Lira tinha virado o rosto para mim, os olhos cinza me
flagrando como um gato que pegou sua presa.
— É estava — retruquei, afinal não tinha como mentir, mas virei o rosto para
os armários como se eles fossem a coisa mais fascinante do mundo.
— Agora, diga, está satisfeita com o que viu? — ela respondeu, com aquele
tom carregado de provocação e cansaço.
— Acho que pode melhorar. — Menti e o riso baixo dela ecoou pela sala, e
eu jurei para mim mesma que não ia olhar de novo. Pelo menos, não
enquanto ela estivesse me observando.
— Hum, claro, claro.
Ouvi ela se movendo, deitando-se. Espiei com cuidado, vendo que ela
manteve-se sem blusa, colocando o gelo, deitando no sofá como se fosse a
dona. Ela pelo menos jogou o cobertor por cima. E para a minha surpresa, ela
ligou a TV. Me virei totalmente observando.
— Está confortável, alteza? — provoquei.
— O sofá podia ser melhor… — Ela respondeu sem me olhar.
— Folgada — murmurei, abrindo uma gaveta, pegando um remédio para dor.
E voltei à sala com uma garrafa d’água e um pacote de biscoitos e joguei
ambos no colo dela.
— Hum, obrigada — ela disse tão baixo, que quase não escutei. Deixei
passar, voltando à cozinha.
Quando finalmente pude voltar à sala, trazia dois copos de macarrão
instantâneo. Eu dei um chute nos pés da Lira, para ela recolher eles, assim
pude me sentar na ponta do sofá. Entreguei um copo para ela em seguida.
— Isso é o que você chama de serviço completo? — Lira perguntou,
levantando uma sobrancelha enquanto revirava o macarrão.
— É o que tem para hoje, Zamorano — retruquei, jogando-me no sofá para
poder assistir TV. — Se você está esperando um jantar cinco estrelas, pode
pedir pelo aplicativo.
Ela bufou, mas levou a primeira garfada à boca, mastigando com mais força
do que o necessário, claramente com fome. Eu me inclinei para trás, cruzando
as pernas, rindo.
— Parece que você gostou!
— Aprecio tanto quanto aprecio levar um chute na costela — respondeu
secamente, jogando o cobertor para ajeitar melhor o gelo contra o
machucado.
— Bem, pelo menos você está viva para reclamar — retruquei, dando de
ombros. — E, convenhamos, não está tão ruim assim. Olha só, até te dei um
sofá confortável e uma TV. O que mais você quer?
Ela finalmente olhou para mim, os olhos cinzas fixos no meu rosto.
— Quero paz e silêncio. Será que você consegue me dar isso, ou é pedir
demais?
— Você está na minha casa, então eu sigo as minhas regras.
Ela revirou os olhos e voltou a olhar para a TV, na qual eu peguei o controle,
mudando de canal entediada. Eu senti ela me observando, enquanto continuei
mudando de canal, parando em tudo que parecia aleatório o suficiente para
irritar Lira. Foi quando me deparei com um desenho animado, que eu
adorava, mas falado em mandarim.
Eu sorri para mim mesma e larguei o controle na mesa de centro, ajeitando-
me no sofá como se estivesse prestes a assistir algo muito importante.
— Sério? — ouvi Lira perguntar, a voz carregada de incredulidade. — Isso
é… um desenho? Em mandarim?
— Sim, — respondi casualmente. — E é ótimo. Você deveria tentar expandir
seus horizontes.
Ela me encarou, visivelmente confusa. Claro, porque na mente dela, eu só
podia ser uma delinquente que assistia filmes de ação sangrentos ou
documentários sobre crimes, eu apostava.
— Não acredito que você assiste isso, — murmurou, desviando o olhar da
TV para mim como se tentasse decifrar algum enigma.
— Qual o problema? — perguntei, fingindo indiferença enquanto me
recostava e colocava os pés na mesa. — Não posso gostar de algo divertido?
Ela abriu a boca para responder, mas fechou novamente. Por alguns
segundos, parecia que estava reorganizando os pensamentos.
— Divertido sim, mas isso… — repetiu finalmente, como se testasse a
palavra. — Isso parece… infantil. Não combina com você. E o pior é em
mandarim.
Eu peguei uma almofada e jogando contra ela, propositalmente mirando o
lado não machucado.
— Não é infantil, é legal — bufei, me sentindo ofendida. — Se assistir vai
entender.
— Você por acaso entende? — Ela zombou.
— Sim eu falo Mandarim — respondi com orgulho. — Na verdade, eu falo
seis línguas. Mandarim, português, espanhol, inglês, italiano e francês. E
estou pensando em aprender alemão.
— Não pode ser — ela disse soando descrente.
— Por quê? Surpresa que eu sou mais do que um rostinho bonito e uma
pistola na mão?
Ela continuou me olhando como se tentasse decidir se estava mais
impressionada ou desconcertada.
— De fato, estou surpresa. — Lira finalmente falou, sem tirar os olhos de
mim. — Por que quis aprender mandarim?
— Estava entediada — respondi, dando de ombros, como se fosse a coisa
mais óbvia do mundo.
Lira arqueou uma sobrancelha, claramente cética. Eu sabia que ela não
compraria essa resposta tão facilmente.
— Entediada? — ela repetiu, cruzando os braços, mesmo com o cobertor
ainda enrolado em volta dela. — Parece uma língua muito complicada para
alguém que só quer matar o tempo.
— Bom, o tédio pode ser uma motivação poderosa,— retruquei com um
sorriso de lado.
Ela pareceu considerar isso por um momento, os olhos avaliando meu rosto
como se procurasse por algo mais.
— E as outras línguas? — perguntou, claramente curiosa, embora tentasse
não parecer tão interessada. — Foi por tédio também?
— Algumas, sim. Outras, porque achei que seria divertido.
— Seis línguas, — murmurou, quase para si mesma. — E ainda parece tão
desmiolada às vezes.
— Ah, não se deixe enganar pelo meu charme — brinquei, jogando-me no
sofá com um sorriso satisfeito. — Eu vou colocar legenda para você. Sabe ler
não é?
— Sim… Minha escola ensinou. — ela bufou, me fazendo rir. — E falo
quatro línguas, mas as que são úteis.
Eu dei risada, colocando a legenda. Mas, para minha surpresa, não tentou
protestar contra mim. Apenas ficou ali, observando a história na tela, talvez
tentando entender por que aquilo me atraía tanto. Eu a deixei pensar o que
quisesse. E, pela primeira vez, Lira estava quieta, compartilhando esse
momento comigo, mesmo que sem perceber.
Por um instante, fiquei confusa, com o sentimento de tranquilidade que eu
senti naquele instante. Era quase como se fosse algo habitual, estar ali,
comendo macarrão instantâneo e assistindo TV com ela. Que coisa estranha.
☙❧
Lira Zamorano
Eu estava no meu escritório, tentando me concentrar nas pilhas de relatórios e
atualizações sobre as rotas, mas minha mente insistia em desviar para outro
assunto. Um assunto irritantemente persistente, com um nome e sobrenome:
Ayra Arellano.
Ela havia sumido com meu carro. Minha Lamborghini, minha obra-prima,
meu orgulho. Fazia uma semana desde que ela simplesmente “emprestou”,
como ela mesma colocou, por mensagem, e, claro, nunca devolveu. Isso na
manhã que acordei no seu apartamento e ela tinha evaporado.
Eu suspirei, inclinando-me sobre a mesa enquanto olhava a tela do laptop. Já
havia feito todas as tentativas de rastrear o veículo, mas aparentemente a
desgraçada tinha arrancado o rastreador.
— Como alguém tem a audácia de fazer isso? — murmurei para mim mesma,
olhando para os dados vazios no monitor. Nenhum sinal do carro. — Ela não
pode ter sumido com ele do mapa.
Levantei-me da cadeira e comecei a andar de um lado para o outro no
escritório, tentando acalmar minha raiva. Era típico da Ayra, e claro, ela sabia
que isso me atingiria. Peguei o celular e disquei o número dela pela décima
vez naquele dia. E, como nas outras nove, foi direto para a caixa postal.
— Ayra, seu inferno ambulante — comecei a mensagem de voz, tentando
manter a calma, mas falhando miseravelmente. — Eu não vou repetir mais
uma vez. Quero o meu carro de volta. Se você arranhou um único centímetro
dele, eu juro que vou atirar em você. E, pelo amor de Deus, atenda o telefone!
Desliguei, jogando o celular sobre a mesa com mais força do que o
necessário. Respirei fundo, tentando recuperar o controle.
— Lira, está tudo bem? — Valentina, assistente do meu pai, entrou no
escritório, olhando para mim com preocupação.
— Está tudo ótimo — respondi, sem olhar para ela. — Só lidando com…
problemas de logística.
Ela arqueou uma sobrancelha, mas não fez mais perguntas. Valentina era
esperta o suficiente para saber que, quando eu estava assim, o melhor era não
insistir.
Voltei para minha mesa e me sentei, esfregando as têmporas. Era ridículo o
quanto Ayra conseguia me tirar do sério com tão pouco esforço. Ela era um
tornado que passava pela minha vida, destruindo tudo e saindo como se nada
tivesse acontecido. Mas dessa vez, ela não ia sair impune. Não com meu
carro.
— Valentina — chamei, e ela entrou novamente, caderneta na mão. — Quero
que procure qualquer informação sobre Ayra Arellano, ela tem estado quieta
essa semana. Qualquer aparição recente, movimentações…
— Houve algum problema? — Val indagou com cuidado.
— Ela está se escondendo de mim!
— Ah, sim, entendo. Vou encontrá-la para você — respondeu com um
pequeno sorriso, saindo para cumprir a tarefa.
Eu me recostei na cadeira, tentando pensar em como confrontar Ayra quando
finalmente a encontrasse. Porque, uma coisa era certa: essa história não ia
acabar bem para ela.
☙❧
A música da boate era alta, o lugar estava sufocante, o ambiente vibrava ao
meu redor e fazia parecer impossível até pensar. Mas eu não precisava
pensar. Eu estava movida por puro ódio.
Caminhei pelo salão abarrotado, sentindo os olhares curiosos, me seguindo
enquanto atravessava o ambiente. Provavelmente por causa da minha camisa
social branca, com a calça de alfaiataria azul escura listrada. Claramente, eu
estava destoante, mas não me importava. Eu deixei meu escritório com
pressa, porque Valentina tinha me dado a localização que eu queria.
Por isso eu estava naquele lugar quase insalubre, procurando Ayra Arellano e
arrancar uma explicação sobre o paradeiro do meu carro, e talvez alguns fios
de cabelo no processo. Eu avisei para ela se comportar e não se enfiar em
locais como aquele. Mas aquele inferno de mulher era o ser mais
desobediente do universo.
Meus olhos varriam cada centímetro que podiam capturar. Foi quando a vi.
Como não ver? No meio de toda a confusão de corpos dançantes e luzes
piscando, lá estava ela, vestida como uma provocação ambulante. Sua blusa,
sem mangas, com um corte diferenciado na frente, deixando parte do
abdômen visível. Presa ridiculamente entre os seios, a saia que mal cobria as
pernas… ela sabia exatamente o que estava fazendo. E, claro, estava cercada
de atenção, incluindo a de uma mulher que tinha a ousadia de segurar sua
cintura como se tivesse algum direito.
Minha visão escureceu por um segundo. Ayra sorria, aquele sorriso malicioso
que eu conhecia bem, enquanto inclinava a cabeça para ouvir o que a mulher
dizia ao pé de seu ouvido. Eu não pensei. Apenas avancei.
— Tire as mãos dela — falei, minha voz cortando a música alta enquanto me
aproximava das duas. A mulher me olhou, surpresa, mas antes que pudesse
responder, eu já tinha empurrado sua mão da cintura de Ayra.
— Ei! — a mulher protestou, mas minha atenção já estava completamente em
Ayra, que me olhava com uma mistura de surpresa e diversão.
— Nós precisamos conversar — declarei, agarrando o braço Ayra, antes que
pudesse reagir.
— Lira, não sabia que você era ciumenta — Ayra respondeu, o sorriso ainda
intacto enquanto me deixava arrastá-la. — Ou apenas estava com saudades de
mim?
— Cale a boca — rosnei, puxando-a pelo meio da multidão até encontrar
uma cabine privada. Eu joguei ela lá dentro, fechando a porta com força,
girando para encará-la.
— Você parece irritada, noivinha! — Ela se recostou contra a parede, os
braços cruzados, ainda sorrindo como se tudo fosse uma grande piada.
— O que eu disse sobre suas saídas? — rosnei, apontando um dedo para ela.
— Mandei parar.
— Uma pena, acho que já esqueci…
Ela deu de ombros, sorrindo maliciosamente. A luz suave do ambiente
privado fazia os detalhes de sua roupa parecerem ainda mais provocativos, e
aquilo só aumentava minha raiva.
— Onde está o meu carro, Ayra? — exigi, o tom da minha voz saindo mais
baixo, mas muito mais ameaçador.
— Ah, então é isso — ela respondeu, inclinando a cabeça de lado, os olhos
brilhando com aquela diversão irritante. — Pensei que você estava aqui
porque não conseguia ficar longe de mim.
— Não estou brincando, Ayra! — dei um passo à frente, a distância entre nós
diminuindo. Eu podia sentir o cheiro dela, uma mistura de perfume floral e
álcool, e isso só tornava tudo mais irritante.
— Seguro, comigo… — Ela riu, baixinho, e empurrou-se da parede,
inclinando-se para mim. Ayra colocou as mãos no meu ombro, brincando
com a gola da minha camisa. — Não vai encontrá-lo.
— Claro, você arrancou o rastreador — acusei, meu olhar fixo no dela. Eu
tentei ignorar a proximidade, o jeito como ela parecia tão convidativa.
— Bom, acho que ganhei ele de presente — ela respondeu, ainda sorrindo,
enquanto piscou inocente aqueles seus olhos castanhos. — Quem mandou
você destruir meu carro.
— Aquele carro custa milhões, não vou deixar que fiquei com ele —
murmurei, respirando fundo para conter a vontade de socá-la ali mesmo. —
Me diga onde está o carro, ou juro por Deus, Ayra…
— Jurar não vai te levar a lugar nenhum, querida — ela interrompeu, dando
mais um passo à frente até que quase não havia espaço entre nós. — Essa eu
venci!
O sorriso dela era perigoso, sedutor. Foi quando Ayra fechou o espaço entre
nossos rostos, chupando meu lábio inferior, mordiscando, enquanto seus
olhos estavam fixos nos meus. E, por um breve segundo, eu esqueci o motivo
de estar tão furiosa. Sentia o gosto de tequila e algo mais raro nela… Ayra se
afastou, mas sorria como uma vitoriosa realmente. Mas isso não ia ficar
assim.
— É esse o jogo que quer jogar? — minha voz saiu baixa e rouca. Ayra
sorriu como um demônio. — Ótimo.
Eu agarrei sua cintura com uma mão e a outra subi pelas suas costas, até a
nuca, segurando ela no lugar, enquanto a beijei. Dessa vez não foi só uma
provocação, eu queria subjugar, marcar e dominar aquela canalha. Eu a beijei
com violência, forçando a abrir seus lábios, dando passagem a minha língua.
Mas a Ayra maldita não recuou, ela se entregou, se jogando nos meus braços,
abraçando meus ombros.
Sua boca acolheu a minha, lábios, línguas e dentes se chocando. O barulho da
música foi totalmente abafado pelos nossos sons. Eu só sentia naquele
momento, raiva e o desejo esmagador de marcar aquela desgraçada. O calor
do corpo dela contra o meu, o gosto dela, a maneira como ela não recuava,
mas revidava com a mesma intensidade, estava me intoxicando. Era uma luta,
uma batalha de vontades, e eu não estava disposta a perder.
As minhas unhas cravaram-se na pele da nuca dela, enquanto minhas mãos
exploravam sua cintura e costas, apertando com força. Eu queria que ela
sentisse, que soubesse que, naquele momento, ela era minha para eu fazer o
que quiser, que não tinha escapatória. Mas Ayra, como sempre, nunca
aceitava submissão. Ela puxou meu cabelo, inclinando minha cabeça de um
jeito que a dava mais controle, aprofundando o beijo como se quisesse tomar
o poder que eu tentava reivindicar.
Eu não deixei, empurrando ela na parede, enquanto agarrei seu cabelo. Ayra
gemeu, e eu deslizei mordidas até o seu pescoço, chupando sem nenhum
cuidado. Minhas mãos desceram, agarrando sua cintura com mais força,
pressionando-a contra a parede. Ayra não resistiu, mas, ao invés de recuar,
empurrou-se para mim, o corpo dela alinhado ao meu. As mãos dela
agarraram a minha camisa, me puxando para si.
— Sua maldita — grunhi, voltando aos seus lábios, devorando-a com uma
fome que não conseguia conter. — Maldita…
Ayra sorriu contra minha boca, aquele sorriso arrogante que me fazia querer
matá-la ao mesmo tempo. Suas mãos se enroscaram no meu cabelo, puxando
com força o suficiente para me fazer arfar, mas eu não recuei. Pelo contrário.
Minha mão deslizou por suas costas e desceu, indo para baixo da sua saia.
— Nunca mais vou deixar que use algo assim… — murmurei, minha voz
rouca de desejo e raiva enquanto apertava sua bunda, erguendo sua saia
completamente.
— Vou pagar para ver, babaca — ela sussurrou entre gemidos, os lábios mal
se afastando dos meus. Havia um tom provocador, mas também algo mais
profundo. — Você gostou demais, por isso não quer que eu use.
— Cala a boca — retruquei, virando ela de repente, de uma única vez,
empurrando na parede. — Eu estou no controle aqui.
Ayra tentou retrucar, mas o som da sua voz foi cortado, quando dei um tapa
forte na sua bunda. A pele clara dele imediatamente respondeu aquele toque
mais bruto.
— Estava louca para me ter assim, não é? — Ayra olhou provocante por cima
do ombro. Ela estava absolutamente linda com a saia enrolando na sua
cintura e aquela calcinha branca minúscula, com a pele marcada.
— Eu mandei calar a boca! — rosnei, puxando a sua mandíbula, enquanto a
minha outra mão enrolou na lateral na renda frágil da sua calcinha. — Vou
aprender a ficar quieta quando eu mandar.
— Ah, eu quero…
Sua voz foi cortada, quando a beijei, ao mesmo tempo que minha outra mão
agarrou sua cintura. Eu a mantive no lugar, antes de rasgar a lateral da sua
calcinha, e puxando mais firme para arrebentar do outro lado. Ayra gemeu
alto, claramente surpresa, mas não apresentou protesto.
Não conseguia pensar. Eu só estava agindo e fiz isso de novo quando
empurrei ela forte contra a parede. E então peguei as mãos dela puxando para
trás das costas, amarrando com a sua calcinha, bem apertando bem seus
pulsos.
— Não sabia que você gostava disso… — Ayra sussurrou. Ela me olhava por
cima do ombro, o rosto esmagado na parede, os lábios inchados e vermelhos.
E mesmo assim meu subconsciente gritava: “linda, linda e tão gostosa”.
— Você não sabe de muita coisa — falei entre dentes, quando soltei as mãos
dela presas. — Talvez aprenda alguma coisa hoje!
Eu espalhei as minhas duas mãos nas suas nádegas. Olhei para ela, daquele
jeito, a minha mercê, me fez sentir pela primeira vez na noite tão poderosa.
Fechei o espaço entre nós duas, deslizando as mãos para frente das suas
coxas, Ayra gemeu. Eu enfiei o rosto no pescoço dela, sentindo aquele cheiro
floral que parecia divino, mesmo que misturado ao álcool. Aquilo nublou a
minha mente, mas eu sabia que havia cruzado uma linha da qual não tinha
como voltar atrás.
Eu mordi o ombro dela, deslizando uma mão entre as suas coxas, cobrindo
seu se sexo liso. E porra, ela estava absolutamente encharcada, tão pronta que
fez eu esquecer qualquer coisa e só pensar em tocá-la. Ayra jogou a cabeça
para trás, se apoiando em mim, enquanto meus dedos brincaram entre suas
dobras úmidas.
— Ah, pare de apenas provocar, Zamorano. — ela disse com a voz falhando.
— O que eu disse? — afastei a mão do centro das suas pernas.
— Zamorano!
— Quieta! — dei um tapa sobre seu sexo. Ayra gritou, apertando as pernas
juntas, mas eu as chutei, mantendo ela aberta de novo. — Eu estou no
comando, sua cadela infernal!
Sussurrei no ouvido dela, antes de deslizar meus dois dedos, rapidamente
penetrando-a. Ayra gemeu e eu vi quando fechou os olhos, sorrindo, o corpo
cedendo aos meus toques enquanto, entrei e saí do seu corpo.
Eu chupei o lóbulo da sua orelha, deixando a minha outra mão livre, subindo
pela sua cintura e entrando por baixo do seu top. Seu seio encaixou de uma
maneira doentiamente perfeita na minha mão. Ayra se contorcia, gemendo,
com seu corpo derretendo contra o meu. Quando ela virou o rosto,
procurando por mim, de alguma forma eu sabia que ela precisava de mais.
A beijei, aumentando o ritmo com que penetrava, dando um jeito de esfregar
seu clítoris a cada novo movimento. Isso ao mesmo tempo que levantei sua
blusa, deixando seus seios livres e maltratei seus mamilos. Ayra pareceu
adorar, porque ela gemeu mais ainda, enquanto sua respiração disparou e eu
sentia cada vez mais a sua umidade.
Ela estava me deixando maluca. A intensidade entre nós era quase sufocante.
Aquilo começou com uma disputa. Ayra era um caos puro, um caos que eu
quis domar, mas aparentemente isso estava se voltando contra mim. Porque
quanto mais eu tocava nela, mais eu queria.
Eu a beijei novamente, profundo e desesperado, saboreando cada pedaço
dela. Era um jogo, mas um que eu estava esquecendo de jogar para vencer.
Mordi seu lábio com força suficiente para ouvir o som entre a dor e o prazer
que ela soltou.
— Lira — ela começou, tentando recuperar o fôlego, mas sua voz falhou
quando aumentei o ritmo novamente, esfregando seu clítoris com precisão.
Seus gemidos ficaram mais altos, e eu sabia que ela estava perto do limite. —
Ah, Lira…
As palavras dela me atingiram como uma corrente elétrica, me fazendo
acelerar ainda mais, determinada a levá-la ao limite, a quebrá-la
completamente. Eu queria que ela lembrasse desse momento, que
simplesmente sucumbiu a mim… Mas então eu tive um estalo.
Eu provoquei, mais e mais, sentindo seu corpo tremer, seus gemidos abafados
contra minha boca. Ayra Arellano, a herdeira do caos, estava rendida nos
meus braços, tão perto de gozar. Mas isso não ia acontecer.
Antes que Ayra chegasse ao limite, forcei a mim mesma a parar. Eu tirei a
minha mão bruscamente de dentro da sua saia, assim como dos seus seios.
Quando afastei meus lábios dos dela, colocando espaço entre nós, notei a
Ayra abrindo os olhos claramente confusos. Mas foi um choque, ver aquela
cor castanha tão profunda, converta de desejo puro.
— Você… — Ayra tentou falar, sua voz falhou. — Você não pode estar
parando, Zamorano.
— Ah, mas eu estou. Sem orgasmos para você… — Eu puxei a saia dela para
o lugar e seu top também. Então comecei a desamarrar seus pulsos,
aproximando minha boca da orelha dela. — Esse é seu castigo!
Ayra grunhiu, puxando os pulsos do meu contato. Eu me afastei, prevendo
agressão física e enfiei a calcinha dela na bolsa da minha calça. Consciente
que eu estava fazendo algo muito pervertido, mas era meu prêmio.
Ela se virou para mim, a respiração irregular, que fazia seus seios subirem e
descerem. Por um minuto eu desejei arrancar aquele top e ver aqueles montes
que só pude tocar. Ayra me encarava com uma mistura de tesão, fúria e
incredulidade.
— Você é… — ela começou, mas a voz dela falhou, mas continuou. — Uma
vadia desgraçada, Lira.
— Não me diga que está surpresa, Arellano — respondi, com um sorriso de
pura provocação. — Achou que ia deixar você ganhar hoje.
Seus olhos castanhos brilhavam com um desejo intenso, misturado à raiva
que ela não conseguia disfarçar. Era exatamente o que eu queria. Eu sabia
que deixar Ayra assim, frustrada e com certeza dolorida, era a minha vitória
pessoal.
— Isso não vai ficar assim, Zamorano, — ela rosnou, tentando ajustar a saia e
o top com movimentos apressados e irritados. — Devolva a minha calcinha.
— Acho que não — Enfiei a mão no bolso e tirei minha “conquista”. O olhar
de Ayra mudou instantaneamente, passando de fúria para puro choque. — É
meu troféu!
— Quer uma recordação, pervertida? — ela sibilou, as bochechas corando
levemente.
— Talvez, lembrar de como você implorou — confirmei, girando a calcinha
nos dedos e colocando-a no bolso da minha calça novamente. — E vou
guardar como um lembrete de que, dessa vez, eu ganhei.
Ayra avançou, mas eu recuei, erguendo as mãos, tentando me bater, mas ela
parecia mais lenta. Eu a subjuguei, agarrando seus pulsos, prendendo-a. O
brilho de ódio nos olhos dela me fez rir, mas seu corpo pressionado em mim
novamente, me fez perder a linha de pensamento um segundo.
— Diga onde está meu carro e então eu faço você gozar, querida.
Estávamos num jogo perigoso, e eu sabia que provocá-la demais podia acabar
mal. Ayra semicerrou os olhos castanhos que a estavam a ponto de pegar
fogo.
— Vai para o maldito inferno, Zamorano — ela murmurou.
— Eu já estou indo com você! — rebati, empurrando ela para longe, Ayra se
apoiou na parede. — Quando se tocar mais tarde, chame meu nome de
novo…
Ayra rosnou, e pegou um copo sobre a mesa da cabine. Meu tempo de reação
foi excelente, então consegui me abaixar a tempo, quando o vidro explodiu
na parede atrás de mim. Eu soltei uma gargalhada, enquanto girei, saindo o
mais rápido possível dali. Pela primeira vez eu tinha conseguido domar
aquela maluca, bom, pelo menos quase.
No corredor, sozinha, me apoiei contra a parede fria, tentando recuperar o
fôlego. Agora que eu estava longe dela, podia admitir que fiquei abalada.
Minha mão foi instintivamente ao meu rosto, tocando a pele que ainda
parecia quente demais.
Fechei os olhos, respirando fundo, mas a lembrança do olhar dela ainda
queimava na minha mente. O gosto dela na minha boca e o seu cheiro, que
agora parecia agarrado a mim. Passei a mão pelos cabelos, tentando afastar o
turbilhão de pensamentos.
Inferno, ela era tão malditamente gostosa. Enfiei a mão no bolso, pegando
aquele tecido de renda. Ah merda. Eu estava com tanto tesão e não tinha
como ignorar a evidência na minha própria calcinha. Respirei fundo, abrindo
os olhos, encarando o corredor vazio. Ela não pode saber que me afetou.
Jamais. Endireitei minha postura, ajeitei minha roupa, voltando a caminhar,
indo embora o mais rápido possível dali.
CAPÍTULO CINCO
Ayra Arellano
O espelho do banheiro estava embaçado pelo vapor do chuveiro que eu tinha
acabado de desligar. As gotas escorriam lentamente pela superfície, e eu as
observei por um instante, tentando evitar olhar para o meu reflexo. Mas era
impossível ignorar.
Lá estava eu, Ayra Arellano, herdeira do Dragão Vermelho, completamente
confusa, com a cabeça cheia e o corpo marcado por Lira Zamorano.
Me aproximei do espelho, usando a palma da mão para limpar o vidro. O que
vi me deixou ainda mais irritada. Havia mais de uma marca arroxeada no meu
pescoço, marcas vermelhas visíveis nos meus ombros, assim como um
mordida. A lembrança me fez fechar os olhos, tentando expulsar o calor que
subia pela minha pele só de pensar nela.
Por que diabos eu a deixei fazer isso? Mais importante, por que eu queria que
ela tivesse continuado?
Abri os olhos novamente e passei os dedos pelos arranhões. Era humilhante.
Não por causa das marcas em si, mas porque, mesmo agora, com a cabeça
fria e longe dela, o desejo ainda estava ali, latente, pulsando. Era como se eu
pudesse sentir aquelas mãos firmes, o cheiro limpo e amadeirado que ela
tinha. Assim como o gosto de menta da sua boca ao me devastar com seus
beijos. Era ridículo eu estar tão mexido e nem ter tido um orgasmo.
— Vadia desgraçada — murmurei para o reflexo. — Vadia!
Passei a mão pelo cabelo molhado, puxando-o para trás, enquanto lembrei
dela puxando. Ela não era delicada, muito menos fria como imaginei. Na
verdade, Lira era puro fogo, dominância e violência. Lira Zamorano vinha
com intensidade desconcertante.
E o pior era que eu queria mais.
Soltei um suspiro frustrado, batendo a palma da mão na pia. A raiva crescia
no meu peito, me queimando por dentro. Não era só raiva dela, mas de mim
mesma. Eu encarei meu reflexo mais uma vez.
— Ela vai me pagar — prometi ao meu reflexo. — Pode aguardar,
Zamorano.
Me afastei do espelho, puxando a toalha para cobrir as marcas, como se
esconder os sinais dela fosse suficiente para apagar o que havia acontecido
naquela cabine. Mas, mesmo agora, cada parte de mim ainda parecia
queimando, como se Lira tivesse deixado um pedaço dela gravado em mim.
☙❧
Lira Zamorano
Eu estava mergulhada no trabalho, enquanto revisava os últimos relatórios
sobre as rotas do cartel. Precisão era tudo, especialmente agora com a fusão
com o Dragão Vermelho, e que estávamos sob os olhos atentos da máfia e de
aliados externos. Um deslize poderia custar caro, e eu não estava disposta a
dar a ninguém essa satisfação.
— Lira — Valentina chamou, entrando no escritório com um envelope nas
mãos. Seu tom indicava que o que ela tinha em mãos não era nada
relacionado às rotas.
— O que foi agora? — perguntei sem tirar os olhos dos relatórios, meu tom
impaciente.
— Isto chegou endereçado a você — respondeu ela, colocando o envelope
sobre a mesa. — É uma conta de cartão de crédito.
— Uma conta? — franzi o cenho, parando o que fazia para pegar o envelope.
Eu sabia que não tinha usado o cartão para nada além de despesas normais do
cartel. Rasguei o papel com pressa em abrir o documento. O que vi me fez
congelar por um segundo. O valor era… absurdo.
— O que diabos é isso? — murmurei, percorrendo a lista de itens. Todas as
compras haviam sido feitas em uma loja da Victoria’s Secret. Meus olhos
passaram rapidamente pelos valores exorbitantes de peças íntimas, lingeries e
acessórios. E, no final da fatura, um pequeno bilhete escrito à mão:
“Já que gosta de destruir peças íntimas, pague por elas... — Ayra.”
Meu rosto esquentou imediatamente. Aquela desgraçada. Eu respirei fundo,
sabendo que Valentina me olhava com curiosidade. Eu coloquei o papel
sobre a mesa, tentando processar a audácia da Ayra.
— Algo errado? — ela perguntou, franzindo o cenho.
— Nada que eu não consiga resolver, Val — respondi, afastando o papel e
tentando parecer impassível. — Pode me deixar sozinha.
Ela assentiu, claramente desconfiada, mas saiu do escritório sem dizer mais
nada. Assim que a porta se fechou, me permiti relaxar um pouco, soltando
uma risada baixa e incrédula. Claro que era coisa da Ayra. Eu não sabia o que
era mais chocante: o fato de ela ter feito compras tão caras em meu nome ou
o fato de ela ter tido a audácia de mandar que eu pagasse.
Deixei-me cair na cadeira, rindo sozinha por alguns segundos, antes de abrir
a gaveta do lado direito da minha mesa. Lá, guardada como um troféu, estava
a calcinha que eu havia tirado da Ayra naquela noite na boate. Peguei-a entre
os dedos, segurando o tecido macio enquanto meu sorriso sumiu um pouco.
Ela era um problema. Um problema com cheiro de caos e perigo.
Sem pensar muito, levei a peça ao nariz, inspirando o perfume que ainda
estava impregnado nela. Era doce, com um toque suave de algo mais íntimo,
algo que era puramente Ayra. Fechei os olhos por um instante, deixando a
memória daquela noite invadir minha mente.
Os gemidos, o gosto dela, a sensação da sua pele contra a minha… Merda. Eu
não conseguia parar de pensar nisso e eu estava ficando maluca. Maluca de
raiva, e ao mesmo tempo de desejo.
Abri os olhos novamente e suspirei, colocando a calcinha de volta na gaveta,
fechando-a com firmeza. Eu tinha trabalho a fazer, coisas mais importantes
para me ocupar, do que ficar pensando na Ayra.
— Se controle Lira, você não é uma adolescente. — murmurei para mim
mesma, antes de voltar ao relatório com um esforço deliberado de
concentração.
☙❧
Ayra Arellano
O restaurante estava impecável, com sua decoração sofisticada e um
ambiente que exalava exclusividade. Eu caminhei pelo salão ao lado de
Javier, ambos recebidos com acenos respeitosos e sorrisos cautelosos dos
membros mais importantes do cartel. Meu tio estava impecavelmente vestido,
como sempre, exalando autoridade com cada passo.
Eu, por outro lado, vestia algo casual, mas sem parecer desrespeitosa. Minha
calça de cintura alta e o corset branco destacavam minha figura, e eu sabia
que causaria impacto, afinal era o que eu fazia de melhor.
Sentamos à mesa reservada para nós, e enquanto os garçons começavam a
servir bebidas, eu analisava o ambiente. Pessoas estratégicas estavam
presentes, chefes de rotas, investidores, e até alguns contatos do Norte. Era
um jogo político e, como a gente tinha uma fusão em andamento com o
Cartel Estrela Negra, tínhamos coisas a acertar.
Poucos minutos depois, a porta do salão principal se abriu novamente. Olhei
casualmente, mas a visão me fez endireitar a postura imediatamente. Lira
Zamorano havia chegado.
Ela entrou acompanhada de Arturo, ambos com suas auras de poder e
controle. Mas foi Lira quem dominou completamente minha atenção. Ela
estava diferente do habitual. Apesar de usar um blazer cinza impecável, com
uma camisa branca bem ajustada, e calças de alfaiataria, combinando com
saltos. Essa noite ela usava um óculos de armação fina que dava a ela um ar
acadêmico e misterioso.
Tentei evitar que meus batimentos aumentassem. Mas foi inevitável, aquela
versão dela era tão letal quanto as outras. Ela estava linda de um jeito que
fazia algo dentro de mim se revirar.
Lira e Arturo se aproximaram, cumprimentando os presentes com aquela
formalidade calculada que só os Zamoranos dominavam. Mas quando os
olhos dela encontraram os meus, houve uma pequena pausa. Ela me analisou
de cima para baixo, até onde a mesa permitia. Eu não podia dizer se era
surpresa ou irritação no olhar dela, mas algo brilhou por um momento.
Ela desviou a atenção, cumprimentando os outros presentes, só depois se
moveu puxando a cadeira livre ao lado da minha.
— Ayra — ela disse, a voz controlada.
— Lira — respondi, com o tom casual de sempre, sem olhar para ela.
A tensão entre nós era palpável, mesmo com a mesa cheia. Arturo começou a
discutir detalhes logísticos com Javier, mas minha atenção continuava em
Lira. Mesmo que não olhasse para ela diretamente, eu sentia cada gesto dela,
cada vez que empurrava os óculos levemente para cima, parecia um
espetáculo meticulosamente ensaiado. E, por algum motivo, aquilo me
irritava mais do que deveria.
— Desde de quando você usa óculos? — indaguei em um sussurro, enquanto
fingia beber vinho.
— Eu só uso quando passo muito tempo trabalhando — ela respondeu baixo.
— Vai fazer piadinha?
Não aguentei não a encarar. E virei bem a tempo de ver a Lira ajustando os
óculos, e odiei como achei fofo. Ela parecia gostosa e fofa, o que devia ser
impossível.
Observei seu rosto inteiro, sendo atingida pelas lembranças da boate,
principalmente ao olhar aqueles lábios. Tentei rapidamente mudar a minha
linha de pensamento. Eu me concentrei em analisá-la, notando que ela
realmente parecia linda como sempre, mas cansada.
— Não sabia que trabalhava — provoquei. — Mas isso é bom, assim pode
pagar as “contas” que eu te mandar.
Os olhos de Lira se estreitaram atrás das lentes enquanto ela me lançava um
olhar de puro desdém. Ah, como eu adorava provocar essa reação nela.
— Acha mesmo que eu vou pagar? — ela disse, baixinho, mas sua voz
carregava um tom de irritação contida.
— Claro que vai — murmurei, sorrindo de lado, enquanto girava a taça de
vinho. — Ou vai receber mais e mais, até que pague.
Ela inclinou levemente a cabeça, ajustando os óculos, e por um segundo
achei que fosse me ignorar. Mas, claro, Lira Zamorano nunca recuava.
— Desde quando eu sou responsável pelas suas… necessidades pessoais? —
O tom dela era ácido, mas havia algo mais ali.
— Necessidades pessoais? — arqueei uma sobrancelha, fingindo estar
ofendida. — Você estragou uma peça perfeitamente boa, noivinha. Achei
justo que me reembolsasse.
Lira respirou fundo, como se tentasse conter a vontade de me esganar.
— Você mereceu que eu a estragasse.
— Mereci? — Sorri, inclinando-me um pouco para ela, o suficiente para
sussurrar no seu ouvido. — Ou você que não conseguiu resistir em me pegar
daquela forma?
Senti como ela ficou tensa. Ela se afastou o suficiente para me encarar. Os
olhos cinzas dela, protegidos pelos óculos, estavam mais intensos do que eu
lembrava.
— E você bem que gostou — sibilou, mas sua voz estava mais baixa, quase
como um sussurro. — Se eu pagar por essas peças, o direito, será só meu de
estragá-las!
Meu coração falhou com aquela insinuação. Então me inclinei na sua direção,
colocando a mão na sua coxa, o movimento discreto o suficiente para
ninguém notar. Lira ficou completamente tensa, mas ela não me afastou, na
verdade seu olhar caiu no meu decote.
— Meu rosto está mais em cima, querida — Eu disse, e Lira ergueu os olhos,
e por um segundo pareceu um cachorrinho inocente. Foi atraente. — Você
acha que eu deixaria você por as patas em mim de novo?
Lira se recuperou rápido. Sua expressão segura e confiante retornou, agora
cheia de arrogância também.
— Não só acho, como tenho certeza, Ayra. — Sua voz era baixa — Porque,
no fundo, você adorou quando eu coloquei as “patas” em você.
Minha risada foi suave, mas carregada de malícia. Deslizei a mão mais para
cima em sua coxa, lenta o suficiente para sentir o calor de sua pele através do
tecido. Ela endureceu na cadeira, mas não me afastou de novo.
— Adorei? — murmurei, meus lábios curvados em um sorriso provocador.
— Ou talvez eu só goste… de ver você perder o controle por minha causa.
Ela soltou uma risada breve, mas havia algo forçado nela. Seus olhos cinzas
estavam fixos nos meus, e eu podia sentir a tensão crescendo entre nós, mas
era diferente do que sempre foi. Eu não sabia explicar.
— Quem disse que perdi o controle? Se lembro bem, não era eu que fui
dominada. — Ela revidou, a voz tão baixa que parecia um sussurro.
— Dominada? — arqueei uma sobrancelha. — Vamos esclarecer algo,
querida. Você só acha que tem o controle porque eu deixo.
Os olhos dela brilharam por trás dos óculos, e por um momento, pensei que
ela fosse se levantar e acabar com o jogo ali mesmo. Mas, ao invés disso,
Lira sorriu, um sorriso carregado de perigo.
— Acredita mesmo nisso, Ayra? — ela perguntou, sua mão se movendo
discretamente até a minha, apertando meu pulso com firmeza. — Porque eu
sei exatamente que você está mentindo.
Meu sorriso não vacilou, mas senti o seu toque queimando minha pele.
Deixando-me com o coração batendo mais rápido do que eu gostaria de
admitir. Lira se inclinou para perto, quase invadindo meu espaço. Seu
perfume, um misto de algo amadeirado e fresco, parecia me envolver.
Antes que ela pudesse fazer sua nova jogada ou eu dizer algo, ouvimos a voz
do Arturo chamando a nossa atenção.
Lira imediatamente recuou, soltando meu pulso com uma calma forçada,
enquanto eu endireitava a postura, levando a taça de vinho aos lábios para
disfarçar o impacto que aquele toque e aquele olhar tiveram em mim.
— Estamos discutindo algo interessante aqui? — Arturo perguntou,
arqueando uma sobrancelha enquanto nos olhava de uma forma que era tanto
curiosa quanto suspeita.
— Nada digno de atenção, Arturo — retruquei, lançando um olhar rápido
para a Lira antes de voltar minha atenção para a mesa. — Apenas uma
conversa educada entre… noivas.
Lira deu uma risada curta, mas havia algo afiado nela, como se ainda
estivesse digerindo o que acabara de acontecer.
— Sim, só estávamos… esclarecendo alguns pontos — ela respondeu,
ajustando os óculos com um movimento deliberado. — Nada importante.
Arturo pareceu intrigado, mas deu de ombros e voltou sua atenção para a
discussão sobre rotas e negócios que continuava na mesa. Notei que Javier
também parecia prestar atenção em nós duas, talvez tentando identificar em
que momento íamos começar a nos “matar”.
Fingi focar na conversa geral, mas não conseguia parar de sentir a pressão do
toque da Lira em meu pulso. Era como se sua mão ainda estivesse ali,
queimando minha pele.
Foi um alívio quando a Lira foi introduzida na conversa, explicando a
organização das rotas. Ali eu entendi o que a fez ficar tão ocupada
trabalhando. Óbvio, que a minha vez chegou, afinal eu cuidava do controle da
segurança das operações e tecnologia.
Comecei a explicar os sistemas de segurança que implementámos nas últimas
semanas, para combinar as ações do Cartel Estrela Negra. Eu sabia
exatamente do que estava falando, e todos à mesa pareciam atentos. Bem,
quase todos.
Um dos membros, um sujeito com um sorriso que me dava vontade de socar,
parecia mais interessado em algo muito específico: meu decote.
Eu percebi na primeira vez que ele desviou os olhos da minha cara, o olhar
deslizando preguiçosamente pelo meu corpo. Ignorei. Não era a primeira vez
que alguém me olhava assim, e definitivamente não seria a última. Continuei
falando, mantendo meu tom firme e profissional, como se ele não estivesse
ali.
— As novas rotas foram mapeadas com pontos cegos mínimos para evitar
riscos de intercepção. Além disso, atualizamos o sistema de rastreamento
com um algoritmo… — expliquei, notando pela visão periférica que o idiota
estava olhando novamente.
Dessa vez, ele nem se deu o trabalho de disfarçar. O olhar dele estava
cravado no meu decote, como se fosse um convite. Respirei fundo, decidindo
que aquilo não valia minha atenção, e voltei a falar. Mas antes que eu
pudesse continuar minha explicação, algo inesperado aconteceu.
Senti um tecido macio cobrir meus ombros e braços, também cobrindo parte
do meu torso. Olhei para mim mesma e percebi que era o blazer da Lira. A
minha cabeça virou automaticamente na direção dela, surpresa. Ela havia
tirado o blazer sem aviso e colocado sobre mim, os olhos fixos no homem
com um brilho frio que beirava o ameaçador.
— Acredito que seja mais fácil prestar atenção no que está sendo dito se não
estiver tão… distraído — Lira disse com a voz firme, mas carregada de
sarcasmo. Era como uma lâmina afiada embainhada em controle.
O homem engoliu em seco, claramente desconfortável com a situação. Ele
desviou o olhar imediatamente, murmurando algo inaudível antes de fitar seu
prato. Javier lançou um olhar duro para o sujeito, e Arturo apenas observou
impassível.
Eu, por outro lado, não sabia exatamente como reagir. O tecido do blazer da
Lira ainda estava quente no corpo dela, coberto pelo seu cheiro. O gesto,
embora protetor, me pegou completamente desprevenida.
— Eu podia lidar com isso — murmurei baixinho, só para ela ouvir, enquanto
ajustava o blazer sobre mim.
Lira inclinou a cabeça, seus olhos cinzas brilhando com algo que parecia
mais exasperação do que raiva. Ela se aproximou o suficiente para que
apenas eu escutasse sua resposta.
— Eu sei que podia, Arellano. Mas não vou deixar ninguém olhar para você
como se fosse um pedaço de carne na minha frente. — Sua voz era baixa,
mas havia um tom possessivo que fez algo revirar dentro de mim.
Antes que eu pudesse responder, ela se afastou e voltou a se concentrar na
conversa que Javier retomou, como se nada tivesse acontecido. Eu, no
entanto, sentia o peso do blazer em meus ombros como um lembrete de que
Lira estava de alguma forma marcando seu território.
Entretanto, ainda sim o que realmente me incomodava era que, por alguma
razão, eu não queria tirá-lo.
☙❧
Lira Zamorano
O jantar seguia com a mesma intensidade de sempre: negócios e egos
inflados. Eu queria apenas que acabasse logo, porque estava cansada depois
de dias trabalhando sem parar sobre as estratégias das novas rotas. E ainda
havia Ayra, que era um estresse adicional, que me sobrecarregava. Ela ainda
estava usando meu blazer, e a cada movimento dela, parecia que aquele
simples detalhe queria chamar minha atenção.
Coloquei aquela peça em cima dela sem pensar. Mas me deixou
absurdamente irritada os olhos dele mergulhando no decote dela. Ayra era a
minha futura esposa, independente das nossas diferenças, ou qualquer coisa,
eu não ia tolerar alguém desrespeitando-a. Isso era o correto a fazer.
Ayra se moveu ao meu lado, notei que terminou a sua taça de vinho, ela
levantou-se abruptamente, murmurando algo sobre o toalete. Observei
enquanto ela caminhava com aquela confiança despreocupada, como se o
mundo inteiro existisse apenas para entreter a sua presença. O tecido do
blazer caía de forma diferente sobre ela, mas de algum modo, ainda mais
elegante, atraente. Tentei não olhar, focando-me na conversa na mesa.
No entanto, alguns minutos depois, notei um movimento em minha visão
periférica. Ayra estava voltando para a mesa, ajustando o blazer sobre os
ombros. Entretanto, ela foi abordada por um homem idoso, bem vestido. Ele
parecia casual, mas havia algo em sua postura que me chamou minha
atenção.
Ayra parou, cruzando os braços, com uma expressão desconfiada.
Claramente, ele a conhecia, mas ela não fazia ideia quem era o sujeito. Eles
trocaram algumas palavras, o homem gesticulou, aparentemente tentando
parecer amigável, enquanto Ayra permanecia imóvel. Foi quando ele
estendeu um pequeno pedaço de papel a ela. Ayra hesitou antes de pegar os
dedos segurando o bilhete por um momento.
Ela ficou encarando aquele papel, durou um segundo, até Ayra o encarar,
dando um aceno e um sorriso. Tinha algo nesse sorriso que destoava
totalmente diferente dela, era sincero e agradecido. Ayra deu um passo para
se afastar do homem, mas, ao invés de voltar para a mesa, ela simplesmente
se virou, caminhando na direção de um corredor lateral.
Algo estava errado.
Observei por alguns segundos, tentando entender o que havia acontecido. A
forma como Ayra segurava o papel, os ombros tensos… não era normal.
Aquilo não parecia uma conversa trivial. O homem ficou assistindo Ayra se
afastar, também parecendo confuso.
Eu queria saber o que tinha acontecido. Então desculpei-me com os outros da
mesa e levantei. Notei como Arturo me encarou, mas prefiro fingir que não,
ignorando os demais olhares curiosos. Então segui na direção onde Ayra
havia desaparecido.
O corredor era mais silencioso, longe do burburinho da sala principal.
Caminhei devagar, ouvindo o som dos meus saltos ecoando, enquanto meus
olhos procuravam qualquer sinal dela. E então a vi, de costas, parada
encostada na parede. Ela estava olhando para o papel nas mãos, mas seu
corpo parecia rígido, como se estivesse tentando processar algo.
— Arellano — chamei, minha voz baixa, mas firme. — O que diabos está
fazendo?
Ela virou-se para mim lentamente, e o que vi em seus olhos me pegou
desprevenida. Não era a provocação de sempre, nem o sarcasmo. Era algo
profundamente… triste.
— Zamorano, vá embora — ela respondeu baixinho, mas sua voz não tinha o
mesmo tom confiante de sempre. Isso acendeu um alerta estranho em mim.
— Não vou — cruzei os braços, mantendo meu olhar fixo nela. — Quem era
aquele homem? E o que ele te deu?
Ayra hesitou por um momento, o papel ainda apertado em sua mão. E, pela
primeira vez, desde que eu a conhecia, ela parecia… perdida e desolada.
— Ele… — sua voz falhou e então aqueles olhos castanhos se encheram de
lágrimas. — Mamá e papá…
Antes que eu pudesse processar direito o que estava acontecendo, Ayra
deslizou pela parede até o chão. As lágrimas interrompendo e o som que ela
fez, me provocou uma pontada no peito. Deus… O que havia acontecido?
Ela abraçou a si mesma, segurando aquele pedaço de papel, apertando meu
blazer ao seu redor. Ayra parecia menor do que nunca, vulnerável e ferida. Eu
não sabia exatamente como agir. Aquela versão na minha frente era
desconhecida, e fazia meu coração bater de um jeito estranho.
Rigidamente, eu me aproximei, me ajoelhei ao seu lado. Ayra tremia. Eu vi
seu rosto, sempre tão arrogante e confiante, marcado por uma dor que não
podia ser fingida. Era absolutamente chocante e até um pouco desesperador
ver ela chorando daquele jeito. Hesitei, mas ergui a mão, tocando seu ombro.
— Ayra — eu disse seu nome com cuidado — Fale comigo? O que está
acontecendo?
Ela ergueu o rosto, e a visão me atingiu como um golpe inesperado. Seus
olhos castanhos estavam marejados, brilhando com lágrimas que deslizavam
livremente por suas bochechas. Era como um filhotinho, uma corça indefesa.
Um contraste tão gritante com a Ayra que eu conhecia, aquela que sempre
parecia inabalável. Mas ali, naquele momento, ela era outra pessoa.
— Não… — sua voz saiu fraca, quase um sussurro, enquanto ela tentava
segurar as lágrimas. — Não use isso contra mim.
E então, antes que eu pudesse dizer ou fazer qualquer coisa, ela se jogou
contra mim, seus braços se apertando ao redor do meu corpo, o rosto
enterrado em meu peito. Fiquei imóvel por um momento, completamente
chocada.
A mulher que me enlouquecia de raiva, que parecia feita de fogo e aço, agora
estava em meus braços, vulnerável e quebrada. Algo em mim se apertou, uma
sensação estranha, desconfortável, mas impossível de ignorar.
Instintivamente, minhas mãos foram para os ombros dela, hesitantes, mas
firmes o suficiente para a envolver. Ela parecia estar confiando em mim,
porque precisava de apoio. Pela primeira vez, ela não parecia a minha rival.
Ela era apenas… humana. E isso me atingiu mais forte do que eu poderia
prever.
— Ayra — comecei, tentando encontrar as palavras certas, mas ela
continuava chorando contra mim, os soluços abafados pelo tecido da minha
camisa. Suspirei, desistindo, enquanto minha mão subia para dar tapinhas
suaves e hesitantes em suas costas. Eu nunca fui boa com momentos assim, e
claramente não parecia que eu pudesse fazer mais.
— E o que ele te disse? — perguntei novamente depois de um tempo,
tentando manter minha voz neutra, mesmo com o aperto crescente no peito ao
vê-la daquele jeito.
Ela se afastou ligeiramente, apenas o suficiente para me encarar, ainda
segurando o pedaço de papel como se fosse um objeto precioso. Suas mãos
tremiam, mas ela conseguiu abrir o papel e o colocou no meu campo de
visão.
Era uma fotografia antiga.
Dois adultos, um homem e uma mulher, sorriam na imagem, ambos
claramente em algum momento feliz de suas vidas. Entre eles, havia uma
criança. Uma garotinha que, mesmo tão jovem, tinha os mesmos olhos
castanhos intensos que me encaravam agora, cheios de lágrimas.
— É você — murmurei, sem pensar, enquanto olhava para a imagem.
Ela assentiu, os olhos fixos na fotografia. Ayra traçou as imagens com a
ponta dos dedos, havia tanta gentileza no gesto que me chocou. Ela respirou
fundo, ainda tremendo, mas conseguiu falar, sua voz quase inaudível.
— Ele… aquele homem… ele era amigo dos meus pais. Me deu isso, dizendo
que eles costumavam vir aqui. Era o restaurante favorito deles. — Sua voz
falhou, mas ela continuou, determinada. — Ele disse… que eles falavam de
mim o tempo todo e que os meus primeiros aniversários foram ali. Contou
que eles tinham tantos planos para mim ali, naquele ano, no ano que
morreram.
A dor na voz dela era quase palpável. Eu não sabia o que dizer. O que você
pode dizer para alguém que carrega esse tipo de perda? Que teve tudo
arrancado de forma tão cruel? Porque eu sabia que não existiam palavras para
confortar essa dor. Porque eu mesma a sentia.
— Ele me contou sobre a última vez que meus pais estiveram aqui, foi uma
semana antes do acidente — Ayra continuou, sua voz embargada. — Eles
disseram que aquele aniversário de oito anos não iriam me trazer aqui, porque
eu pedi para ir ao parque de diversões…
Ela fechou os olhos com força, pressionando os dedos contra a fotografia
como se pudesse agarrar à memória.
— Se eu não tivesse pedido para ir a esse parque maldito, eles não teriam
pegado a estrada. Eles teriam vindo aqui — Ayra chorou. — Eu matei meus
pais!
Por um momento, o corredor ficou em silêncio novamente, preenchido
apenas pelos soluços abafados da Ayra. Eu sentia cada palavra dela como se
fosse uma lâmina cortando o ar. Aquela frase, aquela culpa que ela mostrou,
ecoou na minha mente.
Mas antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, Ayra começou a bater em si
mesma. Golpes rápidos e bruscos no peito, nas coxas, como se quisesse punir
o próprio corpo por algo que não podia mudar.
— Eu matei eles! — ela disse de novo, sua voz quebrada pelo choro,
enquanto os golpes se tornavam mais fortes. — Eu deveria ter ficado quieta!
Não pedido nada!
— Ayra, pare! — Falei, firme, avançando para segurá-la. Minhas mãos
alcançaram as dela, tentando detê-la, mas ela resistiu.
— Eu mereço isso, eu matei eles! — ela rosnou, tentando se soltar, mas eu
não a deixei.
— Eu não vou deixar você fazer isso — respondi, segurando seus pulsos com
mais força, forçando-a a me olhar. Seus olhos castanhos estavam inchados e
brilhantes, transbordando uma mistura de raiva e dor que parecia
insuportável. — Eles não iam querer isso, Ayra. Eles não iam querer ver você
se machucando desse jeito.
— Você não sabe — ela sussurrou, as lágrimas caindo livremente enquanto
sua força diminuía. — Eu mereço isso. Eu estava lá? Você sabia? Eu vi tudo
e fiquei horas vendo os dois, ali, mortos. Porque eu não morri também?
Eu não sabia, nunca soube que ela estava naquele carro. A história era
conhecida, sobre os chefes do Dragão Vermelho que foram perseguidos e
mortos. Mas eu nunca imaginei que Ayra, ainda uma criança, estava lá e viu
os pais mortos. A dor na voz dela era tão profunda, que apenas ouvir, parecia
machucar.
Ayra parecia absolutamente quebrada, e naquele instante eu tive medo das
consequências. Por isso, eu sabia que ela precisava de algo para se ancorar,
algo que a trouxesse de volta.
— Ayra, olhe para mim — minha voz saiu baixa, mas firme, quase como
uma ordem. Ela ergueu os olhos, o rosto devastado, e aquilo apertou meu
peito mais do que eu gostaria de admitir.
— Você não matou seus pais — eu disse, lenta e deliberadamente, mantendo
o olhar fixo no dela. — Aquilo foi culpa de quem os perseguiu. Não sua.
Ela balançou a cabeça, as lágrimas ainda caindo, e eu sabia que ela não
acreditava. Não ainda. Mas eu precisava continuar, precisava alcançar a parte
dela que ainda estava se escutando à razão.
— Você era uma criança, Ayra — continuei, a voz mais suave que eu podia
ter. — Uma criança que queria passar o aniversário no parque de diversões.
Qualquer pai faria o que eles fizeram. Eles queriam te fazer feliz, e foi isso
que os levou naquela estrada. Não foi culpa sua. Foi a escolha deles, porque
eles te amavam.
Ela respirou fundo, como se estivesse tentando absorver minhas palavras,
mas a culpa ainda estava ali, evidente em cada traço de seu rosto.
— Eu sei o que é perder pessoas importantes — acrescentei, quase num
sussurro. Não era algo que eu falava com frequência, muito menos pensei em
falar com ela. Alguém que já usou daquela dor, mas eu sabia que precisava.
— E sei como é sentir essa culpa, achar que, de alguma forma, você poderia
ter feito algo diferente e salvado quem amava. Mas a verdade é que não
podemos fazer nada, é só podemos viver. Se ficamos aqui e eles não, deve
haver um motivo, e nos destruir não é o que eles não iriam querer.
Ayra fechou os olhos novamente, com tanta força. Eu sabia que aquelas
palavras talvez não fossem suficientes, mas era tudo o que eu podia oferecer
naquele momento. E então seus pulsos relaxaram dentro das minhas mãos, e
ela se jogou contra mim, seu rosto encontrou meu ombro. Ela parecia tão
pequena, tão frágil, completamente diferente da Ayra Arellano que eu
conhecia.
— Me leva até eles, por favor… — ela sussurrou, sua voz embargada,
quebrada.
Por um momento, fiquei sem reação. Aquelas palavras me atingiram como
um soco no estômago. Era um apelo desesperado, como se, de alguma forma,
estar perto deles pudesse aliviar a culpa que ela carregava.
— Ayra… — comecei, hesitante, enquanto soltei seus pulsos e minhas mãos
subiram até seus ombros. Ela tremia sob meu toque. — Você quer dizer…?
— Os túmulos — ela murmurou, sua voz quase inaudível. — Eu nunca fui.
Desde que aconteceu, eu nunca consegui… eu só preciso… eu preciso ir.
Minha garganta se apertou. Eu nunca imaginei que a Ayra fosse carregar esse
tipo de segredo, essa culpa. Sempre a vi como alguém que enfrentava tudo de
frente, mas agora percebi que ela estava fugindo disso há anos.
— Tudo bem — respondi, minha voz mais firme agora. — Eu te levo, Ayra.
Ela assentiu lentamente contra meu ombro, e eu senti algo dentro de mim se
agitar. Não era raiva, nem frustração, como costumava ser com Ayra. Era
algo mais profundo, algo que parecia estranho vindo de mim: compaixão.
☙❧
Ayra Arellano
O sol começava a nascer no horizonte, tingindo o céu com tons suaves de
laranja e rosa. O cemitério estava silencioso, quase vazio, exceto pelo som
ocasional do vento passando pelas árvores próximas. Era um lugar
praticamente exclusivo, feito para acomodar os membros da família e que eu
evitei ir por tantos anos.
A cada passo que eu dava parecia mais pesado que o anterior, como se o chão
tentasse me puxar para baixo.
Lira caminhava ao meu lado, em silêncio. Ela não disse nada desde o
caminho até chegarmos ali, e, por mais estranho que pareça, eu estava grata.
De alguma forma, o silêncio dela foi um conforto para mim. Só o som dos
nossos passos na grama e o ritmo do meu coração acelerado preenchiam o
vazio.
E então os vi. Os dois nomes gravados na lápide. Meu corpo congelou por
um instante, enquanto meu olhar deslizava pelas letras que nunca quis
encarar antes. “María e Enrique Arellano.” Meus pais.
Eu não sabia como me aproximar, então simplesmente me forcei a continuar
caminhando, parando diante da lápide com as pernas trêmulas. A Lira me deu
espaço, me deixando continuar o resto do caminho sozinha. Soltei um suspiro
pesado, percebendo que estava segurando o ar sem perceber.
— Eles sempre cuidaram bem daqui…
Eu comentei sem pensar, olhando para o arranjo de flores frescas. Talvez
Javier, talvez outra pessoa, mas não eu. Dei um passo à frente e me ajoelhei,
passando os dedos pelas letras esculpidas na pedra. O frio da lápide parecia
atravessar minha pele, uma lembrança dolorosa.
— Mamá… Papá… — minha voz saiu mais trêmula do que eu esperava, e
precisei fechar os olhos para reunir coragem. — Eu sinto muito. Sinto muito
por ter demorado tanto para vir. Por nunca ter tido coragem antes.
As palavras começaram a sair sozinhas, como uma torrente que eu não podia
mais conter.
— Eu sinto tanto a falta de vocês. — Minha voz quebrou, e engoli o nó na
garganta. — Todos os dias. Eu lembro do som das suas risadas, do jeito que
mamãe penteava meu cabelo antes de dormir, das piadas bobas do papai que
sempre me faziam rir mesmo quando eu não queria.
As minhas mãos tremiam, enquanto eu continuava. Era como se toda a dor, e
agora a culpa, que eu carreguei por anos estivesse finalmente escapando.
— Se eu pudesse mudar as coisas, faria qualquer coisa para trazer vocês de
volta. Eu daria tudo para que não tivessem pegado aquela estrada. Para que
ainda estivessem aqui… comigo. — Minha voz era quase um sussurro agora,
cheia de arrependimento.
Senti as lágrimas escorrendo, mas não tentei limpá-las. Era como se,
finalmente, eu estivesse permitindo a mim mesma sentir a dor que reprimi
por tanto tempo.
— Eu sei que vocês queriam o melhor para mim, que queriam que eu fosse
forte, mas… — pausei, lutando para respirar. — Mas às vezes é tão difícil e
tão solitário. Tão difícil continuar sem vocês.
O vento soprou levemente, e por um momento, parecia que o mundo inteiro
estava me ouvindo.
— Eu só queria que vocês soubessem que eu sinto muito. Por tudo. Pela
estrada, pelo parque, por não ter sido a filha que vocês mereciam.
Fechei os olhos, deixando minha testa descansar contra a lápide. O frio da
pedra se misturava ao calor das lágrimas, e, pela primeira vez em anos, eu me
senti mais leve, mesmo que fosse apenas um pouco.
O sol subia lentamente, espalhando luz sobre o cemitério, e eu fiquei ali,
sentada, como se estivesse esperando que eles me ouvissem. Como se eles
ainda estivessem comigo.
Lira permaneceu lá atrás de mim, quieta, mas sua presença ainda
preenchendo o espaço vazio ao meu redor. Naquele instante, não importava o
quanto brigássemos ou provocássemos uma à outra, naquele momento, Lira
parecia a coisa mais próxima de uma zona segura. Era irônico, considerando
nosso histórico, mas nunca ia esquecer do seu abraço cuidadoso naquele
corredor do restaurante.
CAPÍTULO SEIS
Lira Zamorano
O salão estava impecável. Um espaço vasto, decorado com lustres de cristal
que refletiam a luz de velas cuidadosamente espalhadas, criando uma
atmosfera sofisticada e intimista. As portas de vidro deslizavam para revelar
um jardim iluminado por lanternas penduradas em árvores, como se
estivessem abraçando o lugar com uma aura de tranquilidade. Mas, para mim,
aquela tranquilidade era ilusória.
Eu estava no centro do furacão.
Meu vestido cinza cintilava sob a luz suave, mas mesmo com a aparência
controlada e elegante, minha mente trabalhava como um motor em alta
rotação. Eu sabia que aquele jantar era mais do que uma celebração de
noivado. Era um teatro cuidadosamente montado, onde alianças seriam
forjadas e inimigos avisados.
O Cartel da Estrela Negra e o Cartel do Dragão Vermelho estavam
oficialmente se unindo por meio do casamento das suas herdeiras.
A minha atenção foi inevitavelmente puxada para Ayra. Ela estava ao meu
lado, deslumbrante quanto provocante. Seu vestido branco, simples e
clássico, mas destacava cada curva dela, e sua expressão exibia aquela
arrogância irritante que só ela conseguia. Sua postura era impecável, como se
ela quisesse deixar claro para todos ali que era intocável. Mas eu sabia que
aquela armadura de confiança era apenas isso: uma armadura.
Ainda estava viva na minha mente, o que houve no corredor daquele
restaurante, quando vi Ayra desabar pela primeira vez na vida. Desde esse dia
ela parecia me evitar, mas eu também não fiz esforço para procurá-la. Devia
ser difícil para ela admitir que me deixou vê-la no seu pior momento.
Eu lembrava claramente de como ela se encolheu contra mim, das lágrimas e
da dor crua em sua voz ao falar dos pais. Aquela vulnerabilidade ainda me
desconcertava, como uma sombra que eu não sabia como lidar. E por mais
que ela tentasse mascarar, era impossível dissociar da imagem dela agora,
apesar de eu estar diante da Ayra confiante e provocante. Esse conhecimento
sobre esse lado frágil dela, de alguma forma, mexeu comigo.
— Sorria, querida — ela sussurrou para mim, inclinando-se levemente
enquanto passávamos pelos primeiros convidados. — Ou vão achar que você
não está feliz em se casar comigo.
Eu revirei os olhos disfarçadamente, mas forcei um sorriso para o casal à
nossa frente, um dos aliados mais antigos da Estrela Negra. Receber os
convidados lado a lado com Ayra era mais um teste de paciência e
periculosidade do que qualquer outra coisa.
Cumprimentei, minha voz cortês, mas firme, enquanto Ayra acrescentava um
charme a mais em suas palavras, como sempre fazia quando queria. O pior
disso, era que estávamos apenas começando.
Conforme a noite avançava, o salão ficava cheio, mas o ar continuava denso,
carregado de expectativas. Os rostos conhecidos entrelaçados com aqueles
que eu sabia que estavam ali apenas para observar, para julgar, para calcular
cada movimento nosso.
— Você está indo bem, Zamorano — Ayra comentou, sua voz baixa
enquanto seus dedos roçavam de leve no meu braço. — Talvez eu te dê uma
recompensa por isso mais tarde.
— Guarde suas recompensas para você — retruquei com um sorriso falso,
mantendo minha postura ereta enquanto ela ria baixinho, claramente se
divertindo às minhas custas.
— Tem certeza? — ela fez beicinho. — Eu estou usando um conjunto branco
de renda das lingeries que você pagou.
Revirei os olhos, tentando ignorar o calor que subiu pelo meu pescoço com
aquela provocação descarada. Ela adorava me provocar. Em parte eu tinha
culpa nisso, no fim, não devia ter autorizado o pagamento das malditos
lingeries, porém o fiz depois que Valentina disse que chegou mais uma conta.
Ayra estava me evitando, mas continuava comprando aquelas peças e me
mandando as contas. Exatamente como ela me ameaçou fazer, caso eu não
pagasse.
— Tenho certeza de que essa conversa não é apropriada para um jantar de
noivado? — retruquei, mantendo o tom cortante e me recusando a mostrar
qualquer reação.
Ayra inclinou a cabeça, com aquele sorriso malicioso que me irritava tanto
quanto… bem, era melhor não completar esse pensamento.
— Apropriado? — ela murmurou, sua voz carregada de sarcasmo enquanto
se aproximava um pouco mais. — Zamorano, somos tudo, menos
apropriadas.
Dei um passo para o lado, rompendo a proximidade e recuperando meu
espaço pessoal.
— Não confunda o noivado com um show de circo — Sibilei, lançando um
olhar rápido para os convidados que começavam a nos observar. —
Comporte-se. Só por uma noite.
Ayra suspirou teatralmente, mas se afastou, pouco, mas ainda sim. E dessa
forma pude respirar melhor. Odiava admitir, mas a proximidade dela fazia a
minha pulsação aumentar e me lembrar daquela noite, na cabine da boate.
— Tudo bem, querida. Vou ser uma noiva exemplar… — ela disse, mas seus
olhos brilhavam com pura provocação. — Até eu me cansar.
Claro que ela se cansaria rapidamente. Eu sabia disso. Ayra Arellano não
sabia ser discreta, muito menos obediente. E infelizmente tive que admitir,
que não pude deixar de pensar no conjunto branco de renda que ela
mencionou.
Mas então, o ambiente pareceu mudar. Houve um burburinho entre os
convidados, algo discreto, mas perceptível para quem estava atento como eu.
Uma presença inesperada havia chegado.
Meus olhos se voltaram para a entrada, onde uma figura alta e imponente
atravessava o salão com uma confiança silenciosa que fazia as pessoas
abrirem caminho automaticamente. Soya. Eu a reconheci imediatamente. Ela
não era apenas a chefe da segurança de Lyza Ferraro, mas sua sombra. Onde
Soya estava, os interesses da máfia Ferraro estavam representados.
— Interessante — murmurei, mais para mim mesma do que para Ayra, mas
claro que ela ouviu.
— Ferraro enviou sua cadela mais leal. — Ayra comentou, sua voz carregada
de sarcasmo, mas havia uma ponta de curiosidade em seu tom. — Bonita ela!
— Se comporte — rosnei, enquanto Ayra ria. — Não quero gracinhas.
Ayra piscou para mim. E Soya se aproximou de nós, com seu terno
impecavelmente ajustado e uma expressão tão neutra quanto perigosa. Seus
olhos varreram o salão antes de finalmente pousar em mim e Ayra.
— Senhoritas — disse ela, sua voz baixa, mas firme. — Lyza Ferraro envia
suas saudações e pediu para verificar se tudo está em perfeita ordem esta
noite.
Eu não consegui evitar a tensão que subiu pela minha espinha. Era típico de
Lyza. Ela nunca fazia movimentos desnecessários, e o simples fato de enviar
Soya significava que ela queria ser lembrada. E lembrar das suas condições.
— Que gentileza da sua chefe — Ayra respondeu antes que eu pudesse, seu
tom carregado de ironia enquanto oferecia um sorriso que não alcançava os
olhos. — Ela decidiu mandar você como presente de noivado?
Soya manteve sua expressão inabalável, mas seus olhos brilharam levemente,
talvez em provocação ou em desafio. E nesse instante eu quis pôr a Ayra
sobre os meus joelhos e dar uma boa surra.
— Apenas para garantir que as coisas corram bem — respondeu ela, antes de
dirigir um olhar diretamente para mim. — Afinal, a união de vocês é um
marco importante. Não queremos imprevistos, certo? Ambas estão cientes
dos seus papéis.
— Não se preocupe, Soya — respondi, meu tom afiado como uma faca. —
Cuidamos muito bem de nossos próprios assuntos. Se precisar de algo, esteja
à vontade, afinal hoje é uma noite de celebração. Eu e a Ayra estamos mais
que cientes dos nossos “papéis”.
Ela assentiu ligeiramente, mas não antes de me lançar um olhar que deixava
claro que ainda não tinha terminado. Eu sabia que ela ficaria de olho em tudo.
Quando Soya se afastou, Ayra inclinou-se para mim novamente, com um
sorriso irritante no rosto.
— Que educada você foi. Quase pareceu sincera.
— Não me provoque, Arellano. Se Ferraro enviou a Soya, é para deixar um
aviso que está de olho. — murmurei, mantendo o sorriso para os outros
convidados. — E você pelo amor de Deus, não consegue se segurar?
— Foi só uma brincadeirinha inocente — Ayra respondeu, dando de ombros,
o sorriso provocativo ainda estampado no rosto. — Você é um pouco
possessiva, não acha?
Senti o sangue ferver.
— Com quem você decide se divertir, pouco me importa — Sibilei, o tom
frio. — Mas não vou tolerar que suas atitudes me afetem.
— E o que você vai fazer? — Ela inclinou a cabeça, o olhar cheio de desafio.
— Me colocar um cabresto?
— Na verdade, é uma ótima ideia — retruquei, sem recuar.
Ayra inclinou-se ligeiramente para mim, aproximando seu rosto
perigosamente do meu. O suficiente para que qualquer um que nos
observasse à distância pudesse interpretar o gesto como algo íntimo, quase
carinhoso. Mas eu sabia exatamente o que aquilo era: um desafio.
— Cabresto, é? — ela murmurou, sua voz baixa, quase um sussurro, mas
cheia de desafio. — Será que você consegue me domar, Zamorano? Porque
eu acho que você não tem coragem.
Eu sorri, um sorriso forçado e frio, mantendo meu olhar fixo no dela. Não
podia deixar Ayra ganhar aquele jogo.
— Arellano, se eu quisesse te domar, já teria feito isso — retruquei, com o
mesmo tom baixo, mas carregado de ironia. — Mas isso exigiria mais esforço
do que você merece.
Ayra riu baixinho, o som cheio de diversão, como se a ideia de me irritar
fosse o melhor entretenimento da noite. Então ela se afastou, ainda rindo, e
voltou sua atenção para um garçom que passava com uma bandeja de
champanhe.
— Tão previsível você — ela disse, pegando uma taça e tomando um gole,
antes de continuar. — Mas no fim, seria apenas frustrante, pois não ia
conseguir mesmo.
Eu respirei fundo, tentando ignorar o calor que subia pelo meu pescoço. Ayra
tinha um talento especial para me testar, para me levar ao limite e depois
recuar, como se fosse tudo apenas uma brincadeira.
— Só me avise quando a palhaçada acabar, Arellano — murmurei, me
afastando antes que eu mesma perdesse o controle. — Me solte.
Precisava de espaço para recuperar minha compostura. Por isso tirei meu
braço do seu aperto. Mas antes que eu pudesse sair completamente de perto,
senti a mão dela pegar a minha. Olhei para ela, surpresa, mas Ayra me puxou
para si e me beijou.
Lábios macios, mornos, com um gosto de champanhe e algo mais gostoso.
Por um instante esqueci quem era que estava me beijando. Me deixando
provar daquele veneno doce e perigoso.
☙❧
Ayra Arellano
Eu não pensei muito antes de agir, o que, para ser sincera. Eu só queria
provocá-la, arrancar aquele controle irritante dela. E talvez eu também
quisesse fazê-la me ver como sempre fui: forte e confiante. Não queria que se
lembrasse de como fui fraca na sua frente.
Então, puxei-a pela sua mão, com força suficiente para trazê-la para mim.
Nossos corpos se chocaram, e antes que ela pudesse reagir, eu fiz. Eu a beijei.
A princípio, foi exatamente o que eu queria, apenas uma provocação
descarada. Eu sabia que isso iria deixá-la furiosa, que ela odiava perder o
controle, ainda mais quando estava em público. Mas quando meus lábios
tocaram os dela, algo aconteceu.
Eu esqueci do meu propósito…
Os lábios dela eram macios, convidativos, ela tinha caro e algo que eu não
conseguia identificar, mas era viciante. Eu deveria me afastar, rir da reação
dela, mas, em vez disso, minha mão livre escorregou para sua cintura, como
se fosse o lugar onde elas sempre deveriam estar.
Por um segundo, ela ficou paralisada, o choque evidente em seu corpo. Mas
então, algo inesperado aconteceu. Lira não me empurrou, não me afastou. Em
vez disso, ela cedeu seu controle.
O beijo mudou. Ela agarrou meus ombros, puxando-me para mais perto, e eu
senti um calor que parecia consumir tudo ao nosso redor. Eu perdi o fôlego,
mas não conseguia parar. Era como se, naquele momento, tudo o que existia
fosse nós duas.
Nossos lábios pareciam se encaixar, era uma dança. Sua língua brincou com a
minha, timidamente no início, mas em algum momento se perdeu.
Definitivamente aquele beijo não era mais inocente.
Quando finalmente me forcei a me afastar, as respirações de ambas estavam
descompassadas. Olhei para Lira, esperando encontrar raiva ou desprezo.
Mas o que vi me pegou desprevenida, pois os seus olhos cinzentos estavam
brilhando, confusos, e cheios de desejo.
— Arellano… — ela começou, mas sua voz falhou.
Eu dei um passo para trás, tentando recuperar meu próprio equilíbrio, mas a
confusão em minha mente não me deixava, entretanto, tentei disfarçar.
— O que estava falando antes, noivinha?
Sorri de lado, tentando soar como a provocadora que sempre fui. Mas, pela
primeira vez, não soou verdadeiro nem para mim mesma. Ela desviou o olhar
por um segundo, respirando fundo, como se estivesse tentando se recompor.
— Não sei o que você acha que está fazendo, Ayra — ela finalmente disse,
sua voz recuperando um pouco da firmeza habitual. — Mas pare com isso…
Eu ri baixinho, balançando a cabeça. Me sentindo um pouco mais firme. Ela
estreitou os olhos, dando um passo para trás como se precisasse de distância.
E, por algum motivo, aquele simples movimento me incomodou mais do que
deveria. Mas, claro, eu nunca admitiria isso.
Ela então se virou, saindo completamente de perto de mim. Eu a observei por
um segundo, o calor do momento ainda pairando no ar. Queria dizer algo,
fazer algo para puxá-la de volta para perto, mas, pela primeira vez, me
senti… insegura.
— Pode deixar demonstrações desse tipo para o privado — Javier falou, se
aproximando pelas minhas costas. Olhei para ele franzindo o cenho.
— Não queria que eu me unisse com ela? — respondi na defensiva, tentando
esconder a confusão que ainda fervilhava dentro de mim. — Estou fazendo
exatamente isso.
Ele arqueou uma sobrancelha, os braços cruzados, assumindo aquela postura
rígida de sempre.
— Isso não é unir, Ayra. Você está provocando a Lira.
— É meu talento especial — retruquei com um sorriso de canto, tentando
desviar o assunto.
— Ayra… — O tom de Javier ficou mais pesado, como uma advertência. —
Suas brincadeiras podem custar caro, não só para você, mas para todos nós.
Revirei os olhos, cruzando os braços enquanto mantinha meu olhar no dele.
— Eu sei disso. Mas, sinceramente, você acha que eles ligam se a gente se
suporta ou não? Tudo o que importa é que a gente cumpra nossa parte no
trato.
Javier suspirou, passando a mão pelo rosto.
— Ayra, você pode ser brilhante quando quer, mas às vezes eu me pergunto
se está realmente comprometida com isso.
Aquelas palavras me atingiram mais do que eu gostaria de admitir.
Comprometida. Como se eu tivesse escolha.
— Estou comprometida — respondi, com mais firmeza do que pretendia. —
Mais do que você imagina. Mas não espere que eu faça isso sorrindo ou sem
me divertir um pouco. Eu não sou como você, Javier. Não sou tão… contida.
Ele estreitou os olhos, inclinando-se levemente para mim.
— Contida ou não, você vai seguir as regras. — Ele pausou, o tom mais
sério. — Porque, no fim do dia, Ayra, você sabe o que acontece se não seguir
o plano.
Eu mantive o olhar fixo no dele, mas por dentro senti uma pontada de raiva e
ressentimento. Javier parecia ter esquecido que eu ainda era sua sobrinha e só
pensava em resultados.
— Entendido!
A minha voz saiu seca, cortante. Javier me observou por mais um momento,
como se quisesse ter certeza de que eu realmente estava ouvindo. Então, sem
dizer mais nada, ele se afastou, voltando para a qualquer buraco que devia ter
saído.
Eu permaneci ali, respirando fundo, tentando reorganizar os pensamentos.
Mas não importava o quanto tentasse, minha mente insistia em voltar para a
Zamorano. Para o que aconteceu. Para como aquilo mexeu comigo mais do
que deveria.
☙❧
A festa parecia ter ganhado ainda mais tensão à medida que a noite avançava.
As luzes refletiam nos cristais pendurados pelo salão, a música se misturava
às conversas animadas e brindes ecoavam a cada minuto. Eu, por outro lado,
estava encostada em um canto, mantendo um sorriso quase automático
enquanto observava tudo.
Bem, quase tudo, porque meus olhos insistiam em seguir a figura de Lira, que
parecia fazer um trabalho impecável em me evitar.
Ela estava cercada de convidados importantes, seu comportamento perfeito
como sempre, a postura rígida e os sorrisos polidos. Mas eu sabia que ela
estava fugindo. Fugindo de mim. E, por algum motivo, aquilo me irritava
mais do que deveria.
Antes que pudesse me perder nos meus próprios pensamentos, a voz firme de
Javier ressoou pelo salão, chamando a atenção de todos.
— Senhoras e senhores, por favor, se aproximem. Temos um anúncio
importante para fazer.
O ar no salão mudou, as conversas cessaram e todos começaram a se mover,
formando um círculo ao nosso redor. Meu estômago revirou com o peso do
momento. Eu sabia o que estava por vir.
Lira também foi chamada por Arturo e, contra sua vontade evidente, se
aproximou, parando ao meu lado. Eu me mantive firme, olhando para frente,
fingindo ignorar sua presença tão próxima. Mas, claro, ela sempre sabia
como roubar minha atenção, mesmo quando não tentava.
— E, agora, as herdeiras dos cartéis que vão selar a união de nossos negócios
e família — Javier anunciou, sua voz carregada de autoridade.
Eu quase revirei os olhos. Selar a união? Que dramático. Foi então que senti
Lira se mexer ao meu lado. Com uma expressão séria, ela deu um passo à
frente, virando-se para mim, e só então percebi que ela segurava algo nas
mãos. Era uma pequena caixa de veludo verde que ela vinha escondendo
atrás das costas.
Ela abriu lentamente, revelando um anel. Não era uma peça qualquer. O anel
era deslumbrante, tão perfeito que parecia ter saído de uma joalheria antiga e
exclusiva.
No centro, uma esmeralda oval de um verde profundo, quase hipnotizante,
cercada por uma delicada fileira de pequenos diamantes que brilhavam
intensamente sob as luzes do salão. O aro era trabalhado com precisão,
cravejado com mais diamantes minúsculos que davam ao anel um toque
ainda mais refinado, mas sem ser exagerado.
Era uma obra de arte que não precisava de apresentações. Por mais relutante
que eu estivesse em admitir, havia algo naquele anel que me atraía. Eu fiquei
um momento, fiquei sem palavras.
Engoli em seco, quando Lira pegou a minha mão. Tirando o anel da caixa e
colocando delicadamente no meu dedo, mas antes de concluir, ela ergueu os
olhos para mim. A sua expressão séria, mas havia algo em seu olhar que eu
não conseguia decifrar exatamente. Ela parecia… vulnerável?
— Cuide desse anel, por favor — ela disse, sua voz baixa e controlada, mas
carregada de algo mais. — Era da minha mãe.
Aquilo me atingiu de um jeito que eu não esperava. De repente, o salão
parecia distante, as pessoas ao nosso redor inexistentes, e fui incapaz de
evitar o aperto estranho no peito. Ela colocou o anel em mim e eu olhei para a
esmeralda por um segundo.
— Eu… — comecei, mas as palavras pareciam presas na minha garganta.
Ergui os olhos para Lira, que ainda me observava. — Eu vou cuidar,
Zamorano.
Um pequeno sorriso curvou seus lábios, tão sutil que quase não percebi. Mas
aquilo foi suficiente para me desconcertar de novo.
☙❧
Lira Zamorano
Um quarto com pouca luz, onde o ar estava pesado, carregado de algo
indescritível. E Ayra estava lá.
Ela se aproximou de mim, usando um vestido leve, seus olhos não
carregavam o sarcasmo habitual. Eles brilhavam com algo diferente, algo
mais íntimo, mais… doce. Seu rosto estava próximo ao meu, e o calor que
vinha dela fazia meu corpo inteiro reagir.
— Lira — ela sussurrou, sua voz baixa e rouca, como se o nome fosse um
segredo proibido. — Você não precisa fugir de mim…
Suas mãos encontraram minha cintura, os dedos acariciando suavemente a
pele, enquanto abriu meu vestido. Seus dedos subindo e descendo nas minhas
costas nuas, quando ela abriu o zíper. Meu corpo se inclinou para o dela antes
que eu pudesse controlar o movimento. Seus lábios estavam tão próximos
que eu podia sentir sua respiração quente contra a minha.
— Você sabe que eu sempre estive aqui, não sabe? — Ela disse, inclinando-
se para beijar minha orelha, fazendo minha pele se arrepiar. — Tão perto…
Eu tentei falar, mas nenhuma palavra saiu. Apenas gemidos baixos enquanto
ela me puxava para perto, suas mãos subindo por minhas costas, segurando-
me com firmeza. Então, sua boca encontrou a minha, em um beijo que era
doce, quase gentil. Nada do que eu esperava dela, e talvez fosse por isso que
fosse tão intoxicante.
O beijo se aprofundou, ela chupando meu lábio inferior e então mordendo.
Antes de mergulhar em mim novamente, lento, mas intenso, cada movimento
calculado, como se ela quisesse marcar aquele momento em mim.
— Agora eu sou sua… — ela murmurou contra meus lábios, sua voz
carregada de uma possessividade quase sedutora. — Você pode fazer o que
quiser!
Meu corpo inteiro parecia derreter sob o toque dela. Mas algo estava errado,
algo na doçura daquele momento parecia irreal…. Antes que eu pudesse
entender ou continuar o que começamos, tudo foi se desfazendo, os sussurros
de Ayra se transformando em ecos distantes.
Acordei de repente, o peito subindo e descendo rápido, a respiração irregular.
Meu quarto estava escuro, e a realidade voltou com força, fria e implacável.
Engoli em seco, passando a mão pelo rosto, tentando processar o que acabara
de acontecer.
Meu corpo ainda estava quente, cada célula parecendo se lembrar do que
tinha acontecido no sonho. Mas era só isso, um sonho. E mesmo assim, não
consegui afastar a sensação que Ayra deixou em mim, como se ainda pudesse
sentir seus lábios, suas mãos, até o seu cheiro.
Me sentei na cama. Suspirei pesadamente, tentando acalmar a confusão e o
desejo que ainda borbulhavam dentro de mim. Aquilo com certeza era culpa
do maldito beijo da festa de noivado.
— Droga, maldita Arellano… — murmurei para mim mesma, antes de
encarar o teto escuro, sem a menor chance de voltar a dormir.
☙❧
O som da governanta chamando do outro lado da porta me tirou da
tranquilidade do café da manhã. Eram raras as manhãs que eu conseguia
comer, sem pressa, e sem ter que discutir trabalho com Arturo.
— Senhorita Lira, sua Lamborghini acabou de entrar na propriedade.
Levantei num rompante, a mente girando com a ideia absurda de que Ayra
poderia ter mesmo devolvido meu carro. Saí em disparada para a porta
principal, os saltos dos meus sapatos ecoando pelos corredores enquanto
descia as escadas. Não me preocupei em disfarçar a urgência nos passos.
Quando cheguei à entrada da mansão, abri a porta de uma vez e encontrei a
mulher que estava tirando a minha paz.
Ayra estava encostada na lateral da Lamborghini, como a personificação do
caos, com um sorrisinho presunçoso brincando nos lábios. Imediatamente
lembrei do sonho que tive naquela madrugada, e literalmente, quis me matar.
Essa manhã ela usava uma jaqueta branca ajustada por cima de um vestido
branco, marcando perfeitamente sua silhueta. O sol batia em seu cabelo
castanho deixando-o um tom mais claro, criando um contraste quase irônico
com o cenário. Pois ela parecia uma miragem angelical, insuportavelmente
bonita, mas que eu sabia esconder uma tempestade.
— Sua segurança é bem ruim, deixaram eu entrar sem checar quem dirigia —
ela provocou.
— Veio devolver o meu carro? — perguntei, tentando soar firme, mas a
irritação era clara na minha voz.
Ayra sorriu, aquele sorriso canalha que sempre me fazia querer socá-la.
Cruzou os braços e se afastou do carro lentamente, como se estivesse
analisando minha reação.
— Devolver? Não mesmo. — Ayra girou a chave no dedo, o som metálico
ecoando como um insulto. — Só vim buscar você.
— Buscar para quê, Ayra? — perguntei, cruzando os braços.
— Temos compromissos de noivas, lembra? — Ela deu de ombros, como se
fosse a coisa mais óbvia do mundo. — Pensei que gostaria de matar a
saudade do seu brinquedo favorito enquanto isso.
Suspirei, tentando controlar o impulso de avançar e arrancar a chave da mão
dela.
— Não tenho planos de ir a lugar nenhum com você. — Eu disse, firme,
impaciente. — Sei o caminho para ir sozinha, e você não vai sair daqui com o
meu carro!
— Babe, sinto muito, mas eu instalei uns ajustes no motor. — Ayra sorriu
como um diabo. — Se eu quiser, ele não liga sem mim. Então, boa sorte
tentando usá-lo.
Fitei Ayra, incrédula, enquanto seu sorriso aumentava. Provavelmente
satisfeita de ver o choque no meu rosto, como se estivesse brincando com
minha sanidade.
— Você mexeu no meu carro? — perguntei, a voz carregada de raiva. —
Está maluca?
— Não foi nada grande — ela respondeu, inocente, dando um sorriso
maldoso. — Só umas coisinhas para garantir que ele continue “meu”
enquanto eu quiser.
Eu quase explodi.
— Seu? — deixei a voz baixa, pois sabia que os empregados deviam estar
observando a cena com olhos curiosos. — Eu nunca dei esse carro para você!
Ayra deu de ombros, encostando-se casualmente na lateral do carro como se
estivéssemos discutindo sobre o clima.
— É meu. — Ela repetiu, olhando diretamente nos meus olhos. — Você vai
casar comigo, então tudo que for seu, vai ser meu também. Não seja
mesquinha.
Aquela insolente…
Eu respirei fundo. Meu coração acelerou com a mistura de raiva e
frustração… Pelo menos interpretei assim. Era estranho ouvir Ayra dizer isso
em voz alta, dando um senso de realidade mais forte.
Sem querer, meu olhar foi atraído para a mão dela, especificamente para o
anel. Aquele anel. Ouro branco com esmeralda e diamantes. Um design tão
delicado e ao mesmo tempo poderoso, exatamente como minha mãe sempre
gostou. E agora, ele estava no dedo da Ayra.
Foi um choque quando meu pai colocou aquele anel nas minhas mãos e me
disse que eu deveria usá-lo com ela. Protestei, obviamente. Não fazia sentido
dar algo tão pessoal para alguém como Ayra Arellano. Mas meu pai insistiu,
dizendo que minha mãe iria querer isso. Que, apesar das circunstâncias, Ayra
seria minha companheira.
Como o destino podia ser tão cruel? Minha maior inimiga, a pessoa que mais
me tirava do sério, carregava o anel da minha mãe. E, para meu desgosto, ele
ficava perfeito nela. Como se tivesse sido feito para aquela mão.
— Casar não significa que você pode tomar o que quiser, Arellano. —
Rosnei, minha voz baixa para não chamar ainda mais atenção.
— Significa sim. — Ela rebateu, com um sorriso ainda maior. — Agora
vamos se mova e entre no carro, ou vai nos atrasar. Não quer irritar seu papai
não comparecendo a algo que ele mandou, não é?
— Você não vai devolver o carro, vai? — minha voz saiu dura.
— Claro que não. Combina mais comigo, não acha? — Ayra deu um passo à
frente, estendendo a chave na minha direção, mas antes que eu pudesse pegá-
la, puxou-a de volta com um sorriso travesso. — Considere meu presente de
casamento, já que você ainda não me deu um.
O anel brilhava em sua mão como uma provocação viva, um lembrete de que
estávamos amarradas, quer quiséssemos ou não. Eu estreitei os olhos, minha
paciência se esgotando. Entretanto, eu sabia que era inevitável argumentar
com aquela pessoa teimosa. Ayra era impossível.
Por isso dei as costas para ela, entrando na mansão. Ayra não se moveu,
quando eu voltei, ela já sorria triunfante, abrindo a porta para mim com um
floreio exagerado.
— Eu dirijo pelo menos. — Murmurei, estendendo a mão na direção da
chave, ainda tentando manter algum controle sobre a situação.
— Nem pensar, Zamorano. Esse bebê merece ser tratado por mãos
experientes.
Ela girou a chave no dedo e se moveu entrando no carro antes que eu pudesse
protestar. Eu bufei, indo no banco do passageiro. Sentia-me completamente
derrotada antes mesmo de começarmos. Ayra estava adorando cada segundo,
é claro.
Eu mantive os braços cruzados, observando a paisagem passar, enquanto o ar
condicionado resfriava minha paciência. O motor da Lamborghini rugia
enquanto ela dirigia com uma confiança irritante, quase casual, ignorando
completamente os limites de velocidade ao pegar a estrada.
— Você sabe que está dirigindo um carro de milhões, certo? — perguntei,
segurando-me discretamente no assento quando ela fez uma curva um pouco
fechada demais.
— Sei. É por isso que ele está nas mãos certas. — Ayra lançou-me um sorriso
de canto, claramente se divertindo com meu desconforto.
Rolei os olhos, tentando ignorar o ritmo acelerado com que ela
ziguezagueava entre os outros veículos na estrada.
— Sabe o endereço? — perguntei, tentando manter o foco. — Porque acho
que pegou a rua errada.
— Sim, eu sei o endereço, senhora certinha. Só peguei um atalho.
Eu não disse mais nada, mas ainda estava desconfiada da Ayra aparecendo
para me buscar. Afinal, eu sabia, que a última coisa que ela queria era ficar na
sala privada de um restaurante junto com a equipe da cerimonialista,
aprovando os detalhes da festa e, claro, a segurança.
Para a minha surpresa, chegamos no horário ao restaurante, na verdade, em
tempo recorde, com Ayra estacionando o carro em frente à entrada como se
fosse a dona do lugar. Quando o manobrista se aproximou, Ayra jogou as
chaves para ele, mas não sem antes lançar um último olhar provocador para
mim.
— Não estrague meu carro. — Ela piscou para o homem, que ficou
visivelmente nervoso, e então virou-se para mim. — Vamos, noivinha?
Entramos no restaurante, onde um anfitrião já nos esperava. O lugar era um
exemplo de luxo discreto, com lustres elegantes pendendo do teto e um
aroma sutil de especiarias finas no ar. Seguimos o anfitrião até o segundo
andar, onde ficava a sala reservada para a reunião.
No caminho, Ayra fez questão de caminhar ao meu lado, mantendo uma
proximidade desconfortável. Seus dedos roçaram de leve no meu braço
enquanto andávamos, um gesto que podia parecer casual, mas que eu sabia
ser deliberado. Ela parecia viver para me provocar.
— Está nervosa, Zamorano? — Ela perguntou, inclinando-se ligeiramente em
minha direção enquanto subíamos a escada.
— Por que estaria? — retruquei, mantendo meu tom firme.
— Ah, porque estamos com os dias contados… — Ela sorriu, claramente se
divertindo com a própria provocação. — E agora vai ter que lidar comigo
todos os dias!
— Você é o menor dos meus problemas, Arellano. — Eu disse, apertando o
passo, determinada a não cair em suas provocações. — Só fique calada, por
favor.
Finalmente, chegamos à sala privada. A mesa já estava arrumada com pastas,
amostras e tablets. A cerimonialista e sua equipe estavam sentados em um
canto, esperando nossa chegada, com sorrisos profissionais no rosto. Ayra
abriu a porta para mim, gesticulando de maneira teatral para que eu entrasse
primeiro.
— Depois de você, noivinha. — Ela disse, seu tom carregado de sarcasmo.
Eu respirei fundo, ignorando sua provocação, e entrei, preparando-me para
mais uma rodada de discussões. Ayra fechou a porta atrás de nós, já
ocupando a cadeira mais confortável da sala como se fosse um trono,
enquanto eu me sentava com a postura rígida, pronta para lidar com o caos
que seria terminar organizar esse casamento.
Assim que a cerimonialista começou a apresentar as propostas para a
decoração, Ayra, é claro, começou a discordar.
— Não entendo por que precisamos de tantas flores. Parece um enterro — ela
comentou, apontando para a maquete digital da festa, onde arranjos
elaborados de flores brancas decoravam as mesas. — Por que não algo
mais… ousado? Vermelho. Preto. Algo que combine com o temperamento da
minha noiva.
— Flores brancas são clássicas e elegantes. Não estamos organizando uma
balada gótica, Arellano — respondi, estreitando os olhos. — E o
temperamento da sua noiva, no caso, sou eu, é equilibrado, ao contrário do
seu.
A cerimonialista pigarreou, visivelmente desconfortável, tentando intervir.
— Talvez possamos encontrar um meio-termo? Um toque de cor nos
arranjos, mantendo a elegância branca predominante? — ela sugeriu, o tom
esperançoso.
— “Um toque de cor”. — Ayra repetiu, sorrindo de lado. — Viu, Zamorano?
Até ela acha que minhas ideias são boas.
Revirei os olhos, mas antes que pudesse rebater, o tópico mudou para os
convidados. A lista foi exibida em um tablet, e Ayra franziu o rosto
imediatamente. Eu já antecipava o que viria.
— Por que diabos estamos convidando o Sr. Martínez? — ela perguntou,
num tom de asco. — Ele odeia minha família. Aliás, odeia mulheres. Por que
eu deveria sorrir para ele no meu casamento?
— Porque ele é um aliado estratégico dos meus “negócios” — respondi com
firmeza. — Você pode aguentar algumas horas de falsidade, Arellano. Não é
como se fosse um desafio para você.
— Interessante ouvir isso de você, Zamorano. Achei que fosse especialista
em fingir — Ayra rebateu, o tom carregado de sarcasmo.
A cerimonialista parecia prestes a ter um colapso, mas se recompôs rápido
para apresentar as opções de buffet. Isso, claro, foi um novo campo de
batalha.
— O que você acha de incluir pratos japoneses? — Ayra sugeriu, olhando
diretamente para mim com um sorriso suspeito.
— Não, os pratos japoneses não têm nada a ver com o nosso público. O menu
precisa ser mais tradicional — retruquei, já impaciente. — Pensei em algo
clássico, como a cozinha mediterrânea combinada mexicana. Algo que todos
gostem.
— Ah, então é sobre agradar todos os outros e não a nós duas? — Ayra
rebateu, fingindo indignação. — Achei que era o nosso dia.
— O que você quer dizer com “nós duas”? Você está claramente mais
interessada em causar conflito do que em planejar algo que funcione —
retruquei, sentindo meu tom subir.
— Estou interessada em não ter um casamento chato e previsível. É pedir
demais? — Ayra rebateu, cruzando os braços.
— Ayra! — Eu suspirei, massageando a têmpora.
— Deixe eu ter alguma opinião aqui, Lira. Ou não vou facilitar as coisas!
Ayra afirmou, e eu tinha certeza que ela não estava blefando. Já a
cerimonialista olhou de um lado para o outro, claramente arrependida de ter
aceitado organizar o evento. A tensão entre mim e Ayra parecia preencher a
sala, deixando todos desconfortáveis.
— Vamos fazer o seguinte — sugeri, tentando manter a calma. —
Escolhemos dois menus. Um com suas ideias “ousadas” e outro com as
minhas ideias clássicas, a cerimonialista apresenta a Arturo e Javier, por fim
eles decidem.
— Ah, então agora você sabe negociar. Estou impressionada, babe — Ayra
comentou com um sorriso irônico, inclinando-se na cadeira como se já
tivesse vencido. — Vamos lá!
— Para de me chamar assim — retruquei, respirando fundo.
— babe? Não seja tímida — ela provocou com uma voz infantil, sem me
olhar. — Ah… Vamos trocar essa sobremesa!
Ela pulou de tópico me ignorando totalmente. E eu procurei ignorar o nó
estranho que senti ao ouvir aquele apelido ridículo.
A reunião continuou, com discussões, provocações e pequenos ataques
verbais que deixaram a equipe completamente perdida. Mas, no fundo,
enquanto argumentava contra Ayra, não pude deixar de notar algo estranho.
Apesar da irritação, eu estava começando a me acostumar com aquilo e no
fundo… me divertir. Ayra não me dava paz, mas também não me deixava na
monotonia que sempre vivi.
☙❧
Ayra Arellano
A reunião já estava nos últimos estágios, o que significava que, para minha
sorte ou azar, estávamos finalmente discutindo a parte da comida. Eu teria
que me dedicar à academia para perder as calorias que ia adquirir. Mas iria
valer a pena, é claro, só para implicar com a Lira.
Sentada ao meu lado, ela mantinha sua postura impecável, ouvindo com
atenção enquanto os representantes da equipe apresentavam as opções de
sobremesa. Eu olhava de soslaio, observando como seus olhos se fixavam
mais intensamente nas imagens e descrições dos doces.
— Algum problema, Zamorano? — perguntei, inclinando-me levemente para
ela, com meu melhor tom de provocação.
— Nenhum — respondeu sem me encarar, mas notei um pequeno sorriso se
formar nos lábios quando a cerimonialista mencionou algo sobre camadas
extras de creme no bolo. — Preste atenção à explicação!
Ela disse, e então começou a degustação. O primeiro bolo foi cortado, e o
pedaço de Lira desapareceu de forma quase instantânea. Não que ela
estivesse sendo deselegante; pelo contrário, ela cortava e provava de forma
metódica, mas os olhos brilhantes e a forma como ela fechava os olhos
brevemente enquanto mastigava não passaram despercebidos para mim.
— Doce é seu fraco?
Eu soltei, tentando soar casual, mas não escondendo o toque de diversão na
voz. Ela ergueu uma sobrancelha para mim, terminando de mastigar antes de
responder.
— Eu gosto de apreciar coisas de qualidade.
Lira disse, naquele tom indiferente. Ela estava comendo mais uma fatia de
bolo. Aparentemente a Zamorano adorava doces. Quem diria?
Quando o terceiro bolo foi servido, a conversa mudou levemente de rumo. A
cerimonialista mencionou algo sobre a tradição dos bolos de casamento, e um
dos assistentes perguntou se alguma de nós tinha preferências específicas
para as camadas ou sabores.
— Qualquer coisa sem muito chantilly — comentei, empurrando um prato
com bolo que tinha justamente aquilo..
— Gostei muito deste com creme de baunilha com frutas vermelhas. — Lira
respondeu quase instantaneamente, e eu me virei para ela, surpresa com a
rapidez da resposta. — Mas adoro chocolate. Pode ser todo de chocolate!
— Chocolate combina mais para aniversários do que casamento... —
Comentei, analisando seu rosto enquanto ela cortava outro pedaço do bolo.
— Não vejo problema — Ela disse sem me olhar, antes de levar o garfo à
boca novamente.
— Deixe o chocolate para o seu aniversário! — Falei, com um tom
exasperado.
— Não comemoro meu aniversário — Ela disse, como se não fosse nada,
claramente distraída quando misturava uma fatia de chocolate e baunilha. —
Olha, essa combinação ficou boa!
A informação me pegou de surpresa, e, pela primeira vez, não encontrei uma
provocação pronta. Como assim, não comemorava?
— Como assim, você não comemora seu aniversário? — perguntei, a
surpresa escapando antes que eu pudesse me conter.
Lira, ainda distraída com a combinação de sabores no prato, finalmente
ergueu os olhos para mim.
— Eu sou gêmea, Ayra — Ela deu de ombros, como se fizesse todo sentido.
Mas acho que meu rosto expressou a minha confusão. Então ela continuou:
— Não tem sentido comemorar meu aniversário depois que ele se foi.
Eu engoli em seco, olhando para ela por um momento mais longo do que
pretendia. Lira voltou a focar nos bolos, cortando outro pedaço, como se não
tivesse acabado de dizer algo tão pesado.
Sempre imaginei que a Lira tinha tudo que queria, ainda mais depois da perda
do irmão. Mas aparentemente Arturo não criou ela como eu imaginei. E ali,
fiquei observando ela focada nos sabores, parecendo se deliciar com cada
mordida, como se tentasse extrair o máximo de prazer daquela experiência
simples.
— Escolha o bolo que quiser. — As palavras escaparam antes que eu pudesse
pensar melhor. Lira olhou para mim, surpresa, o garfo ainda na mão.
— Como assim? — perguntou, desconfiada.
— Você ouviu. Escolha o bolo que quiser. — Cruzei os braços, tentando
parecer indiferente. — Desde que o casamento vai ser uma grande encenação,
não ligo para o sabor mesmo.
Ela arqueou uma sobrancelha, claramente tentando entender minha súbita
mudança de atitude. Mas depois de alguns segundos, apenas balançou a
cabeça e voltou a analisar as opções.
— Baunilha com frutas vermelhas e uma camada de chocolate. — Ela disse,
finalmente, o tom seguro, mas com um leve brilho de satisfação nos olhos. —
Quanto ao tamanho, isso podem escolher.
Enquanto a cerimonialista anotava as orientações, eu não conseguia evitar
olhar para ela mais uma vez. Aparentemente havia muita coisa por trás
daquela armadura de controle que Lira usava, que eu não conhecia. O que me
fez questionar o que mais foi tirado dela desde a infância? Será que foi isso
que a moldou tão rígida assim?
Terminamos a escolha do que era necessário, o restante seria com Javier e
Arturo. Saímos do restaurante, enquanto ela caminhava à minha frente, ainda
mantendo aquela postura impecável e orgulhosa. Mas eu só conseguia pensar
nela comendo aqueles bolos, como se fosse a coisa mais feliz que fazia no
mundo.
Antes que eu pudesse fazer uma provocação para me distrair daquele tópico,
uma voz me chamou da calçada.
— Ayra? Não acredito que é você!
Virei-me automaticamente, dando as costas para Lira, e encontrando um
casal. A mulher era alta, com cabelos castanhos perfeitamente arrumados,
enquanto o homem tinha aquele sorriso confiante de quem está acostumado a
conseguir o que quer. Eles pareciam vagamente familiares, mas minha mente
falhou em colocar os rostos no lugar certo.
— Sabia que era você! — A mulher se aproximou, um sorriso malicioso nos
lábios. — Estávamos comentando como você desapareceu depois daquela
noite.
Noite? Que noite? Eu franzi o cenho, confusa, mas antes que pudesse
perguntar, o homem se inclinou um pouco, claramente confortável demais
para meu gosto.
— Estávamos pensando… se não quer repetir. Foi uma experiência…
memorável.
A lembrança finalmente me atingiu, e eu sorri, mais por reflexo do que
qualquer outra coisa. Ah, claro. Um daqueles momentos em que o álcool e o
tédio me levaram a buscar diversão. Era engraçado, eu não lembrava nem
metade do que aconteceu, mas eles claramente lembravam.
— É… foi uma noite interessante…
Respondi, mantendo meu tom casual. Mas antes que pudesse dizer mais
alguma coisa, senti a presença de Lira ao meu lado. Ela ficou estranhamente
próximo ao meu corpo, tocando as minhas costas e foi mais territorial do que
se ela tivesse me colocado sobre os ombros.
— Quem são eles? — perguntou, sua voz gelada como o inverno. Ignorando
os dois
— Velhos conhecidos — respondi, tentando soar despreocupada. — Diga
“oi”.
Eu disse, mas a mulher se virou para Lira, avaliando-a com olhos bem
interessados. Mas claro, aquilo não era uma surpresa, considerando o nível
de beleza que a Zamorano carregava.
— E você é…? — Ela indagou, e a Lira não hesitou nem por um segundo.
— Noiva dela. — A resposta foi seca, mas carregada de um tom de posse que
eu achei impressionante. — E estamos de saída.
A mulher arqueou uma sobrancelha, claramente surpresa e um sorriso sem
graça, o homem ao seu lado notou também a frieza do clima, então recuou.
— Bom, foi um prazer te ver de novo, Ayra — a mulher disse, lançando um
último olhar para Lira antes de se afastar com o parceiro.
Fiquei olhando enquanto eles desapareciam, lutando contra o sorriso que
ameaçava se formar nos meus lábios. Quando me virei, Lira estava me
encarando com olhos de puro gelo.
— Velhos conhecidos? — ela repetiu, a voz baixa e carregada de ironia.
— Não vamos fazer um escândalo por causa disso, certo? — revirei os olhos,
seguindo em direção ao carro. — Seja boazinha.
Ela veio logo atrás, mas o som de seus passos era mais forte do que o normal,
como se ela estivesse descontando a irritação no chão. Eu peguei a chave
com o manobrista, então entramos no carro, e o silêncio foi rapidamente
quebrado assim que a porta se fechou.
— Você é ridícula, Arellano. — Lira começou, cruzando os braços. — Nem
se dá o trabalho de lembrar às pessoas com quem dormiu?
— O que posso dizer? Sou uma pessoa popular. — Sorri, ligando o motor,
enquanto ela me fulminava com o olhar.
— Popular? — Ela soltou uma risada amarga. — Isso tem outro nome, sabia?
Lancei um olhar feio para ela e então acelerei com força, notando que Lira
estava sem cinto. Ela foi jogada contra o painel do carro, mas se recuperou
rápido, se prendendo a poltrona, enquanto eu acelerava.
— Cuidado com essa língua. — Eu disse, virando-me para ela com um
sorriso provocador. — Mas eu vou entender que falou isso porque está com
ciúmes?
— Não seja patética. — Ela respondeu, mas havia algo no tom dela, algo que
me fez querer continuar cutucando.
— Admita, noivinha. Você adorou deixar claro que sou sua.
— Você se escuta? — Ela bufou, desviando o olhar para a janela. — É um
show de piadas.
Eu freei o carro de uma vez e dessa vez o cinto segurou a Lira, mas ela me
olhou como se pudesse me matar.
— Dirija direito porra! — sua voz pingava raiva e algo mais.
— Não gosta que mexam com coisas que julga serem suas não é, Zamorano?
Eu provoquei, então me inclinei, estendendo a mão deslizando pela sua coxa.
Lira ficou tensa imediatamente, mas ela não se afastou, na verdade, ergueu
aquele queixo orgulhoso.
— Ficou com raiva ao pensar naqueles dois com as mãos em cima de mim?
— eu sorri maliciosamente — O que faria se eu aceitasse o convite deles hoje
em?
Lira foi muito rápida, ela agarrou meu pescoço, não forte o suficiente para me
machucar, mas firme o suficiente para me imobilizar. Por um segundo a
minha mente ficou em branco, e eu apenas deixei, querendo saber seu
próximo passo. Ela estava tão próxima, o calor do corpo dela ainda pairava
ao meu redor, e eu podia sentir o cheiro suave de seu perfume, misturado à
raiva evidente que emanava dela.
— Você é uma cadela! — Lira aproximou seu rosto do meu, o suficiente para
sua respiração bater quente no meu rosto. — Não ouse brincar comigo,
porque não vai gostar se eu perder a paciência.
— Estou pagando para ver! — Eu provoquei, com meus lábios escovando os
dela. Lira respirou profundamente, seus olhos cinzas se tornando fogo puro.
— Ótimo, então leve o carro aquele beco. Ela apertou meu pescoço mais
forte e soltou de uma vez. — Agora!
A tensão dentro do carro era quase palpável. Eu não sabia se estava mais
irritada ou intrigada com aquela súbita explosão de Lira.
— Como quiser, Zamorano. — Respondi, meu tom carregado de sarcasmo
enquanto girava o volante para mudar a rota.
Acelerando, virei para a rua estreita que ela havia indicado. Era um beco
escuro, silencioso, escondido das movimentadas avenidas principais. O motor
da Lamborghini roncava enquanto eu manobrava o carro até parar.
Lira não esperou nem que eu desligasse o motor. Ela se moveu rapidamente,
desafiadora, soltando o cinto com um movimento firme e inclinando-se na
minha direção. Seus olhos cinzas eram um espetáculo ambíguo que jamais vi.
— Quer brincar comigo, Arellano? — Sua voz era baixa, mas cada palavra
parecia um golpe. — Então vamos brincar.
Ela agarrou meu queixo, forçando-me a olhar para ela diretamente. Meu
coração disparou, mas não deixei que ela percebesse. Mantive o sorriso
desafiador, embora cada célula do meu corpo estivesse reagindo ao toque
dela.
— Achei que você não gostasse de perder o controle, noivinha.
Provoquei, mantendo o olhar fixo no dela, mesmo quando seus dedos
apertaram meu queixo com mais força. Lira inclinou-se ainda mais, sua
respiração quente contra minha pele. Por um segundo, achei que ela fosse me
beijar, mas, claro, isso seria fácil demais.
— Controle é algo que eu sempre tenho, Ayra. — Ela murmurou, seus lábios
quase roçando os meus. — E eu vou te mostrar agora.
Minha respiração falhou por um segundo, e isso foi tudo o que ela precisava.
Lira afastou-se de repente, como se nada tivesse acontecido, mas o fogo em
seus olhos ainda queimava intensamente.
— Agora desça do carro. — Ela ordenou, já abrindo a porta do lado dela.
— E por que eu faria isso? — Perguntei, cruzando os braços e inclinando-me
contra o banco.
— Porque se não fizer, eu juro que vou te arrastar para fora.
Lira respondeu com um tom que não deixava espaço para dúvidas. Eu bufei,
mas cedi, saindo do carro com um sorriso provocador. Notei que ela fez o
mesmo e parou na frente do veículo, e eu resolvi ver até onde Lira ia. Eu
estava realmente intrigada.
— Está satisfeita?
Lira deu alguns passos na minha direção, parando bem na minha frente, com
os olhos brilhando de raiva e algo mais quente, bem mais perigoso do que
qualquer forma como ela já me encarava.
— Nem um pouco. — Ela respondeu, antes de empurrar-me contra o capô do
carro, me imobilizando. — Assim está melhor!
Fiquei chocada. Meu corpo chocou-se com o metal frio, mesmo contra as
roupas.
— Hum… Interessante… — Provoquei, sentindo meu estômago se agitar. Eu
não estava com medo, na verdade, estava ansiosa.
— Vou te dar uma última chance, Ayra. — Ela disse, sua voz baixa e
carregada de ameaça. — Pare de brincar comigo.
Eu deveria me sentir intimidada, acredito que era o que a Lira queria, mas
tudo o que consegui foi sorrir ainda mais.
— E se eu não quiser parar? — Respondi, virando o rosto da melhor forma
que eu podia, para ela.
— Então vai receber o que merece!
De repente, ela ergueu meu vestido, comigo inclinada naquele capô. E sem
deixar margem para eu reagir, ela prendeu minhas mãos com a sua atrás das
costas, enquanto começou a espancar a minha bunda. Eu fiquei sem fôlego
enquanto seus golpes me atingiam, sentindo meu corpo estremecer, não de
um jeito ruim.
Cada golpe que ela me acertava, me deixava mais ofegante, e doentiamente
úmida. Eu olhei para ela, seus olhos cravados nos meus com uma intensidade
que me deixou sem palavras.
A palma da mão de Lira desceu mais uma vez firme, provocando um calor
crescente que subia pela minha espinha. Isso dói, ela não tem pena, mas tem
um padrão, dois golpes no mesmo lugar e então muda o lado. Ela espalha a
dor, indo e vindo cada vez mais forte, mas eu gosto.
Porra, como eu gosto!
É vergonhoso. Eu deveria estar protestando, mas as palavras morreram antes
de sequer se formarem. Tudo que consegui foi um som baixo, um gemido que
escapou dos meus lábios sem permissão.
Entretanto, nesse exato momento, Lira congelou. Foi como se não acreditasse
no que tinha acabado de ouvir. Seus olhos desceram até os meus, queimando
como fogo puro, enquanto franziu aquelas sobrancelhas bem feitas. Sua
respiração está alta, dura e descompassada.
— Gosta disso, não é? — ela sussurrou, sua voz baixa e cortante. — Merda,
você está gostando de ser espancada por mim?
— Talvez… — murmurei, desafiadora, mordendo o lábio enquanto a olhava
por cima do ombro. — Acho que sua punição não deu certo.
O brilho em seus olhos mudou, ficando ainda mais intenso. Era como se ela
tivesse sido desafiada a um jogo que não sabia se queria jogar, mas que não
conseguia evitar.
— Você realmente não tem limites, Ayra.
Lira murmurou, mas não havia ódio na voz dela. De repente, sua mão se
moveu, soltando meus pulsos.
Pensei que ela ia me soltar, mas me virou com firmeza, forçando-me a abrir
as pernas enquanto meu corpo ainda estava apoiado contra o capô. O
movimento foi tão rápido e inesperado que fiquei sem fôlego. E então, Lira se
encaixou entre elas, as mãos firmes segurando minha cintura, me obrigando a
encará-la.
Seus olhos cravaram nos meus, tão intensos que parecia impossível desviar o
olhar. Havia algo ali, algo que eu não sabia se era raiva, desejo ou uma
mistura mortal dos dois. Eu estava completamente presa, mas, de alguma
forma, não queria fugir.
— Você está me provocando porque é isso que deseja, não é? — Lira
perguntou, sua voz baixa, quase um sussurro, enquanto se inclinou sobre mim
e seu rosto se aproximava do meu. — Quer que eu domine você.
— Dominar? — bufou, rolando os olhos, desviando o olhar. — Não seja…
Antes que eu pudesse continuar, seus dedos deslizaram pela lateral do meu
corpo, subindo até meu rosto, segurando meu queixo com firmeza. A tensão
entre nós era palpável, um fio prestes a se romper.
— Você quer ser minha, Ayra! — sua voz baixa e rouca, carregada de algo
que me fez estremecer.
— Não sou de ninguém!
Eu ri, mas meu coração estava batendo tão rápido que parecia ecoar em meus
ouvidos.
— Não? — Lira deu um sorrisinho presunçoso — Acho que isso vai mudar
em breve…
Lira sussurrou, seu sorriso mudando, se tornando predatório, o que fez meu
estômago se apertar e meu corpo se inclinar involuntariamente para ela. E
antes que eu pudesse processar, os seus lábios roçaram os meus, num toque
que foi mais uma ameaça do que um gesto de afeto.
A sua mão livre deslizou na minha coxa, até a tocar a renda da minha
calcinha, seus dedos afastando o tecido. Eu gemi quando senti seu toque na
minha pele. E soube, naquele instante, que estava completamente perdida.
— Ayra, Ayra, Ayra… — sua voz acaricia meu nome, enquanto a sua
respiração parece cada vez mais pesada. — Você está tão molhada. E só
precisei de algumas tapas…
— Vadia presunçosa — murmuro, tentando fingir indiferença, mas meu
corpo é traidor. Estou completamente molhada por causa daquela desgraçada.
— Não adianta mentir enquanto estou te tocando aqui… — Seus dedos
deslizam por mim, mas param de repente. — Deve ser um conjunto lindo
essa lingerie. Mas está me atrapalhando!
Assim como da primeira vez, Lira destrói a renda com uma facilidade
absurda. Olho para baixo, sem choque, mas definitivamente instigada. Ela
guarda os restos da minha calcinha no bolso da sua calça jeans.
— Sua pervertida de merda! — Digo, agarrando sua camisa de botões,
arrebentando alguns, até seu rosto está a centímetros do meu. — O que faz
com as minhas calcinhas?
— São meus troféus!
O sorriso dela se alarga, então antes que eu possa reagir, Lira me beija, ao
mesmo tempo que insere dois dedos dentro de mim.
Lira me imobilizou completamente, seu braço envolta da minha cintura,
enquanto sua boca devastava a minha. É um beijo possessivo, quente,
inebriante, como se ela quisesse me consumir. Sua língua rivaliza com a
minha, tomando todo e qualquer controle, me transformando em uma massa
de prazer. Sinto o gosto de vinho, bolo e algo só dela… Algo viciante.
E assim eu me entrego, pela primeira vez, ansiando realmente a dominação. É
chocante esse conhecimento, mas não tenho tempo para pensar, porque
aquela mulher deixa.
Sinto o movimento dos seus dedos, brincando com meu clítoris, ao mesmo
tempo, que mete mais fundo. Ela gira seus dedos, acariciando as paredes
internas dentro de mim, resultando em um prazer descomunal. É chocante
que com tão pouco eu esteja sucumbindo.
Ela afastou seus lábios dos meus, mas desceu beijos, mordiscando a minha
mandíbula até a minha orelha.
— Você gosta assim? — Pergunta-me em voz baixa e começa a mover o
polegar lentamente, indo e vindo, sem deixar de fazer círculos. —
Responda…
A voz dela parece algo de outro mundo, porque é quente e estranhamente
sedutora. Fecho os olhos, procurando algum tipo de controle, mas então a
Lira deixa seus lábios descerem e beijam a veia saltitante em meu pescoço.
Em seguida ela me morde, e eu volto a gemer.
— Me responda… — Sua voz se torna mais exigente, mesmo abafada contra
a minha pele, o que me provoca arrepios.
— Sim… Porra sim, eu gosto! — admito, tentando suportar as sensações que
seus dedos provocam em mim. Volto a gemer.
— Muito bem! — Lira ergue o rosto e seus olhos devoram os meus. Aquele
tom cinza tão raro, parece mais escuro. — Vou te foder de verdade agora.
Seus dedos habilmente entram e saem. Quero mover as pernas, mas não
posso. Estou aprisionada e ela aumenta o ritmo tortuoso. É absolutamente
maravilhoso. Gemo de novo e de repente, abraçando seu corpo, puxando ela
para mim. Mordo seu ombro, para evitar gritar, enquanto movo o que posso
do meu quadril, pressionando contra sua mão.
À medida que as sensações se apoderam de mim, inclino a cabeça para trás
batendo contra o capô, meus olhos apertados e a boca entreaberta.
Lira lambe meu pescoço, enquanto aumenta a pressão dos seus dedos dentro
de mim. Gemo. Estou à beira de colapsar, mas falta algo, preciso de algo e
ela pareceu notar isso. Eu sinto ela se mover, sua mão na minha cintura
muda, indo até a minha nuca, então Lira me puxa fazendo eu praticamente
me sentar, mudando o ângulo, indo mais fundo, encontrando meu ponto
perfeito de prazer.
Estou colapsando, então ela me beija. Eu a abraço de volta, gemendo na sua
boca, ao mesmo tempo que meu corpo padece de prazer.
O mundo parece girar ao contrário, ainda estou de olhos fechados, sentindo a
Lira afastar os lábios dos meus. Não consigo encarar ela. Não ainda. Meu
corpo inteiro parece ter sofrido algum dano, pois ainda estou tremendo, sem
conseguir deixar de abraçá-la.
De repente, ouço um som alto de sirene, o que me tira do meu torpor. Abro os
olhos, me sentindo confusa. Lira fica tensa, ao mesmo tempo que me puxa de
cima do capô do carro. Mas o estranho, é que ela não me solta, ao contrário
disso segura a minha cintura e arrumar meu vestido, como se quisesse ter
certeza que estou decente.
Eu observo seu rosto, quando ela encontra meu olhar, vendo aqueles olhos
cinzas completamente indecifráveis. Não sei como pareço, mas
definitivamente, meus joelhos estavam como gelatinas, e era bem injusto,
considerando como a Lira parecia “firme”.
— Vai para dentro do carro! — ela diz.
— O que? — franzi o cenho, ao mesmo tempo, que noto as luzes do carro da
polícia entrando no beco.
— Para o carro, Ayra. — Lira fala impaciente, então ainda segurando a
minha cintura, ela me coloca dentro do carro. — Não quero que diga nada.
Nenhuma gracinha.
Ela aponta um dedo para mim e eu sinto uma súbita vontade de rir.
— Está mandona demais!
Eu bufei, cruzando os braços e me ajeitando na poltrona. A Lira fecha a
porta do carro sem comentários. Noto como ela fica na frente da minha porta,
cruzando os braços também, e vejo os policiais se aproximando. São dois
homens.
De repente me sinto tensa. Não sei exatamente o motivo, afinal a Lira
consegue lidar muito bem até com um pequeno exército. Entretanto, vê-la
exposta, me incomoda de uma forma que não sabia que podia sentir. Então eu
pego discretamente a arma que deixei no suporte do carro, deixando pronta.
Se atacassem ela, eu iria atacar também.
Os dois policiais perguntam o que ela faz ali. Lira assume uma postura relaxa
dizendo que teve um problema mecânico, estava esperando o carro esfriar,
mas estava pronta para ir embora. Eles a olham com certa desconfiança, mas
Lira se mantém firme. Nesse instante apontam para o carro e perguntam se
tem alguém, e ela dá de ombros, dizendo que apenas uma amiga e então eles
pedem para baixar o vidro.
Lira bate no vidro e eu baixo, dando um aceno com a mão livre da arma.
Tento parecer inocente, mas não sei se dá certo, ou se a minha aparência é
uma denúncia que estava sendo fodida naquele beco a poucos minutos. De
qualquer forma, depois de alguns minutos, somos liberadas. Quando a Lira
entra no carro, ela nota a arma na minha mão.
— Ia usar isso? — ela indaga, ligando o motor do carro.
— Só se eles atacassem.
— Eu podia me defender. — Lira afirma e acelera, rindo.
— Não pensei em te defender. Pensei em me defender!
Soa como uma verdade, mas sei que é mentira. Eu pensei nela. O que é uma
grande droga, considerando o que fizemos, mas no fundo, talvez o pós-coito
tenha me deixado um pouco ruim das ideias.
A Lira dirige em silêncio e eu prefiro assim. Não quero falar sobre o que
houve, muito menos admitir que gostei. Gostei muito.
Quando chegamos na frente do meu apartamento, Lira desliga o carro. Sinto
que é esse o momento que ela vai me jogar para fora do veículo, mas tenho a
carta coringa de fazer o carro não funcionar. Entretanto, para a minha
surpresa, Lira me entrega a chave.
— Cuide do carro. Se fizer besteira, tomo ele de você, conseguindo funcionar
ou não! — ela diz friamente, mas seus olhos não parecem frios.
— Ah, que adorável. — Eu pego a chave. — Sabia que ia ouvir a razão.
— Quando cansar de me azucrinar, vai devolver. Estou aprendendo seus
padrões. — Ela deu de ombros e se inclinou, no limite de invadir meu espaço
pessoal. — Assim como hoje naquele beco. Se quiser de novo, dessa vez não
adianta me provocar. Você vai ter que implorar.
Meus olhos se estreitaram, mas mantive a fachada. Não ia dar a ela a
satisfação de saber o quanto aquela provocação me afetava.
— Vai pensando que vou implorar! — rolei os olhos, tentando soar
despreocupada, embora minha respiração estivesse mais pesada do que eu
gostaria. — Idiota.
Lira sorriu, aquele sorriso carregado de algo que eu não conseguia decifrar
completamente.
— Você vai!
Afirmou, com uma convicção que parecia mais uma promessa do que uma
provocação. Então, antes que eu pudesse responder, Lira abriu a porta do
carro e saiu, me deixando sozinha.
Por um momento, fiquei ali, encarando o espaço vazio onde ela estava, as
palavras dela ecoando na minha mente. “Você vai ter que implorar.” Eu
deveria estar com raiva, irritada pela audácia, mas, em vez disso, uma
sensação estranha tomou conta de mim. Pensativa, passei a mão pelo cabelo e
soltei um suspiro longo.
— Maldita Zamorano!
☙❧
Lira Zamorano
A voz de Arturo ecoava pela sala de reuniões, firme e metódica como
sempre. Ele falava sobre logística, acordos futuros com aliados
internacionais, e as vantagens que a união dos dois cartéis já estava
começando a trazer. Eu sabia que deveria estar ouvindo. Deveria estar
anotando cada detalhe em minha mente, mas, em vez disso, estava presa em
um ciclo irritante, repassando os eventos de duas noites atrás.
Aquela maldita Ayra Arellano…
Minha mente estava a quilômetros dali, ou melhor, duas noites atrás, naquele
maldito beco.
Tentei focar na mesa à minha frente, nos documentos espalhados ali, mas
tudo que via era o rosto dela. Aqueles seus olhos castanhos, tão intensos
quando me desafiaram no beco. A forma como ela sorriu, aquele sorriso que
parecia dizer que estava adorando me tirar do controle. E o som... Deus, o
som. O jeito como ela suspirava e gemia, os lábios dela entreabertos, como se
tivesse sido feita para aquilo.
Eu me peguei repassando cada detalhe como se fosse uma fita quebrada. Eu
deveria estar furiosa. Na verdade, eu estava furiosa. Mas não era só isso. Era
pior. Muito pior. Pois eu sabia que queria mais.
Fechei os olhos por um momento, tentando expulsar a memória do calor do
corpo dela, ou a maneira como ela ficou linda quando a virei no capô do
carro. Eu me lembrei claramente de como segurei seus pulsos atrás das
costas, enquanto estava completamente vulnerável.
Havia algo sobre o jeito como Ayra me olhou naquele momento, desafiadora,
mas entregue, que não consegui tirar da minha cabeça desde então. Aquilo
me deixou literalmente fervendo, e eu a quis para mim, ter aquela mulher
parecia a única coisa na minha mente naquele instante.
— Lira, está ouvindo? — A voz de Arturo cortou meus pensamentos como
uma faca.
— Sim, sim… — Menti, endireitando minha postura e tentando ignorar o
calor que subia pelo meu rosto. — É claro!
Ele me lançou um olhar inquisitivo, mas não insistiu e continuou a falar.
— Como eu dizia, o acordo com os italianos deve ser confirmado na próxima
semana. Lyza Ferraro quer números mais detalhados sobre os lucros do
território compartilhado.
Ele fez uma pausa, observando minha reação. Eu assenti mecanicamente, mas
meus pensamentos voltaram a vagar… Aquilo era ridículo. Eu nunca fui de
perder o foco. Meu pai me treinou para ser fria, calculista, para manter minha
cabeça no lugar, não importa a situação. Mas a Arellano parecia ter
encontrado um atalho direto para me desmontar.
O acordo. O casamento. Toda essa união entre os cartéis. Na qual eu deveria
estar pensando, simplesmente entrou em segundo plano. Era como um pano
de fundo desbotado. A única coisa na minha mente era Ayra Arellano.
Devia ser algum tipo de feitiço ou veneno. Eu não conseguia parar de reviver
aqueles momentos, ou a sensação de como foi segurar aquele corpo, o som
dos gemidos dela escapando no meu ouvido, ou o gosto dos seus beijos,
mesmo quando tentava resistir. Era enlouquecedor.
Eu respirei fundo, tentando afastar a lembrança, mas era inútil. Aquela cena
estava gravada na minha mente de forma tão nítida que parecia impossível
ignorá-la…
— Acha que conseguimos confirmar os números até lá? — Arturo perguntou,
e eu percebi que ele esperava uma resposta.
— Claro. — Respondi, tentando soar segura.
Ele assentiu e continuou, enquanto eu me esforçava para manter a
compostura. Apertei os dedos contra o braço da cadeira, como se isso
pudesse ancorar minha mente à conversa em andamento. Arturo falava algo
sobre os detalhes do transporte de mercadorias, mas suas palavras pareciam
distantes, abafadas pelo tumulto na minha cabeça.
Eu precisava tirar a Ayra do meu sistema. Precisava de alguma maneira
esquecer o que aconteceu naquele beco, esquecer como ela me olhou, como
me desafiou, como se atreveu a me deixar assim... vulnerável a ela.
Fiquei muito tempo sem uma parceira. Só podia ser isso. Uma abstinência
prolongada misturada com a constante proximidade de alguém tão...
irritantemente linda e magnética como Ayra Arellano. Era só isso, claro.
Nada mais.
Respirei fundo, meu olhar caindo nos papéis sobre a mesa, enquanto Arturo
continuava falando, aparentemente alheio à minha distração. E assim eu
decidi que cuidaria dessa situação naquela noite.
☙❧
A música abafada preenchia o corredor enquanto eu passava pela entrada
discreta do clube. Havia algo reconfortante em voltar ali, um lugar que
parecia tão distante da minha vida atual. O Clube de Encontros LEXUS era
um refúgio para muitos, discretamente sofisticado, com uma atmosfera de
exclusividade e mistério.
O Clube não era apenas um lugar para flertes ou conexões físicas; era onde as
máscaras sociais caíam, e cada um podia ser exatamente quem quisesse.
Seu interior era tão elegante quanto eu lembrava. Luzes âmbar suaves
iluminavam o espaço, refletindo nas paredes de veludo vinho. O cheiro era
uma mistura de perfumes caros e algo mais sutil, quase como especiarias
exóticas. Pequenas cabines circulares com cortinas semi abertas estavam
espalhadas pelo salão, cada uma prometendo privacidade para quem
desejasse. No centro, um bar de mármore preto cintilava sob a luz,
comandado por bartenders impecáveis que pareciam tão parte do cenário
quanto os próprios frequentadores.
Eu não vinha aqui há algum tempo. Talvez porque minha vida havia se
tornado muito mais complexa. Mas hoje, precisava de algo familiar, algo que
me lembrasse de quem eu era antes de tudo isso. Antes das minhas
responsabilidades com o acordo do Cartel. Antes dela.
Paola, a dona do clube, me viu antes que eu pudesse encontrá-la. Ela emergiu
com seus longos cabelos escuros, de um canto mais reservado, usando um
vestido preto justo que exalava autoridade e charme. Seu sorriso era largo e
genuíno, exatamente como sempre fora.
— Lira Zamorano! — Ela exclamou, abrindo os braços para me envolver em
um abraço caloroso. — Finalmente resolveu sair da caverna. Eu quase não te
reconheci!
— Paola. — Sorri, permitindo que ela me puxasse para perto. — Não mudei
tanto assim.
— Oh, querida, mudou sim. — Ela se afastou apenas o suficiente para me
olhar, os olhos escuros avaliando cada detalhe. — Você tem uma aura
diferente agora.
— São os negócios. — Dei de ombros, tentando não dar muito espaço para a
conversa se aprofundar.
— Negócios ou... noivado? — Paola ergueu uma sobrancelha perfeitamente
desenhada, e senti meu corpo tencionar. — Ouvi falar…
— Então você ouviu. — Respondi, tentando manter o tom casual enquanto
seguíamos para o bar.
— Claro que ouvi. — Paola riu, pedindo dois coquetéis, sem sequer
perguntar se eu queria. — Não é todo dia que uma das maiores herdeiras do
México decide se casar, ainda mais com... Ayra Arellano.
— E o que exatamente isso significa? — Perguntei, arqueando uma
sobrancelha enquanto me recostava na banqueta alta.
— Significa que eu nunca pensei que veria você se amarrando a ela, sua
grande inimiga. — Paola respondeu, entregando-me o copo. — Vocês duas
são um desastre esperando para acontecer.
— Não tenho escolha. — Respondi, mais fria do que pretendia. — É um
movimento estratégico.
Paola riu suavemente, balançando a cabeça enquanto tomava um gole de sua
bebida.
— Estrategicamente arriscado, você quer dizer. Ayra não é exatamente
conhecida por ser... estável.
Suspirei, mexendo o líquido âmbar no copo.
— Sei disso melhor do que ninguém. Mas não tenho opções.
— Bom, eu só posso desejar que tenha boa sorte. — Paola apontou,
inclinando-se um pouco mais perto. — Mas o que fez você voltar ao clube,
Lira?
Olhei ao redor, o ambiente vibrando com a energia familiar de encontros,
risadas e conexões físicas rápidas. Eu queria mudar de assunto, evitar a
conversa sobre Ayra.
— Quero apenas me divertir — Admiti, dando de ombros. — Talvez
relembrar os velhos tempos!
Paola sorriu, mas não era um sorriso gentil desta vez, tinha um toque de
malícia. Ela sabia bem o que eu gostava, o que eu procurava quando queria
me divertir.
— Talvez você não tenha mudado tanto assim mesmo.
Ela brindou comigo, e eu encarei o líquido no meu copo por um momento
antes de beber em um grande gole. O calor do álcool desceu suave, mas
firme, como eu precisava. Paola sorriu, satisfeita, como se soubesse que havia
acertado em cheio com suas palavras.
— O que tem para me apresentar essa noite? — indaguei, sem rodeios,
deixando claro que minhas intenções eram exatamente o que ela já devia
imaginar.
Paola arqueou uma sobrancelha, seu sorriso se ampliando.
— Ah, você chegou em um dia ótimo. — Ela deu uma piscadela
conspiratória, levantando-se do banquinho com a elegância que só ela tinha.
— Tenho uma garota energética, que vale por duas!
A minha curiosidade deveria ter sido inflamada, como nos velhos tempos.
Mas não foi o caso.
— Se você diz — dei apenas um aceno.
— Confie em mim, Lira. Você vai gostar!
Paola acrescentou, o tom de voz ligeiramente provocador, e se afastou. Meus
olhos não puderam evitar vagar pelo ambiente, tentando identificar quem
seria essa “garota energética” que Paola parecia tão confiante em apresentar.
Enquanto esperava, percebi que minha mente começava a desviar para Ayra
novamente. Ela também era uma mulher energética, até demais. Droga… era
irritante como ela invadia meus pensamentos até nos momentos em que eu
tentava me desconectar. Talvez fosse exatamente por isso que eu precisava
estar aqui. Talvez a solução para me livrar dessa obsessão estivesse no que
Paola tinha reservado para mim esta noite.
Respirei fundo, forçando-me a afastar a imagem de Ayra e a me focar no
momento. A última coisa que eu precisava era carregar a sombra dela para
esse lugar.
Foi então que Paola voltou, trazendo uma garota ruiva de aparência quase
angelical, mas vestida para matar. O vestido vermelho justo abraçava suas
curvas, destacando pernas longas e uma confiança que parecia natural. Seus
olhos verdes brilharam naquela meia luz, assim que pousaram em mim, e o
sorriso provocante que ela lançou indicava que sabia exatamente o efeito que
causava.
— Lira, essa é Micaela. — Paola disse, um toque de diversão na voz. —
Mica, essa é Lira Zamorano, minha cliente mais exigente.
— Um prazer finalmente conhecê-la. — A voz de Micaela era suave, mas
carregava uma provocação deliberada enquanto ela se aproximava e estendia
a mão.
— Finalmente? — Arqueei uma sobrancelha, apertando sua mão com
firmeza.
— Ouvi muito sobre você. — Ela respondeu, seu sorriso se ampliando. — Ou
melhor, sobre a senhora.
A resposta me arrancou um sorriso curto enquanto voltava ao meu lugar no
bar. Paola nos deixou, me dando um aceno discreto. Micaela deslizou para o
banco ao meu lado com uma fluidez que mostrava que ela sabia como
capturar a atenção de alguém.
— Espero que tenha ouvido apenas coisas boas. — Retruquei, sinalizando
para o barman encher nossos copos.
— Algumas histórias interessantes, mas nada que eu não possa confirmar
pessoalmente. — Ela respondeu, inclinando-se levemente para mais perto. —
Assim eu espero, senhora.
Era um flerte descarado, e talvez em outra noite, eu teria mergulhado de
cabeça. Ainda mais, porque aquela menina parecia entender quais eram as
minhas preferências no clube, e como eu gostava de ser chamada pelas
minhas parceiras de cama. Mas enquanto ela falava, algo estava… errado.
Eu a olhei mais de perto, admirando o rosto impecável, a confiança em sua
postura. Era claro que ela era tudo o que Paola havia prometido. E ainda
assim, não conseguia evitar. Minha mente fez o que vinha fazendo com
frequência irritante nos últimos dias, voltou a Ayra. Então não pude evitar
uma comparação.
Mica, era bonita, sim, mas não tinha a intensidade dos olhos castanhos de
Ayra, aquele olhar que parecia despir você por inteiro sem pedir permissão.
Sua voz era provocante, mas não tinha o mesmo tom carregado de desafio
que fazia o meu sangue correr mais rápido nas minhas veias. Até mesmo o
jeito como ela sorriu para mim parecia sem graça, faltando aquela audácia
impulsiva que era tão característica de Ayra.
— Algum problema? — Micaela perguntou, inclinando a cabeça, claramente
percebendo meu silêncio.
— Não… — Respondi rápido, tomando um gole longo da bebida para
disfarçar. — Nenhum problema.
— Está me analisando demais. — Ela brincou, rindo suavemente. — Não
estou à altura das expectativas?
— Você está indo bem. — Respondi, mas havia um tom de distração na
minha voz. — Não se preocupe.
Micaela recuou levemente, talvez notando que algo estava errado. Eu sabia
que estava sendo injusta, mas simplesmente não conseguia me desligar da
comparação. Mesmo que quisesse evitar, Ayra estava ali, uma presença
invisível mas sufocante, dominando cada pensamento meu.
A ruiva parecia perfeita em qualquer outro cenário, mas, aos poucos,
enquanto conversávamos, ela foi empalidecendo aos meus olhos. Não por
algo que estivesse fazendo errado, mas porque, em minha mente, ela não era
Ayra.
Esse pensamento me atingiu como um golpe. O que, exatamente, estava
acontecendo comigo? Por que, em um momento que deveria ser sobre
esquecer, eu só conseguia me afundar ainda mais na lembrança dela?
Micaela colocou a mão sobre a minha, tentando reconquistar minha atenção.
— Acho que perdi você em algum lugar da conversa. — Ela disse com um
sorriso suave. — Posso te recuperar?
— Fique à vontade — Respondi, forçando um sorriso. — Faça o seu melhor!
Ela se inclinou, suas mãos pousando firmemente nas minhas coxas, os dedos
apertando levemente, como se quisesse me manter no lugar. Seus lábios,
macios e hábeis, se aproximaram dos meus com uma precisão ensaiada.
Quando Mica me beijou, havia algo calculado no movimento, uma sedução
premeditada.
O beijo era bom. Perfeito até. Seus lábios se moviam com destreza, uma
combinação de suavidade e firmeza que deveria ter sido suficiente para me
prender ali, naquele momento. Mas não foi.
Porque, enquanto ela me beijava, minha mente, teimosa, fez outra
comparação inevitável.
O beijo dela não tinha o gosto de fogo e caos que Ayra carregava. Não tinha a
audácia feroz que fazia meu coração acelerar, nem a imprevisibilidade que
me fazia perder o chão. Com Ayra, cada beijo era como um buraco negro que
ameaçava me engolir. Era bruto, quente, e carregava uma intensidade que
desafiava qualquer razão. Eu nunca sabia o que iria acontecer no minuto
seguinte.
Mica era gentil, quase cuidadosa, mas faltava a chama. Não havia aquele
toque de desafio, aquele jogo perigoso de poder que Ayra colocava em cada
gesto. Não havia aquele empurrão para fora da minha zona de conforto,
aquele puxão magnético que fazia eu querer mais, mesmo quando sabia que
não deveria.
Enquanto os lábios de Mica se moviam contra os meus, tudo que conseguia
pensar era no calor que faltava. Naquele desejo quase sufocante. No cheiro.
No gosto que não era o dela… Droga. Estava tudo errado.
Quando a moça se afastou, os olhos verdes dela brilharam com expectativa,
um sorriso satisfeito curvando seus lábios.
— E aí? — ela perguntou, claramente confiante. — Você gostou, senhora?
— Foi… bom. — Respondi, tentando soar convincente.
Mica sorriu, mas eu sabia que havia algo faltando ali. Não nela, mas em mim.
Porque, por mais que tentasse, ninguém parecia ser o suficiente quando Ayra
Arellano ainda queimava tão profundamente dentro de mim.
— Você tem um gosto divino… — Mica sussurrou, voltando a se aproximar.
Parte de mim queria afastá-la, mas me segurei. — Posso provar você de
novo?
Dei um aceno breve, tentando parecer indiferente, então ela roçou os lábios
nos meus. Fechei os olhos, tentando me concentrar, mas o grito de Mica
cortou o ar e me fez abri-los imediatamente.
A cena que encontrei era surreal. Ayra estava ali, do nada, agarrando Mica
pelo cabelo com uma expressão de pura fúria. Antes que eu pudesse reagir,
ela bateu o rosto da ruiva contra o balcão, com força suficiente para fazer a
bebida nos copos ao lado tremer.
— Eu vou te matar, Zamorano! — Ayra gritou, os olhos fixos nos meus,
transbordando raiva.
Antes que eu pudesse processar a ameaça, Ayra pegou um copo e o
arremessou na minha direção. Por puro reflexo, desviei, ouvindo o estilhaçar
de vidro no casal atrás de mim.
— Ayra! — Gritei, levantando-me, mas ela estava longe de ouvir.
Mica tentou se afastar, mas Ayra puxou seu cabelo novamente, jogando-a no
chão como se fosse um objeto descartável. A cena era tão caótica quanto
fascinante. Ayra marchou em minha direção, a fúria estampada em cada
movimento, como uma tempestade prestes a explodir.
Afastei-me, sentindo meu sangue ferver e meu coração disparar. Era loucura,
mas havia uma parte de mim que quase sorriu. Havia algo inexplicavelmente
vívido na presença de Ayra, algo que transformava qualquer momento em
algo mais intenso, mais… real.
— Ayra, pare com isso. — Tentei apaziguar a situação, mas ela não estava
ouvindo. Mais um copo veio voando na minha direção.
— Vou quebrar esse bar inteiro em cima de você! — Ela gritou, já pegando
outro copo, mas antes que pudesse lançar, três seguranças a imobilizaram,
segurando seus braços com força.
A visão deles colocando as mãos nela despertou algo em mim que eu não
sabia que existia. Uma raiva primitiva, possessiva.
— Soltem ela… — Rugi, avançando, minhas palavras ecoando pelo bar. —
Agora!
Os seguranças hesitaram, mas soltaram Ayra. Ela se virou para mim
imediatamente, com os olhos castanhos faiscando como fogo puro e porra…
ela parecia absolutamente linda. E então eu assistir ela agarrar a minha
camisa com força, me sacudindo.
— É sua despedida de solteira agora? — Ayra cuspiu, a raiva carregando
cada palavra. — Veio se divertir Zamorano?
— Você vive em festas e eu não posso?
Respondi, com provocação, sabendo que estava brincando com pólvora. Seus
olhos se estreitaram, e por um momento, o mundo ao nosso redor pareceu
desaparecer. Porém, antes que a Ayra pudesse responder, Mica a atacou,
claramente indo puxar seus cabelos.
Eu me movi mais rápido, colocando-me entre as duas, usando meu corpo
para proteger a Ayra. Ou talvez a Mica. Pois eu tinha certeza que a Ayra ia
simplesmente trucidar aquela pobre garota.
— Se afaste agora! — Gritei, minha voz ecoando pelo bar, sem me preocupar
em não chamar atenção, afinal todos ao redor estavam olhando. — Vai se
arrepender se continuar.
Mica tentou avançar novamente, mas segurei seus ombros com firmeza,
mantendo-a no lugar enquanto sentia Ayra logo atrás de mim. O calor do
corpo dela nas minhas costas contrastava com a tensão evidente nos músculos
de Mica.
— Ela começou! — Mica gritou, apontando para Ayra com raiva, mas havia
uma ponta de incerteza nos olhos dela. — O que ela é para você?
Antes que eu pudesse responder, Ayra deu mostrou a mão, por cima do meu
ombro, com o anel de noivado.
— Eu sou a noiva dela, sua vagabunda estúpida! — Ayra cuspiu as palavras,
tentando me empurrar para sair do caminho. — Sai da minha frente, Lira!
— Ah é… Se ela está aqui, deve ser porque você não consegue entretê-la…
— Mica respondeu com um deboche venenoso que fez o mundo parecer
tremer ao meu redor.
Não deu tempo de pensar. Ayra avançou como um furacão, empurrando-me
com força enquanto tentava alcançar Mica. Eu reagi no instinto, me virando e
agarrando Ayra, a segurando contra o meu corpo para evitar o caos completo.
— Me solte! Me solte agora, Lira! — Ayra gritou, o corpo dela se debatendo
com força.
— Não. — Respondi entre dentes, lutando para mantê-la sob controle. —
Você vai matar a menina.
— Está protegendo ela? — Ayra esbravejou, a voz quase rouca de tanta raiva.
— Essa vagabunda?
Ela tentou me atingir, estapeando o que conseguiu, os movimentos
desajeitados, mas ainda assim me agredindo com força.
— Pare com isso, Ayra! — Rosnei, tentando segurar seus braços enquanto
ela se debatia. — Isso dói!
— Eu vou te matar, Lira! — Ayra gritou, dando um tapa no meu rosto. —
Desgraçada.
Foi o suficiente.
— Basta! — Gritei de volta, cansada de lutar contra ela. — Acabou o show.
Sem pensar duas vezes, inclinei-me e a levantei nos ombros, ignorando os
protestos furiosos e os espasmos de resistência que ela fazia enquanto eu
avançava em direção ao corredor.
— Me põe no chão agora! — Ayra continuava a gritar, os golpes dela mais
fracos à medida que se desgastavam. — LIRA!
Paola apareceu no caminho, observando a cena com um sorriso que parecia
misturar diversão e descrença.
— Preciso de um quarto, ou ela vai destruir tudo aqui! — Falei, sem rodeios,
segurando Ayra firme enquanto ela continuava a protestar.
— Eu imagino. — Paola disse, ainda sorrindo. — Ela quebrou o nariz de um
dos meus seguranças para entrar.
— Ótimo. — Respondi com sarcasmo, enquanto Ayra esmurrava minhas
costas novamente. — Ayra, pare agora!
Paola estendeu uma chave rapidamente, vendo que eu não ia conseguir
manter a Ayra sob controle por muito tempo.
— É um quarto novo, nunca usado, no fim do corredor. Você sabe o
caminho.
Eu apenas assenti e segui em frente, carregando uma Ayra furiosa e tentando
ignorar os olhares curiosos ao redor. Naquele momento, tudo que queria era
jogá-la no quarto e acabar com aquele circo público.
Andei o mais rápido que pude, atravessando o corredor com passos firmes
enquanto carregava Ayra nos ombros. Seus protestos ininterruptos ecoavam
pelo espaço, mas ignorei, mantendo meu aperto firme. Meu coração batia
acelerado, mas me convenci de que era por raiva. Definitivamente não era
pela expectativa de estar sozinha com ela naquele quarto.
Ao chegar, empurrei a porta com o pé e entrei, fechando-a com um chute que
reverberou no silêncio. Sem pensar duas vezes, joguei Ayra na cama. Seus
protestos foram abafados pelo som do colchão cedendo sob o impacto, mas
ela não ficou ali por muito tempo.
Tranquei a porta, girando a chave com firmeza, sabendo que Ayra poderia
muito bem sair dali e causar mais confusão se não o fizesse. Quando me
virei, ela já estava de pé, ajeitando o vestido enquanto os olhos castanhos dela
faiscavam em pura fúria.
— O que diabos foi aquilo? — Gritei, apontando para ela, sem conseguir
segurar a raiva. — Você perdeu completamente o juízo?
— Eu perdi o juízo? — Ayra rebateu, sua voz aumentando enquanto ela dava
um passo em minha direção, como uma tempestade prestes a desabar. —
Você é quem estava se esfregando com aquela vadia, como se não fosse
noiva de alguém!
— É sério que está me cobrando “comportamento” quando você estava há
algumas semanas atrás fazendo a mesma coisa?
Minhas palavras a atingiram em cheio, e um sorriso cheio de arrogância
escapou dos meus lábios enquanto eu erguia a sobrancelha. Algo no jeito
como seus olhos se estreitaram e na forma como sua mandíbula travou me fez
querer provocá-la ainda mais.
— Eu não vou aceitar você com essas vadias. — Ayra avançou rápido,
parando tão perto que nossos rostos ficaram a centímetros de distância. Sua
respiração quente batia contra a minha pele. — Sou capaz de incendiar esse
lugar se você pisar aqui de novo.
— Acha que tem algum direito? — Sibilei, tentando manter a compostura,
mesmo quando senti meu coração acelerar ainda mais. — E pode incendiar o
que quiser. Eu posso ir a qualquer clube e ter qualquer mulher.
Os olhos dela brilharam de raiva, mas havia algo mais ali, algo mais perigoso
e viciante.
— Qualquer mulher? — Ayra repetiu, sua voz baixa e quase rouca, enquanto
inclinava a cabeça levemente, o tom carregado de desafio. — É mesmo?
— Sim,. — Respondi, com firmeza, mas minha voz saiu um pouco mais
áspera do que eu esperava. — Qualquer uma!
Ayra deu mais um passo, até que não havia mais espaço sequer para o ar
passar entre nós. Suas mãos deslizaram dos meus ombros até os meus braços,
firmes e cheias de intenção, deixando claro que ela não planejava recuar.
— Mas você não quer qualquer uma, quer… — Ela murmurou, a voz baixa,
sedutora. Seus olhos fixaram nos meus com uma intensidade que quase me
fez perder o fôlego. — Não é mesmo, Zamorano?
Lutei para manter a minha respiração compassada. Minha mente era um
campo de batalha entre o impulso de afastá-la e a vontade perigosa de me
entregar. Havia algo nela, algo magnético e devastador, que fazia minha
resistência ruir como areia.
Antes que pudesse responder ou reagir, Ayra sorriu de canto, aquele sorriso
diabólico que era tão provocador quanto devastador. E então, com um
movimento rápido e preciso, ela nos girou e me empurrou para trás. O
impacto da cama contra minhas costas foi a próxima coisa que senti.
Ayra se posicionou sobre mim, sentando-se no meu colo com uma confiança
predatória que me deixou sem palavras. Suas coxas apertaram as minhas,
prendendo-me no lugar, enquanto suas mãos pousaram ao lado da minha
cabeça, me cercando completamente.
— Sabe o que eu acho? — Ayra inclinou-se, sua voz um sussurro perigoso
contra a minha orelha. — Acho que você quer brincar com fogo, mas nunca
teve coragem.
Sua respiração quente contra minha pele, o peso dela contra meu corpo, tudo
era uma combinação sufocante e intoxicante. Minhas mãos instintivamente
subiram para segurar sua cintura, mas Ayra foi mais rápida, agarrando meus
pulsos e os pressionando contra o colchão, mantendo-me imobilizada.
— Eu mando aqui, Lira. — Ela sorriu novamente, seu rosto tão próximo que
eu podia sentir o calor de cada palavra. — Essa noite vou mostrar o que é
fogo de verdade.
Seu rosto desceu mais, e nossos lábios ficaram tão próximos que eu quase
pude sentir o seu gosto. Era vertiginoso, era insano, e eu apenas queria ela
mais perto.
— Tem certeza disso? — Murmurei, desafiadora, minha voz saiu mais rouca
do que pretendia. — Eu sou bem exigente.
Ayra inclinou-se mais, o suficiente para que seus lábios roçassem os meus,
sem realmente me beijar. A essa altura meu batimento cardíaco era uma
bagunça total, tornando indisfarçável o quanto aquela desgraçada gostosa
estava me afetando.
— Quer que eu prove? — Ela sussurrou, a ameaça e o convite dançando na
mesma frase, enquanto suas unhas cravaram de leve nos meus pulsos. —
Quando eu terminar com você, nunca mais vai pensar em outra mulher!
A tensão era tão densa que parecia quase tangível. E, naquele momento,
percebi que não importava mais nada. Tudo se dissolveu quando Ayra
finalmente mergulhou em mim, capturando meus lábios com os dela.
Minha mente simplesmente derreteu ao sentir o gosto doce dos seus lábios.
Seu beijo não tinha nada de suave ou hesitante. Ela me segurou, prendendo os
meus pulsos com mais força, enquanto a sua boca tomou a minha.
Aquele era um beijo voraz, possessivo, carregado de tudo o que ela parecia
guardar dentro de si. Desde raiva, desejo, provocação, e algo mais profundo
que eu não conseguia nomear. Suas mãos deslizaram pelos meus pulsos,
libertando-os, enquanto deslizou até meu pescoço.
Eu a puxei para mais perto, minhas mãos cravando-se na curva de sua
cintura. Então Ayra gemeu, rebolando em cima de mim, sorrindo ao mesmo
tempo que continuava a me beijar. Sua língua explorava minha boca com
uma ousadia que não pedia permissão, que simplesmente tomava. E, de
algum modo, eu não queria que parasse.
Ayra inclinou o corpo, pressionando o peso dela contra o meu, até que eu
estivesse completamente subjugada sob ela. Senti suas mãos subirem pelo
meu rosto, segurando minha mandíbula de um jeito firme, como se eu fosse
dela, sua para qualquer coisa, enquanto ela aprofundava o beijo.
Quando finalmente nos afastamos, ambas estávamos ofegantes. Seus olhos
castanhos estavam mais escuros, queimando como brasas, enquanto ela me
olhava com uma mistura de triunfo e algo que parecia… curiosidade?
— Vou acabar com você. — Ela murmurou, a voz rouca, seus lábios ainda
perigosamente próximos dos meus. — E vai implorar por mais…
Minhas mãos ainda estavam na cintura dela, mas apertei mais forte, minha
mente girando
— Ayra… — Minha voz saiu mais fraca do que eu gostaria, e seus olhos
brilharam com a mesma intensidade de antes.
Ela sorriu, aquele sorriso de quem sabia que tinha ganhado. Antes que eu
pudesse responder, ela inclinou-se novamente, roçando os lábios nos meus
como um lembrete do que ela já tinha tomado. Eu deveria ter parado. Deveria
ter empurrado ela, ter dito algo para quebrar aquela dinâmica que estava nos
engolindo. Mas, ao invés disso, tudo que fiz foi puxá-la de volta para mim,
porque a verdade era simples: eu não queria parar.
A beijei como se não houvesse amanhã, mergulhando naquele momento com
uma intensidade que nem eu sabia ser capaz. Ayra deslizou a mão pela minha
camisa, desabotoando os botões com uma rapidez impressionante, os dedos
ágeis e decididos. Eu ajudei, me inclinando ligeiramente para frente, sem tirá-
la do meu colo.
Quando ela empurrou a jaqueta e a camisa pelos meus ombros, tudo foi parar
em algum lugar do quarto, um canto esquecido que eu não dava a mínima
para encontrar. Sua boca continuava colada na minha, os movimentos
impetuosos e provocantes, enquanto as mãos dela exploravam minhas costas.
O toque dela era um incêndio que se espalhava por todo o meu corpo, cada
movimento das suas mãos despertava algo em mim que eu não conseguia
controlar. Soltei um gemido abafado contra sua boca, minhas mãos
deslizando para sua cintura e subindo até sua nuca, puxando-a ainda mais
para mim, quase fundindo nossos corpos.
Eu estava louca. Intoxicada. O gosto dela era inebriante, o cheiro que vinha
da sua pele me entorpecia, e o toque… Minha nossa, o toque, estava me
destruindo. Ayra sorriu contra meus lábios, aquele sorriso maldito que eu
podia sentir mais do que ver. Então, com um movimento deliberado, ela
mordeu meu lábio inferior, o suficiente para provocar, mas não machucar.
— Eu vou fazer você ficar viciada em mim, Zamorano. — Ela murmurou
contra a minha boca, a voz baixa e rouca, enquanto seus dedos deslizavam
pelas alças do meu sutiã, abrindo-o com destreza. — Só em mim…
Meu coração disparou com suas palavras, mas não havia mais espaço para
discussão. Apenas a necessidade crua de continuar, de tê-la mais perto, mais
fundo.
Eu agarrei seu cabelo, puxando a sua cabeça para trás, deslizando meus
lábios pela curva do seu pescoço, sentindo sua respiração acelerar. Ayra
apertou as mãos em meus ombros, como se também precisasse de algo para
se segurar enquanto nos perdíamos uma na outra.
Desejando mais, eu movi minhas mãos, agarrando a barra do seu vestido. Eu
puxei para cima, tirando aquela peça, e quase morri quando vi a lingerie
vermelha que ela usava. Aquilo só poderia ser para me enlouquecer.
Entretanto, não pude admirar por mais muito tempo, pois Ayra me empurrou
na cama.
— Quietinha agora! — Ayra me deu um sorriso diabólico, antes de deslizar
as mãos pelos meus seios. Eu gemi. — Vamos brincar Zamorano.
Ayra se inclinou beijando meu pescoço, descendo, enquanto eu permiti
agarrando os lençóis. Eu olhei para baixo, vendo ela descer mais, até sua
boca capturar um dos meus mamilos e beliscar o outro.
— Porra, Ayra. — minhas costas descolaram do colchão, mas Ayra me
manteve no lugar. Seus olhos encararam os meus com pura ordem.
— Quieta, Lira…
Ela sussurrou contra a minha pele, a voz rouca e carregada de uma malícia
que fez meu corpo inteiro se arrepiar. Ayra capturou meu mamilo entre os
lábios, sugando-o com uma provocação deliberada.
Meu corpo reagiu imediatamente, um arrepio percorrendo minha espinha
enquanto ela continuava, a língua dançando em círculos lentos e calculados.
Mordi o lábio, tentando não gemer alto, mas a provocação dela era
incessante, como se soubesse exatamente o que estava fazendo comigo.
Quando seus lábios se afastaram, deixaram um rastro de beijos pela minha
pele, descendo lentamente pelo meu abdômen. Cada toque, cada beijo era
uma mistura perfeita de suavidade e intenção.
— Gosto disso! — Ayra murmurou, seus lábios roçando sobre os gomos do
meu abdômen, o tom dela carregado de admiração e desejo.
Minha respiração ficou mais pesada quando a senti mordiscar levemente,
provocando-me ainda mais. Sua língua traçou uma linha pelo contorno dos
meus músculos, enquanto suas mãos seguravam firme na minha cintura, me
mantendo no lugar.
— Claro que gosta… — murmurei, tentando manter o tom firme, mas minha
voz falhou levemente, traindo o impacto que ela estava causando em mim. —
Ayra…
Ayra riu contra minha pele, o som baixo e satisfeito, antes de voltar a
explorar com os lábios. Ela brincou no cós da minha calça, mas foi apenas
uma provocação, antes de puxar a peça para baixo me deixando apenas de
calcinha. Ela beijou o interior da minha coxa, não ousei falar, porque
sinceramente não tinha estabilidade.
Ela levantou o rosto por um instante, os olhos castanhos fixando-se nos meus
com uma intensidade que me deixou sem fôlego. Não havia palavras, apenas
aquela conexão crua e inexplicável, como se ela estivesse me desafiando a
desviar o olhar.
Antes que eu pudesse processar, senti suas mãos firmes deslizarem pelas
minhas coxas, afastando o tecido da minha calcinha com uma precisão
calculada. Um segundo depois, Ayra abaixou-se novamente, e o calor dos
seus lábios me atingiu no centro das pernas.
Arqueei as costas instintivamente, um gemido escapando da minha garganta
antes que eu pudesse contê-lo. O toque dos seus lábios, em seguida a sua
língua, era avassalador, um misto de controle e habilidade, como se soubesse
exatamente onde e como provocar cada reação minha.
Minhas mãos agarraram o lençol com força, tentando encontrar algum tipo de
ancoragem enquanto ela continuava. Ayra me mantinha no lugar, sua língua
me deixando maluca, enquanto meu quadril reagia por vontade própria. Ela
brincava com meu clítoris, provocando e parando, num padrão
enlouquecedor.
O mundo ao redor desapareceu completamente; só existia Ayra e o jeito
como ela estava me desmontando, pedaço por pedaço, até que eu não fosse
capaz de pensar em mais nada. Ela parou por um momento, apenas para me
olhar de novo, seus olhos brilhando com uma satisfação perigosa.
— Eu permito que você goze — murmurou, sua voz rouca e cheia de
malícia. — Venha agora, Lira, na minha boca…
Eu não consegui responder. Não tinha palavras. Apenas um gemido quebrado
enquanto Ayra me atacou novamente e dessa vez ela realmente queria me
destruir. Ayra me levou ainda mais fundo naquele abismo que eu nem sabia
que existia. Ela usou a sua língua, me penetrando, indo e vindo, depois me
chupando, e o padrão, junto com os seus sons me acabou.
Eu gritei, minhas costas arqueando, enquanto apertei as coxas, tremendo ao
ter o orgasmo mais gostoso da minha vida.
Fechei os olhos, respirando com força, sentindo todo meu corpo pesado. Eu
só ouvia o som da minha respiração, com o meu coração, mas consegui
registrar quando Ayra se moveu. Ela subiu pelo meu corpo, deitando-se em
cima de mim e senti um toque gentil entre as minhas pernas.
— Você está tão molhada, noivinha… — Ayra sussurrou no meu ouvido, a
voz rouca e carregada de provocação, enquanto seus dentes mordiscavam
levemente o meu lóbulo. — Está pronta para ser minha!
A minha mente se apagou. Qualquer tentativa de formular um pensamento
coerente foi completamente destruída no instante em que senti seus dedos
deslizando para dentro de mim com precisão. Dois dedos, firmes e hábeis,
penetraram-me, arrancando um grito que se transformou em um gemido
profundo.
Meus olhos se abriram de repente, encontrando os dela. Ayra estava nua
sobre mim, sua pele quente pressionada contra a minha, os cabelos caindo
levemente sobre o rosto enquanto ela me olhava com uma intensidade
devastadora. Antes que eu pudesse reagir ou dizer qualquer coisa, ela
inclinou-se, tomando meus lábios.
O beijo era uma mistura de luxúria e domínio, cada movimento dela era um
lembrete de que eu estava completamente à mercê dela naquele momento. O
seus dedos me penetrando rapidamente, mas sempre roçando meu clítoris,
aumentando o nível de tensão do meu corpo já muito sensível.
Sua língua explorava a minha boca com a mesma destreza que seus dedos
exploravam meu corpo, me deixando incapaz de pensar, apenas sentir. Meu
corpo arqueou contra o dela, meus braços envolvendo sua cintura, puxando-a
ainda mais para perto. Ayra continuava, os movimentos dela dentro de mim
ritmados e precisos, enquanto seus lábios não me davam trégua, engolindo
todos os meus gemidos.
— Venha para mim, Lira…
Ayra sussurrou, as palavras abafadas pelos nossos lábios, sua voz uma
mistura de ordem e sedução que fazia meu corpo inteiro reagir. Seus
movimentos tornaram-se mais rápidos, mais intensos, e minha mente
começou a se dissolver em ondas de calor que varriam qualquer resquício de
controle que eu ainda pudesse ter.
Cada toque, cada investida me levava mais fundo, para um lugar onde tudo
parecia um borrão. O mundo desapareceu completamente, deixando apenas o
calor do seu corpo contra o meu, a pressão exata de seus dedos e a
intensidade daquele momento que parecia infinito. Só havia Ayra para mim.
Só ela.
Minha respiração tornou-se ofegante, cada gemido escapando antes que eu
pudesse contê-lo, enquanto meu corpo atingia o limite. E então, como uma
explosão inevitável, eu me entreguei completamente. Meu clímax chegou
como uma onda avassaladora, dizimando-me.
Ayra continuava a me beijar, sem parar de me tocar, prolongando cada onda
de prazer que percorria meu corpo. Mesmo assim, meus olhos buscaram os
dela, aqueles castanhos escuros que pareciam querer me devorar inteira. Era
difícil focar no que estava ao nosso redor, o quarto havia desaparecido, mas o
que consegui registrar foi o sorriso que ela me deu.
Um sorriso que parecia suave demais para Ayra Arellano, como se estivesse
fora de lugar, mas ao mesmo tempo, certo demais.
— Acabei com você, não é mesmo? — Ela murmurou, a voz rouca e
carregada de uma satisfação evidente.
— Hum… — tentei responder, mas minha voz falhou miseravelmente. Ayra
riu, um som rouco e delicioso, que fez meu estômago se contrair com um frio
inesperado. Tentei de novo. — Está pensando que acabou?
Eu fechei os olhos, tentando recuperar o controle por um segundo, mas
quando os abri, ela ainda estava ali, sorrindo com aquele ar diabólico. Ela se
moveu, seus dedos deixando minha pele enquanto ela subia pelo meu corpo,
posicionando-se de quatro sobre mim, os cabelos caindo em torno do rosto,
criando sombras que acentuavam ainda mais sua beleza sufocante.
— Será que dá conta? — Ela inclinou-se, os lábios próximos ao meu ouvido,
enquanto suas mãos deslizavam pelo meu corpo novamente. — Aposto que
ninguém nunca te pegou desse jeito. Não é, “senhora controle”?
A provocação na voz dela me fez arder. Minhas mãos instintivamente
subiram para segurar sua cintura, e meu olhar encontrou o dela.
— Não me subestime, Arellano. — Sibilei, apesar do meu tom mais rouco do
que o planejado. — Pode ser que eu pegue pesado com você.
Ayra arqueou uma sobrancelha, o sorriso dela se ampliando como se eu
tivesse acabado de fazer a aposta que ela mais queria ouvir.
— Então pegue pesado… — Ela sussurrou, descendo lentamente, os lábios
roçando na minha pele e me encarando. — Pegue pesado comigo, babe.
Aquela provocação em forma de apelido inflamou meu corpo novamente. Eu
me movi, virando o jogo, colocando Ayra sob meu poder agora. Seus olhos
brilharam, como se a minha reação inflamasse a ela também, e ela pareceu
gostar ainda mais quando segurei seus pulsos ao lado da cabeça.
— Muito bem. Você merece que eu pegue pesado… — Eu esfreguei seus
pulsos, sem tirar os olhos dos seus. — Talvez eu deva espancar essa sua
bunda gostosa pela bagunça que fez.
— Eu faria tudo de novo!
Ayra respondeu, a provocação evidente no sorriso travesso que ela lançou
para mim, os olhos castanhos brilhando com pura malícia. Parte de mim
deveria estar irritada com o desafio, mas outra parte gostava disso.
Lutando pelo meu controle, decidi que não lhe daria espaço para comandar.
Meus olhos caíram nas algemas presas na cabeceira da cama, e uma ideia
perigosa se formou. Sem hesitar, agarrei as algemas, e antes que Ayra
pudesse reagir, prendi seus pulsos no metal frio acima da cabeça.
Ela não resistiu. Pelo contrário, o sorriso dela se ampliou, e seus olhos
brilharam com um misto de diversão e excitação. Ela estava gostando daquele
jogo. Maldita.
Inferno… Ela estava linda assim, completamente entregue, o corpo nu à
minha disposição. Meu olhar percorreu cada centímetro dela. Seus seios
redondos, com os mamilos rosados, enrijecidos e convidativos, moviam-se
suavemente a cada respiração pesada. Sua cintura fina parecia feita para caber
perfeitamente nas minhas mãos, e aquelas coxas torneadas ao meu redor,
firmes e provocantes, fazem meu sangue ferver.
E então meu olhar caiu mais, até seu sexo, exposto e claramente molhado, o
tom rosado contrastando de forma perfeita com a pele clara dela. Um desejo
avassalador tomou conta de mim, como uma onda impossível de controlar.
— Olhe para você… — Murmurei, abaixando-me para beijar sua clavícula,
enquanto minhas mãos deslizavam pela curva da sua cintura. — Pronta para
ser domada, Arellano?
— Tente sua sorte, Zamorano.
Ayra sussurrou, sua voz rouca e desafiadora, apesar de estar algemada e à
minha mercê. Ela arqueou as costas levemente, como se me convidasse a
continuar, e eu não hesitei. Afinal, ela havia pedido por isso.
Traço um caminho molhado com meus lábios até seus seios, pegando um
mamilo rosado entre meus dentes, sugando logo em seguida até ele ficar
duro, enrijecido. Ayra não esconde seu gemido, e seu corpo se ergue na
direção do meu, como se pedisse mais. Então eu repito o processo no outro
mamilo, fazendo isso se tornar um padrão, até eu deixar ela completamente
vermelha é definitivamente excitada.
De repente me afasto, observando a minha obra de arte. A pele dela é tão
sensível. Ayra olha para mim, seu olhar vidrado, ela puxa as mãos das
algemas, como se tivesse esquecido que estava presa.
— Não ouse parar… — Ela diz, a voz rouca de desejo. — Eu atiro em você
se não continuar.
Um sorriso satisfeito se estende em meus lábios. Ergo meu corpo, deixo as
minhas mãos deslizar pela pele dela, na lateral do seu corpo e descendo. Ayra
é tão linda. A percepção que tenho dela completamente para mim ali me
perturba de um jeito traiçoeiro. Eu sinto uma necessidade de marcar, de
possuir, de tela inteira.
Meus dedos traçaram a cicatriz entre suas costelas, a marca que deixei nela
com minha própria lâmina. Senti uma pontada de culpa, mas também algo
visceral, e que tive medo de nomear. Quando meu olhar desceu um pouco
mais, notei outra cicatriz, a que ela levou naquela emboscada, que
indiretamente foi causada por mim.
E então, aquela necessidade primitiva voltou com força, me consumindo. A
necessidade de marcá-la, de possuir, de tê-la completamente.
— Admirando as cicatrizes? — Ayra quebrou o silêncio com a provocação
de sempre, sua voz carregada de desafio. — Tenho outra atrás da coxa, se
quiser ver. Mas saiba que estou ficando impaciente com seu…
Ela parou de falar abruptamente quando me inclinei, pressionando um beijo
suave sobre a cicatriz na sua cintura. Seu corpo ficou tenso sob o meu toque,
mas ela não se moveu, não recuou. Subi sua coxa, erguendo-a levemente, e
depositou outro beijo ali, sobre a marca.
Quando ergui o olhar, encontrei seus olhos castanhos fixos em mim, mas algo
havia mudado. A provocação habitual deu lugar a algo mais… Confusão.
Ayra parecia perdida, como se não entendesse o que eu estava fazendo ou por
que eu estava fazendo.
— Essas cicatrizes são minhas. — Minha voz saiu firme, mas baixa, quase
como uma confissão. Inclinei-me sobre ela até que nossos rostos ficassem a
centímetros de distância. — E são as últimas cicatrizes que eu deixei em
você. Por mais que eu pegue pesado, Ayra, nunca vou te machucar assim de
novo. Porque você é minha, e eu protejo o que é meu.
Ela engoliu em seco, os olhos brilhando com uma mistura de surpresa e algo
que eu não conseguia decifrar.
— Se eu não vou poder ter outras mulheres, será bom que entenda uma coisa.
— Continuei, fechando qualquer distância entre nós. — Você será a minha. E
eu vou matar qualquer um que você ousar olhar de forma que me desagrade.
Entendeu?
Ayra piscou, claramente processando o que eu acabara de dizer. E então, para
minha surpresa, um sorriso pequeno e perigoso surgiu em seus lábios.
— Está me dizendo que vamos ter um casamento real?
— Não, estou dizendo que vamos ter sexo real. — Respondi, seca, mas com
uma sinceridade que não podia ser negada. — O resto não importa. Mas na
cama, você é minha, e eu sou sua. Assim vamos sobreviver a essa prisão que
nos condenaram.
Ayra não hesitou. Em um movimento ágil, ergueu o rosto e roubou um beijo
dos meus lábios. Foi rápido, mas carregado de intenção, um beijo que parecia
selar um pacto sombrio entre nós.
— Então, será bom oficializar. — Ela sussurrou contra minha boca, o sorriso
de desafio voltando ao seu rosto. — Me fode, Lira Zamorano!
☙❧
Ayra Arellano
— Me fode, Lira Zamorano!
Lira me encarou, os olhos cinza brilhando de uma forma que eu não
conseguia identificar. Todavia, algo havia mudado. Eu via intensidade ali,
uma possessividade que me deixava sem ar. Era a primeira vez que Lira
falava com tanta clareza sobre o que queria, o que sentia, e isso mexia
comigo de um jeito que eu não sabia lidar.
Sem aviso, Lira se inclinou, prendendo meus pulsos algemados contra a
cabeceira da cama, a força dela me deixando completamente subjugada.
O que veio a seguir foi um caos perfeito. Lira desceu os lábios pelo meu
pescoço, mordendo e chupando com uma intensidade que me arrancou
gemidos involuntários. Ela definitivamente queria me marcar, queria provar
algo, e o que quer que isso fosse, me deixava excitada.
Eu queria cada marca dela. Eu queria cada mísero som que Lira fazia quando
me tocava. Era tão sexy. Ela era a coisa mais sexy que eu já tinha visto e tão
linda que não parecia real.
Aquele corpo torneado, cheio de força e os músculos no lugar certo. Aqueles
seios perfeitos amassados contra o meu corpo, a qual eu queria voltar a tê-los
na minha boca, brincar com os seus mamilos cor de vinho. Assim como
queria voltar a agarrar aquelas coxas firmes, enquanto chupava seu sexo liso,
perfeito com ela totalmente molhada.
Entretanto, nesse momento, eu era o banquete da Lira. Ela se moveu com
uma determinação que me deixou sem palavras.
Suas mãos apertaram minhas coxas, firmes, abrindo-as com uma confiança
inabalável, e eu não consegui fazer nada além de me render. Sua boca desceu
lentamente, deixando um rastro quente de beijos e mordidas pela minha pele,
cada toque me incendiando ainda mais.
Olhei para baixo, meu peito subindo e descendo rápido, e encontrei os olhos
cinzas de Lira fixos em mim. Eles tinham um brilho intenso, carregado de
algo quase primitivo. Foi como se ela estivesse me devorando com o olhar
antes mesmo de me tocar de verdade.
— Minha vez de provar você… — Ela murmurou, a voz baixa e rouca, como
uma promessa. — Até você gritar por mim.
Antes que eu pudesse reagir, sua boca encontrou meu sexo, e tudo dentro de
mim explodiu. Meu corpo arqueou contra ela, as mãos agarrando as algemas
com tanta força que pensei que as quebraria. Eu joguei minha cabeça para
trás gemendo sem nenhuma vergonha.
A sensação era avassaladora, cada movimento da língua dela, cada beijo,
cada pressão, era calculado para me levar ao limite. Lira não hesitou,
explorando cada parte de mim como se estivesse determinada a me deixar
sem chão.
Meus gemidos escaparam sem controle, o som abafado pela intensidade do
momento. Senti suas mãos firmes segurando minhas coxas, mantendo-me
aberta para ela, e seu olhar subia para encontrar o meu de tempos em tempos,
como se quisesse garantir que eu visse exatamente quem estava me
dominando.
— Lira… — sussurrei, a voz falhando, enquanto meu corpo tremia sob ela.
— Ah, Lira…
Ela não respondeu com palavras, apenas intensificou o ritmo, me puxando
cada vez mais para perto de um abismo do qual eu sabia que não queria
voltar. Tentei mover minha pélvis, mas ela não deixou, eu estava tão perto.
Meu corpo inteiro parecia em chamas, e a única coisa que fazia sentido era
ela. Só queria seu toque. Deus… Eu só queria a Lira.
Entretanto, antes que eu pudesse chegar ao meu clímax. Ela parou. Eu abri
meus olhos confusa, excitada e nervosa, mas o mundo girou outra vez. Lira
me virou na cama, colocando me bruços de forma eficiente, minhas mãos
presas na cabeceira, giraram, não era uma posição confortável com os braços
assim, mas eu tinha a impressão que era exatamente o que a Lira queria.
E então, de repente, ela se inclinou e pegou uma venda que estava presa na
cabeceira. Não tive tempo de reação quando ela simplesmente colocou aquilo
em mim. Meu corpo estava lento, minha mente muito cheia de prazer negado,
e parte de mim queria saber o que aquela mulher gostava de fazer e queria
fazer comigo.
— Só vai gozar quando eu deixar — ela murmurou no meu ouvido, então
senti que deixou a cama. Fiquei triste por um momento, eu queria ver aquela
coisa linda e arrogante andando nua.
— Vai me deixar assim? — provoquei, tentando esconder a leve inquietação
que começava a crescer. Lira não respondeu. — Zamorano?
O silêncio que veio em seguida me deixou tensa, mas antes que eu pudesse
chamar por ela novamente, um grito escapou dos meus lábios quando senti a
dor súbita se espalhar na minha bunda. Foi uma picada rápida, cortante,
seguida de uma carícia surpreendentemente suave e um beijo quente no meio
da minha coluna.
— O que diabos foi isso? — soltei, ofegante, enquanto sentia o calor da
marca crescendo.
Ela estava ao meu lado, pude perceber pela proximidade, mas o toque frio e
firme de algo deslizando pela minha pele me deu calafrios. Meu corpo inteiro
ficou alerta. Um chicote…
Os lábios da Lira chegaram ao lado da minha orelha, e eu quase pude sentir o
sorriso satisfeito que ela carregava.
— Eu disse que ia pegar pesado. — Sua voz saiu baixa, quase um ronronar
perigoso. — Não disse?
Não pude responder, outra chicotada me atingiu, desta vez bem abaixo da
coxa. Um gemido misturado com um grito escapou dos meus lábios, e eu
fechei os olhos com força, sentindo o calor crescente na pele marcada.
— Zamorano! — Protestei, mas tudo o que ela fez foi rir.
— Erga o quadril. Agora. — A ordem saiu tão firme que minha respiração
acelerou.
— E se eu não fizer? — Murmurei, provocativa, tentando desafiar mesmo
quando meu coração batia descontrolado. — O que vai fazer?
Outra chicotada veio, mais acima da coxa dessa vez. O impacto foi firme,
mas controlado, me deixando sem fôlego, e um novo grito escapou antes que
eu pudesse segurar.
— Aí! — reclamei, sentindo o calor subir ainda mais pela minha pele. —
Lira!
— Erga o quadril, Ayra…
Sua voz agora era pura autoridade, e algo na forma como ela disse meu nome
fez meu corpo responder antes mesmo que minha mente processasse.
Eu fiz o que ela mandou, levantando o quadril enquanto sentia meu coração
disparar. A respiração ficou mais pesada, os músculos tensos, mas não era
medo que eu sentia. Era algo muito mais perigoso, uma antecipação excitante
que fazia minha pele arrepiar e minha mente entrar em um estado de rendição
completa.
— Assim está melhor. — Lira murmurou, a ponta do chicote traçando
lentamente a curva da minha cintura até as costas. — Agora, vamos ver se
você realmente está pronta para mim.
O calor no seu tom era tanto que me derreti ainda mais sob suas palavras. Ela
move a palma da mão pela minha bunda, acariciando onde bateu, então
afunda lentamente dois dedos dentro de mim, movendo-os em um círculo,
voltas e voltas, me torturando.
— Lira… Por favor…
Implorei, ainda mais quando ela tirou os dedos de dentro de mim e então me
bateu com chicote. Não sabia onde aquilo ia terminar, mas, pela primeira vez,
não me importava. Eu estava exatamente onde queria estar: à mercê dela.
Ela começou uma sessão de chicotadas, cada golpe meticulosamente
calculado, como se fosse uma arte. Nunca no mesmo lugar duas vezes. Eu
mal tinha tempo de processar o calor e a dor de um golpe antes que outro
viesse, sempre em um ponto diferente da minha pele.
E então, como se quisesse me levar à beira da sanidade, um golpe caiu perto
demais, quase nos meus lábios vaginais.
Eu gritei, o som abafado pelo travesseiro embaixo do meu rosto, e meu corpo
estremeceu inteiro. Era doloroso, sim, mas havia algo perturbadoramente
gostoso naquela sensação. Era como se cada chicotada apagasse qualquer
pensamento que eu pudesse ter, deixando apenas o calor e a intensidade do
momento.
E então, antes que eu pudesse me preparar para o próximo golpe, senti a mão
dela deslizar até o meu clítoris. Minha respiração falhou completamente, e
meu corpo se arqueou instintivamente contra o toque.
— Lira…
Eu gemi, minha voz um misto de súplica e prazer. Ela não respondeu, mas o
toque em mim ficou mais firme, mais insistente, enquanto os golpes do
chicote continuavam. Agora eram mais duros, mais intensos, como se ela
quisesse testar meus limites.
Cada movimento do chicote era seguido pelo toque habilidoso dos dedos
dela, uma combinação que me fazia querer implorar por mais e, ao mesmo
tempo, gritar para que ela parasse. Eu me sentia muito sobrecarregada, tão
sensível em todos os lugares, não somente onde ela me batia. Era demais.
O calor do meu corpo se misturando ao frio do metal das algemas, era mais
um elemento de combustão. Lira estava me conduzindo como se soubesse
exatamente como me levar ao limite, me mantendo em uma linha tênue entre
o prazer absoluto e a completa rendição.
— Quer tanto gozar, não quer Arellano? — Ela sussurrou, parando com os
golpes. A sua voz baixa e carregada de provocação, enquanto o chicote
deslizava preguiçosamente pela minha pele maltratada.
— Vai… se ferrar… — consegui dizer entre gemidos, minha voz falhando
quando ela apertou meu clítoris com um movimento firme. — Merda!
Ela riu, um som baixo e cheio de triunfo, antes de dar mais uma chicotada,
desta vez direto na parte interna da minha coxa, me arrancando um grito que
parecia ecoar pelo quarto. Eu sabia que estava perdida.
— Odeio admitir — Lira afastou seu toque e eu quase protestei. — Mas você
está absolutamente linda.
O colchão afundou atrás de mim, então senti as mãos dela na minha coxa,
então nas nádegas. O toque me fez gemer tanto pela dor, quanto pelo desejo,
mas outra vez minha mente virou geleia. Eu senti a rosto dela entre as minhas
pernas, língua molhada sobre meu sexo, e convulsionei de prazer. Acho que
nunca gemi tão alto na minha vida.
Eu alcancei a margem do meu orgasmo, mas então a Lida se afastou. Eu gemi
em um protesto choroso. Lira passou as mãos pelas minhas costas e eu
arqueei ao toque. Estava absolutamente sensível, qualquer coisa, ainda mais
vendada era muito forte. Sensorial demais.
— Quem diria que você é uma gatinha manhosa…
Não consegui responder. Pois a Lira voltou a me torturar, ela usou a língua,
golpes perfeitos, enquanto a sua mão brincou com meu clítoris. Foi
devastador. Eu tentei puxar meus pulsos, queria de alguma forma buscar meu
próprio alívio, eu precisava de mais, eu queria mais… Mas a Lira estava no
controle. E eu só teria o que ela me desse.
— LIRA… Por favor… Me deixe gozar… — eu estava louca, sem qualquer
orgulho, só muito sobrecarregada.
— Boa garota… — ela sussurrou e então afundou dois dedos em mim. —
Você pode gozar!
O som da voz dela ecoou no quarto como uma ordem divina, e eu me
entreguei completamente. Meu corpo inteiro se arqueou, os pulsos presos se
contraíram com força contra as algemas enquanto ondas de prazer
devastadoras me consumiam por inteiro. O toque dela era preciso, seus dedos
me preenchendo profundamente enquanto sua língua trabalhava em sincronia
perfeita com o ritmo do meu corpo.
Eu gritei, incapaz de conter a intensidade que me atingiu. Meu corpo inteiro
tremia, cada nervo parecia aceso enquanto o clímax se espalhava como fogo,
consumindo tudo. A pressão acumulada explodiu, e eu senti cada músculo
relaxar ao mesmo tempo em que ondas contínuas de prazer ainda percorriam
minha pele.
Lira não parou imediatamente, continuando a me estimular, prolongando
cada segundo, me levando a um lugar onde a realidade parecia inexistente.
Minha respiração estava pesada, e minha mente parecia incapaz de registrar
qualquer coisa além do calor do seu toque.
Eu desabei de bruços na cama. Muito desgastada, ainda sentindo a Lira perto,
mas então seu toque sumiu. Respirei com força, meus braços estavam doendo
por causa da posição, porém antes de tentar me mover, mãos suaves abriram
as algemas e para minha surpresa, Lira tirou a minha venda. Em seguida, me
girou com, dessa vez com cuidado, me deixando de lado. Outro choque, foi
ela deitar ao meu lado, nas minhas costas e notei abrir um frasco com cheiro
de baunilha, então passar na minha pele maltratada pelo chicote. Eu olhei
para ela por cima do ombro
— Porque parece mais espantada comigo agora do que eu usando um chicote
em você? — Lira perguntou, enquanto passava mais daquela loção calmante
em mim.
— Você é do tipo pegajosa depois do sexo?
Claro, tentei manter a minha voz provocativa e estável, mas eu parecia ainda
parecia abalada pelo que fizemos. Lira riu baixinho, fazendo um som baixo e
rouco que fez meu coração saltar.
— Não, Arellano. Eu sou prática — ela respondeu, sua voz baixa enquanto
continuava a massagear minha pele marcada. — É melhor cuidar do que é
meu. Não quero que esteja “inútil” quando precisar de você de novo.
Eu deveria ter revidado, devolvido alguma provocação, mas a verdade é que
minhas forças estavam esgotadas, meu corpo ainda pulsava com as
consequências daquela aventura.
— Agora você realmente acha que é dona de mim? — murmurei, tentando
ignorar o jeito quase carinhoso com que ela continuava me tocando.
— Acha que não sou? — Lira rebateu, arqueando uma sobrancelha passou
mais loção. — Acabei de te marcar de todas as formas possíveis, Ayra. E, a
julgar pela sua cara, você não se importou nem um pouco.
Engoli em seco, tentando me recompor. Era uma luta constante não ceder
completamente ao magnetismo dela, especialmente agora, com aquela
expressão satisfeita e perigosa no rosto.
— Não se ache demais, Zamorano — respondi, virando o rosto para encará-la
diretamente. — Você pode ter o controle de vez em quando, mas isso não
significa sempre. Lembre-se que eu vou permitir!
Ela sorriu, aquele sorriso lento e predatório que fez meu coração bater mais
rápido, e inclinou-se ligeiramente, sua boca pairando a centímetros da minha.
— Continue dizendo isso para si mesma, Arellano. — O sussurro dela era
uma mistura de desafio e algo mais suave, quase caloroso. — Me dê os
pulsos!
Franzi o cenho, Lira suspirou e então pegou meus pulsos. Olhei para ela
passar mais daquela loção calmante ali também. E não consegui deixar de
admirar ela nua, confortável em fazer aquilo comigo. Era como se fosse
comum, habitual, ela despender aquele tipo de cuidado. Eu senti um calor
estranho espalhando-se no meu peito. Me sentindo meio estúpida, puxei meus
pulsos, virando de costas.
— Não são meus pulsos que estão doendo. — Usei da minha melhor voz de
indiferença. —Você é uma sádica.
— Você tem razão — ela murmurou, os olhos cinzentos brilhando enquanto
subia as mãos até minha cintura. — Eu sou uma sádica. Mas sabe o que é
mais engraçado? Você não consegue resistir a isso.
— Não se ache tanto, Zamorano. — Respondi, tentando soar casual, mas o
tom da minha voz me entregou.
— Eu não preciso me achar — ela rebateu, inclinando-se levemente para
roçar os lábios na curva do meu pescoço. — Eu já sei.
Fechei os olhos por um momento, tentando ignorar o calor que subiu pela
minha espinha.
— Termina logo com isso — murmurei, tentando esconder o tremor na
minha voz. — Não preciso de tanta atenção.
— Não? — ela perguntou, arqueando uma sobrancelha enquanto suas mãos
se moviam intimamente. — Porque, pela forma como seu corpo está
reagindo, diria que precisa, sim.
Eu senti meu rosto corar ainda mais, odiando o fato de que ela estava certa.
Meu corpo parecia ter vontade própria perto dela, traindo minha mente com
cada toque e cada palavra. Mas então, ela afastou as mãos de mim, mas não
antes de deslizar os dedos suavemente pela minha cintura, um último toque
que parecia prometer mais.
Levantei o olhar, encontrando os dela, e por um instante tudo ficou em
silêncio.
— Lembre-se disso, Arellano — ela disse, com uma suavidade inesperada na
voz. — Eu posso pegar pesado, mas sei exatamente até onde ir com você.
As palavras dela me atingiram de uma forma que eu não queria admitir, e,
antes que pudesse responder, Lira se levantou, recolhendo o frasco da loção e
jogando-o na mesa de cabeceira. Ela foi ao que parecia ser o banheiro, e eu
admirei seu corpo nu, aquele andar confiante. Quando ela fechou a porta se
isolando eu encarei o teto, respirando fundo.
Lira era como um quebra-cabeça, e percebi que não sabia se queria resolvê-la
ou me perder completamente nela.
☙❧
O silêncio no quarto era quase absoluto, exceto pelo som baixo da minha
respiração, e logo notei que havia outra também. Eu abri os olhos devagar,
sentindo o calor de outro corpo junto ao meu, e precisei de alguns segundos
para processar onde estava.
Minha mente, sempre alerta, por um momento estava… quieta. Até que
recordei como numa avalanche tudo que aconteceu na noite anterior.
Desde o momento que recebi uma foto no meu celular mostrando a Lira
naquele clube, e então uma onda de puro ódio se acumular dentro de mim.
Me sentindo possuída, dirigi até aquele clube como se os mil demônios do
inferno estivessem em meu calcanhar. E só para ver uma vadia beijar a Lira e
tocar nela como se tivesse algum direito.
Naquele instante inegavelmente eu senti ciúmes. Não importa se eu negasse,
foi ciúmes. Eu literalmente queria matar a Lira, mas principalmente aquela
mulher que ousou achar que poderia se enfiar na sua cama. Em algum
momento entre o meu ataque de fúria e a minha contenção, perdi qualquer
bom senso, então fui parar exatamente ali naquela situação.
Olhei para a Lira que estava adormecida ao meu lado, seu braço descansando
suavemente em minha cintura. O lençol cobria nossos corpos, mas mesmo
assim, eu conseguia sentir cada linha do corpo dela contra o meu, como se
ainda estivéssemos naquela conexão intensa da noite anterior.
Eu devo ter pego no sono, então provavelmente a Lira se juntou a mim
naquela cama. Acho que nós duas estávamos exaustas depois de tudo que
aprontamos juntas. Mas não explicava o fato de estarmos basicamente
abraçadas uma na outra.
Meus olhos caíram sobre seu rosto. Adormecida, Lira parecia quase…
vulnerável. A dureza habitual em sua expressão tinha desaparecido, deixando
uma suavidade que eu nunca havia notado antes. Era desconcertante. De
todas as versões que eu conhecia de Lira Zamorano, essa era a que eu jamais
imaginei ver, tranquila, calma, quase doce.
Um calor inesperado subiu pelo meu rosto. Eu me movi um pouco, tentando
ajustar minha posição sem acordá-la, mas acabei ainda mais consciente da
proximidade. Meu olhar parou em seus lábios, entreabertos enquanto ela
dormia, e me peguei pensando no quão macios eram, no dela gosto que ainda
parecia estar preso à minha boca.
— Que droga, Arellano…
Eu murmurei para mim mesma, bem baixinho, tentando me recompor. Mas a
minha mão, quase por vontade própria, subiu devagar, até que meus dedos
roçaram levemente o rosto dela. Foi um toque suave, tão delicado que não
parecia meu. Tracei a linha do maxilar dela, observando como a luz suave da
manhã desenhava sombras suaves em sua pele.
Tão linda que nem parece real…
Um sorriso cruzou meus lábios com o pensamento. Mas então franzi o cenho.
Era ridículo. Totalmente ridículo. Eu deveria estar saindo dali, indo embora,
mas, em vez disso, estava… admirando Lira Zamorano.
Meu olhar caiu novamente para a mão dela, ainda descansando na minha
cintura. Era estranho. Aquele gesto, apesar de pequeno, pareceu de repente
tão possessivo e natural, sendo um peso ao qual eu não queria me livrar.
“Você está ficando mole, Ayra,” pensei, mas mesmo assim, continuei ali,
imóvel, com os dedos ainda tocando o rosto dela, enquanto um pequeno
sorriso, tão traiçoeiro quanto ela, ameaçava aparecer nos meus lábios de
novo.
Fechei os olhos e contei mentalmente até às dez. Depois até quinze. Era
patético. Eu sabia que precisava sair dali. Respirei fundo e abri os olhos
novamente, olhando para Lira. Ainda adormecida, sua respiração era tão
tranquila. Com o máximo de cuidado, comecei a me mover.
Primeiro, tirei a mão dela da minha cintura, segurando a respiração como se
qualquer movimento brusco pudesse explodir o momento. Depois, me
esgueirei para fora da cama, pegando as roupas espalhadas pelo chão.
Vesti minhas roupas o mais rápido que consegui, mas em silêncio absoluto,
como se estivesse fugindo de um crime. Peguei meus sapatos na mão e me
aproximei da porta. Mas antes de sair, não resisti. Olhei para ela mais uma
vez. A luz matinal batendo no rosto dela parecia algo vindo de um sonho.
Suspirei baixinho e saí, fechando a porta atrás de mim com cuidado. Não
tinha certeza se o que eu sentia era alívio ou uma estranha pontada de
arrependimento.
Me movi pelo corredor. Mas então, enquanto me aproximava da saída,
percebi que não estava sozinha. Uma mulher estava parada próxima à porta,
encostada na parede, me observando.
Era alta, com cabelos escuros presos em um coque impecável. Vestia uma
roupa elegante demais para um lugar como aquele, algo que a fazia parecer
deslocada, mas também claramente no controle. Seus olhos me analisavam
rapidamente, de cima a baixo, e eu me perguntei quem ela era. Parecia estar à
vontade, como se aquele clube fosse familiar para ela, e algo nela me fez
pensar que tinha ligação com Lira.
— Fugindo pela manhã? — perguntou, um sorriso discreto surgindo em seus
lábios. — Não esperava isso de você, Arellano.
Franzi o cenho, mantendo a distância. Não sabia o que ela queria, mas algo
me dizia que não era coincidência estar ali naquele momento.
— Quem é você? — perguntei, cruzando os braços, tentando soar casual. —
Acho que te vi na noite passada, mas não foi o suficiente marcante para eu
gravar seu rosto.
Ela ergueu uma sobrancelha, como se minha pergunta fosse engraçada.
— Paola — respondeu simplesmente. — A dona do lugar.
Ah, claro. Isso explicava por que ela parecia tão confortável ali. Mas ainda
assim, a forma como ela me observava me deixava desconfiada. Como se
soubesse mais do que eu gostaria.
— Você conhece a Lira — falei, sem rodeios.
Paola deu uma risada baixa, cruzando os braços também.
— Conheço. Muito bem, eu diria.
Tentei manter a expressão impassível, mas sabia que uma sombra de irritação
passou pelo meu rosto. Não gostava do jeito casual com que ela falava.
— E o que isso tem a ver comigo? —
Minha voz saiu mais afiada do que pretendia. Paola inclinou a cabeça
ligeiramente, seu olhar avaliando cada detalhe da minha postura.
— Talvez nada — ela respondeu, dando de ombros. — Mas pelo jeito que
você encontrou aqui ontem… Diria que tem bastante.
— Sabe, estou sem paciência hoje! — Eu avancei na direção dela, o
suficiente para ela se retrair. Aparentemente ela tinha aquela postura fria, mas
me conhecia e tinha medo. — Se conhece tão bem a minha noiva, dê um
conselho a ela. Para nunca mais voltar aqui, ou eu mesma venho aqui e
incendeio esse seu muquifo, junto com cada vagabunda que tentar se esfregar
na Lira.
Paola piscou, mas não recuou mais do que aquele pequeno movimento
inicial. Seu sorriso, embora menos confiante, ainda permanecia nos lábios,
um escudo frágil para disfarçar o desconforto evidente.
— Entendido. — Ela respondeu, a voz agora mais calma, embora houvesse
uma ponta de sarcasmo. — Mas a Lira só faz o que ela quer mesmo.
— Ótimo, porque eu também. Está avisada! — respondi friamente.
— Tudo bem, tudo bem. — Paola murmurou, erguendo as mãos em um gesto
pacificador. — Seu “conselho” está bem claro.
Não respondi, apenas passei por ela com passos firmes, o som dos meus
saltos ecoando no corredor vazio. Minha mente fervia. A ideia de voltar para
o quarto onde a Lira dormia tranquilamente, como se fosse um anjo, era
tentadora. Mas, em vez de admirá-la, eu podia muito bem jogar um balde de
água fria nela, exigindo explicações sobre quem diabos era essa tal Paola.
Entretanto, engoli a vontade. Não daria a ninguém o gosto de me ver explodir
de novo, muito menos àquela estranha ou à própria Lira Zamorano. Ela
adoraria se sentir importante, e eu não estava disposta a lhe dar esse poder.
Mas eu iria descobrir quem era mais essa vadia do passado idiota da
Zamorano.
CAPÍTULO SETE
Lira Zamorano
O aroma do café fresco misturava-se com o cheiro do chá da Paola. Ela
estava sentada à minha frente, e me observava com aquele olhar penetrante,
como se pudesse enxergar todos os pensamentos que eu tentava esconder.
— Está quieta hoje. — Ela comentou, erguendo a xícara de café aos lábios.
— Dormiu mal?
Dei de ombros, fingindo indiferença. O rosto impassível, enquanto mexia o
café preguiçosamente com a colher.
— Sem provocações… — Respondi, o tom tão frio quanto eu conseguia
fingir. — Só estou apreciando a paz, algo raro ultimamente.
Paola arqueou uma sobrancelha, apoiando o queixo na mão, claramente
divertida com minha tentativa. Conhecer alguém por tantos anos às vezes
tinha as suas desvantagens.
— A paz de acordar sozinha? — Provocou, sorrindo de canto. — Sua
noivinha fugiu antes do café da manhã?
Minha mão parou no meio do movimento. Por um segundo, eu quis rebater,
dizer que não importava o que Ayra fazia. Mas não pude negar que fiquei um
pouco frustrada com a ausência dela naquela manhã, mais do que eu queria
admitir.
— Se você não tem nada útil para dizer, Paola… — Comecei, mas ela riu, me
cortando.
— Ah, Lira, querida… Não adianta fingir que não se importa. — Ela
recostou-se na cadeira, cruzando as pernas elegantemente. — Especialmente
depois da forma como a Arellano saiu daqui hoje.
Franzi o cenho, encarando-a com curiosidade contida.
— Como assim? — Perguntei, tentando soar desinteressada. — Você viu ela
saindo?
Paola deu outro gole no seu chá antes de continuar, claramente se divertindo.
Ela me deu um aceno positivo.
— Bem, digamos que sua noiva não ficou muito feliz com uma certa
insinuação minha.
— Que insinuação? — Pressionei, estreitando os olhos. — O que fez Paola?
— Só insinuei que conhecia você muito bem… O que não deixa de ser uma
verdade. — Paola sorriu maliciosamente. — E por um minuto achei que ela
iria me atacar. Ela deixou bem claro que não quer você aqui novamente,
ameaçando incendiar meu clube que chamou de “muquifo”.
Tentei não reagir, mas senti o sangue esquentar. Não exatamente de raiva.
— Que cena patética. — Murmurei, voltando a mexer o café como se fosse
um passatempo. — Ela é sempre tão… teatral.
Paola riu, claramente não convencida pela minha tentativa de desdém.
— Teatral, sim, mas você deveria ter visto o olhar dela. — Ela inclinou-se
ligeiramente, como se fosse confidenciar algo importante. — Não era só
ciúme, Zamorano. Era territorial…
A colher na minha mão parou outra vez, mas me recusei a encará-la. Em vez
disso, levei a xícara aos lábios, fingindo um interesse repentino no sabor do
café, mas na verdade estava escondendo um sorriso que queria sair.
— Ridículo…
Eu murmurei para mim mesma, como se as palavras fossem suficientes para
apagar qualquer vestígio de satisfação que estava sentindo. Mas não eram.
Paola não perdeu nada, é claro. Seu olhar astuto continuava fixo em mim,
como se estivesse desmontando cada camada de indiferença que eu tentava
manter.
— Está sorrindo, Lira? — ela perguntou, com a voz carregada de malícia. —
Não me diga que gostou de ver Ayra Arellano surtando assim?
— Claro que não estou sorrindo — Retruquei, deixando a xícara na mesa
com um pouco mais de força do que pretendia. — Ela é louca.
— Ah, claro. — Ela assentiu lentamente, o sorriso dela era pura provocação.
— Mas bem que você aproveitou com a “louca” ontem a noite.
Fiquei em silêncio por um momento, fitando minha xícara como se tivesse
encontrado algo fascinante ali.
— Não é da sua conta, Paola. — Falei finalmente, minha voz baixa, mas
firme. — Ayra é apenas parte de um acordo. Nada mais.
— Claro. — Ela riu suavemente, mas não parecia convencida. — E ainda
assim, você passa a noite com ela e fica igual um cachorrinho triste ao não
encontrá-la.
Eu a encarei, sentindo o calor subir no meu rosto. Mesmo assim lancei o meu
olhar mais frio a ela. Paola apenas riu novamente, recostando-se na cadeira.
— Eu não estou que nem um “cachorrinho” — Argumentei. — Não seja
ridícula também.
— Talvez seja hora de admitir que o jogo que está jogando, está ficando com
as linhas borradas, Lira.
Ela piscou, pegando sua xícara novamente. Eu fiquei em silêncio, as palavras
dela pairando no ar enquanto eu tentava afastar a sensação incômoda que
talvez minha amiga tivesse razão.
☙❧
A sala privada do restaurante era silenciosa, exceto pelo som suave de
talheres sendo ajustados na mesa e os murmúrios baixos de Arturo e Javier
discutindo os últimos detalhes do casamento e que iam apresentar as
“noivas”.
Suspirando, observei a iluminação suave refletida no vidro da janela que dava
para uma vista privilegiada da cidade. Eu estava sentada à mesa, tentando me
concentrar nos documentos à minha frente, mas minha mente estava longe.
Ayra Arellano.
Ela estava desaparecida desde o episódio no clube, sem mensagens, sem
telefonemas. Eu soube que tinha saído da cidade para resolver “assuntos do
Dragão Vermelho”. Mas nem isso me dava paz. Eu sabia que havia algo
mais. Não era o silêncio de alguém ocupado. Era o tipo de silêncio que vinha
antes da tempestade. E, se eu conhecia Ayra, a tempestade seria grande.
Minha perna balançava sob a mesa, denunciando meu nervosismo. Arturo, ao
meu lado, levantou os olhos dos papéis e me lançou um olhar de censura.
— Consegue parar? — ele disse em voz baixa. — Sua ansiedade está me
deixando nervoso.
— Não estou ansiosa. — Menti, ajustando minha postura e cruzando as
pernas. Meu tom estava mais frio do que o habitual.
Ele não insistiu. E nem iria, desde que a porta da sala se abriu. Meu coração
acelerou quando vi Ayra entrar.
Ela caminhou com a sua usual confiança, como se fosse a dona do lugar. O
blazer preto sobre uma camisa justa, calça de couro impecável, e botas de
salto faziam com que ela parecesse maior do que era.
— Javier. Arturo. — Cumprimentou com um aceno breve, sem nenhuma
formalidade. E então seus olhos se voltaram para mim. — Zamorano.
O brilho em seus olhos castanhos não tinha desaparecido, longe disso. Era
aquele fogo que eu conhecia tão bem, puro caos esperando para explodir.
Entretanto, não havia nenhum sorriso provocativo dessa vez, e por algum
motivo, isso me deixou tensa.
— Ayra. — Javier quebrou o silêncio, levantando-se para apertar a mão dela.
— Sua missão deu certo?
— Sempre dão. — Ayra respondeu, com aquele tom casual que fazia tudo
soar como uma piada particular. Ela se sentou na cadeira do outro lado da
mesa, ajeitando-se como se fosse um trono. — Posso saber porque me
chamou?
— O casamento acontece em duas semanas. Aprovamos as seguintes opções
e decidimos algumas outras situações…
Arturo começou a falar, junto com Javier, mas eu não conseguia prestar
atenção. Estava muito atenda a Ayra. Ela não olhou novamente para mim,
mas eu sabia que estava ciente da minha presença. Ela sempre estava. Seus
dedos tamborilavam, mas Ayra parecia estar em outro lugar, ou talvez apenas
fingisse estar entediada. Era irritante como ela conseguia me ignorar tão
deliberadamente, mas ao mesmo tempo me fazer sentir como se fosse o único
alvo na sala.
— Três opções para nós morarmos juntas?
A pergunta, na voz da Ayra num tom irritado, me fez voltar à realidade. Eu
olhei para Arturo e Javier.
— Vamos ter um lugar só nosso? — eu indaguei, franzindo o cenho. —
Achei que ficaríamos na mansão.
— Concordamos que seria melhor um lugar neutro. — Javier explicou
tranquilamente. — Afinal de contas, vocês vão ter que receber pessoas dos
dois cartéis, então precisa ser num território novo, que mostre a união que
fizemos.
Meus olhos se voltaram para Ayra, mas ela ainda parecia indiferente. Era
estranho ela não reclamar, ou manifestar sua “resistência” inútil. Voltei a
minha atenção aos dois homens, mas foi Arturo que colocou na mesa fotos de
três lugares.
O primeiro era uma mansão, o segundo parecia ser uma casa, o terceiro era
um apartamento. Ayra pegou as fotos antes mesmo de eu conseguir ver
direito. Ela as analisou com pressa, segurando-as de forma descuidada. Sua
expressão parecia entediada ainda, mas seus olhos castanhos brilhavam com
algo que eu não conseguia decifrar.
— Sério isso? — ela murmurou, jogando as fotos na mesa. — Uma mansão
enorme, uma casa com cara de filme americano e um apartamento de luxo.
Que sonho!
Ayra desdenhou. Eu arqueei uma sobrancelha, cruzando os braços, esperando
que ela reclamasse mais, porém não o fez.
— Vocês precisam escolher algo que represente o que construímos aqui. —
Arturo pegou uma das fotos e a deslizou pela mesa em minha direção.
— A mansão é a opção mais óbvia. — Eu disse, sabendo que era o que
Arturo queria. — Espaçosa, isolada, com espaço suficiente para reuniões e
eventos. E segurança reforçada, claro.
Eu odiava a ideia da mansão. Ela representava memórias que eu preferia
manter enterradas, lembranças de como foi crescer na nossa própria mansão,
imensa e vazia, assombrada pelas minhas próprias sombras. Era um lugar de
eco e solidão desde a morte da nossa família. Mas, se fosse o que meu pai
escolhesse, ele certamente encontraria uma forma de conseguir.
— Espaçosa demais. E fria. — Ayra declarou, revirando os olhos como se
estivesse avaliando uma peça de arte sem valor. Em seguida, pegou outra
foto. — A casa parece acolhedora, mas muito… normal.
Eu continuei em silêncio, tentando manter minha expressão neutra. Mas algo
na rejeição casual dela à mansão me fez sentir uma ponta de alívio. Não que
eu fosse admitir isso em voz alta.
— E o apartamento? — Perguntei, puxando a foto que Ayra largou por
último. Ele era impressionante. Linhas modernas, uma vista panorâmica da
cidade e uma localização discreta.
— O apartamento tem uma vista melhor e sempre posso jogar você do alto —
Ayra comentou colocando a mão no queixo. — É quase perfeito.
Eu lembrei que ela gostava do seu próprio apartamento. O lugar pequeno e
acolhedor, bem longe da opulência do Cartel Dragão Vermelho. Era como se
tudo nela fosse uma rebeldia constante contra qualquer expectativa imposta.
— Isso não é uma questão de gosto, mas de necessidade. — Disse Javier,
atraindo nossa atenção, olhando para Ayra com firmeza. — Escolham com
inteligência.
— Certo. — Ayra suspirou, com a foto do apartamento. — Essa vista, no
entanto, tem um potencial… Gosto dele!
— Então escolhemos o apartamento? — Arturo perguntou, os olhos indo de
Ayra para mim.
— Parece que sim.
Respondi, sem desviar o olhar dela. Sabendo que no fundo o meu pai não
estava satisfeito. No entanto, dessa vez não me importei. Eu sabia que,
independentemente de onde fôssemos morar, a convivência seria um desafio.
Mas a ideia de uma mansão fria e vazia era muito pior do que um
apartamento moderno.
— Ótimo. — Javier assentiu, encerrando o assunto. — Resolveremos os
detalhes de segurança e logística. Vocês só precisam aparecer no casamento
agora.
Ayra me pegou observando-a, mas, como sempre, ignorou meu olhar.
Passamos a tratar sobre mais alguns detalhes da cerimônia, num clima quase
civilizado, antes de Arturo e Javier avisarem que tinham compromissos
urgentes. Ayra parecia pronta para sair junto com Javier, já meio inclinada
para levantar da cadeira, mas eu movi minha mão rapidamente, segurando
seu pulso com firmeza.
— Fique. Preciso falar com você. — Minha voz saiu baixa, mas carregada de
firmeza.
Arturo me olhou com desconfiança claramente estampada em seu rosto, mas
ele não disse nada. Javier, por outro lado, sequer olhou para nós duas. Apenas
lançou um suspiro cansado, antes de sair do recinto. A porta fechou-se com
um clique suave, deixando-me a sós com Ayra.
— Me solte! — Ayra disse num tom irritado, os olhos castanhos brilhando
em puro fogo.
— Pode baixar a guarda? — Eu pedi e suspirei. — Só quero conversar.
— Estou ouvindo. — Ela se recostou na cadeira, cruzando os braços sobre o
peito, a postura relaxada, mas seus olhos atentos. — Surpreenda-me,
Zamorano.
Respirei fundo, tentando organizar as palavras na minha cabeça. Havia tantas
coisas acumuladas que eu nem sabia ao certo o que queria falar.
— Você sumiu. — Disse finalmente, tentando manter a voz neutra. — Estava
ocupada “aprontando” ou foi só mais uma das suas táticas para chamar
atenção?
Ayra riu, aquele som rouco e provocativo que parecia tanto um convite
quanto uma barreira.
— Que bom saber que sentiu minha falta. Mas, se quer saber, estava
resolvendo alguns negócios. Agora que respondi, eu posso ir embora?
— Você podia ter avisado. — Minha voz saiu mais irritada do que eu
planejava.
— Avisar você? — Ela inclinou-se para a frente, os cotovelos apoiados na
mesa, o sorriso desafiador ainda no rosto. — Ficou pegajosa de repente?
Fiquei em silêncio por um momento, tentando controlar a irritação que
crescia em meu peito.
— Isso não é sobre “pegajosidade”, Ayra. É sobre responsabilidade e
respeito.
Ayra riu novamente, aquele som familiar que parecia cavar cada pedaço da
minha paciência. Ela inclinou-se ainda mais, o rosto a poucos centímetros do
meu, os olhos castanhos fixos, brilhando com o fogo que eu conhecia tão
bem.
— Responsabilidade e respeito? — Ela arqueou uma sobrancelha, como se eu
tivesse acabado de contar uma piada. — Quer que eu mande uma mensagem
na próxima vez que tiver que cuidar de negócios? Algo como: “Querida, já
volto, não espere por mim.”
— Você está sendo insuportável. — Suspirei, tentando conter minha irritação
crescente. — E isso não é sobre mensagens, Ayra. É sobre você agir como se
tudo isso fosse uma piada. Nós temos responsabilidades agora, juntas, quer
você goste ou não.
Ayra recostou-se na cadeira, cruzando os braços, um sorriso desafiador ainda
brincando em seus lábios.
— Juntas, hein? — Ela murmurou, o tom carregado de ironia. — Então,
suponho que agora devo perguntar onde você esteve enquanto eu estava
lidando com coisas sérias. Talvez naquele clube? Talvez com aquela Paola?
De repente uma luz acendeu na minha mente. “Então esse era o motivo?”, eu
pensei comigo mesma. Ela estava com raiva por causa do que a Paola falou
naquela manhã do clube. Um sorriso brincou nos meus lábios, não pude
evitar, e Ayra estreitou os olhos.
— É isso? — Perguntei, cruzando os braços e mantendo o tom
propositalmente calmo. — Você sumiu porque ficou com ciúmes da Paola?
Ayra se endireitou na cadeira, os ombros rígidos e a mandíbula travada. Sua
expressão era uma mistura de indignação e desafio, como se minhas palavras
tivessem atingido um nervo exposto.
— Ciúmes? — Ela repetiu, a voz carregada de sarcasmo. — Me poupe,
Zamorano. Não tenho tempo a perder me preocupando com a sua vadia. Seu
pai sabe que você ajudou ela a montar aquele clube?
Meu coração deu um salto, mas tentei manter a expressão neutra.
— Como você sabe disso? — perguntei, a voz mais firme do que eu
esperava.
— Ela foi tão boa assim na sua cama que deu uma pensão? — A voz de Ayra
estava carregada de uma ira afiada. — Talvez devesse se casar com ela, já
que gosta tanto de cuidar dela.
Fiquei literalmente chocada. Como ela tinha descoberto que eu ajudei Paola
com o clube? Claro, a versão dela estava um pouco distorcida, mas sim, eu
ajudei minha amiga a montar aquele lugar. E fiz questão de manter Arturo
longe dessa informação.
— Você está delirando, Arellano. — Retruquei, cruzando os braços, na
defensiva. — Paola é uma amiga, e eu só ajudei porque ela precisava. Isso
não tem nada a ver com o que você está insinuando.
— Amiga? — Ayra soltou uma risada amarga, inclinando-se para frente e
apontou o dedo no meu rosto. — Que tipo de amiga se torna um segredo tão
bem guardado? Você tem certeza de que é só isso? Porque parece mais.
— Você esteve por acaso todos esses dias investigando-me? — Eu perguntei,
com cuidado, como se estivesse prestes a desarmar uma bomba.
— E se eu disser que sim? — Ayra se aproximou, agora a centímetros de
mim. O tom frio e calculado foi substituído por algo mais feroz. — Está com
medo de que eu descubra mais segredos seus, Zamorano? Porque, se quiser,
eu posso descobrir tudo.
O desafio pairou no ar entre nós, a tensão ficando quase insuportável. Olhei
para aquele rosto lindo dela, aqueles olhos castanhos inflamados de
provocação, e soube que palavras não seriam suficientes. Não com Ayra.
Antes que pudesse pensar melhor, puxei-a em meus braços e a beijei.
Sua boca era macia e quente, um contraste chocante com o caos que ela
trazia. Minhas mãos deslizaram pelo seu cabelo, sentindo a suavidade dos
fios, enquanto aprofundava o beijo sem hesitação. Senti o corpo dela se
enrijecer por um breve momento, mas logo ela relaxou contra mim, se
entregando de uma maneira que me desarmou por completo.
Quando me afastei, apenas o suficiente para recuperar o fôlego, ela parecia
atordoada. Seu olhar estava fixo no meu, uma mistura de surpresa e algo que
eu não conseguia decifrar. Não esperei por palavras; agarrei seu queixo com
firmeza, mas com cuidado, e voltei a tomar seus lábios, dessa vez com mais
intensidade.
Sua língua tocou a minha, hesitante no início, mas depois explorando,
provocando, como se aceitasse o desafio que eu lançava sem palavras. O
gosto dela era viciante, uma mistura de algo doce e selvagem, que me fazia
querer mais. Eu a mantive perto, nossas respirações pesadas, e o mundo ao
nosso redor desapareceu, como sempre acontecia quando Ayra estava por
perto.
Entretanto, antes que eu pudesse raciocinar, senti o estalo e a dor do tapa que
Ayra me deu, se espalhando pela minha bochecha. Fiquei imóvel por um
segundo, absorvendo o impacto, enquanto ela me encarava com olhos que
misturavam raiva e desejo. Sim, desejo. Isso me fez sorrir, mesmo enquanto
segurava meu rosto.
— Por que está me batendo se claramente queria um beijo, querida? —
provoquei, e vi a raiva dela aumentar, sua respiração acelerada.
— Não ouse me tocar, Zamorano! — Ayra rosnou, apontando um dedo para
mim. — Quando eu quiser que me toque, vai saber.
— Você é uma fofa com ciúmes! — retruquei, e antes que ela pudesse
responder, desferiu um tapa no meu ombro. Mas não foi como antes. Havia
algo mais contido, como se o golpe não tivesse intenção real de machucar.
— Eu não tenho ciúmes de você, idiota! — Ayra retrucou, a voz carregada de
indignação. — Você não vale o esforço.
— Não? — Dei uma risada baixa, me aproximando. — Mas foi atrás de mim
no clube. E agora até investigou a Paola.
— Isso não significa nada! — Ela ergueu o queixo, tentando parecer
indiferente, mas o brilho nos seus olhos a traía.
— Acho que significa tudo. — Movi-me rápido, prendendo seus pulsos atrás
das costas e imobilizando-a contra a cadeira. Ayra grunhiu de irritação, mas
não se esforçou para escapar tanto quanto eu esperava.
— Me solta, Zamorano, ou vou quebrar seu nariz!
Ela ameaçou, mas algo no tom dela me dizia que era apenas provocação. Um
jogo que ela sabia que estávamos jogando. Aproximei-me ainda mais,
inclinando-me até sentir sua respiração quente contra meu rosto.
Então, sem pensar, depositei um beijo na veia pulsante do seu pescoço. Ayra
congelou por um momento, e eu sorri contra sua pele, sentindo-a estremecer
levemente. O cheiro delicioso que exalava dela, me deixou um pouco zonza.
— Preciso te acalmar? — sussurrei, deslizando os lábios pelo seu pescoço.
— Você é insuportável… — ela murmurou, mas sua voz não tinha tanta
convicção, e o jeito que inclinou a cabeça para o lado me dizia tudo que eu
precisava saber. — Babaca…
Eu sorri contra a pele de Ayra, sentindo o arrepio que percorreu seu corpo
quando deslizei meus lábios por seu pescoço. O calor que emanava dela era
inebriante, viciante de uma forma que me fazia querer mais. Eu apertei seus
pulsos um pouco mais forte, por impulso, porque eu não queria soltá-la. Era
estranho como meu corpo reagia daquele jeitinho, querendo segurá-la,
mantendo-a só para mim.
— Eu sou tão insuportável que você não consegue me afastar…
Eu murmurei, mordendo de leve o ponto sensível entre seu pescoço e o
ombro. Ela estremeceu e eu adorei. Senti o movimento do peito dela subindo
e descendo contra o meu. Ela tentou manter o controle, mas falhou, pois os
seus músculos relaxaram sob meu toque. Não era mais resistência, era
rendição.
Pressionei meu corpo contra o dela, o suficiente para sentir o calor que ela
emanava, o suficiente para me perder um pouco também. Ayra ergueu o rosto
para mim, seu olhar castanho carregado de fogo, que me seduzia. Ela me
olhou como se eu fosse a coisa mais irritante e fascinante ao mesmo tempo.
— Você gosta disso — eu disse com um sorriso satisfeito. — Gosta de ser
dominada por mim.
— Cala a boca, Zamorano — ela disse, mas o olhar dela se demorou nos
meus lábios. — Você fica muito melhor calada.
Eu sorri. Não precisei de mais nada para entender, porque já sabia o que
aquela mulher caótica queria.
Eu a beijei de novo.
Dessa vez não foi só um toque provocativo e rápido. A beijei com calma,
buscando sentir cada pedaço seu. Intenso, quente e profundo. Não havia
resistência, apenas desejo mútuo, uma vontade crua que me atingiu como
uma onda quente no peito.
Ayra cedeu completamente, os lábios se moldando aos meus com uma
suavidade que me pegou desprevenida. Eu soltei seus pulsos, mas, para
minha surpresa, ela não se afastou. Pelo contrário, suas mãos deslizaram para
meus ombros, agarrando com firmeza. A sensação de seus dedos cravando
em mim enviou uma corrente elétrica por todo o meu corpo. Eu a puxei mais
para perto, minhas mãos apertando a cintura dela.
Doce inferno… A forma como ela se encaixa nas minhas mãos me deixava
louca. Ayra era mais delicada do que parecia, isso despertava coisas
ambíguas em mim. O seu gosto era doce e quente, uma mistura viciante que
fez meu coração disparar e minha mente entrar em caos absoluto.
Ayra gemeu baixo contra minha boca, e por um segundo foi o meu som
favorito no mundo. Meu controle, que eu sempre achei que era absoluto,
escorreu pelos meus dedos como água. Eu não sabia mais quem estava
dominando quem, e honestamente, não me importava. Minhas mãos se
moveram por sua cintura, subindo pelas suas costas. Eu precisava de mais,
precisava senti-la mais.
— Ayra… — sussurrei, deslizando beijos pela sua mandíbula, até o pescoço,
mordiscando, ouvindo os gemidos dela baixinhos. Ergui meu rosto, beijando
seus lábios com delicadeza.
— Lira… — Ayra murmurou contra meus lábios, sua respiração quente
batendo contra minha pele. O tom dela não era uma provocação ou um
ataque, era pura necessidade.
Eu aprofundei o beijo novamente. Meu peito doía de uma forma que eu não
sabia explicar. Não era dor física, mas uma pressão estranha, como se algo
estivesse tentando sair de dentro de mim. Eu fiquei confusa e principalmente
perdida. Ayra deslizou os dedos pelo meu cabelo, puxando com força o
suficiente para que nossos olhares se encontrassem. Seus olhos estavam
arregalados, como se ela estivesse tão perdida quanto eu.
Encostei a testa na dela. Nossas respirações descompassadas. Ayra tocou meu
rosto, a palma da sua mão era quente e delicada. Ela nunca havia me tocada
dessa maneira e eu fiquei sem fôlego. Agarrei mais forte sua cintura, antes
que pudesse pensar, capturando. Ela não resistiu, mas sim se entregou. As
mãos dela se moveram, cravando nos meus ombros, nas minhas costas, como
se quisesse se segurar mais perto também. Eu não conseguia mais distinguir
onde ela terminava e eu começava, éramos puro desejo, e, honestamente, não
queria parar.
Era estranho e perturbador o quão certa aquela sensação parecia. Eu sempre
soube como controlar minhas emoções, mas com Ayra, tudo desmoronava.
Eu não era a Lira controlada e fria. Eu era alguém cheia de fogo e caos, e ela
era como combustível.
Nos afastamos, sem ar. Ayra abriu os olhos e encontrou com os meus. Sua
respiração era quente e pesada, os lábios inchados e vermelhos. Eu vi o
momento exato em que ela percebeu o quanto tinha se deixado levar. Assim
como eu. Seu olhar oscilou entre surpresa e desafio, mas não havia algo mais
intenso, escuro e perigoso, que acelerou o meu coração.
— Não quero uma palavra sobre isso, ou eu quebro seus dentes!
Ayra rosnou, mas com aquele brilho diferente nos olhos dela. Eu apenas
sorri.
— Você queria e me beijou de volta, Arellano — provoquei, deslizando o
dedo indicador pelo seu queixo. — Não tenho culpa se você não consegue
resistir.
— Eu te odeio — ela disse, mas seu tom não tinha mais convicção.
— Também odeio você — respondi, minha voz mais suave do que eu queria.
— Mas isso não muda nada, não é?
Ela me olhou por mais alguns segundos, o peito subindo e descendo
lentamente, enquanto a raiva e o desejo ainda dançavam em seus olhos.
Então, com um suspiro pesado, ela se afastou, mas não antes de deixar suas
mãos escorregarem de forma lenta pelo meu peito, o suficiente para deixar
minha pele em chamas.
— Você ainda vai se arrepender de brincar comigo, Zamorano — ela disse
com uma calma perigosa, antes de me empurrar. — Eu vou te deixar
implorando por mim. Pode anotar.
Eu abri a boca para responder, mas ela levantou a mão, como quem diz “nem
tente”. Então, ela se levantou e saiu, balançando os quadris de forma
exagerada, só para me provocar. Eu sabia que era de propósito, Ayra
Arellano nunca fazia nada por acaso. E, droga, eu deixei meu olhar seguir
cada passo dela.
Maldita, gostosa.
Quando a porta se fechou, fiquei sozinha no silêncio, ainda sentindo o calor
que ela deixou para trás. Suspirei, passando a mão pelo rosto, como se isso
pudesse esfriar a sensação que ainda estava latejando debaixo da minha pele.
— Ela é um pesadelo… — murmurei para mim mesma, mas antes que
pudesse me conter, um sorriso puxou os cantos da minha boca. — Um
maldito pesadelo viciante.
Sacudi a cabeça, tentando afastar o calor que ainda corria nas minhas veias,
mas não consegui. Porque agora, cada palavra dela ecoava em mim.
“Eu vou te deixar implorando por mim.”
Eu ri sozinha, baixinho, sentindo o peito aquecer de uma forma que não
gostei. Uma parte de mim sabia que ela era completamente capaz de cumprir
essa promessa. E isso, ao invés de me preocupar, só me deixou ainda mais
ansiosa pelo que viria a seguir.
☙❧
Ayra Arellano
O som seco e contínuo do saco de pancadas balançando preenchia a academia
privada da mansão. Meus punhos batiam com tanta força que minhas juntas
já começavam a doer, mas eu não parei. Não era o suficiente.
Nada parecia ser suficiente…
Eu mantive a cadência. Soco. Soco. Cruzado. Meu corpo inteiro girou junto
com o movimento, e o impacto foi tão forte que o saco balançou até o teto
ranger. Eu queria socar mais, destruir, acabar com tudo que estivesse na
minha frente. Porque, na verdade, o que eu queria socar não estava ali. Não
estava no saco. Estava na minha cabeça.
Paola.
Fechei os olhos por um segundo, mas foi o suficiente para ver o sorriso dela
se formando na minha mente. A forma casual como ela insinuou conhecer
bem a Lira, ecoava na minha mente. Eu tentei ignorar, mas foi inútil. Depois
da noite no clube, eu simplesmente não consegui tirar isso da cabeça.
Foi o motivo exato pelo qual eu sumi durante uma semana. Claro, usei uma
disputa de um dos nossos associados, para sair da cidade com o aval de
Javier. Resolvi em um dia e então pude me concentrar no que eu queria:
Investigação.
Eu precisava de respostas, precisava saber exatamente quem era essa mulher
na vida da Lira. Então, sim, usei minhas conexões, puxei cada fio que eu
tinha. Demorou mais do que eu queria, mas consegui. Paola Salazar. Órfã.
Cresceu em lares adotivos. Tem antecedentes de brigas de rua e uma ficha
bem “colorida” antes de abrir aquele clube de luxo. Com a ajuda da Lira.
Foi aí que a coisa piorou. Porque Lira não apenas a ajudou, mas financiou
boa parte do negócio. As contas foram limpas, mas eu sei como seguir
rastros. Não era o tipo de coisa que se fazia só “por amizade”. Isso só
reforçou o que eu já suspeitava. Paola era mais do que uma amiga para Lira.
E isso… isso não me caiu bem.
Meus punhos acertaram o saco com ainda mais força, e eu senti o peso da
irritação crescendo no meu peito. Eu sabia que era estúpido. Sabia que era
irracional. Mas, ainda assim, meu sangue fervia. O pior de tudo? Eu sabia que
não era minha maldita obrigação me importar com quem a Lira se envolveu.
Bufei e me afastei do saco, limpando o suor do rosto com o braço. Cada parte
do meu corpo estava pulsando com raiva e um desejo reprimido que eu não
sabia explicar. Eu sabia que parte dessa raiva vinha de outra coisa. A
lembrança de Lira no restaurante, aquele beijo… aquele maldito beijo que ela
me deu.
Eu devia ter resistido mais, mostrar quem mandava. Mas não. Eu cedi. Eu
cedi e pior… Eu gostei.
“Não seja idiota, Arellano” disse a mim mesma, cerrando os punhos ao lado
do corpo. Eu não ia me deixar cair nesse jogo. Eu sempre tive o controle. Eu
nunca fui a que cede. Soltei um riso baixo e irônico, passando a mão pelo
cabelo molhado de suor. Era patético.
Eu estava agindo exatamente como ela queria. Como se não bastasse ela me
deixar naquele quarto, vulnerável e mole demais para reagir, agora eu estava
aqui, queimando de desejo e irritação enquanto Lira provavelmente estava
rindo disso.
A raiva borbulha de novo e eu acertei o saco de pancadas com um direto tão
forte que o som ecoou por todo o cômodo. Meus ombros subiam e desciam
com a respiração pesada, o peito apertado de frustração.
Não. Não vou deixar ela vencer. Não de novo. Se ela acha que pode brincar
comigo, eu também sei brincar. Eu sei brincar melhor. Muito melhor.
Minha mente começou a trabalhar sozinha. Eu ia irritá-la até o inferno. Eu ia
invadir o mundo dela, ia roubar o controle que ela tanto se orgulha de ter. Eu
sei como Lira funciona. Ela precisa de ordem. Controle. Meticulosidade. Ela
odeia o caos. E eu sou o caos.
Um sorriso no meu rosto foi surgindo devagar, como uma onda de satisfação
me atingindo. Eu podia ver claramente o plano se formando na minha mente.
Ela ia surtar. Surtar. E assim satisfeita, eu fui em direção ao banco de pesos,
pegando os halteres. Minha mente já estava anos à frente.
— Você não vai resistir, Zamorano. — Murmurei para mim mesma enquanto
fazia o primeiro levantamento de peso. — Eu vou ser o seu pesadelo mais
doce.
Dessa vez, eu não ia ceder. Eu ia virar o jogo e fazer aquela desgraçada
implorar por mim. Queimar por mim. Como eu me senti por ela…
☙❧
O som das minhas botas ecoou pelo galpão de metal enquanto eu atravessava
o corredor principal. O lugar era discreto, reservado, exatamente como eu
sabia que seria onde a Lira trabalharia.
Dois homens armados me seguiram com os olhos, mas não fizeram nada
além de se entreolharem, incertos. Eu podia ver a dúvida estampada nos
rostos deles, como se quisessem me parar, mas ninguém seria idiota o
suficiente para tentar. Eu não era qualquer uma. Eu era Ayra Arellano. E,
além disso, eu era a noiva da chefe deles.
— Abre a porta, queridinho. — Disse para um deles, erguendo a sobrancelha
e balançando a cabeça em direção à porta no fim do corredor. — Rápido!
O segurança hesitou, olhando para o colega antes de destravar a porta. A
risadinha que soltei foi alta o suficiente para todos ouvirem, enquanto eu me
aproximava com a cesta de café da manhã pendurada no braço. Uma cesta
grande, exagerada e cheia de tudo o que poderia provocar Lira de todas as
formas possíveis. Doces, frutas, croissants, e o mais importante… café.
Assim que a porta abriu, eu entrei como se fosse dona do lugar. Porque, de
certa forma, eu era. Se Lira era a chefe ali, eu era a “noiva” dela, e isso me
dava passe livre. Sorri para ela assim que nossos olhares se cruzaram. Ela
estava sentada atrás da mesa, com seus óculos de grau, os olhos cinzas
cortantes me mirando como se quisessem me decapitar na hora.
— Oi, querida! — Falei com doçura exagerada, erguendo a cesta como se
fosse um presente especial. — Trouxe café da manhã para a noiva mais
rabugenta do mundo.
— Que diabos você está fazendo aqui, Ayra? — A voz dela foi cortante e
direta. O tom típico da Lira Zamorano em “modo comando”. — E quem
deixou entrar?
Eu não respondi. Andei até a mesa dela, empurrando os papéis de um lado
para o outro, abrindo espaço como se fossem nada além de lixo. Ela se
inclinou para a frente, os olhos estreitados, mas eu a ignorei e coloquei a
cesta bem no meio da mesa. O aroma doce de pães e café fresco se espalhou
pelo ambiente.
— Não preciso que ninguém me “deixe entrar” em lugar nenhum... — Sorri
de forma travessa e me sentei na beirada da mesa, balançando as pernas como
uma criança. — E, além disso, sou sua noiva, eles não ousariam tocar-me.
— Vou deixar ordens para te chutarem para a rua da próxima vez. — Lira
pegou os papéis que eu empurrei e tentou organizar novamente, mas eu
estendi a mão e puxei um deles, só para ver a expressão dela endurecer. —
Me devolve isso. Agora.
— Que papelzinho mais importante, hein? — Murmurei, olhando o conteúdo
sem realmente me importar. Era sobre logística, rotas, controle de carga.
Nada interessante. — Isso pode esperar. Coma comigo.
Ela me lançou um olhar de puro aço. Os ombros rígidos, os olhos cinzas
firmes em mim como se estivesse mirando um alvo. Mas, mesmo assim, eu
vi. Eu vi o brilho de algo mais. Irritação, talvez? Frustração? Ou, quem sabe,
o exato tipo de sensação que eu queria provocar nela.
— Não tenho tempo para suas brincadeiras, Ayra. — Ela largou os papéis e
se levantou, a mão apoiada na cintura. — Eu estou trabalhando. Algo que
você claramente não faz.
Inclinei a cabeça para o lado, o sorriso ainda no rosto, então invadi o seu
espaço. Ela congelou. Eu vi o corpo dela ficar tenso. E era exatamente isso
que eu queria.
— Eu gosto mais de você assim, sem palavras.
Sorri, aproximando-me mais um pouco. Lira soltou um suspiro pesado,
recuando se sentando na sua cadeira, tirando os óculos e esfregando os olhos.
Ela parecia cansada. Talvez irritada.
Perfeito.
— O que você quer, Arellano? — Ela perguntou, o tom seco e impaciente. —
Além de bagunçar minha mesa e roubar minha paciência.
— Você. — Respondi sem hesitar, o tom tão casual quanto se eu estivesse
pedindo mais café. — Quero você, Zamorano.
Vi o momento exato em que ela ficou tensa. Os ombros rígidos, o maxilar
travado. Eu dei uma risadinha, pegando um croissant entre os dedos e
aproximei-me dela, inclinando-me na direção dela.
— Qual seu joguinho hoje? Você parecia irritada até ontem
Lira ergueu os olhos para mim, desconfiada, e eu sorri lentamente, o tipo de
sorriso que fazia o mundo tremer.
— Ontem é passado… — Sussurrei, colocando o croissant na boca dela,
forçando-a a dar uma mordida. Ela não se moveu no início, mas depois
cedeu, mordendo o pedaço como se quisesse me desafiar. — Olha só você…
Tão obediente.
— Cuidado com as palavras, Arellano. — Ela disse, mastigando lentamente
enquanto me encarava.
— Cuidado? — Eu passei a ponta do dedo no canto da boca dela, limpando
uma migalha invisível. Meu dedo roçou seu lábio inferior, e eu me demorei
um pouco mais do que precisava. — Acho que você gosta mais quando eu me
arrisco, não gosta?
Lira agarrou meu pulso. Não com força. Só o suficiente para me avisar.
— Não estou com paciência para brincar hoje. -- Ela disse, a voz baixa e
ameaçadora. — Então vá embora!
Eu inclinei a cabeça e a encarei bem de perto, o suficiente para sentir a
respiração quente dela bater no meu rosto.
— Não vou embora. — Respondi, com uma ousadia silenciosa. — Ou está
com medo de cair em tentação?
O ar ao nosso redor ficou mais denso, mais quente. Eu sabia que tinha
vencido. Lira me soltou com um empurrão, mas o olhar dela me prendeu no
lugar. Eu não recuei. Eu nunca recuava.
— Quer jogar assim então, Arellano? — Ela se levantou devagar, o
movimento controlado e letal. — Vamos ver se aguenta o fogo.
Eu dei um passo para trás, mas foi de propósito. Era parte do jogo. Deixei
que ela pensasse que estava no controle. Deixei que ela viesse até mim, olhos
cinzas brilhando de raiva e algo mais que ela se recusava a admitir.
— Eu não só aguento, querida. — Sussurrei, enquanto ela parava na minha
frente, tão perto que nossos corpos quase se tocavam. — Eu sou o fogo.
— É mesmo? — Ela arqueou a sobrancelha, o canto dos lábios curvado num
meio sorriso perigoso. — Vamos ver então!
Antes que eu pudesse responder, Lira me empurrou contra a parede. Minhas
costas bateram contra o concreto frio, mas não doeu. Não, não foi dor que eu
senti. Foi o calor que passou por mim como uma onda elétrica. Eu sorri. Um
sorriso lento e arrogante.
— É assim que você quer brincar? — Perguntei, deslizando as mãos pelos
ombros dela, sentindo a força sob o tecido da camisa. — Tudo bem.
— Eu sei o que quer, Arellano. — Lira segurou meu queixo, forçando-me a
encará-la diretamente. O olhar dela era feroz, tão profundo que fez meu
estômago revirar. — Mas eu vou ganhar esse joguinho sujo.
Eu ri baixinho, e foi o som mais desafiador que já fiz. Ela não hesitou. Suas
mãos agarraram minha cintura com força, os dedos afundando na minha pele.
Ela me puxou para mais perto, e antes que eu pudesse piscar, senti a boca
dela na minha, quente e exigente. Eu a segurei pelo colarinho da camisa, não
para afastá-la, mas para puxá-la ainda mais para mim.
Minha mão deslizou para o pescoço dela, dedos fechando levemente ao redor.
Lira congelou por um instante, o suficiente para que eu pudesse inverter as
posições, empurrando-a contra a parede. Agora era eu quem estava no
controle. E eu me inclinei, sussurrando em seu ouvido.
— Acho que estou ganhando, noivinha.
Ela soltou uma risada curta, mas seus olhos estavam mais escuros, mais
famintos.
— Isso é o que você acha. — Lira se libertou do meu aperto com uma
facilidade irritante. Ela me empurrou contra a mesa e, antes que eu pudesse
reagir, já estava em cima de mim, o joelho entre minhas pernas, a mão no
meu queixo, forçando-me a olhar para ela. — Você quer me provocar,
mostrar que manda, mas acho que já sabemos que eu comando aqui.
A tensão era uma corrente elétrica no ar. Cada músculo do meu corpo estava
em alerta, mas eu não queria recuar. Eu queria ganhar dessa vez.
— Então me mostra, Lira — Provoquei, inclinando o rosto para o lado,
deixando meu pescoço exposto de propósito. — Ou vai ficar só no discurso?
Os olhos cinzas dela desceram lentamente pelo meu rosto, escaneando cada
centímetro. Deus, que olhar. Era como se ela estivesse calculando os meus
pontos fracos, decidindo onde atacar primeiro. Eu conhecia esse olhar porque
eu fazia o mesmo. Talvez fosse por isso que ela me deixava tão inquieta.
— Você é uma vadia. — Lira disse, a voz rouca, o controle evidente na
rigidez da mandíbula.
— E você gosta de mim exatamente assim. — Meu sorriso foi preguiçoso e
provocativo. — Não minta, não combina com você.
— Você é linda calada. — Ela rebateu, apertando meu queixo com mais
força, o olhar fixo no meu como se quisesse me esmagar com a intensidade.
— Devia ficar em silêncio mais tempo.
Eu ri de novo. Não consegui evitar. Era tão fácil brincar com ela. Lira
Zamorano, a mulher que controlava exércitos e negócios ilegais, mas que
ficava à beira do descontrole por minha causa.
— Então, o que está esperando? — Inclinei o rosto, quase encostando nossos
lábios. Quase. — Estou aqui, bem na sua frente. Me cala, Lira.
Por um segundo, achei que ela fosse fazer exatamente isso. Ela respirou
fundo, os olhos dançaram entre meus lábios e meus olhos, o aperto no meu
queixo afrouxou.
— É exatamente isso que você quer não é?
— Está com medo de não se segurar? — Sussurrei, o ar escapando entre nós
como um segredo. — Ou será que tem medo de gostar demais?
Isso foi a faísca que acendeu o fogo. Lira avançou. Rápida. Feroz. Seu corpo
colidiu com o meu, me prensando contra a mesa. Eu senti a madeira dura
contra minhas costas, mas não me importei. Não era dor o que eu sentia. Suas
mãos vieram para os meus pulsos, prendendo-os contra a mesa acima da
minha cabeça. O rosto dela estava tão perto que eu pude sentir a respiração
quente bater no meu nariz.
— Você é audaciosa demais, Ayra. — O tom dela era baixo, quase um
rosnado. — E acha que pode controlar tudo, mas eu vou te mostrar que está
errada.
— É mesmo? — Arqueei uma sobrancelha, meus olhos fixos nos dela. —
Parece que você está tentando me convencer… ou se convencer. Qual dos
dois é, noivinha?
O músculo no maxilar dela se contraiu, e, por um instante, eu soube que
estava a segundos de perder o controle que ela se agarrava tão firmemente.
Senti o aperto nos meus pulsos aumentar e, por um segundo, meu coração
acelerou de um jeito que não tinha nada a ver com medo. Era expectativa. Era
desejo.
— Você está me testando, Ayra. — Ela disse, inclinando o rosto para o meu
ouvido, a respiração quente e lenta. — Não tenho paciência hoje.
— Que coincidência, eu também não. — Revirei os olhos, mas minha voz
saiu mais baixa, menos firme do que eu queria. — Covarde…
Eu provoquei, pois precisava recuperar o controle. Naquele momento. Aquilo
foi o que precisava. Lira avançou sobre mim, me beijando, mantendo-me
presa deitada na mesa e os pulsos acima da cabeça. Ela gemeu quando
correspondi o beijo, sua língua dançando com minha. Mas antes que eu
cedesse demais, fiz um movimento rápido.
Ergui o joelho, acertando a lateral dela, não com força, só o suficiente para
desestabilizar. No mesmo instante, girei os quadris e escapulir por debaixo
dos braços dela, deslizando para o lado com a habilidade de uma dançarina.
Quando me virei, vi a surpresa no rosto dela, mas também vi algo mais.
— Acho que precisamos de uma pausa, Zamorano. — Eu disse, recuperando
o fôlego enquanto passava as mãos nos pulsos, fingindo que eles doíam. —
Não quero deixar você mal-acostumada.
O olhar de Lira cintilou com algo perigoso, uma mistura de frustração e
desejo. Eu sabia exatamente o que estava fazendo, e ela também sabia. Isso
só tornava tudo mais divertido. O controle era meu de novo, e eu pretendia
saborear cada segundo.
— Desgraçada. — Lira deu um passo à frente, o olhar afiado, como se fosse
avançar. Eu coloquei distância entre nós.
— Não... — Disse como uma ordem. Sorri de forma preguiçosa, mordendo o
lábio enquanto encarava o dela. — Se implorar, posso deixar você me pegar.
Ela bufou, apertando os braços, claramente contendo o impulso de me
agarrar. Eu vi o desejo arder naqueles olhos cinzentos, e meu ego inflou.
— Eu não vou implorar por nada…
Lira disse orgulhosa. Eu me aproximei mais uma vez, não para atacar, mas
para provocar de novo. Lentamente, ergui minha mão, tocando sua mandíbula
com a ponta dos dedos, sentindo o calor de sua pele. Lira não se afastou, mas
seus olhos não se desviaram dos meus.
— Tem certeza? Por que está me olhando assim, Lira? — murmurei,
inclinando a cabeça, aproximando nossos rostos. — Vai me beijar ou me
bater?
— Estou decidindo. — Ela rebateu, a voz baixa, porém letal.
— Escolha com cuidado, querida. — Inclinei-me ainda mais perto, até que
nossos narizes quase se tocaram. — Porque se me beijar, vai implorar sim,
para não parar.
Eu vi o exato momento em que ela travou a mandíbula, tentando decidir se
me agarrava ou me afastava. Mas eu sabia o que ela queria. O problema era
que eu não ia dar isso a ela. Com um sorriso lento e cheio de malícia, afastei-
me, deixando minhas unhas arranhavam de leve a linha de seu maxilar.
— Te vejo na visita ao apartamento, noivinha!
Dei uma piscadela, andando para trás lentamente, observando cada segundo
da frustração que tomava conta dela. Lira me seguiu com os olhos, o corpo
tenso como uma fera prestes a pular. A tensão entre nós era quase sufocante.
Eu de repente adorei isso.
Dei as costas, andando em direção à porta, mas antes de sair, falei por cima
do ombro, só para garantir que a última palavra fosse minha.
— Tenha um bom dia, Lira. — Olhei por cima do ombro, os meus olhos
encontrando os dela cinzas, que me fitavam como se quisessem me queimar
viva. — Vou deixar você sonhar comigo hoje à noite.
E com isso, eu saí, ouvindo o som abafado de algo se quebrando atrás de
mim. Talvez fosse um copo. Talvez fosse o orgulho dela.
De qualquer forma, eu saí rindo.
☙❧
Lira Zamorano
Subi o elevador até o último andar do triplex, sentindo cada segundo daquela
irritação corrosiva crescer dentro de mim. Os números no visor subiam
devagar demais, e cada “ping” que anunciava o próximo andar parecia
zombar de mim. Meu maxilar estava travado desde o momento em que saí do
carro, e tudo isso por causa de uma única pessoa.
Ayra Arellano.
A lembrança dela invadindo meu escritório no dia anterior ainda fazia meu
sangue ferver. Não bastasse a audácia de entrar sem avisar, ainda apareceu
com uma cesta de café da manhã e se atreveu a me provocar de todas as
formas possíveis. Sedutora. Insolente. Deliberada.
Agora, lá estava eu, sendo obrigada a encontrá-la de novo, para decidir a
decoração do apartamento que Javier e Arturo decidiram nos “presentear”.
Um triplex luxuoso, moderno, com vista privilegiada para a cidade. Outra
jaula de ouro.
Quando as portas do elevador abriram, eu respirei fundo antes de sair. O
cheiro de tinta fresca e objetos novos me recebeu. O piso de mármore branco
brilhava sob as luzes de teto embutidas, e as janelas de vidro iam do chão ao
teto, revelando a vista panorâmica da cidade. O sol batia direto, criando
sombras elegantes nas paredes de tom cinza-chumbo.
A entrada era espaçosa, e a sala de estar parecia uma galeria de arte com um
enorme sofá de couro branco disposto de forma estratégica no centro. Ao
lado, uma escada de ferro com degraus de madeira levava ao segundo piso,
enquanto do outro lado uma cozinha americana de mármore preto e
eletrodomésticos prateados reluzia como se nunca tivesse sido usada.
“Provavelmente nunca seria”… pensei.
— Achei que você não vinha.
A voz dela soou atrás de mim, e eu não precisei me virar para saber que Ayra
Arellano estava ali, exalando provocação e perigo. Eu a reconheceria em
qualquer lugar.
Ela estava apoiada no batente da porta, usando uma jaqueta de couro preta e
uma blusa justa por baixo, o que me forçou a desviar o olhar antes que meus
olhos caíssem onde não deviam. Seus jeans rasgados nos joelhos apenas
reforçavam sua imagem de rebeldia. Seus cabelos soltos estavam bagunçados
de propósito, e o sorriso arrogante dançava no seu rosto como um aviso.
Maldita Arellano, linda.
— Estou atrasada? — perguntei, ainda de costas para ela. Caminhei até o
centro da sala, passando os dedos pela superfície lisa da mesa de centro de
vidro. Fria. Assim como eu queria parecer. — Não sabia que tinha horário
marcado!
— Não está atrasada. — Ouvi o som dos seus passos ecoando pelo mármore,
lentos e deliberados. Ela parou a poucos metros atrás de mim. — Mas você
está bem… tensa. Noite ruim, noivinha?
O tom de provocação foi evidente. Fechei os olhos por um segundo. Respirei
fundo. “Não dê o gosto a ela”, eu disse a mim.
— Eu estou tensa porque tem uma praga que não me deixa em paz. — Virei
para encará-la. — Se soubesse que você já estava aqui, teria me atrasado de
propósito.
— Que pena. Eu teria aproveitado o tempo sozinha para testar o sofá. Parece
confortável para muitas atividades além de sentar. — Ayra se aproximou, os
olhos passeando deliberadamente pelo ambiente. — Ou talvez a cama no
segundo andar… deveria ir dar uma olhada. Quer subir comigo?
— Se tentar subir, eu te jogo escada abaixo. — Disparei, cruzando os braços,
mas ela apenas riu.
— Você precisa relaxar, Zamorano. — Ela passou por mim, arrastando o
dedo na mesa de vidro, olhando para o dedo depois, como se estivesse
checando se havia poeira. — Vamos decorar esse lugar juntas, lembra? União
dos cartéis, união de gostos.
— Você não tem gosto, Arellano. — Disparei, sem conseguir conter a
provocação. — Se fosse por você, isso aqui seria decorado com luzes de neon
e pôsteres de filmes de ação dos anos 90.
— E ia ficar incrível... — Ela piscou para mim, enquanto a decoradora
tentava manter a postura profissional. — Você deve admitir.
Antes que eu respondesse, ouvimos o som de passos no andar de cima. Virei
o rosto e vi uma mulher loira descendo as escadas, com um tablet na mão e
um sorriso profissional demais no rosto. Ela vestia um conjunto elegante de
blazer branco e saia lápis, que a fazia parecer mais uma executiva de
multinacional do que uma decoradora de interiores.
— Senhoritas Zamorano e Arellano! — Ela abriu os braços em saudação, os
saltos ecoando pelo piso de mármore. — Que prazer finalmente encontrá-las
pessoalmente. Eu sou Maia Saldana, e serei a responsável por transformar
este espaço em um lar digno da grande união de vocês.
— Lar? — Ayra repetiu, torcendo o rosto em uma careta. — Isso vai ser uma
prisão, com travesseiros bonitos.
Maia riu, claramente achando que era uma piada, mas eu sabia que Ayra
estava falando sério. Fiquei em silêncio, analisando a decoradora.
Profissional demais, sorridente demais. Gente assim sempre escondia algo…
Era bem provável que ela estivesse nos vigiando para meu pai.
— Javier ou Arturo que leve indicou para cuidar da decoração e da obra? —
eu perguntei.
— Ah, foi o Sr. Zamorano — ela respondeu, me dando um sorrisinho. Não
me surpreendi, então não errei na minha avaliação.
— Podemos começar logo de uma vez com o que quer que tenha para
mostrar? — Ayra falou, enquanto observava Maia com uma sobrancelha
arqueada e um um olhar gelado.
— Sim, claro — Maia disse limpando a voz, estendendo o tablet para mostrar
algumas imagens de design de interiores. — Tenho três estilos de decoração
para apresentar, pois os móveis atuais vão ser substituídos. Alguns já estavam
no apartamento, entretanto, podemos substituir tudo. A primeira opção de
decoração é algo mais moderno e minimalista, com tons de cinza, preto e
branco, destacando os espaços amplos e a luz natural.
— Entediante. — Ayra disse, revirando os olhos. — Próximo.
Maia hesitou, mas deslizou a tela do tablet, mostrando outro estilo.
— O segundo é um conceito mais contemporâneo, com cores quentes como
vinho e dourado, estofados de veludo e lustres pendentes. Uma abordagem
mais elegante e acolhedora.
— Vinho e dourado? — Cruzei os braços, dando um aceno negativo. — Isso
parece um bordel chique.
— Querida, um bordel, eu diria. — Ayra respondeu, inclinando a cabeça,
com um sorriso travesso. — Prefiro isso do que o primeiro. Tem mais…
personalidade.
— Claro que prefere. — Resmunguei. — Tudo que eu desgosto te agrada.
— Exatamente. — Ayra piscou para mim, enquanto a decoradora tentava
manter a postura profissional.
— E o terceiro? — Perguntei, tentando encerrar a nossa discussão antes que
eu perdesse a paciência. — Por favor.
Maia deslizou o dedo na tela e apresentou a terceira opção, revelando um
ambiente que exalava sofisticação e aconchego ao mesmo tempo. A paleta
era composta por tons neutros, bege, creme e toques de marrom quente,
equilibrados com um uso sutil de madeira natural e acabamentos metálicos
em dourado envelhecido.
— O estilo é contemporâneo. Aqui temos um espaço que é ao mesmo tempo
funcional e acolhedor. — Maia explicou, virando o tablet para que
analisássemos melhor. — A iluminação quente e os detalhes em madeira
trazem um equilíbrio elegante, enquanto o design móveis mantém a
modernidade necessária para um espaço desse porte.
Ayra ergueu uma sobrancelha enquanto analisava os detalhes.
— Parece que mistura o luxo com o conforto… e um toque de ostentação. —
Ela comentou, tentando esconder o leve sorriso de aprovação.
— Gostei. — Falei, antes de perceber.
— É, pode ser… — Ayra concordou. Ela deu um passo ao meu lado, olhando
a imagem mais de perto. — Eu posso adicionar uns quadros de filmes antigos
e cartazes de luta?
— Se fizer isso, eu queimo. — Retruquei.
— Você é tão sem humor — Ayra se inclinou, encostando a boca perto da
minha orelha. Sua voz saiu baixa e rouca. — Vou ter que te ajudar com isso...
— Tem algo que preciso acrescentar. — Me afastei da Lira, chamando a
atenção da Maia, que ainda olhava para a planta do triplex. — Preciso de um
espaço para um piano.
— Piano? — Ayra ergueu a sobrancelha, visivelmente surpresa e novamente
diminuindo o espaço entre nós. — Você toca?
— Toco. — Respondi, mas não olhei para ela. Mantive a minha atenção na
decoradora.
— Claro, vou adicionar essa exigência ao projeto. — Maia disse, com um
aceno.
— Hmm… Isso eu quero ver. — Arya atraiu a minha atenção. Ela inclinou a
cabeça, me observando. — Vai ter que tocar para mim.
Rolei os olhos, fingindo desdém, mas a verdade era que o olhar dela me
incomodava mais do que deveria. Por que você parece orgulhosa disso,
Arellano?
— Se eu tocar, você fica em silêncio e me dá paz? — Disparei.
— Depende do que você tocar. — Ela sorriu, se afastando. — Se for bom,
talvez.
Eu não respondi. Mas fiz uma promessa silenciosa de que, quando ela me
visse tocar, iria ficar sem palavras.
O celular vibrou no meu bolso, um zumbido insistente que me distraiu.
Peguei o aparelho e vi o nome de Arturo na tela. Suspirei antes de atender.
Arturo não ligava sem motivo, e raramente era algo bom.
— O que foi agora? — Perguntei, a voz fria, enquanto me afastava da
conversa com Maia e Ayra, buscando um canto onde pudesse falar sem ser
ouvida.
— Temos um problema, Lira. — A voz de Arturo era pesada, com uma ponta
de algo que soava como cansaço. — A situação com Duarte. Fizemos o que
foi possível para conter as coisas até agora. Ele perdeu metade dos homens, e
os que sobraram estão acuados. Mas sabemos que ele ainda está tentando
angariar apoio para questionar a aliança. Se não agirmos agora, a
instabilidade vai crescer como um câncer diante dos nossos outros associados
e vai chegar aos ouvidos da Lyza.
Fechei os olhos por um momento, pressionando os dedos contra o nariz. Isso
não era nada bom. Eu conhecia a insatisfação de alguns associados com a
nossa união ao Cartel Dragão Vermelho, alguns seriam prejudicados. Mas
nada substancial ou que fosse fazer Arturo desistir.
— Já mandei recados suficientes para Duarte. Ele deveria saber que qualquer
afronta teria consequências. — Respondi, sentindo a raiva surgir lentamente.
— Por que ainda estamos conversando sobre ele?
— Porque ele não se intimidou o suficiente. — Arturo disse, cortante. — Nós
precisamos de um recado definitivo, Lira. E isso significa que chegou a sua
vez de atuar.
Eu fiquei em silêncio por um longo momento, minhas mãos se fechando em
punhos enquanto a tensão se acumulava no meu peito. Fazia meses, talvez
mais de um ano, desde que eu precisei intervir pessoalmente. Todos no nosso
círculo sabiam o que significava quando eu me envolvia diretamente. E
Arturo sabia disso melhor que ninguém.
— Se eu for, sabe o que acontece — Murmurei, minha voz baixa, mas afiada
como uma lâmina. — Não quero transformar isso em uma carnificina.
— Não temos escolha, Lira. — A voz dele era firme, mas com uma nota de
compreensão. — Duarte precisa ser apagado, junto com qualquer sombra de
rebelião que ele plantou. Não podemos nos dar ao luxo de sermos vistos
como fracos. Não agora.
Soltei o ar pelos dentes, meus olhos fixos na janela enquanto eu tentava
controlar o turbilhão de pensamentos. Arturo estava certo. Não havia espaço
para hesitação. Duarte já tinha ultrapassado todos os limites.
— Onde ele está? — Perguntei finalmente, minha voz fria, sem emoção.
— Em uma propriedade perto do seu forte. Ele está cercado pelos poucos que
ainda o seguem. Não será difícil invadir, eu vou te mandar a localização.
Mas… — Arturo hesitou, o que era raro. — Só quero lembrar que, uma vez
que você aparecer, não haverá como voltar atrás ou hesitar.
— Nunca há, Arturo. — Respondi, desligando antes que ele pudesse dizer
mais. — E eu nunca hesito.
— Tem total autonomia!
Arturo disse, antes de desligar. Eu respirei fundo. Quando me virei, encontrei
Ayra me observando. Claro que ela teria que ouvir. Ela estava encostada na
parede, os braços cruzados, um sorriso que parecia um cruzamento de
diversão e provocação em seus lábios.
— Problemas? — Ela perguntou, o tom casual demais para a tensão do
momento.
— Nada que te interesse. Vou te deixar com a decoração… — Respondi
friamente, tentando passar por ela. Mas, claro, Ayra colocou uma mão na
minha frente, bloqueando meu caminho.
— Ah, qual é, Zamorano. — Ela inclinou a cabeça, o sorriso ampliando. —
Não se faça de difícil. Parece algo grande. Deixe-me adivinhar… Duarte?
Ouvi rumores sobre ele.
Apenas o nome dele nos lábios dela fez minha paciência quase se esgotar.
Era claro que ela teria ouvido algo. Não seria a Ayra se ela não tivesse se
metido em algo que não era chamada. Só que ela não tinha ideia do que eu
estava prestes a fazer.
— Fique com seus rumores… — Respondi, a raiva vazando pela minha voz.
— Vou cuidar da situação.
— Agora estou interessada em saber como. — Ayra sorriu, aquele brilho de
caos e fogo acendendo em seus olhos. — Vamos, Zamorano. Quero ver do
que você realmente é capaz.
A tensão fez meus músculos doerem. Eu já tinha problemas o suficiente, mas
eu sabia que seria quase impossível manter Ayra fora disso, se ela queria se
envolver.
— Só não me atrapalhe… — grunhi, passando por ela.
Ayra não fazia ideia do que estava prestes a testemunhar. Mas, quando ela
visse, talvez até mesmo ela pensasse duas vezes antes de me provocar
novamente.
☙❧
Ayra Arellano
A escuridão da noite era cortada apenas pelo som abafado das hélices do
helicóptero. Estávamos suspensos no ar, como predadores silenciosos prestes
a atacar.
Olhei para a figura ao meu lado, Lira Zamorano, imóvel, a expressão fria e
calculada. Nunca tinha visto ela daquele jeito, e de alguma forma eu sabia
que não deveria provocar, não quando ela carregava aquela fúria fria. Ela
estava concentrada para matar, vestida toda de preto, usando um colete
apertado. Seu cabelo preso em um trança intrincada. Estava linda e letal.
Ao redor dela, seis homens armados verificavam seu equipamento. Era óbvio
que todos estavam ali sob seu comando, como peças de um tabuleiro
cuidadosamente montado. Ela não parecia humana naquele momento, mas
sim uma força da natureza condensada em forma de mulher. E eu? Eu estava
curiosa. Não, fascinada.
Sabia que Lira era uma estrategista imbatível, uma lutadora implacável. Mas
nunca a tinha visto em campo assim, como uma “executora”. E bem, aquilo
era algo que eu precisava ver.
— Estamos no ponto de salto — A voz do piloto ecoou em nossos fones. —
Está pronta?
Lira apenas assentiu, puxando as luvas de couro, verificando mais uma vez as
armas presas ao corpo. Duas pistolas nos quadris, uma metralhadora curta nas
costas e, provavelmente, facas escondidas em lugares que ninguém
adivinharia. Eu me perguntei quantas vezes ela já tinha feito aquilo.
Ela parecia um soldado, não alguém que foi treinada num quartel e fiquei me
questionando como realmente foi sua criação.
Lira não disse uma palavra para mim, nem mesmo me lançou um olhar antes
de agarrar a corda. Os seis homens desceram antes dela, cada um tomando
sua posição ao redor da área. Eles saltaram com eficiência e sem medo
algum, também pareciam habituados. Estava bem claro que aquela era a
“equipe da Lira”, pela forma silenciosa como agiam sem comando.
Quando chegou a vez dela, Lira foi a última a descer, como se quisesse
garantir que nada ficaria fora do controle. Assisti, com os olhos fixos,
enquanto ela desaparecia na escuridão, descendo com precisão e rápido. A
sua silhueta se movendo com a precisão de alguém que sabia que era dona da
situação.
— Lira Zamorano entrando no campo. — Murmurei para mim mesma,
ajustando o binóculo de visão noturna. Eu deveria estar acostumada com
coisas assim, mas, naquela noite, havia algo diferente no ar.
Abaixo, a propriedade de Duarte era uma fortaleza. Homens armados
patrulhavam o terreno, suas lanternas cortando o escuro, enquanto outros
protegiam a entrada principal. Mas, em menos de um minuto, Lira estava
entre eles. E o caos começou.
Primeiro vieram os disparos. O som ecoou no vale ao nosso redor, e eu
ajustei o binóculo para segui-la. Lira era um borrão, movendo-se rápido
demais para que os homens pudessem reagir. Com precisão cirúrgica, ela
eliminava um após o outro. Todos os tiros certeiros na cabeça de cada
inimigo antes de se mover para o próximo. Era incrível.
Os homens da equipe que desceram com ela cobriam os flancos, avançando
sob as ordens dela transmitidas por gestos simples. Eles também miravam
para matar, claramente sem intenção de deixar alguém vivo. Aquela era uma
noite de morte e Lira era quem carregava o peso da ação.
Um dos guardas tentou emboscá-la pelas costas, mas, antes que ele pudesse
chegar perto, Lira virou, puxando uma faca da cintura e enterrando-a no
pescoço dele com força. Ela deixou ele cair, sem hesitar, não parando e
partindo para o próximo ataque.
Mais tiros ecoaram no ar, e dessa vez eles estavam mirando no helicóptero.
As balas ricocheteiam na estrutura, e o piloto acionou a metralhadora
acoplada, disparando rajadas contra os inimigos em pontos estratégicos.
Eu mal conseguia desviar os olhos do espetáculo lá embaixo.
Ajustei o binóculo outra vez, para ver a Lira. Agora ela estava correndo pelo
lado direito da propriedade, usando o terreno como cobertura, enquanto tirava
homens do caminho com tiros precisos. Quando as balas acabaram, ela largou
as pistolas e pegou a metralhadora curta. Dois homens apareceram no seu
caminho, mas não chegaram a dar mais de três passos antes de cair.
Quando a vi jogar a arma de lado, sem munição, e partir para o corpo a corpo,
percebi que estava prendendo a respiração. Um dos guardas, um brutamontes
com o dobro do tamanho dela, avançou com um bastão. Lira desviou com
uma graça quase sobrenatural, abaixando-se e aplicando um chute direto no
joelho dele. Ele caiu, gritando, e ela terminou o serviço com um soco seco
que o deixou inconsciente.
Outro tentou agarrá-la, mas Lira girou o corpo de algum jeito, ficando atrás
dele, a faca na sua mão perfurou as suas costas, várias vezes antes dela
quebrar o pescoço dele sem pestanejar. Eu senti um frio percorrendo minha
espinha. Não de medo. De fascínio.
— Você nunca me mostrou esse lado… Estava se poupando Lira? —
Sussurrei me perguntando, enquanto ajustava o binóculo novamente para
segui-la. — Ou estava mantendo acorrentado seu monstro?
Ela se movia como um furacão. Não havia hesitação, não havia erro. Cada
passo, cada golpe era calculado para causar o máximo de dano no menor
tempo possível. Era como assistir a um predador caçando, sedento por
sangue, mais e mais.
O helicóptero balançou com mais tiros, e o piloto gritou algo sobre
precisarmos sair dali. Eu não respondi. Estava hipnotizada. Lira estava na
entrada da casa agora, eliminando os últimos guardas com uma combinação
brutal de tiros das armas que pegou no caminho e golpes.
Quando ela finalmente desapareceu dentro da casa, senti minha respiração se
soltar em um suspiro. Meu coração estava disparado, mas não era só pela
tensão da situação. Era pela Lira. Pela visão dela em ação.
E, pela primeira vez, eu entendi por que todo mundo a temia. Não era apenas
porque ela era uma Zamorano. Era porque, no campo de batalha, ela era
monstruosa, completamente impiedosa.
— Ah, Lira… você é realmente fascinante… — Sorri, apesar de mim mesma.
O helicóptero subiu com força, ultrapassando as nuvens espessas. Lá em
cima, o mundo parecia quase silencioso, como se estivéssemos suspensos
fora do tempo e espaço. O piloto olhou para mim por cima do ombro, me
checando, mas apenas dei um tchauzinho.
— Acha que vai demorar? — perguntei, tentando soar indiferente, minhas
mãos estavam cerradas ao redor dos binóculos, mesmo que fosse impossível
ver algo ali em cima.
— Não sabemos o padrão dela. — O copiloto respondeu de forma curta,
dando de ombros. — Ela faz contato quando chegar a hora.
Mordi a língua, tentando conter a irritação que fervia sob a pele. Odeio não
ter controle de uma situação ou saber o que vinha a seguir. O silêncio esticou-
se como um fio prestes a romper, e meus nervos estavam à flor da pele.
De repente, uma explosão rasgou o ar, quebrando o silêncio sufocante. O
helicóptero balançou levemente, e o piloto soltou um palavrão. Meu coração
disparou, e meus olhos imediatamente buscaram o horizonte abaixo das
nuvens. Ajustei o rádio no meu ouvido.
— O que foi isso? — perguntei, mas o único som foi o de estática e, em
seguida, uma outra explosão.
O helicóptero tremeu novamente. Dessa vez, consegui ver pela brecha entre
as nuvens: uma das torres de observação sendo engolida por uma bola de
fogo. Era um espetáculo de destruição quase hipnótico. Outra explosão se
seguiu, e a segunda torre cedeu, mergulhando em uma nuvem de fumaça
densa.
— É ela. — O copiloto murmurou, uma ponta de descrença em sua voz. —
Estão limpando a área.
Claro que era. Só podia ser.
— Confirmando destruição das torres. — A voz de um dos homens dela veio
pelo rádio, cortada pela interferência, mas clara o suficiente para ouvir a
vitória contida. — As torres estão neutralizadas, senhora.
Eu segurei o fone, esperando a voz dela em resposta ao seus homens. Meu
coração martelava, uma combinação de ansiedade e algo a mais que eu não
sabia nomear. Mas o rádio permaneceu em silêncio.
Minutos pareciam horas. Isso me deixou mais impaciente que o normal.
Finalmente, o rádio voltou a chiar. O som de tiros ao fundo veio primeiro,
depois a respiração pesada dela.
— Helix, preparem o pouso. A zona está segura o suficiente. Mas, por
precaução, mantenha as armas preparadas. Ainda temos resistência em
algumas áreas. — A voz dela era firme, mas havia uma leve rouquidão, como
se estivesse fora de fôlego. — Venham logo. Quero isso terminado.
A tensão no meu corpo afrouxou, mas não completamente. Eu ainda podia
ouvir os tiros ao fundo. Ela estava no meio daquilo. Sozinha ou com sua
equipe, pouco importava. Era ela quem estava carregando o peso da missão.
— Preparar para a descida.
O piloto disse já ajustando o curso. O helicóptero começou a descer, e eu
ajustei o fone novamente.
— Zamorano, você está inteira? —
Eu perguntei, minha voz tentando provocar, disfarçando que eu realmente
queria saber se ela não tinha tomado um tiro ou algo assim. Mas eu obtive
apenas silêncio como resposta. Apenas tiros ao fundo e o som abafado de
passos apressados.
— Zamorano? — Tentei de novo, mais firme desta vez. — Está me
ignorando?
Ainda nada. Meu estômago revirou, e a adrenalina começou a subir de novo.
Segurei o rádio com mais força. Talvez ela não estivesse me ignorando e a
ideia dela estar encurralada, provocou sentimentos mistos em mim. Mas
todos envolviam pegar uma arma para ajudá-la.
O helicóptero descia lentamente agora, mas a tensão era quase insuportável.
Olhei para o piloto, que estava visivelmente apreensivo. Do alto, vi as torres
destruídas e pedaços de metal retorcido espalhados pelo chão. Mas nenhum
sinal dela dentro da casa.
— Helix, zona parcialmente limpa. — disse um dos homens. — Desça de
uma vez como a senhora mandou.
Mais tiros soaram pelo rádio. Explosões mais distantes ecoaram. Então,
finalmente, a voz dela voltou, firme e cortada pelo barulho ao fundo.
— Desça de uma vez. Deixe a metralhadora armada. — A respiração dela
ainda estava irregular, mas o tom era implacável. — Estou inteira, Ayra. Nem
pense em sair do helicóptero.
Eu soltei o ar que não percebi que estava segurando e me inclinei para frente.
Surpresa por ela deduzir que eu poderia sair.
— Tomando toda a diversão para você, Zamorano. — Falei, tentando colocar
alguma provocação na voz, mas até eu sabia que não soava como de costume.
— Nem pensei em sair!
— Conheço você, Arellano.
Ela respondeu, antes de cortar a conexão. Eu não sabia se aquele tom dela me
tranquilizava ou me deixava ainda mais apreensiva.
O helicóptero desceu com precisão militar, a grama e a poeira levantando em
redemoinho ao nosso redor. O piloto manobrou a aeronave com firmeza,
trazendo-a para um pouso suave em frente à mansão parcialmente destruída.
Lira explodiu algumas “coisinhas” assim que entrou ali, era claro.
O cheiro de pólvora impregnava o ar, e a fumaça subia em espirais negras
que se misturavam ao céu cinza. As duas torres ainda ardiam ao longe. Carros
queimados e o chão estava coberto de corpos.
Eu observei tudo isso com o olhar atento de alguém que já viu o inferno
antes. Porque, honestamente, era isso que eu estava vendo agora.
— Metralhadora pronta — disse o copiloto, ativando o mecanismo na lateral
do helicóptero. O barulho do ferro rangendo ao se posicionar fez minha pele
se arrepiar. — Aguardando ordens!
Eu me inclinei para frente, pegando o binóculo. Do lado de fora, vi os
homens de Lira se aproximando em formação de combate. Três deles. Sujos
de sangue e pó, os coletes de combate manchados de sangue e rasgados.
O líder do grupo levantou o braço, fazendo o sinal de “zona limpa” para nós.
Dois dos homens que vinham atrás dispararam tiros precisos contra
retardatários que tentavam fugir pelo lado da mansão. Os corpos caíram
quase ao mesmo tempo, o som seco dos tiros ecoando no ar.
A visão era brutal. Precisa. Fiquei observando a precisão com que eles
eliminavam cada ameaça restante. Tiros limpos. Movimento perfeito.
Ninguém corria. Ninguém vacilava.
De dentro da mansão saiu mais um homem da equipe. Assim se aproximaram
os quatro homens, formando uma linha de proteção ao redor da área onde o
helicóptero havia pousado. Eles assumiram posição, fuzis apontados para
todos os lados.
Mas não era isso que eu queria ver. Eu queria vê-la.
Minhas mãos apertaram o binóculo, procurando o rastro de Lira. Nada ainda.
Não havia sinal dela. Eu mordi o lábio inferior, o nervosismo subindo
devagar, mas firme. Eu sabia que ela estava bem. Tinha que estar. Ela era
Lira Zamorano, afinal. Aquela mulher não era do tipo que caía fácil. Mesmo
assim, meu peito apertou de um jeito incômodo.
“Não seja idiota, Ayra”, pensei comigo mesma. “Você estava atirando nela
há pouco tempo atrás… Porque se preocupar agora?”.
Então, eu a vi. Emergindo da lateral da mansão, a sombra dela se moveu
primeiro. Depois, os detalhes vieram em foco. O colete tático ajustado ao
corpo, tinha marcas de tiros, seu rosto estava parcialmente coberto por sujeira
e suor. Mas os olhos… os olhos cinzentos estavam afiados como lâminas.
Ela não correu. Caminhou. Como se fosse dona do maldito mundo.
Dois homens a seguiram de perto, cobrindo suas costas, mas era claro quem
liderava aquela tropa. Eles não a guiavam, eles a seguiam. Lira não precisava
dar ordens para que eles soubessem o que fazer. Era o tipo de poder que você
não precisava provar, só carregar.
Meus olhos grudaram nela e eu quase não notei o que ela tinha nas mãos.
Deixei o binóculo cair, afinal não precisava mais dele, enquanto ela se
aproximava. Eu engoli em seco.
De todas as vezes que eu a vi, nenhuma foi como essa. Talvez eu finalmente
estivesse vendo ela de verdade. Agora eu o monstro dentro dela, a criatura
que era capaz de carregar a cabeça decepada de um homem.
Aquela era a Lira de verdade. Sem amarras. Sem protocolos. Sem controle. E,
por Deus, eu nunca a quis tanto como agora.
Ela parou por um momento, olhando para os homens dela que tomavam suas
posições. Virou o rosto para o helicóptero. Seus olhos vieram direto para
mim. E eu… eu senti. Aquele olhar me atingiu como um tiro no peito. Não
havia sorrisos, nem provocações. Havia sangue no rosto dela, mas ela não se
importava. Os olhos estavam fixos em mim, como se quisesse ter certeza de
que eu estava ali.
A sensação foi visceral.
Eu não desviei o olhar. Ela também não.
O rádio estalou de repente, cortando a tensão no ar.
— Disparem até a última bala da metralhadora… — A voz de Lira soou
rouca, mas firme, um comando inquestionável. — Não quero que sobre nada!
O rugido da metralhadora foi ensurdecedor. Assim que o gatilho foi
pressionado, uma chuva de fogo desceu sobre a mansão. As balas perfuraram
as paredes de concreto como se fossem papel, arrancando estilhaços de pedra
e madeira em todas as direções. O barulho era contínuo, como um trovão
ininterrupto que fazia o meu peito vibrar.
Janelas explodiram em uma sinfonia de estilhaços que voaram para todos os
lados, cintilando a luz fraca do sol nascente. Cortinas pegavam fogo quase
instantaneamente, enquanto as balas incendiárias atravessavam os vidros e
atingiam o interior da casa. Quadros caros despencaram das paredes,
rasgados por tiros precisos que não faziam distinção entre alvo ou decoração.
As paredes da fachada começaram a se desfazer. Buracos negros e irregulares
se abriam em cada parte atingida, revelando o interior do prédio. Fragmentos
de concreto e pedaços de ferro retorcido se espalharam pelo chão como
detritos de uma explosão controlada. O teto tremeu, algumas partes
desmoronando, enquanto uma coluna lateral não aguentou o impacto e cedeu,
derrubando uma parte da varanda frontal.
O fogo se espalhou rapidamente, engolindo o que restava do carro e
iluminando o cenário de destruição. O som das balas era incessante, cada
disparo ecoando com um ritmo metódico e destrutivo.
A última rajada foi mais curta, mas não menos brutal. Um dos pilares centrais
da estrutura foi atingido diretamente, o impacto fazendo-o tremer antes de
desmoronar com um rugido seco e estrondoso. O peso da estrutura cedeu, e
uma parte do teto caiu sobre os destroços abaixo, levantando uma nuvem de
poeira tão espessa que cobriu a cena inteira.
— Cessar fogo! — A voz de Lira veio no rádio, cortando o som
ensurdecedor.
O barulho da metralhadora cessou abruptamente, deixando um silêncio oco
que parecia muito mais alto do que o caos de antes. Por um momento, só se
ouvia o crepitar das chamas e o desmoronar de pequenos pedaços de pedra e
madeira. Era o som de um mundo morrendo.
Lira colocou a cabeça dentro de um saco preto, nas mãos de um segurança.
Então todos começaram a entrar. Lira não apressou o passo, ela subiu
calmamente.
Quando seus pés tocaram o chão do helicóptero, ela parou por um segundo,
respirou fundo e ergueu os olhos para mim. Meu coração deu um salto
estranho. Aquele olhar me atingiu mais forte do que qualquer tiro de fuzil.
Sangue ainda escorria por sua testa, uma linha fina que passava pelo canto do
olho, mas ela não parecia perceber. Ou talvez só não se importasse.
— Problemas resolvidos — disse ela, com a voz áspera e cortante como
cacos de vidro. Passou a mão no rosto, espalhando mais o sangue em vez de
limpá-lo. — Vamos sair daqui.
Ninguém contestou. A porta do helicóptero fechou com um baque surdo, e o
piloto recebeu a autorização para decolar. O rugido das hélices foi
aumentando de intensidade enquanto o helicóptero deixava o solo, e em
poucos segundos já estávamos subindo no céu cinzento. Eu me inclinei
levemente no banco, meus olhos ainda estavam presos nela.
Lira se jogou no banco ao meu lado, o corpo afundando como se a gravidade
tivesse dobrado o peso dela. O cheiro de suor e sangue misturado escapava de
sua pele, e o calor que ela emanava era tão forte que eu quase podia sentir a
vibração no ar.
Eu observei seus ombros subirem e descerem com cada respiração pesada. A
tensão nos músculos dela era visível, os punhos ainda fechados. Mas o que
me prendeu foi o olhar. Aqueles olhos cinzas ainda estavam tomados por algo
que eu nunca tinha visto antes. Não era raiva, nem ódio. Era algo que parecia
além disso.
— Sabe — eu comecei, cruzando as pernas e inclinando o corpo para frente,
apoiando os cotovelos nos joelhos. — Se queria me impressionar, conseguiu.
Ela não respondeu. Só inclinou a cabeça para o lado, me encarando. Não com
o olhar desafiador de sempre, nem com provocação. Apenas… me encarou.
Como se estivesse tentando decidir algo complexo.
— Não fiz isso para te impressionar, Arellano. — A voz dela saiu mais baixa,
mais calma, mas ainda cortante. — Fiz isso porque era necessário.
— Ah, claro. — Sorri, mas não havia humor no meu rosto. — Cortar a
cabeça do Duarte e carregar ela como um troféu foi “necessário”, né?
— Ele recebeu o que mereceu. — Lira virou o rosto para a janela, encarando
as nuvens que começavam a se formar. — E todos os outros também. Pois o
que houve hoje será usado como nosso cartão de visitas, para evitar novas
insurreições.
— Vai dormir tranquila depois disso?
Eu perguntei, inclinando a cabeça, tentando não demonstrar o quanto eu
ainda estava presa naquela imagem dela com a cabeça decepada nas mãos.
Ela riu, mas foi uma risada sem humor.
— Eu durmo tranquila desde que aprendi a não me importar. — Ela
respondeu sem me olhar. — É o que fazemos, Arellano.
Aquilo bateu de um jeito estranho. Franzi o cenho, encostando as costas no
banco, tentando processar o que aquilo significava. Mas antes que eu pudesse
dizer qualquer coisa, ela virou o rosto na minha direção, e seu olhar me
prendeu de novo.
— E você, Ayra? — Sua voz tinha um tom mais baixo, mas não menos forte.
— Vai conseguir dormir depois de ver quem eu realmente sou?
Senti um arrepio subir pela minha coluna. Porque, pela primeira vez, eu
percebi que aquela pergunta não era apenas uma provocação. Ela realmente
queria saber.
— Eu vou dormir muito bem. — Respondi, sem hesitar, meus olhos presos
nos dela e sorri. — Porque eu finalmente sei com quem eu estou lidando.
O silêncio voltou a se instalar entre nós. O helicóptero subia cada vez mais
alto, as nuvens começando a nos engolir. O mundo lá embaixo já não podia
ser visto. Estávamos acima de tudo. Só o som das hélices e o ruído dos
motores preenchiam o ar.
Ela me encarou por mais alguns segundos antes de desviar o olhar, voltando a
encarar o horizonte através da janela. Eu continuei observando-a, cada
pequeno movimento dos seus dedos, o modo como ela batia o pé contra o
chão, o movimento sutil de sua mandíbula enquanto cerrava os dentes.
Eu sabia que qualquer pessoa racional teria medo depois do que viu. Mas o
que eu sentia era o oposto. Era um desejo sufocante e incontrolável, uma
fome que eu não sabia que podia existir. Por um momento, a única coisa que
eu ouvi foi o batimento do meu próprio coração, ainda acelerado.
☙❧
O helicóptero pousou no galpão com um solavanco suave, mas preciso. O
som das hélices ainda reverberava nos meus ouvidos, e o cheiro de pólvora e
fumaça impregnava o ar. As lâmpadas frias e fluorescentes do galpão não
ajudavam em nada a suavizar o ambiente.
Homens se moviam de um lado para o outro, carregando armas e
equipamentos, mas meus olhos estavam fixos em uma única pessoa.
Lira.
Ela desceu do helicóptero antes mesmo que as hélices parassem por
completo, silenciosa como um fantasma. Seus passos eram firmes, decididos,
e o sangue seco no seu rosto e nos braços a fazia parecer uma estátua de
guerra, uma escultura em mármore manchada de vermelho. O colete balístico
estava desalinhado no corpo, como se o peso dele já não a incomodasse mais.
Ela não olhou para trás.
Eu me mantive no helicóptero por alguns segundos a mais, observando-a
cruzar o galpão sem dirigir uma palavra a ninguém. Não houve sequer um
comando ou uma troca de olhares com os homens. Lira não precisava. Ela era
a porra de um comando por si só.
— Tão previsível, Zamorano…
Eu murmurei para mim mesma antes de pular do helicóptero e segui-la.
Afinal, não tinha nada melhor para fazer mesmo.
Caminhei atrás dela, mantendo uma distância que me permitia observar sem
ser notada de imediato. Lira se movia como um predador depois da caçada, a
postura tensa, mas controlada, os passos lentos, mas firmes. Ela entrou por
uma porta lateral, e eu entrei no corredor estreito que levava até lá.
Empurrei a porta devagar, descobrindo que era um vestiário, o som de metais
batendo no piso e o sutil ruído de uma torneira aberta encheram o ar. Do lado
de dentro, o cheiro de suor, pólvora e sangue era mais forte. Lira estava de
costas para mim, de frente para o espelho que ficava acima de uma pia de
aço. A luz fria e direta fazia as sombras se projetarem duras nas suas costas.
Ela estava tirando o colete tático, com um cuidado metódico, mas eu percebi
que seu braço esquerdo estava mais lento. Cada movimento parecia calculado
para não provocar mais dor. Quando finalmente removeu o colete, largou-o
com força no chão, o impacto ecoando pelo ambiente.
Eu fiquei na entrada, observando.
Ela tirou a regata preta com um movimento lento, prático, e o tecido se
prendeu por um instante nos braços, revelando mais da pele dourada por
baixo. Meu olhar foi involuntário, ou pelo menos era isso que eu queria
acreditar. Mas meus olhos não se moveram, para os músculos do abdômen se
contraíram levemente enquanto ela puxava o tecido por cima da cabeça.
Um movimento simples, mas que fez cada músculo da barriga dela se definir
em gomos perfeitos. Não aqueles exagerados, eram femininos, mas o tipo que
você só consegue com treinamento e disciplina. Os oblíquos criaram uma
linha que parecia apontar para o cós da calça de combate, e meu olhar,
traiçoeiro, seguiu.
Inferno…
Meus olhos subiram de novo, então notei um corte longo e fino, próximo ao
ombro esquerdo, sangrava de forma lenta, mas consistente. Eu sabia que ela
estava ignorando a dor o tempo todo. Claro que sabia. Eu a vi entrar na casa
como uma maldita força da natureza, mas agora, vendo aquilo de perto, algo
dentro de mim se revirou.
Ela estava suada, e o brilho da umidade fazia sua pele reluzir como ouro
velho. Pequenas gotas desciam pela curva da cintura, escorregando
lentamente até o cós da calça. Eu acompanhei cada gota com uma precisão
doentia, incapaz de desviar. Era quase hipnotizante.
Pior ainda foi o momento em que ela inclinou o corpo para frente, apoiando
as mãos na pia. O movimento fez suas costas se arquearam e cada vértebra se
destacasse suavemente. Minhas unhas cravaram na palma da minha mão para
tentar ancorar minha atenção em outra coisa, qualquer coisa, mas não deu
certo.
Eu passei a língua nos lábios, uma tentativa frustrada de disfarçar o
nervosismo que eu fingia não sentir. Respirei fundo, tentando me convencer
de que nada daquilo me afetava. Mas mesmo que eu pudesse mentir para
mim, o problema é que meu corpo não acreditava na mentira.
Cada parte de mim estava atenta a ela.
E quando ela se inclinou mais para frente, tentando ver o machucado no
reflexo do espelho, o jeito que seus ombros se moveram, as costas largas se
curvando, me fez desejar…
Eu queria tocar.
Queria arrastar minhas mãos pela extensão das suas costas e ver se a sensação
era tão boa quanto parecia. Queria tocar aquelas outras cicatrizes pequenas
que eu podia ver a meia luz e talvez procurar novas. Eu queria apertar aquela
cintura fina e ouvir se ela faria algum som.
Eu assisti, Lira franzindo o cenho, os olhos analisando o ferimento com a
paciência de quem está acostumada com esse tipo de coisa.
— Não vai alcançar sozinha!
Eu disse, querendo o silêncio. Lira levantou o olhar para o espelho e
encontrou o meu reflexo. Seus olhos cinzas me encararam com uma mistura
de cansaço e irritação, mas ela não disse nada. Ela apenas voltou a olhar para
o corte, ignorando minha presença.
— Você vai precisar de pontos, e eu não vou perder a chance de fazer isso
com você. — Cruzei os braços e encostei o ombro no batente da porta. — Ou
você aceita ajuda, ou faz uma bela bagunça em si mesma.
Ela soltou um suspiro longo, inclinando a cabeça para baixo, como se
estivesse ponderando as opções. Por fim, balançou a cabeça devagar,
concordando, mas ainda não disse nada. Dei alguns passos à frente,
aproximando-me até o suficiente para ficar atrás dela.
— Não se mexe — eu disse, minha voz soando mais suave do que eu
pretendia. — Isso vai arder.
Peguei uma toalha limpa pendurada em um dos cabides e a molhei com a
água fria da pia. Sem hesitar, pressionei o pano molhado contra o corte. O
som que Lira fez foi baixo, mas eu ouvi. Um suspiro sibilante que escapou de
seus lábios.
— Que foi? Achei que você fosse durona.
Provoquei, limpando o sangue e a sujeira ao redor do ferimento. Mas eu
estava avaliando e vendo a extensão. Aquilo foi feito por uma faca serrilhada,
com certeza devia estar doendo em como um inferno.
— Eu sou durona, Arellano. — Ela respondeu, mas sua voz saiu mais rouca
do que firme. — Só estou cansada.
Dei um pequeno sorriso. Eu parei. Meus olhos subiram para o espelho, onde
seus olhos me observavam por cima do ombro. Não havia sarcasmo naquilo.
Só verdade. Uma verdade crua e inesperada. Voltei a limpar o corte com mais
suavidade.
— Relaxa, não vou contar para ninguém que a sós você fica manhosa.
Eu instiguei, desviando o olhar para o ferimento. Lira bufou, mas não disse
mais nada.
— Pronto. — Eu disse, jogando a toalha suja no chão. — Agora só falta
fechar isso. Onde tem um kit de primeiros socorros?
— Na prateleira, no topo, atrás de você.
Lira disse, eu me virei. Fui até uma das prateleiras, peguei o kit. Caminhei de
volta até ela, deixando a maleta na pia. De dentro, peguei uma agulha e linha
de sutura, girando o pequeno frasco de antisséptico na mão.
— Não se mexe.
Eu disse, mais uma vez. Ela não se mexeu. Aproximei-me, limpando o corte,
meus dedos tocando sua pele quente e úmida. O corte ainda parecia feio, mas
não era tão profundo. Eu poderia cuidar daquilo tranquilamente, não seria a
minha primeira vez. Posicionei a agulha e, sem aviso, perfurei sua pele.
— Filha da mãe! — Lira apertou o punho sobre a pia, os tendões da mão se
destacando.
— Se avisei, você ia se preparar. — Respondi, sorrindo enquanto passava a
linha e fechava o primeiro ponto. — Me agradeça depois.
— Agradecer você? — Ela me lançou um olhar pelo espelho. — Não sei
porque, está adorando me remendar sem anestésico.
— Não seja um bebê chorão — Sorri de volta, puxando o fio e amarrando a
ponta. — Se for uma boa paciente te dou um beijinho.
Lira soltou um som de desdém, virando o rosto para o lado, o que fez seu
perfil parecer ainda mais afiado à luz fria do vestiário. Sua expressão era de
pura impaciência, mas havia algo mais ali. Talvez cansaço. Talvez outra coisa
que eu não sabia nomear.
Olhei pelo espelho, observando sua careta enquanto costurava o corte nas
costas dela. Minhas mãos estavam firmes, precisas, como sempre. Por mais
que estivesse fazendo aquilo rápido, tentei ser o mais cuidadosa possível. Não
estava tentando causar mais dor.
Por algum motivo, essa noite, eu não queria.
Ainda faltavam alguns pontos, e o silêncio estava mais pesado que o normal.
O som do fio passando pela carne e o pequeno suspiro de Lira ao sentir a dor
preenchiam o ar.
— O que fez essa noite é um nível de ataque militar… — falei, sem
conseguir evitar a curiosidade. Minha voz saiu baixa, mas firme, enquanto
meus dedos ajustavam o fio e davam outro ponto. — Quem te treinou? E por
que você esconde esse lado brutal?
Senti Lira se enrijecer sob o meu toque. Foi sutil, mas perceptível. Como se
meu comentário tivesse tocado algo profundo que ela não queria que eu visse.
Seus ombros subiram levemente, mas ela não olhou para mim. Permaneceu
encarando o azulejo branco à sua frente, como se estivesse vendo algo muito
além dele.
— Desde quando eu devo satisfações a você, Arellano?
Ela murmurou, a voz rouca, mas ainda com aquele tom frio e controlado. Eu
revirei os olhos, puxando o fio com um pouco mais de força do que o
necessário. Ela apertou os olhos, mas não reclamou.
— Não deve — retruquei, mantendo o foco no corte. — Mas não significa
que não estou interessada. E, francamente, eu nunca vi você assim. Não desse
jeito.
Ela não respondeu de imediato. Eu observei pelo reflexo do espelho o jeito
que seus olhos cinzas ficaram ligeiramente opacos, como se estivesse longe
demais. E, por mais que ela tentasse fingir indiferença, eu sabia o que era
isso. Conhecia esse olhar. Era o olhar de quem está preso em uma lembrança.
— Meu pai… — Lira finalmente falou, de forma tão baixa que eu quase não
ouvi. — Ele sempre dizia que eu era muito impulsiva. Que eu precisava de
controle, estratégia, cabeça fria. Depois que meu irmão morreu, só restava a
mim ser a herdeira que ele queria que eu fosse.
Minha mão parou por um instante, o fio suspenso no ar. Eu não esperava por
isso.
— E isso inclui ser uma máquina de guerra? — perguntei, tentando não soar
tão suave quanto me senti de repente.
— Inclui ser o que for necessário. — Lira ergueu o rosto, encarando-me pelo
reflexo. Seus olhos agora estavam mais afiados, o cinza mais cortante. —
Não gosto de ter que ser o que fui hoje, mas se precisar, eu sou. E quando
assumi esse papel… eu não hesito.
Houve uma pausa tensa. Nossos olhares se cruzaram no espelho. Eu senti que
pela primeira vez estava vendo a Lira sem todas as máscaras ou barreiras.
— Gosto da versão que vi hoje — sussurrei, sendo sincera. — Ali pelo
menos você não tinha amarras. Seu pai te transformou na herdeira perfeita,
mas às vezes a perfeição é tão chata.
Eu dei de ombros desviando os olhos, pois de repente, aquilo pareceu um
momento muito íntimo. Eu fechei a última volta e finalizando o quinto ponto,
pegando a tesoura, cortando a linha. Toquei de leve as costas dela, os dedos
roçando sobre a pele. Não era para provocá-la, foi apenas um reflexo.
— Está feito. — Minha voz saiu mais baixa do que eu pretendia, enquanto
deixei as coisas de lado. — Se quiser, posso marcar com meu nome.
Lira virou o rosto para mim, os olhos semicerrados. Por um segundo, achei
que ela fosse dizer algo afiado, uma provocação ou uma ameaça. Mas ela não
disse nada. Só me olhou. E esse olhar foi mais forte que qualquer palavra. Eu
não recuei. Não ia ser a primeira a recuar.
Ela sabia o jogo que jogávamos. Sabia que, se eu recuasse, ela venceria.
Então continuei ali, parada, com o encarando-a de volta. O olhar de Lira não
se moveu, como se estivesse decidindo algo. Mas o que eu não esperava era o
que veio a seguir.
Lira deu um passo à frente, e depois outro. Meu corpo inteiro ficou em alerta,
cada músculo tenso, mas eu não me movi. Não desviei o olhar. Não dei
nenhum passo para trás. Ela parou na minha frente, tão perto que eu podia
sentir o calor que irradiava do corpo dela. A mão dela subiu devagar, o
suficiente para me fazer prender a respiração sem perceber.
Seus dedos tocaram meu rosto. Primeiro, a ponta dos dedos roçando de leve
minha bochecha, como se estivesse testando minha reação. Então, a palma
inteira repousou contra minha pele. Não era o toque que eu esperava. Não era
firme, não era brusco. Era suave. Tão suave que minha garganta apertou.
— O que você está fazendo, Zamorano? — minha voz saiu mais baixa do que
eu gostaria, quase um sussurro.
— Cala a boca, Arellano — Lira disse sem raiva, sem o típico tom
autoritário, sem a ferocidade de sempre. Foi quase gentil.
Ela me puxou com cuidado, o polegar traçando o contorno da minha
mandíbula, como se estivesse estudando cada curva. Meu coração deu um
salto no peito, acelerando de um jeito que eu não podia controlar. Tentei
respirar devagar, mas não consegui.
Senti cada parte de mim pulsar com aquela antecipação desconhecida e
traiçoeira. Eu odiava me sentir assim, por ela. E então outra surpresa me
atingiu quando a Lira inclinou o rosto e seus lábios tocaram os meus.
O contato dos lábios macios, não foi rápido, não foi voraz, não foi uma
guerra de quem dominaria quem. Foi… diferente. Foi um toque calmo, lento
e cuidadoso. O tipo de beijo que não se dá a qualquer pessoa. Não se dá a um
inimigo. Era um beijo reservado para amantes. E foi exatamente isso que me
fez entrar em choque.
Eu senti o gosto dela. O calor, o peso, o ritmo lento e doce, como se ela
estivesse dedicando para aprender cada detalhe meu. Sua mão na minha
mandíbula não apertou, apenas sustentou, me mantendo no lugar. Não como
uma posse, mas como um pedido silencioso para eu deixá-la continuar. E eu
deixei.
Meu coração estava um caos absoluto dentro do peito. Fechei os olhos sem
perceber e, quando fiz isso, algo dentro de mim se despedaçou. Minhas mãos
se moveram por vontade própria, subindo para segurar os braços dela. Eu
senti os músculos firmes sob meus dedos, e Lira não se afastou. Pelo
contrário, ela aprofundou o beijo, pressionando os lábios contra os meus com
um pouco mais de força, mas sem pressa. Nunca sem pressa.
Nunca havia sido assim. Nenhum daqueles beijos insanos que trocamos. E a
realidade disso, foi o que me deixou mais sem chão.
A minha respiração ficou entrecortada, quando ela se afastou. Só o suficiente
para nossos lábios se desgrudarem, mas ainda estávamos perto. O ar que
dividimos era quente e denso, como se estivéssemos em uma bolha.
Eu olhei para ela. Para o rosto dela tão perto do meu. Para aqueles olhos
cinzas que estavam tão suaves e intensos ao mesmo tempo. O tipo de olhar
que descobri ali que não me deixava respirar direito. Isso era possível?...
Engoli em seco.
— O que foi isso, Lira? — minha voz saiu baixa, sem o sarcasmo de sempre,
sem as provocações. Porque eu realmente queria saber. — Por quê me beijou
assim?
Ela não respondeu de imediato. Continuou me encarando, seu polegar
roçando de leve meu queixo, antes de deslizar para a linha dos meus lábios.
— Eu só quis ver como seria se nós não precisássemos brigar por tudo…
Meu coração falhou. Fiquei sem palavras. Não tinha nada preparado para
responder a isso. Porque, se fosse uma provocação, eu saberia como lidar. Se
fosse uma ameaça, eu saberia revidar. Mas aquilo? Aquilo era algo que eu
não tinha aprendido a lidar.
Lira abaixou a mão, soltando meu rosto, mas sem quebrar o contato visual.
Por um segundo, eu achei que ela fosse se afastar de vez, mas não fez isso.
Ela ainda ficou muito perto.
— Não se acostume com isso — ela disse, mas parecia estar dizendo para si
mesma. — Você ainda me irrita.
— E você me irrita muito mais…
Eu retruquei, sentindo a respiração descompassada. O canto dos lábios dela
subiu, quase um sorriso, mas não chegou a ser um.
Me sentindo confusa, me afastei, caminhando para fora do vestiário. Ainda
sentindo o gosto dela ainda nos meus lábios, enquanto minha mente tentava,
em vão, entender o que havia acabado de acontecer.
E o pior é que, no fundo, eu não queria entender. Eu só queria mais.
CAPÍTULO OITO
Lira Zamorano
Por fim, aquele dia finalmente chegou. O salão enorme de um hotel de luxo
estava banhado por um brilho dourado, o sol entrando pelos vitrais altos,
refletindo um arco-íris de cores suaves pelo espaço. Os lustres pendiam do
teto como joias, lançando um brilho cálido, e o corredor estava ladeado por
arranjos de flores que pareciam flutuar no ar: lírios brancos, orquídeas e
flores de cerejeira.
Um aroma doce e delicado preenchia o ambiente, quase mascarando a tensão
que era palpável entre os convidados.
Cartéis e pessoas poderosas. Eles estavam todos aqui.
Homens e mulheres que controlavam fortunas, armamentos, vidas inteiras.
Os representantes do Cartel Estrela Negra e Dragão Vermelho, sentavam-se
em lados opostos, como dois exércitos prestes a selar uma trégua. Seus trajes
impecáveis, sorrisos educados e olhares afiados eram um lembrete constante
de que aquele casamento não era mais do que uma transação. Um símbolo de
poder.
Um acordo de sobrevivência…
A música ecoava pela nave como um chamado solene, e eu me preparava
para atravessar aquele corredor. Meu vestido, um modelo tradicional e
elegante, era pesado, não pelo tecido, mas pela simbologia que carregava.
Cada passo parecia um lembrete de quem eu era e do que representava.
Eu, Lira Zamorano, herdeira do Cartel Estrela Negra, estava prestes a
sacrificar minha liberdade por uma aliança maior.
Minha mente estava em uma confusão, eu sentia tanta coisa sem conseguir
me fixar em nada. Era estranho me sentir fora dos trilhos, ainda mais, em um
dia tão importante como aquele. Eu devia manter as aparências e estava
lutando fortemente para isso.
Observei que Javier e Arturo estavam sentados nas primeiras fileiras,
acompanhando tudo com atenção. Arturo, como sempre, mantinha seu
semblante de pedra, mas Javier parecia mais relaxado, quase como se
estivesse se divertindo ao ver tudo se desenrolar.
A caminhada que comecei, era um pouco aterrorizante, até mais do que
enfrentar um exército de assassinos. O altar estava à minha frente, imponente
e solitário. Por um momento, achei que tudo aquilo era apenas um delírio,
que iria desaparecer. Mas então, a música mudou. Com ela, o ambiente
pareceu se transformar.
A porta lateral se abriu, e Ayra Arellano entrou.
Meu coração parou. Literalmente. Senti uma pressão no peito que me deixou
sem fôlego por alguns segundos. Meus passos quase pararam.
Ela atravessava a passarela lateral, caminhando com graça para convergir
comigo. Cada passo seu continha uma graça que era quase cruel, como se
soubesse exatamente o impacto que causava. O vestido branco dela, mesmo
que eu já tivesse visto antes, parecia mais devastador. A barra roçava o chão
com leveza, e o corpete abraçava seu corpo de um jeito que realçava cada
curva. Os ombros estavam à mostra, destacando seu pescoço delicado e
impecável. Seu cabelo estava preso em um coque elegante, e os brincos
brilhavam com cada passo que ela dava.
Ayra parecia feita de luz e sombras ao mesmo tempo.
O jeito como ela caminhava, a forma como mantinha o queixo erguido, como
se estivesse dizendo ao mundo que ela comandava aquele momento. Havia
algo em sua presença que não podia ser ignorado. Era poderosa e indomável.
E então, ela ergueu os olhos.
Nosso olhar se encontrou.
Eu juro que o mundo parou naquele instante. A música, os murmúrios, o som
dos passos dela, tudo desapareceu. Não havia mais nada, apenas Ayra. Seu
olhar queimava, desafiador e profundo, como se só existisse eu na sua frente.
Havia algo sufocante em vê-la assim, algo que apertava meu peito como se
estivesse me afogando.
E, naquele instante, eu soube.
Eu a odiava. E a desejava. De uma forma que era quase insuportável. E isso
era tão aterrorizante quanto inevitável.
Ela continuou a caminhar, e eu também, sem desviar os olhos. Cada passo
que ela dava em minha direção parecia um golpe contra minhas defesas.
Quando finalmente parou ao meu lado, perto do altar, eu não consegui evitar
um rápido desvio de olhar para sua mão, onde o anel de noivado brilhava. A
esmeralda da joia parecia um lembrete cruel de onde estávamos e do que
aquilo significava.
Ela se virou ligeiramente para mim, apenas o suficiente para sussurrar.
— Vai ficar encarando ou pretende sobreviver ao dia, Zamorano? — Sua voz
era baixa, carregada de sarcasmo, mas havia algo mais ali. Algo que apenas
eu poderia ouvir. — Me leve ao altar.
Eu respirei fundo, tentando recuperar o controle, mas já sabia que era uma
causa perdida. Não importa o que acontecesse naquele dia, Ayra havia
vencido.
E o pior de tudo?
Uma parte de mim queria que ela vencesse…
☙❧
Ayra Arellano
O altar estava logo à minha frente, mas minha atenção não estava em Javier,
Arturo ou qualquer outro dos figurões sentados nas primeiras fileiras. Nem
nos olhares atentos dos convidados ou na cerimônia que simbolizava muito
mais do que qualquer um de nós ali admitia em voz alta.
Não. Minha atenção estava nela.
Lira Zamorano.
Ela era tudo o que eu conseguia ver. Estava parada ao meu lado, com o
vestido impecável. Seus ombros estavam eretos, a postura elegante, mas
havia algo nos olhos dela que só eu podia ver. Um brilho contido, um
nervosismo mascarado pela máscara de indiferença que ela sempre usava tão
bem. Mas agora eu sabia olhar além disso. Sabia ler o que estava escondido
ali.
E talvez, naquele momento, eu fosse a única pessoa no mundo que realmente
a via.
Eu deveria estar irritada. Afinal, eu não queria estar ali. Isso era um jogo
político, uma manobra calculada para unir forças e consolidar poder. Mas, de
alguma forma, a presença dela fazia o peso daquele teatro parecer menos
sufocante. Talvez porque, apesar de tudo, ela era a única que poderia
entender o absurdo daquela situação.
Nós tomamos nossos lugares no altar. O cerimonialista começou a falar, sua
voz grave ecoando pelo salão.
Ele falava sobre união, sacrifício, compromisso. Palavras que, naquela
cerimônia, soavam quase cômicas. Mas a cada palavra dita, eu sentia o peso
daquilo aumentar. Era estranho. Não era apenas o que aquilo significava para
nossos cartéis, era o que significava para nós. Para mim. Para ela.
O cerimonialista pediu que nos virássemos uma para a outra, e então
aconteceu. Pela primeira vez, de frente para mim, ela ergueu os olhos e os
cravou nos meus.
Eu nunca a tinha visto assim. Nunca a tinha visto tão vulnerável e ao mesmo
tempo tão forte. Aquele olhar cinzento , que sempre achei a contragosto
extraordinário, parecia atravessar cada barreira que eu tinha. Como se ela
estivesse cavando mais fundo algo além da superfície. E, naquele instante,
enquanto ela repetia as palavras do cerimonialistas, prometendo algo que era
muito mais do que qualquer acordo entre famílias. Meu coração parou por um
segundo.
Ela prometia ser minha companheira. Prometia estar ao meu lado. Ser a
minha sombra em dias de sol. Minha cobertura em dias de chuva.
Cada palavra que ela pronunciava parecia ressoar não apenas no salão, mas
dentro de mim. Eu sabia que aquilo era parte do teatro, um roteiro para
agradar os olhos atentos ao nosso redor. Mas, naquele instante, não parecia.
Era genuíno demais. Real demais.
E, por um momento, algo quase sufocante tomou conta de mim. Não era a
ideia de uma aliança ou do que estava sendo sacrificado para unir os cartéis.
Era Lira. Apenas Lira. Ela, parada ali, dizendo aquelas palavras, olhando para
mim como se a única coisa no seu mundo inteiro.
O cerimonialista virou-se para mim, e percebi que era minha vez. Meu
coração batia tão alto que achei que todos poderiam ouvir. Respirei fundo,
ajustando minha postura, como se pudesse mascarar o turbilhão que acontecia
dentro de mim. Então, com os olhos fixos nos dela, hesitei, mas comecei a
falar.
Prometi o mesmo. Prometi ser a sombra nos dias de sol e a cobertura nos dias
de chuva. Mas, ao dizer isso, não sabia porque eu sentia como se fosse
verdadeiro.
Quando o cerimonialista nos entregou as alianças. Eu não tinha ideia quem as
escolheu, não foi algo que lembro de Javier ter mandado eu decidir. Mas eu
tinha que admitir, era um par lindo modelo exatamente igual.
O aro de ouro branco brilhava sob a luz, elegante em sua discrição. Pequenos
diamantes cravejados ao longo de toda a extensão formavam um padrão
contínuo e simétrico. Eu passei o dedo pela superfície lisa, sentindo as bordas
perfeitamente polidas.
Quando peguei a mão da Lira, segurando-a com mais cuidado do que eu tinha
pretendido. Coloquei o anel em seu dedo, mas mantive a mão dela na minha
por mais um segundo do que deveria.
A esmeralda em meu anel brilhou, enquanto Lira colocava a aliança em mim.
Seus dedos frios tocaram minha pele quando ela deslizou o anel em meu
dedo, e o toque parecia incendiar minha pele. Era como se aquele simples
gesto fosse muito mais do que o que parecia ser. Como se, naquele momento,
ela tivesse me prendido a ela de um jeito que ia além das palavras ou
alianças.
O cerimonialista finalmente nos declarou casadas. E indicou que as “noivas”
podiam se beijar.
Lira se inclinou primeiro, como se estivesse esperando uma resposta minha.
Suas mãos hesitaram por um momento antes de tocarem de leve na minha
cintura. O gesto era tão inesperadamente suave que meu coração deu um
salto. Minhas mãos, quase sem que eu percebesse, se apoiaram em seus
braços, segurando-a firme, como se precisasse de um ponto de apoio.
E então aconteceu.
Quando nossos lábios se encontraram, foi como se o ar ao nosso redor tivesse
sido sugado. Não era um beijo político, não era um gesto mecânico para
agradar a plateia. Era algo muito mais real. Seus lábios eram quentes, macios,
e o jeito como se moviam contra os meus era firme, mas gentil, como se
estivéssemos explorando algo que nenhuma de nós entendia completamente.
Eu me peguei afundando naquele momento, incapaz de controlar o que
sentia. Não era apenas desejo, era algo mais. Algo que eu não estava pronta
para nomear. Meu coração batia descontrolado, e a sensação de seus dedos na
minha cintura queimava minha pele, mesmo através do tecido do vestido.
Quando nos afastamos, o som ao redor voltou gradualmente, como se o
mundo tivesse esperado por nós. Mas eu ainda estava presa naquele
momento. Nos olhos de Lira havia algo diferente. Uma intensidade que
parecia me atrai como imã.
Eu abri a boca para dizer algo, mas não consegui. Houve uma onda de
aplausos, os sons se misturando ao murmúrio dos convidados e ao eco da
música. Então a realidade me atingiu.
Lira Zamorano e Ayra Arellano estavam oficialmente unidas. Casadas.
Representantes da união os maiores cartéis do país.
Para sempre ou até que a morte nos separe…
☙❧
Lira Zamorano
O salão de festas estava impecável, repleto de uma aura de sofisticação e
poder. Lustres de cristal pendiam do teto alto, lançando um brilho dourado
que refletia nos pisos polidos e nos detalhes das mesas. Flores brancas, com
toques sutis de dourado, decoravam os centros das mesas, enquanto uma
música suave ecoava.
Eu estava em pé, usando o terninho branco impecável que escolhi para o
restante da noite. Sua lapela destacava um broche discreto, e a calça
perfeitamente ajustada ao meu corpo. Enquanto cumprimentava os
convidados, ouvi passos atrás de mim. Virei-me, e lá estava Ayra, entrando
no salão.
Meu olhar percorreu o vestido dela. Um modelo curto, branco, perfeitamente
ajustado, com uma longa cauda presa na cintura que balançava com cada
passo que ela dava. Os saltos brilhavam, chamando atenção para as pernas
longas e bem definidas. Ela parecia ter sido feita para desviar a atenção de
qualquer um. E, sem dúvida, sabia disso.
— Esse vestido não é um pouco… ousado demais para a ocasião? —
murmurei assim que ela chegou perto o suficiente para ouvir.
Ayra sorriu, aquele sorriso desafiador que era praticamente sua marca
registrada, enquanto pegava uma taça de champanhe da bandeja de um
garçom.
— Ousado? — Ela ergueu a sobrancelha, seus olhos fixando-se nos meus
enquanto tomava um gole. — Achei que estava me casando com alguém
confiante, Zamorano. Ou será que está com ciúmes porque eu estou roubando
todas as atenções?
— Não seja ridícula. — Minha voz saiu baixa, mas firme, enquanto ajustava
a lapela do meu terno. — Estou apenas tentando garantir que mantenhamos
alguma dignidade diante desses abutres.
Ela deu uma risada curta, aproximando-se ainda mais, até que seu perfume
invadiu meu espaço. Sua mão livre deslizou pelo meu braço. Eu segui o toque
com o olhar vendo a aliança junto ao anel de noivado, sentindo uma súbita
onda de posse.
“Se controle… É só a porcaria de um anel”... Eu disse a mim mesma,
lutando para manter meu rosto em branco.
— Babe… Diga apenas que tem ciúmes.. — O tom dela era provocativo, mas
havia algo nos olhos castanhos dela que me desafiava a retrucar. — Isso sim
é mais “digno”.
Antes que eu pudesse responder, um casal de convidados se aproximou para
nos cumprimentar. Sorrimos e trocamos palavras educadas, mantendo a
fachada perfeita de uma união bem-sucedida. Mas, assim que os convidados
se afastaram, Ayra inclinou-se ainda mais na minha direção.
— Se meu vestido está te incomodando tanto, pode ser que você prefira me
ver sem ele. — A voz dela era um sussurro que só eu podia ouvir, carregada
de provocação. — Só estou usando uma coisinha minúscula de renda por
baixo…
Respirei fundo, controlando a vontade de morder a isca que ela estava
lançando. Ayra estava me provocando deliberadamente, e o pior, era que eu
ficaria o resto da noite pensando na “coisinha minúscula” que ela estava
usando.
— Talvez eu prefira que você use apenas algo apropriado que combine com
seu novo status, mas isso seria esperar demais de você, não é?
— Apropriado é tedioso, Zamorano. E você sabe muito bem com quem
casou, então aguente.
Ela tomou mais um gole do champanhe, seus olhos ainda fixos nos meus,
antes de sorrir para um grupo que passava perto de nós. Eu iria retrucar, uma
resposta afiada à provocação da Ayra, quando percebi que ela desviou o olhar
para a entrada do salão. Segui seu olhar e vi o motivo de sua distração.
O salão estava cheio, mas de repente, o som ao fundo pareceu diminuir.
Como se uma onda silenciosa tivesse atravessado o ambiente. Entendi o
motivo quando vi que Lyza Ferraro acabava de entrar.
No entanto, o que prendeu a atenção de todos dessa vez não foi apenas sua
presença imponente, mas a mulher ao seu lado. Dyanne Ferraro, a esposa. Ela
estava deslumbrante em um vestido preto minimalista, que parecia esculpido
para cada curva do seu corpo. Seu cabelo estava perfeitamente alinhado, e o
olhar que ela lançava pelo salão era tão afiado quanto o de Lyza.
Elas formavam um par hipnotizante. Lyza, com seu terno impecável e uma
postura que irradiava autoridade, e Dyanne, com uma elegância que parecia
ser sua arma mais afiada.
Meu corpo ficou tenso automaticamente. Não porque eu tinha algo a temer,
mas porque sabia que a presença dela significava.
— Ferraro. — Ayra sussurrou, e mesmo num tom tão baixo, havia uma nota
perceptível de algo… entre respeito e desafio. — Ela veio conferir o
resultado.
— Não tenha dúvidas… — Eu concordei. — Finja que sabe se comportar.
Eu disse, Ayra bufou. Observamos Lyza caminhar, e apenas olhos atentos
poderiam notar, as dezenas de homens se espalhando pelas adjacências do
salão. Quando seu olhar encontrou o meu, senti o impacto. Seu rosto
permaneceu impassível, mas os olhos azuis eram como lâminas.
— Ele tinha que vir mesmo aqui? — Ayra murmurou ao meu lado, seus
ombros tensos.
— Não faço ideia. — Respondi, minha voz fria, mas sem desviar os olhos das
figuras imponentes. — Mas garanto que não é apenas para brindar ao nosso
casamento.
Se Lyza era a escuridão fria, Dyanne era a luz mais contida em uma moldura
impecável. Vestida com um longo preto simples, mas que exalava elegância,
ela tinha uma presença que era tão forte quanto a de sua esposa. Havia algo
fascinante nela, algo que não se podia ignorar. Seus olhos percorriam o
ambiente com calma, mas com a intensidade de quem não deixa nada
escapar.
Ela não era apenas a esposa de Lyza. Era uma igual.
Eu não consegui disfarçar minha surpresa, e pelo jeito que Ayra ficou
completamente imóvel ao meu lado, ela também não. Elas eram um casal
impossível de ignorar.
— Impressionante… Ayra murmurou ao meu lado, o tom seco. Não era
admiração. Ayra não gostava de Lyza. Mas até ela parecia reconhecê-las
como algo… diferente. — Por qual motivo ela trouxe a esposa dessa vez?
— Não tenha a menor ideia. Mas com certeza é uma demonstração de poder.
Enquanto Lyza e Dyanne atravessavam o salão, notei algo na forma como
caminhavam. Não era apenas sincronizado. Era como se fossem duas
metades de uma máquina perfeita, uma extensão da outra. Quando Lyza
parou para falar com um dos convidados, Dyanne inclinou-se levemente para
sussurrar algo em seu ouvido. E Lyza… sorriu. Não aquele sorriso frio e
calculado que todos conhecíamos. Um sorriso genuíno.
Aquilo me pegou de surpresa. Nunca imaginei que alguém pudesse provocar
esse tipo de reação em Lyza Ferraro. Pelo que sabíamos, ela era uma líder
fria, calculista, uma estrategista impecável que via todos como peças em seu
tabuleiro. Mas ao lado da esposa, havia algo mais. Uma camada diferente que
parecia quebrar todas as noções que tínhamos sobre ela.
— Você viu isso? — Murmurei para Ayra, que ainda observava o casal.
— Vi. — Ayra respondeu, com um tom malicioso. — Quem diria, hein? Até
a rainha de gelo tem um lado humano.
Dyanne ergueu os olhos naquele momento, como se soubesse que estávamos
falando delas. Seu olhar encontrou o meu, e um pequeno sorriso surgiu em
seus lábios. Não era um sorriso amigável, nem desafiador. Era algo que me
deixou desconfortavelmente ciente de que ela sabia muito mais do que
aparentava.
Lyza também percebeu nosso olhar e virou-se para nos encarar. Seu rosto
voltou à expressão fria e impenetrável, mas ela segurou a mão de Dyanne por
um breve momento antes de se dirigir a nós.
— Lira. Ayra. — Ela nos cumprimentou com um aceno curto, mas sua
postura dizia tudo: ela era a dona do ambiente. — Belo evento.
— Senhora Ferraro. — Respondi, mantendo minha voz tão impassível quanto
a dela. — Não sabia que você estaria presente e acompanhada.
— Não costumo perder ocasiões… significativas. Seu olhar passou de mim
para Ayra. — E minha esposa nunca veio ao México.
— Prazer, sou Dyanne Ferraro — Disse à mulher menor, com uma voz
delicada, assim como ela. Era estranho que ela se encaixasse com a Lyza. —
Desejo felicidade no casamento.
— Muito obrigada. — digo mantendo a linha refinada. — Espero que possam
aproveitar a nossa festa.
— Sua esposa costuma influenciar casamentos por aí? Ou eu e a Lira fomos a
exceção?
Ayra interveio, seu tom levemente cortante. Eu quis sinceramente degolar ela
ali, ainda mais vendo o olhar da Lyza e da esposa.
Dyanne ergueu uma sobrancelha diante do comentário de Ayra, mas manteve
o sorriso nos lábios. Era um sorriso sutil, quase sereno, mas havia algo
perigosamente calculado nele. Lyza, por outro lado, inclinou levemente a
cabeça, seus olhos azuis fixando-se em Ayra com uma intensidade gelada que
parecia congelar o ar entre nós.
— Minha esposa é muito seletiva. — Disse Dyanne, sua voz cortante e
precisa como o fio de uma lâmina. — Não nos envolvemos em uniões que
não consideramos… estrategicamente vantajosas. A sua foi uma rara
exceção.
Houve um silêncio desconfortável, o tipo de silêncio que paira no ar antes de
uma tempestade. Dyanne foi a primeira a quebrá-lo, rindo baixinho, sua
risada soando quase melódica.
— Lyza sempre encontra uma forma encantadora de dizer as coisas. — Ela
continuou, e olhou diretamente para Ayra, sua expressão tão gentil quanto
afiada. — Mas não interprete mal, Ayra. Não é sempre que encontramos algo
que vale a pena observar tão de perto.
Ayra apertou os lábios, claramente pronta para responder algo tão afiado
quanto. Mas antes que ela pudesse abrir a boca, coloquei a mão em sua
cintura, apertando levemente. Meu olhar encontrou o dela por um breve
segundo, silenciosamente implorando para que ela se controlasse. Felizmente,
ela não disse nada, embora fosse óbvio que estava irritada.
— Senhora Ferraro, acredito que nosso casamento é… excepcional em
muitos sentidos. — Retomei, tentando suavizar o clima. — E claro, estamos
gratas pela presença de ambas para testemunhá-lo.
— Claro. — Lyza respondeu, tão fria quanto o ártico, observando cada
movimento meu e de Ayra. — Espero que saibam como fazer esse… pacto
funcionar. Uniões como essa não são apenas simbólicas. Elas carregam peso.
Consequências.
— Não se preocupe. — Ayra voltou a falar, ainda carregada de ironia. —
Lira e eu sabemos exatamente o que estamos fazendo.
Lyza inclinou a cabeça novamente, como se estivesse analisando cada
palavra, cada nuance. Então, sem mais uma palavra, ela estendeu a mão para
Dyanne, que prontamente segurou, como se tivessem uma linguagem própria.
Elas eram um contraste perfeito: gelo e fogo, precisão e suavidade. Juntas,
eram tão poderosas quanto intimidantes.
— Aproveitem a festa. — Disse Lyza, seu tom frio enquanto ela nos dava as
costas, guiando Dyanne para longe. — Felicidades!
Algo no tom dela me deixou com os pelos da nuca eriçados e não foi bom.
Ela como se Lyza sempre estivesse um passo na frente.
Fiquei observando enquanto se afastavam, o salão praticamente se abrindo
para elas. Enquanto Lyza se inclinava na direção da esposa, sussurrando algo,
e que riram juntas. Por um instante, eu me perguntei como era possível que
alguém como Lyza pudesse ser tão… humana ao lado de Dyanne. Mas antes
que eu pudesse refletir mais, Ayra soltou uma risada curta e seca.
— Não acredito que você ficou calada enquanto elas nos menosprezavam. —
Ela disse, cruzando os braços e me encarando com indignação.
— Porque eu sei quando uma luta não vale a pena. — Respondi, tentando
manter a calma. — E você deveria aprender isso também. Precisa ter mais
paciência.
— Ah, claro. — Ayra revirou os olhos. — Me avise quando decidir ser
passiva com outra pessoa. Talvez eu me inspire.
— Passiva? — Eu ri baixinho, embora houvesse um leve toque de
exasperação na minha voz. — Isso se chama estratégia, Ayra. Você deveria
tentar. Não é sempre que vale a pena reagir com impulsividade.
— Estratégia, claro. — Ela rebateu, cruzando os braços e inclinando a cabeça
de lado, com um sorriso desdenhoso nos lábios. — E qual é a sua estratégia
para lidar com a Lyza Ferraro, então? Ser um cachorrinho obediente enquanto
ela e a esposa nos analisam como se fôssemos peças de xadrez?
— Isso vindo da pessoa que quase perdeu a cabeça para ela no passado? —
Disparei, sem paciência para as provocações. — Lyza é perigosa, Ayra. Não
por ser apenas poderosa, mas porque sabe jogar. Se quer sobreviver a ela,
precisa aprender a jogar também.
Ayra estreitou os olhos, claramente incomodada com a menção. Mas, ao
invés de explodir, ela deu um passo mais perto, sua presença tão intensa que
quase me fez recuar.
— Não sou do tipo que joga pelos livros, Zamorano. — Ela sussurrou, sua
voz carregada de desafio. — Prefiro virar o tabuleiro.
Suspirei, sentindo a onda de irritação se misturar com algo mais profundo,
algo que só Ayra conseguia despertar em mim.
— Eu sei, mas agora estamos presas uma à outra. — Respondi, mantendo
meu tom firme. — E vai ter que aprender a me ouvir a não destruir o
tabuleiro.
— Ah, Lira… — Ela riu, mas havia algo sombrio no som. — O problema é
que, às vezes, acho que você também quer vê-lo em pedaços… Acho que seu
tesão por mim vem exatamente daí.
— Confiante demais, não? — Retruquei, tentando ignorar o calor que subiu
pelo meu rosto.
— Só estou sendo realista. — Ayra deu mais um passo à frente, sua postura
desafiadora, mas seus olhos brilhavam com aquela intensidade que sempre
me fazia perder o foco. — Porque, no fundo, você gosta de caos tanto quanto
eu. Você só não admite.
— E isso vem de alguém que não consegue passar um minuto sem causar
problemas. — Respondi, tentando soar firme, mas sentindo minha voz trair a
raiva e algo mais que não consegui identificar. — Você é uma encrenqueira.
Ayra sorriu, aquele sorriso perigoso que sempre parecia carregar mil
intenções ocultas. Ela inclinou a cabeça, seu olhar deslizando sobre mim
como se estivesse me estudando.
— E você gosta disso, só não admite, senhora controle… — Ela sussurrou,
com uma suavidade que parecia deslocada em meio à provocação. — No
fundo, somos iguais, Lira. Dois monstros disfarçados de pessoas normais.
— Eu não vou deixar você me arrastar para o seu caos. — Respondi
rapidamente, mas minha voz saiu mais baixa do que eu gostaria. — Vou te
ensinar a se controlar, isso sim.
Ayra soltou uma risada baixa, os olhos ainda cravados nos meus.
— Vai mesmo? — Ela inclinou-se para mais perto, sua voz quase um sopro.
— Me diz como? Vai me amarrar e me espancar de novo?
Fiquei sem palavras por um momento, o peso do olhar dela me paralisando.
Aquele fogo crepitante naquele olhar castanho. Eu engoli em seco, a
lembrança daquela noite fazia o ar ao nosso redor parecer pesado, carregado
com algo que eu não sabia nomear, mas que me deixava inquieta.
Ayra ainda estava próxima demais, e eu ainda estava presa naquele olhar. Foi
quando uma voz masculina, animada e um tanto familiar, cortou o momento.
— Ayra!
Um homem alto, de cabelos escuros e um sorriso fácil, apareceu do nada e
envolveu Ayra em um abraço que parecia íntimo demais para o meu gosto.
Eu pisquei, surpresa com a entrada abrupta daquele estranho na nossa
conversa. Ayra, por sua vez, riu, relaxando imediatamente nos braços dele,
como se fosse algo natural. Ela o abraçou de volta com entusiasmo, os olhos
brilhando de alegria.
— Sebastian! — Ayra exclamou, parecendo genuinamente feliz em vê-lo. —
Não acredito que você conseguiu vir!
— E eu perderia o casamento do século? — Ele se afastou, mas manteve as
mãos nos ombros dela, um gesto casual e íntimo que fez meu maxilar se
apertar. — Você está incrível, Ayra. Casada, poderosa, e ainda mais bonita.
Eu cruzei os braços, sentindo uma irritação crescente que não fazia sentido
algum. Quem era ele, afinal? E por que Ayra parecia tão confortável com ele?
Por que ela continuava deixando ele tocá-la?
— E essa deve ser a famosa Lira Zamorano. — Ele finalmente me notou,
soltando Ayra e estendendo a mão para mim. — Sebastian Ramos. Um velho
amigo da Ayra.
Apertei sua mão de forma firme, talvez um pouco mais do que o necessário,
enquanto meu olhar se desviava para Ayra, que agora tinha um sorriso fácil
nos lábios.
— Olá, bom conhecê-lo. — Respondi com a voz fria, tentando ignorar a
maneira como ele olhava para Ayra, como se fossem cúmplices de algo que
eu não sabia.
— Você arranjou bem, hein? — Ele voltou a se dirigir a Ayra, claramente
sem perceber, ou ignorando o clima estranho. — E está linda nesse vestido.
Aliás, essa postura… A noiva apaixonada. É quase convincente.
Ayra riu, um som leve e descontraído que só me irritou ainda mais. Que
merda era isso? Eles tinham uma piadinha interna?
— Convincente? — Ela ergueu uma sobrancelha, desafiadora. — Acho que
até você acreditou, Seb.
Ele deu de ombros, um sorriso travesso no rosto. Eu não gostei desse sorriso.
Não gostei dele.
— Talvez um pouco. Mas conhecendo você, sei que deve estar se divertindo
com tudo isso.
Sebastian passou uma mão pelo braço dela, um gesto amigável, mas que
novamente pareceu íntimo demais. Algo em mim queimava, e não era raiva.
Pelo menos, era o que eu dizia a mim mesma. Mas a cada minuto que ele
continuava tocando nela, mais eu sentia minha pressão subir.
— Vocês parecem bem próximos. — Comentei, tentando soar casual, mas o
tom saiu mais cortante do que eu pretendia. — De onde se conhecem?
— Ah, sim. — Ayra sorriu para mim, um sorriso brilhante demais por causa
do sujeito ali. — Seb e eu nos conhecemos desde que éramos crianças. Ele é
praticamente família.
Família. Claro. Mas a forma como ele tocava o braço dela, o jeito como ela
sorria para ele… Era diferente. Eu não sabia explicar, mas não gostava. E
Sebastian percebeu meu olhar e pareceu hesitar por um momento, antes de
voltar a sorrir para Ayra.
— Bom, vou deixar vocês aproveitarem a festa... — Ele piscou para Ayra,
então se afastou, mas não sem antes tocar novamente seu ombro. — Te vejo
em breve. Vou cumprimentar o Javier.
Ayra sorriu, mandando um beijo para ele. Eu o observei desaparecer entre os
convidados, sentindo meu estômago revirar. Quando olhei para Ayra, ela
ainda sorria, mas havia algo de malicioso em seu olhar.
— Não me diga que está com ciúmes, Zamorano. — Ela provocou,
inclinando a cabeça.
— Não seja ridícula. — Respondi, tentando soar firme. — Só achei que você
tinha melhor gosto para amizades.
Ayra riu novamente, se aproximando mais uma vez, agora com aquele brilho
irritante nos olhos.
— Eu diria o mesmo sobre você e a Paola.
Ela sussurrou, me desafiando. Eu rolei os olhos, mas algo em mim ainda
estava em chamas. Ayra sabia exatamente como me tirar do eixo.
☙❧
Ayra Arellano
A festa estava no auge, e eu me peguei observando Lira de longe. Ela estava
interagindo com os convidados do outro lado do salão, os movimentos
graciosos e precisos, como se tudo ao redor girasse em seu eixo. Ela sabia ser
o centro das atenções, mesmo quando fingia que não queria.
Decidi que precisava de um momento longe dela, para recuperar o fôlego, ou,
talvez, para não ceder à vontade inexplicável de me aproximar de novo. E por
isso procurei por Sebastian, o localizando no lugar que ele mais gostava: o
bar. Fui até ali encontrando Sebastian, encostado no balcão, um copo de
uísque na mão e um sorriso fácil no rosto.
— Olha só quem decidiu me procurar. — Ele brincou ao me ver. — Não
achei que você fosse sobreviver tanto tempo ao lado da sua noiva.
— Surpreendente, não é? — Retruquei, pegando uma taça de champanhe do
balcão e me juntando a ele. — E você? O que achou do espetáculo?
— Espetáculo é uma palavra apropriada. — Ele riu, levantando o copo em
um brinde silencioso. — É preciso dizer, Ayra, sua esposa é deslumbrante.
Meu sorriso congelou no rosto, mas eu rapidamente disfarcei, virando um
gole da minha bebida. Não era como se eu não soubesse que Lira era linda.
Eu sabia disso. Todos sabiam disso. Mas ouvir Sebastian dizer isso, com um
tom tão despreocupado, me incomodou de uma maneira que eu não estava
pronta para admitir.
— Ela é. — Consegui dizer, o tom mais seco do que pretendia. — Mas é
interessante ouvir isso de você, Seb. Ainda está no mesmo time, ou devo
começar a me preocupar?
Ele soltou uma gargalhada, um som fácil e divertido, que apenas aumentou
minha irritação.
— Por favor, Ayra. Não seja ridícula. — Ele respondeu, ainda rindo. — Eu
sou gay, você sabe disso. Não precisa ficar ciumenta.
— Ciumenta? — Perguntei, arqueando uma sobrancelha e fingindo desdém.
— Não sou ciumenta. Só estou confirmando. Afinal, algumas pessoas
mudam.
— Algumas, talvez. — Ele disse, com um sorriso travesso. — Mas não eu.
Eu só estava reconhecendo o óbvio. Sua esposa é uma mulher
impressionante, Ayra. Aquele rosto perfeito e aqueles olhos hipnotizantes. E,
se posso ser sincero, acho que vocês formam um casal fascinante.
Revirei os olhos, tentando afastar a tensão que seu comentário trouxe.
— Fascinante? Não exagere. — Retruquei, com um tom sarcástico. — Lira e
eu mal conseguimos nos suportar.
— Ah, claro. — Ele ergueu a sobrancelha, claramente duvidando de mim. —
Porque foi exatamente isso que eu vi quando você a encarava durante a
cerimônia.
Senti o calor subir ao meu rosto, mas me recusei a ceder à provocação. Em
vez disso, terminei minha bebida de um gole.
— Chega de falar da Lira. — Deixei a taça de lado, batendo a mão no balcão
para enfatizar minha decisão. — Vamos dançar?
Sebastian arqueou a sobrancelha, aquele sorriso malicioso brincando nos
lábios.
— E sua adorável esposa? Ela não vai me dar um tiro? — Ele provocou, seu
tom carregado de sarcasmo. — Porque, honestamente, achei que isso fosse
acontecer quando eu te toquei mais cedo.
Soltei uma gargalhada, genuína, lembrando dos olhares cortantes que Lira
havia lançado para ele, como se quisesse incinerá-lo ali mesmo.
— Lira é só rabugenta. — Retruquei, dando de ombros. — E você sabe
correr. Agora vamos. Vamos dançar.
— Só porque você insiste. — Ele riu, mas parecia relutante ao deixar o copo
de lado. — Vamos lá!
Peguei a mão dele, puxando-o para a pista de dança iluminada por luzes
quentes que mudavam de cor em sincronia com a música. O DJ havia trocado
as baladas românticas por algo mais animado, uma batida eletrônica que fazia
o salão inteiro vibrar.
Era exatamente o que eu precisava: algo que me tirasse da cabeça e me
mantivesse no momento.
Sebastian não era exatamente o melhor dançarino, mas compensava com
entusiasmo. Seus movimentos exagerados e as expressões dramáticas
arrancavam gargalhadas minhas e de quem estivesse ao redor. Era um alívio
estar ali com ele, sem o peso de qualquer outra coisa. Por um momento,
consegui esquecer tudo.
— Está se divertindo? — Ele perguntou, girando-me com exagero, quase me
fazendo perder o equilíbrio.
— Bastante. — Respondi, ainda rindo. — Você é péssimo, sabia?
— Não sou um profissional, Ayra. — Ele rebateu, fingindo indignação, mas
depois deu uma piscadela. — E você é pior do que parece admitir.
A música mudou para algo mais sensual, as luzes suavizando um pouco, e
Sebastian inclinou a cabeça, me observando com aquele olhar que dizia que
estava prestes a provocar de novo.
— E Lira? — Ele perguntou, como se não pudesse evitar. — Ela dança?
Eu ri, mas o som estava meio forçado.
— Ela provavelmente preferiria comandar um ataque militar do que dançar.
— Retruquei, revirando os olhos. — Lira é mais rígida do que uma estátua de
mármore.
— Mas que estátua… — Ele comentou, com um sorriso divertido. — Admiro
a arte.
Senti algo apertar em meu peito, algo irritante que não deveria estar lá. Era
ridículo me incomodar com isso, mas não consegui evitar o tom mais seco
quando falei.
— Está analisando demais, Seb.
— Só estou sendo observador. — Ele deu de ombros, com aquele brilho
travesso no olhar. — E, honestamente, Ayra, não sei quem está mais ferrado
nessa dinâmica de vocês. Você ou ela.
Não respondi. Apenas o puxei de volta para a dança, tentando enterrar a
conversa antes que ela se aprofundasse ainda mais no que eu não queria
admitir.
Sebastian e eu continuamos dançando, a batida da música pulsando em
nossos corpos, misturando-se à energia do salão. As luzes piscavam em tons
de vermelho e dourado, iluminando nossos rostos com flashes irregulares. Ele
ergueu uma taça de champanhe para mim, e brindamos no meio da pista,
como se não houvesse amanhã.
— À nova senhora Zamorano!
Ele gritou, a voz carregada de sarcasmo e humor, enquanto erguia a taça em
um gesto exagerado. Eu gargalhei, inclinando-me para bater minha taça na
dele.
— E ao homem que ainda está vivo apesar disso! — Retruquei, rindo mais
alto quando ele fingiu olhar ao redor, como se procurasse a sombra de Lira.
— Por pouco tempo, talvez…
Ele murmurou, mal contendo o riso. Foi então que senti. Antes mesmo de
ouvir sua voz ou vê-la, percebi a presença de Lira. Era como se o ar ao meu
redor ficasse mais pesado, eletrizado. Me virei para ver sua silhueta cortando
a multidão, imponente em seu terno impecável, os olhos fixos em mim com
um brilho que fazia meu sangue gelar e ferver ao mesmo tempo.
Sem dizer uma palavra, Lira parou atrás de mim, sua mão forte segurando
minha cintura com firmeza, quase como se marcasse território. Senti sua
presença tão intensamente que mal notei Sebastian ficando quieto ao meu
lado.
— Vamos embora. — A voz dela era baixa, controlada, mas havia algo por
trás disso. Uma nota de posse que fazia minha pele arrepiar. — Agora!
Eu sorri, tentando não demonstrar como seu toque estava me afetando.
— Está mandando em mim agora, Zamorano? — Provoquei, inclinando a
cabeça para olhá-la de lado. — Não sabia que você sabia dançar.
— Não estou mandando. — Ela disse, inclinando-se ligeiramente para que
apenas eu ouvisse. — Estou te levando.
Antes que eu pudesse responder, sua mão desceu do meu quadril para o meu
pulso, apertando-o com firmeza, mas sem machucar. Ela não deu tempo para
discussões ou provocações adicionais, me puxando em direção à saída.
— Ah, já está indo embora? — Sebastian chamou, tentando soar casual, mas
sua voz falhou um pouco sob o olhar cortante de Lira.
— Boa noite, Sebastian.
Lira disse, com um tom que era mais cortante do que qualquer despedida. Foi
tudo que ela se dignou a oferecer antes de continuar a me puxar para fora.
— Você sabe que isso foi grosseiro, não sabe? — Perguntei enquanto
tropeçava atrás dela, tentando acompanhar o ritmo. — Ele é meu amigo.
— E eu sou sua esposa. — Ela respondeu, sem olhar para trás. — Ele pode
esperar.
Eu ri, tentando conter a irritação e a estranha satisfação que senti em sua
possessividade.
— Está com ciúmes de novo, Lira?
— Não. — Ela disse friamente, mas o aperto em meu pulso entregava mais
do que suas palavras. — Se pudesse se calar seria lindo.
Eu dei uma risadinha, mas tropecei nos meus saltos. A Lira me segurou antes
que eu pudesse processar. Nossos rostos ficaram tão próximos que eu pude
sentir a respiração dela. Aqueles olhos cinzas pareciam em chamas.
— Você quase me fez cair…
Provoquei de modo infantil fazendo biquinho e notei o olhar dela amolecer.
Foi fascinante. Acho que eu tinha descoberto uma brecha na armadura da
senhora controle?
Lira suspirou, como se estivesse tentando controlar alguma batalha interna,
mas não me soltou. Pelo contrário, sua mão subiu para o meu cotovelo e na
minha cintura, me estabilizando ainda mais.
— Se você usasse sapatos normais em vez dessas armas de destruição, talvez
não tropeçasse. — Ela murmurou, mas havia algo mais suave em sua voz. —
A culpa é sua.
Eu sorri, não resistindo à oportunidade de provocar.
— Mas aí eu não pareceria tão irresistível, não acha?
Seus olhos faiscaram, e por um instante, ela parecia à beira de responder.
Porém, antes que pudesse dizer qualquer coisa, fomos interrompidas.
— Parece que o casal ainda está na fase da lua de mel.
A voz de Arturo cortou o momento como uma faca. Lira se virou
rapidamente, soltando-me com uma rapidez que me fez rir por dentro. Javier
e Arturo se aproximavam de nós, seus olhares avaliadores e presenças
dominantes preenchendo o espaço.
— Javier. Arturo.
Lira disse, sua voz imediatamente voltando ao tom frio e profissional. Eu, por
outro lado, coloquei um sorriso provocador no rosto e dei um pequeno aceno.
— Vejo que estão aproveitando a festa. — Javier comentou, cruzando os
braços e lançando um olhar particularmente afiado para mim.
— Estávamos prestes a ir embora. — Lira respondeu, sua postura tensa.
— Já? — Javier levantou as sobrancelhas, fingindo surpresa. — Pensei que
as noivas fossem aproveitar mais a noite juntas.
— Tenho compromissos pela manhã. — Lira cortou rapidamente, sua
expressão implacável. — Não tenho tempo a perder mais aqui.
Eu aproveitei a oportunidade para intervir, adorando o desconforto que via no
rosto dela.
— Sim, eu também tenho compromissos muito importantes. — Falei,
forçando um tom exageradamente sério, enquanto olhava para Lira. — Como
aprender a andar de salto sem tropeçar.
Arturo parecia pouco impressionado, mas Javier deu um leve sorriso, como
se estivesse se divertindo com a tensão entre nós. Afinal ele me conhecia
muito bem para achar que eu não ia provocar mais a Lira.
— Bem, se precisam ir, não vamos segurá-las. — Arturo disse, mas seu tom
era mais uma ordem do que uma permissão.
— Claro. — Lira respondeu, já virando para mim e sinalizando com a cabeça
que deveríamos ir. — Até mais.
Enquanto saímos, Javier chamou por mim.
— Ayra.
Parei, me virei para ele.
— Espero que encontre um meio termo com a Lira. — Ele disse, indicando
Lira com um leve movimento de cabeça. — O cartel está orgulhoso de você.
Eu mantive o sorriso, mas senti algo gelado percorrer minha espinha. Apenas
dei um aceno e segui Lira, que já estava pronta para nos tirar dali. Quando
finalmente saímos, o ar fresco da noite me envolveu. Olhei para ela, que
ainda estava com a postura rígida, e não resisti.
— Então, louca para me ter só para você?
Lira não respondeu, apenas andou em direção ao veículo que nos aguardava.
Ela abriu a porta, dando um aceno para mim. Eu sorri, entrando no veículo e
ela veio em seguida.
O interior do carro estava silencioso, exceto pelo zumbido baixo do motor e o
som distante da música ambiente que tocava. O motorista não disse uma
palavra, mantendo o olhar fixo na estrada. Lira se acomodou ao meu lado, o
rosto fechado, o olhar fixo na janela.
Ela estava absorta em seus próprios pensamentos, e isso me incomodava mais
do que eu queria admitir.
— Você vai ficar assim o caminho inteiro? — perguntei, inclinando-me
levemente na direção dela. — Toda calada e emburrada?
Ela me lançou um olhar breve, mas afiado, como se dissesse “não me teste”.
Eu sorri de lado, porque, é claro, eu ia testar.
— Isso é muito chato, sabia? — Continuei, cruzando as pernas e me
inclinando um pouco mais perto. — Pensei que, depois daquela cena na festa,
íamos terminar a noite com um pouco mais de… diversão.
— Diversão? — Lira finalmente se virou para mim, os olhos cinzas cortantes,
mas havia um brilho neles que me deixava em alerta. — Achei que você já
tinha se divertido o suficiente com seu amigo de infância.
— Ciúmes? — Arqueei as sobrancelhas, provocativa. — Que bonitinho,
Zamorano.
— Não estou com ciúmes. — Ela olhou para frente de novo, mas sua postura
rígida. — Só estou observando o quanto você adora chamar atenção.
— Eu chamo atenção porque posso, não porque preciso. — Deitei a cabeça
contra o encosto e suspirei, fingindo tédio. — Você é tão rabugenta.
Ela não respondeu, mas dessa vez não desviou o olhar. Seus olhos estavam
fixos em mim, silenciosos, mas intensos. Eu mantive o contato visual, sem
piscar, meu sorriso provocativo no rosto. Se ela queria um jogo de
resistência, eu podia brincar disso o dia inteiro.
— Sabe qual o problema, Lira? — perguntei, inclinando-me o suficiente para
meu rosto ficar perto do dela. — Você não aceita que gosta quando eu roubo
a atenção.
Lira não piscou, não recuou, mas o brilho nos olhos dela mudou. Era sutil,
mas eu conhecia aquela faísca. Era o aviso de que eu estava brincando com
fogo.
— Eu gosto de silêncio, Arellano. — Ela disse devagar, cada palavra
pronunciada com um controle impecável. — E você faz muito barulho.
Eu soltei uma risada baixa, não me intimidando.
— Bem, então você está ferrada. Porque agora estamos presas uma à outra, e
o barulho vai continuar. — Sibilei, inclinando-me mais perto até nossas bocas
estarem a poucos centímetros. — A menos que você me cale de outra forma.
Eu sabia que estava testando os limites, mas a maneira como os olhos dela se
estreitaram e o músculo da mandíbula travou me deu a resposta que eu
queria.
Lira respirou fundo, voltando a se recostar no assento. Sua mão direita
segurou o apoio de braço com força, mas ela não disse nada. Silêncio.
Absoluto e controlado. Eu sabia que ela estava se segurando, e por algum
motivo, isso me deu uma satisfação perversa.
O carro virou na próxima rua e consegui ver a fachada do prédio. O
apartamento triplex que Javier e Arturo haviam “presenteado” a nós. Um
símbolo de poder e união, mas para mim parecia mais uma prisão.
O motorista entrou na garagem privativa e imediatamente dois seguranças
surgiram para abrir as portas. Lira saiu primeiro, os movimentos calculados,
sempre no controle. Eu demorei um pouco mais, ajustando o vestido, só para
irritá-la.
— Está esperando o quê? — Ela se virou para mim, as mãos nos bolsos da
calça branca impecável. — Uma recepção real?
— Na verdade, sim. — Respondi, com um sorrisinho sujo. — Acho que
mereço uma.
O segurança tentou esconder um sorriso enquanto eu passava por ele, mas eu
o vi. E sei que Lira também viu, porque o olhar dela foi como uma lâmina
cortando o ar na direção do mesmo.
Caminhamos lado a lado até a entrada do elevador. Atravessamos um
pequeno lobby, que era um espetáculo à parte, com pisos de mármore branco
impecável e paredes decoradas com painéis de madeira escura e iluminação
suave. Lira parou diante da porta de ferro, apertando o botão do andar mais
alto sem me encarar.
— Vai continuar de mau humor a noite toda? — Perguntei, cruzando os
braços e encostando-me na parede do elevador. —
— Não estou de mau humor.
Ela respondeu, e entrou no elevador assim que abriu. Fiz o mesmo lançando
um olhar semicerrado.
— Claro que está. — Dei de ombros, olhando para o reflexo dela no espelho.
— Uma pena que não pode mais se livrar de mim.
O elevador parou no andar certo com um pequeno toque sonoro. As portas se
abriram, revelando a entrada do nosso apartamento. Lira saiu primeiro, sem
olhar para trás, e eu a segui, observando-a enquanto tirava o blazer e jogava
no sofá.
— Impressionante o que aquela oxigenada fez. — Murmurei, olhando ao
redor. — O apartamento estava um espetáculo.
O piso de mármore preto polido brilhava sob a iluminação ambiente suave. O
espaço era aberto, com grandes janelas de vidro que iam do chão ao teto,
revelando uma vista deslumbrante da cidade.
— Mandei que deixassem as malas nos quartos. Vai ficar aí parada ou vai
desfazê-las?
A Lira perguntou, já caminhando em direção ao corredor que levava ao
elevador dos quartos superiores.
— Achei que os empregados fariam isso. — Respondi, ainda olhando ao
redor.
— Empregados não tocam em certas coisas minhas. — Ela olhou por cima do
ombro, um olhar intenso. — E você também não.
Eu arqueei as sobrancelhas, mas não disse nada. Eu sabia que ela estava
testando meus limites, assim como eu testava os dela.
— Tensa, Zamorano? — Provoquei, seguindo ela. — Parece que a ideia de
morar comigo está afetando você mais do que eu pensei.
— Não se iluda, Arellano. — Ela disse, parando e me encarando. — Isso aqui
não é um lar. É uma zona de guerra.
Eu ri alto, jogando a cabeça para trás.
— Que adorável. — Eu disse, levantando um dedo no ar como se estivesse
corrigindo-a. — Eu prefiro chamar de “campo de batalha particular”. Bem
mais romântico, não acha?
Lira apertou os olhos, mas não respondeu. Apenas se virou e continuou
subindo as escadas, e eu fiz o mesmo, seguindo seus passos.
— Seu quarto é o de hóspedes. É tão grande quanto o principal. — Ela disse
de forma casual, como se estivesse me fazendo um favor. Nem sequer olhou
para trás.
— Eu no quarto de hóspedes? — Parei no meio da escada, bufando e
apoiando a mão na cintura. — Tire o cavalinho da chuva, Zamorano.
Ela finalmente se virou, um olhar afiado no rosto, como se minha audácia a
divertisse e a irritasse ao mesmo tempo.
— Não me faça te arrastar para lá.
É claro que a Lira disse com aquela voz de quem dava ordens e esperava que
todos obedecessem.
— Ah, eu adoraria ver você tentar. — Meu sorriso foi lento, provocador. —
Porque não vou para o quarto de hóspedes, querida. Eu sou sua esposa,
lembra? Isso significa que tenho direito ao quarto principal tanto quanto
você.
— Significa que dividimos uma aliança, não um quarto. — Ela rebateu,
virando-se e retomando o caminho. — Eu acompanhei a reforma, então
acredito que mereço escolher.
Meus olhos brilharam com a provocação, e eu senti a chama subir no meu
peito.
— Acompanhou porque quis. Eu vou para o principal. — Dei de ombros,
subindo os degraus com pressa. — Afinal, o que é seu, é meu. E o que é meu,
continua sendo meu.
Lira se moveu para a minha frente de forma tão repentina que eu quase
esbarrei nela. Ela me encarou com aquele olhar de tempestade iminente, os
olhos cinzas faiscando com uma intensidade perigosa.
— Você tem dois segundos para reconsiderar isso. — Sua voz era baixa,
controlada, mas cada palavra tinha o peso de uma ameaça. — Se eu encontrar
você no meu quarto, Arellano, eu te arrasto para fora.
— Ai, estou tremendo... — Disse com a voz mais debochada que eu
consegui, passando por ela e indo direto para o quarto principal. — Venha e
tente para você ver!
Eu a ouvi soltar um suspiro pesado atrás de mim, o som de alguém que estava
a um fio de perder a paciência. Sorri com isso.
Ao entrar no quarto principal, eu fiz questão de parar bem no centro do
cômodo. O espaço era incrível, com uma enorme cama king-size, janelas que
iam do chão ao teto e uma vista absurda da cidade. Do lado esquerdo, uma
porta que dava para o banheiro privativo com banheira de hidromassagem.
Do lado direito, um closet conjugado que parecia ter o espaço de uma
pequena loja.
O som de passos firmes ecoou pelo corredor e, no segundo seguinte, Lira
apareceu na porta, com as mãos nos quadris e o olhar de predadora.
— Arellano… — Ela começou, o tom de ameaça se formando no ar. — Se
arraste para fora daqui.
— Não, é perfeito, já me sinto em casa. — Respondi cruzando os braços sem
me importar com a imagem de birra que passava. — Eu já decidi que vou
ficar aqui. Se quer se livrar de mim, saia você.
— Eu não estou pedindo. — A voz dela endureceu. — Isso aqui não é seu
para se sentir em casa.
— Casa de casal, lembra? — Olhei diretamente para ela, erguendo a
sobrancelha. — Então o quarto tecnicamente é meu sim.
Lira respirou fundo e fechou os olhos por um instante, como se estivesse
reunindo toda a paciência que ela definitivamente não tinha.
— Você está pedindo para eu te carregar daqui, não está? — Ela deu um
passo para frente.
— Olha, se quiser me pegar no colo, fique à vontade. — Dei um sorrisinho
travesso. — Mas eu vou fazer um escândalo.
— Eu juro por tudo que é sagrado… — Lira parou de falar, seu olhar
queimando com uma fúria silenciosa. Ela andou até mim, os passos firmes e
controlados, como uma leoa que se aproxima de uma presa. — Eu vou te
jogar pela janela.
— Você não pode. — Inclinei-me ligeiramente para frente, sem recuar. —
Mas admito que estou curiosa.
Antes que eu pudesse reagir, ela se moveu. Suas mãos agarraram meu pulso e
o outro braço passou ao redor da minha cintura. Fui puxada de forma brusca,
quase perdendo o equilíbrio.
— Eu avisei. — Lira disse entre dentes, me arrastando em direção à porta. Eu
ri, minha risada ecoando pelo quarto.
— Ah, eu também avisei — Eu disse, tentando me soltar, mas ela apertou o
braço ao redor da minha cintura. — Vamos ver quem ganha, Zamorano.
Eu puxei meu corpo para o lado, usando o peso do meu quadril para
desequilibrá-la. Consegui soltar meu pulso e me girei rapidamente, trocando
de posição com ela. Agora, era eu quem a segurava pela cintura.
— Vamos, babe. — Eu disse, imitando o tom dela. — Para onde você quer ir
agora?
Lira revirou os olhos, mas havia um brilho de diversão mal disfarçado.
— Você é insuportável. — Ela resmungou, tentando se afastar, mas eu
segurei firme.
— E você me adora. — Inclinei-me e sussurrei no ouvido dela. — Não é?
Ela me empurrou com força e eu me desequilibrei, caindo de costas sobre a
cama. Lira ficou em pé ao lado, olhando para mim com a respiração
acelerada. Seu peito subia e descia, e havia um brilho intenso nos olhos dela
que eu conhecia muito bem.
— Eu não vou sair desse quarto — Disse, caminhando para o closet, onde
estavam as suas malas fechadas.
— Tudo bem, “esposinha”... — Retruquei, me acomodando de forma
exagerada na cama. — Esta cama é grande o suficiente para nós duas. Você
fica de um lado, eu do outro. Pois eu também não vou sair.
Lira parou na porta do closet e olhou para mim com uma clara irritação. Ela
ficou em silêncio por um instante. Então, sem dizer uma palavra, entrou e
fechou a porta.
Eu sorri para o teto. Sabia que tinha vencido essa.
Dez minutos depois, ouvi a porta do closet abrir de novo. Lira saiu de calça
de moletom e regata preta, com o cabelo preso num rabo de cavalo. Sem
olhar para mim, foi direto para o lado esquerdo da cama. Puxou a coberta e
deitou, de costas para mim. Eu olhei para ela, incrédula.
— Isso foi fácil demais. — Sussurrei, mas sabia que ela ouviu.
— Eu não estou cedendo. — Ela murmurou, a voz abafada pelo travesseiro.
— Estou economizando energia para a próxima rodada.
— Então sonhe comigo, Zamorano. — Disse, enquanto puxei o zíper lateral
do vestido, abrindo.
— Não seria sonho, seria pesadelo — Disse Lira, em um sussurro baixo e
cortante. — Vá tirar a maquiagem e vestir uma roupa…
Eu tirei o vestido, soltando meu cabelo. Ignorei a Lira, virando-me para o
lado e puxando o edredom para me cobrir.
— Gosto de dormir sem pijama e estou com preguiça. Quero só dormir. — eu
suspirei. — Guarde suas mãos para você!
O silêncio reinou por um tempo, mas antes de eu pegar no sono, escutei Lira
resmungar algo sobre eu ser infernal. Sorri no escuro, sabendo que, naquele
exato momento, eu estava nos pensamentos dela. E isso já era a minha
vitória.
☙❧
Lira Zamorano
Acordei sentindo o calor. Não o calor do edredom ou do aquecedor do quarto,
mas algo mais sólido e firme. Algo que me segurava.
Minhas pálpebras piscaram lentamente, tentando se ajustar à luz fraca que
entrava pelas cortinas abertas. Eu senti o peso no meu peito e nas minhas
costas, uma pressão constante e quente. O cheiro suave e adocicado de floral
misturado com o sutil perfume de shampoo fresco preencheu meu olfato
antes mesmo que eu tivesse coragem de olhar.
Não. Eu sabia exatamente o que era.
Lentamente, virei o rosto no travesseiro e meus olhos caíram nela. Ayra
Arellano. Os braços dela estavam ao meu redor, uma das pernas entrelaçada
nas minhas, completamente imprudente. Sua cabeça estava encostada no meu
ombro, o rosto relaxado, quase inocente. Quase.
O mais chocante, porém, não era isso.
Era o fato de ela estar nua. Completamente nua. A pele exposta, quente e
suave, pressionada contra mim. Eu senti cada centímetro disso. O braço dela
estava jogado por cima da minha cintura, o peso era confortável e, de algum
jeito, natural.
Olhei para ela, e por um momento, esqueci quem era. Esqueci que ela era
Ayra Arellano. Que ela era minha “esposa” por acordo, que era minha
inimiga jurada desde antes de nos conhecermos. Não, naquele momento, ela
parecia… só uma mulher. Uma mulher que dormia profundamente, sem
nenhuma barreira, sem as provocações ácidas, sem o sarcasmo que pingava
em cada palavra dela.
Seu rosto parecia tão suave. As sobrancelhas, sempre arqueadas em desafio,
estavam relaxadas. Os lábios, que viviam com aquele sorriso petulante,
estavam ligeiramente entreabertos. Ela respirava de forma lenta e profunda,
como se estivesse completamente em paz.
Eu deveria me mover. Me afastar.
Mas não consegui.
Eu simplesmente fiquei ali, observando-a. Era ridículo, talvez, mas eu nunca
a tinha visto assim. E isso me atingiu de uma forma que eu não esperava. Eu
já tinha visto Ayra de muitos jeitos, furiosa, vingativa, sedutora e cruel. Mas
assim? Adormecida, serena e desarmada?
Era desconcertante. Era intoxicante…
Engoli em seco, virando o rosto para o travesseiro, tentando me convencer de
que não havia nada demais. Mas a sensação de sua perna entrelaçada na
minha, da pele dela encostada na minha regata e na minha calça de moletom,
não me deixava esquecer.
Eu soltei um suspiro baixo, tentando me mover. Lentamente, comecei a
afastar o braço dela, mas, como se ela se sentisse, Ayra se apertou mais
contra mim. Seus dedos se fecharam ao redor da minha cintura, puxando-me
para mais perto, como se eu fosse um travesseiro.
— Quente… — ela murmurou, com a voz rouca de sono. Foi a coisa mais
sexy que ouvi. — Hm…
Ela não acordou, mas sua testa pressionou levemente minha clavícula, e ela
soltou um suspiro satisfeito, como se estivesse no melhor sonho da vida dela.
Inferno. O que ela estava fazendo? Eu paralisei. Literalmente congelei no
lugar.
Por um momento, não consegui nem respirar direito. Meu coração acelerou
de um jeito estúpido, batendo contra meu peito como se eu tivesse acabado
de sair de uma luta. “É só o calor, Lira”, eu disse a mim mesma. “Ela só está
procurando calor.”
Mas então minha mente me traiu, lembrando do calor da noite do clube. Da
forma como o corpo dela se movia sob o meu. Da forma como ela arfava meu
nome. Como seus dedos fincavam na minha pele.
Não, não era a mesma coisa. Isso aqui era diferente.
Era mais íntimo.
Eu senti meu corpo tenso, cada músculo rígido, enquanto lutava contra a
vontade absurda de fazer algo estúpido. Não era o momento de me deixar
levar por um impulso. Não era o momento de pensar no cheiro dela, no jeito
como sua pele parecia tão macia. Não era o momento de pensar em como ela
parecia confortável demais ao meu lado.
Eu fechei os olhos e soltei o ar lentamente pelo nariz. “Não é nada”, eu disse
a mim mesma. “É só o calor.” Mas meu coração continuava martelando
como se fosse me trair.
Olhei para o rosto dela novamente, e dessa vez, com mais atenção. Um cacho
de cabelo havia escapado e caído sobre sua testa. Aquele cabelo castanho que
sempre parecia sempre tão alinhado agora estava bagunçado e solto. Eu ergui
a mão sem pensar e empurrei o cacho para o lado. Meus dedos roçaram a pele
dela por um segundo, e eu senti o calor subir pelo meu braço.
Os lábios de Ayra se moveram. Seus olhos piscavam levemente, como se ela
estivesse prestes a acordar, mas não o fez. Só suspirou novamente, mais leve
dessa vez, e eu juro que vi um sorriso. Pequeno. Quase inexistente. Mas
estava lá.
Meu estúpido coração ainda batia muito rápido, mas agora também parecia
comprimido. Uma dor apertada. Eu deveria procurar um médico? Talvez.
Mas primeiro eu deveria sair. Eu deveria me levantar agora e acabar com
isso. Eu sabia que, quando ela acordasse, o caos voltaria. As provocações, as
brigas, as jogadas mentais que ela adorava fazer comigo.
A Ayra que eu conhecia acordaria. Não essa... Não essa versão suave e
inofensiva que estava segurando meu corpo como se eu fosse a âncora dela.
Mas eu não me movi.
Ao invés disso, minha mão foi até o travesseiro ao lado dela, e eu descansei a
cabeça, mantendo meu rosto virado para o dela. Nossos narizes quase se
tocando. Podia ver cada detalhe do rosto dela assim tão de perto. Os cílios
longos, as pequenas sardas quase imperceptíveis na curva do nariz. Coisas
que eu nunca tinha notado antes.
“Seja racional, Lira”, eu disse a mim mesma. “Não seja idiota… Ela é só um
rosto muito, muito lindo...” Mas, pela primeira vez em muito tempo, eu não
queria ser racional. Eu só queria continuar ali. Só por mais um pouco.
Eu não sabia quanto tempo se passou. O silêncio reinava no quarto. O som
suave da respiração dela era quase como um ritmo constante que se alinhava
ao meu. Minhas pálpebras ficaram pesadas, mas eu não fechei os olhos. Eu só
observava.
Mas em algum momento fraquejei. A última coisa que me lembro foi o calor
do corpo dela contra o meu. E eu desejei, no fundo do meu coração, que ela
não se movesse. Que ela não acordasse. Porque, por mais louco que fosse, eu
estava confortável ali.
E pela primeira vez em muito tempo, eu me senti segura.
☙❧
Acordei de novo, o sol alto. Pisquei algumas vezes, tentando afastar o torpor
da mente. Foi só quando me virei que percebi que o espaço ao meu lado
estava vazio. Nenhum sinal de que alguém tinha estado ali.
Fiquei parada por um momento, apenas olhando para o vazio ao meu lado.
Não sei por que, mas algo em mim se apertou. Uma irritação sutil, quase
silenciosa, mas que rapidamente se transformou em uma raiva surda.
“Por que eu estou chateada?” Me sentei na cama, esfregando o rosto com as
duas mãos. Era ridículo. Eu nunca me importei com quem saia sem avisar.
— Idiota… — murmurei para mim mesma, jogando as cobertas de lado e
levantando.
A raiva era como uma faísca que se tornou fogo. Fui até o banheiro, liguei o
chuveiro no quente e entrei sem esperar a água esquentar completamente, só
para me punir um pouco. Fechei os olhos e deixei a água cair sobre meu
rosto, sentindo cada gota gelada escorrer pelo meu corpo.
A tensão se dissipou um pouco, mas não muito. Saí do chuveiro, vestindo
uma calça social preta e uma camisa branca justa. Passei as mãos pelo cabelo,
deixando-o úmido sem paciência de secar. Meus olhos pararam no espelho
por um momento, observando o reflexo.
Suspirando, desci as escadas com o celular na mão, conferindo as mensagens.
As operações estavam estáveis, mas eu sabia que, eventualmente, problemas
poderiam acontecer. E aconteciam o tempo todo.
Cheguei ao saguão e apertei o botão do elevador privativo para a garagem.
Mas estava ocupado, o que me fez franzir o cenho. Quando a porta do
elevador abriu. Ali estava ela.
Ayra…
Seus cabelos ainda estavam levemente bagunçados, como se ela tivesse
acabado de acordar, mas havia uma naturalidade no jeito que ela estava. Jeans
rasgado, uma camiseta moletom que a deixava parecendo menor do que
realmente era. Mas o que mais chamou minha atenção foi o que ela segurava:
uma sacola de papel marrom e dois copos de café fumegantes na outra mão.
Eu congelei por um segundo. Ela ergueu os olhos para mim, parecendo
surpresa em me ver. Eu engoli em seco.
— Vai entrar ou vai continuar aí parada? — perguntei sem conseguir
esconder a minha desconfiança.
— Bom dia também, irritadinha.
Ela saiu do elevador, eu me movi para entrar, mas Ayra me empurrou com o
quadril, nem atrapalhando. A porta se fechou, ela me lançou um olhar
divertido.
— Você está me atrasando!
Ayra ficou na frente dos botões do elevador. Meu estômago fez um barulho
baixo, traidor.
— Com fome? — perguntou ela, sem sequer me olhar.
— Não... — respondi com uma rispidez automática.
— Hm. — Ela ergueu um dos cafés na minha direção, balançando o copo. —
Quer ou vai continuar sendo orgulhosa?
Olhei para o café e depois para ela. Seus olhos castanhos tinham aquela faísca
de malícia, mas havia também outra coisa. Uma gentileza que ela
provavelmente não queria admitir que estava oferecendo.
— O que colocou no café para oferecer ? — Disse, cruzando os braços mais
apertados.
— Veneno de rato, claro. — Ela deu de ombros. — Vai pegar ou não?
Fiquei quieta por um segundo, mas meu corpo me traiu. Antes que pudesse
pensar, minha mão já estava pegando o copo. Ela deu um pequeno sorriso de
vitória.
— Boa garota. — Ela disse em um tom que era uma mistura de provocação e
carinho.
— Cala a boca, Arellano. — Dei um gole no café, quente e forte, do jeito que
eu gostava. “Desgraçada.” — Pode sair da frente agora?
Eu podia sentir a energia diferente. Não era tensa, mas também não era
confortável. Era… quente. Ela abriu a sacola e tirou um pão recheado,
mordeu um pedaço e olhou para mim de lado, mastigando lentamente.
— Hm… — perguntou, de boca cheia, oferecendo um pedaço com a mão. —
Quer?
— Não!
Retruquei, mas minha barriga fez um som de novo. Ela ergueu as
sobrancelhas e me estendeu o pão. Eu olhei para ela, depois aceitei o que
oferecia.
— Tão mal humorado.
Ayra provocou, rindo de forma contida. Dei a primeira mordida. E foi só
quando senti o gosto do pão quente, com o café forte que percebi.
“Ela não saiu de propósito. Não foi um abandono…” Eu olhei para ela, que
me observava de volta, me analisando, mas sem nenhuma provocação, havia
certa curiosidade. Ayra estava se comportando de forma estranha
definitivamente.
Suspirei e dei mais um gole no café, tentando afogar essa linha de
pensamento. Eu comi o resto do pãozinho rapidamente.
— Preciso ir, pode sair da frente? — Eu disse, antes que o momento ficasse
ainda mais estranho. — Tenho trabalho a fazer.
— Sim, senhora. — Ela respondeu, mas seu tom era leve, sem as
provocações usuais. — Pode ir…
Ela se afastou, eu apertei o botão e a porta se abriu. Eu entrei, virando, no
instante que ela olhou para trás e disse:
— Bom trabalho, minha esposa!
Ela sorriu, uma daquelas expressões que você nunca esquece. Um sorriso
meio torto, cheio de provocações e promessas. E não sei porque ouvir ela me
chamar de “minha esposa” quase me fez sorrir. As portas se fecharam antes
que eu cometesse esse erro.
☙❧
Ayra Arellano
O estalido das teclas preenchia o silêncio da sala. Cada toque preciso, cada
linha de código digitada, era como uma trilha rítmica de foco. Sempre foi
para mim.
Eu estava debruçada sobre o notebook, o rosto levemente inclinado para
frente, os olhos acompanhando o fluxo de comandos na tela escura com letras
verdes. Suspirei, arrastando os dedos pelos cabelos, afastando uma mecha
teimosa que insistia em cair sobre meu rosto. Meu sistema de segurança
precisava de uma atualização.
Eu sabia disso há semanas, mas sempre acabava adiando, ocupada demais
com operações de campo e provocações estratégicas. Hoje, no entanto, a
tarefa parecia urgente, ou talvez, eu só precisasse de algo para ocupar minha
mente.
Acordei naquela manhã diante da Lira. E descobrir rápido que havia algo
hipnotizante nisso. As pálpebras estavam fechadas, os cílios longos
descansando sobre a pele pálida. Sua respiração era lenta e profunda, o peito
subindo e descendo com a cadência de alguém que está completamente
entregue ao sono.
Lira Zamorano, dormia ao meu lado como se o mundo lá fora não existisse.
Nenhuma das suas máscaras estava presente. Sem a postura rígida, sem o
olhar afiado de quem está sempre dois passos à frente.
Não sei quanto tempo fiquei ali, observando o rosto dela. Os pequenos
detalhes que eu nunca poderia ver de tão perto. A curva suave de suas maçãs
do rosto, a linha precisa de seu nariz e os lábios entreabertos, ligeiramente
ressecados. Ela nunca permitiria que alguém a visse assim. Mas eu via. E, por
alguma razão, aquilo me deixou quieta por dentro.
Meus olhos voltaram a explorar os detalhes. Ela tinha pequenas cicatrizes nas
mãos, quase imperceptíveis para qualquer um que não soubesse o que
procurar. Essas mãos estavam soltas, relaxadas sobre o travesseiro. Sem
tensão. Sem luta. E isso me fez sentir uma pontada estranha no peito.
Exatamente por isso eu pulei da cama, me afastando daquela cama,
principalmente da imagem de uma Lira Zamorano tão bonita e relaxada. E
assim, vesti a primeira coisa que encontrei, saindo para conseguir um café da
manhã. E claro, acabei encontrando Lira já de pé.
“Minha esposa.”
A lembrança das minhas próprias palavras voltou com força. Sorri sozinha,
inclinando a cabeça para o lado. Eu não planejei aquilo, não mesmo. As
palavras apenas escaparam, como uma provocação, mas acho que gostei
delas. Talvez tenha sido pelo jeito que a Lira me olhou irritada, mas não com
aquela raiva fria que ela geralmente tinha. Era algo mais quente, mais…
humano.
“Idiota.” Murmurei para mim mesma, rindo enquanto mexia nos novos
códigos. Mas minha mente não queria focar nisso.
Ela estava em Lira. Na expressão que ela fez ao aceitar o café. Aquela
pequena hesitação antes de pegar o copo, como se estivesse decidindo se
confiar em mim era uma opção. Aquela resistência infantil, quase adorável,
de alguém que não quer admitir que precisa de algo que você tem.
Lira não sabia disfarçar. Ela não gostava de estar fora de controle. Mas, por
algum motivo, não me afastou.
“Ela não empurrou minha mão”, pensei, inclinando-me para a frente,
observando as linhas de código piscarem na tela. “Ela não recusou o café,
nem o pão”. E, o mais interessante… ela não revidou a provocação quando
disse: ‘minha esposa’.”
Soltei uma risada baixa, balançando a cabeça. O sistema de segurança
finalmente reconheceu o servidor. Eu deveria focar no trabalho. Tinha
problemas maiores para resolver. Redes de segurança, interceptações de
sinais e monitoramento de informantes. Mas, ao invés disso, meu olhar vagou
para o canto da tela, onde uma câmera do corredor do elevador ainda
mostrava a última imagem registrada antes de eu sair.
É claro que eu já tinha grampeado todo o sistema de segurança do prédio, não
só do apartamento. Afinal de contas, era bom estar sempre um passo à frente.
Lira. Parada, de costas para mim, olhando para o painel do elevador. Seus
ombros estavam tensos, mas eu conhecia esse tipo de tensão. Não era de
raiva, com certeza.
— Pensando em mim, Zamorano? — murmurei para a tela, arqueando uma
sobrancelha. — Não se preocupe, você vai pensar muito mais do que isso.
Fechei a imagem, retornando ao sistema de controle principal. Era melhor
não deixar evidências de que eu estava observando mais do que deveria.
Limpei o cache de imagens temporárias e continuei digitando.
“Foco, Ayra. Concentração. Prioridades.” Mas, honestamente, meu coração
não estava nisso. Meu sorriso se alargou conforme a outra memória voltou.
“Você está ficando mole, Ayra…” Fechei os olhos e respirei fundo. Mas, no
fundo, eu sabia que não era moleza. Não era fraqueza. Era outra coisa. Algo
que queimava, mas não doía.
☙❧
Lira Zamorano
A porta do elevador deslizou suavemente, revelando o corredor silencioso e
imaculado do apartamento. O silêncio era tão denso que o único som que
ecoava era o dos meus sapatos contra o chão.
Eu equilibrei as duas sacolas de papel nas mãos, o cheiro de comida quente
escapando por entre as dobras do papel. Duas porções. Suspirei, já irritada
comigo mesma antes de entrar.
— Idiota… — murmurei para mim mesma, franzindo o cenho. — Muito
idiota.
Eu sabia que era estúpido. Desde o momento em que fiz o pedido. “Ela que
se vire…” Essa foi a frase que eu disse a mim mesma enquanto olhava o
menu. “Se ela quiser comer, que peça.” Mas, de alguma forma, no momento
em que o atendente perguntou “Vai querer mais alguma coisa?”, a minha
boca se adiantou ao meu cérebro: “Duas porções, por favor.”
Burra.
O apartamento estava escuro. Mas os sensores de presença foram ativados e
as luzes acenderam. Deixei os sapatos no canto, então parei no meio da sala,
as sacolas pesando mais do que o necessário em minhas mãos. Olhei ao
redor. Silêncio absoluto.
— Arellano? — chamei, mas a minha voz soou mais forte do que eu
esperava, ecoando pelas paredes de concreto. Nenhuma resposta. — Ayra?
O apartamento parecia vazio. Revirei os olhos e soltei um suspiro longo. Não
sei por que me incomodei com isso. Não era como se eu me importasse.
Deixei as sacolas sobre o balcão de mármore da cozinha. O som abafado do
papel tocando a pedra foi mais alto do que eu queria.
Olhei para as sacolas por um instante.
Duas porções.
Eu deveria ter trazido só uma. Eu sabia. Eu sabia disso. Ayra podia muito
bem se virar sozinha. Mas lá estavam as duas porções.
Passei a mão pelo rosto, fechando os olhos com força, tentando afastar o
aperto que se formava no peito. Que sensação irritante. Uma mistura de
frustração, cansaço e uma leve… decepção? Não. Não era decepção. Não
podia ser.
— Você é patética, Lira… — murmurei para mim mesma. — O que há com
você?
Peguei uma das sacolas e comecei a tirar os recipientes. A comida estava
quente, o cheiro era forte e envolvente. Fiquei olhando para os dois
recipientes idênticos sobre o balcão. Eles pareciam debochar de mim. Um
para mim. O outro para ela.
Mas ela nem está aqui.
Apertei a mandíbula. Soltei o ar lentamente pelo nariz e tentei afastar o
incômodo. Peguei um dos hashis descartáveis e sentei no banco alto diante do
balcão.
Dei a primeira mordida.
A carne era macia, o tempero forte, mas saboroso. Normalmente, eu estaria
satisfeita, aquela era a comida do meu restaurante asiático favorito. Mas
agora, o gosto parecia amargo, como se algo estivesse errado. Peguei mais
um pedaço de carne e mastiguei com força, descontando a irritação no
alimento. Até que ouvi um som.
Um barulho abafado vindo do corredor que levava para a academia particular
do apartamento. Franzi o cenho, parando de mastigar. Meu coração deu um
salto estranho, e imediatamente levantei a cabeça devagar, encarando o
corredor escuro.
Passos leves. Meus olhos se fixaram no ponto onde o corredor se abria para a
sala. O som se aproximou. Ritmado. Constante. E então ela apareceu.
Ayra. Suada, com a pele levemente brilhante e os fios de cabelo grudados nas
têmporas. Ela vestia um top preto justo, que deixava a barriga à mostra, e
uma legging de cintura alta que moldava cada centímetro das pernas. Um par
de fones de ouvido pendurado ao redor do pescoço, e ela limpava o rosto com
uma toalha enquanto andava com uma tranquilidade irritante.
Parei de mastigar e senti o corpo inteiro se retesar. Ela me viu, ergueu as
sobrancelhas, surpresa, mas não parou de andar.
— Oi Zamorano — disse, com o sorriso torto e o ar casual que só ela
conseguia ter. — Você trouxe comida?
Eu pisquei, tentando recuperar o controle da expressão. Tentando não me
distrair com as gotas de suor que desciam e sumiam entre seus seios,
ressaltados pelo top. Como um adolescente, eu senti o calor subir pelas
bochechas.
— E você estava aqui o tempo todo?
Indaguei. Ela deu de ombros, parando ao lado do balcão, onde a outra sacola
de comida ainda estava fechada. Seus olhos pararam na sacola e depois em
mim. Ela percebeu. Eu vi o exato momento em que ela percebeu.
— Duas porções, hein? — Um sorriso lento e presunçoso se formou no rosto
dela. — Que generosa, Lira.
Maldita.
— Estava na promoção. — Rebati rápido demais. — Comida em dobro.
— Claro que sim. — Ela abriu a sacola, tirando o recipiente de dentro. — Foi
só um “acaso” você pedir dois combos completos por causa do preço.
Peguei outro pedaço de carne e enfiei na boca, mastigando com mais força,
tentando me concentrar no sabor e não no jeito como ela parecia confortável
demais naquele espaço. Ela abriu a tampa do recipiente e o vapor subiu,
preenchendo o ar com o cheiro de comida quente.
Ayra me lançou um olhar de canto de olho enquanto puxava o banco ao meu
lado e se sentava.
— Você é tão gentil, esposa — disse, cutucando a comida com o hashi e
colocando o primeiro pedaço na boca. Ela gemeu de satisfação, como se
fosse a melhor coisa que já tinha provado. — Sério, me pergunto como vivi
sem você antes.
— Cala a boca, Arellano.
Olhei para frente, mas senti o canto da minha boca se mexer
involuntariamente. Não era um sorriso. Não era. Enquanto Ayra riu, uma
risada curta e rouca, e voltou a comer. O som dos hashis batendo contra os
recipientes ecoava no ar.
Eu olhei de esguelha. Ayra estava de cabeça baixa, concentrada em devorar o
que havia no recipiente. Os ombros dela se moviam levemente enquanto
comia, o brilho de suor ainda visível nas costas e no pescoço. E, por algum
motivo, eu não conseguia desviar o olhar.
Revirei os olhos, soltando o ar pelo nariz e voltando para minha comida. O
barulho dos hashis continuou. O silêncio não era mais tão incômodo quanto
antes. E, por algum motivo, a comida já não parecia tão amarga.
— Isso aqui é muito bom… — Ayra comentou, levando mais um pedaço à
boca. Mastigou devagar, como se estivesse analisando o tempero. Seus olhos
me encontraram, brilhando com aquela faísca de malícia habitual. — Vai me
trazer comida todos os dias?
— Não sonhe com isso.
Retruquei desviando o olhar dela, mas percebi o sorriso largo que se formou
no rosto dela mesmo assim.
— Sabe… — ela começou. — Usei a casa inteira hoje.
Eu franzi o cenho e a encarei, largando meus hashis sobre o recipiente.
— O que quer dizer com isso?
— Quer dizer que eu explorei cada canto, Zamorano. — Ela deu de ombros,
mastigando com uma lentidão calculada que me irritou. — Ah, e arrumei o
closet.
— Você o quê? — Minha voz saiu mais alta do que eu pretendia.
— Arrumei o closet. — Ayra repetiu com um sorriso lento, sabendo
exatamente o que estava fazendo. — Afinal já chegamos a conclusão que eu
não vou sair do quarto principal.
Me inclinei ligeiramente para frente, apoiando os antebraços no balcão. Eu a
encarei de forma fixa, como se pudesse perfurá-la só com o olhar.
— Você realmente não conhece a palavra limites, não é?
— Não mesmo — Ela deu um sorrisinho. — Devo acrescentar aquelas
prateleiras precisam de ajustes. E, francamente, seu gosto por roupas pretas tá
ficando repetitivo.
— Meu closet não é da sua conta, Arellano.
— Agora é... — Ela deu mais uma mordida e apontou para mim com o hashi,
como se estivesse me dando uma lição. — Acho bom ir se acostumando com
isso.
— Você tem um sério problema de invasão de espaço pessoal.
— E você tem um sério problema de desapego, Zamorano.
Ela ergueu as sobrancelhas duas vezes, como se me desafiasse a negar. Abri a
boca para rebater, mas parei. Não porque ela estava certa, mas porque sabia
que não adiantava discutir. Eu podia sentir o calor subindo pelo meu pescoço
até as orelhas, mas controlei a expressão antes que qualquer coisa escapasse.
Peguei os hashis de volta e enfiei um pedaço de carne na boca sem desviar o
olhar.
— Você fala demais.
Foi tudo o que consegui dizer. Ayra riu, inclinando-se para trás no banco,
relaxada como nunca vi antes.
O silêncio caiu sobre nós. O som dos hashis batendo contra o recipiente foi o
único ruído por um tempo. Eu não respondi. Não precisava. O olhar que eu
lancei para ela foi suficiente. Mas, claro, ela adorou isso.
Terminei de comer, empurrando o recipiente para longe. Peguei meu celular,
olhei as notificações e as operações do dia. Tudo estava sob controle. Ayra
também terminou e empurrou o recipiente para o lado. Ficou sentada ali, os
cotovelos apoiados nos joelhos, olhando para mim de novo. Como se
esperasse.
— Não tem nada melhor pra fazer? — perguntei, finalmente quebrando o
silêncio.
— Na verdade não — ela deu de ombros. — Irritar você é bem mais legal.
Bufei, rolando os olhos. Então me levantei, deixando-a para trás, subindo as
escadas ouvindo a sua risada.
Fiz meu caminho para o quarto principal, notando assim que entrei às coisas
Ayra ali, seja um urso na mesinha ao lado da sua cabeceira. Ou livros na
mesa de centro. Tinham fotos dela com os pais na prateleira perto da TV, que
atraiu a minha atenção.
Eu me aproximei, observando, vendo uma garotinha de sorriso brilhando com
olhos enormes castanhos. “Tão adorável”. Eu pensei, antes de sacudir a
cabeça e me afastar.
Ayra tinha simplesmente “infestado” o lugar com a sua presença, eu devia
jogar tudo para fora. Mas infelizmente acho que isso só iria iniciar uma
guerra, pois Ayra arrastaria tudo de volta no mínimo.
Suspirando, ignorei o closet abarrotado agora. Notando sem nem muita
observação que ela pegou mais um armário, que era meu. Aquela
provocadora…
Entrei no banheiro, tirando a camisa, enchendo a banheira e programando a
hidromassagem. Eu precisava de um momento para relaxar, depois um dia
cheio e de Ayra.
Terminei de tirar a roupa, prendendo o cabelo em um coque, entrando na
banheira. O vapor começou a subir assim que a água quente preencheu o
espaço, o som suave de borbulhas e redemoinhos tomando conta do
ambiente.
Respirei fundo, fechando os olhos por um instante enquanto sentia o calor
envolvente subir pelas minhas pernas e depois pelo resto do corpo. Cada
músculo tenso finalmente cedia ao toque quente da água. Afundei mais,
encostando as costas contra a borda curva da banheira, os braços estendidos
nas laterais.
Fui distraída, com a lembrança do jeito que ela apareceu do nada no corredor,
o suor brilhando nos ombros, atraente como um paraíso infernal. Eu bufei,
abrindo os olhos.
Passei as mãos pelo rosto e afundei até o queixo, deixando o calor me
consumir. Eu não ia pensar nela. Eu me recusei a pensar nela. Mas, como
sempre, o universo parecia ter um senso de humor cruel.
O som da porta de vidro do banheiro se abrindo foi o aviso. Minha cabeça se
levantou devagar, e eu olhei para a porta de vidro fosco que se movia
lentamente, revelando a sombra de uma figura atrás dela.
Ayra entrou tranquilamente, caminhando de uma forma lenta e casual. Os
cabelos bagunçados e o brilho de suor na pele ainda estavam lá. O top preto
revelava seu abdômen definido e as linhas suaves de seu corpo.
— Tá confortável aí, Zamorano? — perguntou, com um sorriso de canto de
boca enquanto se aproximava.
— O que você está fazendo aqui?
A minha voz saiu mais firme do que eu esperava. O tom autoritário que eu
usava com soldados, mas que nunca parecia funcionar com ela.
— Tomando um banho. — Ela disse como se fosse óbvio. Os dedos dela já
estavam no cós da legging. — Ou você acha que a banheira é só sua?
— Eu tô aqui. — Frisei, erguendo as sobrancelhas, como se isso fosse o
suficiente para fazer ela recuar.
— Eu percebi. — Ela sorriu, descendo a legging lentamente pelas pernas. —
Não sou cega.
Meu olhar foi automático e eu xinguei a mim mesma por isso. Não olhe. Não
olhe. Mas eu olhei. As pernas longas e firmes surgiram à medida que o tecido
deslizava. Ela se inclinou para tirá-la completamente, e eu desviei o olhar
com tanta força que meu pescoço doeu.
Idiota. Idiota. Idiota.
— Tem dois chuveiros, Ayra. — Eu falei, olhando para o teto, para o
mármore, para qualquer coisa que não fosse ela. — Usa o outro.
— Não tô a fim de banho de chuveiro. —
Ela largou a legging ao lado da camiseta e começou a tirar o top. Eu não
precisava olhar para saber disso. Eu sentia. Era como se o ar do banheiro
tivesse ficado mais denso. “Não olha, Lira. Não olha”. Murmurei
mentalmente.
— Ayra, eu não tô de bom humor.
Usei o tom de advertência, o mesmo que meu pai usava comigo quando eu
era criança. Autoridade. Frieza. Controle.
— Eu sei. — Ela respondeu, enquanto olhei de esguelha, ela se desfazendo
do top e jogando junto com as outras roupas. — Eu sempre sei.
Ela ficou de costas para mim enquanto prendia o cabelo em um coque frouxo,
os músculos das costas se movendo suavemente enquanto fazia isso. Eu
encarei o ponto mais seguro que pude: a parede de mármore logo atrás dela.
Fechei os olhos em seguida. Eu podia ouvir o barulho da água se movendo
antes mesmo de ver. O som dos pés dela entrando, primeiro um, depois o
outro, e então o corpo inteiro se afundando lentamente na água quente.
— Abra os olhos, querida.
Ayra provocou. Eu suspirei. Olhei para ela com um misto de descrença e
irritação.
— Você só pode estar brincando. — Cruzei os braços sobre o peito,
ignorando a sensação de calor que subiu pelo meu pescoço. — Não pode me
deixar em paz?
— Só quero aproveitar a banheira.
Ela suspirou enquanto se acomodava, os olhos fechados e a cabeça encostada
na borda oposta da banheira. Fiquei em silêncio. Minhas unhas tamborilam
levemente na beirada da banheira.
Eu podia expulsá-la. Eu deveria expulsá-la.
Mas, ao invés disso, fiquei ali, observando a forma que ela afundava mais na
água, o pescoço inclinado para trás, os fios soltos escapando do coque. Ela
parecia mais relaxada do que deveria.
— Admirando? — Ela abriu os olhos e me encarou, o sorriso preguiçoso de
sempre voltando. Odiava aquele sorriso. — Pode admitir Zamorano.
Mordi o lado interno da bochecha e desviei o olhar. Ela fechou os olhos de
novo, inclinando a cabeça para o lado, os lábios se curvando em outro
sorriso.
Eu cerrei os olhos, mas não respondi. Porque eu sabia que se tentasse
discutir, ela venceria. Não porque estivesse certa, mas porque era Ayra. E
Ayra sempre fazia questão de vencer mesmo quando não precisava.
O silêncio caiu sobre nós de novo. O barulho das bolhas da hidromassagem
era constante. A sensação de água quente no corpo fazia tudo parecer mais
lento. Mais denso. Ayra continuava de olhos fechados, o peito subindo e
descendo devagar, a expressão completamente relaxada. Ela parecia em paz.
Eu me peguei olhando por mais tempo do que deveria.
“Controle, Lira. Controle.” Pedi a mim mesma. Então reagi, saindo da
banheira. Não daria o gostinho de ceder ao meu corpo traidor. Eu senti os
olhos dela na minha costa, mas ignorei, saindo dali.
Quando me deitei na cama, já vestida e pronta para dormir, fechei os olhos na
esperança de que o sono viesse rápido. Claro que isso não aconteceu. Meu
corpo permaneceu imóvel, mas minha mente se recusava a desligar.
No entanto, eu não os abri. Não precisei. Podia ouvir Ayra se movimentando
pelo quarto. Era impossível não perceber. Não havia como ignorar sua
presença, não importa o quanto eu tentasse.
Então, o colchão afundou levemente ao meu lado. O cheiro fresco e suave de
algo floral preencheu o ar logo em seguida, como se ela estivesse se
enrolando no próprio perfume. Meu corpo ficou tenso por reflexo, mas não
me movi. Ela se ajeitou uma vez, depois outra, virando de um lado para o
outro, como se não conseguisse encontrar uma posição confortável.
Inquieta. Como sempre.
Mas eu senti o efeito disso em mim. A cada movimento dela, o colchão
balançava, e aquilo parecia sincronizar com a irritação crescente no meu
peito. “Fique quieta, Arellano”. Eu pensei, sem dizer uma palavra.
Mas, surpreendentemente, ela ficou. Sua respiração mudou. Mais longa. Mais
lenta. O ritmo constante de alguém que finalmente cedeu ao sono.
Abri os olhos devagar, só o suficiente para olhar na direção dela. E lá estava
Ayra, virada para mim. Os traços do rosto suavizados. Só ela, calma e
silenciosa.
Eu deveria ter virado para o outro lado. Deveria. Mas meus olhos
continuaram nela. A forma como sua respiração fazia o peito subir e descer,
lenta e ritmada, acabou me envolvendo. Sem perceber, minha respiração
começou a seguir o mesmo compasso. E, antes que pudesse resistir, meus
olhos fecharam por conta própria.
Não me lembro do momento exato em que adormeci.
A próxima coisa que senti foi o calor.
A luz filtrava pelas cortinas entreabertas, projetando listras de ouro sobre o
quarto. Pisquei algumas vezes antes de perceber o que era o calor. Quente
demais. Algo pressionava contra meu peito e minha cintura. Algo firme, mas
não pesado.
Baixei o olhar devagar. Ayra. Deitada sobre mim. A cabeça dela estava
encostada no meu ombro, o rosto parcialmente enterrado na curva do meu
pescoço. Seu braço estava jogado sobre minha cintura, e para completar,
minhas mãos estavam… sobre ela. Uma no meio de suas costas, a outra
descansando no braço dela.
Eu estava abraçando ela.
Fechei os olhos com força e respirei fundo, mas isso foi um erro. O cheiro
floral que me cercava ficou mais forte, preenchendo meus pulmões. Era o
perfume dela.
Ela se mexeu…
Abri os olhos novamente. Meu corpo inteiro se retesou, mas Ayra só afundou
ainda mais contra mim, soltando um suspiro longo, como se estivesse mais
confortável do que nunca. Seu nariz roçou de leve contra a pele do meu
pescoço, e eu senti um arrepio que subiu pela minha coluna de forma
traiçoeira.
Fechei os olhos outra vez e mordi o lábio para não bufar. Como isso
acontece?
Porque, de algum jeito, não importava como nós começamos a noite, cada
uma de um lado da cama, com espaço suficiente para caber outra pessoa entre
nós, ela sempre acabava aqui. Nos meus braços. E, o pior de tudo, eu não
sabia mais se o problema era ela ou se era eu que deixava.
CAPÍTULO NOVE
Ayra Arellano
Sentei na beira do sofá, as pernas abertas, os cotovelos apoiados nos joelhos e
o celular girando entre os dedos. O som baixo da TV ecoava ao fundo, mas
eu não estava realmente assistindo. Minhas costas doíam um pouco da última
sessão de treino, e o suor frio ainda grudava na pele. Eu devia tomar banho.
Mas, por algum motivo, fiquei ali. Pensando.
Duas semanas.
Duas semanas inteiras desde que essa loucura começou. Desde o
“casamento”, se é que dava para chamar aquilo de casamento. Era o tipo de
“união” que fazia os deuses do casamento rirem enquanto assistiam ao circo
pegar fogo.
E, no meio desse circo, lá estávamos nós: Eu e Lira Zamorano.
Soltei uma risada curta e balancei a cabeça. Se alguém tivesse me contado
isso meses atrás, eu teria mandado internar o infeliz. Eu? Casada? Com Lira?
Pior ainda, casada por obrigação, forçada a dividir o mesmo espaço com a
mulher que mais sabia me tirar do sério.
Parei de girar o celular e olhei para a tela apagada, vendo meu próprio
reflexo. E o mais bizarro?
Eu ainda não tinha saído do quarto principal.
Nem ela.
Apertei o celular entre as mãos e deixei o queixo cair sobre os punhos
fechados. A rotina que a gente estabeleceu não fazia sentido. De manhã,
brigávamos. No café, que ela algumas vezes deixava na máquina, trocamos
provocações. Durante o dia, mal nos víamos, cada uma cuidando dos próprios
negócios. E à noite, a mesma coisa de sempre:
Banho. Silêncio tenso no quarto. Mais uma ou duas farpas trocadas. Depois,
as luzes se apagaram e, de algum jeito, nós duas acabamos dormindo na
mesma cama. E no primeiro dia, eu achei que era temporário. No segundo,
pensei que uma de nós ia ceder. Mas não. No terceiro, eu comecei a perceber
a lógica não dita: “Se ela não vai sair, eu também não vou.”
E agora? Agora era isso.
Às vezes, ela dormia de costas para mim, tão distante que parecia que a cama
tinha um abismo entre nós. Outras vezes, ela estava de lado, e eu também, e
nós duas ficávamos naquela posição desconfortável onde ninguém queria se
mover primeiro.
Mas, ao que parecia, sempre, uma de nós se movia. E acabávamos enroscadas
uma na outra. Acordava e, de alguma forma, minhas pernas estavam sobre as
dela. Ou seu braço estava sobre o meu. Ou, pior, eu acordava com ela
abraçada em mim. Ela nunca disse nada. E eu também não.
Peguei o celular de novo e liguei a tela, mais para ocupar a cabeça do que
para olhar qualquer coisa importante. Passei o dedo pela lista de notificações
e abri uma mensagem de um dos rapazes do meu time. Atualizações de rota.
Nada urgente.
Mas, enquanto lia, minha mente ainda estava presa naquela cama. Na rotina
que nós duas fingíamos que não existia.
Porque, de manhã, tudo voltava ao normal. Ela saía primeiro. Eu ficava. Eu
provocava. Ela retrucava. Parecia normal. Parecia controlado. Mas não era.
Não mais. Porque, à noite, era o oposto. De algum jeito, nós duas caíamos
naquela cama como se isso fosse o único lugar que fazia sentido.
— Ridículo… — murmurei para mim mesma, bloqueando o celular e
jogando-o de lado no sofá.
Passei a mão pelo rosto e inclinei a cabeça para trás, encarando o teto branco.
Apesar de tudo, apesar das brigas, dos olhares cortantes e do silêncio tenso…
havia algo naquela rotina que fazia sentido.
Eu odiava admitir isso.
Mas, quando eu acordava e a encontrava ainda dormindo, com o rosto
tranquilo e o cabelo bagunçado, havia uma sensação de paz que eu nunca
teria coragem de dizer em voz alta.
Mas ela nunca vai ouvir isso de mim.
Passei a mão pela nuca e me levantei, os músculos reclamando do esforço. O
suor seco na pele me fez lembrar do banho que eu ainda não tinha tomado.
Entretanto, antes que eu pudesse continuar meu caminho, ouvi uma
notificação no meu celular. Encarei a tela, abrindo uma mensagem, lendo
rapidamente.
— Ah merda… — xinguei, sabendo que aquilo uma hora ia acontecer.
☙❧
A porta de metal do galpão, onde estava o escritório da Lira, bateu com força
atrás de mim, o som ecoando por todo o espaço. Não me importei em ser
sutil. Se era atenção que eu precisava, atenção foi o que eu ia ter.
Não precisei ir até a sala da Lira. Aparentemente ela estava coordenando
alguma coisa na área externa. Lira nem se deu ao trabalho de olhar para mim.
Ela estava de costas, em pé ao lado de uma mesa cheia de documentos e
tablets, os dedos deslizando pela tela de um deles.
Lira usava uma camisa preta de mangas dobradas até os cotovelos e uma
calça de alfaiataria. Mas evitei prestar muita atenção a isso. Aquela aparência
quente não ia me atrair.
— Tá ocupada, Zamorano? — perguntei com sarcasmo, cruzando os braços
enquanto me aproximava. — Porque, pelo visto, seus homens acham que têm
o direito de ignorar ordens numa operação conjunta.
Ela não respondeu. Isso me irritou como um espinho cravado em mim.
— Lira. — Falei mais alto dessa vez, o nome dela saindo com um peso extra
na língua. — Lira Zamorano!
Ela ergueu o dedo, sem nem olhar para mim, pedindo silêncio. Silêncio. Para
mim. Mordi o lado interno da bochecha, meu olhar se fixando nela com uma
intensidade que poderia incendiar o lugar inteiro.
Lira deslizou mais algumas telas no tablet, digitou algo rapidamente e, então,
soltou o dispositivo sobre a mesa. Lentamente, virou o rosto na minha
direção, os olhos cinzentos me analisando com aquele brilho frio que ela
sempre usava quando queria demonstrar que estava no controle.
— Se veio reclamar, Arellano, fique na fila. — A voz dela foi calma, mas
carregada de tédio. — Ou resolve sozinha, se estiver com tanta pressa assim.
— Sério? É isso? — Eu estreitei os olhos. Abri os braços, deixando escapar
uma risada incrédula. — Seus homens estão me fazendo de idiota, atrasando
a movimentação de mercadoria. Isso é um problema seu.
— Nesse momento é só seu. — Lira respondeu, pegando o tablet de novo e
voltando a focar na tela. Como se eu não estivesse ali. — Se for só isso, feche
a porta quando sair.
Meu maxilar travou. Eu queria virar aquela mesa e quebrar aquele tablet,
naquele rosto perfeito dela. E eu sabia que ela fazia isso de propósito. Ela
sabia exatamente o que estava fazendo ao me ignorar.
— Você tá achando que eu vou embora e deixar assim? — Perguntei,
cruzando os braços com força, o peito subindo e descendo devagar para tentar
controlar a irritação. — Tá achando que eu sou quem, Zamorano?
— Acho que você é alguém que sabe muito bem como resolver suas próprias
brigas. — Ela levantou o olhar por um segundo, os olhos cinzentos fixos nos
meus, desafiadores e firmes. — Ou você só sabe bater o pé?
Meus dedos se curvaram contra o antebraço, como se eu estivesse tentando
segurar algo invisível.
— Não sou eu que estou deixando a equipe perder o respeito. — Soltei,
inclinando o corpo para frente, como se isso pudesse quebrar a bolha de
calma dela. — Se seus homens não ouvem ninguém, Lira, é porque você
perdeu o controle deles.
Foi sutil, mas eu vi. O músculo no maxilar dela apertou. Ah, agora eu tinha a
atenção dela.
— Meu controle tá exatamente onde eu quero que esteja. — Ela se
aproximou da mesa e apoiou as mãos na superfície de metal, os olhos focados
nos meus. — Se meus homens não colaboram com você, Arellano, talvez seja
porque você não sabe como dar ordens que eles respeitem.
Corte preciso. Fino. Frio. Eu senti a raiva subir. Aquela raiva silenciosa, mas
que esquentava o peito como fogo lento.
— Não tenho que ganhar o respeito de ninguém. — Respondi, firme, sem
mover um músculo. — Eu não tô aqui pra isso. Tô aqui pra garantir que a
operação corra no tempo certo. E, no momento, o único obstáculo nisso… é
você.
Lira soltou uma risada curta, mas sem nenhum humor.
— No momento, minha prioridade é o carregamento de Lyza. Isso aqui? —
Ela inclinou a cabeça, os olhos estreitos e a voz cortante, apontando para o
tablet. — Isso aqui é o que paga as suas operações. Então, se tiver que
esperar, você espera.
— Se eu quisesse um sermão, eu ia pra igreja. — Dei um passo para frente,
agora mais perto dela. Meus olhos presos nos seus. — Não vou esperar, Lira.
Eu já esperei demais.
Ela não recuou. Nem eu. Os olhos dela brilharam de um jeito que só
acontecia quando ela via alguém tentar desafiá-la.
— Então vai lá, Ayra. — Ela se afastou devagar, recostando o quadril contra
a mesa, os braços cruzados. — Estou ocupada. Já disse!
Ah, então era assim. Ela queria que eu explodisse. Queria que eu perdesse o
controle e fizesse uma cena. Era isso que ela queria. Mas eu não ia dar isso a
ela.
— Perfeito. — Sorri devagar, mas foi o tipo de sorriso que eu sabia que ia
incomodar. — Vai ver como eu resolvo, Zamorano. E, quando eu resolver,
seus homens não vão gostar nem um pouco.
— Eles já não gostam de você, Arellano. — Ela deu de ombros, os olhos me
observando de cima a baixo. — Então não tem muito o que perder, tem?
Dei uma risada curta, balançando a cabeça enquanto recuava alguns passos.
— Só não reclama depois…
Eu falei, virando de costas e indo na direção da porta. Não olhei para trás,
mas sabia que ela ainda estava me encarando. Eu sentia o peso do olhar dela
queimando minha nuca. Abri a porta e saí, batendo-a com mais força do que
o necessário.
☙❧
Lira Zamorano
O som das telas piscando e as notificações ecoavam no escritório, cada bip,
cada vibração, cada atualização vindo com uma urgência que eu já estava
acostumada a ignorar. Minhas mãos deslizaram pelo tablet enquanto os
relatórios de movimentação passavam pela tela. Números. Roteiros. Horários.
Tudo sob controle.
Carregamento de Lyza finalizado. Operação impecável. Nenhuma falha.
Soltei um suspiro longo e soltei o tablet sobre a mesa de metal. Minha mente
ainda estava no ritmo acelerado do controle logístico, mas meu corpo pedia
uma pausa. Passei as mãos pelo rosto, afastando o cansaço por um momento.
— Lira.
A voz de Valentina soou atrás de mim, cortando o som ambiente do
escritório. Levantei o olhar para encontrá-la na porta, os braços cruzados, mas
havia algo na expressão dela que me fez franzir o cenho. Valentina nunca
parecia preocupada, mas agora, havia uma linha de tensão entre as
sobrancelhas dela.
— O que foi? — Perguntei, o tom já impaciente.
— É a Ayra. — Ela descruzou os braços, colocando as mãos nos bolsos. —
Parece que ela está… causando problemas.
Meu olhar endureceu. Ayra. Claro que é Ayra.
— Que tipo de problemas, Valentina? — Me aproximei, a voz ficando mais
fria a cada palavra.
— Ela foi até o pátio onde estão seus homens — Valentina fez uma pausa,
como se quisesse escolher as palavras com cuidado. — E começou a… bem,
ela está lutando com eles.
Meu corpo congelou por meio segundo antes de dar dois passos à frente. O
meu peito apertou de forma involuntária, mas não deixei transparecer.
— Lutando? — Minha voz saiu incrédula, mas com um tom afiado.
— Literalmente, Lira. — Valentina ergueu uma sobrancelha, séria, mas não
exatamente surpresa. — Ela desafiou os melhores. Um por um.
— O quê?! — explodi, minhas mãos batendo contra a mesa com força, o som
ecoando pelo escritório. — E você só está me dizendo isso agora?!
— Achei que ela fosse desistir depois do primeiro. — Valentina deu de
ombros, sem perder a compostura. — Mas, bem, você conhece a Arellano.
Ela não para.
Arellano, sua maldita inconsequente.
Peguei meu tablet e o joguei para o lado, com mais força do que o necessário.
Ele deslizou pela mesa, parando na borda sem cair. Minhas pernas já se
moviam antes que eu pensasse.
— Onde? — Perguntei, passando por Valentina a passos firmes e rápidos.
— Setor C, perto do armazém dois das docas. — Valentina respondeu,
seguindo atrás de mim. — Parece que ela já derrubou dois. O terceiro tá
tentando não cair.
Inacreditável. Meus passos ecoavam no chão de concreto do galpão, cada
batida mais forte que a anterior. Meus ombros estavam tensos, meu peito
subindo e descendo com a respiração pesada.
— E ninguém achou que devia me avisar antes? — Minha voz era uma
mistura de raiva e choque.
— Você estava ocupada. — Valentina respondeu como se fosse a coisa mais
óbvia do mundo. — E, francamente, não achei que devia…
— Não cabe a você julgar isso, Valentina! — rosnei, já sentindo o calor
subindo pelo meu pescoço e indo direto para as têmporas. — Se Ayra faz
alguma coisa, eu quero saber, não importa o que for.
Minhas mãos apertaram as chaves do carro no bolso enquanto meus passos
ecoavam. Meu peito estava pesado, mas não de raiva… E odiei admitir que
era preocupação. Eu infelizmente sabia que era. Porque Ayra não sabia o
limite entre provar um ponto e se destruir no processo.
Quando cheguei à garagem, já abri o carro antes mesmo de chegar perto.
Entrei no banco do motorista e bati a porta com força. Valentina parou do
lado de fora, me observando com os braços cruzados, como se esperasse algo
de mim.
— Vai ficar aí ou vai avisar os idiotas no Setor C que eu estou a caminho?
Eu falei, girando a chave na ignição. Valentina ergueu as sobrancelhas,
surpresa por um segundo, antes de abrir um sorriso discreto.
— Considera feito.
Ela se virou, o celular já na mão. Eu engatei a marcha, o motor roncou. Em
seguida barulho dos pneus cantando no concreto ecoou pela garagem
enquanto eu saía.
Eu deveria estar furiosa. Na verdade, eu estava furiosa. Mas, acima de tudo,
havia aquela sensação ruim no peito. Minhas mãos apertaram o volante
enquanto eu acelerava. O galpão do Setor C ficava a vinte minutos de onde
eu estava, mas eu sabia que faria o trajeto em dez.
Soltei o ar pelo nariz e mordi o canto da boca, tentando sufocar a mistura de
raiva e preocupação que não me deixava pensar direito.
O galpão surgiu à frente, os contêineres empilhados como pequenas
fortalezas de metal. O Setor C estava movimentado. Mais do que o normal.
Eu já via a pequena multidão reunida no pátio. Um grupo de homens
amontoados em círculo, gritando, rindo, batendo palmas.
Meus dedos apertaram o volante com tanta força que ouvi o couro ranger.
— Vou acabar com você, Arellano!
Eu rosnei para mim mesma enquanto o carro derrapava levemente ao fazer a
curva para o estacionamento. Parei o carro de qualquer jeito, sem me
importar em alinhar. Saí batendo a porta e andando com passos largos, cada
batida de bota contra o concreto ecoando forte o suficiente para fazer os mais
atentos se virarem.
— Saiam da frente!
Minha voz cortou o ar como uma faca afiada. O som das vozes cessou
imediatamente. Alguns homens recuaram no mesmo instante, outros
demoraram um segundo a mais, mas logo abriram espaço.
Minhas botas batiam com força no concreto enquanto eu atravessava o
círculo. Meu peito subia e descia de forma controlada, mas o controle estava
começando a escapar. Eu não queria estar aqui. Eu não deveria precisar estar
aqui.
Quando meu olhar encontrou o centro do círculo, o motivo de toda a
confusão ficou claro. Ayra Arellano.
Ela estava ali. É claro que estava. Suada, com a respiração pesada, mas com
aquele maldito sorriso de desafio estampado no rosto. A camiseta branca
colada ao corpo, o tecido úmido revelando a curva dos ombros, o abdômen
firme e cada linha de músculo que ela não fazia questão de esconder. O coque
bagunçado no topo da cabeça deixava os fios soltos caindo pelo rosto. Ela se
movia com precisão, o corpo inteiro fluindo como uma corrente de água.
Do outro lado dela, estava Héctor.
Héctor era um dos meus melhores. Um homem com quase o dobro do
tamanho dela. Ombros largos, braços grossos como troncos, um rosto sempre
marcado por uma expressão de seriedade e disciplina. Disciplinado. Até hoje.
Meus olhos ficaram fixos nos dois enquanto eles se moviam ao redor um do
outro. Héctor estava sério, a postura tensa, as mãos levantadas em guarda. Ele
não estava brincando. E isso fez meu peito apertar de um jeito que eu não
queria admitir.
Ela não devia estar aqui. Ela não devia estar fazendo isso. Mas Ayra nunca
fazia o que devia, não é?
Meus dentes rangeram, mas eu não disse nada ainda. Antes que eu pudesse
me envolver naquilo, Héctor deu o primeiro passo, avançando com um soco
direto. Ayra abaixou, rápida como uma cobra. Ela girou o corpo, os pés leves,
o olhar firme, mas eu vi o suor escorrendo pela têmpora dela.
Ela estava cansada. Aquela maldita já tinha lutado com vários, é claro. Eu via
o sangue no chão.
Héctor avançou de novo. O braço dele se moveu em um arco largo, mas Ayra
recuou dois passos, o corpo flexível, quase dançando ao redor dele. Ela sabia
o que estava fazendo. Ela sempre sabe. Mas eu vi o erro… O pé esquerdo
dela escorregou levemente no concreto molhado.
— Ayra!
Dessa minha voz foi um grito. Mas foi tarde demais. Héctor viu a abertura.
Ele avançou com o corpo inteiro, o ombro dele atingindo Ayra no centro do
peito. O impacto foi forte o suficiente para me fazer dar um passo à frente, o
coração subindo até a garganta. Eu vi o ar sair dos pulmões dela. Ayra foi
jogada para trás e caiu de costas no chão com um som seco.
O círculo vibrou com gritos de euforia. Alguns homens riram. Outros
gritaram incentivos para Héctor continuar, sem me notarem. Mas eu só
consegui ver ela no chão.
Héctor foi para cima de novo. Ele sempre foi metódico, eficiente, e eu sabia
que ele não ia parar. Ele ergueu o braço para o próximo golpe, o punho
fechado e o olhar focado. Ele ia bater nela. E, antes que eu pudesse pensar, eu
já estava em movimento.
— CHEGA!
O grito saiu da minha garganta com uma força que eu não sabia que tinha. Eu
me movi antes de qualquer um. Antes que qualquer um dos meus homens
pudesse perceber o que estava acontecendo.
Eu agarrei o braço de Héctor no ar. Agarrei. Segurei.
Ele congelou. Eu o puxei com força, torcendo o braço dele para baixo
enquanto meu corpo se movia com o dele. Não foi uma questão de força, foi
de controle. Meu cotovelo pressionou o dele de forma firme e precisa, e ele
foi forçado a inclinar o corpo para o lado.
— Baixe a porra da sua mão!
Minha voz saiu baixa, mas cada sílaba carregava o peso de uma ordem
absoluta. Os olhos de Héctor estavam arregalados, o olhar indo de mim para
o braço preso na minha mão.
— Chefe, eu só…
— Você só o quê, Héctor?! — girei o braço dele com força. — Ela é a minha
esposa!
Ele recuou dois passos, o olhar abaixado. Bom. Que abaixe mesmo. O
silêncio foi mortal. Nenhum dos homens falou. Nenhum deles ousou rir.
Antes que eu pensasse. Atingir socos os seguidos, rápidos, potentes, sobre as
costelas de Héctor e todos puderam ouvir os ossos partindo. Ele caiu no chão
gemendo, segurando as costelas. A minha respiração estava completamente
descompassada, eu me sentia selvagem.
— Se eu pegar mais alguém tocando nela de novo, vai ter que se ver comigo.
Entendido?! — Girei o olhar pelo círculo, fitando cada um deles. —
Entendido?!
— Sim, chefe!
A resposta foi em uníssono, forte e rápida. Bom. Muito bom.
— Voltem ao trabalho, façam a porra do carregamento! O show acabou!
Eu gritei, sem olhar para ninguém. Meus olhos caíram sobre ela. Ayra ainda
estava deitada no chão. Respirando rápido, o peito subindo e descendo, o
rosto voltado para o céu. Eu não sabia se ela estava consciente ou só tentando
recuperar o ar, mas isso não importava.
— Levanta. — Minha voz ainda estava fria, mas não tanto quanto antes. —
Agora, Ayra. Levanta.
Ela virou a cabeça lentamente e me encarou. Seus olhos estavam mais
escuros que o normal, mas não de dor. De desafio. Mesmo ali, no chão, com
o peito subindo e descendo como se estivesse lutando para respirar, ela ainda
tinha aquele maldito olhar de quem não ia ceder.
Mas ela se moveu. Primeiro os cotovelos. Depois os joelhos. Um movimento
lento e cuidadoso, como se quisesse mostrar para todo mundo que ela não
precisava de ajuda. Tão teimosa. Tão estúpida.
— Tô bem, Zamorano. — A voz dela saiu rouca e cortada por uma tosse
seca. Meu peito apertou de forma involuntária. — Não precisava ter se
metido, eu estava quase ganhando o último.
Meu corpo se moveu antes que eu pudesse pensar. Minhas mãos se fecharam
ao redor do pulso dela, firme o suficiente para ela entender que não havia
escolha.
— Cala a boca, Ayra. — Minha voz tremeu. Era raiva. Era o tipo de raiva
que queimava devagar, mas queimava até o osso. — Você não tá bem.
Ela abriu a boca para retrucar, mas eu já estava andando, puxando-a comigo.
Não dei chance. Não dei escolha.
Os homens nos observavam, mas nenhum deles ousou falar. Eu senti seus
olhares queimando nas minhas costas, mas não me importei. Ayra não
resistiu. Talvez ela estivesse cansada demais. Talvez ela soubesse que não
valia a pena brigar agora. Não importa. Ela veio comigo.
Atravessamos o galpão, meus passos firmes e rápidos, os dela mais pesados e
lentos. Eu sabia exatamente onde estava indo. Havia uma pequena sala de
armazenamento usada para guardar suprimentos médicos e algumas
ferramentas.
Abri a porta com força e a empurrei para dentro antes de entrar atrás dela.
Fechei a porta com um estrondo que ecoou pelo espaço pequeno. Travei a
fechadura.
— Senta. — Apontei para a cadeira de metal encostada na parede. — Agora!
— Sério? Tá me dando ordens agora?
Ela arqueou uma sobrancelha, inclinando a cabeça para o lado. Desafiante.
Sempre desafiante.
— Senta, Ayra. — Eu dei um passo à frente, o suficiente para ela entender
que eu não estava com paciência. — Ou eu te coloco à força. Escolhe.
Os olhos dela ficaram presos nos meus por um instante. Eu vi o debate
interno. Resistir ou ceder? Ela bufou e se sentou, o corpo se afundando na
cadeira de metal de forma exageradamente casual.
— O que deu na sua cabeça em desafiar meus homens? — as minhas
palavras foram um grunhido.
— Você não mandou eu me resolver com eles? — Ayra deu de ombros
debochando. — Fiz exatamente isso. Provando que posso ter o respeito deles,
essa não é uma tradição no seu cartel, para se provar?
Um frio na espinha subiu por mim. Aos quinze anos eu tive aquela provação
e fui quase morta, para conseguir conquistar meu lugar. Arturo gostava
daqueles métodos antigos.
— O que fez foi pura birra, não quis esperar!
— Birra? — Ayra riu sem humor e seus olhos eram puro fogo. — Você não
quis me ajudar. Você não ligou quando pedi. Você não se importou.
— Não me importei? — A minha voz se elevou — Eu estou aqui não estou?
Ayra respirou fundo. Ela me ignorou passando as mãos pelo cabelo. Nesse
instante notei as mãos dela. Suadas. Manchadas de vermelho. Os nós dos
dedos inchados e abertos.
— Inferno. Olha só pra isso. — Segurei a mão direita dela, com mais
delicadeza do que planejei. Ela tentou puxar de volta, mas eu segurei firme.
— Sua idiota teimosa, se acha muito esperta, mas olha pro seu estado, Ayra.
Isso aqui é “quase ganhar” pra você?
— É, sim. — Ela ergueu o queixo, o sorriso torto aparecendo no canto dos
lábios. — Eu já tinha derrubado quatro deles. Eu não precisava de você!
— Héctor te acertou um soco… — Levantei a mão dela, analisando os nós
dos seus dedos. — Você errou e ele ia te machucar feio.
Ela ficou quieta. O olhar dela foi para as próprias mãos, e eu vi o momento
em que ela percebeu. Os nós dos dedos estavam abertos, sangue seco
misturado ao suor, formando pequenas manchas escuras. Devia estar doendo,
mas ela não ia admitir.
— Dá isso aqui!
Peguei a outra mão dela, avaliando os cortes. Não tão ruim quanto a primeira,
mas ruim o bastante. Ela olhou para mim com aquele olhar travesso, mas algo
estava diferente agora. Não tinha mais a mesma provocação de antes. Era o
olhar de quem estava quieta por escolha, não por derrota.
Suspirei e passei a mão pela minha testa, sentindo o suor frio se misturar à
irritação.
— Tira essa camiseta.
Falei, minha voz saindo mais baixa, mas não menos firme.
— Desculpa, o quê? — Ayra levantou uma sobrancelha, olhando para mim
com uma falsa confusão. — Quer me seduzir aqui?
— A camiseta, Arellano. Agora. — Cruzei os braços e inclinei o corpo
levemente para frente, os olhos presos nos dela. — Tá suja de suor e sangue.
Você vai trocar. Ou eu arranco essa porcaria de você.
O sorriso dela desapareceu, mas o brilho de provocação não. Sempre um
jogo. Sempre um maldito jogo.
— Tudo bem. Como quiser.
Ayra agarrou a barra da camiseta e a puxou por cima da cabeça com uma
facilidade que me irritou mais do que deveria. Sempre tão confortável.
Sempre tão dona do espaço.
Ela largou a camiseta no chão, revelando o sutiã rendado, cobrindo quase
nada. Notei a formação roxa perto das costelas, provavelmente levou um soco
ali, e aquilo me irritou mais do que eu queria admitir. Ayra passou a mão pelo
cabelo, afastando os fios soltos do rosto, e me olhou como se estivesse me
desafiando a desviar o olhar.
— Você é uma dor de cabeça ambulante. — Murmurei, balançando a cabeça,
tentando ignorar o aperto no peito que não ia embora. — Imprudente!
Antes que ela pudesse responder, comecei a desabotoar minha camisa social.
Um botão. Depois o outro. O tecido se abriu lentamente, revelando a regata
preta justa por baixo. Tirei a camisa e joguei sobre o ombro, me movendo
com a precisão de quem já fez isso um milhão de vezes. Vi o olhar dela cair
sobre mim por um segundo a mais do que o necessário.
— Veste isso.
Joguei a camisa na direção dela. Ela pegou no ar, mas não colocou de
imediato. Olhou para o tecido nas mãos e depois para mim.
— Tá mesmo me dando sua camisa, Zamorano? — O sorriso torto voltou,
mais afiado desta vez. — Se eu soubesse que era tão fácil, teria pedido antes.
Revirei os olhos e dei um passo à frente, agarrando o queixo dela com dois
dedos, inclinando o rosto dela para cima para me encarar de perto.
— Veste. Agora. — Falei, o tom sem qualquer espaço para discussão. — E
pare de falar besteira.
Ela não desafiou dessa vez. Finalmente. Ela vestiu a camisa. As mangas eram
grandes demais para os braços dela, e o tecido cobriu mais do que a camiseta
anterior, escondendo os machucados.
— Feliz agora? — Ayra levantou os braços de forma exagerada, exibindo o
“novo visual”. — Toda arrumada e cheirosa. Vai me dar um beijinho na testa
também?
— Continua falando e eu te deixo com as mãos abertas do jeito que estão.
— Não estou pedindo ajuda.
Lancei um olhar cortante. Ela riu. Claro que riu. Eu peguei um kit de
primeiros socorros na prateleira e me ajoelhei na frente dela. Abri a caixa,
tirando o algodão e o desinfetante. Quando comecei a limpar os machucados
dela, ela se encolheu levemente, mas não reclamou.
— Vai arder.
Avisei, sabendo muito bem que ela não ia reclamar. Mas ela sentiria. Eu sabia
que sentiria.
— Sei disso, Zamorano. — Ayra respondeu, o tom mais baixo, quase dócil.
Dócil demais para ser normal. — Não sou uma criança que abriu a mão pela
primeira vez.
Ignorei o comentário e foquei no que precisava ser feito. Peguei o algodão
embebido no desinfetante e comecei a limpar os cortes nos nós dos dedos
dela. Movimentos firmes, precisos, mas… cuidadosos demais. Eu odiava
admitir isso. Meus dedos segurando as mãos dela, sentindo o calor da pele
contra a minha, e o tempo todo eu me obrigando a ser cuidadosa.
O cheiro de desinfetante encheu o ar, ácido e forte. As mãos dela estavam
sujas de sangue seco e poeira. Algumas áreas estavam inchadas e vermelhas,
e o corte mais profundo ainda parecia fresco. Cada vez que o algodão tocava
a ferida, ela respirava mais fundo, mas não reclamava. Teimosa. Dura.
Sempre assim.
— Não faça isso de novo. — Minha voz saiu mais dura do que eu pretendia,
o peso de cada palavra saindo devagar, como se precisassem de força extra
para serem ditas.
— O quê? Dar uma surra nos seus homens?
Ayra ergueu uma sobrancelha, o mesmo sorriso desafiador de sempre
ameaçando surgir. Levantei os olhos e encarei os dela. Não tinha humor nos
meus, eu sabia.
— Não faça isso sozinha de novo. — Repeti, sem alterar o tom, sem
hesitação. Quero que ela entenda. — As coisas podiam ter saído do controle.
Continuei limpando as feridas, mas minhas mãos pararam por um instante.
Um segundo. Dois. Eu não queria dizer o resto.
Minha mente não queria, mas meu corpo já sabia o que eu estava pensando.
Eu podia ver. Eu vi. Héctor esmagando ela no chão. O som do corpo dela
batendo no concreto. O braço dele foi levantado, pronto para o golpe
seguinte. Eu bufei, sentindo o calor subir pelo meu peito, mas não de raiva.
De algo que eu não queria nomear.
— Podia ter se machucado de verdade. — Eu disse, a voz mais baixa, quase
para mim mesma. — Mesmo que acredite que não.
Apertei a mandíbula, sentindo o gosto amargo na língua. Minha mão parou.
Eu não olhei para ela, mas senti o peso do olhar dela sobre mim. O silêncio
preencheu a sala como uma onda densa, o tipo de silêncio que não incomoda,
mas pesa. Minhas mãos ainda seguravam as dela, o algodão parado sobre um
corte que eu nem terminei de limpar.
Eu não queria olhar para ela. Mas olhei. Ayra não estava sorrindo. Não havia
provocação no rosto dela. Nenhuma piada. Nada. Os olhos dela estavam fixos
nos meus, firmes, mas não do jeito desafiador de sempre. Era algo mais
fundo. Sereno. Sério. Intenso.
— Você se preocupa comigo, Zamorano?
Ela perguntou, o tom quase brincalhão, mas não o suficiente. Não dessa vez.
Eu não respondi. Soltei a mão dela devagar e voltei a limpar o corte como se
nada tivesse sido dito.
— Você tá delirando, Arellano. — Respondi com a mesma firmeza de antes,
mas o peso no peito não diminuiu. — Eu só não gosto de ter que limpar a
bagunça dos outros.
Ela riu. Baixo, quase um sopro.
— Claro, Zamorano. Claro. — Ela inclinou a cabeça, os olhos ainda presos
em mim, mas agora com o sorriso de canto voltando aos poucos. — Sabe, se
me odeia tanto assim, você é bem gentil.
Minhas mãos se moveram mais rápido, limpando os cortes dela com um
pouco mais de força do que antes.
— Talvez eu só goste de fazer as coisas do meu jeito. — Olhei para ela por
um segundo e levantei a sobrancelha. — Você sabe disso.
— Sei. — O sorriso dela aumentou, mas ainda era pequeno. — Mas acho que
você está mentindo.
Minha mão parou de novo, o algodão ainda pressionado contra a pele dela.
Minha garganta apertou, e eu senti o peso da palavra mais forte do que
qualquer soco que eu já recebi.
— Você pode achar o que quiser. — Disse, tirando o algodão do corte e
jogando fora. Peguei a atadura e comecei a enrolar a mão dela com firmeza.
O tecido branco se apertando contra a pele dela, cada volta um pouco mais
apertada do que a anterior. — Só não volte a me causar problemas.
— Resolvi um problema e agora provavelmente seus homens agora não vão
me desobedecer. — Ela inclinou a cabeça para o lado, o olhar dela
queimando o meu. — Agora pode parar de fazer drama.
— Quem faz drama é você, Arellano. — bufei, irritada. — Agora fique
quieta!
Acabei de enrolar a atadura e dei o último nó. Soltei a mão dela e me
levantei, limpando as mãos no tecido da calça.
Olhei para ela, ainda sentada na cadeira, observando as mãos recém-
enfaixadas como se estivesse avaliando o meu trabalho. Ela girou os punhos
de leve, estalando os dedos, e depois olhou para mim de novo, o sorriso
preguiçoso voltando devagar.
— Fez um bom trabalho!
Ayra apoiou o cotovelo no joelho, inclinando o rosto na mão, olhando para
mim com o olhar mais irritante que já vi. Ela deu uma risadinha curta, mas
não respondeu. Eu já estava de costas, destrancando a porta.
— Anda, vamos embora. — Girei a maçaneta e abri a porta com força. O
corredor estreito do galpão ainda cheirava a poeira e óleo, mas pelo menos o
ar era menos sufocante do que naquela sala apertada. — E sem outra
confusão no caminho. Eu já tive o suficiente por hoje.
Ayra se levantou lentamente, os movimentos dela sempre calculados. Como
se cada passo fosse parte de um jogo que só ela sabia as regras. Ela passou
por mim, os ombros roçando de leve nos meus, e eu odiei o jeito que isso me
fez prender a respiração por um instante.
— Sim senhora…
Ela jogou as palavras por cima do ombro, sem olhar para mim. Dei um passo
atrás dela, os olhos presos em suas costas. A camiseta que eu dei pra ela
ainda estava folgada, as mangas cobrindo quase todo o antebraço, mesmo
assim, algo sobre aquilo me agradava. Agradava muito.
Mas eu fiquei quieta. Passei pelo corredor sem pressa, os coturnos batendo no
chão de concreto com firmeza, cada passo como uma batida de tambor. Os
homens que ainda estavam no pátio desviaram os olhares assim que me
viram.
— Me passe a chave do meu carro!
Anunciei enquanto entrávamos na garagem lateral do galpão. Apontando para
a Lamborghini estacionada perto da saída. Fazia um tempo que eu não via o
carro, a Ayra ainda não tinha levado-a para o estacionamento do apartamento.
— Meu carro. — Ayra disse, já se movendo na direção do lado do motorista.
— E eu posso dirigir!
— Só me passe a chave — Dei um passo mais rápido e bloqueei o caminho
dela com o corpo, apontando para o banco do passageiro. — Você vai sentar
aí e ficar quieta. Se for muito difícil pra você, eu te amarro.
— Quanta agressividade, Zamorano. — Ela ergueu as mãos, um sorriso
travesso no rosto. — Só deixo você me amarrar se for na cama!
— Ayra se comporte. — Falei, sentindo meu coração acelerar. — Onde está a
chave?
— No contato, rabugenta!
Ayra disse, eu dei a volta no carro, abrindo a porta do motorista. Ela entrou
no carro também, sem discutir. Sentou no banco do passageiro, inclinou o
corpo para trás e jogou os pés sobre o painel.
— Tira os pés daí, Arellano. — Olhei para ela com as mãos no volante.
— Ah, qual é, não vai deixar nem um pouco de conforto? — Ela não se
moveu.
— Tira. — Meu tom foi firme. Um aviso. — Agora!
Ayra me encarou por um segundo, talvez esperando ver se eu ia ceder. Mas,
quando não cedi, ela revirou os olhos e baixou os pés devagar, como quem
faz um grande favor. Engatei a marcha e saí do estacionamento, os pneus
cantando levemente contra o concreto.
Eu adorei sentir a força do carro sob as minhas mãos. Aparentemente Ayra
estava cuidando bem da Lamborghini, mas eu a queria de volta.
Eu mantive o foco na estrada. Olhos na estrada. Sempre na estrada. Mas não
consegui evitar o canto dos olhos, onde Ayra estava, com o corpo relaxado no
banco, os braços cruzados sobre o peito, o rosto levemente inclinado para o
lado. Ela parecia cansada, mas não ia admitir isso nem se estivesse
desmaiando.
— Onde você tem deixado a Lamborghini? — eu perguntei.
— Agora no estacionamento do apartamento.
Ela respondeu enigmática, com aquele brilho de diversão travesso.
— Quero de volta! — eu disse — Tire o maldito dispositivo que conectou no
carro.
— Negativo. O carro é meu! — Ela disse com um sorriso. — A não ser que
você troque algo comigo.
Lancei um olhar para ela com desconfiança. Ayra não era do tipo que não
“lançava uma mão” de cartas se não fosse muito boa. Eu suspirei.
— O que você quer?
— Um carro novo — Ela se virou totalmente para mim. — Aceito uma
Ferrari. Combina comigo, não combina?
Dei uma risada curta, mas foi sem humor. Ferrari. Claro. Porque ela nunca
pede pouco.
— Você tá sempre querendo mais, não tá, Arellano?
Olhei para ela por um segundo, só o suficiente para ver o sorriso largo no
rosto dela.
— Se for pedir, tem que ser alto, Zamorano.
Ela deu de ombros, os olhos castanhos brilhando de provocação. Revirei os
olhos e voltei a focar na estrada, mas a ideia já estava girando na minha
cabeça. Uma Ferrari. Eu podia conseguir uma, isso não era o problema. O
problema era dar uma para ela.
— Por que você acha que merece uma Ferrari? — Perguntei, mantendo o tom
seco e controlado.
— Hum… Deixe-me ver… — Ela inclinou o corpo para frente, apoiando o
braço no painel, o rosto mais perto de mim. Perto demais. — Seria um ótimo
presente de casamento, você não me deu nenhum.
— Presente de casamento? — Dei uma gargalhada curta, jogando a cabeça
para trás por um instante antes de voltar a olhar para a estrada. — Você
esquece que é um acordo? Não um casamento de verdade?
— Casamos, é o que importa — Ela inclinou a cabeça, o sorriso torto se
formando de novo. — Então me deve um presente. Além do mais é justo me
dar um carro novo, quando foi você que destruiu o meu.
Não respondi de imediato. Deixei o silêncio se estender. Eu sabia que o
silêncio a incomodava mais do que qualquer resposta. Ela se recostou no
banco, mas ainda me encarava.
Minhas mãos apertaram o volante de novo. O ronco do motor ficou mais
forte enquanto eu pisava no acelerador com mais força do que o necessário.
O carro respondeu na mesma hora, o ruído grave preenchendo o silêncio.
— Uma Ferrari? — Murmurei, tentando desviar a conversa para onde eu
queria. — Vermelha, claro. Porque tem que chamar atenção por onde passa,
não é?
— Na verdade, eu quero branca. — Ela passou a mão pelo cabelo, puxando
os fios para trás. — Preto é muito discreto. E você já tem o monopólio de
tudo que é preto ao que parece.
Por um momento eu quis rir, mas apenas balancei a cabeça, os olhos ainda
fixos na estrada. As luzes da cidade estavam mais próximas agora, as placas
de sinalização passando rápido pelas laterais. O apartamento não estava
longe. Só mais alguns minutos.
— Tudo bem. — Disse de repente, o tom casual.
— Tudo bem o quê? — Ela me observou, o olhar de suspeita no rosto.
— Eu te dou uma Ferrari. — Respondi sem tirar os olhos da estrada. — Se é
o que quer.
— Qual é o truque? — Ela perguntou, estreitando os olhos. — Você nunca
cede assim, fácil.
— Não tem truque, Arellano. — Inclinei o corpo levemente para frente,
focando na curva à frente. — Eu te dou uma Ferrari. Mas tem uma condição.
Ela arqueou a sobrancelha, o interesse claramente crescendo.
— Ah, lá vem. Qual é?
— Você devolve a Lamborghini. Sem o dispositivos. Sem qualquer “presente
surpresa” escondido nela. Eu quero o carro limpo. — Olhei para ela de canto
de olho, só para ver a reação. — E se eu encontrar qualquer coisa que você
deixou no carro, eu desmonto a Ferrari que você receber. Peça por peça.
Ela riu, jogando a cabeça para trás. Quando me encarou de novo, os olhos
castanhos estavam brilhando de animação. Eu engoli em seco, porque a
imagem fez meu coração acelerar, e achei ridículo. Afinal era só a Ayra
sorrindo.
— Ah, Lira, você faz isso parecer um desafio.
— Não é um desafio. — Respondi de imediato. — É uma ordem.
Ela ficou quieta, mas vi o brilho nos olhos dela aumentar. Ela estava
pensando, considerando a oferta.
— Fechado.
Ela disse depois de alguns segundos. Curto. Sem rodeios. Eu a encarei de
lado, levantando uma sobrancelha.
— Fechado? Só assim?
— Eu nunca disse que não sabia negociar, Zamorano. — Ela deu de ombros e
esticou os braços acima da cabeça, o corpo se movendo de forma preguiçosa,
como se estivesse satisfeita com o resultado. — Eu aceito. Você ganha sua
Lamborghini. Eu ganho minha Ferrari.
— Bom.
O silêncio voltou ao carro, mas dessa vez era diferente. Não era tenso. Era
quase confortável. Não havia necessidade de falar. Eu sabia que ela estava
satisfeita. E eu estava também.
As luzes do prédio do apartamento já estavam à vista, o reflexo das janelas
brilhando ao longe. Eu diminuí a velocidade ao entrar na rua que levava ao
estacionamento. Quando parei o carro na garagem, desliguei o motor e me
virei para ela.
— Lembre-se, Arellano. — Disse, soltando o cinto de segurança e olhando
diretamente para ela. — Se eu encontrar qualquer coisa no meu carro, você
não vai nem ver a cor da Ferrari.
Ela inclinou a cabeça, o sorriso de canto de volta ao rosto.
— Tudo bem, senhora controle. Amanhã deixo o carro pronto. — Ela me deu
uma piscadela. — Quando vai me levar para escolher meu próximo bebê?
— Vou ver a minha agenda.
— Então não vou “limpar” o Lamborghini amanhã.
Olhei para ela semicerrando os olhos. Aquela oportunista. É claro que ela ia
me chantagear de alguma forma.
— Amanhã então, Ayra. Amanhã compramos sua Ferrari.
O sorriso dela cresceu, e antes que eu pudesse reagir, Ayra se inclinou
roubando um beijo.
Fiquei paralisada. Congelada.
Os lábios dela tocaram os meus de forma rápida, mas não apressada. Foi
preciso, certeiro e… quente. Ayra se afastou com aquele sorriso maldito
crescendo no rosto. O tipo de sorriso que ela só usa quando sabe que me
desestabilizou.
— O que foi, Zamorano? Ficou sem fala? — Ela inclinou a cabeça, o rosto a
centímetros do meu, os olhos castanhos me observando de perto, buscando
qualquer reação. — Quer mais um beijinho?
Eu ainda estava congelada. Pisquei devagar e senti o calor subindo pelo meu
pescoço, mas mantive o rosto neutro. Minha mente gritava várias respostas,
todas afiadas, todas ácidas. Mas eu não dei nenhuma delas.
Se Ayra queria provocar, eu também sabia. Minha mão se moveu antes que
eu pudesse pensar. Agarrei o colarinho da camisa dela com firmeza e a puxei
para mim. Ela soltou um som baixo de surpresa, quase um suspiro. Não
esperava. Claro que não. Mas, antes que ela pudesse reagir, nossos lábios se
encontraram.
Não foi suave. Não foi gentil. Foi um impacto. Um incêndio. Uma colisão.
O beijo começou como uma briga silenciosa, um tipo de briga que não tem
vencedor. Só dois lutando pelo mesmo controle. Meus dedos se apertaram no
colarinho dela, segurando-a no lugar. A mão dela subiu para minha nuca, os
dedos se entrelaçando no meu cabelo, forçando meu rosto mais perto do
dela..
O gosto dela invadiu minha boca. Meu corpo se moveu por instinto. Puxei o
colarinho dela mais forte, inclinando meu corpo contra o dela, pressionando-a
contra o banco do carro. O cinto de segurança travou, cortando o movimento,
mas ela já estava puxando o cinto para longe, soltando a trava com um estalo.
Agora não havia mais barreiras.
Minha respiração acelerou, o peito pressionando o dela. Eu podia sentir a
força do coração dela batendo forte contra o meu, e, por um segundo, não
sabia qual era o meu e qual era o dela. Os lábios dela se moveram contra os
meus com a mesma intensidade. O ritmo era voraz, quase urgente.
Eu mordi o lábio inferior dela, e ela respondeu com uma risada rouca contra
minha boca. Desgraçada. Aquilo me excitou. As unhas dela arranhavam de
leve a minha nuca, e eu senti o arrepio subir pela minha coluna. Eu odiava
isso. Odiava o jeito que ela sabia exatamente onde tocar.
O beijo ficou mais lento, mas não menos intenso. Mais profundo. Mais
perigoso. Era o tipo de beijo que não devia acontecer, mas, quando acontece,
não tem como voltar atrás. Cada vez que eu soltava o ar pelo nariz, sentia a
dela contra a minha pele.
As nossas bocas se separaram por um instante, um segundo apenas, e eu senti
a falta do calor dela antes mesmo de perceber que estávamos respirando.
Meus olhos abriram devagar, e os dela já estavam abertos. Castanhos demais.
Intensos demais.
O olhar dela estava fixo em mim, os lábios ainda um pouco entreabertos, o
peito subindo e descendo em ritmo descompassado. Eu sabia que o meu
estava igual.
— Isso foi… — Ayra começou, mas parou. — …interessante.
Meu peito ainda subia e descia rápido. Minha mão ainda estava no colarinho
dela, os dedos apertados no tecido. Eu sabia que deveria soltar. Eu sabia. Mas
não soltei.
Eu não queria soltar.
Ela inclinou a cabeça de leve, o rosto ainda perto demais. Sempre perto
demais. O gosto dela ainda estava na minha boca, o cheiro dela no meu ar.
Nublando meu julgamento, minha resistência.
— Já que provocou, agora vai ter que lidar com as consequências.
Minha voz saiu rouca, mais baixa do que eu queria, mais instável do que eu
pretendia. Não deu para esconder. Ela percebeu. Ayra arqueou a sobrancelha,
a provocação estampada em cada detalhe do rosto dela.
— Eu vou? — A voz dela era um sussurro, mas tinha um peso que me atingiu
como um soco no estômago. — Me mostra quais são essas.
Eu a soltei saindo do carro com um movimento rápido. Cada passo meu foi
firme, ecoando no concreto da garagem. O ar parecia mais quente do que
deveria, o espaço menor do que realmente era. Não importava. Eu já sabia o
que ia fazer.
Andei até o lado dela, abri a porta com força e olhei para ela de cima. Ayra
levantou o olhar devagar, a cabeça ainda inclinada para trás, olhando para
mim como se estivesse desafiando a própria sorte. Desafiando a mim.
— Sai do carro, Ayra.
— Ah, é assim agora? — Ela sorriu, mas não se moveu. — Quer que eu
obedeça? Vai ter que fazer melhor do que isso, Zamorano.
Tudo bem. Se é assim que ela quer. Eu me abaixei, segurei a cintura dela com
uma mão e as pernas com a outra. Não dei escolha. Não pedi. Peguei.
Levantei o corpo dela com facilidade, o peso dela firme e sólido contra mim.
Não era peso demais.
— Você quer brincar? — Sibilei perto do ouvido dela. — Vamos brincar
direito, cansei das suas provocações.
Ayra deu um leve grito de surpresa, mas logo se agarrou ao meu pescoço, as
pernas dela se cruzando atrás da minha cintura. Sem resistência.
— Tá brava, Lira? — Ela sussurrou no meu ouvido, mas havia um riso rouco
preso na garganta dela. — Finalmente decidiu implorar para “brincar”.
— Eu não imploro por nada, eu tomo o que eu quero.
Disse sem olhar para ela, seguindo o caminho até o elevador, que foi rápido.
Eu pressionei o botão com o cotovelo e esperei, o peso de Ayra contra mim
não me incomodando nem um pouco. Eu senti o calor dela através da minha
regata, o cheiro dela misturado ao meu.
As portas do elevador abriram, e eu entrei sem hesitar. Girei o corpo para
apertar o botão do nosso andar e, no instante em que a porta se fechou, o
espaço ficou ainda menor. Sufocante. Deliberadamente sufocante. Ela não
esperou.
— Não vai me soltar, Lira?
Ayra perguntou, mas a mão dela já estava no meu rosto, os dedos arranhando
levemente minha mandíbula. O toque reverberou em todo o meu corpo.
— Não.
Respondi direto, sem pensar, sem hesitar. Ela sorriu de um jeito que eu sabia
que me faria perder o controle.
— Então faz direito.
A minha boca encontrou a dela antes que ela pudesse terminar de sorrir. O
choque foi imediato, forte, um impacto de duas forças colidindo sem freios.
Foi fome, pura e crua. Meus lábios se moveram contra os dela com uma
precisão que não deixava espaço para ela respirar.
Ela revidou. Claro que revidou.
Os dedos dela apertaram a parte de trás do meu pescoço, me puxando ainda
mais para perto. O beijo era desordenado, intenso e quente demais. As
línguas se encontraram de forma apressada, sem cerimônia, e eu senti o gosto
dela de novo. O mesmo gosto doce que estava na minha boca desde o último
beijo. Mas agora, era mais forte.
A mão dela agarrou minha regata, puxando o tecido para baixo, mas eu não
soltei ela. O elevador parou, o som do “ding” sendo quase ignorado por nós
duas. As portas se abriram devagar, revelando o apartamento.
Fui direto para o sofá. O mundo parecia se mover mais rápido do que o
normal, e, ao mesmo tempo, mais devagar. Cada passo meu, cada batida do
meu coração, cada movimento dela contra mim era mais intenso.
Quando cheguei ao sofá, eu a joguei nele. Ayra caiu de costas, mas logo se
ergueu apoiada nos cotovelos, o cabelo bagunçado caindo sobre o rosto, o
peito subindo e descendo de forma rápida, o mesmo ritmo que o meu. Eu
fiquei de pé por um segundo, olhando para ela. O olhar dela era diferente
agora. Não era só provocação. Era fome. A mesma que eu sentia.
— Admirando?
Ela provocou, os olhos cravados nos meus. Eu não esperei convite. Me joguei
sobre ela, os joelhos no sofá de cada lado do corpo dela. Ela caiu para trás,
mas riu. Eu a calei, quando voltei a beijá-la. Dessa vez, foi mais lento. O
corpo dela sob o meu parecia se mover no mesmo ritmo, os dedos dela
passando pelas minhas costas, arranhando a pele por cima do tecido da
camisa.
Ela suspirou contra a minha boca, e eu senti o peito dela subir e descer. O
mundo inteiro parecia reduzido a esse espaço. O sofá. O cheiro dela. O calor.
As minhas mãos se moveram para o rosto dela, segurando-a com firmeza
enquanto aprofundava o beijo. Eu não sabia mais onde eu terminava e onde
ela começava.
Quando o ar finalmente se fez necessário, eu me afastei só o suficiente para
encarar o rosto dela. A respiração dela batia contra o meu rosto, quente,
descompassada. Os olhos dela estavam cravados nos meus, firmes, intensos.
O tipo de olhar que desarma.
O polegar dela deslizou lentamente pelos meus lábios, traçando o contorno. O
olhar dela acompanhava o movimento como se estivesse gravando cada
detalhe na memória. E eu odiei o jeito que isso fez meu peito apertar.
O sorriso dela apareceu devagar, um canto de boca que subia só o suficiente
para ser perigoso. Ela sabia o que estava fazendo. Eu mordi o dedo dela. De
leve. Não para machucar. Só para avisar. Vi quando a respiração dela me
prendeu por um instante. Pequeno. Quase imperceptível. Mas eu vi.
— Brincando com fogo, Arellano? —
— Eu gosto de brincar, Zamorano. — Ela disse, a voz rouca, sedutora. —
Principalmente quando você responde assim.
O sorriso dela cresceu, e antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, Ayra
puxou meu rosto para mais perto. Não houve hesitação. Nenhuma. Os lábios
dela encontraram os meus de novo, mas desta vez não foi um choque. Foi
algo mais lento, mais calculado. Uma armadilha que eu entrei sabendo
exatamente o que estava fazendo.
Minha mão subiu automaticamente, segurando a lateral do rosto dela.
Naquele momento, eu não sabia mais quem estava controlando quem.
O beijo foi diferente desta vez. Menos pressa, mais intenção. Uma disputa
silenciosa. A boca dela se movia contra a minha de forma precisa, como se
estivesse me estudando, cada movimento respondido com o mesmo peso. Ela
sabia onde tocar. Sabia onde apertar.
Minha outra mão desceu pela lateral do corpo dela, pousando na cintura. Ela
se inclinou para mim, o peso do corpo dela pressionando o meu.
— Lira…
Ela disse contra minha boca, um suspiro que eu senti mais do que ouvi. Mas
o som do meu celular cortou o ar como uma faca.
Três toques curtos. Dois longos. Um padrão que eu conhecia bem demais.
Meu corpo ficou rígido. O beijo parou.
Abri os olhos e vi Ayra me encarando de perto, os olhos semicerrados e o
peito subindo e descendo. Os lábios dela ainda estavam entreabertos,
levemente inchados, o brilho dos nossos beijos ainda ali. Ela piscou devagar,
tentando entender por que eu tinha parado.
O celular vibrou de novo. Mais insistente. Sempre insistente. Eu sabia quem
era antes mesmo de olhar.
— Sério? — Ela perguntou, a frustração clara no tom, o peito subindo e
descendo devagar enquanto ela olhava para o bolso onde o som vinha. —
Agora?
Soltei o ar pelo nariz e inclinei a cabeça para trás, fechando os olhos por um
segundo. Por que agora? Por que ele sempre sabe o momento errado?
— É Arturo. — Disse simplesmente, mas foi o suficiente para mudar a
expressão dela. — Preciso atender.
A diversão sumiu do rosto de Ayra. O sorriso diminuiu, mas os olhos ficaram
mais atentos. Eu me ergui, mas sem sair de cima dela.
— O que ele quer? — Perguntou, séria, os olhos já fixos nos meus.
— Vou descobrir.
Respondi, puxando o celular do bolso. O nome “Arturo” brilhava na tela. Ele
nunca liga para falar de coisas pequenas ou boas… Apertei o botão de
atender e levei o celular ao ouvido, ainda sentindo o calor de Ayra perto
demais.
— O que foi, Arturo?
Minha voz saiu firme, controlada, sem nenhum sinal de fraqueza. O silêncio
do outro lado durou meio segundo. Depois, a voz dele veio. Grave. Precisa.
Absoluta.
— Preciso ver você. Agora. — Ele não perguntou. Ele ordenou.
— Precisa ser agora? — perguntei automaticamente, minha mandíbula
apertando com irritação.
— Sim. — A voz dele não mudou. Fria. Precisa. Inflexível. — E traga Ayra
com você.
Meus dedos apertaram o celular com mais força. Encarei a Ayra, que
observava com olhos dela estreitos.
— Estou a caminho.
Eu respondi. Arturo não disse nada antes de cortar a linha. Simples.
Absoluto. Como sempre. A mão que segurava o celular caiu para o lado do
meu corpo, meus olhos presos nos de Ayra.
— Ele quer nos ver. — Falei, a voz mais fria do que antes.
— Os dois juntos? — Ayra levantou uma sobrancelha, como se isso já fosse a
resposta. — Que adorável. Ele está ficando sentimental?
— Leve mais a sério. — Respondi de imediato, meu olhar ainda preso no
dela. — Se ele ligou, não é coisa boa.
O sorriso dela não voltou, mas ela não demonstrou medo.
— Mas o que ele pode querer comigo? — Ela perguntou, os olhos ainda em
mim, o rosto mais sério do que antes.
— Não sei. — Respondi, saindo de cima dela. — Mas vá se trocar rápido. Eu
vou fazer o mesmo.
Ayra bufou, mas não disse nada. Ela se levantou, seguindo direto para o
segundo andar.
Eu respirei fundo, tentando me acalmar, a sensação de ter Ayra nos meus
braços ainda estava me deixando agitada. Talvez fosse melhor eu tomar um
banho de água fria. Se Arturo me visse assim saberia. Ele saberia que eu
tinha uma nova fraqueza. Aparentemente eu não resistia aos beijos de Ayra
Arellano.
☙❧
Ayra Arellano
A mansão de Arturo era como ele. Fria, impecável e controlada até o último
detalhe. Não era um lar. Com certeza nunca foi. Era uma fortaleza. Uma
prisão disfarçada de palácio.
Cada passo que eu dava fazia o som dos meus coturnos ecoar pelo mármore
brilhante. O som reverberava pelas paredes altas e lisas, e eu não sabia se era
o eco ou se alguém, em algum lugar, estava ouvindo.
Olhei ao redor, tentando ignorar o frio que subia pelas minhas costas. O ar
era limpo demais, controlado demais. Nem o cheiro era natural. Os quadros
nas paredes eram caros, pesados e intimidantes. Relógios, vasos, artefatos de
mármore, todos itens que gritavam poder.
Eu andava atrás de Lira, observando o jeito dela andar. A postura dela era um
escudo. Cabeça erguida. Queixo firme. Ombros retos. Mas eu via o que ela
estava tentando esconder. Os punhos dela estavam levemente fechados ao
lado do corpo. Não muito, mas o suficiente para que eu notasse.
E foi nesse instante que um questionamento veio, invadindo minha mente
como uma faísca incômoda.
Como Lira, uma criança sozinha, cresceu aqui?
Me perguntei, pois não havia lugar para uma criança aqui. E talvez o
resultado disso era a mulher na minha frente. Cada centímetro de controle.
Cada pedaço de força. Cada parte de silêncio. “O ambiente faz o monstro”...
eu pensei.
Chegamos à porta dupla do escritório de Arturo. Dois homens parados de
cada lado, estátuas com olhos vivos. Não precisaram falar nada. Um deles já
se moveu e abriu a porta. O som do mecanismo de ferro foi lento e pesado,
como se o mundo estivesse nos empurrando para dentro daquele espaço.
O cheiro veio primeiro. Grama. Couro. Madeira polida. Sempre o mesmo
cheiro. O campo de golfe.
Arturo estava lá. Sempre no centro. Ele segurava o taco de golfe com uma
mão, enquanto observava a bola branca perfeitamente posicionada no tapete
verde. A camisa social branca sem um único amassado, as mangas dobradas
até os cotovelos. Cada movimento dele parecia meticulosamente calculado,
desde o jeito que ele girava o taco até o modo como ele inclinava a cabeça.
— Vocês estão atrasadas.
Ele disse, sem olhar para nós. Eu e Lira entramos, mas paramos a uma
distância razoável. Ao meu lado a Lira ficou imóvel, com as mãos soltas ao
lado do corpo. Eu cruzei os braços, fingindo desinteresse.
— Se tivesse marcado hora, teríamos chegado antes.
Respondi antes de pensar. Eu ouvi Lira soltar o ar devagar pelo nariz, o típico
som de quem está controlando a paciência. Arturo olhou para mim. Não o
rosto inteiro. Só os olhos. Eles se moveram na minha direção, como se ele
quisesse me encontrar, e eu apenas dei um sorrisinho que sabia ser irritante.
— Desculpe, pai. — Lira se manifestou, quase como se tivesse intervindo. —
O trânsito estava um pouco difícil.
Arturo não respondeu. Ele voltou a focar na bola de golfe. Seus dedos
ajustaram o ângulo do taco, e ele deu uma tacada firme. O som do impacto
foi seco, limpo. A bola rolou devagar, serpenteando pelo campo de grama
artificial. Não entrou no buraco. Parou a centímetros da borda.
— Eu odeio falhas.
Ele disse, o tom tão casual que parecia conversa de bar. O silêncio ficou
denso. Forte demais. Ele se aproximou da bola, deu um chute nela de leve, só
para movê-la de volta para a posição inicial. Depois, olhou para nós.
Diretamente para nós.
— Entretanto, sabe o que mais eu odeio? — Ele perguntou, olhando de Lira
para mim. Ela não respondeu. Nem eu. — Algazarra.
Arturo começou a caminhar em nossa direção, o taco de golfe girando
devagar na mão dele. O som do metal se movendo no ar era irritante.
Rítmico. Preciso.
— Ouvi falar de uma briga no galpão. Homens gritando, apostas sendo feitas.
Tudo isso no meu território. — Ele disse, a palavra saindo cortada, com o
peso de uma acusação. — E você, Arellano, foi o espetáculo principal, não
foi?
Ele parou bem na minha frente, o olhar preso em mim. Eu o encarei de volta,
os braços ainda cruzados.
— Seus homens não respeitaram os meus e as minhas ordens. — Falei com
calma, mas firme. — Agora respeitam.
O sorriso dele apareceu devagar, mas não chegou aos olhos. Ele balançou a
cabeça como se estivesse decepcionado.
— Respeito. — Arturo testou a palavra. — Interessante falar sobre isso,
usando de um ritual de iniciação que utilizamos de maneira séria nesse
Cartel….
— Ouvi falar sobre seu “ritual”. — Eu respondi sem muita paciência. — Mas
eu não tinha tempo de fazer disso uma grande cerimônia, desde que seus
homens estavam atrasando meu carregamento.
Arturo tirou os olhos cinzas de cima de mim e andou até a Lira. Ela não se
moveu. Nem um centímetro. Os olhos dela estavam cravados nele, o maxilar
apertado, mas o rosto inexpressivo. A máscara perfeita.
— E você, Lira? — Ele disse enquanto parava ao lado dela. Perto demais. —
Você permitiu. Você viu o que estava acontecendo e deixou.
— Assim que soube, eu mesma fui até lá. — A voz dela foi calma. Sem
hesitação.
Minhas sobrancelhas franzem. “Esposa”? Meu olhar passou de Arturo para
Lira, tentando entender o que eles estavam falando. Não fazia sentido. Mas
eles pareciam falar um idioma só deles, um código antigo que eu não tinha
acesso.
E então houve um movimento.
Rápido demais.
O taco de golfe girou na mão dele como uma extensão do braço. Eu mal vi o
momento em que ele ergueu o braço, mas vi claramente o instante em que ele
o trouxe para baixo.
Eu congelei. Meu corpo ficou imóvel, me deixando chocada, como poucas
vezes na vida. O ar ficou denso.
O som do impacto do taco de golfe ainda ecoava nos meus ouvidos. Carne.
Osso. Dor. Um som seco, violento e definitivo. Um som que eu sabia que
nunca mais ia esquecer.
Lira…
Ela dobrou o corpo levemente para o lado no primeiro golpe, mas ficou de
pé. Mesmo quando o ar parecia ter sido arrancado dela, mesmo quando as
mãos pressionaram o lado do corpo, ela ficou de pé. Eu vi o esforço nos
músculos dela, a maneira como os dentes apertaram uns contra os outros, mas
ela não caiu.
Mas de repente houve um segundo golpe, muito pior. Mais seco. Mais forte.
Mais calculado.O taco desceu de novo no mesmo ponto. O mesmo maldito
ponto. Arturo sabia o que estava fazendo.
— LIRA!
Minha voz saiu antes que eu pudesse pensar. Saiu antes que eu pudesse me
controlar no momento exato em que os joelhos dela cederam. O corpo dela
desceu devagar, mas não foi por escolha. As mãos dela ainda estavam no
abdômen, os ombros inclinados para frente, o cabelo caindo e cobrindo parte
do rosto.
Ela estava de joelhos.
Meus olhos estavam fixos nela, mas minha visão começou a ficar vermelha.
Raiva. Pura. Absoluta. Raiva.
Lira não caiu de cara no chão. Não chorou. Não gritou. Mas estava de
joelhos. E ele ainda não tinha terminado.
Arturo girou o taco de novo, o mesmo giro preciso, leve, como se estivesse
brincando. Como se estivesse dançando. O corpo dele se virou de lado, o
braço subindo, o olhar fixo no alvo. A própria filha. Ele ia fazer. Ele ia bater
de novo. No mesmo ponto. De novo.
Eu vi o mundo todo se mover devagar. Cada segundo parecia esticado. Cada
movimento parecia mais lento do que deveria. Mas, desta vez, eu fui mais
rápida. Eu me movi.
Um segundo antes de ele descer o taco, eu já estava lá. Não pensei. Apenas
agi movida pelo ódio de ver ele machucando a Lira. Por isso as minhas mãos
se moveram por conta própria, e antes que eu percebesse, minhas palmas
estavam firmes ao redor do taco. Segurando o maldito taco no ar.
O som não veio. O golpe foi interrompido. Arturo parou. Os olhos dele
ficaram mais largos, mas não muito. Só o suficiente para eu perceber que, por
um segundo, eu interferi.
Os músculos dele ficaram tensos. Eu senti a força dele contra minhas mãos.
Ele tentou forçar o taco para baixo, mas eu segurei com mais força. Não cedi.
Minha respiração era um rugido no meu ouvido. Pesada. Descontrolada.
Viva. Eu levantei o rosto para ele. Olhei bem nos olhos dele.
— Você não vai bater nela de novo… — Eu disse com raiva, arrancando o
taco das mãos dele com toda a minha força, jogando para o lado. — Está
ficando maluco?
Eu grunhi, então girei o corpo, me ajoelhando ao lado da Lira abraçando seus
ombros. Ela ergueu o olhar para mim, parecendo chocado, mesmo com
aqueles olhos cinzas nublados de dor. Por um segundo esse olhar roubou o ar
dos meus pulmões e provocou uma pontada no meu peito.
— Quem você pensa que é para interferir nas punições da Lira? — A voz do
Arturo cortou o silêncio denso, tão fria, que me arrepiou. Mesmo assim ergui
os olhos para ele.
— Sou a “esposa”!
Soltei a voz mais forte do que eu esperava. Arturo ergueu as sobrancelhas,
surpreso por um segundo. Ele riu. Frio. Curto. Sem vida.
— E que direito você acha que tem com isso? — Ele deu um passo à frente.
Devagar. — Acha que um título te dá poder aqui, Ayra?
— Obviamente que sim, pois sem mim unida a sua filha, você não teria seu
acordo com a máfia.. — Respondi, o olhar cravado no dele. — Então pense
bem antes de agir comigo. Porque, ao contrário de você, eu não sou boa em
seguir as regras.
O sorriso dele sumiu. Desapareceu. Evaporou. A tensão na sala ficou
insuportável. Eu podia sentir o ar pesado demais. Podia ouvir meu próprio
sangue batendo nas têmporas.
Arturo não se moveu. Não precisou. O controle estava todo nele. Eu sabia
disso. Mas, pela primeira vez, eu vi algo mudar nele. Um pequeno desvio no
olhar. Um pequeno reconhecimento. Ele sabia que eu não estava mentindo.
— Saiam daqui… — Ele disse, a voz grave e mais baixa do que antes. —
Agora!
O corpo de Lira se moveu antes mesmo que ele terminasse a palavra. Ela
puxou o ar forte e longo, o peito subindo de uma vez só.
Sem pensar. Coloquei minha mão sob o braço dela, firmando o peso. Ela não
disse nada. Não me afastou. Não recusou. Ela ergueu o joelho primeiro. O
outro veio depois. O esforço estava todo no rosto dela, mas não havia
fraqueza. Só força.
A mão dela agarrou meu ombro por um segundo, os dedos apertados demais.
Eu não disse nada. Lira estava de pé de novo. De costas eretas. Eu não
larguei o braço dela. Ela se mexeu ao meu lado, o peso dela não estava sobre
mim, mas ainda me usava de apoio. Dessa forma, quando se virou
lentamente, sem dizer nada, eu fui junto, mas eu mantive meus olhos em
Arturo. Um desafio.
Nós saímos juntas. Passos firmes. Lado a lado. Dois ritmos diferentes que, de
alguma forma, agora eram um só.
O corredor parecia menos sufocante, mas meu peito ainda queimava. Raiva.
Uma raiva tão profunda que parecia um incêndio sem controle. Como Arturo
podia machucar a própria filha daquele jeito? E o pior... como Lira podia
permitir que ele fizesse isso?
Minha mente girava em torno do que aconteceu no galpão. Fui eu quem
desafiou os homens dela, quem criou o caos. Ela só se envolveu para me
ajudar. Para me proteger. Mas isso era mesmo parte do nosso "acordo de
casamento", certo?
Eu olhei para Lira de lado enquanto andávamos. Ela soltou o ar devagar,
quebrando o silêncio. O som me chamou a atenção. Os ombros ainda estavam
tensos, mas o andar dela era firme.
Cada passo carregado de força, mesmo que eu soubesse o quanto devia estar
doendo os golpes que levou. Seus olhos cinzentos estavam fixos à frente, o
rosto inexpressivo como sempre. Mas eu sabia que, por trás daquele exterior
impecável, ela estava ferida também emocionalmente, humilhada e
enfraquecida pelo próprio pai.
Quando chegamos à saída, Lira não soltou um único som. Nem mesmo
quando entramos no carro. Eu assumi o volante. Ela virou o rosto para o lado,
como se estivesse me ignorando completamente.
— Voto de silêncio? — Provoquei, tentando suavizar o clima. Mas ela não se
moveu. Nem sequer olhou para mim. — Lira? Me ignorar não vai me fazer
desaparecer…
Ela respirou fundo, mas manteve o olhar longe.
— Eu vou te levar para um hospital, pode ter quebrado algo — Eu disse
seriamente.
— Não quebrei. Só vá para o apartamento. — A voz dela não era dura, mas
estava carregada de algo mais profundo. Exaustão. Resignação. Algo que me
incomodou mais do que deveria. — Sem mais, Ayra.
Resolvi não discutir. Não agora. Pisei no acelerador, dirigindo rápido demais.
Parte de mim queria provocar uma reação, mas Lira não pareceu se importar.
Nem mesmo com as minhas "imprudências". Ela ficou ali, quieta, o rosto
virado para a janela como se quisesse desaparecer.
Quando chegamos ao estacionamento, mal parei o carro e ela já estava
saindo.
Eu fiquei no banco do motorista por alguns segundos, observando enquanto
ela caminhava com movimentos tensos, claramente desconfortáveis. Parte de
mim queria deixá-la ir. Queria deixar aquela maldita teimosa se virar sozinha.
Mas, por algum motivo, eu não consegui. Pulei do carro, batendo a porta com
força. Irritada comigo mesma. Andei rápido e a alcancei antes que ela
entrasse no elevador, puxando o braço dela e passando ao redor dos meus
ombros.
— Não custa pedir ajuda às vezes, sua teimosa.
Eu disse, segurando ela firme, mas Lira não respondeu. Não reclamou, mas
também não rejeitou o meu apoio. Ela só continuou andando, os passos mais
leves agora que eu estava dividindo o peso.
Subimos no elevador em silêncio. Eu não sabia o porquê, mas não consegui
falar mais nada. Não era por falta de palavras. Talvez fosse pelo jeito que ela
estava. Tão fechada, tão claramente machucada.
Quando entramos no apartamento, tiramos os sapatos e ela parou de repente
no meio da sala. Fiquei parada ao lado dela, esperando. Ela respirou fundo, os
ombros subindo e descendo devagar. Então, virou o rosto para mim.
— Você não devia ter interferido.
A voz dela estava tensa. Não dura, mas como um fio prestes a arrebentar.
Algo nisso mexeu comigo de um jeito que eu não esperava.
— Eu deveria ter deixado ele te espancar? — Respondi, a indignação clara na
minha voz.
— Sim. — Ela grunhiu, fechando os olhos por um instante enquanto tocava
as costelas. Pela primeira vez, vi a dor escorregar para a superfície. Ela
respirou fundo, tentando recuperar o controle. — Só vai deixá-lo mais
raivoso. A próxima vez será pior.
— Próxima vez? — Franzi o cenho, me movendo para ficar na frente dela,
bloqueando o caminho. — Lira... Esse desgraçado te espanca com
frequência?
O jeito que ela desviou os olhos foi a resposta. A resposta que eu não queria
ouvir. Algo dentro de mim se agitou. Um mar revolto de indignação, repulsa
e... outra coisa. Algo que eu não sabia como lidar.
— O que isso importa para você, Ayra?
Ela murmurou, os olhos finalmente voltando para os meus. Os olhos dela.
Aqueles olhos cinzentos estavam feridos. Mais do que eu jamais tinha visto.
Sem pensar, dei um passo à frente, acabando com o pouco espaço que ainda
existia entre nós. Ela tentou desviar o olhar, mas eu não deixei.
— Importa porque eu sou sua esposa. — Disse, a voz firme, quase fria. —
Nosso acordo me deu o direito de ser a única que pode te machucar.
As palavras saíram antes que eu pudesse pensar. E elas eram verdadeiras de
um jeito que me assustou.
— Portanto, nem seu pai, nem qualquer outro demônio vai fazer isso sem a
minha permissão.
Lira engoliu em seco, o olhar preso no meu. Por um segundo, achei que ela
fosse dizer algo. Reagir. Lutar. Qualquer coisa. Mas, ao invés disso, ela
cedeu.
Literalmente cedeu...
O corpo dela desabou, e ela caiu de joelhos no chão, me pegando
completamente de surpresa. Instintivamente, eu me abaixei junto, segurando
seus ombros.
— Lira!
Chamei, reconhecendo a preocupação na minha própria. Ela ergueu o rosto
devagar, e eu vi. Vi as lágrimas brilhando nos olhos dela. Meu mundo
pareceu tremer. Lira Zamorano que eu conhecia era um iceberg. Ela não
chorava, não se rendia, não desabava...
— Não prometa coisas que não pode cumprir. — Ela sussurrou, a voz tão
baixa que parecia um lamento. — Não me faça achar que vai de alguma
forma está lá por mim. Ninguém nunca esteve. Então só me deixe no inferno.
Ela fechou os olhos por um instante, respirando fundo. Quando abriu, as
lágrimas caíram, silenciosas, mas devastadoras. As palavras dela bateram em
mim como um soco. Direto. Cruel. Impiedoso.
Eu não sabia o que dizer. Não sabia como responder.
Tudo o que fiz foi segurar os ombros dela com mais firmeza. Meus dedos
apertaram, como se eu quisesse segurá-la inteira. Como se, de alguma forma,
isso fosse suficiente para impedir que ela se quebrasse mais.
— Vai embora, Ayra. — Ela murmurou, quase sem força. — Me deixe
sozinha.
Sabia que ela queria que eu saísse, para que fingisse que nada disso
aconteceu. Que a deixasse se reconstruir sozinha, como sempre fez.
Eu soltei um dos seus ombros, pegando sua mandíbula, guiando seu rosto
com cuidado para cima, forçando que ela me olhasse. Minha respiração ficou
presa na garganta, mas eu não desviei o olhar.
— Não vou te deixar no inferno. — Falei, minha voz saindo mais firme, mais
pesada do que eu esperava. — Porque, se você está nele, eu também estou.
Fomos condenadas juntas, Lira.
Ela congelou. Só por um segundo. Mas foi o suficiente para eu notar. Vi
quando os ombros dela cederam, o controle começando a escorregar. E então
aconteceu.
Para minha surpresa, Lira se inclinou, lentamente, como se aquele
movimento fosse um teste, uma hesitação. E antes que eu percebesse, ela
apoiou o rosto na curva do meu pescoço.
Sua respiração estava irregular, dura, como se ela estivesse lutando contra
algo dentro dela. Mas o corpo? O corpo dela parecia finalmente relaxar.
Como se tivesse desistido de lutar.
Meu coração apertou. Doeu de verdade. Aquele gesto, simples, silencioso,
era Lira dizendo “tudo bem”. Era ela confiando em mim. Minhas mãos se
moveram por conta própria, deslizando pelas costas dela em um carinho lento
e hesitante.
Ela deixou. Não resistiu. Não recuou.
Eu senti quando ela cedeu completamente. O peso dela contra o meu corpo, o
calor da respiração dela no meu pescoço. E, naquele momento, eu quis. Quis
me fechar ao redor dela, protegê-la de tudo. Mas o que mais doeu foi o
quanto eu me senti ligada a ela. Ligada de um jeito que eu nunca tinha
sentido por ninguém. Dolorosamente ligada.
Eu apertei os braços ao redor dela, deixando que ela descansasse ali, mesmo
que por um momento. Porque, pela primeira vez, ela deixou.
— Seu pai te machuca assim desde a infância?
Perguntei suavemente, minha mão ainda acariciando suas costas. O silêncio
dela foi pesado. Por um momento, achei que ela não fosse responder.
— Sim... — Disse finalmente, tão baixo que parecia um sussurro, como se
fosse uma confissão arrancada à força. — Fazia parte do meu treinamento.
Fechei os olhos, tentando conter a onda de raiva que subia pela minha
garganta. Aquilo era pior do que eu imaginava. Minha mão parou por um
instante nas costas dela, mas depois continuei o movimento. Mais devagar.
Mais firme.
As peças começaram a se encaixar. Isso explica tanta coisa. O motivo dela
ser tão perfeccionista, tão fria, tão controlada. Sempre tentando estar no topo,
sempre tentando ser perfeita. Sempre tentando não dar motivo para a dor
voltar.
Eu sempre achei aquele jeito dela atraente de certa forma. A precisão. A
autossuficiência. Mas agora, isso me parecia nojento. Levar em conta como
isso foi moldado me revirava o estômago.
A sua forma contida e fria foi forjada na dor. A mulher que estava se
apoiando em mim agora era o retrato do custo disso. Arturo não só machucou
Lira; ele enterrou a verdadeira Lira sob camadas de controle e sobrevivência.
Eu respirei fundo, tentando não explodir. Mas a raiva ainda borbulhava,
quente e insistente.
— Eu deveria ter batido com aquele taco nele.
As palavras saíram carregadas de rancor. Lira ergueu o rosto de repente para
me encarar. O movimento foi rápido demais, e ela gemeu de dor ao fazê-lo,
mas ignorou. Seus olhos cinzentos, ainda marejados, agora estavam sérios,
firmes.
— Nunca tente encarar ele. — A voz dela cortou o ar como uma faca. — Me
ouviu?
— Acha que eu não consigo dar conta dele?
Perguntei com uma risadinha amarga, tentando aliviar a tensão, mas ela não
sorriu. Lira me ignorou completamente. O olhar dela ficou mais sombrio,
pesado.
— Não importa se consegue. — Disse, a voz carregada de algo mais
profundo. Algo que parecia medo. — Meu pai é um sádico, Ayra. Ele não
joga limpo. Ele vai te machucar de alguma forma, e você não vai perceber até
que seja tarde. Então nunca, nunca tente encarar ele.
— Lira... — Comecei, tentando argumentar.
— Me prometa! — Ela cortou, os olhos cravados nos meus.
— Que seja. Eu prometo. — Bufei, mas não desviei o olhar.
Ela respirou fundo, como se minha promessa tivesse tirado um peso dela.
Mas o movimento fez seu corpo reagir, e um gemido de dor escapou antes
que ela pudesse evitar.
— Vamos. — Falei, tentando suavizar o momento. — Vamos levantar. Vou
te colocar numa banheira e examinar essas costelas antes de te dar
analgésicos.
Ela não discutiu. Dessa vez, não houve resistência.
Com cuidado, passei o braço ao redor dela e a ajudei a se levantar. O corpo
dela se apoiou no meu, pesado, mas ela se esforçou para não ceder
completamente. Cada movimento parecia um esforço.
Enquanto caminhávamos em direção ao elevador do segundo andar, para o
quarto principal, o silêncio estava carregado. Não de tensão. Algo mais
profundo. Algo que não precisava de palavras.
Quando chegamos ao banheiro, abri a torneira da banheira e comecei a
enchê-la com água fria. Enquanto isso, ela se sentou na beirada do lavatório,
as mãos segurando o balcão para manter o equilíbrio.
— Tire a camisa.
Falei sem rodeios, mas o tom era mais suave do que de costume. Ela me
lançou um olhar, mas não discutiu. Talvez estivesse cansada demais para
brigar.
Quando tirou a camisa, vi o começo de hematomas se formando nas costelas.
A pele já estava marcada de roxo, linhas escuras e dolorosas contrastando
com o tom claro da pele dela. O estrago era pior do que eu esperava.
Por um instante, minha respiração ficou presa na garganta. Era impossível
olhar para aquilo e não sentir raiva.
— Isso vai piorar antes de melhorar. — Murmurei, mais para mim do que
para ela.
Lira não respondeu. Ela apenas segurou balcão com mais força, os ombros
tensos, como se estivesse tentando ignorar o que eu estava vendo.
— Você não vai conseguir tirar o resto sozinha. — Falei, minha voz saindo
mais firme do que eu esperava.
Ela levantou o olhar, os olhos cinzentos cravados nos meus. Desafiadores.
Por um segundo, achei que fosse me mandar calar a boca ou insistir que
podia fazer sozinha. Mas, em vez disso, ela respirou fundo, como se estivesse
se preparando para ceder.
— Faça o que quiser.
Disse, o tom quase indiferente, mas o jeito que desviou o olhar entregou que
ela estava envergonhada. Ajoelhei-me ao lado dela, as mãos hesitando por
um momento antes de alcançá-la. Toquei a cintura dela devagar, sentindo o
calor da pele dela sob meus dedos.
Desabotoei a calça dela com cuidado, os dedos trabalhando com precisão,
mas minha mente estava longe de ser tão controlada quanto meus
movimentos. O toque dela sob minhas mãos era uma distração perigosa.
— Levanta um pouco. — Pedi, minha voz saiu rouca sem querer.
Lira se moveu lentamente, colocando as mãos no balcão para se apoiar.
Quando ela ergueu o quadril, puxei a calça para baixo, deixando-a deslizar
pelas pernas dela.
Quando terminei, deixei o tecido no chão e olhei para ela. Lira estava ali,
vulnerável, de um jeito que nunca imaginei vê-la. Vestindo apenas as roupas
íntimas, o corpo marcado por dor, mas ainda assim irradiando uma força que
parecia inabalável.
Engoli em seco e movi minhas mãos para as alças do sutiã dela. Meu toque
foi cuidadoso, quase hesitante, mas Lira não se moveu. Ela não reclamou.
Quando soltei as alças e puxei o sutiã para fora, meus olhos caíram na curva
dos ombros dela, na linha delicada da clavícula que parecia mais exposta do
que nunca. Em seguida tirei a sua última peça, terminando de expor aquele
monumento de corpo. Era impossível ignorar o jeito que meu coração
acelerou.
Lira desviou o olhar de novo, mas o leve rubor nas bochechas dela me fez
saber que ela também sentiu.
— Pronto. Agora entra.
Disse, afastando-me um pouco para que ela pudesse entrar na banheira. Ela
se moveu devagar, o corpo tenso a cada passo. Quando finalmente afundou
na água fria, um suspiro escapou de seus lábios, quase aliviado.
Fiquei ali, ajoelhada ao lado da banheira, observando enquanto ela fechava os
olhos, deixando que a água começasse a aliviar parte da dor.
— Ayra. — A voz dela me chamou, baixa, quase um sussurro.
— O que foi?
Ela abriu os olhos, me olhando de lado. Havia algo no olhar dela. Algo
diferente.
— Obrigada.
A palavra saiu hesitante, quase como se fosse algo proibido para ela. Sorri de
leve, mas não respondi. Em vez disso, me inclinei para mais perto, deixando
que meus dedos tocassem as costelas dela devagar. A água fria molhou as
mangas da minha camisa, mas eu não me importei.
Lira não recuou. Ela permitiu.
Meus olhos estavam concentrados nos hematomas enquanto eu examinava.
Os contornos escuros pareciam ainda mais cruéis sob a luz suave do
banheiro.
— Hm… Nada quebrado, aparentemente, e… — Minha voz foi interrompida.
Senti antes de perceber. Os dedos dela na minha nuca.
O toque era firme, mas não agressivo. Apenas decidido. Antes que eu
pudesse reagir, Lira me puxou para mais perto, e o ar foi roubado dos meus
pulmões quando seus lábios cobriram os meus.
O beijo era quente. Intenso. Possessivo.
No início, fiquei congelada, o choque me prendendo no lugar. Mas só no
início.
O mundo inteiro pareceu congelar. A única coisa que existia era o calor dos
lábios dela nos meus, o gosto suave e inesperado que me fazia perder a razão.
O toque firme da mão dela na minha nuca, segurando-me como se não
quisesse me deixar ir.
Meu coração disparou, e antes que eu percebesse, minha mão deslizou da
borda da banheira para a lateral do rosto dela, os dedos traçando a linha
delicada da mandíbula. Era um toque hesitante no começo, mas se tornou
mais seguro conforme o beijo continuava.
Lira aprofundou o movimento, os lábios dela se movendo com uma precisão
quase calculada, mas havia algo mais ali. Algo cru. Algo que parecia quebrar
as barreiras entre nós.
Minha outra mão afundou na água, segurando o lado do corpo dela,
esquecendo completamente dos hematomas e da dor. Lira não reclamou. Ela
apenas se aproximou mais, o corpo dela inclinando levemente na minha
direção.
O beijo era uma mistura de tensão reprimida e desejo, mas também havia
uma vulnerabilidade que me atingiu como um raio. Era como se ela estivesse
colocando em cada movimento algo que não conseguia dizer em palavras.
Quando finalmente o ar se tornou uma necessidade, ela se afastou apenas o
suficiente para que nossos rostos ainda estivessem próximos, as respirações
misturadas. Os olhos cinzentos dela estavam fixos nos meus, brilhando com
algo que parecia indecifrável.
— Lira…
Minha voz saiu rouca, carregada de surpresa e algo mais que eu não sabia
definir. Ela ainda estava com a mão na minha nuca, o polegar traçando um
movimento lento na base do meu cabelo.
— Entre aqui comigo… — Ela sussurrou, a voz baixa, mas firme. — Quero
terminar o que começamos mais cedo!
— Você está machucada.
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ela me puxou de novo,
capturando meus lábios com mais intensidade, mas dessa vez trouxe-me para
dentro da banheira de roupa e tudo com ela nua.
— Lira!
A risada dela aqueceu meu peito de um jeito que com certeza não era normal,
e que me faria matar facilmente, apenas para ter aquilo só para mim. Senti
minhas mãos pressionarem instintivamente os ombros dela, mas não para
afastá-la. Era como se meu corpo estivesse reagindo à força gravitacional
dela.
Ela me puxou com cuidado, ajeitando-me no colo dela, a mão firme nas
minhas costas enquanto o corpo dela se movia com precisão para proteger o
lado machucado. A água fria parecia incapaz de esfriar o calor que se
espalhava entre nós.
Os olhos dela estavam fixos em mim, intensos e famintos. Não de um jeito
agressivo, mas com algo mais profundo, como se quisesse desvendar cada
pedaço meu. Lira levou as mãos à minha camisa molhada, puxando o tecido
devagar. O som da água escorrendo pelo tecido foi o único ruído além das
nossas respirações.
Quando a camisa saiu, Lira jogou o tecido encharcado para o lado, sem nem
olhar. Os olhos dela estavam fixos em mim, varrendo cada centímetro
exposto da minha pele.
— Você é linda, Ayra. — Disse, a voz mais baixa agora, quase um sussurro.
Minha respiração falhou por um segundo quando senti que as mãos dela
subiram devagar, traçando os contornos do meu corpo, antes de se fecharem
suavemente sobre os meus seios. O calor do toque dela me fez esquecer
completamente da água fria ao redor.
Ela hesitou por um momento, como se estivesse me dando a chance de parar
aquilo, mas eu não movi um músculo para afastá-la.
Quando seus dedos habilidosos alcançaram o fecho do meu sutiã, ela o desfez
com uma precisão que quase me fez rir se eu não estivesse tão absorta no
momento. O tecido foi afastado devagar, e os olhos dela não perderam um
detalhe.
O jeito que os dedos dela traçaram a curva dos meus seios, explorando com
um cuidado que parecia contradizer a intensidade de seu olhar, fez meu corpo
inteiro responder. Um calor que parecia irradiar de cada toque dela, se
espalhando por mim como fogo.
Antes que pudesse reagir, Lira se inclinou para frente, os lábios dela
encontrando os meus novamente, mas dessa vez o beijo era diferente. A água
ao nosso redor parecia vibrar com a tensão entre nós. O beijo se intensificou,
as mãos dela explorando minha cintura, minhas costas, enquanto eu me sentia
cada vez mais conectada a ela.
Eu gemi contra os lábios dela quando senti os dedos dela escorregarem pela
barra da minha calça molhada, hesitando por um instante, como se me desse a
chance de recuar. Mas eu não recuei.
— Lira… — Murmurei contra os lábios dela, minha voz rouca, carregada de
um desejo que eu não conseguia esconder.
Senti os dedos dela se moverem de novo, dessa vez mais decididos. Ela
desceu a calça devagar, o tecido molhado resistindo ao movimento, mas isso
não a deteve. Cada movimento era deliberado, os olhos dela nunca deixando
os meus enquanto ela tirava o tecido completamente, deixando-o de lado.
— Ayra…
Lira sussurrou, a voz baixa, quase um murmúrio de satisfação, que me fez
estremecer.
Eu não tive tempo de responder antes que ela se inclinasse para frente
novamente, os lábios dela encontrando o meu pescoço, traçando um caminho
lento e quente. Cada beijo parecia deixar uma trilha de fogo na minha pele.
Minhas mãos encontraram os ombros dela, segurando-a com força, como se
eu precisasse de algo para me ancorar. Mas não havia ancoragem naquele
momento. Apenas nós duas.
A água se movia ao nosso redor, mas eu mal notava. Tudo o que importava
era o toque dela, o jeito como ela me fazia sentir como se o mundo inteiro
tivesse desaparecido.
Quando as mãos dela deslizaram pela lateral do meu corpo, seus dedos
traçando minha pele de um jeito que me fazia arrepiar, eu senti meu corpo se
render completamente.
Não havia mais controle. Não havia mais resistência.
Ela se afastou por um segundo, apenas o suficiente para olhar para mim
novamente. Seus olhos estavam mais suaves agora, mas ainda cheios de
intensidade.
— Vire-se para mim.
A voz dela era firme, mas havia uma ternura inesperada em cada palavra.
Uma suavidade que fazia meu coração bater mais forte.
Eu apenas assenti, incapaz de encontrar palavras que fossem suficientes.
Suavemente, girei meu corpo, acomodando-me entre as pernas dela, sentindo
a água se mover ao nosso redor como um abraço silencioso.
Lira me puxou pelo quadril, o toque dela firme, mas cuidadoso, como se ela
soubesse exatamente o que estava fazendo comigo. E sabia.
Quando senti a mão dela deslizar lentamente, subindo pela minha coxa, meu
corpo inteiro reagiu. Cada célula parecia despertar sob o toque dela, calor
irradiando por onde os dedos dela passavam. Seu olhar nunca deixou o meu.
Os olhos cinzentos dela estavam cravados nos meus, intensos, famintos, mas
também protetores de uma forma que me desarmava completamente.
Quando ela finalmente me tocou, senti meu corpo ceder por completo, um
gemido baixo escapando dos meus lábios antes que eu pudesse segurá-lo. Era
impossível lutar contra isso. Contra ela. Fechei os olhos, sentindo a onda de
sensações que ela provocava em mim, deixando minha testa encostar na
dela. Ela me beijou, e meu corpo derreteu.
Era íntimo, vulnerável, e eu nunca me senti tão conectada a alguém como
naquele momento.
A respiração de Lira era firme e constante, mas havia algo nela que me fazia
sentir como se estivesse tão perdida quanto eu. Seus dedos exploravam meu
centro com uma precisão lenta e deliberada, cada toque me arrancando um
suspiro ou um gemido suave. Ela afastou apenas seus lábios e imediatamente
senti falta.
— Olhe para mim, Ayra…
Ela murmurou, a voz baixa e rouca, carregada de desejo. Eu abri os olhos
devagar, encontrando os dela. A intensidade em seus olhos me deixou sem
fôlego. Lira inclinou-se levemente, os lábios dela tocando os meus em um
beijo que era diferente dos anteriores. Mais lento, mais profundo, mais...
honesto.
Cada movimento dela parecia calculado, mas não de um jeito frio. Era como
se ela estivesse tentando me mostrar algo, algo que não sabia dizer em voz
alta. E eu senti. Minha mão subiu, tocando o rosto dela, meus dedos traçando
a linha da mandíbula forte, enquanto o calor entre nós continuava a crescer.
Ela me fez sentir como se eu fosse a única coisa que importava naquele
momento. Como se tudo o que ela quisesse estivesse ali, na minha pele, no
meu toque, no meu olhar.
Eu estava entregue. E, por mais assustador que isso fosse, parecia certo.
Deixei meu corpo se aproximar ainda mais dela, passando meus braços ao
redor de seus ombros, abraçando-a sem poder resistir, querendo sentir mais
dela. Senti os dedos dela se moverem devagar, penetrando-me com uma
lentidão torturante que parecia feita para me desarmar por completo. E
funcionou.
Um gemido escapou dos meus lábios, abafado contra a boca dela, que se
curvou em um sorriso satisfeito. Não pude evitar o sorriso que surgiu no meu
próprio rosto. Afastei-me um pouco, o suficiente para poder olhar para ela,
para observar cada detalhe de seu rosto. A forma como o cabelo molhado
caía desordenado, os olhos cinzentos agora mais escuros, carregados de
desejo.
Meus dedos deslizaram pela linha delicada de sua clavícula, traçando o
contorno de sua pele com lentidão, quase como se eu estivesse mapeando-a.
Lira não se mexeu. Ela apenas me observava, como se cada toque meu fosse
algo que ela queria memorizar.
Quando deixei minha mão escorregar até seus seios, senti seu corpo reagir, os
músculos dela ficando tensos sob meu toque. Os olhos dela escureceram
ainda mais, como se aquilo fosse a confirmação daquele desejo avassalador
que já estava claro entre nós.
Meus dedos exploraram, brincando com ela como ela brincava comigo, o
toque alternando entre delicado e provocante. Vi quando seus lábios se
separaram levemente, um suspiro baixo escapando enquanto seus olhos
permaneciam cravados nos meus.
— Você gosta de ter o controle… — Murmurei, minha voz saiu baixa e
rouca. — Mas gosta quando eu roubo um pouco ele de você, não é mesmo?
Um sorriso lento e torto surgiu nos lábios dela, mas o olhar nunca perdeu a
intensidade.
— Se eu disse que sim, vai continuar me tocando? — Ela respondeu sorrindo,
mordiscando meu lábio.
— Talvez…
Provoquei. Eu inclinei o rosto, capturando os lábios dela em um beijo
profundo, mas sem pressa.
As mãos dela se moveram com mais firmeza agora, o toque mais ousado e
rápido, e meus quadris começam a mover-se no seu ritmo, pressionando
contra sua mão. A tensão entre nós aumentava, a água ao redor parecia não
existir mais. Era só ela. Só nós.
Eu pressionei seus seios com mais firmeza, os dedos beliscando suavemente
seus mamilos enquanto ela continuava a me tocar. Cada movimento dela era
calculado, mas ao mesmo tempo carregado de algo cru e irresistível. A tensão
dentro de mim crescia, um calor incontrolável que eu sabia exatamente onde
acabaria.
O som dos nossos suspiros e gemidos preenchia o espaço, misturando-se com
o som da água que parecia dançar ao nosso redor. Deslizei a mão pelo corpo
dela, traçando os contornos da sua pele com cuidado, especialmente ao passar
pela lateral machucada. Mas Lira parecia não estar pensando nisso.
Os olhos dela estavam semicerrados, e o jeito que seu corpo reagia ao meu
toque me dizia que a dor era o que menos importava naquele momento.
Quando inclinei minha mão mais para baixo, meus dedos deslizando entre
suas coxas, vi a respiração dela falhar por um segundo.
Ela inclinou o rosto, os lábios encontrando meu pescoço, e antes que eu
pudesse me preparar, senti os dentes dela mordendo suavemente minha pele.
O toque quente e firme arrancou um gemido que escapou sem permissão.
Minha mão encontrou o centro dela, os dedos explorando o calor e a
suavidade que me fazia perder o fôlego. Comecei a pressionar seu clitóris,
espelhando o mesmo ritmo que ela mantinha em mim, e o corpo dela
respondeu imediatamente.
— Ayra…
Ela murmurou contra minha pele, o tom rouco absurdamente sedutor. A
mordida no meu pescoço se transformou em beijos, quentes e lentos,
enquanto a mão livre dela subia pelo meu corpo, segurando minha nuca com
uma força que me fazia sentir como se estivesse completamente sob o
domínio dela.
— Eu quero gozar com você. — Murmurei, minha voz falhando em meio aos
suspiros.
— Ayra… — Ela gemeu baixo, o som do meu nome, mais grave,
reverberando contra minha pele.
Penetrei ela lentamente, Lira me mordeu de novo, o movimento dela contra
mim ficando mais intenso, mais ritmado.
Minhas pernas começaram a tremer, o calor subindo cada vez mais rápido
enquanto o corpo dela se movia junto ao meu. Meus dedos se aprofundaram
no toque, explorando-a enquanto a tensão crescia entre nós, como se
estivéssemos à beira de algo que só nós duas podíamos alcançar juntas.
A água ao nosso redor parecia estar fervendo, mas era o calor entre nós que
consumia tudo.
— Lira... eu...
Minhas palavras falharam quando ela pressionou mais fundo, arrancando um
gemido alto de mim que ecoou no banheiro.
Ela não parou. E eu também não.
O ritmo entre nós se tornou frenético, cada toque, cada suspiro, cada gemido
nos levando mais perto do ápice que sabíamos ser inevitável. E quando
finalmente chegamos lá, foi como se o mundo parecesse sumir, apagar-se.
Nossos corpos se renderam, os movimentos desaceleraram, e o som da água
voltou a preencher o espaço enquanto nossas respirações pesadas tentavam
recuperar o ritmo. Eu inclinei a testa contra a dela, os olhos fechados, o corpo
ainda tremendo com o resquício daquele orgasmo que alcançamos juntas.
— Você vai me destruir, Ayra… — Ela murmurou, a voz rouca, mas
carregada de algo suave.
— Você já está me destruindo...
Respondi, um sorriso fraco surgindo nos meus lábios antes de beijá-la
novamente, dessa vez com calma, querendo prolongar aquele momento de
calmaria entre nós. E Lira também parecia querer a mesma coisa, enquanto
me beijava de volta.
☙❧
Lira Zamorano
Os lábios dela encontraram os meus novamente, dessa vez com mais calma,
mais suavidade. Não resisti. Não queria resistir. Beijei-a de volta, devagar,
absorvendo cada segundo, cada movimento.
Tudo que fizemos dessa vez era diferente do que já havíamos compartilhado
antes, foi menos urgente, com uma conexão desconcertante. Mais intimidade
do que eu sabia lidar.
Ela me viu, pela primeira vez viu meu lado quebrado. Ayra já tinha visto o
monstro que eu prendia no meu recanto mais escuro, no monstro que meu pai
ajudou a criar. Mas dessa vez Ayra viu meu lado fraco e covarde, e mesmo
assim ela não me julgou. Ela me protegeu.
Durante anos, encarcerada naquela sala de tortura, recebendo as minhas
punições, inutilmente implorei que alguém viesse me salvar. Claro, nunca
aconteceu. Entretanto, nessa noite, quando apenas me resignei em suportar
mais um ataque de Arturo, alguém veio… Ela veio. Ayra parou a agressão e
naquele instante, eu quase desmoronei, sem me importar com meu pai vendo.
Foi assustador ouvir que ela estaria ali a partir de agora. E o pior de tudo foi
que eu acreditei: “Nosso acordo me deu o direito de ser a única que pode te
machucar… nem seu pai, nem qualquer outro demônio vai fazer isso sem a
minha permissão”.
A mão dela subiu pelo meu rosto, atraindo minha atenção, depois desceu pela
lateral do meu corpo, tentando me trazer mais perto. Um movimento
descuidado, sem intenção, fez os dedos dela pressionarem minha lateral
machucada. A dor foi imediata, cortando através do calor do momento.
— Ah…
Um som escapou de mim antes que eu pudesse segurá-lo, mais um suspiro
entrecortado do que um gemido. Ayra congelou. Eu senti o corpo dela travar
contra o meu.
— Merda, desculpe — Ela se afastou apenas o suficiente para olhar para
mim, os olhos castanhos agora carregados de culpa. — Me empolguei.
— Está tudo bem. — Respondi, mas minha voz saiu mais fraca do que eu
queria.
— Não, não está. — Ela retrucou, o tom firme, como se desafiar minhas
palavras fosse natural para ela. — Você já se ignorou demais, Zamorano. Se
morrer, vai dizer que foi culpa minha que cedi ao sexo, antes de te medicar.
Não consegui evitar uma risada. Ayra deslizou a mão pela minha lateral com
mais cuidado agora, o toque tão leve que parecia uma brisa, mas o olhar dela
já estava decidido. Eu conhecia aquele olhar.
— Acabou por aqui. — Disse, sua voz baixa, mas firme.
— Ayra… — Comecei a protestar, mas ela já estava se movendo.
— Sem reclamação. Não sabia que era tão promíscua!
Ela me provocou, com um ensaio daquele seu sorriso malicioso. Antes que eu
pudesse responder, ela se ergueu.
Com um cuidado que me desarmou completamente, Ayra me ajudou a
levantar. Suas mãos firmes seguraram minha cintura, guiando meus
movimentos com uma paciência que eu não esperava dela. A água fria
escorria pelos nossos corpos, mas ela parecia completamente alheia a isso.
Toda a atenção dela estava em mim. A intensidade no olhar dela fazia meu
peito apertar de um jeito estranho, um jeito que eu não queria admitir.
Saindo da banheira primeiro, ela pegou um roupão e, sem se importar com a
própria nudez, estendeu-o para mim.
Aquele corpo...
Por um momento, eu fiquei parada, meus olhos traçando as linhas de sua pele
molhada, a curva do ombro, o contorno da cintura que deslizava
perfeitamente para os quadris. Cada movimento dela parecia deliberado, e eu
não consegui evitar o pensamento de como Ayra era, sem dúvida, divina.
Ela percebeu. Claro que percebeu.
— Você vai ficar me admirando ou vai se secar? — Perguntou, o tom
provocador e um pouco rouco, um brilho divertido nos olhos.
— Presunçosa. — Respondi, pegando o roupão da mão dela, tentando
esconder o rubor que ameaçava subir pelo meu rosto.
Ela sorriu, aquele sorriso torto que sempre parecia saber mais do que devia, e
eu desviei o olhar, enrolando o tecido ao redor do meu corpo com cuidado.
Quando voltei a encará-la, Ayra já estava pegando uma toalha para si,
secando o cabelo de forma casual.
— Você está bem, mesmo?
A pergunta veio sem aviso, a voz dela mais suave agora, o olhar dela
encontrando o meu com algo que parecia... genuíno. Por um momento, eu
não soube o que responder. Apenas assenti.
— Estou bem. — Disse, mesmo que minha voz tenha saído mais baixa do
que eu gostaria.
Ayra deu um passo na minha direção, e eu senti o calor do corpo dela tão
perto do meu, mesmo com o roupão entre nós.
— Bom. — Ela murmurou, segurando meu queixo com delicadeza e
inclinando o rosto. — Porque eu preciso de você inteira, Zamorano. Sempre
inteira.
Dei um sorriso presunçoso, enquanto ela me pegou pelo pulso, me
conduzindo para fora do banheiro. Quando chegamos ao quarto, Ayra me
sentou na beirada da cama, os olhos dela fixos nos meus por um momento
antes de se afastar para buscar o que precisava.
— Vou cuidar logo dessas costelas. — Ayra disse, num tom que não deixava
espaço para discussão.
Ela colocou um comprimido sublingual na minha mão. Sua firmeza era
desconcertante, mas também reconfortante. Enquanto esperava eu colocar o
remédio sob a língua, começou a abrir o meu roupão, os movimentos sem
cerimônias.
Quando o tecido escorregou pelos meus ombros, deixando minha pele
completamente exposta, senti o ar ao redor mudar. Ayra não desviou o olhar,
mas havia algo nos olhos dela. Algo que eu não conseguia decifrar, mas que
me fazia sentir ao mesmo tempo vulnerável e... segura.
Sem dizer nada, ela pegou o tubo de pomada anestésica, pressionando um
pouco nos dedos antes de tocar minha lateral. O contato era frio no início,
mas a suavidade dos movimentos dela era quase um contraste com a firmeza
que sempre carregava.
— Isso vai aliviar qualquer dor. — Ela murmurou, mais para si mesma do
que para mim.
Eu deixei que ela fizesse o que queria comigo, cada toque dela me
desarmando um pouco mais. Era estranho, mas não de um jeito ruim. Minha
mente começou a vagar, e um pensamento se instalou antes que eu pudesse
afastá-lo.
Ninguém nunca cuidou de mim assim…
Era desconcertante perceber o quanto aquilo me afetava. Não o toque, mas o
gesto. A forma como ela estava completamente focada em mim.
— Ayra... — Murmurei, sem saber exatamente o que queria dizer.
— Hm?
Ela respondeu sem erguer o olhar, os dedos ainda trabalhando na minha pele
com o mesmo cuidado desconcertante. Mas, como eu não disse mais nada,
Ayra finalmente me encarou, o cenho franzido, claramente curiosa sobre o
que eu queria dizer.
Eu não sabia como colocar aquilo em palavras. E, talvez, nem quisesse.
Então, antes que pudesse pensar demais, eu simplesmente me inclinei e a
beijei.
Foi rápido. Suave. Doce.
Quando me afastei, Ayra piscou algumas vezes, visivelmente confusa, como
se não soubesse o que fazer ou como reagir. O brilho da incerteza nos olhos
dela era quase adorável.
Eu aproveitei sua confusão momentânea, pegando seu pulso com firmeza e
tirando delicadamente o que ela tinha nas mãos. Sem dar a ela tempo de
processar, puxei-a em direção à cama, sem hesitar.
Quando me deitei, puxei-a comigo, posicionando-a ao meu lado. O mundo
parecia se concentrar naquele momento, na sensação dela tão perto de mim.
Minha mão alcançou a toalha que ela ainda usava, desatando o nó com
cuidado antes de deixá-la escorregar pelo seu corpo. Minha respiração falhou
por um segundo, enquanto meus olhos percorriam sua pele. E sem dizer nada,
puxei o lençol para nos cobrir, envolvendo-a em meus braços e deixando que
seu rosto descansasse contra o meu peito.
O contato era tão íntimo, tão natural, que parecia ao mesmo tempo surreal e
inevitável. Eu fechei os olhos, sentindo o calor do corpo dela contra o meu,
ouvindo a respiração dela começar a desacelerar, se ajustando ao ritmo da
minha. Ela não disse nada mais, apenas se mantendo ali comigo.
Era ridículo, eu sabia disso. Ridículo que eu estivesse ali, abraçando e
buscando conforto na mulher que eu jurei odiar.
Ayra Arellano. Minha esposa. Minha tormenta. Minha... constante.
☙❧
Acordei com o sol diretamente nos meus olhos, entrando pela fresta da
janela. A luz era irritante. Eu suspirei, automaticamente estiquei a mão, mas
não encontrei ninguém ali.
Abri os olhos, me sentando na cama, esfregando os olhos para espantar o
torpor da manhã. Os eventos da noite anterior passaram pela minha mente em
flashes, e meu peito apertou de um jeito que eu não gostava de admitir.
Olhei ao redor. Nada. Nenhum sinal dela.
Ayra.
Levantei-me, os pés tocando o chão frio, e caminhei até o closet. Peguei uma
calça moletom e uma camiseta preta básica, vestindo-me rapidamente, sem
muito pensamento.
— Deve ter saído cedo…
Murmurei para mim mesma, tentando ignorar a pontada irritante de decepção
que isso trouxe. Suspirei e resolvi procurar alguma coisa para comer. Mas,
quando desci os degraus para o primeiro andar, os sons chamaram a minha
atenção. Foi algo entre um baque e um murmúrio frustrado.
Franzi o cenho, acelerando os passos. E quando terminei metade dos degraus,
encontrei a cena que menos esperava.
Ayra. Na cozinha. E que zona.
A bancada estava coberta de tigelas, farinha espalhada por todos os lados, um
ovo quebrado perigosamente perto da beirada, e uma panela no fogão que eu
não queria nem imaginar o que continha. Ayra estava no meio disso tudo, o
cabelo castanho claro bagunçado, usando uma camiseta larga e o que
pareciam ser shorts de moletom, segurando uma espátula toda concentrada.
— O que... exatamente você está fazendo?
Eu perguntei, cruzando os braços ao terminar de descer a escada, incapaz de
segurar o pequeno sorriso que começou a se formar nos meus lábios.
Ela deu um pequeno salto, claramente não percebendo que eu estava ali.
Quando se virou completamente para mim, vi no seu rosto manchado com
algo branco, provavelmente farinha, e havia um toque de frustração em seus
olhos castanhos.
— Café da manhã.
Disse, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo. Eu olhei para o desastre
ao redor dela e depois de volta para o rosto dela. A expressão dela era de puro
desafio, como se eu ousasse criticá-la.
— Café da manhã ou um ataque ao apartamento? — Perguntei, tentando não
rir.
— Você não me dá crédito suficiente. — Ela murmurou, voltando sua
atenção para a panela no fogão, mas não sem antes jogar a espátula na pia
com um baque frustrado. — Estou resolvendo.
— Resolvendo? — Dei um passo à frente, observando o que ela fazia. —
Ayra, isso parece tudo, menos resolvido.
Ela bufou, mas não olhou para mim, mexendo algo na panela que não parecia
remotamente comestível. E, de alguma forma, o caos ao redor dela era
encantador. Eu mal conseguia esconder meu sorriso.
— Você disse que não sabia cozinhar. — Me aproximei mais dela,
observando a zona crítica que ela armou. — E disse que não entraria na
cozinha para isso.
— Não sei. — Ela respondeu simplesmente, erguendo os ombros, sem olhar
para mim. — Mas bom, eu estava com fome, então estou tentando…
— Tem sorte por não ter se matado, sabia? — Provoquei, balançando a
cabeça, sem conseguir conter meu sorriso.
— Se você só vai criticar, pode voltar a dormir. — Ayra finalmente me
olhou, os olhos semicerrados e, de forma quase cômica, apontou a colher que
usava para mexer a panela na minha direção.
Não consegui me segurar. A gargalhada escapou antes que eu pudesse conter.
— Não é uma crítica, é uma constatação. — Retruquei, ainda rindo enquanto
ela estreitava os olhos.
— Saia da cozinha, Zamorano. — Disse, com uma mistura perfeita de
irritação e diversão que só fez meu sorriso crescer ainda mais.
Levantei as mãos em um gesto de rendição, tentando parecer inocente.
— Calma, calma. — Disse, ainda sorrindo. — Que tal eu te ajudar?
Ela estreitou os olhos, claramente desconfiada, como se esperasse que eu
estivesse aprontando alguma coisa.
— Você? Me ajudar? Realmente?
— Sim. — Respondi com um sorriso tranquilo, mas que claramente não a
convenceu de imediato. — Que tal fazermos panquecas? Algo simples, que
você não pode errar.
— Hah, engraçadinha. — Murmurou, mas a expressão dela suavizou, e Ayra
soltou um suspiro dramático antes de largar a colher na bancada. — Tudo
bem. Mostre o que sabe, Zamorano.
Aproximei-me dela, cruzando os braços e observando o estado da cozinha
por um momento antes de voltar minha atenção para Ayra. Aquela mancha de
farinha no rosto dela parecia gritar por atenção.
— Mas primeiro...
Falei, inclinando-me para frente e, com o polegar, limpei o traço branco de
farinha da bochecha dela. Ayra congelou por um segundo, os olhos castanhos
fixos nos meus. Era raro vê-la sem palavras, mas aquele momento foi um
deles. Eu gostei mais do que devia.
— Você estava toda suja. — Expliquei casualmente, sem desviar o olhar, e vi
o canto dos lábios dela se curvar em um sorriso contido.
— Tão cuidadosa. Quem diria? — Provocou, mas o tom de voz era mais
suave.
— Vamos às panquecas antes que você transforme isso em algo inédito no
desastre culinário.
Ela bufou, mas sorriu de canto, enquanto eu me movia até a despensa para
pegar os ingredientes. Farinha, ovos, leite, açúcar. Simples. Coloquei tudo na
bancada e comecei a explicar.
— Primeiro, vamos misturar os secos. Aqui, pegue a tigela.
Ayra pegou a tigela com uma eficiência surpreendente, embora eu notasse um
brilho de curiosidade nos olhos dela. Coloquei a farinha e pedi que ela
adicionasse uma pitada de açúcar e sal.
— Agora, os líquidos. — Continuei, quebrando um ovo na outra tigela. —
Preste atenção, porque se você errar isso, não há salvação.
— Acha que vou errar até um ovo? — Ela ergueu uma sobrancelha, mas o
sorriso no rosto dela entregava que estava se divertindo.
— Honestamente? Sim.
Ela riu, balançando a cabeça enquanto adicionava o ovo e o leite na tigela.
— Agora, misture os dois devagar. O segredo é a paciência. — Disse,
entregando a espátula para ela.
— Paciência não é meu ponto forte.
— E é exatamente por isso que eu estou aqui.
Respondi com um sorriso presunçoso, inclinando-me para guiá-la enquanto
ela mexia. Ayra estava focada, a língua ligeiramente entre os lábios, enquanto
misturava a massa. Era surpreendentemente encantador.
— Perfeito. Agora, vamos à frigideira.
Mostrei a ela como untar a frigideira com manteiga e despejar a quantidade
certa de massa. Ayra observava com atenção, mas não sem soltar alguns
comentários provocativos sobre minha “precisão exagerada”.
— Sua vez. — Falei, entregando a frigideira para ela.
Ela despejou a massa, inclinando-se para espalhá-la melhor, mas a expressão
dela era de puro foco. Quando ela virou a panqueca com perfeição, Ayra
ergueu a espátula como um troféu imaginário.
— Eu sou um gênio. — Declarou, rindo.
— Vamos ver se está comestível primeiro.
Retruquei, já me movendo para pegar os pratos. Enquanto ela terminava, a
cozinha ainda estava uma bagunça, mas era como se o caos fosse parte do
charme.
Quando finalmente nos sentamos com as panquecas, Ayra olhou para mim
com aquele sorriso malicioso.
— Admito, Zamorano. Sou uma cozinheira melhor do que esperava.
Eu ri, pegando um pedaço da panqueca antes de responder.
— Se um desastre controlado contar como habilidade, então sim, você é.
Ela riu, e naquele momento, algo dentro de mim relaxou. Era raro. Muito
raro. Mas, com Ayra, momentos como aquele estavam começando a
acontecer com mais frequência do que eu gostaria de admitir.
Ayra pegou o jarro de suco e serviu dois copos, empurrando um na minha
direção antes de se recostar na cadeira. Seus olhos castanhos me observaram
com mais atenção do que o normal, avaliativos, mas não de um jeito
invasivo. Havia algo mais suave neles hoje. Algo que me deixava
desconfortavelmente consciente.
— Vai ver seu pai hoje? — Perguntou, o tom tranquilo, mas carregado de um
leve fio de tensão que não passou despercebido.
— Não quero falar sobre ele. — Respondi, dando de ombros, pegando meu
copo de suco e tomando um gole. — Vai estragar meu bom humor.
Ayra arqueou uma sobrancelha, e então sorriu, aquele sorriso torto que
parecia sempre saber mais do que devia.
— Bom humor, você, Zamorano? — Disse com uma risada leve e
descontraída que preencheu o espaço. — Tem algo a ver com você dormindo
de conchinha comigo?
Eu parei no meio do movimento, quase cuspindo o suco.
— Não seja tão presunçosa… — Respondi, desviando o olhar rapidamente,
esperando que ela não notasse o rubor subindo pelas minhas bochechas. —
Até parece.
Ela riu novamente, o som carregado de diversão, claramente satisfeita com a
minha reação. Claro que ela percebeu.
Enquanto eu mexia no copo de suco, sem coragem de olhar diretamente para
ela, minha mente se traiu. Eu gostei. Gostei de dormir com ela daquela forma,
do calor dela próximo ao meu. Gostei desse café da manhã, do som da risada
dela preenchendo o apartamento.
Mas admitir isso? Jamais.
Levantei os olhos lentamente, apenas para encontrar aquele sorriso
estampado no rosto dela, tão evidente quanto a luz do sol entrando pela
janela. Os olhos castanhos de Ayra estavam fixos nos meus, expectantes,
como se ela soubesse exatamente no que eu estava pensando e estivesse
esperando eu ceder.
Aquilo me incomodava. E me atraía na mesma medida.
— Vamos comprar seu carro hoje.
Declarei de repente, mudando de assunto com uma rapidez que até eu achei
suspeita. Ayra arqueou uma sobrancelha, inclinando a cabeça de leve, mas o
sorriso dela não diminuiu. Se é que era possível, parecia crescer.
— Tentando desviar, Zamorano? — Perguntou, o tom casual, mas com
aquela nota provocativa que parecia sua especialidade.
— Estou cumprindo o que prometi.
Respondi, dando de ombros e tomando outro gole do suco, tentando parecer
mais despreocupada do que realmente estava. Ela riu suavemente, pegando o
próprio copo e girando-o entre os dedos antes de beber.
— Interessante, mas acho que está mentindo. — Ayra disse e eu bufei,
estreitando os olhos para ela.
— Se prefere não ter o carro, posso cancelar.
— Nem pense nisso. — Ayra respondeu rapidamente, o sorriso
transformando-se em uma expressão mais séria, mas ainda carregada de
diversão. — Já estou sonhando com aquela Ferrari.
Revirei os olhos, mas não pude evitar um pequeno sorriso que surgiu nos
meus lábios. Ela era insuportável.
— Então termine de comer.
Ayra me observou por mais alguns segundos, com aquele brilho divertido nos
olhos permanecendo.
— Sim, senhora minha esposa. — Disse Ayra, com um tom carregado de
malícia, a ênfase exagerada na última palavra.
Senti algo dentro de mim se apertar, um calor desconfortável subindo pelo
meu peito, espalhando-se de um jeito que eu não queria admitir. Ridículo.
Tentei manter minha expressão neutra, ou pelo menos algo próximo disso.
— Coma, Ayra. Você estava com fome, não estava?
Retruquei, bufando e me levantando antes que ela pudesse dizer mais alguma
coisa. Começando a arrumar a bagunça que ela tinha feito mais cedo. O som
da risadinha dela me seguiu, leve e descontraído, como se soubesse
exatamente o efeito que suas palavras tinham em mim.
Enquanto lavava a louça, ouvi o arrastar da cadeira e, em seguida, os passos
dela atrás de mim. Claro que ela não ia me deixar em paz.
— Acho que você gosta quando eu te chamo assim. — Disse, com aquela voz
provocadora que só ela conseguia fazer soar tão natural.
— Você está imaginando coisas. — Respondi, sem me virar, focando na
louça como se minha vida dependesse disso.
Senti Ayra se aproximar, o calor do corpo dela a poucos passos de distância.
E então as mãos dela pousaram suavemente no meu quadril.
— Ah, claro. Como se você não tivesse corado, Zamorano.
Antes que eu pudesse reagir, senti os lábios dela roçarem na minha orelha,
quentes e suaves. Meu coração disparou no peito, cada batida parecendo
ecoar na cozinha silenciosa.
E então, como se quisesse me levar ao limite, ela pressionou o corpo contra o
meu, toda a extensão dela alinhada atrás de mim. Era impossível ignorar a
proximidade, o calor, o jeito que ela parecia preencher cada espaço vazio ao
meu redor.
— Ayra… — Minha voz saiu mais baixa do que eu pretendia, e eu odiei
como soou menos como uma repreensão e mais como uma entrega.
— Hm?
Ela murmurou algo que mal consegui captar, o som reverberando perto do
meu ouvido enquanto os dedos dela deslizavam levemente pelo meu quadril,
como se testasse até onde podia ir. Fechei os olhos por um instante, tentando
desesperadamente recuperar o controle, mas aquilo só parecia piorar. O
cheiro dela, a sensação de seu corpo tão próximo... Era como se ela ocupasse
todo o espaço, até mesmo o ar.
Com um movimento rápido, virei-me de frente para ela, determinada a cortar
aquilo antes que meu corpo traísse mais ainda o que eu estava sentindo.
— Se você terminou de brincar, Arellano, tem um carro esperando por você.
— Falei, tentando manter minha voz firme, autoritária, mas sabendo que
minhas bochechas estavam mais quentes do que eu queria.
Ayra ergueu as mãos em um gesto exagerado de rendição, como se quisesse
provocar ainda mais. Os olhos castanhos dela fixos nos meus, o brilho de
diversão evidente.
— Por enquanto, Zamorano. Por enquanto.
Antes que eu pudesse dizer mais alguma coisa, ela se inclinou e pressionou
um beijo suave na minha bochecha. O toque foi tão rápido quanto inesperado,
mas ainda assim deixou minha pele formigando onde os lábios dela haviam
tocado.
Eu deveria ter dito algo. Repreendido. Qualquer coisa. Mas antes que pudesse
reagir, Ayra já estava se afastando, um brilho travesso nos olhos.
— Não demora, minha esposa.
Ayra disse, e como se quisesse me deixar ainda mais fora de eixo, piscou
para mim antes de sair correndo da cozinha, os passos ecoando.
Fiquei ali, congelada por um instante, tentando processar o que tinha acabado
de acontecer. O idiota do meu coração errou até as batidas. Passei a mão pelo
rosto, respirando fundo, e olhei para a bagunça que ainda precisava ser
arrumada.
— Arellano, insuportável... — Murmurei, mas o sorriso que escapou dos
meus lábios entregava que eu talvez não a odiasse tanto assim.
☙❧
Entrar na concessionária era como adentrar um universo onde tudo brilhava:
os carros impecáveis, o piso reluzente e até o sorriso ensaiado dos
vendedores. Ayra, claro, estava no seu elemento. Desfilava pelo showroom
com a confiança de quem sabia exatamente o que queria e como consegui-lo.
Eu, por outro lado, seguia com calma, analisando o ambiente e observando a
forma como ela olhava os carros. Sabia que ela encontraria algo extravagante,
o tipo de escolha que combinava com sua personalidade marcante.
Foi então que o vendedor apareceu.
Ele era jovem, bem-apessoado, com um sorriso que parecia treinar no
espelho. Mas havia algo mais. O olhar dele, embora cortês, era
definitivamente avaliador.
— Senhoras, posso ajudá-las?
Perguntou, o tom carregado de entusiasmo profissional, mas os olhos
demoraram um pouco mais do que o necessário em mim antes de se moverem
para Ayra. Claramente, ele tinha uma preferência, e as morenas pareciam ser
seu tipo.
— Estamos só olhando.
Respondi calmamente, mas Ayra já estava ao meu lado, havia algo na postura
dela que parecia... protetivo. O vendedor não percebeu ou, se percebeu,
decidiu ignorar.
— Na verdade, já sabemos o que queremos.
Ayra afirmou com um sorriso que parecia educado, mas tinha uma ponta de
frieza que era impossível ignorar.
— Entendido. Mas posso sugerir alguns modelos que são verdadeiras obras-
primas? Talvez uma Portofino M? Ou quem sabe algo mais ousado, como
uma Roma?
Ele olhou diretamente para mim enquanto falava, como se estivesse tentando
medir minha reação. Era quase óbvio demais, o jeito que ele me avaliava.
Antes que eu pudesse responder, Ayra deu um passo à frente, posicionando-
se entre nós como uma barreira intencional.
— Estamos aqui pela SF90 Spider.
A voz carregada de autoridade dela, veio com um tom cortante o suficiente
para fazer o sorriso do vendedor vacilar por um instante. A tensão entre eles
era quase palpável, e eu observei a cena com um sorriso pequeno, mas
interno.
Ayra estava com ciúmes.
— Ah, excelente escolha.
Disse o vendedor, tentando se recompor, mas claramente surpreso com a
precisão do pedido. Ele nos guiou até a área onde a SF90 Spider estava
exposta. Quando chegamos, ele começou a apresentar o modelo com
entusiasmo renovado, talvez tentando impressionar depois do corte abrupto
de Ayra.
— A SF90 Spider é a definição de potência e luxo. Este modelo é capaz de ir
de 0 a 100 em 2,5 segundos. — Ele olhou para mim enquanto explicava, e
pude sentir Ayra ao meu lado ficando mais tensa a cada segundo.
— Quero na cor branca. Quanto tempo para personalizar com interior de
couro caramelo e todos os opcionais?
Ayra cortou, claramente desinteressada nas especificações e focada em deixar
claro que não queria mais "aproximações". O vendedor hesitou, pegando um
tablet para conferir.
— Com todas as personalizações, o modelo estará pronto em
aproximadamente duas semanas.
Ayra assentiu, cruzando os braços e voltando o olhar para mim com um
sorriso satisfeito, como se já soubesse que sua escolha seria aprovada. Peguei
meu cartão sem limites e o entreguei ao vendedor, que pareceu surpreso pela
rapidez com que tomei a decisão.
— Pode carregar tudo no cartão. — Disse, simples, sem piscar. — E o que
mais ela quiser, por favor.
O silêncio no showroom era quase cômico. Todos ao redor pareciam
processar a ideia de alguém que não hesitava em comprar um dos modelos
mais caros com tanta facilidade. O vendedor olhou para mim, impressionado,
e depois para Ayra, que ergueu o queixo com um olhar quase desafiador.
— Você nem pensou duas vezes, Zamorano. — Ayra comentou, agora com o
sorriso torto de volta.
— Eu disse que daria o que queria. Agora cumpra sua parte.
Retruquei, a voz neutra. O vendedor finalizou a compra e nos entregou os
detalhes da personalização. Quando saímos da loja, Ayra estava mais
próxima do que o normal, seu braço ao redor do meu enquanto
caminhávamos.
— Ele estava te encarando. — Disse ela de repente, o tom casual, mas
carregado de algo mais.
— E você ficou com ciúmes. — Respondi imediatamente, olhando para ela
de canto.
— E você ficou com ciúmes. — Respondi imediatamente, olhando para ela
de canto, um sorriso de lado começando a se formar.
— Eu? Ciúmes? Claro que não. — Ayra respondeu com firmeza, mas o rubor
que subiu ligeiramente por seu pescoço a entregou. — Você está vendo
coisas, Zamorano.
— Se não estava, então por que agiu como se quisesse afastá-lo com os
olhos? — Retruquei, arqueando uma sobrancelha.
Ayra bufou, apertando meu braço levemente, o toque quase possessivo, mas
ao mesmo tempo casual.
— Precaução, Zamorano. Precaução.
Ela disse, com aquele tom provocador, mas eu sabia que era apenas uma
forma de desviar. Eu ri baixinho, balançando a cabeça, ainda achando graça
do desconforto dela. Era raro vê-la tão óbvia, e eu aproveitava cada segundo.
— Agora esqueça isso, e me leve para comer bolo.
— Bolo? — Franzi o cenho, surpresa com a súbita mudança de assunto.
— Sim. Gosto de comer bolo para comemorar quando consigo algo. —
Disse, com um brilho travesso nos olhos, como se estivesse planejando algo.
— Seriamente? — disse, enquanto Ayra piscou e se aproximou ainda mais,
praticamente colada em mim.
— Quando te atropelei, comi um ótimo, de chocolate. Acho que vou repetir
hoje!
Parei no meio do passo, olhando para ela com uma mistura de choque e
incredulidade.
— Você... comeu bolo para comemorar me atropelar?
— Foi uma ótima vitória. Você viu o salto que deu? — Disse, soltando uma
risada baixa e carregada de malícia.
— Você é inacreditável. — Murmurei, mas não consegui evitar o pequeno
sorriso que surgiu.
— Eu sei, é meu charme.
Ayra respondeu, puxando-me ainda mais perto dela, os dedos dela segurando
meu braço com uma firmeza. Seguimos pelo estacionamento, os passos dela
sincronizados com os meus, como se isso fosse algo natural para nós.
E, estranhamente, eu permiti.
O calor do corpo dela contra o meu não era incômodo, como eu esperava que
fosse. Na verdade, era reconfortante de um jeito que eu não queria admitir.
Porque, de alguma forma, parecia certo.
☙❧
Ayra Arellano
A cafeteria estava movimentada o suficiente para não ser um túmulo, mas
ainda assim tranquila o bastante para que as conversas não precisassem ser
gritos. Eu gostava daquele equilíbrio. Era o tipo de lugar que Sebastian
sempre escolhia, como se planejasse me fazer relaxar.
Ele já estava sentado, com a postura descontraída de sempre, as pernas
esticadas e o café pela metade na mesa. Quando me aproximei, o sorriso
irônico apareceu.
— E aí está você, a mulher mais ocupada do mundo. Finalmente conseguiu
um tempo na sua agenda para mim.
— Considere-se muito importante.
Respondi, jogando minha bolsa na cadeira ao lado e me sentando, deixando
meu celular com visor virado para cima na mesa. Sebastian riu, me avaliando
com aquele olhar analítico que me irritava e, ao mesmo tempo, me fazia
confiar nele.
— Ah, Ayra, sempre tão modesta.
— E você, sempre tão cheio de si.
Sebastian riu, balançando a cabeça. Ele ergueu a xícara de café como se
brindasse.
— Você está diferente.
— Estou linda, como sempre. — Retruquei, fingindo checar minhas unhas,
mas dando uma olhada no meu celular.
— Claro, linda… Mas preocupada. — Ele sorriu. — Aceitou me encontrar
depois das minhas outras tentativas, muito facilmente. Tem algo aí. Quer se
distrair, então me deixe adivinhar... sua esposa é o motivo?
Ele falou "esposa" com ênfase, e eu revirei os olhos antes de chamar o
garçom e pedir um café forte, ganhando tempo com a minha resposta.
— Lira não tem nada a ver com isso.
Eu disse depois de pedir meu café, mas até para mim a mentira soou fraca.
Sebastian ergueu uma sobrancelha, o sorriso aumentando.
— Você acabou de piscar para o celular umas três vezes desde que chegou.
Então, me conta, o que a linda Zamorano fez agora?
Olhei para o celular na mesa, como se ele estivesse me encarando de volta.
— Você sabe como ser um intrometido. — Suspirei, cruzando os braços e
recostando na cadeira. — Ela saiu cedo hoje. Foi encontrar o pai, que é um
desgraçado da primeira espécie.
Sebastian arqueou uma sobrancelha, o sorriso suavizando um pouco, mas
ainda presente.
— Imagino que isso não seja exatamente uma reunião de família agradável.
— Com certeza não é. — Respondi, sem conseguir esconder a minha
irritação. — Eu deveria ter ido com ela, mas a criatura controladora deixou
apenas um bilhete avisando sua saída. Aquela estúpida.
Sebastian soltou uma risada baixa, mas havia algo mais nos olhos dele, algo
que parecia compreensivo.
— E você está aqui, preocupada o fato de que não pode protegê-la ou impedi-
la de fazer algo estúpido?
— Preocupada? Eu? Claro que não.
Retruquei, mas soou falso. Ele ergueu uma sobrancelha, o sorriso crescendo
como se eu tivesse acabado de confessar algo importante.
— Você se importa, Ayra. Dá pra ver. E, honestamente, acho que você odeia
isso.
Fechei a cara, pegando o café que o garçom trouxe. Eu odiava mesmo. Afinal
eu estava bem por muito tempo sem me preocupar com nada, nada além do
Cartel, por isso era desconfortável me importar agora. E o pior, que a fonte
disso fosse a Lira.
— Eu me importo porque faz parte do acordo. — Retruquei rapidamente. —
Se algo acontecer com ela, afeta a operação.
Sebastian balançou a cabeça, apoiando o cotovelo na mesa e me observando
com aquela expressão de quem sabia mais do que eu gostaria que soubesse.
— Acordo ou não, Ayra, você se importa. E está tudo bem admitir isso.
Talvez até para ela.
Eu soltei um suspiro longo, pegando a xícara de café e tomei um gole,
tentando ignorar o peso desconfortável no meu peito. Porque, no fundo, eu
sabia que ele estava certo. E isso me deixava inquieta de um jeito que poucas
coisas no mundo conseguiam.
☙❧
Lira Zamorano
O caminho até a mansão do meu pai parecia mais longo do que o habitual,
mesmo que o percurso fosse o mesmo. Cada curva da estrada parecia um
lembrete do peso que aquela casa carregava, das memórias que eu preferia
enterrar.
Estacionei o carro com precisão, como sempre fazia, mas o aperto no meu
peito não passou. Não era medo, claro que não. Era algo mais amargo: raiva
contida, ressentimento e o tipo de cansaço que só Arturo Zamorano era capaz
de provocar.
Os seguranças me deixaram entrar sem questionar, embora um deles tenha
hesitado antes de abrir a porta do escritório. Eu sabia o motivo. Depois da
última vez, todos ali deviam estar se perguntando por que eu voltaria. Mas
essa era a diferença entre mim e os outros: eu sabia como enfrentar monstros.
Mesmo que eles fossem de carne e osso.
Quando entrei, meu pai estava de pé, ajustando um taco de golfe nas mãos.
Ele nem olhou para mim imediatamente, como se quisesse deixar claro que
aquele era o território dele, o espaço dele.
— Lira.
Ele finalmente disse, o tom neutro, mas com a ponta de frieza que sempre
estava lá, como uma assinatura.
— Olá, pai.
Eu respondi no mesmo tom, mas mantendo minha postura de “respeito”,
mesmo que cada músculo do meu corpo estivesse rejeitando aquilo. Ele se
aproximou, enquanto girava o taco nas mãos.
— Você parece bem…
— Sim, eu estou!
Ele parou, apoiando o taco no chão e me encarando com aqueles olhos frios
que pareciam atravessar qualquer um.
— Quero que você entenda algo muito claramente. — Disse, o tom ficando
mais baixo, mas mais afiado. — Nunca mais deixe sua esposa interferir nos
meus assuntos. Nunca. Mais.
Eu não me movi, mas o impacto das palavras dele era como um golpe que eu
esperava.
— Ayra é impulsiva, mas já conversei com ela. — Eu disse, sem desviar o
olhar.
— É bom que tenha feito isso. — Arturo deu um passo à frente, os dedos
apertando o taco de golfe. — Se acontecer de novo, Lira, não será apenas
você a sofrer as consequências. Será ela também. Entendeu?
Eu não respondi imediatamente. A raiva queimava por dentro, mas eu sabia
que, com Arturo, revidar diretamente era inútil.
— Entendido.
Disse finalmente, com a voz neutra, mesmo que minhas mãos estivessem
cerradas em punhos ao meu lado. Ele sorriu, sem humor, satisfeito com
minha resposta, mas não menos cruel.
— Bom. Porque temos algo mais importante para tratar.
Ergui uma sobrancelha, surpresa pela mudança repentina de assunto.
— Lyza Ferraro está organizando um evento em Nova Iorque em dois dias.
Algo grande. Ela convidou você e a Ayra.
— Nós duas? — Perguntei, minha voz carregada de incredulidade.
— Sim. Você e Ayra. Vocês têm um papel a desempenhar, Lira. Uma
imagem a sustentar. Não quero ouvir desculpas. Quero vocês lá. — Ele
voltou a girar o taco, como se aquilo encerrasse a conversa. — Espero que
saibam comportar-se adequadamente. Especialmente sua esposa.
Dei um longo suspiro, com apenas um aceno. Era inútil argumentar quando
Arturo já tinha decidido algo.
— Algo mais?
Ele me lançou um olhar de lado antes de responder.
— Não. Mas lembre-se, Lira: eu estou observando. Sempre
Saí do escritório com passos firmes, mas minha mente estava um caos. Nova
Iorque, Ayra, Arturo... tudo parecia ser um jogo elaborado demais. E, como
sempre, eu era apenas uma peça sendo movida pelo tabuleiro dele.
Mas, desta vez, talvez houvesse algo diferente. Algo que ele não esperava.
Aparentemente, eu não estava sozinha.
Enquanto caminhava até o carro, tirei o celular do bolso. Meu dedo pairou
sobre a tela por um momento, hesitante. O bilhete que eu deixei para Ayra
antes de sair foi proposital, eu queria avisar onde estava indo, mas não
necessariamente parecer estar dando satisfação… Droga. Era um pouco
confuso.
Digitei a mensagem, minhas mãos quase tremendo, mas minhas palavras
firmes:
"Precisamos conversar. Arturo me deu uma tarefa que envolve você.
Vamos nos encontrar, onde está?"
Olhei para o texto por um instante antes de apertar "enviar".
Não demorou nem dois segundos para a resposta aparecer na tela:
"Estou em um café com Sebastian. Te passo o endereço."
Seguido imediatamente por uma localização enviada.
Senti algo estranho no peito, uma pontada de desconforto. Eu suspirei,
guardando o celular e entrando no carro. Enquanto dirigia, tentava
racionalizar o que estava sentindo. Não era ciúmes, eu me convenci. Era...
irritação.
Mas a verdade era que o pensamento de Ayra com aquele tal de Sebastian,
rindo e relaxada, me incomodava mais do que eu queria admitir. Lembrei-me
do casamento, de como ele estava ao lado dela, tão próximo. Intimidade. Era
isso. Eles tinham intimidade, e eu não podia deixar de notar o quanto isso me
irritava.
As imagens se repetiram na minha mente. O jeito casual como ele tocava o
ombro dela. A risada que ela deu quando ele disse algo que eu não ouvi. Meu
maxilar estava travado antes mesmo de perceber.
Quando um sinal vermelho apareceu, pisei no freio com mais força do que o
necessário. O carro parou com um tranco, e só então percebi minhas mãos
apertando o volante. Suspirei fundo, soltando o ar devagar, tentando me
convencer de que estava exagerando.
Eu acelerei quando o sinal ficou verde, tentando deixar a irritação para trás,
mas ela parecia colada em mim. Como um lembrete constante de que, por
mais que eu tentasse manter o controle, Ayra Arellano tinha uma maneira
infalível de bagunçar tudo dentro de mim.
Quando estacionei perto do café, respirei fundo, ajeitando o cabelo e
endireitando os ombros. Eu não deixaria transparecer o que estava sentindo.
Entrei no café, meus olhos imediatamente encontraram Ayra sentada em uma
mesa com Sebastian. Ela parecia confortável, uma perna cruzada sobre a
outra, o corpo relaxado enquanto segurava uma xícara de café. Sebastian
dizia algo que a fazia rir, e, por um segundo, senti meu estômago apertar.
Eu odiava aquela sensação.
Caminhei até eles, cada passo calculado para manter meu semblante
impassível. Quando Ayra me viu, seus olhos fizeram um percurso lento por
mim, de cima a baixo. O brilho castanho neles pareceu mudar por um
instante. Avaliativo. Cauteloso.
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ela se levantou. Com passos
rápidos e decididos, veio até mim e, sem aviso, ergueu a mão para segurar a
lapela do meu casaco. O toque era firme, mas o puxão foi ainda mais
surpreendente.
— Você está bem? — Sua voz estava mais baixa do que o habitual, quase um
sussurro urgente. — Ele tocou em você?
Fiquei paralisada por um momento, o choque atravessando minha fachada de
calma. Ela estava preocupada?
Algo dentro de mim pareceu se derreter lentamente. Era uma sensação
estranha, desconfortável, mas ao mesmo tempo... calorosa. Eu tentei evitar
sorrir, juro que tentei, mas acho que falhei miseravelmente. Ayra franziu o
cenho, seus olhos castanhos escurecendo como se estivesse tentando decifrar
algo.
— Estou bem.
Disse finalmente, mas minha voz saiu suave demais, quase um murmúrio. Foi
quando vi os olhos dela amolecerem. A preocupação transformando-se em
algo mais suave, mais vulnerável.
Essa mudança provocou outra onda de derretimento dentro de mim. Maldita
Ayra. Como ela fazia isso?
Ela não respondeu imediatamente, apenas permaneceu próxima, os dedos
ainda segurando a lapela do meu casaco como se precisasse de uma
confirmação física de que eu estava realmente inteira.
— Certeza? — Ela insistiu, a voz um pouco mais firme, mas os olhos ainda
carregando aquela sombra de preocupação.
— Certeza. — Respondi, desta vez mais firme, tentando recuperar o controle.
Sebastian, sentado à mesa, pigarreou de leve, trazendo minha atenção de
volta à realidade. Ayra engoliu em seco, soltando meu casaco, parecendo se
dar conta da presença dele novamente.
— Venha, sente-se, Zamorano. Meu café está esfriando por sua causa.
Ayra disse se movendo, voltando ao seu tom usual, mas ainda parecia suave.
Sem responder, sentei-me ao lado de Ayra, ficando de frente para Sebastian.
Ele me lançou um olhar divertido, o sorriso leve dançando em seus lábios.
— Olá, Lira. Prazer em revê-la. — ele disse num tom educado.
— Olá! — respondi sem muito entusiasmo.
— Então, o que trouxe você até aqui, Zamorano? — Perguntou Ayra, a voz
carregada de curiosidade. Virei meu corpo levemente na direção dela,
segurando o contato visual.
— Vamos conversar sobre isso a sós. — Falei, minha voz carregada de
seriedade. Lancei um olhar breve para Sebastian antes de voltar para Ayra. —
É um assunto privado.
Ayra arqueou uma sobrancelha, uma expressão desafiadora surgindo
lentamente em seu rosto.
— Não tenho segredos com o Seb…
Ela deu de ombros de novo, relaxando como se aquilo não fosse grande coisa.
Aquilo foi o suficiente para acender algo dentro de mim.
— Nossos assuntos, são nossos assuntos!
Eu disse com firmeza, a voz mais cortante do que eu pretendia. Mas aquela
pontada no peito estava de volta, incontrolável e irritante.
Ayra parou, claramente captando o tom mais intenso. Ela inclinou a cabeça
levemente, os olhos castanhos brilhando com algo que eu não conseguia
decifrar. Curiosidade? Provocação? Interesse?
Sebastian olhou entre nós duas, o sorriso diminuindo um pouco, mas ainda
presente
— Tudo bem, acho que é o meu sinal para ir buscar mais um café.
Ele avisou num tom descontraído, levantando-se com tranquilidade, mas os
olhos dele claramente carregavam uma pontada de diversão ao deixar a mesa.
Ayra o observou sair antes de voltar a atenção completamente para mim. O
silêncio entre nós parecia mais pesado, mais carregado.
— Está com ciúmes, Zamorano?
Ela perguntou, finalmente, a voz mais baixa, mas com um sorriso lento
surgindo no canto dos lábios. Eu revirei os olhos, mas sabia que minha
expressão provavelmente já tinha me entregado.
— Não seja ridícula, Arellano. — Respondi, tentando desviar o olhar, mas o
jeito que ela me encarava me segurou no lugar.
— Se não é ciúmes, então por que você parece tão incomodada?
Ayra inclinou-se levemente para frente, o tom provocador, mas o brilho nos
olhos dela estava mais intenso, mais profundo.
— Porque é um assunto sério. — Retruquei, cruzando os braços como uma
tentativa de manter a postura. — E prefiro tratar de coisas importantes sem
distrações.
— Distrações? Então agora Sebastian é uma distração?
— Sim, é. — Cortei rapidamente, antes que ela pudesse jogar mais
provocações.
— Tudo bem, Zamorano. Sou toda ouvidos. — Disse, finalmente recostando-
se na cadeira, mas os olhos ainda fixos nos meus como se estivesse se
divertindo. — O que seu pai aprontou?
Cruzei os braços, respirando fundo antes de responder.
— Lyza nos convidou para uma festa em Nova Iorque.
Ayra piscou, o sorriso desaparecendo por um momento enquanto processava
a informação.
— Lyza Ferraro? O que aquela cadela quer agora?
Eu a observei por um momento, percebendo como seus olhos castanhos se
estreitaram levemente, o brilho de diversão completamente substituído por
algo mais sério, mais afiado.
— É um evento para “manter as alianças fortalecidas”. — Fiz aspas com os
dedos, o sarcasmo evidente no meu tom. — Mas sabemos que quando se trata
dela, sempre pode esperar algo mais.
Ayra bufou, recostando-se na cadeira com um semblante pensativo, mas seus
dedos tamborilavam levemente sobre a mesa.
— É disso que Lyza precisa para dormir tranquila à noite? — Ayra ironizou.
— Parece que sim. — Eu não consegui evitar rir. — O evento é em dois dias.
— Certo, vamos a Nova Iorque. Mas não prometo ser uma convidada
exemplar.
— Só não estrague tudo, Arellano. Isso é tudo que eu peço.
Ela me olhou com um sorriso torto, o brilho malicioso voltando lentamente
aos seus olhos.
— Ah, Zamorano, prometo ser exatamente quem você espera que eu seja.
Revirei os olhos, mas sabia que aquilo era o máximo de acordo que poderia
extrair dela. E, de alguma forma, isso teria que ser suficiente.
— Ótimo, agora porque não termina esse café e vamos embora?
— Estou de carro. E, além disso, combinei de ir às compras com o Seb.
Eu mordi a parte interna da bochecha, lutando para manter minha expressão
neutra. A ideia de Ayra passando a tarde com ele, me incomodava mais do
que eu queria admitir.
— Compras? — Perguntei, tentando soar desinteressada, mas a pontada no
meu peito traiu meu tom. — Com ele?
Ayra arqueou uma sobrancelha, claramente captando meu desconforto.
— Você quer vir também, Zamorano? Pode opinar no que vou usar. Talvez
goste de algo que combine comigo. — Disse com um sorriso provocador, os
olhos brilhando com malícia.
— Estou ocupada. — Retruquei rapidamente, desviando o olhar para
esconder a irritação. — Tenho coisas mais importantes para fazer do que
segui-los em um desfile de futilidades.
— Futilidades? Isso machucou, Lira. — Ayra colocou a mão no peito de
forma dramática, mas o sorriso teimoso ainda estava lá. — Prometo que não
vou deixar ele ver as lingeries que eu escolher.
Meu corpo ficou rígido instantaneamente. Eu odiava o jeito que ela jogava
essas provocações como se fossem nada, só para me testar.
— Você acha que isso é engraçado? — Perguntei, estreitando os olhos,
tentando manter minha voz firme, mas sentindo o calor subir pelo meu
pescoço.
— Eu acho hilário. — Ayra respondeu sem perder o ritmo, o brilho divertido
em seus olhos castanhos praticamente desafiando-me a reagir.
Antes que eu pudesse abrir a boca, Sebastian voltou à mesa, segurando dois
copos de café. Ele colocou um deles na minha frente com cuidado, o que me
fez franzir o cenho.
— Não sabia o que você gostava, então resolvi apostar no meu sabor coringa.
Sou muito bom em agradar com as minhas pedidas! — Disse com um sorriso
gentil demais enquanto se sentava. — Espero que goste, Lira.
O sorriso dele era amplo, relaxado, mas não durou muito. Ayra, com
movimentos rápidos, bateu no copo de café, derramando todo o conteúdo no
chão com uma falta de sutileza que fez Sebastian recuar e gargalhar.
Eu precisei me inclinar para trás para evitar ser atingida pelos respingos. Meu
olhar alternava entre Ayra, que tinha uma expressão indecifrável, e Sebastian,
que continuava rindo como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo.
— Eu perdi algo aqui? — Perguntei, a confusão se misturando com uma
irritação crescente.
— Nada importante. — Ayra respondeu com os olhos cravados no amigo por
um segundo longo, antes de desviar o olhar para mim. — Você não tem que
ir? Eu estarei em casa às duas.
“Em casa.”
O jeito casual como ela falou aquelas palavras me atingiu de um jeito que eu
não esperava. Era tão natural, tão sem esforço, mas o peso delas provocou um
calor ridículo no meu peito. Eu pisquei, tentando recuperar o controle.
— Estou sendo expulsa? — Perguntei, tentando mascarar meu desconforto
com um tom de sarcasmo.
— Não. Eu só estou indo às compras, esposa. — Ayra respondeu
suavemente, inclinando-se em minha direção, e antes que eu pudesse reagir, a
ponta do dedo dela traçou minha mandíbula com um toque leve, quase
reverente. — Vou escolher algo especial para a viagem.
Minha respiração travou por um segundo, e outra vez meu corpo ficou tenso.
O jeito como ela fazia isso, tomando conta do espaço ao meu redor sem
esforço, era insuportável e, ao mesmo tempo, impossível de ignorar. Meu
coração acelerou de um jeito que eu odiava admitir.
Tentei desviar os olhos, mas ao fazer isso, notei Sebastian, nos observando,
claramente se divertindo com a cena. Seu sorriso era quase zombeteiro. Eu
limpei a garganta, tentando recuperar alguma compostura.
— Obrigada pelo café, Sebastian. — Disse, levantando-me e tirando algumas
notas para deixar na mesa.
Meus olhos encontraram os de Ayra, que tinha a atenção fixa em mim, como
se esperasse algo mais.
— Te vejo depois, Ayra. — Falei, mantendo minha voz firme, mas não
conseguindo evitar que ela soasse mais suave no final.
— Até mais, esposa.
A palavra me atingiu novamente, como um soco inesperado, e o sorriso dela,
carregado de malícia e algo mais que eu não conseguia decifrar, só piorou as
coisas. Senti minhas bochechas começarem a ficar quentes.
O calor subindo lentamente pelo meu rosto era inconfundível, e antes que
isso se tornasse evidente demais, virei-me e saí do café com passos rápidos,
tentando fugir da cena.
☙❧
Ayra Arellano
Eu me joguei no sofá da loja, segurando uma peça qualquer que Sebastian
tinha insistido que eu provasse. Ele parecia estar se divertindo muito mais do
que deveria com essa ideia de “compras”.
— Você precisa admitir. — Ele começou, o tom provocador de sempre
enquanto folheava algumas araras. — Ficou com ciúmes porque servi um
café para a Lira.
Revirei os olhos tão forte que quase vi o teto.
— Você está delirando, Seb. — Respondi, cruzando os braços e me
afundando mais no sofá, como se pudesse escapar da conversa.
— Ah, claro. Porque derrubar o café foi um movimento super maduro e
equilibrado. — Ele riu, colocando uma blusa na pilha de roupas que ele
aparentemente achava que eu precisava. — Vamos lá, Ayra, admita. Você
não gostou.
— Foi um acidente!
— Claro que foi. — Disse ele, com um sorriso travesso que me deu vontade
de jogar algo nele. — Conte outra!
Eu me mantive em silêncio, mas a verdade era que ele estava certo. Algo
dentro de mim simplesmente odiava a ideia de alguém se aproximando da
Lira. Era como se eu só reagisse. Depois do casamento. Se consolidou uma
possessividade estranha. Algo dentro de mim a reivindicava, mesmo que eu
não entendesse completamente o porquê.
Sebastian parou ao meu lado, olhando para mim com aquele sorriso de quem
já tinha ganhado a discussão.
— Você sabe que não precisa ficar na defensiva, certo? Eu só dei um café.
Não vou roubar sua “esposa”.
Aquela palavra… “esposa”.
Era quase cômico o quanto essa palavra tinha poder quando saía da minha
boca em direção a ela. O jeito como Lira reagia… o leve rubor, a tensão no
maxilar, o desvio de olhar. Era irresistível provocar isso nela, pois a deixava
adorável.
— Você está imaginando coisas. — Respondi finalmente, pegando a peça
que Sebastian havia jogado para mim. — Eu só não gosto de você se metendo
onde não deve.
— Ou seja, ficando perto dela.
Ele disse com um sorriso tão cheio de si que eu queria jogar a peça na cara
dele. Levantei-me, indo até o provador, mas não antes de responder:
— Lira é minha esposa. Você está aqui porque eu permito. Não esqueça
disso, Sebastian.
Fechei a cortina atrás de mim com mais força do que o necessário, mas não
antes de ouvir a risada dele.
— Você está tão ferrada, Ayra. Tão ferrada.
Ignorei, mas a verdade era que ele provavelmente estava certo. Porque, de
alguma forma, Lira Zamorano estava ocupando um espaço em mim que eu
não sabia como controlar. E isso me assustava.
CAPÍTULO DEZ
Lira Zamorano
☙❧
Ayra Arellano
O silêncio entre nós não era desconfortável, mas era denso. Caminhávamos
lado a lado pelas ruas de Nova Iorque, nossas mãos ainda estavam
entrelaçadas. Algo que, há um tempo atrás, eu teria considerado impossível.
Olhei de relance para Lira. Ela parecia tranquila, o rosto sereno, mas ainda
assim, aquele olhar atento e calculista que nunca a abandonava. Não sei por
que aquilo me atraía tanto.
Eu apertei a mão dela levemente, sem pensar. Lira não reagiu de forma óbvia,
mas o pequeno movimento de seus dedos, entrelaçando-se mais nos meus, fez
algo dentro de mim se agitar.
Nunca passei por isso antes.
Passeios como esse, mãos dadas, beijos, silêncios compartilhados… Isso não
era minha praia. Tudo na minha vida sempre foi físico, momentâneo. Um
flerte casual em um bar, um encontro sem significado que terminava antes do
amanhecer. Mas aquilo? Aquilo era diferente.
Meu coração parecia um tambor, batendo em um ritmo estranho, irregular. Eu
nunca soube lidar com coisas que ultrapassavam o superficial, e agora aqui
estava eu, nervosa, como se fosse minha primeira vez em algo que eu nem
conseguia nomear.
Quando finalmente chegamos ao hotel, os seguranças nos deixaram no
saguão e nós pegamos o elevador para a suíte. Ainda estávamos em silêncio.
As portas se abriram e entramos no quarto, o som das nossas passadas
ecoando pelo espaço amplo.
Lira soltou minha mão lentamente, quase como se hesitasse, antes de se
afastar em direção à varanda. Ela parecia tão natural, tão em controle.
Enquanto eu…
Eu estava um caos.
Deixei meus sapatos perto da entrada, arrastei os dedos pelos cabelos e olhei
para ela novamente. Ela estava parada ali, de costas para mim, observando a
vista da cidade iluminada. Não fazia ideia do que dizer ou fazer.
— Vou tomar um banho!
Foi o que consegui dizer, e soou mais como uma fuga do que uma
declaração. Ela apenas acenou com a cabeça, sem se virar.
Peguei uma toalha e entrei no banheiro, trancando a porta atrás de mim.
Encostei as costas na madeira por um momento, soltando o ar que nem
percebi que estava segurando.
O que diabos estava acontecendo comigo?
Caminhei até o espelho, ligando a luz fria do banheiro. O reflexo que me
encarava parecia… estranho. Não era eu. Não podia ser. Eu não era alguém
que ficava nervosa, ou perdida, ou intrigada por algo assim.
Passei as mãos pelo rosto, tentando entender por que parecia que meu
estômago estava em guerra com borboletas. Afinal, foi só um passeio. Só
uma droga de passeio com Lira Zamorano. A gente se beijou, mas não era
nada, claro que não era. Entretanto, porque parecia algo tão grande?
Olhei para os meus próprios olhos, buscando alguma resposta naquele
reflexo. Mas tudo que encontrei foi um vazio que parecia se preencher com…
algo novo. Algo que eu não sabia lidar.
Suspirei, irritada comigo mesma. Eu fui para o chuveiro. Talvez a água
pudesse acalmar o turbilhão que Lira, de alguma forma, tinha causado dentro
de mim.
Quando finalmente saí do banheiro, envolta apenas no roupão branco macio,
percebi que tinha demorado mais do que o necessário. O vapor ainda me
seguia, como se tentasse abafar o caos na minha cabeça, mas o som de algo
na suíte principal me chamou a atenção.
Franzi o cenho, ainda ajustando a toalha no cabelo, e segui o barulho que
vinha da sala ao lado. Minha mente já estava buscando explicações, talvez
fosse Lira, talvez outra coisa. Mas definitivamente não estava preparada para
o que vi.
Lira estava parada ao lado de uma mesa que antes estava vazia, mas agora
estava repleta de pratos de comida. Era uma visão tão fora do comum que por
um momento fiquei sem palavras.
Ela ajeitava um arranjo de talheres, movendo-os milimetricamente como se
quisesse ganhar tempo, enquanto olhava para os pratos, mordendo levemente
o lábio inferior. Parecia… nervosa.
— Você está planejando alimentar um batalhão? — Perguntei, cruzando os
braços e encostando no batente da porta, deixando meu tom parecer mais
casual do que eu me sentia.
Lira congelou por um instante, os olhos se voltaram para mim rapidamente.
Quando percebeu que eu estava ali, pareceu tentar recuperar o controle, mas o
rubor leve subindo pelo pescoço dela foi impossível de ignorar.
— Pedi comida porque… nós não comemos direito. — Disse, coçando a
parte de trás da cabeça, um gesto tão atípico que quase me fez sorrir. —
Achei que seria mais prático pedir um pouco de tudo. Não sabia o que você
gostaria.
Eu estava congelada. Não fisicamente, mas internamente. A visão dela ali,
tão fora de sua zona de conforto, tentando justificar algo que era, claramente,
um gesto de cuidado… Era inesperado. Era adorável. Era ridículo o quanto
isso mexia comigo.
— E resolveu acabar com a fome de toda Nova Iorque enquanto estava nisso?
— Perguntei, o tom provocador voltando sem que eu conseguisse evitar,
enquanto caminhava até a mesa.
Ela revirou os olhos, cruzando os braços, mas não respondeu imediatamente.
Em vez disso, olhou para o banquete que tinha pedido, como se estivesse
avaliando se tinha exagerado, franzindo o cenho. O gesto foi tão adorável que
eu quis abraçar e apertá-la.
— Se não gostar, pode escolher algo específico na próxima vez. — Disse
finalmente, a voz soando mais defensiva, mas eu pude notar que havia algo
mais ali. — Isso é o que há para hoje.
Era tão sutil, mas tão Lira. Ela nunca seria direta sobre o que estava fazendo.
Nunca admitiria que, no fundo, era um gesto de gentileza. Eu sorri, um
sorriso que veio sem esforço, quase como uma reação natural ao jeito dela.
Me sentei em uma das cadeiras, apoiando os braços na mesa, enquanto
continuava observando-a. Ela ainda tentava parecer ocupada, ajustando
detalhes que não precisavam de nenhum ajuste, mas, eventualmente, também
se sentou, a postura rígida como sempre.
— Eu gosto… — Quebrei o silêncio, minha voz mais baixa do que pretendia.
— Gosto de tudo que escolheu.
Ela me olhou, os olhos cinzentos piscando como se não tivesse certeza se
tinha ouvido direito. Por um breve instante, sua expressão suavizou, mas logo
desviou o olhar, movendo o prato na frente dela.
— Bom. Então vamos comer logo antes que esfrie. — Disse, o tom mal-
humorado típico voltando, mas com algo diferente. Algo quase… tímido.
Era adorável. Ridiculamente adorável.
Eu peguei um pedaço do prato mais próximo, experimentando enquanto ela
fazia o mesmo, e por um tempo, o único som no ambiente foi o tilintar suave
dos talheres contra os pratos.
Lira cortou um pedaço de carne e mastigou, olhando para o prato como se
fosse a coisa mais interessante do mundo. Mas eu sabia melhor. Ela estava
desconfortável, fora do elemento dela. E isso fazia algo dentro de mim se
aquecer de um jeito estranho e novo.
— Está bom. — Disse finalmente, o tom dela curto e direto, como sempre.
— Está ótimo. — Retruquei, tentando não sorrir demais. — Você realmente
pediu um pouco de tudo. Não sabia que podia ser tão… generosa.
Ela me lançou um olhar de lado, estreitando os olhos.
— Não se acostume.
Eu ri, um som leve que saiu antes que eu pudesse controlar.
— Tarde demais.
Ela revirou os olhos, mas não respondeu. Ainda assim, vi um pequeno ensaio
de sorriso surgir em seus lábios antes que ela o escondesse rapidamente,
desviando o olhar para o prato.
Por um momento, fiquei apenas observando-a. Lira Zamorano. A mulher que
sempre deixou claro que me queria morta, mas que agora estava sentada à
minha frente, ajeitando o jantar como se fosse algo completamente natural.
A linha de seu maxilar, a forma como ela mantinha a postura impecável
mesmo em um momento tão trivial, os olhos focados demais no que quer que
estivesse cortando em seu prato… Tudo nela era fascínio e complexidade.
— Tem alguma coisa no meu rosto? — Ela perguntou finalmente, ainda sem
me olhar, mas com aquele tom desconfiado que parecia mais uma defesa
automática.
Eu ri de novo, incapaz de conter a diversão que aquilo me trouxe.
— Não, Zamorano. — Respondi, inclinando-me, ligeiramente para frente,
apoiando o queixo na mão enquanto continuava a encará-la. — Só gosto de
olhar para coisas bonitas.
Ela congelou por um instante, os ombros se enrijecendo, antes de finalmente
levantar os olhos e me encarar. O rubor sutil que subiu pelo pescoço dela até
alcançar as bochechas foi algo que eu sabia que guardaria comigo.
— Você gosta de provocar, Arellano. — Disse, séria, mas sua voz soava
menos dura do que ela provavelmente queria.
— Eu sei. — Respondi, sorrindo. — Mas não estou mentindo.
Ela desviou o olhar, voltando a focar no prato como se aquilo fosse mais
interessante do que a conversa. Mas não antes de eu notar um pequeno brilho
nos olhos cinzentos dela. Não era exatamente irritação. Era algo mais suave,
mais intrigante. Algo que eu ainda não sabia nomear.
— Coma, por favor, e pare de brincar. — Ela disse, sua voz voltando a soar
prática, mas havia algo na maneira como ela falou que me fez sorrir. — Você
se alimenta como um passarinho. E suas escolhas alimentares são
equivalentes às de uma criança de cinco anos.
Eu não consegui conter a risada. Lira estava se desviando do assunto, mas a
tentativa era engraçada.
— Anda de olho na minha alimentação, Zamorano?
Ainda rindo enquanto voltava a pegar o garfo e obedecia à ordem dela,
mesmo sem admitir. Ela me lançou um olhar rápido, mas carregado daquele
tom impaciente característico.
— Alguém tem que fazer isso, porque aparentemente você não tem noção. —
Respondeu, cortando seu prato com a precisão de sempre.
— Tão cuidadosa. — Provoquei, sorrindo novamente. — Quem diria que
Lira Zamorano se preocuparia com o que eu como?
Ela parou por um segundo, mas não ergueu o olhar. Apenas respirou fundo,
como se estivesse se obrigando a ignorar minha provocação.
— Eu só não quero que você passe mal e estrague nossa viagem.
Lira disse, quase fria, mas havia uma leve hesitação no tom que entregava
que aquilo era mais do que uma desculpa prática.
Eu não respondi de imediato, apenas a observei por mais um momento,
sentindo aquele calor estranho no peito novamente. Era algo ridículo, essa
sensação de que, por trás das palavras afiadas, havia algum cuidado. Voltei a
comer, mas meu sorriso permaneceu.
— Está bem, Zamorano. Vou comer tudo direitinho. Só para você não se
preocupar.
Ela finalmente ergueu os olhos para mim, arqueando uma sobrancelha com
descrença, mas não disse nada. Apenas voltou ao prato dela, a leve tensão nos
ombros suavizando.
E, mais uma vez, aquele silêncio confortável se instalou entre nós. Um
silêncio que, de alguma forma, parecia cada vez mais… nosso.
Quando terminei de comer, percebi que havia comido mais do que deveria.
Lira provavelmente ficaria satisfeita, mesmo sem admitir. Levantei-me,
pegando a toalha para secar o cabelo ainda úmido, e deixei-a na mesa.
Eu deixei o banheiro, e a Lira entrou logo em seguida depois de mandar
retirar o que sobrou daquele jantar enorme.
Quando ela voltou para o quarto, eu já estava deitada no lado direito da cama,
o lado que parecia ter se tornado automaticamente meu desde que
começamos a dividir o espaço. Lira, claro, escolheu a esquerda, como fazia
todas as noites no apartamento. Tudo tão habitual que parecia uma
coreografia ensaiada.
Mas algo naquela noite parecia diferente.
Ela se ajeitou com a mesma precisão de sempre, mas dessa vez, o espaço
entre nós parecia insuportavelmente grande. Nenhuma de nós disse nada, mas
o silêncio dessa vez não era confortável. Era carregado, cheio de algo que
ambas aparentemente não sabíamos nomear.
Virei a cabeça de lado, apenas o suficiente para observar o perfil dela à luz
suave do abajur. Lira estava deitada de costas, mas sua respiração era mais
lenta, como se estivesse deliberadamente controlada. Como se ela também
estivesse pensando. Hesitando.
Eu não sabia o que me levou a fazer isso, mas me movi. Deslizei lentamente
para o meio da cama, diminuindo a distância entre nós. Ela percebeu, claro.
Sempre percebia tudo.
Lira virou a cabeça na minha direção, os olhos cinzentos me encarando com
aquele misto de confusão e atenção.
— Está tudo bem? — Sua voz era baixa, quase um sussurro.
— Sim. — Respondi, minha própria voz rouca e um pouco hesitante. —
Só… frio.
Não era frio, mas também não era mentira. Havia algo naquela noite que me
puxava para mais perto dela, algo que eu não sabia como ignorar. Lira não
respondeu, mas também não recuou quando eu me aproximei mais. Hesitei
por um segundo, mas então passei o braço sobre a cintura dela, testando seus
limites.
Lira não reclamou. Ao contrário, ela virou-se de lado, permitindo o contato.
Seu corpo relaxou contra o meu, e antes que eu percebesse, ela havia
deslizado o braço ao redor da minha cintura, trazendo-me para mais perto.
Era tão natural, tão inesperado, que eu mal conseguia respirar.
— Você é péssima em ficar no seu lado da cama. — Murmurou, a voz
abafada pela proximidade.
— Eu sei. — Sussurrei de volta, um sorriso quase involuntário escapando.
Nossos rostos estavam tão próximos que eu podia sentir o calor da respiração
dela contra minha pele. E antes que pudesse dizer algo, Lira inclinou-se
levemente, seus lábios encontrando os meus de forma tão natural quanto o
resto daquele momento. O beijo foi suave, sem pressa.
Lira a princípio foi hesitante, como se estivesse testando o momento, mas
logo mudou, seus dedos subindo lentamente até a base do meu pescoço. O
toque era firme, mas havia uma delicadeza ali que eu nunca tinha sentido
antes.
Eu me aproximei ainda mais, deixando que a proximidade apagasse qualquer
dúvida. Sentia o calor do corpo dela, a textura dos lábios que encontravam os
meus em um ritmo lento.
Quando finalmente nos afastamos, nossas respirações estavam entrelaçadas, o
som suave preenchendo o quarto silencioso. Lira manteve o rosto próximo ao
meu, os olhos cinzentos suavizados por algo que eu não conseguia decifrar.
Era quase como se ela estivesse deixando uma parte dela que nunca mostrava
ao mundo escapar por uma brecha minúscula.
— Boa noite, Ayra.
Sua voz era baixa, quase um sussurro, mas carregava uma suavidade que eu
jamais tinha visto nela antes. Aquilo me tocou de uma forma que eu não
estava preparada.
Eu sorri, sentindo meus próprios ombros relaxarem enquanto me
aconchegava, encostando o rosto na curva do pescoço dela. O cheiro dela, um
misto de sabonete fresco e algo unicamente Lira, era reconfortante de uma
maneira estranha, quase viciante.
— Boa noite, Lira.
Nos ajeitamos instintivamente, os corpos entrelaçados como se isso fosse o
mais natural do mundo. Era estranho como algo tão simples poderia parecer
tão certo. Pela primeira vez, dormir agarradas não parecia desconfortável ou
errado.
Parecia exatamente onde deveríamos estar.
☙❧
Acordei com a luz suave do sol filtrando pelas cortinas do quarto, o som
abafado da cidade ao fundo. Espreguicei-me lentamente, mas logo percebi
algo estranho: a cama estava vazia.
O calor que deveria estar no lugar ao lado do meu tinha desaparecido, e o
travesseiro de Lira estava perfeitamente arrumado, exceto por um pequeno
pedaço de papel em cima.
“Fui para a academia. Não demore muito para levantar, temos um dia
cheio. – L.”
Suspirei, lendo o bilhete novamente, como se precisasse confirmar que ela
realmente tinha deixado aquilo. Lira e sua insistência em manter as coisas sob
controle, até mesmo em uma manhã tranquila. Mas havia algo engraçado
naquele gesto simples, algo que me fez sorrir.
Levantei-me, trocando a roupa de dormir por um conjunto de treino ajustado
e um casaco.
Caminhei até a academia do hotel, que, como o resto do lugar, era
exageradamente luxuosa. Equipamentos modernos, paredes de vidro com
vista para a cidade, tudo brilhando de tão novo. Mas o que realmente chamou
minha atenção não foi o lugar. Foi ela.
Lira Zamorano.
Ela estava sentada em um aparelho de musculação, vestindo roupas de treino
pretas que abraçavam seu corpo com perfeição. Seu cabelo estava preso, o
fone no ouvido, completamente alheia ao ambiente ao redor. Os músculos
dos braços tensionam levemente enquanto ela segurava as alças do
equipamento, uma expressão focada, quase indiferente.
O que me incomodou não foi vê-la ali, e sim os olhares.
Homens e mulheres, ocupados em seus próprios treinos, mas incapazes de
ignorar Lira. Era impossível não notar o jeito como a observavam, com
admiração, curiosidade, até mesmo desejo. Meu maxilar apertou. Minha
esposa.
Eles estavam olhando para minha esposa.
Caminhei até ela com passos firmes, ignorando os olhares que agora também
se voltavam para mim. Quando parei na frente dela, Lira ergueu os olhos,
surpresa. Mas antes que pudesse dizer qualquer coisa, inclinei-me, segurando
o rosto dela entre as mãos, e capturei seus lábios em um beijo firme e
possessivo.
O fone caiu de um dos ouvidos dela, mas não me importei. Quando
finalmente me afastei, olhei diretamente para aqueles olhos cinzentos que
agora pareciam levemente confusos.
— Bom dia, esposa. — Disse em alto e bom tom, garantindo que qualquer
um ao redor ouvisse.
Lira piscou, claramente surpresa, antes de estreitar os olhos.
— O que é isso? — Ela murmurou, mas havia um rubor sutil subindo pelo
pescoço dela, algo que me fez sorrir de satisfação.
— Nada. Só estou dando um “bom dia”. — Respondi casualmente, me
endireitando e deixando um sorriso travesso escapar. — Posso dividir o
aparelho com você?
Ela bufou, cruzando os braços, o olhar cético como sempre. Mas, dessa vez,
havia algo mais ali, uma hesitação que eu reconhecia. Lira não respondeu
imediatamente, e eu aproveitei o momento para tirar o casaco, revelando o
top de treino justo.
Os olhos dela me varreram rapidamente, dos ombros ao quadril, mas logo
desviaram para o ambiente ao redor. Foi sutil, mas eu percebi a tensão.
Quando Lira voltou a me encarar, os olhos cinzentos pareciam um pouco
mais afiados, e sua expressão estava longe de ser neutra.
— Já terminei meu treino. — Disse ela de repente, levantando-se com uma
rapidez quase ensaiada e estendendo a mão. — Vamos embora.
— Mas eu quero treinar. — Respondi com um beicinho exagerado. — Me
faça companhia.
— Ayra…
Ela começou, mas as palavras morreram quando me inclinei para começar a
me alongar. Eu sabia exatamente o que estava fazendo.
Lira avançou sem hesitar, posicionando-se diretamente à minha frente. Sua
mão pousou firmemente no meu quadril, como se quisesse me impedir de
continuar, o gesto possessivo e claro como o dia.
Eu ergui o rosto para ela, tentando esconder o sorriso de pura diversão que
ameaçava escapar. Ah, então era isso. Ela não queria que eu ficasse ali
porque estava com ciúmes.
E eu adorei.
— Zamorano, você sabe que pode me dizer o que está incomodando, certo?
Eu murmurei, inclinando-me ligeiramente para frente, o suficiente para
diminuir ainda mais a distância entre nós. Os olhos dela estreitaram, mas a
mão no meu quadril não se moveu.
— Você está irritantemente mais provocadora hoje, Arellano.
— E você mais sexy quando está com ciúmes.
O rubor voltou, mais intenso desta vez, mas ela ignorou minha provocação,
puxando-me para mais perto sem nenhuma sutileza. Jogando o casaco nos
meus ombros.
— Estamos indo. Agora.
Eu segui com um sorriso malicioso, aceitando sua “ordem” com um prazer
que eu não tentava disfarçar. Provocar Lira era meu passatempo favorito, e,
aparentemente, muito mais interessante do que qualquer aparelho daquela
academia.
Caminhamos lado a lado até o elevador, mas sua mão pousada firme na
minha cintura deixava claro que a sua menção de posse. E eu gostei mais do
que deveria daquilo.
A tensão entre nós era palpável, mas eu não disse nada. Ela também não.
Apenas seguimos, o silêncio pesado nos envolvendo até chegarmos à suíte.
Assim que a porta se fechou atrás de nós, Lira fez o movimento mais
inesperado e excitante.
Com um empurrão calculado, ela me jogou de costas na cama. Não havia
gentileza, mas também não havia dureza. Era puro controle. Antes que eu
pudesse me recuperar, ela subiu sobre mim, os joelhos pressionando as
laterais do meu corpo.
Com um único movimento, ela arrancou a camisa justa que usava, revelando
o top que abraçava perfeitamente o corpo esculpido. Eu mal consegui respirar
com a visão, sua postura, a força contida, o olhar feroz nos olhos cinzentos.
Então, ela segurou meu rosto com uma mão firme, os dedos tocando minha
mandíbula e me forçando a encará-la. O toque não era bruto, mas carregado
de possessividade.
— Não se exiba para ninguém. — Sua voz era baixa, mas tão intensa que me
arrepiou. — Você é minha. E eu não gosto que olhem para o que é meu.
O calor que subiu pelo meu corpo foi instantâneo. Não era só o tom dela, ou a
força sutil que ela demonstrava. Era o fato de que ela não estava brincando.
Não havia sarcasmo ou provocação naquelas palavras. Era puro sentimento
cru, direto e inegável.
Meu coração disparou, mas um sorriso lento começou a se formar nos meus
lábios enquanto eu a encarava.
— Tão territorial, Zamorano. — Murmurei, minha voz carregada de desafio.
— Acha que pode me controlar assim?
— Não é questão de controle, Ayra. — Lira respondeu, sua voz ainda baixa,
mas agora mais suave, quase perigosa. — É sobre o que é certo. Você é
minha. Ponto.
Ela se inclinou mais, os lábios tão próximos dos meus que a respiração dela
se misturava com a minha. Por um momento, não houve som além do ritmo
acelerado das nossas respirações.
— Prove, então. — Desafiei, erguendo ligeiramente o rosto para encurtar a
distância.
E ela não hesitou. Seus lábios capturaram os meus com uma intensidade que
fez meu corpo inteiro vibrar. Suas mãos deslizaram dos meus ombros até
minha cintura, firmes, possessivas, enquanto meu próprio corpo cedia ao dela
sem resistência.
Lira não precisava dizer mais nada. Ela não precisava reafirmar seu ponto. Eu
já sabia exatamente o que ela queria dizer com aquele beijo, com cada toque,
com cada movimento deliberado. E, contra toda a lógica, eu estava
completamente entregue.
Seus lábios deixaram os meus para explorar meu pescoço. O toque quente e
úmido da sua boca contra a minha pele me fez arfar, meus dedos apertando o
lençol embaixo de mim. Lira movia-se com uma precisão desconcertante,
como se soubesse exatamente onde e como me fazer ceder.
Suas mãos alcançaram meu top, empurrando-o para cima com uma confiança
que não deixava espaço para hesitação. Quando seus dedos tocaram meus
seios, uma onda de calor percorreu meu corpo, fazendo-me morder o lábio
para conter um gemido.
Ela seguiu o movimento das mãos com os lábios, descendo pelo meu
pescoço, deixando pequenos rastros de calor por onde passava. O toque da
ponta do nariz contra minha pele me provocava, mas era sua boca que fazia
tudo dentro de mim incendiar.
Quando chegou ao meu esterno, Lira beijou suavemente, antes de desviar
para um dos meus seios. Seus lábios e dentes trabalharam juntos, alternando
entre beijos, mordidas leves e chupões que arrancaram de mim um gemido
que eu não consegui conter. Ela foi para o outro, repetindo os movimentos,
lenta, mas deliberadamente.
— Lira, ah…
Minha voz saiu rouca e entrecortada. Os meus quadris começaram a mover-
se por conta própria, seguindo o ritmo que ela estabelecia com a sua boca,
enquanto eu segurei em seus ombros.
Lira continuou sua descida, os lábios traçando um caminho pelo meu
abdômen. Quando chegou ao meu umbigo, a sensação da sua língua
deslizando pela cavidade me fez arfar novamente, meu corpo se arqueando
em resposta. Ela roçou a pele da minha barriga com os dentes, sua respiração
cálida enviando arrepios pela minha espinha.
Eu estava completamente à mercê dela, perdida no ritmo que ela ditava, até
que o som irritante de um toque de celular rompeu o ar, interrompendo tudo.
— Você está brincando comigo… — Murmurei, ofegante, enquanto Lira
congelava, o rosto ainda próximo da minha pele. — Não pare…
Eu gemi. Ela soltou o ar devagar, sua expressão alternando entre irritação e
resignação. O toque continuou, insistente. Lira levantou-se ligeiramente,
pegando o celular na mesinha ao lado da cama. Um nome apareceu na tela, e
sua expressão endureceu.
— Arturo.
Lira suspirou pesadamente, levantando-se, enquanto aceitava a ligação.
Eu me joguei no colchão encarando o teto. Eu ainda tentava normalizar
minha respiração. O mundo real havia invadido novamente, mas tudo que eu
queria era poder me esquecer dele sob o toque da Lira.
Eu nunca quis tanto alguém como eu a queria, isso era um pouco assustador.
☙❧
Lira Zamorano
Depois de um dia exaustivo lidando com as demandas de Arturo, eu me senti
quase aliviada quando finalmente deixei os documentos de lado para me
preparar para o evento. Mas enquanto subia os degraus com Ayra, ao meu
lado, igualmente impecável no vestido preto que parecia esculpido para ela.
Cada movimento que ela fazia era deliberado, e eu sabia que ela estava ciente
de como atraía os olhares. Percebi então que a sensação de alívio era
passageira.
Meu vestido prateado cintilava sob as luzes ao nosso redor. Era elegante,
ajustado perfeitamente, mas pesado, um lembrete do peso constante da minha
posição e das expectativas que vinham com ela. Ayra, ao meu lado, parecia
flutuar. Sua confiança irradiava como se o mundo inteiro fosse seu palco, e o
sorriso discreto em seus lábios apenas aumentava essa impressão.
Mas eu sabia o que estava por trás daquele sorriso. Os últimos dias tinham
sido intensos de uma maneira que nem mesmo Ayra conseguia disfarçar
completamente.
Ainda conseguia vê-la, sentir o que houve depois da academia. Como se ela
estivesse sob a minha pele. Mas o que ficou comigo, martelando em meu
peito, foi o que tivemos na roda gigante. O modo como ela me abraçou, o
toque dela, o calor, o beijo suave. Não era algo que eu estava acostumada a
lidar. E o fato de que isso continuava rondando minha mente era algo que me
deixava inquieta.
— Pronta? — A voz de Ayra me trouxe de volta ao presente.
— Sempre estou pronta. — Respondi, mantendo o olhar fixo na entrada do
evento à frente.
Assim que passamos pela entrada principal, pude sentir os olhares nos
avaliando. Alguns de curiosidade, outros de julgamento, mas a maioria estava
carregada de interesse. Ayra percebeu também, porque, antes que eu pudesse
me afastar, senti a mão dela na minha cintura, firme e casual ao mesmo
tempo.
— Você sabe que não precisa fazer isso, não é? — Murmurei, lançando-lhe
um olhar rápido.
— Fazer o quê? — Ela sorriu, inclinando-se levemente para sussurrar. —
Garantir que todos saibam que você não está sozinha?
Minha mandíbula apertou levemente, mas eu não me desvencilhei. Ayra
parecia se alimentar da minha hesitação, um brilho de satisfação dançando
nos olhos dela.
O salão era tão luxuoso quanto eu esperava, com luzes douradas iluminando
o espaço e uma atmosfera de opulência que parecia sufocar. Era o tipo de
lugar onde cada movimento era analisado, cada palavra era uma arma.
Enquanto caminhamos juntas, os olhares continuam. Eu sabia que parte da
atenção era por causa do contraste entre nós, a prata contra o preto, a
seriedade contra o descompromisso aparente. Mas, mais do que isso, era a
maneira como Ayra parecia me acompanhar, não como uma sombra, mas
como uma presença igual.
— Eles estão olhando. — Ayra comentou, casualmente.
— Eles sempre olham.
— Não assim. — Ela disse, um sorriso se formando nos lábios. — Eles estão
tentando entender como você consegue ser tão hipnotizante.
Minha reação foi automática. Olhei para ela de relance, tentando manter o
rosto impassível, mas senti o calor subir pelo meu pescoço. Ayra, claro,
percebeu, e isso só fez seu sorriso se alargar.
— Se você terminou com as provocações, podemos focar na noite? —
Perguntei, cruzando os braços de leve, tentando manter minha postura firme.
— Claro, esposa. — Respondeu com aquele brilho malicioso nos olhos que
me deixava em alerta. — Vou ser um “cordeirinho” essa noite.
Eu ri baixinho, não conseguindo conter o som.
— Até parece que você consegue. — Respondi, parando e virando-me para
encará-la por um instante. — Você é um predador, assim como eu.
Ayra ergueu uma sobrancelha, claramente satisfeita com minha resposta. Ela
deu um passo à frente, invadindo meu espaço pessoal de uma forma tão
natural que parecia planejado.
— Ah, então você admite. — Disse, a voz baixa, quase sedutora. — Somos
mais parecidas do que você quer admitir, Zamorano.
Eu a encarei, sem recuar. Se ela achava que ia me intimidar, estava enganada.
— Parecidas? Não, não somos. Eu sei exatamente como controlar meus
instintos.
— E eu sei como usá-los. — Ayra respondeu sem hesitar, os olhos castanhos
brilhando intensamente. — Você sabe disso.
Por um momento, o salão desapareceu. Era como se estivéssemos em nossa
própria bolha. Mas, antes que pudesse responder, ela inclinou levemente a
cabeça, o sorriso provocador suavizando.
— Não se preocupe, esposa. — Disse, agora em um tom mais baixo, quase
íntimo. — Essa noite, o mundo inteiro vai ver quem realmente somos. E,
como sempre, vamos sair por cima.
Ela estendeu a mão para mim, um gesto que parecia tão casual, mas eu sabia
que tinha um significado mais profundo. Ayra estava ao meu lado, e, apesar
de todas as nossas diferenças, algo dentro de mim dizia que seu apoio fazia
tudo parecer… menos pesado.
Caminhamos pelo salão, e, como esperado, todos os olhos se voltavam para
nós. O brilho dourado das luzes refletia nos cristais dos lustres, e o ar era
pesado com uma mistura de poder e fingida cortesia. Os rostos no salão eram
conhecidos, influentes empresários, figuras políticas do México, e até
algumas celebridades que, evidentemente, estavam ali para se aliar ao poder.
— Reconhece aquele?
Ayra murmurou ao meu lado, inclinando-se levemente na minha direção, sem
jamais perder a compostura. Segui seu olhar até um político famoso,
conhecido por ser tão corrupto quanto astuto. Ele estava rindo, com uma taça
de champanhe na mão, enquanto cumprimentava alguém que parecia um
magnata da mídia.
— Claro. Ele está envolvido em vários esquemas com Arturo. — Respondi
baixinho, sem desviar o olhar. — E provavelmente tentando garantir que
mais portas se abram para ele.
Ayra soltou um leve som de desdém, mas não comentou mais nada.
Continuamos andando, alguns olhares ainda fixos em nós enquanto
cruzávamos o salão. Era impossível ignorar a tensão no ar, não apenas do
evento em si, mas do tipo de pessoas que estavam ali. Cada sorriso era uma
arma, cada aperto de mão, um contrato não verbalizado.
Finalmente, nossos passos nos levaram até o centro do salão, onde Lyza
Ferraro estava com sua esposa, Dyanne.
Lyza estava em um vestido preto impecável, o corte perfeito realçando sua
presença imponente. Ela era o tipo de mulher que não precisava dizer nada
para dominar um espaço. Ao lado dela, Dyanne contrastava com uma
presença mais suave. Vestida em um vestido vinho, ela sorria gentilmente
para os convidados que se aproximavam, como se fosse a ponte entre Lyza e
o resto do mundo.
Assim que nos aproximamos, Lyza foi a primeira a nos notar. Seu olhar frio e
analítico passou rapidamente por mim e Ayra, mas foi Dyanne quem deu o
primeiro passo, o sorriso gentil suavizando a tensão.
— Lira, Ayra. — Disse ela, estendendo a mão para nós. — Que bom que
vieram. Estávamos esperando por vocês.
Ayra apertou a mão dela com aquele sorriso provocador que nunca a
abandonava.
— Espero que não tenhamos desapontado.
Dyanne riu suavemente, mas antes que pudesse responder, Lyza interrompeu.
— Certamente não desapontaram. — Sua voz era baixa, mas carregava
aquela autoridade que fazia tudo ao redor parecer diminuir. Seus olhos
analisaram Ayra e depois se voltaram para mim, frios e calculistas. — Duas
forças opostas chegando tão… unidas. Claramente, mirei no que vi e acertei
no que não estava ao alcance, com o casamento de vocês.
Eu mantive minha expressão neutra, mas Ayra abriu um sorriso provocador
ao meu lado.
— Sabe como escolher bem, senhora Ferraro.
Ayra disse, inclinando ligeiramente a cabeça, com o tom cínico de quem
estava testando os limites. Lyza arqueou uma sobrancelha, como se estivesse
avaliando se valia a pena responder, mas antes que pudesse dizer algo,
Dyanne interveio.
— Eu diria que foi mais uma aposta ousada. — Disse Dyanne, com um
sorriso suave que quase mascarava o significado das palavras. Ela olhou
diretamente para mim, seus olhos gentis, mas cheios de intenção. — E uma
aposta que pode render muito, dependendo de como vocês duas jogarem suas
cartas.
— Jogamos muito bem, não é, Lira?
Ayra comentou, lançando-me um olhar.
— Estamos lidando com o que temos, e os resultados falam por si. —
Respondi, mantendo meu tom controlado, mas firme. — Não houve mais
problemas por nossa parte.
Lyza permaneceu em silêncio por um momento, mas o olhar que ela lançou
para Dyanne era quase de aprovação. Ela então deu um passo à frente, a
tensão entre nós foi mais palpável.
— Espero que estejam à altura do que está por vir. Não quero problemas
quando eu mostrar o que tenho em mente.
— Por qual motivo vai apresentar isso a nós e não a Arturo e Javier? —
Perguntei, mantendo meu tom neutro, mas firme.
Lyza sorriu, um gesto calculado que não atingiu os olhos. Era o tipo de
sorriso que dizia mais do que qualquer palavra.
— O futuro olha para trás, mas não se associa a ele. — Respondeu, sua voz
baixa, quase enigmática.
Dyanne, ao lado dela, tocou levemente o braço de Lyza, um gesto que
imediatamente suavizou o momento.
— Lira, Ayra, espero que aproveitem a noite. — Disse Dyanne, o sorriso
sincero que contrastava com o tom distante de Lyza. — Ainda temos muitos
convidados a receber.
Lyza deu um leve aceno, suas palavras penduradas no ar como uma promessa
ou um aviso. Então, sem dizer mais nada, ela se virou, acompanhada de
Dyanne, sua silhueta imponente desaparecendo na multidão.
Quando elas finalmente se afastaram, Ayra soltou um suspiro dramático,
cruzando os braços com um semblante irritado.
— Ela gosta de nos testar, não é?
— É o que ela faz de melhor.
Respondi, mas minha atenção permaneceu fixa nas figuras de Lyza e Dyanne.
Ayra seguiu meu olhar por um instante, mas logo voltou sua atenção para
mim, com aquele brilho impaciente que era tão característico dela.
— Porque ela junta todas essas pessoas aqui, nos coloca nesse jogo, e não diz
de uma vez o que quer?
— Porque essa é a estratégia dela, Ayra. Lyza nunca revela as cartas até que
tenha certeza de que vai ganhar. — Suspirei, enquanto observava o salão ao
nosso redor. — Isso não é uma festa. É um encontro de negócios onde ela
analisa todos.
— Ah, ótimo. Então estamos num tabuleiro, e ela é quem dita as regras.
— Sempre estivemos. — Retruquei, lançando-lhe um olhar. — A diferença é
que agora precisamos aprender a jogar tão bem quanto ela.
Ayra bufou, mas um sorriso curto escapou, como se admitisse, ainda que
relutante, que eu estava certa.
— E o que faremos agora? — Ela perguntou, inclinando-se levemente em
minha direção. — Vai informar seu pai?
— Vai informar Javier? — retruquei, Ayra negou.
— Ele não pode fazer nada aqui. E você?
— Arturo também não pode fazer nada aqui. — Dei de ombros e Ayra deu
um sorrisinho malicioso. — Agora, fazemos o que viemos fazer: mostrar que
estamos à altura do que esperam. E ouvir o que a Lyza quer propor… Acho
que somos as peças chaves e ela não quer os nossos “líderes” envolvidos.
— Ah, adoro quando você fala como se fosse uma general. — Ayra
provocou, sorrindo de canto.
— E você devia começar a agir como uma soldada obediente. — Respondi,
séria, mas não pude evitar um pequeno sorriso enquanto começamos a
circular pelo salão.
Enquanto nos movemos entre os convidados, senti que a tensão no ar não
diminuía. Lyza havia plantado algo em nossas mentes, e agora era nossa
responsabilidade decifrar o que exatamente estava em jogo.
Ayra, ao meu lado, parecia relaxada, mas eu sabia que seus olhos estavam
atentos a tudo ao nosso redor. Assim como os meus.
A noite estava apenas começando, e o verdadeiro jogo ainda estava por vir.
☙❧
Ayra Arellano
O salão estava cheio de conversas sussurradas, olhares avaliativos e risos
contidos. Era o tipo de ambiente que deveria me entediar, mas, por algum
motivo, desta vez, não me incomodava tanto. Talvez porque, pela primeira
vez, Lira e eu pareciamos funcionar como uma unidade sem esforço, como se
estivéssemos ensaiadas.
Enquanto interagimos com os convidados, notei como nossos ritmos se
complementam. Lira mantinha o tom sério e assertivo, enquanto eu suavizava
as bordas com comentários rápidos e olhares provocativos. Ela falava, e eu
seguia, ou vice-versa, e funcionamos. Não forçado, não planejado, mas
natural.
— Então, vocês acreditam que a aproximação dos cartéis pode ser benéfica?
— Perguntou um dos políticos, seu olhar se fixando em Lira com uma
curiosidade evidente.
— Se bem administrada, pode beneficiar a todos. — Lira respondeu, a voz
firme e controlada, mas com um toque de charme.
— E quem melhor para administrar do que a esposa dela?
Acrescentei, lançando um sorriso casual, mas com aquele toque de ironia que
fazia o homem rir e assentir, claramente impressionado. Lira lançou-me um
olhar de lado, mas não disse nada.
E assim seguimos, conversando, nos movendo pelo salão como se
estivéssemos dançando antes mesmo de chegarmos à pista.
Quando a música mudou para algo mais lento, sutil, senti os olhos dela em
mim.
— Acha que podemos dar um tempo no jogo político? — Perguntei,
inclinando-me levemente em sua direção.
Ela arqueou uma sobrancelha, avaliando-me por um momento antes de dar
um leve aceno.
— Desde que você não pise no meu pé.
Peguei sua mão e a conduzi para a pista de dança, ignorando os olhares que
nos seguiam. Posicionei minha mão na sua cintura, sentindo a leve resistência
dela antes que Lira finalmente relaxasse.
— Está estranhamente quieta, Zamorano. — Murmurei enquanto
começávamos a nos mover no ritmo da música.
— Estou observando. — Ela respondeu, com os olhos fixos em algo além de
mim.
— Sempre tão meticulosa. — Inclinei-me mais perto, sussurrando. — O que
está pensando?
— Que estamos cercadas de oportunidades… e armadilhas.
Eu ri baixinho, minha mão apertando sua cintura levemente.
— Não consegue desligar nem por um segundo, consegue?
Ela me olhou, e pela primeira vez naquela noite, vi um pequeno sorriso se
formar em seus lábios.
— E você não consegue parar de flertar, não é?
— É o meu charme natural.
A música continuava, e a proximidade entre nós parecia preencher o espaço
com algo que não estava lá antes. Sem pensar muito, deixei meus dedos
deslizarem pela curva da cintura dela, traçando linhas invisíveis pelo tecido
do vestido.
— Ayra… — Ela murmurou, mas havia uma suavidade no tom que me fez
sorrir.
— Você gosta disso.
Antes que ela pudesse responder, inclinei-me mais uma vez, desta vez
deixando meus lábios tocarem os dela. Foi um beijo breve, mas carregado de
algo mais. Quando me afastei, vi o brilho nos olhos dela, misturado com algo
que parecia satisfação.
— Pegajosa. — Ela disse, mas o sorriso em seus lábios entregava algo
completamente diferente.
— Sou? — Provoquei, mudando meu toque e deslizando as mãos para os
ombros dela. Lira respondeu sem hesitar, puxando minha cintura de volta
para ela. O gesto foi tão automático que me fez sorrir ainda mais. — Mas
acho que você gosta.
— Você se superestima. — Ela respondeu com um arquear de sobrancelha,
mas o brilho nos olhos dizia que eu estava certa.
— Já teve quantas namoradas, Zamorano?
Eu perguntei de repente, deixando o tom casual, mas sabendo exatamente o
que queria com aquilo. Ela franziu o cenho, surpresa com a mudança de
assunto.
— Que pergunta é essa?
— Ora, é só curiosidade.
Respondi, mantendo a expressão inocente. Ela hesitou por um momento,
avaliando-me como se tentasse decidir qual seria a melhor resposta.
— Por que perguntar de namoradas? Não posso ter tido namorados?
— Você não gosta de homens. — Retruquei, dando de ombros. — O jeito
como você sabe tocar numa mulher entrega tudo.
Ela bufou, mas não pareceu ofendida.
— Não sou do tipo que namora.
— Nem a Paola?
O nome saiu antes que eu pudesse pensar, e a surpresa no rosto dela foi
instantânea.
— Eu já disse. Paola é uma amiga.
— Você levou ela para cama? — Perguntei, a voz saindo mais séria do que
eu esperava.
— Ayra…
— Responda. Qual o problema?
Insisti, ignorando o olhar de advertência que ela lançou. Lira suspirou, mas
respondeu com a mesma firmeza que sempre carregava.
— Houve alguns encontros, sim. Mas isso acabou cedo. Nós nos tornamos
amigas.
— Hum… amigas. — Murmurei, sentindo um gosto amargo que não
consegui disfarçar. Era ridículo sentir ciúmes, mas ali estava eu. — Não
gosto dela.
Lira riu, uma risada curta que ecoou entre nós enquanto continuávamos a
girar no salão. O aperto dela na minha cintura ficou mais firme, me puxando
ainda mais perto.
— Você é implicante… — Disse, mas havia um toque de diversão em sua
voz.
— Se não tinha namoradas, só tinha parceiras sexuais naquele clube? —
Indaguei, e vi o sorriso dela desaparecer, dando lugar a uma expressão séria.
— Isso é algum tipo de interrogatório? — Ela perguntou, inclinando
ligeiramente a cabeça, os olhos fixos nos meus como se estivesse me
desafiando.
— Esposas não têm segredos. — Respondi, sussurrando, com um toque de
provocação.
Lira estreitou os olhos, e por um momento achei que ela fosse ignorar minha
provocação. Mas, ao invés disso, ela aproximou o rosto do meu, inclinando-
se até seus lábios roçarem minha orelha.
— Quer ouvir com todas as letras que apenas fodi mulheres aleatórias… e
que você é a única que já teve um título na minha vida?
A voz dela era baixa, rouca, carregada de algo que parecia mais honesto do
que eu esperava. O calor subiu pelo meu corpo, e a proximidade dela me
deixou sem palavras por um instante.
— Eu não estava pedindo tanto detalhe. — Respondi finalmente, tentando
manter o tom leve, mas minha voz saiu menos firme do que eu queria.
— Claro que estava. — Ela se afastou apenas o suficiente para me encarar, o
olhar dela fixo nos meus. — Você só queria ouvir do meu jeito.
Eu ri, balançando a cabeça, mas não consegui negar. Lira tinha esse talento
irritante de perceber mais do que eu dizia, e, por mais que me provocasse, eu
sabia que ela estava certa.
— Satisfeita, Arellano? — Perguntou, mas antes que eu pudesse responder,
girou-me novamente, fazendo-me perder o equilíbrio por um segundo
enquanto nossos corpos se alinhavam.
— Talvez. — Respondi, dando de ombros, mas no fundo, eu estava mais do
que satisfeita. — E você? Não vai me perguntar nada?
Lira me olhou, aqueles olhos cinzentos cheios de mistério. Então, como
sempre, ela deixou um sorriso enigmático se formar nos lábios antes de
responder.
— Não preciso. — Disse, com uma tranquilidade irritante. — Eu sei que
você é bissexual, que nunca teve um parceiro fixo, gosta de encontrar em
festas pouco selecionados e costuma deixar um rastro de corações partidos
toda manhã.
Eu arqueei uma sobrancelha, inclinando-me levemente para ela.
— Anda me investigando?
— Gosto de ser bem informada.
— Ou não conseguia deixar de me dar atenção? — Provoquei, apertando
meus braços ao redor de seu pescoço e me inclinando mais perto. — Quando
ainda éramos inimigas juradas, nunca pensou em me dar uma lição, na sua
cama, com um dos seus chicotes?
Os olhos dela cintilavam com algo que eu não conseguia identificar.
— Não seria uma “lição”, já que você parece gostar disso.
— Não desvie da pergunta, esposa! — Retruquei, mantendo o tom
provocador enquanto me aproximava ainda mais, nossos rostos agora apenas
a centímetros de distância.
— Você não está acostumada com ninguém que não cede ao seu joguinho,
não é, Arellano? — Lira murmurou, a voz baixa e carregada de algo que
parecia um desafio.
Eu sorri, deslizando meus dedos pela nuca dela, sentindo os músculos tensos
sob minha mão.
— Não responda uma pergunta com outra pergunta, Zamorano. Estou
esperando.
Ela suspirou, quase se contorcendo sob o meu toque. Eu sorri.
— Eu pensei. — Respondeu finalmente, a voz soando mais séria do que eu
esperava. — Mas não do jeito que você está imaginando.
A confissão me pegou de surpresa, mas antes que eu pudesse reagir, Lira me
girou mais uma vez, alinhando nossos corpos novamente.
— O que você pensou? — provoquei. Ela estreitou os olhos.
— Você está irritantemente curiosa.
— Por favor, me conta… — Voltei a me aproximar, colocando meu rosto ao
lado do seu. Sussurrando na sua orelha. — Não importa o quão sujo for.
Ela engoliu em seco. Pude ouvir o som, e o aperto ao meu redor se tornou
mais possessivo, os dedos dela pressionando a minha cintura com uma
firmeza que fez meu corpo inteiro reagir. Afastei meu rosto apenas o
suficiente para encontrar o olhar dela, escuro, intenso, e tão carregado de algo
que fez meu estômago se apertar.
— Me conta… — pedi, minha voz doce, quase um sussurro, mas cheia de
expectativa. Vi o exato momento em que Lira cedeu, seus olhos faiscando
como se a barreira que ela mantinha cuidadosamente tivesse se rompido.
— Pensei em amarrar você em uma cruz de Santo André, te açoitar com uma
vara até você não aguentar mais e depois fazê-la me servir... — A voz dela
era rouca, cada palavra carregada de uma intensidade que fez meu coração
disparar. — De preferência de quatro, amarrada, entre as minhas pernas,
ocupando essa sua boca atrevida.
O ar entre nós parecia ter desaparecido completamente. Meu corpo inteiro
respondeu às palavras dela, como se cada sílaba tivesse acendido uma chama
dentro de mim. Eu pisquei, sentindo minha respiração falhar por um instante,
mas logo recuperei o controle. Inclinei-me para frente, até que nossos rostos
estivessem a centímetros de distância novamente.
— Quer tentar? — Retruquei, incapaz de conter o sorriso que crescia nos
meus lábios.
Lira não respondeu imediatamente, mas o sorriso que surgiu em seus lábios
era predatório, perigoso. Ela apertou ainda mais minha cintura, sua mão
subindo lentamente pelas minhas costas, como se estivesse reafirmando sua
posse.
— Você não sobreviveria, Arellano. — Lira inclinou-se até que seus lábios
roçaram os meus, mas ela não me beijou. — Eu não queria que você saísse
viva desse jogo naquela.
— E agora? — Perguntei, desafiando-a enquanto inclinava minha cabeça, o
sorriso ainda presente, mas com um toque mais sério.
Por um momento, o silêncio entre nós foi tão intenso que parecia gritar. Lira
engoliu em seco, e o aperto nas minhas costas relaxou levemente.
— Agora é diferente. Temos um acordo.
— Não estou falando do acordo… — Retruquei, levantando minha mão e
traçando sua mandíbula com o dedo, um gesto deliberadamente lento. Queria
que ela sentisse o impacto de cada palavra. — Quando você me tem na sua
cama, não é pelo acordo. Você disse que sou sua, mas sei que não é só por
isso.
Os olhos dela ficaram mais escuros, o tom cinza agora tingido de algo mais
escuro .
— Tem razão, não é o acordo. — Lira disse, a voz baixa, mas firme. — É
você. Você é minha porque eu quero que seja.
As palavras dela, tão diretas, tão absolutas, fizeram meu coração acelerar. Eu
senti um calor subir pela minha pele, e, pela primeira vez naquela noite,
fiquei sem palavras. Lira tinha esse talento irritante de me desarmar
completamente quando queria.
— Convencida. — Murmurei, tentando esconder o impacto que suas palavras
tiveram em mim.
Ela deu um leve sorriso, mas havia algo perigoso nele, algo que fazia meu
corpo inteiro reagir.
— Chega… — Disse de repente, parando no meio da pista de dança, os olhos
fixos nos meus, mas com uma determinação que era impossível ignorar. —
Hora de voltar ao jogo político.
— Já? — Franzi o cenho, confusa por um momento com a mudança abrupta.
— Sim, vamos!
Ela segurou minha mão de forma quase casual, mas o gesto tinha um peso
que não passou despercebido. E juntas, começamos a nos mover pelo salão
novamente, com Lira liderando o caminho e eu ao seu lado.
Eu ri baixinho, com um calor que se espalhou pelo meu peito, algo que eu
não sabia explicar.
☙❧
Lyza & Dyanne
A noite estava em pleno curso, e a festa orquestrada por Lyza Ferraro parecia
uma sinfonia cuidadosamente composta. Políticos, empresários e figuras de
renome circulavam pelo salão iluminado, suas conversas eram uma mistura
de negócios e manipulações sutis.
Lyza, sempre observadora, mantinha-se de pé ao lado de Dyanne, o olhar fixo
nos convidados, mas a mente muito além do que via.
— A noite está indo como você imaginou? — Dyanne perguntou, sua voz
suave como sempre, mas carregada de interesse.
— Melhor. — Respondeu Lyza, sem desviar os olhos de um grupo de
políticos que parecia especialmente animado. — Todos os alvos importantes
estão aqui. O que cada um ganhará ou perderá dependerá de como jogarem
comigo esta noite.
Dyanne sorriu, o olhar brincando entre Lyza e os convidados. Sabia que, para
a esposa, noites como aquela eram jogos, e Lyza nunca perdia.
— E quanto a elas? — Perguntou Dyanne, inclinando ligeiramente a cabeça
em direção a Lira e Ayra, que agora estavam juntas perto do bar, uma ao lado
da outra, trocando olhares e sussurros.
Lyza acompanhou o olhar da esposa. Um sorriso lento surgiu em seus lábios
ao observar as duas mulheres.
Lira Zamorano, sempre controlada, com aquele ar de superioridade calculada,
agora se permitia pequenos momentos de suavidade ao lado de Ayra. E Ayra
Arellano, tão espontânea e provocadora, parecia mais contida, mas ainda
cheia de energia, enquanto sorria para algo que Lira dizia.
— Quando pensei no casamento delas, já via as faíscas. — Disse Lyza,
cruzando os braços. — Mas, vendo-as juntas agora… eu sei que acertei no
que não vi.
Dyanne arqueou uma sobrancelha, intrigada.
— E o que não viu?
— O que poderiam ser juntas. — Lyza inclinou a cabeça levemente,
avaliando cada detalhe da interação entre as duas. — Separadas, são forças
imensas. Unidas, são um investimento. Um que vai me trazer retornos muito
maiores do que imaginei.
Dyanne riu suavemente, tocando o braço de Lyza.
— Sempre pensando em lucros.
— É o que me mantém no controle, doce Dyanne. — Respondeu Lyza, com
um toque de diversão. — Mas você sabe que eu estou certa. Elas como casal
não são só poderosas, são lucrativas. E, principalmente, pelo que eu tenho em
mente.
— E o que exatamente você tem em mente?
Dyanne perguntou, o tom calmo, mas a curiosidade evidente. Lyza deu de
ombros, o sorriso enigmático crescendo.
— Paciência, querida. Primeiro, precisamos ver como elas jogam esta noite.
— Lyza acariciou a mão da esposa dentro da sua. — Quero testar a unidade
delas. Quero ter certeza de que não estão só atuando para mim, e que
funcionam realmente unidas.
Dyanne observou enquanto Lyza mantinha o olhar fixo nas duas.
— Seus testes não costumam ser muito “ortodoxos”.
— Algumas verdades só se mostram diante de situações não muito ortodoxas,
doce Dyanne. — A mafiosa deu de ombros. — Preciso tirar a prova delas.
— Você gosta de controlar tudo, até os relacionamentos alheios. — Disse
Dyanne, sorrindo com um toque de provocação.
— Eu prefiro pensar que estou criando oportunidades. — Lyza respondeu
com tranquilidade, enquanto seus olhos não deixavam Lira e Ayra. — E com
elas, acho que estou no caminho certo para transformar o que todos pensam
ser uma união conveniente em uma força impossível de ignorar.
— E quem mais vai lucrar com isso?
Lyza inclinou a cabeça levemente, os olhos brilhando com satisfação.
— Nós, Dyanne. Sempre nós.
☙❧
Lira Zamorano
O salão parecia respirar, pulsando com as conversas e negociações veladas
que aconteciam a cada canto.
Ayra e eu tínhamos nos mantido juntas até aquele momento, circulando com
propósito, mostrando uma unidade que até eu começava a acreditar ser mais
real do que performática. Mas então, ela se afastou, mencionando que
precisava ir ao toalete.
Eu permaneci no salão por alguns minutos, cumprimentando alguns
conhecidos, mas a demora dela começou a me incomodar.
Algo não parecia certo…
Decidi ir atrás dela. Passei pelos corredores menos movimentados do salão
até chegar ao toalete. Ao me aproximar, ouvi vozes. Uma delas era
inconfundível, o tom despreocupado de Ayra, mas havia algo mais. Era outra
voz, era de um homem, baixa, mas carregada de intenção.
Parei antes de ser vista, ficando na penumbra de uma coluna próxima.
— Você é inteligente, Arellano. — A voz do homem era calma, quase como
se estivesse tentando seduzi-la com palavras. — Alguém como você não
deveria ser apenas um peão nesse jogo.
— Peão? — Ayra respondeu, sua voz carregada com aquele tom provocador
que ela usava quando estava desconfiada. — Eu sou a esposa da Zamorano.
Isso parece bem longe de ser um peão.
— E quanto tempo isso vai durar? — Ele retrucou, dando um passo mais
perto. O homem era alto, bem vestido, e carregava uma de alguém perigoso.
— Você realmente acha que a Lira vai te dar espaço para crescer? Para ser
mais dentro da própria organização?
Eu senti meu corpo ficar tenso, mas permaneci no lugar, ouvindo cada
palavra, absorvendo cada detalhe. O mero fato dele estar perto dela me
deixou inquieta, e a situação se agravou com o que eu ouvia. Eu sabia o que
esse homem ia oferecer.
— E o que você sugere? — Ayra perguntou, o tom ainda despreocupado, mas
com um leve toque de curiosidade.
— Uma união. — Ele respondeu, com um sorriso que não tinha nada de
inocente. — Você está dentro do cartel da Lira, e isso facilita muito as coisas.
Pense nisso, Ayra. A destruição mais eficiente vem de dentro.
Eu senti meu coração acelerar, mas não por medo. Era raiva. Ele estava
propondo traição… E o pior. Ayra estava ouvindo e de alguma forma,
somente isso, foi capaz de me ferir.
— E o que você quer dizer com “destruição”?
Ayra perguntou, tranquilamente, como se o que estivesse ouvindo não fosse
um absurdo.
— Tirar a Lira do jogo, claro. — Ele sorriu vitorioso. — Você poderia liderar
uma força muito maior ao meu lado. E depois disso, nós trabalharíamos
diretamente para Lyza e eu te daria espaço. Podemos oferecer um novo
modelo de gestão, mais lucrativo, e, com a Lira e seu Cartel fora de jogo,
tudo ficaria mais simples.
Minhas mãos se fecharam ainda mais, as unhas cravando nas palmas. O peso
do que eu estava ouvindo parecia esmagador, mas o que realmente me corroía
era o medo de que Ayra pudesse sequer considerar aquela proposta.
— Interessante. — Ayra repetiu, o tom dela impossível de decifrar.
Meu coração parecia um tambor descompassado, cada batida mais pesada
que a anterior. “Por favor, Ayra, não faça isso comigo… Não faça isso…” O
pensamento repetia como um mantra em minha mente, mas, mesmo assim,
permaneci escondida, observando cada movimento, cada palavra.
O homem deu um passo mais perto, seu sorriso satisfeito deixando claro que
acreditava estar ganhando terreno.
— Você tem tudo a ganhar, Arellano. Pense no poder, na liberdade de não
estar presa às ordens da Lira ou de qualquer um. Você pode ser muito mais.
Ayra olhou as próprias mãos, inclinando levemente a cabeça, como se
considerasse a proposta. Meu estômago revirou…
— Estou te oferecendo um lugar ao topo. — Ele continuou. — Nós dois
podemos fazer isso acontecer. E com Lira fora do caminho, você terá
liberdade para reinar como quiser.
“Reinar.” A palavra ecoou em minha mente, e senti como se meu sangue
estivesse fervendo. Não era só a proposta, era a ideia de que alguém pudesse
tentar arrancar algo que era meu. Algo que, até agora, eu tinha começado a
considerar mais do que uma aliança de conveniência.
Eu não ia suportar vê-la aceitar. O pensamento martelava na minha mente,
consumindo-me a cada segundo. Por isso, estava prestes a agir, a me revelar.
Mas antes que pudesse, Ayra foi mais rápida.
Ela se moveu com uma precisão que parecia ensaiada. Sua mão subiu tão
rápido, acertando o nariz dele com tanta força que o som do osso quebrando
ecoou pelo corredor. O sujeito guinchou, cambaleando para trás, as mãos
indo automaticamente ao rosto enquanto o sangue jorrava pelos seus dedos.
— Cadela! — Ele grunhiu, a voz abafada pela dor.
Ayra inclinou a cabeça levemente, o olhar frio e calculado enquanto limpava
a mão no vestido com uma calma quase cínica.
— Considere isso misericordia. — Disse, sua voz baixa, mas carregada de
uma ameaça que fez meu corpo inteiro relaxar em um alívio que eu não
estava preparada para sentir.
O homem a encarou, os olhos injetados de fúria enquanto ainda pressionava o
nariz sangrando.
— Eu vou dar uma lição em você, sua vagabunda…
Ele tentou dar um passo em direção a ela, mas não chegou nem perto. Eu já
estava me movendo.
Antes que ele pudesse reagir, minha mão acertou suas costelas com força. O
impacto foi seco, e o som de algo se partindo reverberou no corredor. Ele
arfou, o corpo dobrando de dor, mas não tive paciência para deixá-lo se
recompor.
Em um movimento rápido, segurei-o pelo pescoço, pressionando-o contra a
parede com uma única mão. Meu aperto foi firme o suficiente para deixá-lo
lutar pelo ar, mas não o suficiente para apagá-lo. Ainda não.
— Não tente abordar ou ameaçar minha esposa novamente. — Minha voz
saiu baixa, gélida, cada palavra cortante. Meus olhos encontraram os dele. —
Ou vou destruir você.
O homem tentou falar, mas só conseguiu emitir sons engasgados, sua mão
subindo para tentar afastar a minha, sem sucesso. Eu mantive o olhar fixo no
dele, observando o momento exato em que a arrogância deu lugar ao pânico.
Quando finalmente o soltei, ele desabou contra a parede, ofegante, tossindo
como se tivesse sido arrastado para fora da água. Dei um passo para trás,
mantendo-me firme enquanto eu senti Ayra, ficar ao meu lado.
— Vá embora, agora. — Minhas palavras foram cortantes, um comando que
não deixava espaço para hesitação.
Ele me lançou um olhar carregado de ódio e humilhação, mas sabia que não
tinha escolha. Ainda pressionando o lado do corpo onde minhas mãos o
atingiram, o homem se afastou lentamente, tropeçando em seus próprios
passos enquanto tentava recompor alguma dignidade.
Ayra cruzou os braços, observando enquanto ele se afastava. Eu a encarei,
sem saber exatamente o que dizer. Mas ela me poupou.
— Você ouviu o que ele me ofereceu, não ouviu? — Sua voz era baixa, mas
carregada de um tom sério.
— Sim. — Respondi, sem sequer tentar mentir. Ayra suspirou, o som mais
frustrado do que exasperado.
— Ficou escondida até o último minuto, esperando a minha traição, não foi?
Dessa vez, não respondi. Algo na minha expressão ou no meu silêncio deve
ter entregado a verdade. O olhar de Ayra estreitou, e ela deu um passo à
frente, apontando o dedo diretamente no meu rosto.
— Sou tudo, menos desleal. — Declarou, sua voz firme, mas com uma nota
ofendida que me fez engolir em seco. — Se estou nesse acordo, eu vou
honrá-lo, Lira. Eu não brinco com isso.
Ela estava ofendida, claramente. E, pela primeira vez em muito tempo, senti
uma pontada de algo parecido com culpa. Eu sabia que ela tinha razão, mas,
naquele momento, não encontrei palavras para responder.
Então, sem pensar muito, ou talvez porque palavras não seriam suficientes,
segurei seu pulso, puxando-a para perto até que seu corpo colidisse com o
meu.
Antes que Ayra pudesse reagir, a empurrei contra a parede e capturei sua
boca com a minha. Mordisquei seu lábio inferior, sentindo o leve suspiro que
ela soltou contra minha boca. Ela cedeu, como sempre fazia, derretendo nos
meus braços.
Minha mão deslizou para sua cintura, segurando-a com firmeza enquanto
aprofundava o beijo, minha língua explorando a dela em uma dança lenta e
sensual. Quando o ar faltou, afastei meus lábios, mas apenas o suficiente para
deslizar beijos pela linha da sua mandíbula, sentindo seu corpo reagir a cada
toque.
— Vou te compensar por ser uma boa menina. — Murmurei contra sua pele,
o tom propositalmente baixo.
Pela visão periférica, notei a porta do toalete a poucos passos de distância.
Sem hesitar, segurei sua mão e a puxei comigo, empurrando a porta e
fechando-a com um clique firme.
Quando me virei para encará-la, Ayra estava encostada na pia, seus olhos
brilhando com algo entre selvageria e desejo. Ela estava mais linda do que
nunca.
— Vai me compensar como? — Ayra sussurrou, a voz baixa, mas carregada
de uma provocação que só ela conseguia fazer soar tão natural.
Eu não perdi tempo respondendo com palavras. Dei um passo à frente e a
capturei com um beijo possessivo, minhas mãos segurando sua cintura
enquanto outra subia para a nuca, puxando-a para mais perto. Não havia
suavidade no toque, era puro domínio, uma declaração silenciosa de que ela
era minha, só minha.
Ayra correspondeu ao beijo, mas não sem um leve suspiro de surpresa, como
se não esperasse a intensidade. Ela cedeu, sua postura relaxando enquanto
minhas mãos a mantinham exatamente onde eu queria.
— Você é tão gostosa... — Murmurei contra seus lábios antes de beijá-la
novamente, sentindo o gosto dela, a textura de sua pele aquecendo sob meus
toques. — É toda minha!
Com um movimento firme, empurrei-a contra a pia. Seus olhos arregalaram-
se por um momento, mas logo foram tomados por aquele brilho selvagem
novamente. Levantei-a, colocando-a sentada na borda da pia, enquanto meus
lábios deixavam os dela para deslizar pelo seu maxilar até o pescoço.
O cheiro dela, aquela mistura única que só ela tinha, e invadiu meus sentidos,
deixando-me completamente perdida. Eu a queria de um jeito que beirava a
loucura. Não havia mais razão, só desejo bruto e uma necessidade de marcá-
la.
Minha boca encontrou a curva perfeita da sua pele, e comecei a traçar beijos
demorados, descendo lentamente, sentindo o leve arrepio que corria pelo seu
corpo. Minhas mãos subiram pelo tecido justo de seu vestido, empurrando-o
para cima até revelar as coxas, quentes sob meus dedos.
— Vou te recompensar como merece… — Sussurrei contra a pele dela,
minha voz baixa, carregada de um desejo que ecoava no ambiente silencioso
do toalete.
Ayra prendeu a respiração, mas não disse nada. Suas mãos encontraram meu
rosto, me puxando para um beijo urgente, enquanto seus dedos deslizavam
pelo meu cabelo, prendendo-me ainda mais perto.
Eu sabia que havia muito mais naquela troca do que desejo, era sobre poder,
entrega, e, acima de tudo, a certeza de que éramos únicas uma para a outra
naquele momento. E, enquanto minhas mãos subiam ainda mais pelo vestido
dela, saboreei o som baixo de sua respiração pesada. Sabendo que essa era
apenas a primeira de muitas compensações que pretendia dar se ela
continuasse a me surpreender assim.
☙❧
Ayra Arellano
O mundo ao meu redor parecia ter desaparecido, levando junto a proposta
ridícula daquele homem. A ideia de aceitar, de machucar a Lira, parecia
errada de um jeito que eu não conseguia ignorar. Por mais estranho que fosse,
nosso acordo de casamento tinha criado algo parecido com lealdade.
Não era apenas um contrato; havia algo mais que me fazia hesitar, algo que
me prendia a ela de uma maneira que eu não esperava. Traí-la, mesmo em
teoria, não era uma opção.
Eu suspirei. Não havia som, exceto o da minha respiração irregular e o leve
sussurro da voz dela contra minha pele. “Vou te recompensar como
merece…” Aquelas palavras ecoaram em minha mente, como uma promessa
feita apenas para mim.
Os lábios de Lira estavam quentes e exigentes contra os meus, mas o que me
desarmava eram suas mãos. Firmes, possessivas, movendo-se pelo meu corpo
como se ela soubesse exatamente onde me tocar para me fazer perder o
controle. Quando seus dedos subiram mais pelo meu vestido, empurrando o
tecido para cima, eu senti meu corpo inteiro se incendiar.
Ela abriu minhas coxas com um movimento deliberado, suas mãos apertando
a carne exposta. Eu não consegui evitar; minha cabeça caiu levemente para
trás, um gemido rouco escapando de meus lábios antes que pudesse segurá-
lo.
— Esposa…
Murmurei, o som mais um lamento do que uma palavra, enquanto minhas
mãos encontravam os ombros dela, segurando com força como se precisasse
de apoio para não desmoronar.
O toque dela por cima da minha calcinha foi elétrico, e eu soube
imediatamente que ela podia sentir o quão molhada eu estava. O sorriso que
surgiu em seus lábios enquanto pressionava mais forte contra mim fez meu
coração disparar ainda mais.
Ela inclinou-se, seus lábios encontrando meu pescoço novamente, beijando e
mordiscando com uma intensidade que era tão controlada quanto selvagem.
Eu me agarrei a ela, desesperada, sentindo cada toque, cada beijo, cada
movimento.
Lira estava no comando, e eu só queria me perder nela.
Senti sua mão afastar minha calcinha, deslizando o tecido para o lado,
enquanto seus dedos encontravam meu sexo. O primeiro toque foi como um
choque elétrico, minha respiração travou, e meu corpo reagiu de um jeito que
eu não conseguia controlar.
Um gemido escapou dos meus lábios, sem filtro, sem vergonha.
Ela se afastou por um momento, me encarando. Seus olhos cinzentos estavam
mais escuros agora, carregados de um desejo que parecia querer me
consumir. Lira inclinou-se para frente, mordendo meu lábio inferior com uma
precisão provocante antes de sorrir.
Mas então, ela se afastou, tanto os lábios quanto as mãos, deixando-me com
uma sensação de vazio que quase me fez reclamar. Antes que eu pudesse
reclamar, Lira caiu de joelhos entre as minhas pernas, suas mãos puxando
meu quadril mais para frente com um movimento firme, possessivo.
Eu mal tive tempo de processar antes que sua boca estivesse em mim. O
calor, a pressão, a intensidade, tudo era demais e exatamente o que eu
precisava. Minha cabeça caiu para trás, e um gemido rouco escapou de mim
enquanto minhas mãos instintivamente agarravam os cabelos dela,
segurando-a ali, como se minha vida dependesse disso.
Eu me movi contra sua boca, incapaz de controlar o ritmo, morrendo com
cada beijo, cada chupada que ela me dava. A língua dela era um tormento,
circulando meu clitóris com uma precisão que beirava o cruel. Ela sabia
exatamente o que estava fazendo, cada movimento calculado para me levar
ao limite e depois me puxar de volta, apenas para começar tudo de novo.
Seus ombros mantinham minhas pernas abertas, recusando-me qualquer
alívio ou escape. Eu estava completamente vulnerável, completamente dela.
Quando finalmente olhei para baixo, vi seus olhos fixos em mim, intensos,
completamente focados, como se eu fosse o centro do universo dela naquele
momento. Foi demais. O desejo, a pressão, a visão de Lira de joelhos, me
adorando daquele jeito… Tudo me quebrou.
Meu corpo se arqueou enquanto um orgasmo intenso me consumia, meu
nome escapando dos meus lábios em um grito alto e incontrolável. “Lira…”
Eu me desfiz por completo, e ela permaneceu ali, firme, como se fosse a
âncora que me segurava enquanto eu perdia o chão. Meu corpo cedeu, e eu
me apoiei na parede atrás de mim. Era uma benção estar sentada, porque as
minhas pernas viraram gelatina.
Senti os movimentos precisos de Lira enquanto ela arrumava minha calcinha
de volta no lugar. Ela se levantou com facilidade, suas mãos firmes em minha
cintura, forçando-me a enrolar as pernas ao redor de sua cintura. Antes que eu
pudesse dizer qualquer coisa, senti o calor dos seus lábios contra minha
garganta, os beijos descendo lentamente pela extensão do meu pescoço até
minha orelha, cada toque me provocando arrepios que percorriam minha
espinha.
— Eu recompensei você bem? — Lira sussurrou, a voz rouca, mas carregada
de uma provocação tranquila que só ela conseguia fazer soar tão natural.
Ela se afastou o suficiente para me encarar, e eu me vi presa naquele olhar
cinzento que parecia enxergar mais do que eu gostaria de admitir. O batom
manchado em seus lábios, misturado com a umidade do meu próprio desejo,
era a coisa mais sexy que eu já havia visto. Não resisti. Segurei seu rosto
entre as mãos, os dedos firmes contra sua pele quente, e a puxei para um
beijo urgente, carregado de tudo o que eu sentia naquele momento.
Eu queria mais. Queria arrancar cada peça de roupa dela ali mesmo, sem me
importar com onde estávamos. Mas, ao invés disso, me afastei por um
segundo, com nossas respirações misturando-se, e sussurrei contra seus
lábios:
— Você é um demônio do sexo, Zamorano. — Meus olhos estavam cravados
nos dela, meus lábios ainda roçando os seus. — Se um dia você tocar em
outra pessoa assim como fez comigo, eu mato a pessoa e depois dou uma
surra em você.
A risada dela foi instantânea, genuína, e tão inesperada que quase me fez
esquecer como se respira. O som era leve, descontraído, tão diferente do
controle rígido que ela geralmente demonstrava. Lira inclinou-se, os olhos
brilhando de diversão, e me deu um pequeno beijo nos lábios, suave demais
para o calor que ainda pulsava entre nós.
Naquele momento, acho que descobri que queria fazer sexo quente com ela,
mas depois ter momentos carinhosos como aquele.
— Certo, vou ter isso em mente. — Ela murmurou, o sorriso ainda presente.
— Sua garotinha gananciosa e egoísta.
Eu ergui minha mão, exibindo o anel de casamento diante dela, com um
sorriso travesso dançando nos meus lábios. Lira franziu o cenho, mas não
disse nada, me observando atentamente.
— Sua corrente está em mim, e a minha em você. — Disse, minha voz firme,
mas com uma suavidade que nem eu esperava. — Então acho que posso ser
gananciosa e egoísta.
Lira me observou por um momento, aqueles olhos cinzentos queimando de
intensidade. Então, sem dizer nada, ela segurou minha mão e inclinou-se,
pressionando os lábios no anel de casamento que eu acabara de exibir.
O gesto foi tão inesperado, tão deliberado, que senti um aperto no peito e
uma revoada de borboletas no estômago. O calor subiu pelo meu pescoço, e,
pela primeira vez, acho que fiquei sem palavras.
Antes que pudesse processar o que estava sentindo, um som repentino ecoou
pelo banheiro: três batidas firmes na porta.
Lira e eu nos sobressaltamos, nossos corpos congelando por um instante.
— Terminaram? — A voz de Lyza soou do outro lado, carregada de
sarcasmo e aquele tom cínico que só ela tinha. — Ou preciso deixar mais
alguns minutos? Porque eu realmente preciso apresentar algo importante para
vocês.
Troquei um olhar rápido com Lira, que parecia tão surpresa quanto eu,
embora sua expressão rapidamente se fechasse. A interrupção nos tirou
daquele momento como um balde de água fria.
— Essa mulher… — Lira murmurou baixinho, claramente irritada, mas havia
algo quase cômico no brilho frustrado de seus olhos.
Eu estava tentando regular minha respiração, o coração ainda acelerado,
enquanto olhava para a porta como se Lyza pudesse enxergar tudo o que
havia acabado de acontecer. Definitivamente, não esperávamos por isso.
Lira se afastou de mim, mas não sem antes me ajudar a descer da pia. Suas
mãos firmes seguraram minha cintura, e ela me encarou quando percebeu
meus joelhos fraquejarem levemente.
— Está bem? — Sua voz saiu baixa, quase suave, com uma nota de
preocupação que provocou uma pontada estranha no meu peito.
“Ah, Ayra, pare com isso…” Meu Deus, eu disse a mim mesma, tentando me
recompor. Mas parecia impossível quando tudo o que passava pela minha
cabeça era o quanto o que ela tinha feito comigo havia me deixado
completamente sem juízo.
— Sim, estou bem. — Limpei a garganta, tentando soar mais controlada. —
Venha aqui.
Puxei-a gentilmente pelo ombro, ajeitando seu batom borrado e alisando seu
cabelo. O jeito como Lira pacientemente deixou que eu fizesse isso, sem uma
única reclamação, foi estranhamente adorável.
— Morreram aí dentro? — A voz de Lyza soou novamente, cortando o
momento como uma lâmina.
Revirei os olhos, irritada com a interrupção.
— Estamos saindo. — Respondi entre os dentes, enquanto Lira soltava um
suspiro exasperado.
Ela ergueu a mão, limpando algo no meu pescoço e depois no meu lábio.
Outra vez senti borboletas no estômago.
— Vamos logo. — Ela pegou minha mão, o toque firme mas controlado,
enquanto voltava a vestir sua máscara usual de compostura.
Apesar disso, eu ainda me sentia estranhamente tímida. Meu rosto parecia
estar quente demais enquanto ela abria a porta, e ali estava Lyza, esperando
com aquele sorriso cínico que sempre parecia saber demais.
— Algum problema, senhora Ferraro, para vir nos buscar no toalete? — Lira
perguntou.
— Nenhum. — Lyza respondeu, o tom seco, mas carregado de cinismo. —
Vocês apenas passaram no teste.
— Teste? — Franzi o cenho, tentando entender o que ela queria dizer.
— Não vem ao caso. — Ela sorriu de forma enigmática antes de se virar,
acenando para que a seguíssemos. — Vamos.
Troquei um olhar rápido com Lira, e parecia que chegamos à mesma
conclusão silenciosa: a abordagem que eu sofri devia ser o tal “teste” da
Lyza. Aquela mulher era uma verdadeira manipuladora.
Sempre jogando, sempre um passo à frente. E, como de costume, estávamos
dançando no ritmo dela.
Acompanhamos Lyza pelo corredor até uma sala privada no fim do corredor.
As portas de vidro se abriram automaticamente, revelando um espaço
luxuoso, mas discreto, com iluminação baixa e um ambiente que exalava
exclusividade.
Lira e eu nos sentamos em um dos sofás de couro preto. Enquanto ela soltava
minha mão, eu deixei os dedos escorregarem, mantendo um toque leve em
seu braço. Não foi intencional, simplesmente fiz, e Lira não se incomodou.
Lyza ocupou a poltrona diante de nós, com a postura relaxada, mas os olhos
afiados como uma lâmina.
— Espero que a noite tenha sido “interessante” para vocês. — Lyza
começou, os olhos indo de Lira para mim. — Porque agora vamos ao que
realmente importa.
Eu e Lira trocamos um olhar rápido antes de focarmos novamente na mulher
à nossa frente.
— Quero substituir o fentanil. — Lyza disparou sem rodeios.
Um silêncio caiu sobre a sala. Lira franziu o cenho imediatamente, e eu senti
a tensão aumentar em seus ombros.
— Substituir? — Lira perguntou, a voz carregada de ceticismo. — Está
falando de abrir mão do mercado mais lucrativo da América do Norte?
Lyza sorriu de leve, o tipo de sorriso que fazia parecer que ela estava sempre
dois passos à frente.
— Não estou falando de abrir mão de nada. — A mafiosa disse com
tranquilidade. — Estou falando de atacar o mercado de mais uma forma que
ninguém espera. Concentrar toda a produção de alternativas mais seguras e
mais lucrativas no México, sob a administração de vocês duas.
— Alternativas mais seguras? — Perguntei, arqueando uma sobrancelha.
— Sintéticos mais sofisticados, com margens de lucro maiores e menor risco
de chamar a atenção das autoridades, desde que o fentanil está na mira das
fiscalizações. Já os produtos que estou propondo, nós controlaremos do início
ao fim da cadeia sem as dores de cabeça usuais.
Lira descruzou as pernas, inclinando-se levemente para frente.
— E o que acontece com Arturo e Javier?
— Eles ficam onde estão. — Lyza respondeu, sem hesitar. — Mas o
casamento de vocês me dá uma vantagem. Uma autonomia com conexões
importantes. Vocês duas serão minhas mãos nesse projeto, sem as
interferências das velhas guardas.
A tensão no ar era palpável. Eu sentia os olhos de Lira em Lyza, avaliando
cada palavra, enquanto minha mente trabalhava rápido para entender as
implicações disso.
— E por que nós? — Lira finalmente perguntou.
— Porque vocês têm algo que eles não têm. — Lyza inclinou-se ligeiramente
para frente, os olhos brilhando com convicção. — Unidade. Capacidade de
adaptação. E, principalmente, algo a provar. Vocês são a próxima geração, e
este é o momento de tomarem o controle.
— E o que impede Arturo e Javier de agirem pelas nossas costas? Esse seu
“acordo” parece uma bomba-relógio com nosso nome escrito.
Fiz a “pergunta de milhões”. Lyza se recostou na poltrona, como se estivesse
esperando por essa pergunta.
— Vocês acham que Arturo ou Javier têm poder suficiente para me desafiar?
— Ela disse despreocupada. — É um acordo comigo. Isso é tudo o que
precisam de explicações.
Lira soltou um pequeno suspiro, passando a mão pelo queixo.
— E se recusarmos?
— Isso não é uma oferta, Zamorano. É um movimento inevitável. A única
escolha que têm é se querem estar no comando ou não.
Troquei um olhar com Lira novamente. Havia uma tensão em seus olhos, mas
também algo que eu reconhecia: determinação.
— Concentrar toda a produção no México não é um risco? — Eu pressionei.
— Se algo der errado, somos o único alvo. Um ataque coordenado ao
território, e estamos acabadas.
Lyza sorriu de canto, mas dessa vez havia algo mais sombrio em sua
expressão.
— Vocês acham que estou sugerindo isso sem um plano? Tudo foi calculado.
A infraestrutura, a proteção, os canais de distribuição. Vocês não estarão
sozinhas nisso. Estaremos todos protegidos. Mas preciso de pessoas que
saibam executar sem hesitação.
— E os cartéis locais? — Lira questionou, cruzando as pernas novamente. —
Pois assumir uma produção desse porte e venda, vai mexer com eles.
— Uni vocês duas também pela experiência que já tem em por inimigos nos
lugares. — Lyza respondeu, inclinando-se para frente novamente. — Então
se alguém dá problema… bem, vocês sabem lidar com isso.
Eu apertei levemente o braço de Lira, um gesto quase inconsciente, mas ela
olhou para mim, como se estivesse buscando minha opinião.
— Isso é muito mais do que uma simples “proposta”. — Disse, virando-me
para Lyza. — Você quer nos colocar contra Arturo e Javier, mesmo que
indiretamente. Quer criar uma divisão.
— Não. — Lyza corrigiu. — Quero criar um novo paradigma. Arturo e Javier
são o passado, atrelados a acordos e ideias ultrapassados. Vocês são o futuro.
É simples assim.
Lira estreitou os olhos, mas havia algo em sua postura que indicava que ela
estava considerando.
— Se aceitarmos, queremos supervisão total. — Lira finalmente disse, sua
voz firme. — Nada entra ou sai sem nossa autorização direta. Sem
intermediários. E sem interferência sua.
Lyza sorriu, como se já esperasse essa resposta.
— Vocês terão o controle que merecem. E isso é apenas o começo.
Eu respirei fundo, sentindo a tensão no ar diminuir ligeiramente, mas sabia
que aquilo era apenas a ponta do iceberg.
— Se isso der errado, quem será responsabilizado? — Perguntei, mantendo
meu tom firme.
Lyza riu baixinho, um som seco e cortante.
— Se der errado, não haverá ninguém para responsabilizar. Porque não
haverá falhas.
Lira trocou mais um olhar comigo antes de estender a mão para Lyza.
— Estamos dentro. Mas lembre-se, Ferraro, se você tentar nos usar como
peças descartáveis, verá que somos muito mais do que isso.
Lyza apertou a mão de Lira, um sorriso satisfeito nos lábios.
— Espero que sejam. Porque eu nunca jogo para perder.
Eu apertei levemente o braço dela, e ela me lançou um olhar breve, mas
carregado de significado. Estávamos juntas agora num novo acordo, e não
havia mais espaço para dúvidas.
☙❧
Lira Zamorano
O trajeto de volta ao hotel foi envolto em um silêncio peculiar. Não era
incômodo, mas carregado de pensamentos que ambos sabíamos que
precisavam ser processados.
Ayra estava ao meu lado no banco do carro, a cabeça encostada na janela
enquanto observava a cidade passar. Seu perfil estava iluminado pelas luzes
da rua, e eu percebi que ela estava tão perdida em sua mente quanto eu.
A proposta da Lyza havia sido muito mais do que um simples negócio. Era
um jogo calculado, arriscado, onde cada movimento precisava ser feito com
precisão cirúrgica. Ela nos colocava em uma posição que eu nunca tinha
imaginado, mas, ao mesmo tempo, era impossível negar o potencial disso.
Quando finalmente entramos no hotel, Ayra jogou os sapatos de salto de lado
e suspirou aliviada, enquanto eu me dirigia até o bar improvisado no canto da
sala da suíte. Servi um copo de uísque para mim e um para ela, entregando-o
sem uma palavra.
— Então, o que acha que acabamos de aceitar? — Perguntei, finalmente
quebrando o silêncio.
Ayra deu um gole longo no uísque antes de responder.
— Um campo minado com promessas de ouro no final. — Ela deu de
ombros, recostando-se no sofá e me olhando. — Mas você sabe que não
tínhamos escolha. Essa mulher não aceita um “não”.
— Eu sei. — Respondi, sentando ao lado dela e apoiando meu copo na mesa
de centro. — Mas Arturo e Javier não vão aceitar essa movimentação de
forma pacífica. E Lyza sabe disso.
Ayra franziu o cenho, seu dedo traçando o contorno do copo em sua mão.
— Ela sabe. Porém ela também sabe que nós somos as únicas que podem
fazer isso funcionar. — Ayra virou-se para mim, um brilho intenso em seus
olhos. — E, honestamente, eu gosto de pensar que podemos. Você não gosta
de perder, Zamorano. Nem eu. Isso é algo que podemos transformar em algo
grande. Algo nosso.
Houve algo no tom dela que me fez encará-la por um momento mais longo
do que eu pretendia. Eu suspirei.
— Temos que pensar como vamos lidar com isso.
Ayra riu baixinho, colocando o copo de lado.
— Acho que pensar demais não vai nos levar a lugar algum hoje. — Ela disse
suavemente, colocando as mãos no meu ombro. — Talvez devêssemos
relaxar.
— Ayra… — Comecei, mas minha voz soou mais fraca do que eu pretendia.
— Shhh… — Ela colocou o dedo nos meus lábios, sorrindo de lado. —
Deixe isso para amanhã.
Seus dedos passaram para o fecho do meu vestido, puxando-o com habilidade
antes de deixá-lo escorregar pelos meus ombros. O ar fresco da suíte tocou
minha pele, mas o calor do toque de Ayra era o que realmente me afetava.
Quando ela começou a tirar a própria roupa, eu me vi incapaz de desviar o
olhar. Era como se cada movimento dela fosse calculado para me prender em
uma espécie de transe. E, de alguma forma, estava funcionando.
Ela segurou minha mão e me conduziu até a cama. Deitamos juntas, o corpo
dela pressionado contra o meu. A sensação era tão reconfortante quanto
avassaladora.
— Amanhã decidimos como vamos lidar com o mundo… — Ela murmurou
contra meu pescoço, antes de pressionar um beijo ali. — Hoje vamos apenas
nos perder.
Eu senti o calor do corpo de Ayra encostando nas minhas costas, enquanto
nos ajeitamos na cama. Estávamos deitadas lado a lado, mas ela se moveu,
acomodando-se atrás de mim, seus braços envoltos na minha cintura.
Os dedos de Ayra começaram a traçar pequenos círculos preguiçosos na
minha barriga, suas unhas curtas roçando levemente minha pele, quase como
se ela estivesse brincando. Fechei os olhos por um momento, tentando
controlar o ritmo do meu coração.
— O que está fazendo? — Perguntei, minha voz saindo mais suave do que eu
esperava.
— Relaxando você. — Ela respondeu, mas sua voz carregava aquele tom
característico de provocação que só Ayra tinha.
Seus dedos continuaram o trajeto preguiçoso, explorando minha barriga e
descendo, brincando. Senti seus lábios roçarem meu pescoço, e o leve toque
foi o suficiente para que eu me arqueasse involuntariamente, encostando
ainda mais meu corpo contra o dela. Seus dedos subiram, alcançando meus
seios, suas carícias agora mais decididas.
— Você não tem ideia de como eu queria fazer isso com você… —
Ayra murmurou, enquanto seus dedos circulavam meus mamilos, firmes, mas
com uma suavidade que me fez prender a respiração. Eu gemi baixo, incapaz
de me controlar. Suas palavras e toques estavam me consumindo de um jeito
que ninguém jamais conseguiu.
De propósito, seus dentes mordiscam meu lóbulo. Outra vez ela me arrancou
um gemido.
Os dedos de Ayra deslizaram de volta para a minha barriga. Minha respiração
ficou mais pesada, e senti cada músculo do meu corpo se retesar, enquanto o
desejo crescia dentro de mim.
— Ayra… — Murmurei, meu tom quase implorando.
— O que você quer, Lira?
Ela sussurrou contra minha pele, seus lábios agora pressionados no meu
ombro.
Eu não respondi. Não precisava.
Meu corpo falou por mim quando movi meus quadris levemente, buscando
mais do que ela estava me dando. Ayra riu baixo, uma gargalhada grave e
rouca que enviou ondas de calor por todo o meu corpo.
— Tudo bem. Eu dou o que você quer, Zamorano.
Seus dedos finalmente deslizaram para o meu centro. O primeiro toque foi
como uma explosão de eletricidade, e um gemido escapou dos meus lábios
antes que eu pudesse contê-lo.
Ayra deslizou os dedos, provocando meu clítoris a cada toque. Ela começou
devagar, explorando cada parte de mim com movimentos lentos e calculados.
Seus dedos eram habilidosos, e cada toque parecia me levar para mais perto
de um abismo que eu ansiava alcançar.
Quando sua outra mão voltou para os meus seios, apertando levemente, eu
me virei o máximo que consegui, capturando seus lábios nos meus. O beijo
foi urgente, cheio de necessidade e desejo, mas também de algo mais. Algo
que eu ainda não estava pronta para nomear.
Ayra me dominava com facilidade, e, pela primeira vez, não me importei em
ceder. Eu sabia que estava completamente entregue a ela. Quando ela usou
dois dedos para me penetrar, movendo-se com uma precisão
exasperantemente lenta, o prazer começou a se acumular dentro de mim em
ondas insuportáveis.
Eu gemi, agarrando os lençóis com tanta força que minhas unhas pareciam
cravar neles. Ayra não dizia nada, me devorando em cada uma das minhas
reações. Cada vez que seus dedos entravam mais fundo, um novo gemido
escapava dos meus lábios, minhas costas arqueando involuntariamente para
buscar mais contato.
— Você é linda assim… — Ayra murmurou, os lábios descendo pelo meu
pescoço, alternando entre beijos suaves e mordidas que deixavam minha pele
formigando.
O polegar dela começou a circular meu clitóris com movimentos lentos,
quase torturantes, enquanto os dedos continuavam sua exploração dentro de
mim.
— Ayra… — Murmurei, minha voz arrastada e suplicante.
— Diga o que quer, Lira. — Ayra sussurrou contra a minha orelha, seus
dentes roçando o lóbulo antes de morder suavemente.
— Mais… mais… — Foi tudo o que consegui dizer, e ela atendeu.
Seus dedos aumentaram o ritmo, cada movimento mais decidido e profundo.
O prazer acumulado dentro de mim se tornou uma pressão insuportável, e
meu corpo começou a tremer involuntariamente. Minhas pernas se apertaram
ao redor da mão dela, enquanto meu corpo procurava mais proximidade.
— Isso… é isso… — Ayra murmurou, a voz rouca e carregada de desejo. —
Quero você assim…
Eu senti o clímax me atingindo como uma explosão, cada músculo do meu
corpo se contraindo enquanto um gemido alto e rouco escapava dos meus
lábios. Minha cabeça caiu contra o travesseiro, os olhos fechados enquanto a
onda de prazer me dominava completamente.
Ayra não parou, continuando a me guiar através de cada tremor, cada
pulsação, até que meu corpo finalmente cedeu, relaxando completamente
contra o colchão. Minha respiração era pesada, mas ainda assim consegui
abrir os olhos, apenas para encontrá-la se movendo sobre mim. Ela me
observava com aquele sorriso presunçoso que, de algum jeito, eu adorava
odiar.
— Mais relaxada agora, esposa? — Ayra murmurou antes de se inclinar para
me dar um beijo leve, quase travesso, mas ainda assim cheio de provocação.
Eu não consegui evitar um sorriso, mas rapidamente o substituí por ação.
Segurei seu rosto entre as mãos e a puxei para um beijo de verdade, profundo
e sensual, onde minha língua encontrou a dela em um ritmo que nos fazia
perder o fôlego.
— Ainda preciso relaxar mais… — sussurrei contra seus lábios, antes de
girar nossos corpos com um movimento ágil, ficando por cima dela.
A forma como Ayra me olhava, com aquele misto de surpresa e desejo, só
alimentava o calor que queimava em mim. Desci meus lábios até seu
pescoço, mordiscando suavemente enquanto minhas mãos exploravam seu
corpo. O gemido que escapou de seus lábios quando beijei seus seios foi uma
recompensa imediata.
— Estou totalmente disposta a ajudar você… — Ayra respondeu, o sorriso
provocador permanecendo enquanto suas mãos deslizavam pela minha
cintura, puxando-me para mais perto.
Ajustei meu corpo, encaixando-me entre suas pernas enquanto minha mão
deslizava lentamente por sua barriga até encontrar seu sexo. O calor e a
umidade que senti me fizeram arfar.
— Ayra, você está tão molhada… — murmurei, minha voz rouca. — Eu
quero provar você de novo.
Ela sorriu contra os meus lábios, mas segurou minha nuca com firmeza,
obrigando-me a olhar diretamente em seus olhos.
— Tem a noite toda para fazer o que quiser comigo. — Ayra sussurrou, o
tom baixo e carregado de desejo. — Mas agora… só fode comigo.
Suas palavras acenderam algo em mim. Inclinei-me para beijá-la novamente,
mordendo seu lábio inferior antes de ajustar meu corpo, encaixando-me ainda
mais perto entre suas pernas. Minhas coxas pressionaram contra as dela,
nossos quadris se movendo juntos em um ritmo que começou lento, mas
rapidamente ganhou intensidade.
O som dos nossos gemidos preenchia o quarto, cada movimento criando um
atrito delicioso que fazia minha pele arrepiar. As unhas de Ayra arranhavam
minhas costas levemente, enquanto ela arqueava o corpo, pressionando-se
mais contra mim.
— Lira… — ela gemeu meu nome, sua voz rouca, carregada de prazer e
urgência.
Nossos corpos se moviam em sincronia perfeita, um ritmo selvagem que nos
levava cada vez mais perto do limite. Inclinei-me novamente, beijando seu
pescoço e descendo até sua clavícula enquanto nossos movimentos se
tornavam mais desesperados, mais intensos.
— Você é minha, Ayra… — murmurei contra sua pele, minha respiração
irregular. Eu estava tão perdida. — É só minha…
Ela respondeu com um gemido alto, seus quadris encontrando os meus em
um último movimento antes de seu corpo se arquear completamente,
entregando-se ao clímax. A visão dela nesse momento foi o suficiente para
me fazer desmoronar logo em seguida, um grito abafado escapando de meus
lábios enquanto o prazer me consumia.
Ficamos ali, nossas respirações descompassadas preenchendo o silêncio, os
corpos ainda entrelaçados enquanto a onda de prazer lentamente se dissipava.
Ayra abriu os olhos e me encarou com um sorriso preguiçoso, mas satisfeito.
— Mais relaxada agora, esposa?
Ela repetiu, provocando, mas sua voz carregava uma nota de carinho que me
desarmou completamente. Eu ri baixinho, deitando-me ao lado dela e
puxando-a para meus braços, sem pensar duas vezes.
— Por enquanto, sim.
Minha voz saiu baixa e rouca. Os meus dedos deslizavam suavemente pelas
costas dela. Ayra riu, um som leve que reverberou pelo quarto e se espalhou
pelo meu peito, aquecendo tudo dentro de mim. Foi a coisa mais doce que já
ouvi.
CAPÍTULO ONZE
Ayra Arellano
O som da voz dela me tirou do sono. Não foi abrupto, nem impaciente. Era
apenas… gentil.
— Ayra, chegamos.
Senti a mão da Lira deslizar suavemente pelo meu braço, um gesto que
parecia natural, que fez meu coração preguiçoso pular uma batida errada.
Eu pisquei os olhos algumas vezes, ajustando-me à luz suave que entrava
pelas janelas do jatinho. Meu corpo inteiro protestava contra a ideia de se
mover. E como poderia ser diferente?
A noite passada havia sido um teste de resistência física. Lira me levou até o
limite do cansaço com todo aquele “fogo” que ela escondia sob tantas
camadas de controle. Ficamos perdidas uma na outra até que as primeiras
luzes da manhã começassem a despontar.
Por isso eu não queria me mexer. Não quando estava tão confortável,
aninhada contra ela. Meu rosto estava enterrado na curva do seu pescoço, o
cheiro limpo dela misturado ao meu, como se a noite anterior tivesse ficado
impregnada em sua pele. Mas claro, Lira, estava impecavelmente bem
arrumada. Sempre estava.
— Anda, Arellano. — A voz dela soou mais firme dessa vez, mas ainda
assim carregava um toque suave. — Não vamos passar o dia no jato.
— Poderíamos… — murmurei, minha voz rouca e arrastada pelo sono. —
Você é tão confortável, Zamorano.
Ela bufou, mas eu sabia que aquele pequeno sopro de impaciência estava
mais caloroso que o normal, disfarçado por uma irritação falsa. A mão dela
deslizou para meu rosto, levantando-o delicadamente ao segurar meu queixo.
— Agora, vamos, acorde.
Lira exigiu, mas havia um brilho no olhar cinza dela. Ela sabia exatamente o
motivo de eu estar tão exausta, e parecia até satisfeita consigo mesma.
Com um esforço monumental, consegui me erguer, esfregando os olhos
enquanto me ajustava ao fato de que, sim, já estávamos de volta ao México.
Do lado de fora da janela, o céu estava limpo, e o aeroporto particular estava
tão tranquilo quanto um túmulo.
Quando finalmente descemos as escadas do jato, a brisa quente do México
me envolveu, trazendo uma sensação de familiaridade. Lira caminhava ao
meu lado, elegante como sempre, com o ar de quem já estava pronta para
assumir o mundo. Eu, por outro lado, ainda me sentia como um desastre
ambulante, cada passo pesado pela falta de sono.
Enquanto nos aproximávamos do carro que nos aguardava, ela finalmente
falou:
— Sua Ferrari está pronta. — Disse como quem informa algo trivial. O olhar
dela cruzou o meu por um instante. — Podemos buscá-la agora, se quiser…
Meu cérebro cansado levou um momento para processar a informação, mas,
assim que o fez, um sorriso começou a se formar em meus lábios.
— Finalmente! — Respondi, minha voz ainda arrastada, mas carregada de
satisfação. — Quer dizer que vou dirigir um pouco para compensar o
cansaço.
Ela lançou um olhar de canto, a sombra de um sorriso brincando em seus
lábios.
— Vamos ver se consegue manter os olhos abertos até lá.
E, com isso, entramos no carro. O México estava de volta ao nosso alcance,
e, embora a noite anterior ainda pesasse em meu corpo, havia algo animador
em saber que, de alguma forma, tudo parecia estar onde deveria.
Dirigimos até a loja de carros. Ao entrarmos, o vendedor nos recebeu com
um sorriso profissional, mas visivelmente animado. Seu olhar fez uma rápida
avaliação de Lira, como todos faziam. Afinal, ela parecia ter saído de uma
capa de revista, impecável e linda.
Tentei não me irritar, mas se ele olhasse demais para ela, eu teria que mostrar
a quem Lira pertencia.
— Senhoras Zamorano e Arellano! É um prazer tê-las aqui novamente. —
Ele nos conduziu diretamente até o carro, suas mãos fazendo gestos
exagerados enquanto descrevia os adicionais instalados. — Aqui está, uma
Ferrari SF90 Spider. Fizemos algumas personalizações que tenho certeza de
que vão adorar.
Os olhos dele brilharam enquanto enumerava os extras: sistema de som
aprimorado, acabamentos internos exclusivos e uma tecnologia avançada de
navegação. Ignorei tudo aquilo, pois no fim das contas eu ia mexer na
configuração de todo carro de qualquer jeito.
Eu me inclinei para o carro, sentindo o toque da pintura impecável sob os
dedos, e quase conseguia ouvir o motor rugindo só de olhar para aquela
belezinha.
Lira, por outro lado, mantinha sua postura analítica. Enquanto eu admirava
cada detalhe com entusiasmo, ela estava focada nos documentos que o
vendedor colocou diante dela. Observava tudo com a mesma meticulosidade
de sempre.
— Está tudo aqui, senhorita Zamorano. — Disse o vendedor, entregando-lhe
uma caneta prateada.
Lira leu cada página rapidamente, mas óbvio que não perdeu nada. Quando
terminou, ela me lançou um olhar breve.
— E a blindagem dos vidros? — Lira perguntou, sua voz firme, mas calma.
— Por qual motivo não foi feita?
Era a típica voz dela quando estava exigindo algo importante. O sorriso do
vendedor vacilou por um segundo antes de recuperar a compostura.
— Ah, senhora Zamorano… infelizmente houve um pequeno contratempo.
Esquecemos de incluir a blindagem solicitada, mas posso garantir que isso
será resolvido em dois dias. Pedimos desculpas pelo descuido.
Lira ergueu as sobrancelhas, os olhos cinzas ficando um pouco mais frios.
— Dois dias? — Indaguei completamente insatisfeita. — Eu não vou esperar
dois dias para levar meu carro. Posso cuidar disso depois.
— Ayra, isso não é negociável. — Lira respondeu, cruzando os braços
enquanto me lançava aquele olhar severo. — Não é só um carro, é a sua
segurança.
— Eu vou cuidar disso, Zamorano. Não se preocupe, mas hoje eu vou sair
daqui dirigindo meu carro novo.
Sorri, tentando desarmá-la. Lira me lançou um último olhar, pesado e sério,
antes de suspirar.
— Tudo bem, leve o carro. Mas faça o favor de resolver isso o quanto antes.
— Ela apontou para mim, com um tom autoritário. — Prometa!
— Prometo.
Respondi, segurando um sorriso. Enquanto eu pegava as chaves e me
acomodava no banco de couro impecável, senti os olhos dela em mim,
avaliando. Liguei o motor, sentindo o rugido inconfundível da Ferrari
preencher a loja. Olhei para Lira pela janela aberta.
— Vamos dar uma volta? — Perguntei, mas ela apenas balançou a cabeça,
sorrindo de canto.
— Não é meu “esporte” favorito andar com você no volante. — Respondeu,
cruzando os braços, mas sem conseguir esconder o brilho divertido nos olhos.
— Mas, como sei que você vai insistir, me dê um minuto.
Lira deu a volta no carro e abriu a porta do passageiro. Eu me movi para
ajustar o banco, observando enquanto ela se acomodava ao meu lado.
— Confortável? — Perguntei, enquanto ajustava os retrovisores, mais para
provocá-la do que por necessidade.
— Apenas dirija, Ayra. — Disse, com o tom seco, mas a sombra de um
sorriso em seus lábios me entregou que ela não estava tão séria assim. — E
tente não matar ninguém!
Acelerei suavemente, deixando o rugido do motor preencher o ambiente ao
nosso redor enquanto saímos da loja. A Ferrari deslizou pelas ruas, tão
responsiva quanto eu imaginava, cada curva uma extensão do meu comando.
Olhei para Lira de relance, que mantinha o olhar fixo na estrada, mas com a
postura relaxada, diferente de sua habitual rigidez.
— Não é maravilhoso? — Perguntei, enquanto entrávamos em uma reta
longa, o vento entrando pelas janelas abertas.
— O carro ou o seu sorriso de vitória? — Lira respondeu, finalmente me
encarando com um olhar curioso.
— Ambos. — Sorri, acelerando levemente, sentindo o poder do motor
responder instantaneamente. — Meu novo bebê é incrível.
Lira balançou a cabeça, mas havia algo no seu semblante que parecia mais
leve. Eu desacelerei um pouco, me mantendo no limite da velocidade,
surpreendendo-a.
— O que foi? — Perguntou, estreitando os olhos.
— Só estou garantindo que você não fique tensa demais. — Respondi,
brincando. — Sei que odeia quando não está no controle.
Ela me lançou um olhar que poderia congelar o inferno, mas não disse nada.
Apenas voltou a olhar para a estrada, o silêncio entre nós sendo preenchido
pelo som do motor e o leve ruído da cidade.
— Você é uma surpresa, Ayra. — Disse Lira, quase para si mesma, mas
suficiente para que eu ouvisse.
— Surpresas podem ser boas, não acha? — Respondi, com um sorriso.
— Às vezes.
Ela respondeu, num tom suave. Eu continuei dirigindo, mas algo naquele
momento me fez perceber que, de alguma forma, tínhamos avançado mais
um passo. Não era só sobre o carro, ou sobre o casamento. Era sobre nós
duas. Algo estava mudando, e por mais assustador que fosse, eu acho que não
queria parar isso.
☙❧
Lira Zamorano
Quando abrimos a porta do apartamento, senti a familiaridade do espaço nos
envolver. Era estranho como aquele lugar já parecia nosso, mesmo com tão
pouco tempo juntas. Ayra caminhou diretamente para o sofá, largando as
chaves da Ferrari na mesa de centro e se jogando com um suspiro satisfeito.
— Nada como estar em casa, não é?
Ela murmurou, olhando para mim com aquele sorriso preguiçoso que parecia
ter se tornado parte dela desde a nossa viagem. Eu revirei os olhos, mas não
consegui evitar um pequeno sorriso ao vê-la tão à vontade. Ayra parecia não
ter preocupações no mundo quando queria, como se tudo ao seu redor fosse
um eterno playground para ela.
— Não se acomode tanto assim. Estou pensando em cozinhar. — Falei,
tirando o meu casaco e os meus sapatos.
— Cozinhar? — Ayra levantou uma sobrancelha, visivelmente surpresa. —
Seriamente?
— Estou com fome. — Retruquei, dando de ombros como se não fosse nada
demais. — Eu não consigo viver de fast food como você.
Ela riu, o som leve e descontraído. Eu tentei ignorar a picada que provocou
no meu peito.
— Ok, ok. O que vai preparar, chef Zamorano?
A ignorei, indo direto para a cozinha, dobrando as mangas da camisa no
antebraço. Abri a geladeira, analisando os ingredientes disponíveis. Eu sabia
que estaria abastecido porque pedi para fazerem isso. Talvez eu tivesse
planejando cozinhar naquela noite… Mas claro, era só porque eu não queria
comer nada de rua. Só isso.
Enquanto picava alguns legumes, senti Ayra entrar na cozinha. Ela se apoiou
no balcão, observando-me com aquele brilho provocador nos olhos.
— Precisa de ajuda? — Perguntou, mas o tom dela deixava claro que a
intenção era mais me provocar do que realmente ajudar.
— Não, Arellano. — Respondi sem desviar o olhar da tábua de corte. —
Apenas fique aí e tente não atrapalhar.
Ela riu de novo e, para minha surpresa, não insistiu. Apenas ficou ali, me
observando em silêncio. Por um momento, o ambiente parecia tranquilo
demais, quase íntimo.
Quando terminei de refogar os legumes e colocar a massa para cozinhar, me
virei para encontrá-la ainda me encarando.
— O que foi? — Perguntei, semicerrando os olhos.
— Nada. — Ayra deu de ombros, mas havia algo suave no sorriso dela. —
Só gosto de te ver assim… fica sexy.
Meu estômago deu um pequeno salto, mas, claro, mantive minha expressão
impassível. Não ia dar a ela o gostinho de saber o quanto aquelas palavras me
afetaram.
— Vá preparar a mesa. O jantar está quase pronto.
Ela sorriu, pegando pratos e talheres com uma naturalidade que me
surpreendeu. Ver Ayra fazendo algo tão simples, sem drama ou provocação,
era… estranho, mas de um jeito bom.
Quando finalmente nos sentamos para comer, Ayra experimentou a primeira
garfada e arqueou as sobrancelhas.
— Uau. Isso está realmente bom. — Ayra disse, com um tom que parecia
genuinamente impressionado.
— Eu sei.
Não pude conter um pequeno sorriso satisfeito. Ela pegou outra garfada,
mastigando devagar antes de falar de novo.
— Talvez você possa fazer isso mais vezes. Acho que descobri que adoro sua
comida.
Ayra comentou, casual, mas havia algo na forma como disse que me pegou
de surpresa. Congelei por um momento, processando aquelas palavras. Não
era só o comentário, mas o tom. Havia algo ali, uma suavidade que ela
raramente mostrava. Era… desarmador.
Na verdade, alguma coisa mudou desde Nova Iorque. Ainda era difícil dizer,
mas naquele instante, olhando para o rosto dela, com a pele suave, os lábios
desenhados em um tom que parecia naturalmente tentador, e aqueles olhos
castanhos profundos que tinham uma luz própria, percebi algo que eu não
queria admitir.
Havia uma sensação de carinho, algo suave, mas inegável, pulsando dentro
de mim. Só queria estar perto, senti-la, e, naquele momento, não importava se
era vulnerabilidade ou algo mais perigoso. Eu queria a Ayra Arellano. E isso
era impossível de ignorar.
— Se merecer, talvez eu cozinhe…
Respondi, deixando meu tom casual. Ayra arqueou uma sobrancelha, a
expressão dela alternando entre provocação e curiosidade. Ela inclinou-se
ligeiramente sobre a mesa, apoiando o queixo na mão, e seus olhos castanhos
fixaram-se nos meus com aquela intensidade que sempre me deixava alerta.
— E o que eu preciso fazer para merecer?
Ela perguntou, a voz baixa, carregada de um tom provocativo, mas sem
perder a suavidade. Rolei os olhos, fingindo impaciência, mas não consegui
esconder o pequeno sorriso que escapou. Ayra sempre sabia como me puxar
para o seu jogo.
— Não causar problemas seria um bom começo. — Retruquei, pegando meu
copo de água e me concentrando nele, tentando evitar o olhar dela por muito
tempo.
— Causar problemas? Eu? — Ela riu, e o som era leve, descontraído, como
se estivesse zombando de mim. — Eu só deixo as coisas mais “animadas”.
— Você quer dizer “descontroladas”.
Minha tentativa de parecer séria havia falhado quando ela soltou outra risada,
aquela risada calorosa que fazia algo dentro de mim se apertar.
Houve um momento de silêncio confortável entre nós. Eu terminei de comer,
e Ayra ainda pegava pequenas porções do prato, como se estivesse
aproveitando cada segundo daquela refeição.
— Eu gosto disso. — Ela disse de repente, com uma simplicidade que me
desarmou.
— Disso o quê? — Perguntei, tentando manter minha expressão neutra.
— Disso… Nós. Aqui. — Ayra gesticulou entre nós com o garfo. — É
estranho, mas eu gosto. Não tem gritos, nem ameaças, nem manipulações. É
só… bom.
Engoli em seco, surpresa com a honestidade. Não era algo que Ayra fazia
frequentemente, e eu não sabia como reagir. Então, apenas inclinei a cabeça,
observando-a.
— Não se acostume. — Foi tudo o que consegui dizer, minha voz saindo um
pouco mais suave do que o normal.
Ela sorriu, um sorriso real, sem malícia ou ironia, e aquele momento parecia
mais íntimo do que qualquer noite que já tivéssemos compartilhado.
— Pena que você é péssima em esconder quando gosta de algo. — Ayra
disse, voltando ao tom provocador, com aquele brilho nos olhos que parecia
iluminar tudo ao redor.
Revirei os olhos, mas não consegui evitar o pequeno sorriso que se formou.
Levantei-me, começando a limpar a mesa, tentando ignorar a sensação de ser
observada. No entanto, o olhar dela queimava em mim, como se cada
movimento meu fosse minuciosamente analisado.
— Quer ajudar ou vai continuar me olhando? — Perguntei sem me virar,
mantendo meu tom firme, mas sentindo o calor subir pelo meu pescoço.
— Estou ajudando. — Ayra respondeu, a voz carregada de ironia. — Te dou
motivação moral. Funciona melhor do que eu mexendo em pratos, acredite.
Deixei escapar uma risada curta, sem querer, balançando a cabeça. Eu peguei
o resto da louça e o levei para a pia.
Quando voltei, Ayra ainda estava sentada, me observando com aquele mesmo
brilho nos olhos, os braços cruzados sobre a mesa, como se estivesse
esperando que eu dissesse algo mais.
— Pronto, mesa limpa. Agora você pode encontrar outra maneira de “me
ajudar”. — Cruzei os braços, encarando-a com desafio.
— Hum… Tudo bem. — Ayra se levantou devagar, uma expressão satisfeita
brincando em seus lábios. — Mas vai ser do meu jeito.
Antes que eu pudesse responder, ela diminuiu a distância entre nós, suas
mãos encontrando as lapelas da minha camisa. O toque dela era firme, mas ao
mesmo tempo suave e provocante.
O cheiro dela, a proximidade, tudo parecia conspirar contra a minha sanidade.
Com um puxão, ela me trouxe para mais perto e pressionou os lábios contra
os meus, num beijo tão sedutoramente doce que quase me fez perder o
equilíbrio.
Quando ela se afastou, meus olhos ainda estavam fechados, minha mente
tentando acompanhar o que acabara de acontecer.
Senti suas mãos deslizarem pelo meu pescoço, em uma carícia que parecia
tanto um consolo quanto uma provocação. Quando finalmente abri os olhos,
encontrei o sorriso dela. Aquele maldito sorriso que sempre conseguia
desarmar minhas defesas.
— Esse é seu agradecimento? — Minha voz saiu rouca, quase um sussurro.
— Sim… Foi pouco? — Ayra perguntou com aquele tom brincalhão, mas o
brilho no olhar era de puro desafio.
Ela se aproximou novamente, suas mãos envolvendo meus ombros em um
gesto íntimo. Instintivamente, minhas mãos deslizaram para sua cintura,
segurando-a com firmeza.
— Quem disse que quero seus beijos? — Tentei soar indiferente, mas a
hesitação na minha voz me traiu.
— Não seja mentirosa, Zamorano. — Ayra fez um biquinho adoravelmente
provocante. — Você adora meus beijos…
Sem esperar resposta, ela deslizou os lábios sobre os meus, numa provocação
suave que me fez perder qualquer autocontrole que ainda restava.
Mordiscando meu lábio, ela me testava, e eu cedi. Agarrei sua cintura,
intensificando o beijo, deixando-me levar pelo sabor dela, pela textura dos
seus lábios e pela dança provocante de sua língua com a minha.
Quando finalmente nos afastamos, Ayra sorriu contra meus lábios, como se
soubesse exatamente o efeito que tinha sobre mim. Ela deu mais um beijo
rápido, quase um selo, antes de soltar minhas mãos e se afastar, mas não sem
antes deslizar os dedos pela minha mandíbula, o toque tão suave que quase
parecia um afago.
— Não seja gananciosa. — Ela disse, com um sorriso de canto. — Eu vou
tomar banho agora, e hoje vamos apenas dormir. Não me tente.
Eu respirei fundo, tentando recuperar algum controle sobre meu corpo e
mente, mas o sorriso travesso dela não ajudava em nada. Ayra se virou, mas
antes que pudesse dar mais um passo, eu a segurei pelo braço, roubando mais
um beijo rápido. Ela riu, dessa vez mais genuinamente, e me deu um leve
empurrão.
— Controle-se, Zamorano. — Piscou para mim antes de desaparecer em
direção ao segundo andar.
Fiquei parada ali, o coração batendo tão forte que quase parecia um tambor
no meu peito. Ayra Arellano era um caos, um furacão que eu nunca pensei
que poderia gostar tanto de ser arrastada. E aquela noite… seria um teste de
autocontrole manter as mãos longe dela.
☙❧
Ayra Arellano
O ar na sala privativa do restaurante era pesado, carregado de tensão. Arturo
estava sentado em uma das extremidades da mesa, com Javier do outro lado.
Eu estava ao lado de Lira. A conversa sobre a proposta da Lyza havia
começado de maneira neutra, mas rapidamente se transformou em algo mais
complicado.
— Então, é isso. — Javier disse, recostando-se na cadeira com um sorriso
frio nos lábios. — A Lyza decidiu colocar vocês duas no comando de algo
desse porte? Como se isso fosse uma boa ideia…
— Não é uma questão de opinião, Javier. — Lira respondeu com firmeza, a
voz controlada, mas fria. — É uma decisão estratégica.
Javier estreitou os olhos para ela, mas antes que pudesse retrucar, Arturo
interveio.
— Estratégia ou não, isso é um ataque direto à hierarquia. — Arturo disse,
com um tom mais calculado. — A Lyza passou por cima de nós para colocá-
las no comando.
Eu cruzei os braços, incapaz de ficar quieta diante do desprezo que emanava
deles.
— Não é um ataque à hierarquia, Arturo. — Retruquei, minha voz carregada
de irritação. — É uma tentativa de salvar um sistema que está se corroendo
arcaico com vocês.
Javier virou-se para mim tão rápido que quase derrubou o copo à sua frente.
— Cuidado com o que diz, Ayra. — Ele rosnou, o tom gélido. — Você não
tem direito de tomar a frente de nada sem a minha autorização.
— Eu já passei da fase da autorização, tio. — Retruquei, a palavra “tio”
escorrendo com sarcasmo. — Talvez se parassem de tentar manter suas
posições de poder e começassem a pensar no “futuro”, a Lyza não estaria
mudando as coisas.
— Ayra.
Lira falou meu nome, uma advertência sutil, mas eu a ignorei. Javier já havia
cruzado a linha, e eu estava pronta para não baixar a cabeça.
— Você não passa de uma pirralha arrogante!
— Piralha ou não, eu sou a pessoa que a poderosa Lyza escolheu. — Eu falei
com um sorrisinho sarcástico. — Então porque não para com essa
competição de quem mija mais longe e aceita?
— Não se atreva a falar comigo desse jeito. — Ele disse, levantando-se da
cadeira com tanta força que ela tombou para trás.
— Ah, por favor! — Eu retruquei, também me levantando. — Eu falo do
jeito que quiser. Cansei de você mandando e desmandando, assumindo um
lugar que nem era seu. Você nunca devia ter sido um líder, meu pai era e todo
mundo sabe que você era uma sombra.
A raiva em seus olhos era palpável, e antes que eu pudesse me mover, Javier
levantou a mão, claramente com a intenção de me acertar.
Tudo aconteceu em segundos, mas foi rápido demais para ele. Só que antes
que o golpe pudesse me atingir, Lira estava entre nós.
A mão dela segurou o pulso de Javier com tanta força e precisão que ele
congelou no lugar. O olhar de Lira era gélido, calculado, e, por um momento,
toda a sala pareceu mergulhar em um silêncio mortal.
— Não. — A voz de Lira era baixa, mas carregada de um gelo que fez até
Arturo levantar as sobrancelhas. — Você não vai tocar nela.
Javier tentou se soltar, mas Lira apertou ainda mais seu pulso, mantendo-o no
lugar. Meu coração deu um salto diante daquela cena.
— Ela não tem o direito de me desrespeitar! — Ele rosnou, mas havia algo na
postura de Lira que o fez hesitar. — E você não tem o direito de interferir.
— Claro que eu tenho. — Lira respondeu, cada palavra cortante como uma
lâmina. — Ela é minha esposa agora antes de qualquer coisa.
Por um segundo, quis sorrir. Havia algo estranhamente reconfortante naquela
declaração cheia de proteção. Algo que fez meu peito aquecer, mesmo em
meio a toda aquela tensão.
— Chega. — Arturo finalmente interveio, sua voz autoritária cortando o ar
como uma faca. — Lira, sente-se. Agora.
Lira olhou para Arturo, depois para mim e Javier, mas a frustração em seus
olhos era evidente. Ela hesitou, mas recuou soltando o braço dele enquanto
ajeitava a postura, sentando-se, mas com uma sombra protetora entre nós.
— O que ela propôs é inaceitável. — Disse Arturo, olhando para nós duas. —
Vocês podem ter a bênção da Lyza, mas isso não significa que podem
desrespeitar as pessoas que fizeram quem vocês duas são.
— Lyza não deixou escolha. — Respondi, minha voz afiada. — Aceitamos
porque é a única opção, assim como vocês aceitaram unir os cartéis.
Ele me lançou um olhar frio, mas não respondeu. Lira colocou a mão
levemente no meu braço, um gesto sutil, mas firme.
O olhar de Arturo endureceu, mas ele não respondeu imediatamente. Em vez
disso, ele se levantou, ajustando o paletó com um movimento controlado.
— Vocês podem achar que têm tudo sob controle, mas o tempo vai mostrar
quem realmente está no comando. — Ele disse, dirigindo-se a nós duas. —
Espero que estejam preparadas para as consequências de suas escolhas.
Com isso, ele saiu da sala, deixando Javier para trás, enquanto esse nos
lançava um olhar quase mortal.
— Isso ainda não acabou. — Ele disse ao se levantar, sua voz baixa e
ameaçadora. — Vocês cometeram um erro!
Enquanto observava eles irem, ouvi a Lira respirar fundo. Eu olhei para ela.
A postura dela cedeu, como se de repente Lira tivesse baixado a “guarda alta”
que mantinha diante dos dois homens.
Sem pensar muito, me inclinei e depositei um beijo suave em seu ombro. O
gesto foi mais instintivo do que calculado, mas parecia certo. Apoiei meu
rosto ali, sentindo o calor dela contra minha pele mesmo com a roupa, e vi
seus olhos cinzentos me observarem com uma intensidade que quase me fez
desviar o olhar.
— Obrigada por me defender. Não precisa, mas ainda assim… — Murmurei,
minha voz baixa. Minhas mãos encontraram sua coxa, apertando suavemente.
— Eu não ia deixar ele te bater. — Ela respondeu, com aquele tom firme que
parecia inabalável, mas havia algo mais ali. Um traço de proteção tão nítido.
— Só eu posso!
Eu ri, a tensão em meu peito aliviada. Então me ergui, até que os nossos
olhos se encontrassem diretamente.
— O que acha que eles vão fazer? — Perguntei, pensando sobre o que eles
disseram. — Claramente nos ameaçaram.
Lira inclinou a cabeça levemente, seus olhos assumindo aquele brilho
calculista que eu já conhecia bem.
— Não tenho ideia… ainda. — Ela admitiu, com uma honestidade que era
surpreendente. — Mas sei que Arturo e Javier não vão aceitar isso tão
facilmente. Eles vão procurar brechas.
— E nós? — Provoquei, mas mantendo meu tom leve. — Qual é o plano?
Vamos esperar a tempestade ou enfrentá-los de frente?
Ela desviou o olhar por um instante, mas apenas para fixá-lo novamente em
mim, com mais firmeza.
— Primeiro, precisamos alertar a Lyza. — Ela disse, como se já estivesse
formulando uma estratégia em sua mente. — Precisamos ter garantias. Apoio.
Não podemos ser pegas desprevenidas.
— Lyza já sabia que eles iam reagir mal. — Retruquei, cruzando os braços.
— Talvez ela tenha um plano para isso também.
Lira assentiu, mas parecia estar ponderando algo.
— Ayra, você entende que estamos lidando com uma guerra silenciosa agora,
não é?
— Eu sei… — Disse, inclinando-me mais para ela, quase esquecendo do
espaço entre nós. — Como lidamos com isso?
Lira soltou um pequeno suspiro, sua mão cobrindo a minha que ainda estava
em sua coxa.
— Nós permanecemos unidas. — Disse ela, com uma certeza que me fez
acreditar nela no mesmo instante. — É isso que eles não esperam.
Eu sorri, um sorriso lento e cheio de malícia.
— Sabe, Zamorano, adoro quando você fala como uma general. —
Provoquei, enquanto minha mão deslizava suavemente pela dela.
Lira respondeu, com um pequeno sorriso surgindo em seus lábios. O ar entre
nós parecia eletrizado, e, por um momento, a tensão da sala desapareceu,
quando nós nos beijamos.
Era apenas eu e Lira, nossas decisões e o que tínhamos escolhido juntas.
☙❧
Lira Zamorano
Uma semana depois do nosso encontro no restaurante. O México parecia um
palco maior agora. Cada passo que Ayra e eu dávamos parecia ecoar mais
longe, repercutindo em todos os cantos do nosso mundo, e no de outros
também.
As movimentações começaram imediatamente após nosso retorno, e, como
esperado, Lyza não perdeu tempo. Sua influência era inegável, e sua
presença, mesmo quando não física, era como uma sombra pairando sobre
tudo e todos.
Os primeiros dias foram dedicados a organizar a logística. Lyza já havia
traçado um plano, mas a execução exigia que Ayra e eu nos colocássemos no
centro, coordenando cada detalhe. Os laboratórios e os pontos de distribuição
no México começaram a ser reorganizados, e a mensagem foi clara para
todos os envolvidos: havia uma nova estrutura.
Ayra assumiu um papel inesperadamente eficaz na supervisão das operações
no terreno, enquanto eu mantinha o controle das finanças e das estratégias de
distribuição. Era uma dança cuidadosa, e, surpreendentemente, nós duas nos
complementávamos mais do que eu esperava.
Lyza, por sua vez, tratou de cuidar do “outro problema”. Arturo e Javier não
eram homens fáceis de controlar. Ambos tinham egos tão grandes quanto
suas redes de influência. No entanto, Lyza mostrou por que era temida e
respeitada. Ela usou os próprios pontos fracos deles contra si mesmos.
Com Arturo, ela jogou o jogo da ameaça velada. Um dos laboratórios
menores que ele controlava foi “visitado” por um grupo que,
convenientemente, trabalhava para a Lyza. Eles deixaram claro que podiam
desmontar toda a operação dele em questão de dias, caso ele tentasse
interferir no novo acordo. Não foi um ataque direto, mas sim um lembrete de
que Lyza tinha olhos e mãos em todos os lugares. Arturo recuou, mas não
sem deixar claro que aquilo não terminaria ali.
Com Javier, o método foi diferente. Lyza optou por uma intimidação pública.
Durante uma reunião com outros líderes, um infiltrado seu confrontou ele,
expondo algumas de suas decisões erradas e ressaltando como isso
prejudicava a imagem e a força do cartel. Era um aviso para ele e para todos
os outros: ela estava no controle, e Ayra e eu éramos parte desse novo
regime.
Apesar de tudo isso, Ayra e eu sabíamos que a trégua era apenas temporária.
Arturo e Javier não eram homens que aceitariam ser colocados de lado
facilmente. Mas, por enquanto, eles estavam contidos, e isso nos dava o
espaço que precisávamos para nos concentrar no trabalho.
No final da semana, quando finalmente parei para respirar, percebi o quanto
tudo tinha mudado em tão pouco tempo.
Ayra e eu estávamos no centro de algo muito maior do que qualquer uma de
nós poderia ter previsto. E, por mais que isso me preocupasse, havia uma
parte de mim que não conseguia deixar de se sentir… bem. Como se, de
alguma forma, esse caos tivesse dado um novo ar a mim mesma.
Ayra entrou no escritório do apartamento, interrompendo meus pensamentos.
Ela estava segurando alguns papéis, os olhos castanhos brilhando com uma
energia que eu não sabia se era entusiasmo ou pura teimosia. Talvez as duas
coisas.
— Temos uma reunião com os chefes de logística em uma hora. — Disse ela,
sem rodeios, mas com aquele tom que parecia carregado de provocação.
— Ótimo. — Respondi, mantendo minha voz calma, mas firme. — Espero
que você esteja pronta.
Ela me lançou um sorriso de canto, inclinando-se levemente para a mesa.
— Sempre estou, Zamorano. A questão é: você está?
Eu não consegui evitar o pequeno sorriso que surgiu nos meus lábios.
— Sim. Estou.
Levantei da cadeira, deixando os papéis que estava analisando sobre a mesa.
Saímos do apartamento, descendo juntas até o estacionamento subterrâneo.
O ambiente entre nós estava tranquilo, o som de nossos passos ecoando pelo
piso de mármore. Quando chegamos ao carro, Ayra deu aquele sorriso
satisfeito, deslizando os dedos pela pintura impecável da Ferrari como se
fosse um troféu.
— Ainda não superei o quão perfeito ele é. — Disse, girando as chaves nos
dedos antes de destravar o veículo.
Eu ri baixinho, balançando a cabeça enquanto me acomodava no banco do
passageiro. O som do motor rugindo era como música para os ouvidos de
Ayra, que acelerou suavemente, conduzindo o carro para fora do
estacionamento.
Assim que passamos pelo portão, uma lembrança repentina me atingiu como
um choque.
— Droga! — Exclamei, batendo levemente a mão na testa.
— O que foi agora, Zamorano? — Ayra perguntou, me lançando um olhar
curioso.
— Meu celular. Deixei no escritório. Preciso voltar para pegar. — Suspirei,
já destravando o cinto de segurança. — Pare aqui na frente.
Ayra bufou, mas parou o carro diante da entrada do prédio, encostando-o no
meio-fio.
— Não demore, ou vou sair dirigindo por aí sem você. — Ela provocou, com
aquele sorriso travesso que sempre me atiçava.
Desci do carro e subi rapidamente de volta ao apartamento. Peguei o celular
que estava sobre a mesa, verificando rapidamente as mensagens antes de sair.
Enquanto descia de volta pelo elevador, pensei em como Ayra sempre tinha
uma provocação na ponta da língua, mas que, de alguma forma, tornava os
dias mais interessantes.
No entanto, quando eu saí do prédio, a visão que me recebeu fez meu coração
parar.
A Ferrari estava longe do lugar que eu deixei, o trânsito parado e gente se
aglomerando. Mas eu podia ver claramente que a lateral do carro estava
destruída, o metal amassado de forma grotesca. As marcas de pneus na rua
estavam quentes, era de caminhão havia colidido com a Ferrari, estava parado
ao outro lado da via.
Minha mente entrou em completo caos. Ayra.
Por um momento, a cena diante de mim trouxe um déjà vu terrível. Era como
se as imagens do carro em que minha mãe e meu irmão morreram tivessem
ganhado vida novamente: o veículo destroçado após ser atingido pelos
inimigos de Arturo em uma emboscada brutal, capotando tantas vezes que
não deixou sobreviventes.
— Não, não, não…
Deixei o celular cair no chão e corri até o carro, o coração martelando no
peito com tanta força que achei que fosse rasgar minha caixa torácica. Eu não
conseguia pensar, não conseguia respirar direito.
— Ayra! — Gritei, minha voz rouca e cheia de pavor. — Ayra.
Cheguei à porta do motorista e puxei o trinco, mas ele não cedeu. Estendi a
mão para o vidro parcialmente estilhaçado, tentando ver melhor o interior,
mas o ângulo do carro e o reflexo do sol me impediam de enxergar qualquer
coisa com clareza.
— Ayra! — Chamei de novo, o som da minha voz agora completamente
instável. — Ayra, me ouve?
Corri para o outro lado do carro, mas a situação era a mesma: a porta travada,
o metal grotescamente amassado, o vidro opaco, enquanto a ansiedade dentro
de mim crescia como um animal selvagem, devorando qualquer resquício de
calma.
“Ela estava no carro… ela estava no carro…” O pensamento ecoava na
minha mente como um mantra cruel, enquanto minha visão parecia turva e o
som ao meu redor desaparecia. O cheiro forte de gasolina atingiu meu nariz,
trazendo com ele um novo nível de pânico. Foi quando percebi o princípio de
incêndio, as chamas pequenas mas famintas no lado do carona. Elas estavam
subindo, espalhando-se rapidamente.
O gosto do desespero estava na minha língua, e meu corpo inteiro parecia
vibrar com uma urgência que ultrapassava qualquer lógica. Corri de volta
para o lado do motorista, forçando a porta com tudo que eu tinha.
— Ayra! — Gritei, sacudindo a porta, mas o metal não cedia. O calor das
chamas crescia do outro lado, e o tempo parecia estar se esgotando. — Ayra!
O fogo começou a lamber as bordas do carro, uma visão que fez meu coração
despencar. As lágrimas nublam minha visão enquanto eu desistia da porta. Eu
comecei a bater no vidro, socando-o com tanta força que minha mão
começou abrir feridas fazendo o sangue cobrir minha pele.
— Ayra! — Meu grito cortou o silêncio, uma mistura de pânico, desespero e
uma dor que eu nunca havia sentido antes. — Ayra!
Meu peito parecia estar sendo esmagado. Eu não conseguia respirar, não
conseguia pensar, só conseguia tentar, com cada fibra do meu ser, alcançá-la.
Eu tinha que tirar ela dali e mantê-la segura. Ela ia estar bem. Ela tinha que
estar.
Ela não podia me deixar também…
As chamas rugiram mais alto, tornando-se uma ameaça real e implacável. O
vidro começou a rachar sob a força dos meus socos. Minha mente era um
caos, um turbilhão de pensamentos sombrios e irracionais.
Finalmente, o vidro cedeu, estilhaçando-se em pedaços que caíram como
chuva mortal. O som deveria ter sido uma vitória, mas o vazio no banco do
motorista foi um golpe que me tirou o ar. Ela não estava lá.
E então, ouvi.
— LIRA!
A voz dela. Ayra. Meu corpo congelou antes de se virar bruscamente. Ela
estava lá, a poucos metros de distância, correndo em minha direção, o rosto
marcado por uma expressão de preocupação e surpresa misturados.
O alívio veio como uma onda tão avassaladora que minhas pernas quase
cederam. Me afastei do carro, cambaleando, indo em direção a ela. Tudo ao
meu redor ficou opaco, o tempo parecia desacelerar, e meu corpo, de repente,
se sentia incrivelmente pesado.
Quando Ayra praticamente colidiu comigo, eu só conseguia olhar para ela.
Meu coração ainda martelava no peito, minha visão turva pelas lágrimas que
agora escorriam livremente.
— Lira… Droga, o que deu em você? — Ayra agarrou minha mão,
observando. — Olha só o que você fez consigo mesma.
Eu não disse nada. Só olhava para ela, tentando absorver cada detalhe. Seus
olhos castanhos brilhantes, seu rosto tão incrivelmente bonito, mesmo
franzido de preocupação, e sua pele clara, intocada por qualquer ferimento.
Ela estava bem. Ela estava aqui.
Soltei uma respiração trêmula antes de me jogar contra ela, envolvendo-a em
meus braços. Enterrei meu rosto na curva do seu pescoço, inalando seu
perfume, sentindo o calor da sua pele contra a minha. Um gemido baixo
escapou dos meus lábios, um som que era tanto alívio quanto de pânico.
— Eu achei que você estava lá dentro… — Sussurrei, minha voz quase um
soluço, apertando-a com força.
— Saí para comprar café… — Ayra respondeu, ainda confusa, mas o tom
suavizou enquanto ela me abraçava de volta. — Ah, Lira.
Ela me afastou ligeiramente, segurando meu rosto entre as mãos com uma
firmeza cuidadosa, forçando-me a encará-la.
— Você quebrou aquele vidro com as próprias mãos para me tirar de lá?
— Havia fogo… — Disse com a voz que saiu rouca enquanto eu olhava para
cada centímetro do rosto dela, como se precisasse confirmar que era real. —
Achei que você estava presa lá dentro… Que você estava…
Não consegui terminar aquela frase. O olhar dela mudou. Algo que eu não
conseguia identificar passou por seus olhos, mas eu não estava em condições
de interpretar. Eu estava completamente sobrecarregada com o alívio de vê-la
ali, viva, segura.
Ela deslizou os dedos pelo meu rosto com delicadeza, depois se inclinou,
beijando o rastro das lágrimas que ainda desciam. Meu coração disparou, e
antes que eu pudesse evitar, a abracei de novo, apertando-a como se temesse
que, se a soltasse, ela desaparecesse.
O som distante de sirenes começou a invadir o momento, o mundo lá fora
insistindo em nos puxar de volta à realidade. Mas eu ignorei. Tudo o que
importava naquele instante era Ayra. Segurá-la, senti-la ali, viva, era a única
coisa que conseguia me ancorar. Eu fechei os olhos sorrindo sem soltá-la.
☙❧
Ayra Arellano
Aquele cheiro estéril de hospital parecia ainda mais opressivo naquele quarto.
Não que Lira parecesse perceber. Desde o momento em que chegamos, ela
estava… aérea. Não protestou, não discutiu. Apenas fez o que eu pedi, sem
tirar os olhos de mim por um único segundo, mesmo quando os médicos a
levaram para o atendimento inicial.
Foi surreal. Lira Zamorano, a mulher que não deixava ninguém mandá-la em
nada, agora parecia quase perdida, movendo-se apenas conforme minhas
instruções.
Na sala de raio-X, enquanto verificavam possíveis danos nos ossos da mão
dela, eu vi os olhos cinzentos de Lira me acompanharem, mesmo deitada na
maca. E, quando o técnico terminou, ela imediatamente pediu para voltar ao
meu lado, ignorando qualquer preocupação com sua própria dor.
Agora estávamos no quarto de espera. A mão dela estava devidamente
enfaixada, os cortes haviam sido limpos e tratados, mas o silêncio que
pairava no ar era quase sufocante. Eu estava sentada na cama pequena, e ela,
ao meu lado, reclinada contra os travesseiros. Lira insistiu em ficar perto de
mim, dizendo algo sobre “não querer ser deixada sozinha,” mas eu sabia que
o verdadeiro motivo era outro.
Observei-a pelo canto do olho. Ela estava imóvel, os olhos fixos na parede à
nossa frente, mas a tensão em sua mandíbula e os dedos de sua mão boa
apertados contra a colcha revelavam que sua mente estava longe.
— Você deveria descansar, Lira. — Minha voz soou mais suave do que o
normal, mas ela apenas balançou a cabeça, quase imperceptivelmente, sem
me olhar.
— Estou bem. — Ela murmurou, mas o tom vazio dizia outra coisa. — Não
se preocupe.
Eu suspirei, ajustando-me na cama, permitindo que meu ombro encostasse no
dela. Foi apenas quando fiz isso que ela pareceu relaxar um pouco, soltando a
respiração que nem percebi que ela estava prendendo.
— Você não está bem. — Retruquei, mas mantive o tom leve, sem intenção
de brigar. — Olhe para você. Sua mão está enfaixada, seu corpo parece estar
aqui, mas sua cabeça… não sei onde está.
Lira finalmente me olhou, os olhos cinzentos parecendo ainda mais intensos
sob a luz fria do quarto. Eles estavam pesados, carregados de algo que eu não
conseguia decifrar de imediato.
— Meu pai sempre guardou segredo sobre o atentado que matou minha mãe e
meu irmão. — A voz dela saiu rouca, baixa, como se cada palavra fosse um
esforço.
Minha respiração ficou presa por um segundo. Eu sabia que aquela história
estava enterrada em algum lugar profundo dentro dela, mas nunca pensei que
Lira fosse contar.
— Eles foram emboscados, sofreram batidas múltiplas de três caminhões até
capotarem várias vezes. — Ela continuou, a expressão sombria, os olhos
perdidos em algum ponto distante. — Quando o carro parou, era tudo aço
retorcido… e nenhum deles saiu vivo.
Eu senti um aperto no peito. As palavras dela eram calmas, quase frias, mas
eu podia sentir a dor crua por trás de cada sílaba.
— Lira… — Minha voz saiu mais suave do que eu pretendia.
Ela balançou a cabeça, como se me pedisse para não interrompê-la.
— Quando vi seu carro contorcido, naquela rua… — Ela fez uma pausa,
respirando fundo, mas sua voz tremeu quando continuou. — Por um segundo,
eu tive a mesma sensação de perda que tive ao ver as fotos do atentado da
minha família.
Meu coração se apertou, e antes que eu percebesse, minha mão já estava
sobre a dela.
— Mas eu não estava lá dentro. — Falei, tentando trazer um pouco de lógica
e calma. — Estou aqui. Estou bem.
— Mas eu não sabia disso naquele momento. — Ela murmurou, os olhos
ainda fixos em mim, mas parecendo ver algo além. — Não tinha como saber.
Tudo que pensei foi… não de novo. O sentimento de perda foi sufocante…
Essas palavras me atingiram como um soco no estômago. Lira nunca falava
de sentimentos. Nunca deixava transparecer nada que a tornasse vulnerável.
Mas ali estava ela, aberta e quebrada de um jeito que eu nunca imaginaria.
Instintivamente, acariciei a mão dela, a que estava enfaixada, tomando
cuidado para não pressionar os ferimentos.
— Você não vai me perder. — Disse, minha voz saindo mais baixa do que eu
pretendia. — Não tão facilmente.
Lira não respondeu, mas eu vi quando seus ombros relaxaram ligeiramente.
Então, em um movimento lento, ela se inclinou para mim, até que sua cabeça
repousasse em meu ombro. Meu coração deu um salto, uma mistura de
preocupação e algo mais quente, mais profundo.
Por um momento, ficamos assim, o som abafado do hospital preenchendo o
silêncio entre nós. Eu acariciei levemente o cabelo dela, algo que parecia
certo, mesmo que estranho.
“Essa mulher…” pensei, enquanto olhava para o rosto dela, que, mesmo
exausto e marcado pela tensão, ainda conseguia ser incrivelmente bonito.
Naquele instante, tudo que eu queria era garantir que ela nunca mais tivesse
motivos para sentir aquele medo que vi em seus olhos mais cedo. E, pela
primeira vez, percebi o peso real do que estávamos construindo juntas.
Ela se importou…
A forma como ela me abraçou quando achou que eu tinha morrido, o
desespero em sua voz, suas mãos feridas tentando me alcançar através do
vidro… aquilo era mais do que responsabilidade ou dever. Era mais do que
qualquer aliança ou acordo. Era real.
☙❧
Lira Zamorano
O trajeto de volta para o apartamento parecia se estender mais do que o
normal. O silêncio preenchia o carro, quebrado apenas pelo som suave do
motor e da respiração de Ayra ao meu lado. Ela não dizia muito, mas seu
olhar pousava em mim com frequência, uma mistura de preocupação e algo
mais suave que eu não conseguia identificar.
Minha mão enfaixada repousava no meu colo, uma lembrança gritante da
manhã caótica que passamos. O motorista dirigia em quieto, mas eu quase
não o notava de qualquer forma. Todo meu foco era em Ayra.
— Assim que chegarmos, você vai direto descansar. — Ela quebrou o
silêncio, sua voz firme, mas havia uma suavidade nova. — E, como sei que
você não vai comer qualquer porcaria industrial, eu vou tentar fazer sopa.
Algo fresco.
Um pequeno sorriso surgiu em seus lábios. Por um momento tive um respiro
do caos interno que eu escondia.
— Você? Cozinhando sopa? — Perguntei, a incredulidade escapando antes
que eu pudesse conter.
— Eu sei seguir uma receita, Zamorano. — Ela respondeu com um
arqueamento de sobrancelha e um toque de provocação. — Não subestime
minhas habilidades. Além disso, eu sei que você é exigente demais para
comer qualquer coisa pronta.
Algo no jeito como ela disse isso fez meu peito se apertar. Eu sabia que, no
fundo, ela só queria me agradar… Aquilo me tocou. E, por mais que eu
quisesse provocar de volta, não consegui.
Eu estava presa. Presa àquele instante no hospital, às imagens que ainda
queimavam na minha mente do carro destruído, do cheiro de gasolina, do
desespero de não saber se ela estava bem. Por mais que Ayra estivesse
sentada ao meu lado, viva, saudável, tão irritantemente provocadora como
sempre, eu não conseguia me livrar do peso no peito. Era como se, de alguma
forma, meu corpo ainda não acreditasse que ela estava ali.
— Lira? — Sua voz soou de novo, e eu percebi que ela estava me
observando, a testa levemente franzida. — Está me ouvindo?
— Estou. — Respondi, mas minha voz saiu baixa, quase um sussurro. —
Desculpe, só… estou cansada.
Ayra não respondeu imediatamente. Ela apenas assentiu, e eu vi o brilho de
compreensão em seus olhos. Ela sabia.
Quando finalmente chegamos ao apartamento, Ayra foi a primeira a sair, indo
até o outro lado do carro para me ajudar. Seus dedos tocaram levemente meu
braço, me guiando com cuidado.
— Devagar, Zamorano.
Ela disse enquanto subíamos o elevador. Eu não respondi. Não porque não
queria, mas porque não conseguia. Toda a energia que eu tinha parecia
concentrada em manter a compostura, em não deixar aquele medo sufocante
me engolir. Quando chegamos à porta do apartamento, Ayra me olhou de
novo, com aquele olhar que parecia atravessar minhas defesas.
— Vou te colocar no sofá, e você vai descansar. Depois eu cuido do jantar.
— Ela disse com um tom firme, mas definitivamente carinhoso. Meu coração
idiota bateu mais forte.
— Você está insistindo demais nessa sopa. — Respondi, tentando aliviar o
clima. Meu tom era seco, mas a pequena curva nos lábios dela me fez
perceber que funcionou.
— Porque eu sou teimosa. — Ela respondeu, me ajudando a me sentar no
sofá e cobrindo-me com uma manta sua que estava ali. — E porque você é
insuportavelmente exigente.
Ela me deu um beijo rápido na testa antes de ir para a cozinha. Outra vez meu
coração acelerou. Eu fechei os olhos, tentando respirar fundo, mas a sensação
de perda ainda pairava sobre mim como uma sombra.
Abri os olhos novamente, observando-a na cozinha. Era estranho como
aquele simples movimento dela, cortando ingredientes com concentração,
parecia acalmar parte do caos dentro de mim. Ela estava ali. Viva.
E, pela primeira vez em muito tempo, senti um nó no peito que não era de
desespero, mas de algo diferente. Algo mais profundo. Ela estava ali, e, de
alguma forma, isso parecia ser tudo que importava.
Eu me levantei, a manta ainda envolta nos meus ombros, e caminhei até
Ayra. Ela estava de costas para mim, concentrada na tarefa de cortar legumes.
Sem dizer nada, envolvi sua cintura com os braços, puxando-a suavemente
contra mim. Apoiei meu queixo em seu ombro, deixando o peso do meu
corpo descansar levemente contra o dela. Ayra não se assustou, nem hesitou.
Continuou cortando os legumes, como se minha presença fosse uma
constante natural.
— Eu não disse para você descansar? — Ela perguntou, num tom
exasperado, mas doce.
Eu não respondi. Apenas apertei meus braços ao redor dela, mais forte desta
vez. Enterrei o rosto na curva do seu pescoço, respirando fundo. O cheiro
dela era um misto de algo fresco e familiar, um aroma que parecia inalar o
caos dentro de mim, deixando espaço apenas para ela.
Ayra Arellano. Minha inimiga jurada, a mulher que eu um dia achei odiar
mais do que qualquer coisa no mundo, agora minha esposa, minha parceira…
e a minha maior fraqueza. Não sabia em que momento exato isso tinha
acontecido, mas a verdade era: se algo acontecesse com ela, o mundo ao meu
redor se transformaria em cinzas. A ideia de perdê-la era insuportável, um
vazio tão grande que eu nem conseguia começar a imaginar.
— Você é um bebê chorão quando está doente, Zamorano… — A voz dela
interrompeu meus pensamentos. O sorriso que eu senti em seu tom trouxe um
calor novo ao meu peito. — Tudo bem, pode ficar agarrada em mim.
Senti o corpo dela relaxar ainda mais sob o meu toque. Mesmo com a faca
ainda na mão, mesmo com os legumes esperando na tábua, ela inclinou a
cabeça levemente para o lado, permitindo que eu continuasse a me aninhar
ali, na segurança de sua presença.
Era o suficiente. Por agora, bastava saber que ela estava ali, viva, comigo.
☙❧
Ayra Arellano
Uma semana se passou desde aquele dia caótico, e era como se tudo ao nosso
redor tivesse mudado de forma imperceptível, mas profundamente. Lira
estava diferente. Eu estava diferente. As dinâmicas entre nós, antes tão
marcadas por provocações e uma tensão controlada, agora tinham um peso
diferente, algo que eu não sabia exatamente como descrever.
Lira se tornará estranhamente protetora, o que era, no mínimo, inesperado.
Não que ela fosse descuidada antes, mas sua proteção agora beirava o
sufocante. Eu podia ver isso nas pequenas coisas: no olhar atento que ela
lançava para mim sempre que saíamos juntas, no tom mais suave quando
falava comigo, e na forma como cedia às minhas vontades sem protestar, algo
que antes parecia impossível.
Dois dias após o acidente, ela fez algo que me pegou completamente
desprevenida. Eu acordei naquela manhã, ainda meio grogue, e encontrei algo
em cima da cama, ao lado do meu travesseiro. Era uma chave. Mas não era
qualquer chave. Ela era acompanhada de um bilhete, escrito com sua
caligrafia elegante e precisa: “Dirija com cuidado, não faça modificações
nos itens de segurança. L.”
No estacionamento, descobri que Lira havia comprado para mim um
Mercedes-Benz Classe C, reconhecido como um dos carros mais seguros do
mundo. O veículo vinha equipado com todos os itens de segurança avançados
possíveis: blindagem de última geração, sensores de proximidade e
assistentes automáticos. Tudo. Era o presente mais pragmático – e mais Lira
– que eu poderia imaginar.
No entanto, a preocupação dela não parava por aí. Desde o atentado, Lira
parecia obcecada em descobrir quem havia dado a ordem para me matar.
Eu compartilhava do mesmo desejo de vingança, é claro. A ideia de alguém
tentando me tirar a vida me deixava furiosa.
Nossas noites mudaram também. Antes, eram marcadas por provocações e
malícia, momentos carregados de tensão que frequentemente terminavam em
faíscas de desejo. Agora, havia mais silêncios. Silêncios que não eram
incômodos, mas que pareciam nos envolver como um cobertor, nos tirando
do mundo.
E então, havia o carinho.
Pequenos gestos que antes pareciam impossíveis entre nós se tornaram parte
de nossa rotina. Os abraços, os toques que não precisavam de palavras, e os
beijos… ah, os beijos. Cada um deles parecia me consumir de dentro para
fora, tirando o meu fôlego e deixando minha cabeça girando.
Apesar disso, não avançávamos para algo mais. Por mais que os momentos
de intimidade fossem carregados de tesão e promessas não ditas, sempre
parávamos antes de cruzar aquela linha. Era como se estivéssemos presas em
um jogo de espera, descobrindo uma nova forma de nos conectar.
Eu me sentia como uma adolescente de novo, incapaz de controlar o desejo
que queimava em mim, mas estranhamente hesitante em ceder
completamente. E isso me assustava. Não o desejo em si, mas o motivo por
trás dele. Porque, ao lado da excitação, havia um sentimento que eu não sabia
nomear. Algo que fazia meu coração acelerar quando Lira me olhava daquele
jeito, com aquele olhar intenso que parecia despir cada camada da minha
alma.
E, às vezes, eu ficava… tímida.
Eu. Ayra Arellano. Tímida.
Era algo que nunca havia experimentado antes, e, honestamente, eu não sabia
como lidar. Era como se Lira tivesse o poder de me desarmar completamente,
de me deixar vulnerável de um jeito que ninguém jamais conseguiu.
Uma noite, enquanto estávamos deitadas lado a lado na cama, nossas mãos se
tocando de leve, eu senti o impulso de falar. De colocar em palavras o que
estava acontecendo entre nós.
— Você tem estado diferente. — Minha voz saiu mais suave do que eu
pretendia, quase um sussurro.
Lira se virou para mim, os olhos cinzentos encontrando os meus.
— Diferente como? — Ela perguntou, com aquele tom calmo e controlado
que sempre parecia esconder mais do que revelava.
Eu hesitei, mordendo o lábio antes de responder.
— Mais… — Não consegui encontrar a palavra certa, então apenas dei de
ombros, tentando desviar o olhar.
Lira, no entanto, não deixou. Ela estendeu a mão, segurando meu queixo e
me obrigando a encará-la.
— Mais o quê, Ayra? — Sua voz era suave, mas havia uma intensidade ali
que me fez engolir em seco.
— Mais cuidadosa. — Admiti, sentindo meu rosto esquentar. — Mais…
carinhosa.
O canto da boca dela se ergueu em um pequeno sorriso, algo que parecia
quase… satisfeito.
— E você gosta? — Ela perguntou, com aquele tom baixo e provocador que
parecia feito para me desarmar.
Minha primeira reação foi desviar o olhar, porque, claro, admitir isso em voz
alta parecia perigoso demais. Mas os dedos dela ainda seguravam meu
queixo, me obrigando a encará-la.
— Talvez.
Tentei soar casual, mas minha voz traiu o nervosismo que eu sentia. O sorriso
dela se ampliou, tornando-se algo entre satisfação e diversão.
— Talvez? — Lira arqueou uma sobrancelha, inclinando-se levemente, os
olhos cinzentos brilhando como se estivesse saboreando cada segundo
daquele momento. — Parece que eu preciso de mais esforço para convencê-
la.
Antes que eu pudesse responder, ela se aproximou, seus lábios capturando os
meus em um beijo lento e deliberado, como se quisesse me provar algo.
Minha respiração vacilou, e, como sempre acontecia quando estávamos tão
próximas, meu corpo cedeu antes da minha mente.
Eu retribuí o beijo, deixando que as mãos dela deslizassem para a base da
minha nuca, segurando-me com firmeza, mas ao mesmo tempo com uma
ternura que me pegou de surpresa. Quando finalmente nos afastamos, minha
cabeça girava, e Lira me olhou com aquele meio sorriso arrogante que tanto
me provocava.
— Então? Ainda só “talvez”? — Ela perguntou, a voz carregada de uma
malícia suave.
Revirei os olhos, tentando não parecer tão afetada quanto estava.
— Você é tão arrogante, Zamorano.
— E você gosta disso também. — Ela rebateu, ajustando a posição na cama
para ficar mais confortável.
Eu não respondi, apenas deitei minha cabeça em seu ombro, sentindo o calor
do corpo dela contra o meu naquela noite.
Do lado de fora, o México continuava a pulsar com sua vida caótica. Dentro
daquele apartamento, porém, era como se estivéssemos em um mundo à
parte, tentando encontrar nosso equilíbrio.
Na manhã seguinte, enquanto eu observava o sol iluminar nosso quarto, me
dei conta de que essa sensação de vulnerabilidade era, ao mesmo tempo,
assustadora e inevitável. E, por mais assustador que fosse, eu estava pronta
para descobrir o que viria a seguir.
CAPÍTULO DOZE
Lira Zamorano
A sala estava escura, exceto pela luz fria e direta que iluminava o homem
amarrado à cadeira no centro.
O cheiro de suor e sangue saturava o ar, uma mistura sufocante que parecia
aumentar a tensão. Ele estava ali há horas, mas seu estado mental tornava
tudo mais difícil. Era como se eu estivesse tentando abrir um cofre cujo
código estava danificado.
Eu o observei em silêncio por um momento. Seu corpo tremia, os olhos
vidrados se movendo de um lado para o outro sem foco. Ele murmurava
coisas desconexas, palavras sem sentido misturadas com frases curtas que
pareciam trechos de memórias. Ele não tinha a menor ideia do que estava
enfrentando.
— Você tem ideia de quem é a mulher que quase matou?
Minha voz saiu firme, controlada, escondendo a fúria latente no meu peito.
Ele levantou o olhar para mim, mas parecia olhar através de mim. Suas mãos
atadas à cadeira tremiam.
Aquele sujeito tinha sido retirado do caminhão, que atingiu a Ferrari da Ayra,
antes da polícia chegar. Só por isso eu consegui capturar e mantê-lo em
“interrogatório”.
— Não foi… não foi eu. Eles… eles me mandaram. — Ele murmurou, mas
logo começou a rir baixinho, um som irregular que arrepiou minha pele. —
Eles… Eles…
— Quem mandou você? — Perguntei, me aproximando um pouco mais,
mantendo o tom controlado, mas meu corpo inteiro estava tenso. — Fala.
Ele começou a balançar a cabeça de um lado para o outro, como se estivesse
tentando afastar algo de sua mente.
— Eles disseram que iam me dar dinheiro… muito dinheiro. — Sua voz era
trêmula, mas de repente seu tom tinha uma infantilidade perturbadora. —
Mas eu não sei o nome… Não sei.
Cerrei os dentes, sentindo a raiva subir como uma onda. Meu punho bom se
fechou, e, antes que eu percebesse, já havia acertado um soco direto em seu
estômago. Ele gritou, ofegando, mas ainda ria em meio ao gemido de dor.
— Quem são eles? Fala, droga! — Gritei, minha paciência se esgotando.
— Eu não sei! Eu não sei! — Ele choramingou, então começou a rir. — Um
homem… ele tinha olhos frios… um terno caro…
— Um homem? — Me inclinei até que meu rosto estivesse a centímetros do
dele. — Preciso de mais do que isso!
— Eu só dirigi… só dirigi! — Ele gritava agora, como uma criança
apavorada, lágrimas escorrendo pelo rosto. — Ele disse que ia me ajudar, que
eu teria dinheiro… muito dinheiro, mas eu… eu não queria fazer mal a
ninguém…
Meu corpo tremia de raiva e frustração. Eu sabia que não tiraria nada útil dele
naquele estado. Eu me endireitei, passando as mãos pelo cabelo enquanto
tentava recuperar o controle da situação.
— Certo… — Respirei fundo, apontando para os seguranças ao lado. —
Levem-no para outro lugar. Quero que continuem pressionando até
conseguirem qualquer coisa que possa ser útil.
Os homens assentiram e começaram a arrastar o motorista para fora. Antes
que ele desaparecesse pela porta, virei meu olhar para ele mais uma vez.
— Se lembrar de algo, qualquer coisa, é melhor falar. Porque, da próxima
vez, serei menos paciente.
Ele balançou a cabeça freneticamente, murmurando palavras desconexas
enquanto era levado.
Assim que a porta se fechou, senti a tensão deixar meu corpo por um breve
instante. Mas o alívio foi passageiro. Não tínhamos respostas, apenas mais
perguntas. O rosto do homem, marcado pelo medo e pela instabilidade,
permanecia em minha mente.
Eu me virei, encarando o vazio da sala. Não importava o que fosse
necessário, eu encontraria quem tentou matar Ayra. E esse alguém pagaria
caro.
☙❧
Eu desci do carro com um suspiro pesado. Minha mente ainda girava em
torno do que tinha acontecido durante o interrogatório. Nada concreto, nada
útil, apenas mais frustração acumulada. Tudo que eu queria agora era um
banho quente, talvez um pouco de silêncio, e, mais que tudo, Ayra.
Eu não tinha visto ela o dia todo, apenas mensagens esporádicas dizendo que
estava no galpão onde o projeto com a Lyza estava sendo finalizado. Aquela
distância, mesmo que breve, já deixava um incômodo estranho em mim, algo
que eu ainda não sabia como processar completamente.
Enquanto caminhava pelo estacionamento, o som de um motor familiar ecoou
pelo espaço. Reconheci imediatamente. Era o carro novo dela. Um pequeno
sorriso se formou nos meus lábios antes mesmo que eu pudesse evitar.
Instintivamente, parei e esperei.
Ela estacionou com precisão, como sempre. Quando Ayra desceu do carro,
sua figura iluminada pelas luzes da garagem me fez suspirar de novo. Mesmo
depois de um dia inteiro de trabalho, ela parecia impecável, seus movimentos
fluídos, quase hipnotizantes. Assim que seus olhos me encontraram, seu rosto
se iluminou com um sorriso amplo, e, antes que eu pudesse dizer qualquer
coisa, ela correu em minha direção como uma tempestade, os braços abertos
em um gesto teatral.
— Onde meu bebê chorão estava? — ela gritou, já pulando em mim antes
que eu pudesse reagir.
— Ayra… — bufei, pegando-a no ar automaticamente, as mãos indo direto
para sua bunda e coxa para segurá-la no lugar. Ela era mais leve do que
parecia, mas a energia que trazia com ela era sempre esmagadora. — Já disse
para não me chamar assim.
— Que tal só bebê?
De forma teatral ela perguntou, enquanto seus braços envolviam meu
pescoço.
— Eu tenho um nome, use ele!
— Me coloque no chão. Sua mão… — Ayra mandou, sem o tom brincalhão
anterior.
— Minha mão está bem, só está enfaixada, não quebrada.
— Lira…
— Quieta.
Rolei os olhos e comecei a andar com ela no colo, ignorando seus gestos
exagerados. Ayra bufou, prendendo as pernas envolta da minha cintura.
— Onde estava? — ela perguntou.
— Estava interrogando o motorista do caminhão.
Minha voz saiu seca, mas ao sentir o corpo quente dela contra o meu, não
consegui evitar apertar levemente suas coxas. Ela inclinou a cabeça, me
olhando com uma expressão cética enquanto eu apertava o botão do elevador
com o cotovelo.
— De novo? — perguntou, arqueando uma sobrancelha. — Aquele lunático
não vai ajudar em nada.
— Eu sei, mas… — Suspirei enquanto o elevador chegava, e nós entramos.
— Ele é a única peça que temos até agora. Preciso de algo. Qualquer coisa.
— Lira… — Ayra soltou o peso do corpo, ainda em meus braços, mas agora
com os braços cruzados. — Eu já vi aquele cara, e até eu dei uns socos nele.
Ele não tem nada, só é um peão perdido nesse jogo.
— E talvez o próximo peão leve algo mais útil. — Respondi, sem olhar para
ela, mas sentindo o peso de seu olhar fixo em mim.
— Ou talvez a gente esteja focando no alvo errado.
Ela rebateu, séria agora, o tom provocador substituído por algo mais sólido.
Eu a encarei finalmente. Seus olhos castanhos me estudavam, aquele brilho
desafiador misturado com preocupação.
— Quem mais você acha que podemos pressionar? — Perguntei, minha voz
mais baixa, mas firme. — Não temos nada.
Ayra inclinou a cabeça, os lábios curvando-se num pequeno sorriso que não
alcançou seus olhos.
— Talvez devêssemos começar a perguntar diretamente para aqueles que
querem nos ver falhar. — Ayra disse, sua voz suave.
O elevador abriu, e as palavras dela pairaram no ar como uma sombra. Eu
não respondi imediatamente. Em vez disso, simplesmente a carreguei para
fora, mantendo-a firme nos meus braços enquanto caminhávamos para dentro
do apartamento.
O peso da sua sugestão ecoava na minha mente, pulsando junto com os
outros pensamentos que não paravam de se acumular.
Assim que chegamos à sala, fui direto para o sofá, sentando-me com Ayra
ainda no meu colo. Ela não fez questão de se mover, na verdade, se ajeitou
mais perto, envolvendo os braços ao redor do meu pescoço e deixando um
beijo leve no meu ombro. Um gesto tão casual e íntimo que me fez quase me
derreter por dentro.
— Metade do México nos odeia agora.
Ayra riu baixinho, o som vibrando contra minha pele enquanto seus lábios se
moviam na extensão do meu pescoço. Seus dentes roçaram suavemente a
curva da minha orelha, e eu senti minhas mãos apertarem automaticamente
sua cintura.
— Vamos começar pelos “inimigos principais” — sugeriu ela, sussurrando
contra a minha pele. — Aqueles que mais afetamos assumindo os negócios
com a Lyza. Posso hackear informações e você pode plantar informantes
entre eles.
Seus olhos encontraram os meus, castanhos profundos, cheios daquela
convicção que só ela tinha.
— Pode ser arriscado se descobrirem que estamos fazendo isso e eles não
forem os culpados.
Retruquei, tentando me concentrar apesar do calor do corpo dela pressionado
contra o meu. Ayra deu de ombros, um pequeno sorriso provocador
brincando em seus lábios.
— A vida é um risco…
Arya respondeu com simplicidade. Eu bufei, sentindo meu autocontrole
vacilar ainda mais.
— Você é tão imprudente. — Respondi, minha voz saiu mais rouca do que eu
pretendia.
O sorriso dela se alargou, e, antes que eu pudesse dizer mais alguma coisa,
Ayra se inclinou, mordiscando meu lábio de forma provocante. Meu corpo
inteiro reagiu ao toque, meu coração batendo forte com o tesão que sempre
parecia acender facilmente quando ela estava perto.
— Eu sei. — Ayra murmurou, os olhos dançando com malícia. — E o que
você vai fazer sobre isso?
Ah, havia muitas coisas que eu poderia fazer. Mas, naquele momento, decidi
que uma pequena provocação seria mais divertida. Sem aviso, levantei Ayra
do meu colo e a joguei suavemente para o lado, no sofá. O olhar indignado
que ela me lançou foi tão engraçado que precisei esconder meu sorriso.
— Vou fazer o jantar. — Disse com tranquilidade enquanto me levantava.
— Idiota. — Ela resmungou, cruzando os braços com um bico irritado que só
fazia ela parecer mais irresistível.
Eu ri baixinho, tirando os sapatos e desabotoando os punhos da minha camisa
para enrolar as mangas. Antes de sair, lancei um olhar divertido para ela,
piscando de leve.
— Paciência é uma virtude, querida. — Provoquei.
Ayra me mostrou a língua, infantil e adoravelmente teimosa, enquanto eu saía
para a cozinha. No entanto, por dentro, eu estava sorrindo. Pela primeira vez
desde que saí para o interrogatório, senti que, pelo menos ali, em casa, com
ela, as coisas estavam sob controle. E, por enquanto, isso bastava.
☙❧
Ayra Arellano
Dias passaram, mas tudo parecia mais intenso. O México fervilhava com a
nossa movimentação, e as peças do acordo com Lyza começavam a se
encaixar. O galpão que Lira e eu tínhamos escolhido para centralizar as
operações era amplo, com corredores organizados e linhas de produção
cuidadosamente ajustadas.
Cada detalhe tinha sido planejado para impressionar e para funcionar como o
relógio de Lyza Ferraro exigia. E agora ela estava aqui, pessoalmente, para
inspecionar o resultado do trabalho.
Eu estava na entrada do galpão quando os carros pretos surgiram,
atravessando os portões como uma procissão de predadores silenciosos. Lyza
saiu do veículo central, cercada por seguranças. Eles estavam armados até os
dentes, com olhares atentos que varriam o ambiente como se esperassem que
um ataque pudesse surgir a qualquer momento.
Ela estava impecável, como sempre. Vestia um terno cinza ajustado, e seu
cabelo estava preso em um coque perfeito. Lyza era a imagem do poder. Seus
olhos varreram o local, parando brevemente em mim, antes de se moverem
em direção ao galpão.
— Senhorita Arellano, senhora Zamorano. — Sua voz era fria, mas havia um
leve sorriso nos lábios. — Mostrem-me o que vocês fizeram.
Lira apareceu ao meu lado, séria e confiante, com aquele ar de controle
absoluto que ela carregava tão bem. Eu mantive o olhar fixo em Lyza,
acenando para que ela nos seguisse enquanto adentrávamos o galpão.
O som das máquinas ecoava suavemente pelo espaço. Operários estavam em
seus postos, simulando a rotina que começaríamos oficialmente na próxima
semana. Cada setor tinha sido equipado com tecnologia de ponta, algo que
Lyza exigiu desde o início. Lira e eu tínhamos trabalhado incansavelmente
para garantir que tudo estivesse pronto a tempo, e agora cada detalhe parecia
valer a pena.
Lyza caminhava lentamente, seus olhos atentos analisando cada canto. Os
seguranças dela permaneciam a uma distância calculada, mas não relaxavam
nem por um segundo. Eu podia sentir a tensão no ar, o peso da presença dela.
Quando chegamos ao centro do galpão, onde os escritórios ficavam, Lyza
parou. Ela virou-se para nós, cruzando os braços.
— Impressionante. — Disse, finalmente. — Vocês duas fizeram um trabalho
muito eficiente. Mais rápido do que eu esperava, para ser honesta.
Eu troquei um olhar rápido com Lira, que manteve sua expressão neutra, mas
pude notar o brilho de orgulho em seus olhos.
— Rapidez era fundamental, senhora Ferraro. — Lira respondeu, sua voz
firme. — E também era do nosso interesse começar o quanto antes.
Lyza assentiu lentamente, seus olhos avaliando Lira como se estivesse
buscando alguma falha em suas palavras. Finalmente, ela sorriu, um gesto
que parecia mais calculado do que genuíno.
— Muito bem. Vocês têm o meu sinal verde. Quero que as operações
comecem imediatamente. Não há espaço para erros, e vocês sabem o que está
em jogo.
— Perfeitamente. — Respondi, meu tom calmo. — Tudo sairá perfeito.
Lyza deu um passo mais perto de mim, seu olhar penetrante.
Lyza sorriu novamente, inclinando ligeiramente a cabeça antes de se afastar.
Depois que Lyza terminou a inspeção, ela nos acompanhou até a saída, onde
seus seguranças já estavam de prontidão.
— Vocês me surpreenderam hoje. — Disse ela, antes de entrar no carro. —
Não me decepcionem no futuro.
Com isso, ela desapareceu, os carros sumindo na poeira do caminho. Fiquei
ali por um momento, observando a poeira assentar.
— Foi um elogio ou uma ameaça?
Eu perguntei, olhando para Lira. Ela deu um leve sorriso, mas sua voz saiu
séria.
— Provavelmente os dois.
Suspirei, passando a mão pelo cabelo. O trabalho estava apenas começando, e
a sensação de alívio era mesclada com o peso da responsabilidade que agora
pairava sobre mim e Lira. Mas, pela primeira vez em semanas, parecia que
havíamos conseguido algo real, algo sólido.
Agora, só restava garantir que tudo saísse como planejado.
Antes que eu pudesse dizer algo, senti a mão da Lira pousar na minha cintura.
O toque era quente, firme, e possessivo, que eu tinha aprendido a aceitar.
Talvez até a gostar. Ela me puxou gentilmente para mais perto, o olhar fixo
no meu.
— Vamos jantar. — disse ela, sua voz calma, mas carregada de um tom que
não deixava espaço para protestos. — Temos uma vitória a comemorar.
— Quem diria que você ficaria “festeira”, Zamorano.
Lira sorriu, mas não disse nada. E assim, meia hora depois estávamos
entrando no restaurante que ela escolheu.
Era um lugar discreto, aconchegante, com uma iluminação baixa e uma
música suave ao fundo. Não era o tipo de lugar que frequentávamos para
negócios ou reuniões. Parecia mais íntimo, quase como se tivesse sido
escolhido para nos dar um momento de descanso de tudo o que estava
acontecendo.
Sentamos em uma mesa no canto, longe de olhares curiosos, e pela primeira
vez em dias, eu me senti… tranquila. Lira pediu vinho, enquanto eu folheava
o menu, fingindo prestar atenção, mas na verdade apenas observando ela de
soslaio.
A forma como segurava a carta de vinhos, com os dedos longos e elegantes, a
maneira como inclinava levemente a cabeça enquanto lia. Tudo nela parecia
tão irresistível, mas havia uma suavidade nova, que apenas agora eu
começava a enxergar.
— Vai pedir o quê? — Ela perguntou, sem levantar os olhos.
— Não sei. — Respondi, apoiando o queixo na mão. — O que você acha que
eu deveria pedir?
Ela finalmente me olhou, os olhos cinzentos brilhando com uma mistura de
diversão e cansaço.
— Algo que você realmente goste…
— Você é tão rabugenta. Estou deixando você escolher para mim.
Eu ri baixinho, pegando o menu novamente, mas acabei escolhendo algo
simples. Lira fez o mesmo, sem o usual questionamento sobre ingredientes ou
exigências detalhadas. Era como se ambas tivéssemos decidido,
silenciosamente, que aquela noite seria diferente.
Quando o vinho chegou, ela serviu nossas taças, e brindamos sem muitas
palavras. O silêncio entre nós não era desconfortável, mas carregado de algo
que eu não conseguia definir. Uma conexão, talvez, ou apenas o cansaço
compartilhado de semanas de tensão constante.
— Eu tenho que admitir… — comecei, girando o vinho na taça antes de
beber um gole. — Não esperava um lugar assim de você. Achei que sua ideia
de comemoração fosse algo mais… grandioso.
Lira arqueou uma sobrancelha, um pequeno sorriso surgindo em seus lábios.
— Achei que você preferisse algo mais tranquilo. — Disse ela, dando de
ombros. — Nem tudo precisa ser um grande evento.
— Isso foi… gentil da sua parte. — Respondi, meio surpresa, meio
provocadora. — Eu gostei.
Ela apenas deu um pequeno sorriso enigmático, desviando o olhar. A comida
chegou logo depois, e começamos a comer em um ritmo lento e
despreocupado. Era quase surreal estar ali, sem urgência, sem pressão.
— Se você não estivesse envolvida com o cartel, o que acha que estaria
fazendo agora? — Perguntei, quebrando o silêncio enquanto girava o vinho
na taça.
Lira parou por um momento, o garfo suspenso no ar. Era raro ver ela refletir
tão abertamente, mas havia algo na nossa leveza naquela noite que parecia
permitir isso.
— Não sei ao certo. — Disse ela, finalmente. — Talvez algo que envolvesse
números. Eu sempre gostei de estratégias, de resolver problemas… Talvez
tivesse aberto uma empresa de consultoria ou algo assim.
Ri baixinho, imaginando Lira Zamorano de terno, em uma sala de reuniões,
falando de planilhas.
— Isso combina com você. Controladora e meticulosa como é, ia se sair
muito bem.
— E você? — Ela rebateu, olhando diretamente para mim. — O que você
faria se não estivesse no cartel?
Eu fiquei em silêncio por um momento, pensando. Era difícil imaginar uma
vida fora disso, mas a pergunta dela parecia genuína, quase… íntima.
— Acho que seria artista. — Respondi, surpreendendo até a mim mesma. —
Sempre gostei de dançar e desenhar. Talvez tivesse um pequeno estúdio em
algum lugar calmo, longe de tudo isso.
— Artista, é? — Lira arqueou uma sobrancelha, um pequeno sorriso surgindo
nos lábios. — Não consigo imaginar você longe de confusão.
— Ei! — Protestei, rindo. — Mesmo artistas têm um lado caótico, mas é um
caos criativo. Bem diferente do caos em que estamos agora.
Ela riu baixinho, algo genuíno e raro. Era um som que fazia meu peito
aquecer de um jeito inesperado.
— E viagens? — Perguntei, mudando de assunto. — Se você pudesse
escolher qualquer lugar no mundo para visitar, onde seria?
Lira inclinou a cabeça levemente, pensativa.
— Talvez o Japão. — Disse ela, depois de um momento. — A cultura, a
ordem, a forma como tudo parece funcionar perfeitamente… Isso sempre me
fascinou.
— O Japão? — Sorri. — Eu devia imaginar que você ia apreciar a calmaria.
— Não é só calmaria. — Ela respondeu, séria. — É sobre a precisão, a
dedicação a cada detalhe. Acho que gosto disso.
Fiquei olhando para ela por um momento, intrigada pela forma como Lira
parecia me entregar peças do quebra cabeça complexo que ela era.
— E você? — Ela perguntou, me puxando de volta para a conversa. — Qual
seria o seu destino?
— Itália. — Respondi imediatamente, meu rosto se iluminando. — As
cidades pequenas, os vinhedos, a comida… Parece um sonho.
— Itália, hein? — Ela repetiu, como se considerasse a ideia. — Talvez
devêssemos conhecer.
Minha cabeça virou na direção dela, surpresa.
— Está dizendo que deveríamos viajar juntas?
— Por que não? — Lira deu de ombros, mas havia um pequeno sorriso em
seus lábios. — Seria bom ver o mundo além do caos que estamos
acostumadas.
Fiquei em silêncio por um momento, tentando decifrar o que ela realmente
queria dizer. Mas, naquele instante, percebi que, pela primeira vez, Lira
parecia estar pensando em algo fora do que o cartel exigia. Algo… para nós
talvez? Não sei, mas a ideia, me deixou tolamente animada.
— Então, Itália primeiro? — Perguntei, tentando esconder o sorriso.
— Ou Japão. — Ela rebateu, brincando.
Nós rimos juntas, e a noite continuou leve, cheia de possibilidades que
pareciam absurdamente distantes, mas estranhamente reais.
☙❧
Lira Zamorano
As últimas semanas haviam sido um turbilhão. Desde que iniciamos nossa
parceria com a Lyza, cada dia parecia uma batalha diferente. Mas, pela
primeira vez em meses, as coisas estavam começando a se estabilizar.
O México estava sob controle, as operações rodando conforme o planejado, e
até Arturo e Javier, contra todas as probabilidades, estavam em silêncio. Ayra
e eu havíamos conseguido o impossível: manter tudo em ordem.
Eu estava sentada no escritório do apartamento, revisando relatórios
financeiros e logísticos que haviam chegado naquela manhã. A rotina de
trabalho já era tão constante que mal percebi Ayra entrar, até ouvi-la colocar
algo na mesa com um som seco.
Levantei o olhar e lá estava ela, com os braços cruzados, uma expressão que
misturava cansaço e provocação. Ela me encarava como se esperasse algo.
— Precisa de alguma coisa? — Perguntei, apoiando o queixo na mão.
— Preciso de um descanso, Zamorano. — Ela respondeu, direta, mas com
um brilho nos olhos que eu reconhecia bem: Ayra estava à beira de reclamar
mais do que o necessário.
Suspirei, voltando meu olhar para os papéis, mas decidi não prolongar o
suspense. Peguei o envelope que estava ao lado do laptop e estendi para ela.
— Acho que você vai gostar disso.
Ayra franziu o cenho, pegando o envelope com desconfiança, e o abriu.
Dentro, havia duas passagens para a Itália. Eu já tinha providenciado tudo:
um resort à beira-mar, longe de qualquer coisa que lembrasse trabalho, e o
suficiente para garantir que Ayra não reclamasse pelo menos por uma
semana.
— Itália? — Ela ergueu os olhos para mim, surpresa, mas logo os estreitou.
— Férias, Zamorano? Desde quando você tira férias?
— Desde que percebi que duas semanas sem uma pausa decente estão me
deixando insuportável. — Dei de ombros, voltando minha atenção para os
papéis. — E você também, caso não tenha notado.
Ela riu, um som curto e incrédulo, mas pegou uma cadeira e se sentou do
outro lado da mesa, ainda segurando as passagens.
— Isso é sério? Nós? De férias? — Ela perguntou, balançando as passagens
como se fossem um conceito estranho.
Levantei o olhar e cruzei os braços.
— A parceria com a Lyza foi um sucesso, o que significa que podemos nos
dar ao luxo de uma pausa. E, francamente, você tem reclamado tanto que eu
não sei mais se está irritada comigo ou com o mundo inteiro.
— Talvez os dois. — Ela deu de ombros, mas o sorriso nos lábios traiu o tom
casual.
— Então aproveite a oportunidade. Vamos amanhã de manhã.
Ela piscou, surpresa.
— Amanhã? Você não perde tempo, hein?
— Se eu esperar mais uma semana, vou querer cancelar tudo. — Retruquei,
me inclinando na cadeira. — Então, trate de arrumar suas coisas.
Ayra me observou por um momento, como se tentasse decifrar minhas
intenções, mas então deu de ombros e sorriu de canto.
— Tudo bem. Mas espero que você saiba relaxar, Zamorano.
— Eu sei. — Respondi com firmeza, embora tivesse minhas dúvidas.
Ela se levantou, ainda segurando as passagens, mas, em vez de sair do
escritório, deu a volta na mesa rapidamente e se aproximou de mim. Antes
que eu pudesse reagir, Ayra segurou meu rosto com as mãos e me beijou. O
gesto foi tão repentino e cheio de entusiasmo que me pegou desprevenida.
— Itália! — Ela exclamou, rindo, quando se afastou. — Você sabe agradar
quando quer, Zamorano.
Eu não respondi de imediato, observando o sorriso radiante que iluminava
seu rosto. Era raro vê-la tão despreocupada, quase como uma criança que
acabou de ganhar um presente inesperado.
— É, parece que sim… — Admiti, vendo o brilho nos olhos dela aumentar.
— Mas você parece feliz demais para alguém que ainda tem malas para fazer.
Ela riu de novo, me puxando para mais um beijo rápido antes de finalmente
dar um passo para trás.
— Tudo bem, esposa. Vou arrumar minhas coisas, mas não espere que eu vá
com calma.
E, com isso, ela saiu do escritório, praticamente saltitando. Eu fiquei ali,
observando a porta, um sorriso involuntário surgindo no canto dos meus
lábios. Ayra era uma tempestade de emoções, e isso estranhamente me fazia
feliz.
☙❧
Ayra Arellano
O aeroporto estava movimentado, mas isso não me incomodava. Na verdade,
meu foco estava completamente em Lira, que andava ao meu lado com sua
habitual postura confiante. Sempre impecável, ela atraía olhares por onde
passava. Era algo que eu deveria ter me acostumado, mas naquele momento,
o jeito como um dos comissários de bordo olhou para ela fez meu sangue
ferver.
Ele a cumprimentou de maneira formal, claro, mas havia algo no olhar dele
que ultrapassava o limite da cortesia. Lira, como sempre, não parecia notar
ou, mais provavelmente, não se importava. Já eu? Bem, eu me aproximei
mais, enlaçando seu braço e deslizando minha mão pelo dela de forma
possessiva, entrelaçando nossos dedos enquanto me inclinava mais perto.
Fiz questão de exibir a aliança no meu dedo, com a esmeralda brilhando sob
as luzes da cabine. Lira ergueu as sobrancelhas para mim, mas não disse
nada, permitindo que eu marcasse território do jeito mais óbvio possível.
O comissário murmurou algo educado e nos conduziu aos nossos assentos,
mas eu continuei com a mão firme na Lira. Assim que nos sentamos, ela me
lançou um olhar divertido.
— Sério? — Perguntou, com um pequeno sorriso de canto.
— Sério o quê? — Retruquei, inocentemente, enquanto ajustava o cinto de
segurança.
— Toda essa… cena. — Ela fez um gesto com a mão entre nós. — Isso tem
algo a ver com o comissário que mal olhou para mim?
— Ele olhou, sim. — Respondi, firme, cruzando os braços. — E não gostei
do jeito que ele olhou.
— Ayra… — Lira suspirou, mas seu tom era mais indulgente do que
repreensivo.
— Só estou cuidando do que é meu. — Declarei, erguendo meu queixo.
— E eu por acaso sou sua?
Ela perguntou, a provocação dançando em seus lábios. Virei minha mão para
que a esmeralda brilhante ficasse em sua linha de visão.
— A aliança no seu dedo prova que sim. — Respondi, com um sorriso
confiante.
Lira me observou por um momento, como se avaliasse minha resposta, antes
de um pequeno sorriso surgir em seus lábios.
— Não quer colocar uma coleira em meu pescoço com seu nome também,
então? — Ela perguntou, inclinando-se ligeiramente para mim.
— Não me dê ideias, Zamorano. — Retruquei, um sorriso provocador em
meu rosto.
Lira riu, uma risada baixa e sincera que fez todo seu corpo vibrar. Era
viciante, e eu me perdi naquele som. Sem pensar muito, me aconcheguei mais
perto dela, descansando o rosto na curva do seu pescoço.
— Quando ri assim, você é adorável, esposa…
Sussurrei, sem olhar para ela, mas sabendo que meu comentário a atingira.
Ela ainda sorria, podia sentir. Então, para completar o momento, Lira
inclinou a cabeça e deixou um beijo suave nos meus cabelos.
A decolagem veio e foi, mas a sensação de estarmos em nosso próprio mundo
continuou. Eu estava confortável ali, ao lado dela, mais do que jamais pensei
ser possível.
☙❧
Chegar à Itália foi como entrar em um sonho. O aeroporto tinha aquele
charme europeu que parecia se estender para tudo ao redor: arquitetura
elegante, uma brisa suave trazendo o cheiro do mar distante, e um ritmo de
vida que era quase hipnotizante. Mas, se eu já achava o aeroporto bonito, foi
apenas uma pequena amostra do que viria.
Assim que saímos da área de desembarque, fomos recebidas por um
motorista que nos aguardava com um carro preto luxuoso. Lira, como
sempre, estava no controle, trocando algumas palavras rápidas com o
motorista enquanto eu admirava o ambiente ao nosso redor.
A Itália tinha uma vibração que me fez sentir uma estranha mistura de calma
e excitação. Não sei se era o destino ou a companhia, mas algo ali parecia
perfeito.
O trajeto até o resort foi deslumbrante. A estrada serpenteava ao lado do mar,
com vistas de tirar o fôlego a cada curva. A Lira estava ao meu lado, como
sempre impecável, mas com um pequeno sorriso no rosto, talvez capturando
o mesmo encanto que eu. Não falamos muito durante o caminho, mas o
silêncio foi confortável. Apenas observei o cenário passando e senti que, por
alguns dias, estávamos longe do caos de nossas vidas no México.
Quando finalmente chegamos ao resort, tive que me lembrar de fechar a boca.
Era um paraíso escondido, com construções brancas contra o azul brilhante
do mar, palmeiras balançando suavemente e um ar de exclusividade que fazia
tudo parecer quase irreal. Enquanto Lira conversava com a recepção sobre o
check-in, eu aproveitei para explorar com os olhos, já ansiosa para pisar na
areia e sentir o mar nos pés.
Pouco tempo depois, fomos conduzidas à nossa suíte, que era, sem dúvida, a
coisa mais luxuosa que eu já tinha visto. Uma sala ampla e moderna com
janelas do chão ao teto dava vista para uma piscina privativa, cercada por
plantas tropicais. Além disso, havia uma varanda com espreguiçadeiras
perfeitamente posicionadas para o pôr do sol, como se o lugar tivesse sido
projetado para filmes românticos.
— Isso é… exagerado até para você, Zamorano. — Brinquei, deixando
minha mala de mão no chão e observando o lugar.
— Apenas o melhor. — Respondeu Lira, já acomodando suas coisas no
armário, como se aquele nível de luxo fosse a coisa mais normal do mundo.
Eu me aproximei da cama king-size, correndo os dedos pelo lençol de
algodão macio antes de abrir minha mala. Eu sabia exatamente o que queria
pegar. Minutos depois, Lira saiu do closet, ajeitando a camisa, apenas para
dar de cara comigo já tirando o vestido.
Ela parou no meio do caminho. Não disse nada de imediato. Apenas me
observou. E eu sabia exatamente o que estava acontecendo na mente dela.
Meu vestido deslizou pelo meu corpo até o chão, e eu não hesitei em me
despir completamente. O silêncio na sala era palpável, carregado de algo que
ia além de uma simples tensão. Eu me virei lentamente, pegando o biquíni, e
quando olhei para Lira, ela ainda estava lá, parada. Os olhos cinza estavam
fixos em mim, queimando com algo cru e impossível de esconder.
— Sério? — A voz dela finalmente rompeu o silêncio, mas estava rouca,
diferente da calma controlada que ela sempre tentava manter.
— Sim, sério. — Respondi casualmente, colocando o biquíni. — Algum
problema?
O tecido vermelho contra minha pele pálida era um contraste gritante, quase
provocador. Ajustei as alças, deixando claro que sabia exatamente como
aquilo caía no meu corpo.
O olhar da Lira ficou ainda mais intenso, e, por um momento, parecia que ela
estava lutando para não avançar sobre mim. O que era uma pena. Afinal a
atração crua que brilhava em seus olhos era impossível de conter, mesmo
para alguém tão metódica e controlada quanto ela. Mas o que mais chamou
minha atenção foi o jeito que ela se aproximou, com passos lentos e medidos,
como um predador avaliando sua presa.
— Esse biquíni… é minúsculo. — Disse, o tom baixo e levemente áspero.
— Você acha? — Perguntei com um sorriso, me divertindo com a tensão que
parecia irradiar dela. — Tem certeza?
Ela não respondeu de imediato. Seus olhos traçaram cada curva minha, e,
antes que eu percebesse, suas mãos estavam no meu quadril. O toque não era
leve; era possessivo, quente, como se ela estivesse marcando um território
invisível.
— Certeza absoluta. — Murmurou, com um sorriso que parecia uma mistura
de aprovação e reprovação. — Estou começando a achar que você planejou
isso, Arellano.
Eu ri, me inclinando para frente até nossos rostos estarem perigosamente
próximos.
— Talvez eu tenha. E, pelo jeito, funcionou.
Ela bufou, mas não recuou. Ao contrário, seu aperto ficou mais firme, e seus
olhos encontraram os meus, cinzas e sombrios.
— Vamos logo para a praia antes que eu mude de ideia. — Lira disse,
soltando meu quadril a contragosto, mas antes que pudesse se afastar
completamente, deslizou a mão pelas minhas costas, deixando um rastro de
calor onde me tocava. — Mas coloque uma saída de praia por cima.
Ela não pediu, ordenou. Eu levantei uma sobrancelha, mas não discuti. Fui
até a cama, pegando a peça leve e transparente, vestindo-a com a calma de
quem sabia que estava sendo observada. A saída mal escondia o biquíni, o
tecido fluído apenas realçando o contraste da minha pele contra o vermelho
vibrante.
— Feliz agora, esposa? — Perguntei, me virando e apoiando as mãos na
cintura.
Lira não respondeu imediatamente, mas seus olhos escanearam meu corpo
com uma intensidade que me fez sorrir. Quando ela finalmente respondeu,
sua voz era baixa, mas firme.
— Você não facilita. — Resmungou, colocando os óculos escuros enquanto
pegava a bolsa de praia. — Deveria ter escolhido um destino onde você
usasse mais roupa.
Ri alto enquanto saímos da suíte, sabendo que, apesar de suas palavras, Lira
estava mais possessiva do que nunca. E, se eu fosse honesta, eu adorava.
A caminhada até a praia foi curta, e assim que chegamos, a vista era de tirar o
fôlego. A praia estava quase deserta, com poucas espreguiçadeiras ocupadas
por turistas preguiçosos e casais em busca de sossego. A areia era fina e
dourada, e o mar refletia o céu azul em um brilho que parecia irreal.
Eu respirei fundo, sentindo o cheiro do sal e do calor.
— Bem, esposa, acho que você acertou no destino desta vez. — Sorri,
provocando enquanto olhava ao redor. — Esse paraíso tem até a sua cara,
sofisticado e um pouco intimidante.
— Você só gosta porque pode exibir esse biquíni. — Lira retrucou, lançando
um olhar significativo para mim enquanto ajustava os óculos escuros.
— Não vou mentir, adoro uma plateia. — Dei uma piscadela, tirando a saída
ajustando a alça fina do biquíni vermelho enquanto me sentava em uma
espreguiçadeira. — Mesmo que você controle isso agora.
Lira apenas revirou os olhos, mas seu queixo endureceu, como sempre fazia
quando estava fingindo não se importar. Ela se acomodou ao meu lado, mas
mesmo sob o guarda-sol, sua atenção estava dividida. Não com o mar, mas
com as poucas pessoas que olhavam descaradamente na minha direção.
Os olhares eram inconfundíveis, e eu senti o sorriso crescer nos meus lábios.
Mas é claro que notei que os olhos de algumas mulheres e até de alguns
homens também encontravam a figura de Lira, com sua postura impecável e a
elegância natural que parecia não ter esforço.
Ela chamava tanto atenção com aquela pele naturalmente bronzeada. eus
cabelos negros presos de forma que nenhuma mecha atrapalhasse sua visão,
os óculos escuros que escondiam os olhos cinzentos. Porém, Lira, estava
completamente alheia a isso. Sua atenção estava toda em mim.
Eu deitei na espreguiçadeira, deixando o sol aquecer minha pele. Fechei os
olhos, mas sabia que ela estava me observando... Podia sentir o peso do olhar
de Lira, uma mistura de irritação contida e algo muito mais possessivo.
A brisa era suave, mas o sol… o sol estava começando a deixar sua marca em
mim. Os meus ombros, em especial, já estavam começando a protestar, mas
eu não me importava. Foi então que ouvi o som de Lira se levantando. Eu
abri um olho para vê-la pegando o frasco de protetor solar.
— Você está se queimando. — Disse, sua voz carregada de autoridade.
— Estou aproveitando. — Retruquei, preguiçosa.
— Ayra, levante-se.
Havia algo na firmeza dela que fez minha provocação murchar. Suspirei
dramaticamente, mas obedeci, me sentando devagar.
Lira se abaixou ao meu lado, espalhando o creme nas mãos antes de começar
a aplicá-lo nos meus ombros e nas costas.
— Você é terrível em se cuidar. — Disse ela, concentrada no que fazia.
— E você é mandona.
Retruquei, tentando soar casual, mas o toque das mãos dela na minha pele era
tão cuidadoso que minha voz saiu mais suave do que eu pretendia.
Ela bufou, mas continuou seu trabalho, deslizando os dedos pelos meus
ombros e pela parte superior das minhas costas. Seus movimentos eram
metódicos, mas havia algo muito íntimo na forma como ela fazia isso, algo
que me fez engolir em seco.
Eu me virei levemente para olhá-la, encontrando o rosto dela ainda escondido
sob os óculos escuros.
— Não precisava se incomodar. — Murmurei.
— Claro que precisava. Não vou ouvir você reclamar depois.
Eu sabia que havia mais. Ela se importava, mesmo que não dissesse. Era algo
que vinha percebendo mais e mais. Lira tinha uma forma única de demonstrar
o que sentia, escondendo o cuidado por trás de ações práticas e gestos que,
para ela, provavelmente pareciam insignificantes.
Quando terminou, Lira se sentou novamente no seu lugar, mas seu olhar
varreu a praia. Havia algo afiado em sua expressão, como se estivesse
garantindo que ninguém mais tivesse motivos para olhar na minha direção.
— Deite-se. — Ela voltou a me encarar. — Agora fique quieta e aproveite o
dia sem se destruir.
Eu ri, balançando a cabeça.
— Mandona.
Ela não respondeu, mas a sombra de um sorriso passou pelos seus lábios.
Olhei para ela por um momento, deixando meus olhos vagarem pelo seu
perfil, a forma como a luz dourada do sol parecia suavizar seus traços
normalmente firmes. Diaba adorável e linda.
— [6]Grazie, esposa. — Falei com um sorriso.
Ela só balançou a cabeça, mas aquele pequeno sorriso, ficou maior, curvou os
cantos dos seus lábios.
Dei um sorrisinho. Eu me ajeitei novamente na espreguiçadeira, relaxando
sob o olhar atento de Lira. E, pela primeira vez em muito tempo, senti algo
próximo da paz. Não porque a praia era tranquila, mas porque, de alguma
forma, eu me sentia pela primeira vez em muito tempo, cuidada.
☙❧
Lira Zamorano
A brisa morna da Itália carregava o aroma dos restaurantes da vila dentro do
resort, misturando cheiros de ervas frescas, massas e vinho.
Ayra estava ao meu lado, segurando minha mão com firmeza, mas a cada
poucos passos, seu olhar era capturado por algo novo. Uma vitrine de doces,
um pequeno bistrô com mesas charmosas, ou até mesmo o som de um músico
tocando violino em uma esquina. Tudo parecia encantá-la, e ela parecia
incapaz de esconder sua animação.
— Lira, olha isso! — Ayra apontou para uma vitrine cheia de cannolis, os
olhos brilhando. — Não parece delicioso?
Eu balancei a cabeça, não pela vitrine, mas pela visão dela. Havia algo tão
infantil, tão despreocupado naquele sorriso que quase me deixou sem ar. Era
diferente de tudo que eu já tinha visto nela antes. Não havia cinismo,
sarcasmo ou jogos. Só pura e sincera alegria. E aquilo… era perigosamente
viciante.
— Sim, parece. — Respondi, minha voz mais baixa do que eu pretendia,
como se tivesse medo de quebrar o momento.
Ayra se virou para mim, o sorriso ainda nos lábios. E então, sem aviso, se
inclinou para roubar um beijo. Foi travesso e suave, um toque tão rápido
quanto um sopro. Quando ela se afastou, a risada que escapou de seus lábios
era despreocupada, genuína.
— Você está rindo de mim? — Perguntei, tentando parecer irritada, mas
falhando miseravelmente. Eu sabia que meu tom estava mais suave do que
deveria.
— Talvez. — Ela respondeu, dando de ombros, antes de apertar minha mão e
me puxar para continuar andando. — Mas é porque você parece tão séria,
mesmo aqui, nesse lugar lindo. Quero ver você relaxar um pouco, Zamorano.
Ela dizia aquilo com tanta leveza que era quase fácil esquecer que nossa vida
fora daquele lugar era um caos constante. Quase. Mas eu não podia ignorar o
peso que carregamos. Especialmente eu.
Conforme andávamos pelas ruas de pedras iluminadas por luzes quentes, eu
não conseguia desviar o olhar dela. Cada gesto, cada risada, cada pequeno
movimento que mostrava aquele lado mais doce dela parecia me puxar mais
fundo para algo que eu sabia ser perigoso.
Porque, enquanto olhava para Ayra, tudo que eu queria era manter aquele
sorriso para sempre. E isso era um problema.
Eu sabia o que a vida no cartel podia fazer. O que ela já tinha feito comigo.
Tudo que um dia foi importante para mim, que eu amei ou valorizei, foi
arrancado de mim. Às vezes pela brutalidade, às vezes pela manipulação de
Arturo, mas sempre com a mesma consequência: perda. Eu não podia me
permitir sentir isso por Ayra. Não podia me permitir gostar tanto assim dela.
E ainda assim, quando ela parou de novo, inclinando-se para observar algo
em uma loja, e voltou para mim com mais um beijo roubado e um sorriso
travesso, eu soube. Soube que, se isso significasse mantê-la ao meu lado, eu
faria absolutamente tudo.
— Você está muito calada. — Ayra disse, olhando para mim com os olhos
castanhos cheios de curiosidade. — O que foi?
— Nada. — Respondi, apertando sua mão. — Só estou tentando acompanhar
seu ritmo. Você está… muito animada.
Ela riu de novo, aquele som doce que parecia derreter um pouco mais do gelo
que eu construí ao redor de mim mesma.
— E você devia estar também. — Disse ela. — Aqui, comigo, não tem
espaço para preocupações, Zamorano. Por enquanto, é só a gente.
Eu queria acreditar nisso. Queria me perder naquele momento, naquela bolha
de normalidade e felicidade que ela estava me oferecendo. Mas sabia, no
fundo, que não importava o quanto eu quisesse, nossa realidade sempre
estaria nos esperando, como uma sombra ao nosso redor.
Mesmo assim, naquele instante, decidi me permitir pelo menos fingir que
aquilo era possível. Então me inclinei, puxando Ayra para mais perto, e desta
vez, fui eu quem roubou um beijo. Mais longo, mais profundo. Quando nos
separamos, ela estava com aquele sorriso provocador nos lábios.
— Isso foi inesperado. — Ela murmurou, mas sua expressão dizia que ela
tinha adorado.
— Eu só estou… aproveitando o momento. — Respondi, tentando soar
casual, mas minha voz carregava algo mais.
Ayra pareceu notar, mas não disse nada. Apenas me puxou de volta para o
caminho, e eu a segui, sentindo o peso da minha realidade, mas também o
alívio de saber que, por enquanto, ela estava ali e estávamos seguras.
☙❧
A noite na estava perfeita, e o som do mar, mesmo distante, parecia se
harmonizar com cada batida do meu coração. Ayra e eu tínhamos caminhado
de volta ao resort, nossas conversas alternando entre provocações e silêncios
confortáveis. Mas, agora, ao fechar a porta da suíte atrás de nós, o silêncio
tomou um significado completamente diferente.
Assim que entramos no quarto, ela jogou as sandálias para o lado e foi direto
para a cama, caindo de costas nos lençóis impecavelmente brancos. O sorriso
preguiçoso que surgiu em seus lábios me fez soltar um suspiro baixo. Havia
algo quase infantil em sua alegria descomplicada, mas o jeito como ela
estendeu a mão para mim, convidando-me silenciosamente, era tudo menos
inocente.
Eu fechei a porta atrás de mim, tirando minha camisa com um movimento
rápido antes de me juntar a ela. Ayra me observava com aqueles olhos
castanhos profundos que pareciam capturar cada detalhe, como se ela
estivesse mapeando cada pedaço de mim. Não pude evitar o pequeno sorriso
que surgiu no meu rosto.
— Por que está me encarando? — Murmurei, enquanto me inclinava para ela,
uma mão apoiada na cama ao lado do seu rosto.
— Porque gosto do que vejo. — Respondeu Ayra, sem um pingo de
vergonha, os olhos brilhando com provocação.
Eu ri, balançando a cabeça antes de beijá-la. Foi suave no início, mas
rapidamente se intensificou, como se estivéssemos tentando transmitir tudo o
que não conseguimos dizer em palavras. Minhas mãos encontraram a curva
da cintura dela, puxando-a para mais perto enquanto ela se agarrava aos meus
ombros, como se não quisesse me deixar ir.
Quando nos separamos, Ayra olhou para mim com aquele sorriso travesso
que me fazia querer tanto protegê-la, quanto perder o controle.
— Você é tão mandona, Zamorano. — Ela provocou, deslizando os dedos
pelo meu pescoço.
— E você gosta disso. — Respondi, minha voz rouca, enquanto a puxava
mais para cima na cama. — Você adora…
Eu desci os beijos pelo seu pescoço, passando pelo ponto onde sabia que ela
era mais sensível. Ela arqueou o corpo contra mim, soltando um suspiro que
fez meu peito apertar de um jeito estranho, mas viciante. Ayra era minha
fraqueza, e naquele momento, a única coisa que eu queria era fazer ela
esquecer de tudo que não fosse nós duas.
Com movimentos lentos, tirei a blusa dela, deixando à mostra sua pele pálida
e impecável. O contraste entre o tecido escuro da cama e o tom claro dela era
quase hipnotizante. Minhas mãos traçaram o caminho pela curva de sua
cintura até seus quadris, e o jeito como ela respondeu, movendo-se contra
mim, me fez perder qualquer controle que eu achava que tinha.
— Você é tão linda… — Sussurrei, mais para mim mesma do que para ela.
Ayra não respondeu, mas suas mãos encontraram o cós da minha calça, seus
dedos hábeis desabotoando-a com uma facilidade que parecia injusta. Eu ri
baixinho, mas antes que pudesse dizer algo, ela me puxou para mais perto,
capturando meus lábios em um beijo que tirou todo o ar dos meus pulmões.
Eu a deitei sobre os lençóis, e o mundo pareceu desaparecer ao nosso redor.
Nossas roupas desapareceram aos poucos, arrancadas entre beijos famintos e
toques apressados, como se cada pedaço de tecido fosse um obstáculo
insuportável entre nossos corpos.
Não havia hesitação, apenas desejo cru, intenso, nos consumindo a cada
movimento.
Quando finalmente nada mais restava entre nós, inclinei-me sobre ela,
deixando meus lábios seguirem um caminho lento e deliberado pela pele
pálida e sedosa de Ayra. Ela arfou suavemente quando minha boca encontrou
a curva do seu pescoço, e os gemidos que escapavam de seus lábios fizeram
meu corpo inteiro queimar.
— Você é minha, Ayra. — Sussurrei contra sua pele, minha voz rouca e
carregada de algo que nem eu mesma entendia completamente.
— Eu sou… — Ela respondeu, a voz um gemido entrecortado, carregado de
urgência e entrega. — Me faça sua, Lira.
Minhas mãos deslizaram por seus pulsos, prendendo-os acima da cabeça.
Com precisão meus lábios desceram para seus seios, minha língua traçando
círculos em volta de seus mamilos antes de sugá-los com firmeza. Ayra
arqueou as costas, gritando meu nome, e eu senti sua vulnerabilidade crua em
cada nota de sua voz. Mordisquei levemente, apenas o suficiente para
provocá-la, enquanto ela choramingava e tentava se libertar do meu aperto.
— Você estava com saudades? — Perguntei, minha boca ainda presa ao seu
seio, enquanto uma das minhas mãos deslizava entre suas coxas,
encontrando-a deliciosamente molhada.
— Convencida… — Ela retrucou, os olhos brilhando com um prazer quase
insuportável. — Mas estava. Adoro quando você me toca assim… Quando
você me faz perder os sentidos.
Eu sorri, sem disfarçar minha satisfação, enquanto deslizava dois dedos para
dentro dela, meu polegar brincando em círculos lentos contra seu clitóris.
Ayra se contorcia sob mim, os gemidos aumentando em intensidade
conforme eu estabelecia um ritmo, cada movimento mais profundo e mais
provocador do que o anterior.
Beijei-a novamente, sugando seus lábios e dominando sua boca, enquanto ela
se contorcia sobre os lençóis ao nosso redor, os olhos desfocados e a boca
entreaberta de prazer. Quando ela gritou meu nome e alcançou o clímax, seus
músculos se apertando ao redor dos meus dedos, eu sabia que não havia
sensação no mundo que se comparasse àquele momento.
Mas eu não terminei.
Eu desci entre suas pernas, deixando minha língua substituí-los enquanto
minhas mãos seguravam suas coxas com firmeza. O gosto dela era
intoxicante, e os sons que ela fazia eram um combustível para o fogo que
queimava dentro de mim.
— Lira… Por favor… — Ayra sussurrou, suas palavras se transformando em
um gemido incontrolável. — Me deixe te tocar também… Eu preciso de
você.
Eu me afastei, apenas o suficiente para encontrar seu olhar. Sua expressão era
de puro desejo e necessidade. Não hesitei. Mudei nossa posição, deixando
que ela assumisse o controle, e quando Ayra me beijou, senti seu corpo
quente e vibrante contra o meu.
Ela desceu os lábios pelo meu corpo, explorando cada centímetro com sua
boca e suas mãos até me levar ao limite. Quando sua língua finalmente me
encontrou, um gemido rasgou minha garganta, e eu não conseguia mais
distinguir onde ela terminava e eu começava.
Quando nos entrelaçamos em um 69, a intensidade atingiu um nível quase
insuportável. O som de nossos gemidos se misturavam, as nossas respirações
pesadas preenchiam o quarto. A língua dela explorava cada parte de mim,
enquanto seus dedos trabalhavam com uma precisão devastadora. Eu me
vingaria na mesma intensidade, ouvindo-a gemer meu nome como uma
oração.
— Ayra… bebê… — Sussurrei entre os lábios ofegantes, minha voz
entrecortada. — Você é minha!
— Lira… — Ela respondeu, suas palavras sendo quase engolidas pelo prazer.
— E você é minha também.
Quando finalmente atingimos o ápice juntas, foi como se o mundo parasse.
Meu corpo tremia incontrolavelmente enquanto Ayra ainda deixava beijos
suaves e mordidas pela minha pele. Caímos juntas, os corpos enlaçados,
respirando com dificuldade.
Ela se aconchegou em mim, como sempre fazia, a cabeça descansando na
curva do meu pescoço. Minha mão acariciava seus cabelos, enquanto a outra
encontrava a dela, entrelaçando nossos dedos. Nossas alianças brilhavam sob
a luz suave do quarto, um lembrete silencioso do que estávamos construindo.
— Gosta de apelidos para chegar lá? — Provoquei, quebrando o silêncio.
— Não estrague o momento, Zamorano. — Ela respondeu, com um beliscão
leve na minha cintura.
Eu ri, beijando o topo da sua cabeça.
— Tudo bem, minha garotinha mimada.
Aqui está a versão reescrita e aprimorada:
Senti o sorriso dela se moldar contra minha pele, suave, quase tímido, quando
Ayra aconchegou o rosto na curva do meu pescoço. A sensação era tão
confortável e íntima que quase parecia que o mundo havia desaparecido ao
nosso redor.
Sem pressa, uni nossas mãos livres, os dedos entrelaçados com naturalidade,
e deixei meu olhar se deter na aliança que ela carregava. Mas o que realmente
me tocava era o anel de noivado no seu dedo, aquele que um dia pertenceu à
minha mãe.
E naquele instante, olhando para aquele anel em sua mão, senti uma onda
inesperada de felicidade. Era como se, contra todas as probabilidades, o
destino tivesse decidido que ela era a pessoa certa para carregá-lo.
O mundo realmente dava voltas. E por mais que eu não quisesse admitir,
naquele momento, com Ayra nos meus braços, tudo parecia estar exatamente
onde deveria estar.
☙❧
Ayra Arellano
O tempo na Itália parecia um sonho. Não era apenas o cenário, as águas
cristalinas, as paisagens pitorescas, os passeios que pareciam retirados de um
filme romântico, mas o que realmente tornava tudo surreal era o que estava
acontecendo entre mim e Lira.
Nossa aproximação era palpável. Intensa. Era algo que eu não esperava, algo
que me desarmava completamente. Lira estava se tornando mais do que uma
parceira de negócios, mais do que a mulher com quem eu havia feito um
acordo. Ela estava invadindo cada espaço dentro de mim, e isso era ao
mesmo tempo maravilhoso e aterrorizante.
Nos últimos dias, ela havia transformado cada canto em um palco para nos
perdermos uma na outra, para ela me comer do jeito que queria. Não
importava se era na suíte do resort, na praia quase deserta, ou no chuveiro
depois de um passeio pela vila. Cada lugar se tornava um pretexto para ela
me prender em seus braços de forma possessiva, como se eu fosse algo que
ela nunca deixaria escapar. E, sem resistência alguma, eu cedia. Sempre
cedia.
Eu adorava…
Cada toque dela parecia carregar um desejo quase bruto, o jeito como Lira me
possuía era algo que não conseguia comparar a nada. Sempre era mais
intenso, mais devastador, como se a cada vez ela quisesse marcar seu
território em mim de uma forma que nunca pudesse ser apagada. Eu me
sentia consumida, e mesmo assim, nunca era o suficiente.
A última noite havia sido especialmente memorável.
Eu ainda podia sentir o frio da madeira da mesa da nossa suíte contra minha
pele enquanto Lira me curvava sobre ela, segurando minha cintura com
firmeza. Sua boca traçava caminhos pelo meu pescoço, mordiscando minha
pele enquanto seus dedos deslizavam habilidosos pelo centro do meu corpo.
Cada toque era calculado, cada movimento enviava ondas de prazer que me
faziam esquecer onde eu estava.
— Você adora me provocar, não é? — Ela murmurou contra minha orelha, a
voz rouca e cheia de promessas.
— E você adora quando eu faço isso. — Retruquei, com um sorriso travesso
que logo virou um gemido quando seus dedos se aprofundaram dentro de
mim.
Lira não respondeu. Em vez disso, sua boca desceu pelo meu ombro,
mordendo e chupando enquanto a mão livre segurava minha coxa, mantendo-
me firme. O ritmo de seus dedos aumentou, a pressão exata que sabia que me
levaria ao limite.
Eu não conseguia conter os gemidos, nem os gritos quando ela usou a boca
para intensificar tudo, sua língua provocando meu clitóris enquanto seus
dedos não paravam. Eu me desfiz com o rosto enterrado nos meus braços,
chamando o nome dela como se fosse a única palavra que eu soubesse dizer.
O que me desconcertava, no entanto, era que os momentos quentes não eram
os únicos que ficavam marcados. Havia outra face de Lira que estava
surgindo. Um lado doce, carinhoso, que me pegava de surpresa.
Como aquele dia em que eu cortei o dedo tentando abrir um pacote de
salgadinhos. Foi uma besteira, algo que eu teria resolvido em segundos, mas
Lira parecia ter levado aquilo como uma afronta pessoal. Desde então, ela
simplesmente não me deixa mais abrir nada. Seja um pacote de comida ou
uma garrafa de vinho, ela toma a tarefa para si, me lançando um olhar que
mistura cuidado e um toque de irritação.
— Deixe que eu cuido disso, você é descuidada, pode se machucar de novo.
— Disse ela uma vez, enquanto abria um saco de batatas e o entregava para
mim com a delicadeza de quem lidava com algo precioso.
Era engraçado e adorável, mas também assustador. Porque, a cada pequeno
gesto, a cada olhar possessivo ou toque protetor, ela me puxava mais fundo
para dentro de algo que eu sabia que seria difícil de sair. E o pior era que eu
não queria sair.
O que me aterrorizava era o quanto esses sentimentos eram fortes. Diferentes
de tudo que eu já senti por qualquer pessoa, afinal eu nunca me importei com
ninguém. Entretanto com a Lira, era como se algo dentro de mim tivesse
encontrado estabilidade e cuidado. E isso era perigoso.
Eu sabia que estava andando sobre gelo muito fino. Sabia que, no nosso
mundo, apego era sinônimo de fraqueza. Mas, quando Lira me olhava
daquele jeito, com os olhos cinzentos cheios de algo que ela nunca dizia, mas
sempre demonstrava, tudo em mim gritava que eu faria qualquer coisa por
ela.
Eu precisava dela. E esse pensamento era a coisa mais assustadora que já
senti na vida. E a mais linda inevitavelmente.
☙❧
Estávamos na cama, o ar ainda carregado do calor que nossas mãos e bocas
tinham criado. Era nossa última noite na Itália.
Meu corpo descansava sobre o dela, sentindo os movimentos lentos e
preguiçosos dos dedos de Lira subindo e descendo pela minha coluna. Era um
gesto tão íntimo que parecia quase estranho para nós duas. Quase.
Eu apoiava o queixo no peito dela, encarando seu rosto iluminado pela luz
suave do abajur ao lado da cama. Lira parecia tão relaxada, tão… diferente.
Seus cabelos escuros estavam bagunçados, soltos sobre o travesseiro, e seu
rosto carregava aquele pequeno sorriso que me fazia perder o controle.
— Lira… — Chamei, minha voz baixa, quase hesitante. — Você sempre foi
assim… carinhosa com as outras?
Ela franziu o cenho levemente, os olhos cinzentos me encarando com uma
expressão de curiosidade e malícia.
— Assim como? — Ela perguntou, o tom provocativo.
— Assim… — Murmurei, deslizando a mão pelo peito dela até tocar
levemente seu rosto. — Você sabe. Cuidadosa. Atenciosa. Como agora.
Lira deixou escapar uma risada baixa, inclinando a cabeça para o lado como
se estivesse avaliando minha pergunta.
— Só com as boas de cama. — Disse, com um sorriso travesso nos lábios.
Senti meu corpo reagir imediatamente, o calor subindo ao meu rosto.
— Seu… idiota! — Exclamei, batendo de leve no ombro dela antes de tentar
me afastar. — Não acredito que você disse isso!
Lira, é claro, não me deixou ir muito longe. Com um movimento rápido e
ágil, ela girou o corpo, me prendendo debaixo dela. E eu me vi deitada,
olhando para aquele rosto lindo e malicioso enquanto seus braços me
cercavam como uma armadilha sedutora.
— Calma, Arellano. — Disse, seu sorriso agora mais suave. — Eu estava
brincando.
— Típico… — Resmunguei, tentando esconder o quanto estava gostando de
estar naquela posição. — Você está muito engraçadinha.
Lira riu, enquanto segurou minha mão, erguendo-a entre nós. Seus dedos
tocaram levemente a aliança e o anel de noivado no meu dedo, e sua
expressão mudou. Ainda havia humor nos olhos dela, mas também algo mais
profundo, algo que me deixou sem palavras.
— Você não é como nenhuma das outras, Ayra. Você é minha esposa. E isso
aqui… — Ela deslizou o polegar sobre a aliança. — Isso garante que você
tem tudo. Tudo que ninguém jamais teve de mim.
Senti um aperto no peito, uma emoção que eu não queria admitir tomando
conta de mim. Era uma confissão simples, mas carregada de tanto peso que
eu mal conseguia respirar.
— Lira… — Murmurei, minha voz quase falhando.
Ela inclinou-se para me dar um beijo suave, quase reverente. E, naquele
momento, percebi que estava completamente perdida por ela. Não havia
como voltar atrás.
☙❧
Lira Zamorano
Chegamos ao México à noite, mas parecia que havíamos trazido mais do que
apenas malas e memórias da Itália. Ayra desceu do avião com uma expressão
abatida, um dos braços descansando contra o meu enquanto ela tentava
disfarçar o incômodo. Sua mão foi à testa, e ela murmurou que estava com
dor de cabeça, enquanto eu percebia que sua temperatura estava levemente
elevada.
No carro, durante o caminho para casa, ela se aconchegou em mim. Aquele
gesto, embora natural vindo dela, me deixou ainda mais preocupada porque
senti sua temperatura um pouco acima do normal.
— Quer passar no hospital antes de irmos para casa? — Perguntei, tentando
soar casual, mas atenta a cada movimento dela.
Ayra levantou os olhos para mim e fez aquele biquinho que, para minha
surpresa, derretia minha resistência como cera ao fogo.
— Não gosto de hospitais, Lira. — Disse ela, quase manhosa, um tom tão
doce que me desarmou por completo. — Só preciso descansar. Quando
chegarmos, tomo um remédio e vou ficar bem. Prometo.
Suspirei, derrotada, mas já decidida. Se ela não melhorasse, eu mesma traria
um médico até o apartamento.
Assim que chegamos, Ayra subiu para o andar de cima, enquanto eu fui
direto para a cozinha. Pensando em algo que fosse leve e fácil para o
estômago dela, preparei um mingau simples. Subi com a bandeja,
determinada a fazê-la comer algo antes de descansar.
No entanto, antes que eu pudesse entrar no quarto, ouvi sons vindo do
banheiro. Deixei a bandeja sobre a mesinha próxima à porta e corri em
direção ao som. Assim que entrei, encontrei Ayra ajoelhada no chão,
enrolada em um roupão branco, vomitando no vaso sanitário.
Meu coração apertou diante daquela cena, e não pensei duas vezes antes de
me ajoelhar ao lado dela. Com uma mão, segurei seu cabelo para trás,
enquanto a outra fazia movimentos suaves em suas costas.
— Ayra… — Chamei, mas ela apenas levantou uma das mãos, tentando me
afastar.
— Saia, Lira. — Resmungou, sua voz embargada e cheia de desconforto. —
Não quero que me veja assim.
Ignorei sua tentativa de me afastar, pegando uma toalha na pia.
— Bobagem. — Disse, passando o tecido suavemente em sua testa para
limpar o suor frio. — Eu prometi cuidar de você, lembra? Saúde e doença, e
tudo mais.
Ela bufou, finalmente erguendo os olhos para mim. Mesmo abatida, havia
algo incrivelmente doce na maneira como ela me olhava, vulnerável e
honesta de um jeito que Ayra raramente permitia ser.
— Estou horrível. — Murmurou, cruzando os braços sobre o estômago. —
Você vai perder o tesão em mim.
Não consegui evitar a risada que escapou dos meus lábios. Ayra tinha cada
ideia absurda.
— Você é tão tola. — Respondi, acariciando sua bochecha. — Ainda está
enjoada?
— Um pouco… Deve ter sido o jantar no avião.
— Ou será que consegui a façanha de engravidar você? — Brinquei, tentando
aliviar o clima.
Ayra começou a rir, sacudindo a cabeça enquanto me dava um tapa leve no
ombro.
— Você ia adorar isso, não ia? — Disse, ainda rindo. — Ficaria
insuportavelmente convencida.
— Talvez… — Respondi, sorrindo. — Mas ficaria mais orgulhosa.
Ela me encarou por um instante, seus olhos castanhos mais suaves do que
nunca.
— Você quer ter filhos comigo? — A pergunta veio baixa, quase hesitante,
como se ela mesma não tivesse certeza de querer ouvir a resposta.
Minha respiração ficou presa por um instante, mas eu sabia o que responder.
— Nunca quis gerar. — Disse com honestidade. — Mas… Acho que não
seria ruim ter uma mini-você pela casa.
Ayra riu, aquele som leve e descontraído que fazia meu peito aquecer.
— Quer me deixar ter todo o trabalho gerando um bebê? — Perguntou, seu
tom entre brincadeira e curiosidade genuína.
— Eu cuidaria de você, não te deixaria sozinha nisso. — Respondi rápido
demais, e Ayra riu.
— Eu sei… Já sei que você é do tipo muito responsável. — Disse, com
diversão. — Por que não podemos ter uma mini-você?
Como eu poderia admitir que adoraria mais uma cópia linda e cheia de vida
dela pela casa? Antes, mal suportava a ideia de viver com Ayra, e agora não
conseguia me imaginar sem ela. Então dei de ombros.
— Pode ser gêmeos…
— Chega! — Ayra deu um empurrãozinho fraco em mim antes de tentar se
levantar. Eu a ajudei, mantendo um braço firme ao redor dela enquanto ria.
— Você é muito gananciosa, Lira.
— Você que me deu ideias. — Respondi, enquanto ela balançava a cabeça.
— Vá, me deixe tomar um banho e recuperar um pouco da minha dignidade.
— Quer ajuda? — Perguntei, fingindo um tom sério, mas o sorriso em meus
lábios entregava minha brincadeira.
— Não, Lira. Posso tomar banho sozinha. Relaxa. Vai.
Ela me deu outro empurrãozinho, desta vez com mais firmeza. Suspirei,
recuando, mas lancei um olhar de aviso antes de sair. Claro que Ayra o
ignorou, fechando a porta com uma determinação irritante e adorável.
Fiquei ali por um momento, parada, pensando na conversa que acabávamos
de ter. A ideia de uma família com Ayra… Era tão absurda quanto
encantadora. Quem diria que, um dia, aquela mulher que eu considerava
minha maior inimiga seria também meu maior desejo?
Suspirei, voltando para o quarto, mas com um sorriso que não conseguia
apagar dos lábios. Talvez, apenas talvez, o impossível estivesse se tornando
realidade.
CAPÍTULO TREZE
Ayra Arellano
O som irritante de um alerta invadiu a calma silenciosa do escritório. Estava
focada em revisar os relatórios da última semana, já prevendo o sermão
emburrado da Lira sobre pequenos deslizes operacionais. Mas quando a
notificação se repetiu, com o tom grave que só era usado para emergências,
minha atenção mudou instantaneamente para a tela principal.
“Tentativa de invasão detectada”.
A mensagem piscava em vermelho, e meu coração começou a bater mais
rápido, mas não de medo. Era raiva pura.
Minha rede de segurança não era qualquer coisa. Passei meses projetando um
sistema com camadas de proteção que fariam qualquer hacker pensar duas
vezes antes de se arriscar. E mesmo assim, alguém teve a ousadia de tentar
quebrá-lo.
Imediatamente notei que não era uma ameaça pequena, os padrões
mostravam uma tentativa coordenada, cuidadosa, e pior, direcionada
especificamente para as áreas que protegiam informações sensíveis sobre os
negócios do Cartel.
Respirei fundo, sentindo a fúria se acumular. Quem quer que fosse,
claramente não sabia com quem estava lidando.
— Ótimo. — Murmurei para a tela, ajustando-me na cadeira e ativando os
programas de contra-rastreamento. — Vamos brincar…
O padrão era sofisticado, mas não impossível de rastrear. Eles estavam
mascarando sua localização com proxies e redes VPN, tentando parecer
invisíveis, mas não existia anonimato perfeito. Cada movimento deixava
pequenos rastros, e eu era paciente o suficiente para segui-los. Era como
puxar fio por fio de uma rede intrincada, desmontando cada barreira que
encontrava.
O tempo passou, mas eu não sentia cansaço. Na verdade, estava energizada
pela adrenalina. O jogo de gato e rato terminou com coordenadas claras
surgindo na tela. Um sorriso frio curvou meus lábios enquanto anotava as
informações.
Latitude e longitude marcadas. Eu sorri pensando: “Agora, vamos ver quem
você realmente é”.
Horas depois, eu estava diante de um prédio desgastado que parecia
insignificante à primeira vista. Nada nele sugeria que abrigava alguém com
habilidades suficientes para invadir meu sistema. Mas eu sabia que as
aparências enganavam, principalmente no nosso mundo.
Olhei para o relógio. Era início de noite, mas as ruas ao redor já estavam
silenciosas. Estava sozinha, agindo mais rápido e mais discretamente, afinal
eu não queria assustar meu “rato”.
Conferi o celular, que ainda estava conectado ao sistema, monitorando
qualquer tentativa de reinício do ataque. Nada havia mudado, o que
significava que quem quer que fosse estava confiante de que não seria
descoberto. Grande erro.
Com um pequeno dispositivo que havia trazido, desarmei a trava digital da
porta principal. O prédio tinha segurança física risível, câmeras sem bateria,
portas com fechaduras eletrônicas antiquadas. Entrei em silêncio, sentindo a
excitação familiar que vinha com confrontos como aquele. Fazia tempo que
eu não caçava alguém.
Coloquei luvas de couro. Chequei a arma presa nas minhas costas, e o
canivete que tinha no bolso da minha jaqueta. Isso enquanto eu buscava o
terceiro andar. O ambiente era mal iluminado, os corredores estreitos e com
cheiro de mofo. Quando cheguei à porta certa, ajustei o peso do meu corpo,
pronta para qualquer tipo de combate. Bati duas vezes, firme, mas sem
exagerar.
Houve um som abafado do outro lado, seguido por passos hesitantes. A porta
se abriu alguns centímetros, revelando um homem de aparência desleixada,
provavelmente na casa dos trinta. Ele parecia tão surpreso quanto assustado
ao me ver.
— Quem é você? — Ele perguntou, a voz trêmula.
— A pessoa que você tentou invadir!
Respondi, empurrando a porta com força para abrir espaço e entrando no
apartamento. Ele recuou imediatamente, mas não o suficiente para fugir.
O lugar era uma bagunça, monitores espalhados, cabos emaranhados, uma
cadeira giratória velha no centro do caos. Meus olhos captaram as telas cheias
de linhas de código que, reconheci, estavam conectadas diretamente ao meu
sistema.
— Não… não sei do que você está falando… — Ele tentou negar, mas sua
voz falhou, e seu olhar inquieto denunciava a mentira.
— Não minta. Eu tenho paciência para muita coisa, mas não para amadores
que se acham espertos. — Me aproximei lentamente, observando-o suar sob a
pressão. — Agora, você vai me dizer quem te contratou.
— Eu… eu só estava testando algo! — Ele gaguejou, levantando as mãos em
defesa. — Não sabia que era um sistema fechado!
— Eu odeio mentira sabe…
Eu disse, pega dando um dos cabos desconectados na mesa e o enrolei
casualmente na mão, sem tirar os olhos dele. Aquele homem era um peão,
mas eu sabia que poderia arrancar informações dele.
— Eu juro que não sabia o que estava fazendo. — Ele insistiu. Seus olhos se
movendo por todos os lados, como se procurasse um jeito de espaçar.
Minha paciência, já naturalmente curta, estava se esgotando. Sem avisar, dei
um golpe rápido com o cabo enrolado em minha mão, acertando-o na lateral
do rosto. O impacto o fez tropeçar para trás, batendo contra a mesa e
derrubando parte dos monitores. Ele gritou de dor, a mão indo
instintivamente ao local atingido.
— Não me faça perder tempo… — Minha voz era baixa, mas cada palavra
era carregada de uma ameaça que ele claramente entendeu. — Ou vou ter que
começar a me divertir. E isso vai doer para você!
— Eu… eu não sei! — Ele choramingou, as lágrimas começando a se formar
nos olhos. — Por favor, me deixe ir. Vou sair do seu sistema.
Avancei, agarrando-o pela gola da camiseta amarrotada e o puxando para
mais perto. Meu rosto estava a centímetros do dele, o suficiente para ele ver a
raiva nos meus olhos.
— Você sabe. — Disse friamente. — E se você não falar agora, vou começar
a mostrar o que acontece com quem entra no meu caminho.
Sem esperar resposta, empurrei-o com força para a cadeira giratória no centro
do apartamento. Ele tentou resistir, mas não tinha força nem coragem para
isso. Peguei um dos cabos soltos da mesa e amarrei suas mãos atrás da
cadeira, ignorando seus protestos.
— Por favor, eu só sou um freelancer! — Ele implorou. — Só faço o que me
pedem. Não sei de nada!
Revirei os olhos, minha paciência praticamente evaporando. Peguei um
pequeno canivete do meu bolso, abrindo a lâmina com um clique seco. O som
fez seu corpo inteiro enrijecer.
— Se você é tão bom com suas mãos no teclado, imagino o quanto vai sentir
falta delas. — Falei com um sorriso frio, segurando sua mão direita. —
Espero que não tenha problemas com sangue.
Ele começou a se debater, mas a cadeira e os cabos o mantinham preso.
Coloquei a ponta da lâmina contra a base de seu dedo indicador,
pressionando o suficiente para começar a decepar. Ele gritou, mas eu não me
importava. Na verdade, o som parecia apenas me motivar.
— Quem te contratou? — Perguntei, minha voz firme e controlada.
— Eu… eu não sei o nome deles! — Ele gritou, lágrimas escorrendo pelo
rosto. — Eles só entraram em contato por mensagem encriptada! Disseram
que queriam informações… apenas informações!
Aumentei a pressão da lâmina, o sangue escorrendo mais rápido agora. Ele
chorava descontroladamente, balançando a cabeça.
— Eu juro! Foi um grupo… Eles tinham tatuagens de uma flor na mão. —
Ele cuspiu as palavras, o pânico em sua voz evidente. — Era um cartel! Não
sei qual! Só queriam acesso às informações!
Me afastei ligeiramente, observando o desespero nos olhos dele. Era óbvio
que ele estava sendo sincero agora, a dor e o medo tinham arrancado
qualquer vestígio de resistência. Soltei sua mão, com o dedo meio cortado,
mas não recuei completamente.
— Qual era o plano deles? O que exatamente pediram para você fazer? —
Exigi, aproximando-me de novo, a lâmina ainda em minha mão.
— Eu só… eu só tinha que invadir o sistema! Mapear as rotas de distribuição,
os contatos, os locais de produção… — Ele soluçou, tentando recuperar o
fôlego. — Por favor, eu juro que não sei mais nada! Só me pagaram pra isso!
Por um momento, o silêncio tomou conta do apartamento. Eu o encarei,
analisando cada palavra, cada expressão. Ele não estava mentindo, não tinha
mais forças para isso. Mas, para mim, não fazia diferença.
Guardei a faca no bolso, e por um breve instante, ele pareceu relaxar. Que
erro dele.
Me aproximei de novo, agora com as mãos livres. Sem aviso, agarrei sua
cabeça com força, uma mão segurando seu queixo, a outra na base do crânio.
Seus olhos se arregalaram em puro terror.
— Ninguém brinca comigo e sai impune.
Sussurrei antes de girar o pescoço dele com um movimento rápido e preciso.
O estalo foi alto, seguido por um silêncio absoluto. Seu corpo ficou mole, e a
cadeira girou ligeiramente sob o peso morto. Eu o soltei, deixando-o cair de
lado amarrado.
Respirei fundo, limpando as mãos na minha calça, e olhei ao redor. Precisaria
limpar aquele lugar antes de sair. Ter certeza que nada foi pego do meu
sistema e entregue ao “Cartel La Mano”, a descrição das tatuagens me davam
quase certeza que eram eles.
De qualquer forma, eu precisava de provas mais contundentes. Só assim
Javier poderia me autorizar a atacar e dizimar aqueles bastardos. Eles
achavam que poderiam me atingir na sombra? Agora, eu iria atrás deles na
luz. E não haveria misericórdia.
☙❧
Quando cheguei em casa, já passava das duas da manhã. O cansaço pesava
nos meus ombros, mas assim que fechei a porta, encontrei Lira andando de
um lado para o outro na sala, como uma predador enjaulado prestes a
explodir.
— Finalmente. — Ela disparou, seus olhos cinzentos queimando na minha
direção. — Onde diabos você estava?
Suspirei, largando a jaqueta no sofá.
— Resolvi um problema. — Respondi, tentando manter o tom calmo.
— Um problema? — Ela cruzou os braços, seu tom aumentando. — Que tipo
de problema exige que você suma, não atenda o celular e volte a essa hora?
— Meu celular descarregou, e alguém tentou invadir nosso sistema de
segurança. — Expliquei, colocando as mãos nos bolsos. — Precisei rastrear e
lidar com a situação antes que piorasse.
Lira parou de andar, seus olhos se estreitando. Ela estava com a cabeça
aberta, meio amassada, as mangas enroladas. Desalinhada de um jeito que
não era comum para ela.
— Lidar como, Ayra? — A voz dela era uma mistura de incredulidade e
frustração. — Você foi sozinha?
— Não era algo que podia esperar. — Respondi, me defendendo. — Se eu
demorasse, os dados podiam ser comprometidos. Resolvi tudo, está feito.
— Resolvido? — Ela deu um passo à frente, seu tom ficando mais frio. —
Você foi atrás de alguém sozinha. Isso não é resolver, é ser idiota!
— Eu não sou idiota. — Retruquei, cruzando os braços. — Sei me cuidar,
Lira.
— Esse é o problema, Ayra! — Ela praticamente gritou, a voz carregada de
raiva e algo mais profundo. — Você acha que pode se cuidar sozinha, mas
não pensa no risco. E se fosse uma emboscada? Será que não consegue agir
sem ser impulsiva ao menos uma vez?
— Você está fazendo uma tempestade em copo d’água. — Retruquei,
levantando o queixo em desafio. — Acha que sou indefesa? Porque não sou.
Os olhos de Lira faiscaram, e ela deu um passo mais perto, a tensão entre nós
quase palpável.
— Não é sobre você ser indefesa, Ayra. É sobre o fato de que, por mais que
você ache que pode fazer tudo sozinha, sempre tem algo que pode dar errado.
E eu… — Ela parou, respirando fundo antes de continuar. — Eu não vou
arriscar que algo aconteça com você por causa de uma decisão estúpida sua.
Eu hesitei, as palavras dela me pegando de surpresa. O calor na voz dela, o
peso por trás do que estava dizendo, me fez ver o que realmente estava
acontecendo ali.
A sensação de culpa ainda pesando no meu peito. A explosão dela não era só
raiva. Era cuidado, aquele era o jeito dela mostrar sua preocupação, que
talvez nunca tivesse tido que expressar.
— Lira… — Minha voz saiu mais suave.
— Não. — Ela ergueu uma mão, me cortando antes que eu pudesse dizer
mais. — Você pode achar que eu estou exagerando, mas sabe o que eu vi
quando entrei naquele apartamento e você não estava? Imaginei mil cenários,
Ayra. Mil. E nenhum deles terminava com você voltando inteira. E eu não
sabia o que fazer, porque não tinha ideia de onde estava.
Houve um momento de silêncio em que tudo que eu podia fazer era encará-
la. Lira raramente se abria assim, e a preocupação crua nos olhos dela me
atingiu como um soco.
— Eu sinto muito. — Finalmente disse, minha voz quase um sussurro. — Eu
só queria resolver rápido. Não queria te preocupar.
Ela soltou um suspiro pesado, passando a mão pelos cabelos.
— Não é só sobre me preocupar, Ayra. — Disse, o tom mais controlado, mas
ainda firme. — É sobre nós. Você não está sozinha mais. Somos uma equipe,
ou pelo menos deveríamos ser.
Eu engoli em seco, um aperto no peito me lembrando que, por mais que
tentasse evitar, Lira estava certa.
— Desculpe, sinto muito te preocupar — eu disse, meus olhos fixos nos dela.
— Que tal começarmos a compartilhar nossa localização?
Lira me analisou por um momento, o olhar intenso, como se estivesse
decidindo se acreditava em mim ou não. Finalmente, soltou um suspiro, os
ombros relaxando um pouco.
— Compartilhar localização? — Perguntou, cruzando os braços com um
toque de desconfiança. — Vinte e quatro horas? Sem que você possa
desligar?
— Eu não desligaria.
— Você desligaria sim, se ficasse irritada comigo. Eu sei disso!
Eu ri, incapaz de segurar o sorriso, e me aproximei. Toquei seus braços e a
puxei para um abraço, enterrando meu rosto no seu pescoço e inalando o
cheiro limpo dela. Não resisti e deixei um beijo suave ali.
— Tudo bem, localização em tempo real sem a possibilidade de desligar. —
Sussurrei contra sua pele, então a encarei com um sorriso malicioso. — Isso
aplaca sua irritação comigo?
Lira me lançou um olhar que claramente deveria ser frio, mas falhou
miseravelmente, parecendo mais cômico do que intimidador. Era como se ela
lutasse para manter o controle, mesmo que seu rosto traísse a preocupação.
— Por ora, sim. — Ela suspirou, os olhos vasculhando meu rosto. — Você
está bem mesmo? Ninguém chegou a te machucar, certo?
Meu coração derreteu. Era isso. Por trás de toda aquela fachada de controle
absoluto e firmeza inabalável, havia apenas preocupação. A falta de jeito dela
para demonstrar aquilo tornava tudo ainda mais adorável.
— Sem machucados. Não posso dizer o mesmo de quem tentou me invadir.
Ela bufou e se afastou o suficiente para que eu a soltasse, mas, para minha
surpresa, me puxou para um abraço mais firme, os braços envolvendo meus
ombros. Ela beijou meus cabelos, e naquele instante o corpo inteiro dela
relaxou contra mim.
— Se sumir de novo assim, eu mesma vou atrás de você até no inferno e
prometo que vai se arrepender.
Um pequeno sorriso escapou antes que eu pudesse evitar. Apertei-a de volta,
enterrando meu rosto no seu ombro.
— Parece justo. — Respondi, fechando os olhos enquanto sentia o calor dela.
— Mas não vou fazer isso de novo. Prometo.
— Sabe quem atacou?
— Cartel La Mano, provavelmente. Estavam atrás de informações, mas não
conseguiram nada.
— Tem provas?
— Ainda não, mas vou encontrá-los e acabar com eles. — Afastei-me o
suficiente para olhar seu rosto. — Acha que eles podem estar por trás do meu
atentado?
— Pode ser, mas não temos nada concreto. Meus informantes ainda não
descobriram nada.
— Nem as minhas invasões… — Respondi, pensativa.
Lira balançou a cabeça, um gesto que parecia exasperado, mas havia algo
suave nos olhos dela, como se o pior já tivesse passado.
— Depois falamos disso. Agora vá tomar um banho. — Disse, me soltando e
apontando para a escada. — E depois venha comer alguma coisa. Aposto que
nem pensou em jantar, não é?
— Você me conhece tão bem. — Dei de ombros, um sorriso maior surgindo
nos meus lábios.
Antes de subir, segurei na gola da camisa dela e a puxei para um beijo. Um
beijo lento, suave, mas que carregava mais do que palavras poderiam dizer.
Chupei seu lábio, saboreando o gosto dela enquanto sentia a resposta
imediata e calorosa. Era doce, quase inocente, mas fazia meu coração
disparar como se fosse a primeira vez.
Quando nos afastamos, eu pisquei para ela, que bufou em resposta, mas não
conseguiu esconder o pequeno sorriso que surgiu.
— Vá logo. — Murmurou, antes de se virar e caminhar em direção à cozinha.
Fiquei parada por um momento, observando-a, enquanto sentia o peso da
discussão desaparecer. No lugar, restava algo mais leve, algo que parecia
certo. Uma calma estranha e boa, como se o caos lá fora não pudesse nos
atingir enquanto estivéssemos juntas.
☙❧
Lira Zamorano
O sol estava começando a aquecer o céu quando voltei da corrida. A brisa
ainda carregava um frescor da manhã, e eu sentia meu corpo revigorado, o
suor escorrendo pelas têmporas enquanto subia para o apartamento. O
silêncio do lugar era quase confortável, mas quando as portas se abriram,
percebi que Ayra estava acordada.
Ela estava parada na sala, de costas para mim, segurando algo pequeno entre
os dedos. Seu corpo estava tenso, e eu imediatamente soube que algo não
estava certo. Entrei, limpando o suor da testa com a toalha que tinha no
pescoço.
— Bom dia — disse, tentando quebrar a tensão. — Acordou cedo!
Ayra virou lentamente, os olhos castanhos fixos em mim, carregados de algo
que eu não conseguia decifrar de imediato. Na mão dela, um cartão preto com
letras douradas reluzia sob a luz.
— O que é isso? — Perguntei, já sentindo o peso da pergunta antes mesmo
de ouvir a resposta.
— Um cartão do seu querido pai. — Ela disse, a voz carregada de ironia. —
“Parabéns, Lira. Venha jantar na mansão.”
Eu bufei, sentindo meu estômago revirar. Caminhei até ela e peguei o cartão
da sua mão para lê-lo. O texto era breve, mas o suficiente para me irritar. Os
jantares de aniversário ao decorrer dos anos eram como enterros, silenciosos
e frios. Nunca havia presentes, balões ou bolos.
— Parabéns? — Ayra repetiu, cruzando os braços. — Quer me dizer por que
eu tive que descobrir pelo Arturo que hoje é o seu aniversário?
Eu suspirei, desviando o olhar. Não queria ter essa conversa, não agora.
— Não achei que fosse importante. — Respondi, tentando soar indiferente.
— É bobagem.
— Não achou que fosse importante? — Ayra repetiu, a incredulidade
pintando cada palavra. — Lira, é o seu aniversário. Isso é… importante.
Como você não me diz algo assim?
Ela parecia mais magoada do que irritada, e isso me incomodou ainda mais.
Coloquei o cartão na mesa, tentando organizar os pensamentos.
— Eu odeio essa data. — Admiti finalmente, minha voz mais baixa. — Não
gosto de comemorar. Não gosto de lembrar.
— Por quê?
Ayra perguntou, a preocupação agora suavizando sua expressão. Ela deu um
passo mais perto, tocando meu braço de leve. Olhei para ela, o peso da
verdade finalmente escapando dos meus lábios.
— O atentado que matou minha mãe e meu irmão… aconteceu no dia
seguinte ao meu aniversário. — A confissão saiu como um murro no peito, e
vi o choque passar pelo rosto de Ayra. — Eu passei um dia feliz com eles,
como se fosse qualquer outro. E, na manhã seguinte, eles estavam mortos.
Ayra ficou em silêncio por um momento, absorvendo minhas palavras. Ela
ergueu a mão e tocou meu rosto, os olhos dela brilhando com uma mistura de
tristeza e determinação.
— Então precisamos mudar isso. — Ela disse, a voz baixa, mas cheia de
firmeza. — Precisamos fazer novas memórias, Lira. Hoje não pode ser mais
uma data para você odiar.
— Ayra, eu… — Comecei, mas ela interrompeu, apertando minha mão.
— Nada de “mas”. — Ela disse, com um sorriso que era ao mesmo tempo
travesso e reconfortante. — E outra coisa: nós não vamos jantar na casa do
Arturo. Não estou com disposição para ouvir as baboseiras daquele homem
hoje.
Antes que eu pudesse protestar, Ayra me puxou pela cintura e, de repente,
saltou para o meu colo. Seus braços rodearam meu pescoço, e ela sorriu para
mim com aquele brilho infantil nos olhos, algo que me fazia esquecer tudo ao
meu redor.
— Hoje você é minha. — Disse, beijando meu nariz. — Vou preparar uma
surpresa para você à noite.
— Ayra… — Comecei, mas ela colocou um dedo nos meus lábios.
— Sem discussões, Zamorano. — Ela inclinou a cabeça, rindo. — Apenas
confie em mim.
Eu bufei, mas a segurei firmemente, sentindo o calor do corpo dela contra o
meu. Ela me fazia esquecer a dor, a mágoa que eu carregava há tanto tempo.
E, por mais que eu quisesse resistir, não conseguia evitar o pequeno sorriso
que se formou nos meus lábios.
— Tudo bem. — Eu concordei. — Mas essa surpresa… espero que seja boa.
— Vai ser perfeita. — Ayra prometeu, deslizando os dedos pelo meu cabelo.
— Agora, me coloque no chão antes que eu decida fazer de você meu café da
manhã.
Eu ri, colocando-a de volta no chão, mas não sem antes roubar um beijo
rápido, que fez Ayra sorrir de um jeito que iluminou tudo ao redor.
☙❧
O restaurante escolhido por Paola era discreto, mas elegante. Quando
cheguei, ela já estava sentada em uma mesa perto da janela, acenando para
mim com aquele sorriso caloroso e amigável.
— Você veio mesmo. — Ela disse assim que me aproximei, levantando-se
para me dar um abraço. — Confesso que estou surpresa. Não achei que
aceitaria.
Eu me sentei, ajeitando o casaco na cadeira antes de encará-la.
— É… Nem eu achei que viria. — Admiti, pegando o cardápio. — Mas a
Ayra praticamente me expulsou de casa hoje. Disse que eu só podia voltar no
início da tarde.
— Ah, entendi. — Paola arqueou as sobrancelhas, claramente interessada. —
Uma surpresa? Para o seu aniversário?
Assenti, meio envergonhada.
— Parece que sim. — Respondi, tentando soar indiferente, mas o pequeno
sorriso no canto dos meus lábios provavelmente entregou o que eu realmente
sentia. — Ayra pode ser um pouco… exagerada.
— Eu acho fofo. — Paola comentou, apoiando o queixo nas mãos enquanto
me observava. — E um tanto surpreendente, considerando como você falava
dela no início. Acho que as coisas mudaram, não?
Eu soltei um suspiro e encarei o cardápio por mais tempo do que o
necessário, tentando evitar seu olhar direto.
— A vida com Ayra… não é o que eu esperava. — Confessei finalmente,
fechando o cardápio e colocando-o sobre a mesa. — Quero dizer, ela era
minha inimiga, e agora… não sei. Não consigo mais vê-la dessa forma.
— Isso é interessante. — Paola disse, inclinando-se ligeiramente para frente.
— Continua.
Eu olhei para ela, percebendo que não tinha como fugir da conversa. Paola
sempre foi perspicaz e, sinceramente, uma das poucas pessoas em quem eu
confiava. Então, resolvi ser honesta.
— Ayra não é nada do que eu imaginava. — Continuei, cruzando os braços
sobre a mesa. — Ela me irrita, me provoca, e às vezes parece que vive para
me tirar do sério. Mas… eu gosto disso. Eu gosto da companhia dela.
— Gosta da companhia dela? — Paola repetiu, um pequeno sorriso travesso
surgindo em seus lábios. — Isso soa quase como um elogio.
— Não exagere. — Eu bufei, balançando a cabeça. — É só que… ela me
surpreende. Quando a conheci, achei que seria um pesadelo viver com ela.
Agora, não consigo imaginar minha rotina sem a presença dela.
Paola sorriu de um jeito que parecia indicar que ela sabia algo que eu não
sabia.
— Parece que você está mais apegada do que quer admitir. — Disse, pegando
sua taça de água. — E isso não é algo ruim, Lira. Às vezes, as melhores
coisas da vida vêm de onde menos esperamos.
Eu não respondi imediatamente, apenas observei o movimento ao redor do
restaurante. Havia uma certa verdade nas palavras de Paola, mas admitir isso
para mim mesma ainda parecia um território perigoso.
— Talvez você tenha razão. — Respondi finalmente, com um suspiro. —
Mas… vamos mudar de assunto. Como estão as coisas no clube?
Paola sorriu, claramente percebendo minha tentativa de desviar o foco, mas
decidiu não insistir.
— Oh, você não vai acreditar no que aconteceu ontem à noite… — Ela
começou, e eu me deixei envolver pela conversa, grata por, pelo menos por
alguns minutos, não precisar pensar tanto em Ayra e na confusão que ela
causava dentro de mim.
☙❧
Ayra Arellano
Todo o apartamento parecia um campo de batalha. Um campo de batalha
festivo, cheio de balões coloridos, fitas espalhadas, caixas de doces e uma
pilha de flores vermelhas que quase chegava ao teto. No centro de tudo isso
estava eu, segurando um enorme urso de pelúcia, enquanto Sebastian me
lançava um olhar incrédulo.
— Isso está fora de controle, Ayra. — Ele disse, cruzando os braços enquanto
olhava para o caos ao redor. — Você quer mesmo encher o apartamento com
tudo isso? Parece mais uma festa infantil.
Eu me virei para ele, segurando o urso contra o peito como se fosse um
troféu.
— Exatamente! — Respondi, um sorriso satisfeito se formando em meus
lábios. — Eu quero exagerar. Quero que Lira entre aqui e fique
completamente sem palavras.
Sebastian ergueu uma sobrancelha, claramente tentando processar o que eu
estava dizendo.
— Sem palavras de emoção ou de pura confusão? Porque, sinceramente, acho
que estamos caminhando para a segunda opção.
Eu bufei, colocando o urso ao lado de outros que já estavam alinhados perto
do sofá. Era uma cena absurda, eu sabia disso. Mas era exatamente o que eu
queria.
— Olha, Seb, a Lira nunca comemora o aniversário dela. Ela odeia a data,
mas este ano vai ser diferente. — Peguei um balão em forma de coração e o
amarrei em uma das cadeiras. — Quero que ela sinta que, pelo menos desta
vez, a data pode ser algo bom. Algo que ela possa lembrar como uma boa
memória feliz.
Sebastian suspirou, mas havia um pequeno sorriso no canto de seus lábios.
— Você realmente mudou, Ayra. — Ele disse, pegando uma fita para ajudar
com os balões. — Nunca imaginei que veria você tão empenhada em algo
assim.
— É porque aquela idiota meio que merece. — Respondi, com um tom suave
demais, eu sabia. — Lira é teimosa, irritante e me desafia em tudo, mas… ela
é minha. E eu vou garantir que, pelo menos hoje, ela se sinta especial.
Sebastian balançou a cabeça, mas continuou ajudando. Enquanto ele
amarrava os balões, eu me ajoelhei para ajeitar o bolo na mesa principal. Era
enorme, com camadas de creme e decoração detalhada com flores de açúcar.
No topo, havia um pequeno “L” e “A” entrelaçados, um detalhe que me fez
sorrir sozinha.
— Isso é um exagero até para você!
Sebastian comentou, apontando para o bolo enquanto colocava mais balões.
— Exatamente o ponto. — Retruquei, endireitando o bolo na mesa. — Quero
que ela veja o quanto me importo. O quanto estou disposta a fazer por ela.
Ele parou por um momento, me olhando com algo que parecia ser uma
mistura de curiosidade e provocação.
— Você está apaixonada por ela, não está? — Ele perguntou, a voz cheia de
interesse.
Parei o que estava fazendo, ajustando uma flor na mesa com um cuidado
exagerado, como se aquele detalhe fosse a coisa mais importante do mundo.
Não neguei, mas também não confirmei. Apenas ergui um ombro, jogando a
pergunta para o vento.
— Talvez. — Respondi, com um pequeno sorriso evasivo. — O que você
acha?
Sebastian soltou uma risada baixa, voltando ao trabalho.
— Eu diria que é mais do que óbvio. — Disse, colocando os últimos balões.
— Tudo bem, Ayra. Espero que Lira aprecie isso, porque, honestamente,
você está colocando o padrão muito alto.
— Ela vai adorar. — Falei, determinada. — Ou pelo menos, é melhor que
adore. Caso contrário, vou sufocá-la com um desses ursos.
Sebastian riu enquanto eu ajustava os últimos detalhes. O apartamento estava
finalmente pronto, e o resultado era tudo o que eu tinha imaginado:
exagerado, cheio de vida e absolutamente perfeito para Lira. Agora só faltava
ela chegar.
☙❧
Lira Zamorano
Quando a porta do apartamento se abriu, fui imediatamente envolvida pelo
cheiro doce e marcante de flores.
Meus olhos vagaram pelo espaço, absorvendo a visão diante de mim. Balões
em tons dourados e vermelhos flutuavam pelo ambiente, formando arcos ao
redor da sala. Flores vermelhas estavam espalhadas por todo canto, em
arranjos impecáveis. Na mesa principal, havia uma variedade absurda de
doces, chocolates, uma enorme bandeja de morangos e um bolo gigantesco
decorado com detalhes delicados. E no meio de tudo isso, estava Ayra.
Ela usava um casaco preto longo, fechado até o pescoço, e me encarava com
um sorriso que era ao mesmo tempo travesso e nervoso. Algo nela parecia
diferente, mas eu ainda não sabia exatamente o quê.
Eu fiquei parada na entrada, olhando para tudo aquilo. Não sabia se ria, se
perguntava o que estava acontecendo ou se me jogava nos braços dela. No
fim, tudo o que consegui fazer foi dizer:
— O que… é isso? — Minha voz saiu mais baixa do que eu esperava.
Ayra se aproximou, os dedos brincando com a barra do casaco, como se
estivesse tentando conter o nervosismo. Uma visão rara. Ela parou a poucos
passos de mim, e seu sorriso ficou mais largo.
— Feliz aniversário, Zamorano. — Disse com um tom de provocação que
mal disfarçava o toque doce.
Olhei ao redor novamente, um misto de surpresa e incredulidade tomando
conta de mim.
— Você fez tudo isso para mim? — Perguntei, minha voz carregada de algo
que nem eu conseguia definir.
— Quem mais mereceria? — Respondeu, inclinando a cabeça, o sorriso
travesso se intensificando.
Dei alguns passos até ela, meus olhos ainda examinando cada detalhe. Os
balões, o bolo, as flores… tudo parecia gritar Ayra, mas também havia algo
muito pessoal ali.
— Você exagerou. — Disse, balançando a cabeça.
— Exagerar era o objetivo. — Ela respondeu com uma piscadela. — Queria
que você finalmente tivesse um aniversário decente, algo que te fizesse sorrir.
Antes que eu pudesse dizer algo, ela soltou o fecho do casaco e o deixou cair,
revelando o que havia por baixo. Por um segundo, fiquei sem reação.
Ayra vestia uma lingerie de renda preta, que moldava seu corpo com
perfeição. O sutiã realçava seus seios, com detalhes delicados em fios
dourados, enquanto a calcinha tinha tiras finas que abraçavam suas curvas de
um jeito provocante. Meus olhos se demoraram nas ligas que desciam pelas
coxas, presas a uma meia-calça fina que completava o visual.
— O que acha? — Ela perguntou, girando ligeiramente para me dar uma
visão completa. — Gosto de caprichar em todas as surpresas. E eu faço parte
dessa!
Demorei um instante para conseguir falar, mas, finalmente, balancei a cabeça,
um sorriso surgindo nos meus lábios.
— Definitivamente caprichou. — Murmurei, minha voz mais rouca do que
pretendia.
Ayra deu um pequeno sorriso satisfeito. Eu engoli em seco, sentindo meu
peito apertar. Havia algo na forma como ela me olhava que me desarmava.
— Quem te ajudou com isso tudo? — Apontei para os balões e a decoração.
— O Sebastian. — Respondeu casualmente, mas mal terminou a frase, e meu
humor mudou instantaneamente.
— Sebastian? — Perguntei, estreitando os olhos. — Por que ele?
Ayra riu, jogando a cabeça para trás de um jeito que só ela conseguia fazer, a
risada iluminando o ambiente.
— Você sabe que ele é gay, não é, Lira? — Disse, ainda rindo, e eu pisquei,
completamente surpresa.
— Ele é? — Perguntei, sentindo-me um pouco tola.
— Sim, querida. — Ela respondeu, aproximando-se e deslizando as mãos
pelos meus ombros. — Então, pode guardar esse ciúme todo. Só tem lugar
para uma pessoa nos meus pensamentos hoje. E, adivinha, é você.
Não consegui evitar um pequeno sorriso, mesmo que não quisesse admitir.
Ela se inclinou, beijando meu pescoço de leve, e o toque foi suficiente para
me derrotar completamente. Eu gemi baixinho.
— Obrigada, Ayra. — Murmurei, tocando o rosto dela. — De verdade.
— Você ainda não viu nada. — Disse com aquele brilho provocador nos
olhos, segurando minha mão e me conduzindo até a mesa principal. — A
noite está só começando.
O exagero, o toque pessoal, até mesmo a lingerie ousada… Ayra tinha
colocado tudo de si naquela surpresa, e, naquele momento, eu soube que
nenhum outro aniversário seria capaz de superar aquele.
Ayra me levou até a mesa, parando bem ao centro, onde o enorme bolo com
nossas iniciais, eu sorri. Ele estava cercado por arranjos de flores e bandejas
de doces. Ela pegou uma taça de champanhe e me entregou, seus olhos nunca
deixando os meus.
— Quero um brinde. — Disse, erguendo a própria taça. — A você, Lira. Por
mais que você finja não se importar, sei que esse aniversário é importante,
porque é seu.
As palavras dela foram diretas, mas havia algo em sua voz, uma
vulnerabilidade disfarçada de provocação, que me fez engolir em seco.
Toquei minha taça na dela, o som suave ecoando na sala.
— Não sei o que dizer.
Admiti, bebendo um gole do champanhe enquanto tentava desviar o olhar.
— Diga que vai aproveitar essa noite. — Ayra sorriu, inclinando-se para
frente, ficando tão perto que pude sentir seu perfume. — E que vai me deixar
mimar você sem resistência.
Eu ri baixinho, balançando a cabeça.
— Mimada não é bem como eu me descreveria, mas vou deixar passar… Só
dessa vez. — Murmurei, dando um gole mais longo no champanhe e sentindo
o calor do líquido se espalhar.
Ayra parecia satisfeita com a resposta. Ela deu um passo para trás, pegando
um morango da bandeja ao lado, mergulhou-o no chocolate derretido e
estendeu para mim.
— Vamos começar pelo doce. — Disse, com aquele sorriso que era ao
mesmo tempo provocador e encantador. — Abra a boca, querida.
Meu peito vibrou ao ouvir ela me chamar assim. Sem desviar o olhar,
inclinei-me e dei uma mordida no morango, deixando o gosto doce e amargo
se misturar na minha boca. Ayra riu, e a expressão dela era tão genuína, tão
cheia de algo que eu não conseguia definir, que por um momento me
perguntei como diabos havíamos chegado ali, juntas, sem destruir uma à
outra no processo.
— Está bom? — Perguntou, os olhos brilhando de curiosidade.
— Está ótimo. — Respondi, sem conseguir evitar o pequeno sorriso que
surgia.
Ela mordeu o que restava do morango, lambendo os dedos de um jeito que
foi, no mínimo, intencional. Meu olhar seguiu o movimento, e Ayra riu
novamente, mas não disse nada.
Por alguns minutos, ficamos em um silêncio confortável, explorando a mesa
de doces. Ayra parecia determinada a me fazer experimentar de tudo,
pegando pedaços de bolo e bombons, cada um mais exagerado e delicioso
que o outro. Ela era incansável, e havia algo quase infantil na maneira como
seus olhos brilhavam a cada novo sabor.
Finalmente, depois de provar o suficiente para me sentir satisfeita, e talvez
um pouco culpada pela quantidade de açúcar, me virei para ela.
— Ayra, isso tudo é… demais. — Admiti, olhando ao redor. — Você não
precisava fazer tanto.
Ela inclinou a cabeça, como se estivesse avaliando minhas palavras.
— Claro que precisava. — Respondeu, com firmeza. — Eu quero que você
tenha boas memórias, Lira.
Houve uma intensidade inesperada em suas palavras, algo que fez meu
coração vacilar por um segundo. Mas, como sempre, Ayra quebrou a tensão
antes que ela se tornasse insuportável.
— Agora, vem cá. — Disse, pegando minha mão e me puxando para o sofá.
— Temos que aproveitar o resto da noite antes que você fique séria de novo.
Não consegui evitar uma risada. Assim que me sentei, ela se acomodou no
meu colo de uma forma que era ao mesmo tempo casual e provocativa, como
se aquele fosse o lugar natural dela.
Suas pernas ficaram de cada lado do meu corpo, os braços ao redor do meu
pescoço, e o olhar castanho fixo no meu, com um brilho que me fazia
esquecer de tudo ao redor. Meu corpo reagiu aquela proximidade, ficando
quase insuportável com Ayra vestindo tão pouco.
— Feche os olhos. — Ela disse, baixinho.
— Ayra…
Comecei a protestar, mas o sorriso travesso dela me fez suspirar. Obedeci,
mais por curiosidade do que por outra coisa.
O silêncio entre nós durou apenas alguns segundos antes de sentir os dedos
dela acariciarem meu rosto, deslizando suavemente pela minha bochecha e
mandíbula. Quando abri os olhos por reflexo, Ayra já estava inclinada, com o
rosto próximo ao meu. Ela começou a cantar parabéns, mas sua voz não era
alta ou animada como se estivesse em uma festa. Era baixa, quase um
sussurro, e cada palavra parecia destinada a mim, apenas a mim.
Acariciando meu rosto com uma delicadeza que me surpreendia toda vez, ela
terminou a música com um sorriso satisfeito. Seus dedos pararam no meu
queixo, segurando-o levemente, enquanto seus olhos brilhavam como se
esperassem por algo.
— Isso foi… diferente. — Murmurei, minha voz saindo mais suave do que eu
pretendia.
— Só queria garantir que você realmente ouvisse. — Disse ela, com aquele
sorriso travesso que era ao mesmo tempo desarmante e perigoso.
— Eu ouvi. — Respondi, levantando uma sobrancelha. — E agora?
— Agora, quero que faça um pedido. — Ayra inclinou a cabeça, seus dedos
ainda brincando com meu rosto. — Mesmo que você não acredite nessas
coisas.
— Um pedido? — Eu ri, sem saber se ela estava falando sério. — E para
quê?
— Porque hoje é seu dia. — Ela afirmou, o tom de voz tão sério que me
pegou de surpresa. — E porque eu quero que você tenha algo para desejar.
Algo só seu.
Por um momento, deixei o silêncio preencher o espaço entre nós. Era
estranho, mas aquela simples declaração fez algo dentro de mim vacilar. Ela
não estava brincando. E, pela primeira vez em muito tempo, eu realmente
queria fazer um pedido.
Eu queria pedir que se ainda tivesse algo reservado para mim, depois de
tantos aniversários sem fazer pedidos, que somente este fosse concedido: Que
eu pudesse viver com a Ayra para longos anos, que ela fosse feliz ao meu
lado e quem sabe um dia pudéssemos ter uma linda garotinha com seu
sorriso.
— Tudo bem. — Respondi, fechando os olhos brevemente antes de abri-los
novamente. — Já fiz.
— Isso foi rápido. — Ela sorriu. — Posso saber o que é?
Olhei para o rosto lindo dela, tentando memorizar cada detalhe.
— Não. — Respondi, balançando a cabeça. — Senão não se realiza.
Ayra riu, aquele som suave que eu estava começando a perceber que gostava
mais do que admitiria. Ela inclinou-se para me beijar no rosto.
— Espero que seja algo bom. — Disse ela, com a voz carregada de doçura e
provocação ao mesmo tempo.
— Isso é comigo.
Retruquei, tentando soar casual, mas minha voz parecia carregada demais
para isso. Ela ficou em silêncio por um momento, olhando para mim de um
jeito que parecia querer decifrar tudo o que eu escondia. Então, de repente,
ela sorriu, inclinando-se até nossos narizes quase se tocarem.
— Feliz aniversário, Lira. — Disse baixinho, antes de me beijar de verdade.
No momento em que nossos lábios se encontraram, tudo desapareceu,
substituído por algo mais profundo. Algo urgente. O calor entre nós parecia
uma onda, crescendo a cada segundo.
Ayra estava no meu colo, seus braços ao redor do meu pescoço, suas pernas
me prendendo como se nunca quisesse me soltar. Eu deslizei as mãos para
suas costas, sentindo o calor da sua pele, enquanto ela gemia baixinho contra
a minha boca, me provocando, me puxando para mais perto.
— Você é minha, Ayra — murmurei contra seus lábios, minha voz saiu mais
rouca do que eu esperava. — Só minha!
Ela estremeceu, seus olhos castanhos escuros encontrando os meus, tão
cheios de algo que quase não conseguia decifrar. Mas quando ela sussurrou
de volta, sua voz carregava a mesma intensidade.
—Sua, como você é minha!
Antes que eu pudesse responder, Ayra deslizou as mãos pelo meu peito,
abrindo os botões da minha camisa com uma habilidade que parecia ensaiada,
mas a pressa nos seus movimentos entregava sua urgência. Ela não tinha
paciência, e eu amava isso nela. Cada toque dela me incendiava.
Sem aviso, ela puxou minha camisa, deixando-a de lado, e sua boca desceu
para o meu pescoço, deixando beijos quentes e mordidas suaves enquanto
suas unhas arranhavam levemente minha pele. Meu corpo reagiu
instantaneamente, meu controle despedaçado.
— Ayra… — Eu gemi, puxando-a mais para mim. — Você sabe o que faz
comigo, não sabe?
Ela riu, aquele riso cheio de autoconfiança que só ela conseguia exibir, e, sem
me responder, ela puxou minha camisa por completo.
— Sim e eu amo isso, Lira. — Disse ela, com um sorriso travesso, mas havia
algo a mais em seus olhos.
Eu não respondi. Apenas a segurei com firmeza, girando nossos corpos no
sofá para que ela ficasse deitada de costas. A surpresa nos olhos dela durou
apenas um instante antes de ela me puxar para baixo, me beijando com mais
fome do que antes.
Minhas mãos se moveram pelo corpo dela, traçando cada curva, explorando
cada centímetro daquela pele que parecia feita para mim. Ayra suspirava e
gemia baixinho a cada toque, cada beijo, enquanto eu me perdia nela,
completamente ciente de que poderia passar a eternidade assim.
— Você é minha até o dia em que eu morrer — sussurrei novamente, minha
boca deslizando pelo pescoço dela, descendo até seus ombros. — Ayra…
Minha…
— Você é minha até o dia em que eu morrer… — Ela respondeu, mas sua
voz estava carregada de um prazer que só me fez querer ouvir mais. — E até
depois… Eu juro.
Minhas mãos encontraram a renda da sua lingerie, deslizando por baixo dela
enquanto meus lábios continuavam seu caminho até os seios dela. Cada
toque, cada beijo, era uma forma de gravar em sua pele o quanto ela
significava para mim.
No momento em que minha boca alcançou o tecido rendado da lingerie dela,
Ayra arqueou o corpo, soltando um gemido baixo que fez meu sangue ferver
ainda mais. Meus dedos deslizaram habilidosamente pela alça da peça,
puxando-a para baixo enquanto beijava a curva do seu seio, saboreando cada
reação.
Quando minha língua finalmente tocou seu mamilo, ela suspirou meu nome,
suas unhas se cravando nos meus ombros.
— Lira… — Ayra arfou, seus dedos puxando meu cabelo levemente. — Não
para…
Eu sorri contra sua pele, mordiscando levemente antes de deixar minha
língua explorar o outro lado. A cada movimento, eu sentia seu corpo se
contorcer sob o meu, seus gemidos ficando mais altos, mais desesperados.
Desci meus lábios pelo seu abdômen, sentindo seus músculos se contraírem a
cada toque. Suas coxas se abriram para mim instintivamente, e eu aproveitei
o momento para puxar sua calcinha para baixo, revelando sua pele macia e já
úmida de desejo.
— Você está tão molhada, Ayra… — murmurei, minha voz carregada de
provocação enquanto deixava minha respiração quente roçar contra seu
centro.
— Lira, por favor… — Ela gemeu, seus quadris se movendo em busca do
meu toque.
Sem mais demora, minha língua deslizou por ela, explorando cada centímetro
com uma fome que parecia insaciável. Ayra gritou meu nome, seus dedos
agarrando o sofá enquanto eu alternava entre movimentos lentos e intensos,
aproveitando cada som que ela fazia. Minhas mãos seguraram suas coxas
com firmeza, mantendo-a no lugar enquanto minha língua e meus lábios
trabalhavam para levá-la ao limite.
— Lira!
Ayra gritou, sua voz quebrada enquanto seu corpo tremia incontrolavelmente.
Ela atingiu o clímax com uma força que parecia reverberar por toda a sala,
mas eu não parei. Continuei, prolongando seu prazer, até que ela estivesse
completamente entregue, seu corpo relaxando sob o meu toque.
Quando finalmente subi de volta, Ayra ainda estava ofegante, suas bochechas
coradas e seus olhos brilhando com um misto de satisfação e necessidade. Ela
me puxou para um beijo faminto, suas mãos já trabalhando para tirar minha
calça, enquanto seus quadris se moviam contra os meus.
— Agora é minha vez… — Ela murmurou contra meus lábios, um sorriso
malicioso se formando enquanto me empurrava de costas no sofá.
Ayra não perdeu tempo. Seus lábios encontraram meu pescoço, descendo
rapidamente pelo meu corpo enquanto suas mãos exploravam cada curva.
Quando sua boca finalmente alcançou meu centro, eu soltei um gemido alto,
meu corpo inteiro arqueando em resposta ao toque dela. Ayra era intensa,
seus movimentos precisos, como se soubesse exatamente onde e como me
tocar para me levar à loucura.
— Ayra… — Eu gemi, minhas mãos agarrando seus cabelos enquanto meu
corpo reagia a cada investida da sua língua.
Ela não diminuiu o ritmo, seus dedos se juntando ao trabalho, deslizando para
dentro de mim com uma habilidade que me deixou sem fôlego. Meu corpo
inteiro tremia, o prazer acumulando-se em uma onda avassaladora que
finalmente me atingiu com uma força esmagadora. Gritei seu nome, meu
corpo se contorcendo enquanto o clímax tomava conta de mim.
Ayra subiu de volta, deitando-se ao meu lado e me puxando para os seus
braços. Ambas ofegantes, nossos corpos ainda tremiam enquanto nos
abraçávamos, deixando o silêncio confortável preencher o espaço entre nós.
Ela beijou minha testa, e eu sorri contra sua pele, sentindo-me completamente
em paz.
— Definitivamente, esse foi meu melhor aniversário!
Ayra riu, me abraçando. Naquele momento, nada mais importava além de nós
duas.
☙❧
Acordei com a luz suave entrando pelas cortinas, iluminando o quarto com
um brilho cálido. Estendi a mão automaticamente para o lado da cama, mas,
ao invés do corpo quente e acolhedor da Ayra, encontrei apenas o lençol
vazio. Um suspiro escapou dos meus lábios. Ela havia saído.
Ainda meio sonolenta, passei os dedos pelos cabelos e me espreguicei, mas
algo no meu pulso chamou minha atenção. Meu movimento parou
instantaneamente quando notei uma pulseira deslumbrante adornando minha
pele. Era delicada, de ouro branco, cravejada de pequenos diamantes que
brilhavam sob a luz. Elegante e perfeitamente sofisticada, como se tivesse
sido feita para mim.
Sorri, um calor inexplicável se espalhando pelo meu peito. Passei os dedos
pela joia, admirando o cuidado com o qual ela havia sido escolhida. Peguei
meu celular na mesinha, já imaginando quem era a responsável por esse
presente. Percebi, havia uma mensagem de Ayra.
“ Feliz aniversário, Zamorano. Espero que goste, porque quando vi essa
pulseira, só consegui pensar em como ela é elegante, linda e brilhante
como você.
Antes que você fique insuportavelmente arrogante com esses elogios, saiba
que você ainda me irrita. Muito!!!
Ah, saí cedo para resolver um problema de carregamento. Nada perigoso,
apenas rotina. Não se preocupe, deixei minha localização ligada. Vejo você
no fim do dia, querida esposa… ”
Li a mensagem várias vezes, meu sorriso aumentando a cada leitura. Era tão
típico dela. Um misto de provocação e doçura que só a Ayra sabia entregar.
Toquei a pulseira mais uma vez, como se aquele simples gesto pudesse me
conectar a ela.
Deixei o celular de lado e me levantei, indo até a janela. Lá fora, o sol
brilhava como se fosse um presságio de que o dia seria bom. Por mais que ela
tivesse saído cedo, deixado uma mensagem, e agora estivesse ocupada, senti
uma calmaria que me surpreendeu. Estávamos criando algo que, apesar de
todo o caos das nossas vidas, parecia sólido. Confiável.
Com um último olhar para a pulseira, me virei e comecei a me arrumar para o
dia.
☙❧
Ayra Arellano
O carregamento estava finalmente sendo descarregado, e eu observava cada
movimento de meus homens com atenção. Não era algo que eu precisasse
fazer pessoalmente, mas havia certas situações que preferia manter sob
controle direto.
Além disso, aquele carregamento era importante demais para correr riscos
desnecessários.
Estava dando algumas instruções quando meu celular vibrou no bolso da
calça. Peguei o aparelho, vendo o nome da Lira brilhar na tela. Meu coração
deu um salto automático, mas eu me forcei a manter a expressão neutra. Não
queria que os homens vissem a diferença que ela fazia em mim.
Afastei-me para um canto mais tranquilo, atendendo a ligação.
— Finalmente sentiu minha falta? — provoquei, mantendo o tom casual,
mesmo que o som da voz dela do outro lado já tivesse começado a derreter
minha fachada.
— Não seja convencida, Arellano. — Ela respondeu, mas pude ouvir o
sorriso na voz dela. — Só liguei para avisar que vou precisar sair da cidade.
Minha postura ficou automaticamente mais rígida, foi instintivo.
— Sair da cidade? Por quê?
— Preciso resolver um conflito interno com aliados. Não é nada demais, mas
requer minha presença. Vou pegar o helicóptero daqui a pouco e devo estar
de volta amanhã à tarde. — A voz dela era tranquila, quase casual, mas eu já
sentia um nó de preocupação começando a se formar no estômago.
— Quer que eu vá com você?
A pergunta saiu antes que eu pudesse evitar. Ela soltou uma risada baixa.
— Não precisa. É algo pequeno, Ayra. Eu prometo que não vai virar um
problema. Além disso, você já tem muito o que resolver com esse
carregamento.
Eu mordi o lábio, insatisfeita com a ideia de deixá-la ir sozinha.
— Certo. Mas mantenha sua localização ligada. Quero saber exatamente onde
você está, o tempo todo. — Minha voz saiu mais firme do que eu pretendia,
mas ela não pareceu se importar.
— Isso deveria ser minha fala. — Ela brincou, e eu pude ouvir o som de
movimento ao fundo. — Ah, e obrigada pelo presente. A pulseira é linda.
Você tem bom gosto… às vezes.
— Fico feliz que tenha gostado, pode me agradecer melhor quando voltar…
Eu provoquei, sorrindo. Houve um breve silêncio do outro lado, e por um
segundo, imaginei se ela estava sorrindo também.
— Cuide-se, Ayra. Não faça nada impulsivo enquanto eu não estiver aí. — A
voz dela ficou mais suave, quase como se carregasse um pedido. — Se algo
acontecer basta me ligar.
— Pode deixar, vou me comportar muito bem. — Respondi, tentando
esconder o afeto que queria transbordar.
Ela riu suavemente, o som quente e familiar, que fez meu peito transbordar
de alegria.
— Até amanhã, Arellano.
— Até amanhã, Zamorano.
A ligação terminou, mas fiquei olhando para o celular por mais alguns
segundos antes de guardá-lo. Soltei um longo suspiro e voltei minha atenção
ao carregamento, embora minha mente estivesse longe.
Lira tinha essa habilidade irritante de se instalar nos meus pensamentos e
ocupar cada canto. E, enquanto voltava para supervisionar meus homens,
percebi que já estava contando as horas para o dia seguinte.
☙❧
Aceitei o convite do Sebastian para beber algo no início da noite. Ele
escolheu um bar tranquilo, longe da agitação usual, provavelmente ciente de
que eu preferia algo discreto pela primeira vez na vida. Eu estava sentada,
observando distraidamente o copo em minhas mãos, enquanto Sebastian
falava sobre alguma fofoca que ele ouvira.
— Quando sua esposa não está, você finalmente aceita sair? — Ele
perguntou, com um sorriso travesso, atraindo minha atenção.
— Não perturbe. — Dei de ombros, fingindo indiferença. — Ela é muito
ciumenta.
— E você não? — Ele arqueou uma sobrancelha, obviamente já sabendo a
resposta.
Respondi com um grande sorriso, aquele sorriso cheio de significado que ele
detestava porque nunca entregava nada concreto. Sebastian bufou e rolou os
olhos, mas não conseguiu conter uma risada.
— Então, como foi a comemoração do aniversário? Deu tudo certo? — Ele
perguntou, inclinando-se sobre a mesa.
Por um instante, deixei a memória da noite passada me invadir. O brilho nos
olhos da Lira, o sorriso raro que fazia meu coração disparar e, claro, a
intensidade de tudo o que compartilhamos. Tentei disfarçar o calor que subiu
pelo meu rosto.
— Foi… perfeito. — Admiti, tentando soar casual, mas o pequeno sorriso
que escapou me denunciou.
Sebastian me olhou como se eu fosse um caso perdido.
— Você realmente está completamente presa, hein?
— Não exagera, Seb. — Retruquei, embora meu tom não tivesse a firmeza
que eu esperava. Ele riu, mas antes que pudesse dizer mais alguma coisa, o
som de uma TV no bar atraiu minha atenção.
O noticiário havia interrompido a programação regular com uma manchete
urgente. “Queda de helicóptero na região central do México. As autoridades
ainda não divulgaram se há vítimas fatais.”
Por um segundo, o mundo ao meu redor desacelerou. A palavra “helicóptero”
ecoava na minha mente como um alarme ensurdecedor. Meu peito se apertou,
e senti o sangue gelar. Não podia ser… Não podia ser dela.
Sebastian parou de falar quando notou minha expressão. Ele olhou para a TV,
compreendendo imediatamente, mas antes que pudesse reagir, algo vibrou
sobre a mesa. Meu celular.
Eu escutei, mas consegui reagir. Era como se minha mente estivesse
completamente alheia a tudo ao redor. Sebastian pegou o aparelho e o
colocou na minha mão.
— Atenda. — Disse, sua voz séria, um tom que ele raramente usava.
Atendi no automático, sem sequer olhar o nome na tela.
— Ayra. — A voz grave de Javier encheu meus ouvidos. — Preciso que você
venha para o apartamento agora. Arturo e eu estamos indo para lá.
— O que está acontecendo?
Minha voz saiu mais alta do que eu pretendia, e Sebastian me olhou com
preocupação. Javier hesitou por um momento. Então, sem rodeios, soltou a
bomba que rasgou meu peito.
— O helicóptero da Lira caiu. Não sabemos ainda a situação dos passageiros.
Minha garganta ficou seca. O coração parou. Tudo ao meu redor parecia ter
desaparecido. Eu me levantei da cadeira, mas as pernas quase cederam.
Sebastian segurou meu braço, perguntando algo que eu não conseguia ouvir.
— Estou a caminho. — Disse ao Javier, antes de desligar.
— Ayra, o que houve? — Sebastian perguntou, a preocupação estampada no
rosto.
— O helicóptero da Lira… — Minha voz saiu trêmula, quase irreconhecível.
— Preciso ir.
Ele não fez perguntas. Apenas me acompanhou para fora do bar, chamando
um carro enquanto eu tentava manter minha mente no lugar. Meus passos
estavam desordenados, e quando vi o carro estacionar, percebi que minhas
mãos tremiam tanto que eu sabia que não conseguiria dirigir.
— Você precisa me levar, Seb. Eu não consigo… — Minha voz falhou, e ele
apenas assentiu, abrindo a porta do passageiro para mim.
Durante o trajeto, minha mente estava um caos. O silêncio era cortado apenas
pelo som da minha respiração acelerada. Eu apertava o celular com tanta
força que os nós dos meus dedos estavam brancos. Minha mente não parava
de repetir: Ela tem que estar bem. Ela tem que estar viva.
Olhei para a localização dela no celular, ainda ativada, mas sem nenhum
movimento. Isso apenas intensificou meu medo. Não me importava com
Javier, com Arturo, com nada além de saber se Lira estava viva.
Silenciosamente, implorei para qualquer força que existisse, para que ela
estivesse bem. Porque não havia outra possibilidade para mim.
Quando cheguei ao apartamento como uma tempestade prestes a desabar.
Sebastian estava ao meu lado, guiando-me como se soubesse que eu não
conseguiria fazer isso sozinha. Meus passos eram automáticos, mas o nó no
meu peito crescia a cada segundo.
No hall, avistei Javier e Arturo, cercados de homens, alguns ao telefone,
outros repassando informações. O caos parecia pequeno comparado ao que se
desenrolava dentro de mim.
De repente algo estalou dentro de mim. Corri na direção deles, minha voz
ecoando antes mesmo de chegar perto.
— Onde está a Lira? — perguntei, minha voz soando aguda, quebrada pelo
desespero. — O que aconteceu com ela? Vocês têm notícias?
Javier levantou a mão, tentando me acalmar, mas sua resposta foi como uma
lâmina.
— Ainda não sabemos nada.
— Como assim não sabem? — Minha voz ficou mais alta, quase histérica. —
Vocês têm homens em todos os lugares, têm recursos! Como podem não
saber nada sobre ela?
Arturo, com sua frieza habitual, cortou minha explosão.
— Suba. Vamos conversar no apartamento.
Eu queria protestar, queria gritar com ele, mas meu corpo se moveu por pura
inércia. Sebastian colocou a mão nas minhas costas, me guiando para o
elevador. Minha mente estava em Lira, imaginando-a presa, ferida… ou pior.
O simples pensamento fazia meu estômago revirar.
No apartamento, o ambiente parecia sufocante. Homens entravam e saíam,
murmurando informações que eu não conseguia entender. Eu só conseguia
focar no vazio esmagador.
Onde você está Lira? Onde está querida?
Fui até o bar, minhas mãos tremendo tanto que derrubei a tampa do uísque ao
tentar servi-lo. Não me importei, apenas engoli o líquido, que queimou minha
garganta, mas não aliviou a dor crescente. Peguei meu celular, ligando
novamente para a Lira. O telefone não tocava, ficava sem resposta, e meu
coração parecia se despedaçar ainda mais.
— Ayra, calma. — Sebastian tentou, sua voz cheia de preocupação. Ele
colocou a mão no meu ombro, mas eu o afastei.
— Não me peça para ficar calma, Seb! — Minha voz saiu cortante. — Ela
está lá fora… sozinha… ou pior.
Ele recuou, sem dizer nada, mas o olhar de pena em seu rosto era
insuportável. Me virei para Javier e Arturo, que estavam discutindo algo em
voz baixa. Minha explosão veio sem filtro.
— Nós precisamos ir para o local do acidente! — exigi, minha voz ecoando
pelo apartamento. Javier suspirou, cruzando os braços.
— Não podemos fazer isso, Ayra. — Sua voz era firme, quase
condescendente. — A polícia já está lá. Não é seguro para nós aparecer.
— Eu não me importo! — gritei, minha voz rachando de emoção. — Eu vou
atrás dela. Não vou esperar aqui sem fazer nada!
Antes que eu pudesse sair correndo, o telefone de Arturo tocou. O silêncio
que tomou conta do ambiente foi aterrorizante. Ele atendeu, sua expressão
permanecendo inabalável enquanto ouvia a pessoa do outro lado. Quando
desligou, ele respirou fundo, olhando diretamente para mim.
— Todos os tripulantes do helicóptero estão mortos.
Aquelas palavras me atingiram como uma onda devastadora. Meu corpo
perdeu toda a força, e eu caí de joelhos no chão. Um grito inumano rasgou
minha garganta, um som de dor tão profundo que ecoou pelo apartamento. As
lágrimas desciam descontroladas enquanto eu me debatia, tentando expulsar a
dor insuportável que tomava conta de mim.
— Não, não, não! — gritei, minha voz rouca e cortada pelos soluços. — Não
pode ser verdade! Não pode!
Sebastian tentou me segurar, seus braços ao meu redor enquanto eu me
contorcia. Eu o empurrei, batendo nele sem direção, gritando como um
animal ferido.
— Ela não pode estar morta! — minha voz falhou, mas continuei gritando, a
dor me rasgando por dentro. — Ela não pode… Ela não pode me deixar!
Bati em mim mesma, sentindo o descontrole vindo puramente da dor. Eu
sentia como se estivesse sendo partida de dentro para fora. Minha visão
estava turva, mas ainda consegui ouvir Javier e Arturo conversando em voz
baixa.
— Precisamos agir com estratégia agora que ela morreu — disse Javier, frio
como sempre.
Algo dentro de mim quebrou de vez. Levantei a cabeça, meus olhos
queimando de raiva e ódio.
— Saiam daqui m. — Gritei com puro ódio. — Saiam!
— Ayra, não podemos simplesmente… — Javier começou, mas eu me
levantei com tanta força que quase caí de novo.
— Eu disse para saírem! — gritei, apontando para a porta. — Agora! Esse é o
meu apartamento, e vocês não vão ficar aqui falando dela como se fosse só
um número! Saiam!
Arturo me olhou por um momento antes de fazer sinal para os homens dele
saírem. Por um curto segundo eu vi algo parecido com dor sem seus olhos,
como um verdadeiro pai, mas foi tão rápido. Ele assumiu a máscara fria indo
embora.
Javier hesitou, mas acabou o seguindo. Quando a porta finalmente se fechou,
o silêncio que ficou foi esmagador.
Sebastian ficou ao meu lado, seu rosto carregado de preocupação, mas ele
sabia que não havia nada que pudesse dizer para aliviar a minha dor. Ele se
ajoelhou ao meu lado, me abraçando.
— Ela não pode estar morta, Seb… — sussurrei, minha voz falhando
enquanto as lágrimas caíam. — Ela não pode… A minha Lira… Ela não pode
me deixar aqui.
Ele me abraçou mais apertado, e eu desabei nos braços dele, soluçando de
forma descontrolada. A dor, o desespero, a impotência, tudo me consumia
como um buraco negro.
O apartamento parecia um eco vazio de tudo que eu sentia. Cada segundo que
passava aumentava o peso no meu peito, como se algo invisível me
esmagasse. Eu me afastei de Sebastian, minhas pernas trêmulas enquanto me
arrastava. As paredes pareciam se aproximar, o ar era sufocante, e tudo o que
eu queria era fugir de mim mesma, mas não havia para onde correr.
Cada movimento que eu fazia parecia pesado, como se o chão estivesse
tentando me engolir. Eu me aproximei da janela, olhando para a escuridão lá
fora, mas tudo estava desfocado pelas lágrimas.
Ela não pode estar morta. A frase ecoava na minha cabeça como uma
sentença. Meu corpo começou a tremer, sentindo o frio do mármore contra
minha pele.
Sebastian me seguiu, mas dessa vez manteve distância, como se entendesse
que era o que eu queria. Ele sabia que não havia palavras que pudessem me
alcançar naquele momento. Só o som da minha respiração irregular preenchia
o espaço.
— Por quê? — sussurrei, a voz rouca e quebrada. — Por que isso está
acontecendo? Ela disse que voltava logo.
Eu me encolhi, abraçando os joelhos, minha mente girando com imagens de
Lira. O sorriso dela, a cor linda dos seus olhos, o toque possessivo das mãos
dela em mim… Todas essas memórias me invadiam, rasgando o que restava
da minha sanidade.
Minha garganta apertou, e outro soluço escapou, rasgando minha alma como
uma lâmina. Eu não sabia quanto tempo fiquei ali, encolhida, enquanto o
mundo ao meu redor continuava.
Por fim, ele se aproximou devagar, sentando-se ao meu lado no chão. Ele
colocou uma mão hesitante no meu ombro.
— Ayra… — começou, a voz baixa e cuidadosa. — Posso tirar você desse
chão frio?
— Nunca tive nada bom, Seb. Tudo que eu tive era uma ilusão, mas a Lira
não era… Ela sempre foi forte e confiável, estável. Me protegia e cuidava de
mim, como ninguém nunca fez. — Minha voz quebrou. — Como eu continuo
sem ela?
Sebastian não respondeu imediatamente, mas sua mão no meu ombro ficou
mais firme.
— Você é mais forte do que pensa. — Ele finalmente disse. — Mas eu sei
que isso não importa agora. Só estou aqui, Ayra. Para o que você precisar.
— Eu só preciso dela… — sussurrei, a dor na minha voz tão crua que ele
desviou o olhar, como se não pudesse suportar me ver assim.
Levantei-me com dificuldade, minhas pernas ainda trêmulas, e cambaleei até
o bar. Cada movimento parecia um esforço monumental, como se o peso da
ausência dela estivesse me puxando para baixo. Sebastian me observava à
distância, mas não disse nada, apenas deixou que eu fizesse o que precisava.
Enchi um copo de uísque com mãos trêmulas e o levei aos lábios. O líquido
queimou minha garganta ao descer, mas o calor não era suficiente para
aquecer o vazio que se espalhava no meu peito.
Me virei para encarar o apartamento. O espaço parecia sufocante agora, cada
detalhe era um lembrete doloroso dela. O casaco deixado casualmente no
sofá, o livro aberto na mesa de centro, o perfume que ainda pairava no ar.
Tudo gritava a presença dela, tornando a ausência ainda mais insuportável.
Aquela era nossa casa. Nosso lar. Cada canto carregava um pedaço da
história que estávamos construindo juntas, algo precioso, raro, algo que eu
nunca imaginei que poderia ter… algo que eu não estava pronta para perder.
Coloquei o copo de lado, mas em um impulso frustrado, peguei a garrafa e
bebi diretamente dela. O álcool desceu como uma lâmina afiada, cortando
momentaneamente o caos dentro de mim, mas logo o vazio voltou, mais
esmagador.
— Lira, esposa… — sussurrei para o nada, minha voz quebrada e rouca. Meu
peito se apertou, e eu deixei a garrafa cair sobre o balcão, o som ecoando no
silêncio opressivo do apartamento.
Fechei os olhos e respirei fundo, mas o cheiro dela parecia estar em todo
lugar, impregnando o ar, me torturando. Tudo que eu queria era apagá-lo,
fugir daquele lugar, daquele tormento. Mas como fugir de algo que estava
dentro de mim? Parecia que eu estava morrendo.
☙❧
O tempo é uma coisa relativa, não é? Eu vi o sol nascer e se pôr, e parecia
que eu estava congelada, parada no tempo há três dias. Presa em um loop
infinito de dor que nenhuma quantidade de álcool conseguia atenuar.
Na minha mente, tudo era um borrão, mas as lembranças da Lira estavam lá,
claras como cristal, me assombrando. Cada detalhe, desde o dia em que a
conheci: nossas brigas inflamadas, o primeiro beijo, nossa primeira noite
juntas... Todas as primeiras vezes que agora eram também as últimas.
Se eu soubesse que o tempo com ela seria tão curto, teria feito tudo diferente.
Teria segurado sua mão com mais força, a abraçado mais, a feito sorrir mais.
Teria deixado de lado as desculpas covardes e dito o que estava preso no meu
peito: que eu a amava. Claro que eu a amava. Acho que a amei antes mesmo
de entender que era possível.
Agora eu estava aqui, despedaçada, destruída de dentro para fora, obrigada a
continuar respirando enquanto meu peito ardia, vazio e devastado. Eu queria
morrer. Seria a coisa mais gentil que a vida poderia me oferecer.
— Ayra... — A voz de Sebastian soou baixa, como se temesse me quebrar
ainda mais. Ele não havia me deixado nesses dias. Sempre ao meu lado, em
silêncio, tentando me dar algum tipo de apoio. — Ayra, minha amiga, seu tio
está aqui. Ele disse que você precisa ir com ele... ao funeral.
Funeral. Aquela palavra cravou-se no meu coração, espalhando a dor como
veneno. Me encolhi ainda mais na cama, agarrada ao moletom da Lira que
vestia. Tudo o que eu conseguia pensar era que era tudo uma mentira. Um
funeral para um caixão vazio. Não havia sobrado nada.
— Não consigo... Ela não está lá... É tudo uma mentira!
— Javier insiste, Ayra.
— Quero que ele vá para o inferno! — Minha voz saiu áspera, furiosa. Eu
olhei para Sebastian, minha visão embaçada pelas lágrimas. — Eles estão
usando a morte dela, você não entende? Fazendo um espetáculo enquanto
ela... ela está...
— Claro que entendo, Ayra. Mas estou pensando em você. Não ir pode trazer
consequências.
— Não me importo. — Desviei o olhar para a janela, onde o céu parecia tão
parado quanto minha vida agora. — Nada que acontecer comigo será pior do
que isso. Eles arrancaram meu coração quando derrubaram o helicóptero da
Lira. E eu vou descobrir quem fez isso. Depois disso, podem me matar.
— Pare com isso, Ayra. É isso que a Lira gostaria?
Eu me virei para ele, meus olhos ardendo de dor e raiva.
— A Lira não está aqui, Sebastian. Ela morreu. — Minha voz quebrou. —
Ela me deixou. Ela me deixou depois de me fazer acreditar que podíamos ser
felizes. Ela queria ter uma filha comigo. Ela queria uma família. E agora se
foi. Então sim, eu posso querer morrer. Porque a vida sem ela já é uma morte,
apenas com a diferença de que ainda respiro e sinto dor a cada segundo.
Sebastian me olhou com uma expressão de pena que só me fez querer gritar.
Eu não queria a compaixão dele, mas também sabia que ele não podia fazer
nada. As lágrimas escorreram livres pelo meu rosto, e eu as deixei vir, sem
resistência.
— Tudo bem, eu vou avisar ao seu tio que você não tem condições de ir. —
Ele suspirou, parecendo relutante. — Preciso pegar algumas coisas no meu
apartamento. Se eu sair por um curto espaço de tempo, posso confiar em
você?
— Não vou fazer nada, Seb. — Respondi com um fio de voz, me deitando
novamente e olhando para o horizonte. — Só me permito morrer depois de
destruir quem explodiu o helicóptero da Lira. Eles acham que venceram. Mas
quando eu me levantar daqui, será para acabar com todos.
— Ayra... — Sebastian parecia hesitar, mas acabou cedendo.
— Pode ir, Seb. Quando voltar, estarei aqui. Do mesmo jeito.
Ele assentiu com relutância e saiu. E eu fiquei ali, sozinha, enrolada no
moletom da Lira. Sem forças para me mover, muito menos para começar a
minha vingança. Tudo que eu conseguia fazer era sentir. Sentir a dor de estar
de luto pela pessoa que se tornou meu pêndulo, meu equilíbrio, e que, ao ser
arrancada de mim, deixou meu mundo em colapso.
☙❧
Arturo Zamorano
O céu estava limpo, quase bonito demais para o que era, de fato, um funeral.
As fileiras de convidados lotavam o espaço, muitos rostos conhecidos, outros
nem tanto, todos fingindo uma dor que eu sabia ser superficial. Os negócios
exigem aparências, e eu aceitei o circo que foi montado por estratégia. As
alianças precisavam ser mantidas, os inimigos dissuadidos. Mas, mesmo com
todas as razões práticas, nada poderia abafar o buraco negro que se abria no
meu peito.
Minha filha.
O caixão fechado no centro da cerimônia parecia zombar de mim. Eu sabia
que não havia muito ali, apenas restos carbonizados, peças que um dia foram
uma pessoa. Alguém que eu formei, alguém que carregava meu nome, minha
linhagem.
E agora ela não era mais nada.
O discurso de um conhecido começou, palavras vazias ecoando como um
zumbido nos meus ouvidos. Mantive minha expressão impassível, o mesmo
rosto frio que havia usado a vida inteira para mascarar qualquer fraqueza.
Mas dentro de mim, tudo fervia.
Lembrei-me de Ayra Arellano. Da forma como ela reagiu quando soube da
morte de Lira. Eu sabia que havia algo entre elas, mas não imaginava que
era... real. Sempre presumi que fosse parte de um jogo, uma aliança forçada
por interesses. Mas quando vi Ayra no apartamento, completamente
destruída, gritando e se debatendo como um animal ferido, algo dentro de
mim vacilou.
Era o mesmo som que saiu de mim, tantos anos atrás, quando perdi minha
esposa e meu filho.
Lembrei-me de como, naquele dia, uma parte de mim morreu junto com eles.
A dor era tão intensa, tão cruel, que eu enterrei tudo. Meus sentimentos,
minha compaixão, minha humanidade. Enterrei a mim mesmo. Mas não
percebi, até muito tempo depois, que ao fazer isso, também enterrei a Lira. A
minha filha, ainda viva, mas que passou a ser apenas uma sombra de uma
criança.
Naquela época, não havia espaço para luto, apenas para vingança e controle.
E foi isso que fiz: controlei, moldei, exigi. Transformei a Lira na extensão
fria de mim mesmo, porque isso era tudo que eu podia oferecer. Nunca
perguntei o que ela queria. Nunca tentei entender o que a fazia feliz e fui um
monstro.
Enquanto os discursos continuavam, meus olhos se voltaram para o caixão, e
por um momento, o peso da minha própria culpa ameaçou me esmagar.
Pensei em Ayra, no grito ensurdecedor dela, nos olhos dela inundados de
desespero. Era exatamente como eu me sentia, mas ela não escondia. Não
mascarava.
Ela amava a minha filha.
Isso foi o que mais me surpreendeu. Ayra Arellano, alguém que eu via como
manipuladora e egoísta, estava quebrada de uma maneira que eu nunca pensei
ser possível. Ela não veio ao funeral, mas talvez eu a entendesse. Esse circo
não era para Lira; era para os vivos, para os negócios, para o cartel.
Um toque no meu ombro me trouxe de volta ao presente. Javier estava ao
meu lado, me observando com um olhar que parecia analisar cada pedaço de
mim. Balancei a cabeça, dispensando qualquer tentativa de conversa.
O discurso terminou, e as pessoas começaram a se mover, depositando flores,
mantendo as aparências. Eu permaneci parado, olhando para aquele caixão
vazio.
Assim como naquela noite, tantos anos atrás, quando enterrei minha esposa e
meu filho, e junto com eles, enterrei minha humanidade. Agora, enterrava
Lira, e junto com ela, enterrava qualquer esperança de redenção.
CAPÍTULO QUATORZE
Ayra Arellano
O sol estava se pondo quando ouvi o alarme do tablet ao lado da cama soar.
Era um dos sensores das portas indicando que algo havia sido aberto. Olhei
para o visor: era a porta dos fundos. Franzi o cenho. Devia ser o Sebastian
voltando.
Sem ânimo, enrolei-me em mim mesma, abraçando uma das camisas novas
da Lira. A anterior já estava ensopada pelas lágrimas que eu não conseguia
conter.
— Não verifica mais os alarmes da porta?
Aquela voz.
Meu corpo inteiro congelou. Sentei-me bruscamente, olhando em direção à
porta, e uma onda de choque atravessou cada fibra do meu ser. Meus olhos
piscavam freneticamente, tentando ajustar o foco. Não era real, não podia ser.
Lá estava ela.
Vestida de preto, tirando um boné que revelou seus cabelos escuros presos
em um rabo de cavalo. O rosto perfeito que eu conhecia tão bem estava ali,
mas marcado por linhas de cansaço. E, mesmo assim, parecia mais irreal do
que nunca.
— Pensei que ia ficar mais feliz em me ver… — Lira disse, com um sorriso
quase triste nos lábios. — Não quer vir me dar um abraço, esposa?
Aquela palavra. "Esposa."
Minha visão ficou turva, e as lágrimas vieram antes mesmo que eu pudesse
reagir. O ar parecia ter sido arrancado dos meus pulmões, e eu não sabia se
estava respirando. Levantei-me da cama cambaleando, meu corpo inteiro
tremendo, e praticamente desabei nos braços dela.
Assim que senti seu calor, seu cheiro, sua presença inconfundível, o que
restava de mim se despedaçou completamente. Pressionei meu rosto contra
seu peito, agarrando sua camisa com força, como se temesse que, se soltasse,
ela desapareceria novamente.
— Ayra… — Ela murmurou, os braços firmes me envolvendo com um
cuidado tão gentil que só fez as lágrimas virem ainda mais intensas.
Eu não conseguia parar de chorar. Olhei para o rosto dela, minhas mãos
tremendo ao tocá-la, querendo me convencer de que ela era real.
— Você... você está viva — murmurei entre soluços, minha voz falhando a
cada palavra. — Eu achei que você estava morta… Todos disseram que você
estava morta!
— Eu sei. Me desculpe — Lira respondeu, a voz baixa e calma, mas cheia de
algo que parecia arrependimento. — Fiz todos acreditarem nisso.
A raiva e o alívio se misturaram em um turbilhão dentro de mim, e antes que
eu pudesse me conter, bati no peito dela com força.
— Sua desgraçada! — gritei, as palavras saindo entrecortadas. — Você me
deixou acreditar nisso. Você me fez pensar que tinha me deixado aqui
sozinha, que eu tinha perdido você!
Minhas mãos tremiam enquanto eu batia nela de novo, mas a única reação de
Lira foi me abraçar mais forte, permitindo que eu descontasse toda a minha
dor nela.
— Todos precisavam achar que eu tinha morrido, inclusive você — Lira
disse suavemente, seus dedos deslizando pelas minhas costas em um gesto
calmante. — Me perdoe… Eu não fazia ideia de que isso fosse te atingir
assim.
— Atingir? — solucei, me afastando apenas o suficiente para olhar seus
olhos. Eles brilhavam com lágrimas, mas não desviavam dos meus. — Eu
estava morrendo, Lira. Morrendo! Todo o chão foi arrancado debaixo dos
meus pés quando eu vi aquelas imagens do helicóptero. Nada fazia sentido
porque… porque eu amo você. Eu amo você, Lira, e achei que nunca poderia
dizer isso.
As lágrimas dela começaram a escorrer, silenciosas, enquanto me encarava.
Então, segurando meu rosto com as mãos, encostou sua testa na minha,
respirando fundo antes de falar.
— Se eu pudesse voltar no tempo, no dia em que nos conhecemos, eu teria
tentado conquistar você. Teria sido gentil, teria chamado você para sair… Eu
teria cuidado de você, Ayra, para que nada no mundo te ferisse ou para que
eu nunca te machucasse.
A voz dela tremia, e senti meu coração apertar ainda mais.
— Talvez eu já te amasse desde a primeira vez que te vi — Lira murmurou.
— Não diga que me ama só porque eu disse — protestei, minha voz quase
um sussurro.
Ela riu suavemente, as lágrimas ainda escorrendo por seu rosto.
— Meu doce pedaço de caos… Eu amo você. Amo mais do que qualquer
coisa. Só não sabia se você podia me corresponder.
Minhas palavras morreram na garganta. Acariciei o rosto dela com os dedos,
sentindo a textura da sua pele quente, as lágrimas que molhavam seus traços
perfeitos. Lira inclinou-se, roçando seu nariz no meu em um gesto íntimo e
cheio de ternura, e então sorriu.
— Gostaria que nossas declarações fossem em outro momento, mas somos
nós, não é? Nada em nossas vidas foi convencional.
Assenti, a respiração ainda trêmula, e antes que eu pudesse dizer qualquer
coisa, ela me puxou para si, colando seus lábios nos meus.
O beijo era suave, mas carregado de uma paixão tão intensa que parecia me
consumir por inteiro. Os lábios dela eram quentes, firmes, e o sabor era tão
familiar que meu peito se apertou. Minha língua encontrou a dela em um
movimento lento, explorando, saboreando, e o mundo pareceu desaparecer ao
nosso redor.
Abracei seus ombros largos, sentindo seus músculos se contraírem sob
minhas mãos. As mãos dela seguravam minha cintura, me puxando para mais
perto, como se quisesse me fundir ao seu corpo. Era o tipo de beijo que
prometia nunca mais deixar ir, que dizia tudo o que as palavras não podiam.
Eu gemi contra seus lábios, sentindo a urgência crescer, mas, ao mesmo
tempo, havia algo de incrivelmente terno naquele momento. Era como se
cada toque, cada movimento, fosse para me lembrar que ela estava ali, que
era real.
Quando nos afastamos, nossas respirações estavam entrecortadas, mas ela
não me soltou.
— Senti tanto sua falta, Ayra. — Lira sussurrou, os olhos cinzas brilhando
com um calor que parecia aquecer cada pedaço quebrado de mim.
Ela acariciou meu rosto, o polegar traçando um caminho suave pela minha
bochecha úmida, e senti meu coração, que havia sido reduzido a cacos,
começar a se recompor lentamente.
— Onde estava? O que aconteceu? — Minha voz saiu baixa, hesitante, como
se tivesse medo de quebrar aquele momento.
Lira suspirou, se afastando ligeiramente para olhar nos meus olhos. Vi o
cansaço marcado em seu rosto, a sombra de algo mais profundo em suas
feições.
— Não foi fácil, Ayra — ela começou, sua voz carregada de algo que parecia
quase pesar. — Nada disso foi fácil, mas foi necessário.
Fiquei em silêncio, esperando, o coração batendo forte contra o peito.
— O helicóptero foi sabotado. — Lira segurou meu olhar, sua voz firme, mas
com uma dureza que fazia minha garganta secar. — Quando percebi que algo
estava errado, já estávamos no ar. Não consegui avisar ninguém, porque a
pane foi rápida demais.
Engoli em seco, tentando não imaginar o horror do momento.
— A queda foi inevitável, mas consegui abrir a porta antes de tocar o solo…
Pulei antes do impacto. — Seus olhos se estreitaram ligeiramente, como se
revivesse o instante. — Foi por pouco, Ayra. Muito pouco.
Meu corpo inteiro tremia, mas eu não interrompi.
— O helicóptero explodiu assim que tocou o chão. — Ela fechou os olhos
por um breve momento antes de continuar. — O piloto e o copiloto… eles
não conseguiram sair.
Uma onda de náusea me atingiu, mas continuei ouvindo.
— E havia mais alguém no helicóptero, Ayra. Alguém que ninguém sabia.
Eu franzi o cenho, confusa.
— Mais alguém?
Lira assentiu, o rosto sombrio.
— Uma das minhas seguranças. Eu o coloquei a bordo sem informar a
ninguém. Ele tinha a missão de me proteger em caso de emergência, mas
acabou se tornando a peça-chave para forjar minha morte.
— O que fez? — perguntei, ainda mais confusa.
— Ela pulou comigo, mas ficou gravemente ferida na queda. — Lira passou a
mão pelo rosto, como se afastasse as lembranças. — Usei isso a meu favor.
Coloquei meu sangue nele, misturei ao dos outros tripulantes e posicionei o
corpo no fogo de forma que fosse impossível identificar qualquer coisa a olho
nu.
Minha mente girava com o que ela dizia.
— Todos precisavam acreditar que eu estava morta, Ayra. Se quem sabotou o
helicóptero achasse que eu sobrevivi, tentariam de novo.
Engoli em seco, tentando processar tudo isso.
— Por quê? — perguntei, finalmente. — Por que forjar sua morte? Por que
não me contou?
— Porque eu precisava saber quem estava por trás disso. — Lira deu um
passo para trás, cruzando os braços, seu rosto assumindo uma expressão
sombria. — Não era só um atentado, Ayra. Era uma mensagem.
— Uma mensagem? — Minha voz era apenas um sussurro.
— Sim. E agora eu sei de onde veio. — Seus olhos cinzas ficaram mais
sombrios, quase sombrios como tempestades. — Javier.
O nome caiu entre nós como uma bomba.
— Meu tio? — Minha voz falhou, e minha mente rejeitou a ideia no mesmo
instante. — Não… Isso não faz sentido, Lira. Ele… ele é da minha família.
— Eu sei. — Lira segurou meu olhar, sua voz grave. — Mas é ele, Ayra. Ele
está por trás de tudo. O helicóptero, o atentado ao carro… Javier está jogando
nas sombras há muito tempo, e eu finalmente consegui as provas.
— Provas? — Minha voz saiu mais alta, mas ainda incrédula.
— Sim. Durante o tempo em que todos achavam que eu estava morta, fiz
algumas visitas a lugares que ele não esperava. Analisei contas, contratos…
até que um dos homens que ele contratou falou. Ele não teve como negar. Eu
vou te mostrar tudo.
O chão parecia estar se desfazendo sob os meus pés.
— Não pode ser… — Eu repetia, mas minha voz soava fraca, perdida.
— Ayra. — Lira se aproximou, segurando meus braços, sua voz ganhando
um tom urgente. — Eu não queria acreditar também. Pensei que talvez ele
tivesse sido manipulado ou coagido, mas ele fez isso por um motivo claro:
poder. Ele quer enfraquecer você e me tirar de jogo, consequentemente
atingindo Arturo, nos dividir e assumir o controle.
Senti meu coração se partir ao meio. Javier, o homem que me ajudou a
crescer, havia sido responsável pelo pior pesadelo da minha vida.
— Não acredito que esse idiota fez isso.
— Ele quer o império, Ayra. Tudo. E ele está disposto a passar por cima de
qualquer um para conseguir isso. Até mesmo você.
As lágrimas vieram sem aviso, e eu senti minhas pernas ficarem fracas.
— Ele não podia… ele não podia… — Minha voz era apenas um sussurro.
— Mas ele fez. — Lira apertou meus braços com mais força, sua voz dura.
— E agora precisamos agir.
— Agir? — Olhei para ela, ainda sem acreditar. — O que você quer dizer?
Lira soltou um suspiro pesado, seus olhos brilhando com determinação.
— Vamos derrubá-lo, Ayra. Juntas.
E naquele instante, percebi que, embora o mundo parecesse desmoronar ao
meu redor, havia uma coisa que permanecia firme, inabalável: Lira. Ela era
meu porto seguro em meio à tempestade, e eu sabia que, com ela ao meu
lado, enfrentaríamos qualquer coisa.
Mas a dor de saber que meu próprio sangue havia feito isso nunca iria
desaparecer.
☙❧
Lira Zamorano
Nosso refúgio era um lugar simples e discreto, longe dos olhos curiosos de
qualquer um que pudesse reportar nossa localização a Javier. Era o tipo de
esconderijo que eu jamais teria considerado antes de tudo isso, mas as
circunstâncias exigiam cautela. Um chalé modesto escondido nas montanhas,
isolado, mas equipado com tudo que precisávamos para traçar nossos
próximos passos.
Ayra estava sentada em uma poltrona próxima à janela, os braços cruzados, o
rosto marcado pela exaustão. Eu podia ver os círculos escuros sob seus olhos,
a magreza sutil que antes não estava ali, e algo no meu peito se apertou. Ela
estava tão desgastada, e eu sabia que era por minha causa.
Suspirei baixinho enquanto me aproximava da mesa, onde uma pilha
organizada de papéis, arquivos digitais e fotografias esperava. Essa era nossa
realidade agora, mas pelo menos estávamos juntas. E só isso já era um alívio.
— Está tudo aqui. — Disse, quebrando o silêncio enquanto puxava uma
cadeira e me sentava ao lado dela.
Ayra levantou os olhos cansados para mim, mas havia um calor ali que fazia
meu coração doer. Ela pegou o primeiro documento do topo da pilha e
começou a ler.
— As transferências bancárias são rastreáveis. — Expliquei, apontando para
os papéis em suas mãos. — Ele usou contas em paraísos fiscais para financiar
os ataques. A empresa contratada para sabotar o helicóptero foi paga
diretamente por um intermediário que, adivinhe só, tem vínculos diretos com
Javier.
— Desgraçado… — Ayra murmurou, sua mandíbula se contraindo.
— Não é só isso. — Continuei, pegando outra folha. — Essas são provas de
que ele está expandindo sua influência, especialmente nas áreas que eu
controlava antes do atentado. Ele usou minha "morte" como uma desculpa
perfeita para negociar com Arturo.
Ayra jogou os papéis de lado, levantando-se abruptamente. Sua figura
vibrava de raiva.
— Arturo permitiu isso? — Ela perguntou, a voz dura, mas baixa.
Suspirei, sabendo o peso dessa revelação.
— Arturo não está completamente cego, mas também não está disposto a se
opor a Javier. Ele viu uma oportunidade de fortalecer o cartel como um todo
e não se importa com quem sofre no processo.
Ayra começou a andar de um lado para o outro, os braços cruzados com
força, como se segurasse a si mesma.
— Isso é um jogo para ele. E enquanto isso, ele está nos destruindo.
Me levantei e me aproximei devagar. Minha mão tocou levemente a dela,
tentando quebrar aquela barreira que parecia cercá-la.
— Sim. — Concordei suavemente. — E é por isso que precisamos agir.
Ayra parou de andar e me olhou, os olhos castanhos brilhando com uma
mistura de determinação e algo mais profundo.
— O que exatamente você tem em mente?
Peguei o tablet sobre a mesa e abri a apresentação que preparei.
— Javier tem o controle agora, mas ele está se expandindo rápido demais.
Isso significa que ele está deixando brechas. Vamos usar isso contra ele. Eu
estudei cada área que ele assumiu e identifiquei pontos fracos. Lugares onde
ele ainda não conseguiu consolidar seu poder.
Ela se aproximou, os olhos analisando o que eu mostrava, mas sua
proximidade me distraiu por um momento. O calor do seu corpo, o cheiro
leve e familiar dela... Eu senti uma onda de alívio novamente. Ela estava
aqui, comigo, viva.
— E como faremos isso? — Ayra perguntou, a voz mais suave agora, mas
ainda carregada de tensão.
— Com a ajuda de Lyza. — Respondi, olhando diretamente para ela. —
Precisamos dela, Ayra. Ela tem os recursos e a influência para nos ajudar a
derrubá-lo.
Ayra hesitou, o olhar castanho avaliando minhas palavras.
— Lyza vai querer algo em troca. Sempre quer.
— Sei disso. — Concordei. — Mas estamos em uma posição em que
podemos negociar. Lyza sempre gostou de controle, mas ela também odeia
deslealdade. Podemos convencer ela de que ter Javier no comando é um risco
para todos.
Ela suspirou, passando a mão pelos cabelos, aquele gesto que me derretia
mesmo em um momento como esse.
— E como vamos convencê-la?
— Eu já marquei uma reunião com ela. Mostraremos as provas,
apresentaremos o plano e deixaremos claro que isso beneficia todos nós.
Ayra me olhou por um momento, e então seu rosto suavizou levemente.
— Tudo bem. Mas se ela hesitar, eu mesma vou convencê-la.
Sorri, admirando sua determinação. Mas, ao mesmo tempo, aquela expressão
de cansaço me cortava por dentro. Ela havia se desgastado por mim. Por isso
me aproximei mais, colocando minha mão sobre a sua.
— Ayra... — Chamei baixinho, esperando que ela olhasse para mim. Quando
o fez, sua expressão vulnerável me desarmou. — Eu senti sua falta. Você não
tem ideia do quanto.
Ela piscou, surpresa, mas então apertou minha mão levemente.
— Lira... Eu também. — Sua voz era um sussurro, carregada de emoção.
Eu levei minha outra mão ao rosto dela, acariciando suavemente.
— Não vou deixar nada mais nos separar. — Prometi, com mais força do que
planejava.
Ayra inclinou o rosto contra minha mão, fechando os olhos por um momento
antes de soltar um suspiro longo.
— Eu acredito em você.
E naquele instante, mesmo com tudo o que estava acontecendo, senti algo
raro: esperança. Porque, juntas, sabíamos que podíamos vencer qualquer
coisa.
☙❧
A noite estava quente, abafada, e o ar denso do México parecia pesar ainda
mais ao redor de nós. O local escolhido para o encontro era propositalmente
isolado, um galpão abandonado nos arredores da cidade. Não havia câmeras,
nem sinais de movimento humano por quilômetros.
Um lugar ideal para encontros como este, longe de olhos curiosos e, mais
importante, longe dos ouvidos de Javier ou de qualquer outro informante
infiltrado.
Eu esperei ao lado da Ayra, com os braços cruzados, sentindo a tensão dela
como uma corda esticada. Seu rosto estava composto, mas eu conhecia bem o
suficiente para perceber o nervosismo nos detalhes: o movimento
involuntário dos dedos batendo contra a coxa, o apertar leve dos lábios.
Apesar disso, ela mantinha uma postura firme, inabalável, como sempre
fazia.
Do outro lado do galpão, o som de um motor cortou o silêncio. Um carro
preto estacionou sem pressa, e de dentro dele desceu Lyza. Mesmo de longe,
ela exalava aquela aura de autoridade que a fazia temida e respeitada. Vestida
impecavelmente, como se não estivéssemos no meio do nada, e começou a
caminhar na nossa direção, acompanhada por dois homens armados que
ficaram perto do carro, de olhos atentos.
Lyza nos cumprimentou com um sorriso que não alcançou os olhos.
— Bem-vinda de volta do mundo dos mortos, Lira. Mas poderia ter escolhido
um lugar mais convidativo? — Ela comentou com sarcasmo, olhando ao
redor.
— Precisávamos de discrição, não conforto. — Respondi com um tom seco,
mantendo o contato visual.
Ela ergueu uma sobrancelha e olhou para Ayra, que deu um passo à frente.
— Vamos direto ao ponto, Lyza. — Ayra começou, a voz firme. — Javier
está se expandindo demais, rápido demais. Ele está se tornando um problema
que não podemos mais ignorar.
Lyza inclinou a cabeça, como se analisasse cada palavra.
— E vocês acham que eu não percebi isso? — Ela perguntou, cruzando os
braços. — Javier sempre teve ambição, mas o que exatamente vocês querem
de mim?
Puxei um tablet da bolsa e o entreguei para Lyza. Nele estavam os
documentos, as transferências bancárias, os registros de movimentação de
homens, tudo que provava que Javier estava por trás do atentado e que, agora,
usava isso como uma alavanca para consolidar seu poder.
— Ele não apenas tentou me matar. — Continuei. — Ele tentou nos matar,
todos nós. Ele está transformando o cartel em uma bomba-relógio.
Lyza analisava os documentos com atenção, seus olhos se estreitando
enquanto deslizava as páginas. Ayra se aproximou dela.
— Precisamos de você. — Ayra disse, sua voz mais suave, mas carregada de
convicção. — Sabemos que você também não confia no Javier, e se ele
continuar desse jeito, é só uma questão de tempo até que ele ameace seus
interesses.
Lyza finalmente ergueu os olhos do tablet, olhando diretamente para mim,
depois para Ayra.
— E o que vocês querem que eu faça?
— Aliança. — Eu respondi sem hesitar. — Precisamos de recursos,
informações, e da sua influência. Com isso, podemos desestabilizar o poder
do Javier e colocar Ayra no lugar dele.
— Isso vai criar uma guerra. — Lyza advertiu, mas havia algo no tom dela
que indicava que estava considerando a ideia.
— A guerra já começou. — Ayra retrucou. — A diferença é que, com você,
temos uma chance de vencê-la rápido e com menos danos.
Lyza permaneceu em silêncio por um momento, o olhar fixo em Ayra como
se estivesse pesando suas palavras. Finalmente, ela devolveu o tablet para
mim e deu um sorriso pequeno, quase imperceptível.
— Sempre gostei de você, Ayra. Tem coragem. — Ela disse. — Mas espero
que saiba que, se eu me envolver, vou cobrar um preço.
— Sabemos disso. — Ayra respondeu rapidamente. — Estamos preparadas.
Lyza deu um passo para trás, ajustando os óculos novamente.
— Muito bem. Vou pensar no que vi aqui. E quando eu decidir, vocês serão
as primeiras a saber.
Ela se virou para sair, mas antes de entrar no carro, parou e olhou por cima
do ombro.
— Espero que estejam prontas para o que vem a seguir. Porque não vai ser
bonito.
Assim que ela entrou no carro e o veículo desapareceu na escuridão, me virei
para Ayra, que ainda estava imóvel, encarando o lugar onde Lyza estivera.
— Acho que conseguimos. — Murmurei, tentando esconder o alívio na
minha voz.
— Ainda não. — Ayra respondeu, com os olhos sombrios. — Isso foi só o
primeiro passo.
E ela estava certa. Porque, mesmo com Lyza ao nosso lado, sabíamos que o
verdadeiro desafio ainda estava por vir. E o nome desse desafio era Javier
Arellano.
☙❧
Ayra Arellano
Jantar com Javier era uma das últimas coisas que eu queria fazer. Meu
estômago já estava em um nó só de pensar em dividir a mesma mesa com ele,
enquanto fingia que minha vida estava despedaçada e que Lira estava morta.
Mas manter as aparências era essencial agora, mais do que nunca.
Cada movimento precisava ser calculado, cada palavra medida, porque eu
sabia que Javier estava me observando de perto. Ele sempre fazia isso.
O restaurante escolhido por ele era de luxo, claro, discreto, mas com a
ostentação sutil que ele apreciava. Javier estava sentado no melhor lugar, um
canto reservado que oferecia uma visão perfeita da entrada e saída.
Assim que entrei, forcei meus ombros a relaxarem, mantendo o rosto em uma
máscara perfeita de pesar e neutralidade. O que tornava tudo mais difícil era
que minha mente gritava sobre o fato de que aquele homem, que fingia ser
meu protetor, era o mesmo que havia planejado o atentado contra Lira.
— Ayra. — Ele disse, levantando-se ao me ver, seu tom era caloroso, mas
seus olhos tinham aquele brilho calculista que me deixava desconfortável.
— Tio Javier. — Respondi, mantendo meu tom baixo e triste enquanto me
inclinava para dar um beijo na sua bochecha.
Ele indicou o assento à sua frente, e eu me sentei, cruzando as pernas e
mantendo as mãos no colo, como se estivesse tentando segurar as peças de
mim mesma que fingia ainda estar juntando.
— Fico feliz que tenha vindo. — Ele disse enquanto gesticulava para o
garçom trazer uma garrafa de vinho. — Achei que talvez precisasse de um
momento longe de tudo.
Eu forcei um sorriso pequeno, jogando o olhar para baixo como se estivesse
evitando contato visual por causa da dor.
— É… difícil, mas você está certo.
Javier me estudou por um momento, os olhos brilhando com algo que me fez
querer arrancar aquele sorriso satisfeito do rosto dele.
— Você é forte, Ayra. Sempre foi. — Ele disse, sua voz carregada de algo
que parecia quase... paternal, mas eu sabia que era apenas mais uma das
máscaras que ele usava.
— Obrigada. — Respondi, sem conseguir impedir que minha voz soasse mais
fria do que o necessário.
O vinho chegou, e Javier se serviu primeiro, antes de me oferecer um pouco.
Aceitei, mesmo que não quisesse, porque recusar levantaria suspeitas.
— Como estão as coisas no cartel? — Perguntei, mudando de assunto, como
se estivesse tentando me distrair do "luto".
Ele deu de ombros, casualmente.
— Estáveis. Com Lira… fora de cena, tive que tomar algumas providências,
junto a Arturo que está mais afastado que o normal, afinal alguém tinha que
garantir que tudo continuasse funcionando perfeitamente.
A faca invisível cravou ainda mais fundo no meu peito, mas mantive o rosto
impassível, apenas assentindo.
— Imagino que tenha sido complicado. Ela era… uma força.
Javier inclinou a cabeça, como se estivesse avaliando minhas palavras.
— Era, sim. — Ele concordou. — Mas às vezes, forças precisam ser…
redirecionadas, para o bem maior.
Eu quase quebrei o copo em minha mão, mas me controlei.
— Eu só espero que tudo o que ela construiu não tenha sido em vão, e Arturo
tome o prumo. — Disse, minha voz carregada de um pesar genuíno, mas que
ele jamais entenderia que era porque Lira ainda estava viva e eu faria de tudo
para manter isso assim.
Javier sorriu, mas foi um sorriso breve e sem calor.
— Não se preocupe. Eu estou cuidando de tudo.
Eu assenti, fingindo acreditar nas suas palavras, enquanto o ódio dentro de
mim fervia.
A noite seguiu com conversas banais sobre negócios e o futuro. Ele falava
como se fosse o grande estrategista, como se eu fosse apenas uma peça no
seu tabuleiro.
Quando o jantar finalmente terminou, Javier se levantou, me oferecendo sua
mão para me ajudar a me levantar.
— Cuide-se, Ayra. — Ele disse, sua voz tingida de algo que parecia quase
sincero. — Você ainda tem um futuro brilhante pela frente, mesmo com tudo
isso.
Eu apenas assenti, mais uma vez vestindo a máscara. Assim que saí do
restaurante, senti o peso daquele encontro desabar sobre mim. Javier não
desconfiava que Lira estava viva, mas cada momento perto dele era um
lembrete de que estávamos pisando em gelo fino.
Enquanto o motorista me levava de volta ao local seguro onde Lira me
esperava, eu respirei fundo, me preparando para contar a ela tudo o que havia
acontecido. Nós iríamos derrubá-lo. E quando o fizéssemos, eu garantiria que
ele pagasse por cada segundo de dor que causou a nós duas.
☙❧
Quando cheguei ao apartamento, Sebastian já estava lá, me esperando. Ele se
levantou do sofá assim que entrei, um olhar preocupado evidente no rosto.
— Como foi o jantar? — Ele perguntou, analisando meu rosto como se
tentasse decifrar o que estava passando pela minha cabeça.
— Foi… o que precisava ser. — Respondi, jogando a bolsa no aparador e
caminhando até o bar para pegar um copo de uísque. O jantar havia drenado
minha paciência, e tudo o que eu queria agora era silêncio.
— Quer assistir um filme ao invés de beber? — Sebastian insistiu, mas sua
voz era cuidadosa, como se estivesse pisando em ovos.
— Não. — Dei um gole no uísque, deixando o líquido quente descer pela
garganta. —Estou bem assim.
Sebastian suspirou, cruzando os braços. Ele me observou por um momento,
depois deu alguns passos até mim.
— Por que você não descansa? Amanhã podemos fazer algo.
Eu me sentia um pouco culpada de não contar ao Sebastian que Lira estava
viva, mas era necessário, para a proteção dela e do nosso plano.
— Não, Seb. — Balancei a cabeça, terminando o uísque e deixando o copo
de lado. — Quero ficar sozinha.
Ele franziu a testa, claramente relutante.
— Ayra…
— Estou bem. — Cortei, a exaustão e o peso do dia transparecendo em cada
palavra. — Só preciso de um tempo.
Ele hesitou, mas finalmente suspirou, levantando as mãos em rendição.
— Tudo bem, eu vou. Mas, por favor, não faça nada impulsivo.
— Não vou. — Menti sem hesitar.
Sebastian pegou suas coisas e saiu, lançando-me um último olhar preocupado
antes de fechar a porta. Assim que fiquei sozinha, a máscara de controle que
mantive durante o jantar começou a desmoronar.
Mas não por muito tempo.
O relógio marcava pouco mais de meia-noite quando peguei as chaves da
moto que mantinha na garagem e saí sem fazer barulho. O silêncio do prédio
quase me acalmava, mas minha mente estava em outro lugar, em outro rosto.
Lira.
Eu precisava vê-la. Precisava sentir a sua presença, o calor da sua pele, a
segurança que só ela podia me dar. Cada fibra do meu corpo clamava por ela,
e eu não poderia passar outra noite sem tê-la por perto.
O caminho até o esconderijo era longo, mas a adrenalina queimava em
minhas veias, fazendo o trajeto parecer mais rápido do que realmente era.
Quando finalmente cheguei, o lugar estava mergulhado em sombras, exceto
por uma luz fraca vindo de uma janela.
Estacionei a moto e me aproximei da entrada, batendo duas vezes na porta
com um padrão que ela reconheceria. A porta se abriu um segundo depois, e
lá estava ela.
Lira parecia exausta, mas quando seus olhos encontraram os meus, algo
suavizou em sua expressão.
— Ayra. — Ela disse, com a voz baixa, mas carregada de algo que parecia
alívio.
— Não consegui esperar até amanhã. — Respondi, entrando e fechando a
porta atrás de mim.
Ela não disse nada, mas estendeu a mão, segurando a minha e me puxando
para perto. E, pela primeira vez desde que saí para aquele maldito jantar, eu
finalmente senti que podia respirar.
Assim que a porta se fechou, todo o peso que carregava nos ombros pareceu
diminuir. Estar diante dela, tão perto, fez minha respiração acelerar e minha
mente se esvaziar de tudo que não fosse Lira. A mão dela segurava a minha,
quente, firme, como se fosse o único elo que ainda me ancorava à realidade.
— Você não deveria ter vindo. — Lira sussurrou, mas não havia repreensão
em sua voz, apenas preocupação.
— Não consegui ficar longe. — Respondi, minha voz rouca. — Não quando
tudo em mim gritava para vir até você.
Os olhos dela estavam sombreados de cansaço, mas havia um brilho ali, algo
que só ficava evidente quando estávamos sozinhas. Algo que fazia meu
coração bater mais forte. Eu dei um passo à frente, me aproximando ainda
mais, e senti quando a respiração dela se tornou mais curta.
— Senti sua falta. — Sussurrei, deixando minha mão livre tocar seu rosto, o
polegar acariciando a curva de sua mandíbula. — Mais do que você pode
imaginar.
Lira fechou os olhos por um instante, como se absorvesse o toque. Quando os
abriu novamente, havia algo bruto e intenso em seu olhar que me fez tremer.
— Ayra… — Ela murmurou, mas antes que pudesse dizer mais alguma
coisa, eu me inclinei e capturei seus lábios.
O beijo começou suave, mas rapidamente se tornou mais urgente, mais
necessitado. Minhas mãos deslizaram para seus ombros, depois para suas
costas, apertando-a contra mim como se eu temesse que ela desaparecesse.
Lira retribuiu com igual intensidade, suas mãos segurando minha cintura e
me puxando ainda mais para perto.
Era um encontro de fogo e saudade, de tudo o que não podíamos dizer em
palavras, mas que explodia em cada toque. Eu me afastei apenas o suficiente
para respirar, minha testa encostando na dela enquanto nossos peitos subiam
e desciam em sincronia.
— Você não faz ideia de como me sinto longe. — Eu disse, sentindo seus
dedos roçando a pele do meu pescoço, enviando arrepios por todo o meu
corpo.
— Acho que sei exatamente como é. — Ela murmurou, sua voz quase um
gemido. — Mas estou aqui agora.
Lira me pegou pela cintura, me levantando com facilidade. Eu envolvi suas
costas com minhas pernas, rindo suavemente contra seus lábios enquanto ela
me carregava em direção à cama. Assim que me deitou, seus olhos
percorreram meu rosto e meu corpo, como se quisesse memorizar cada
detalhe.
— Você é tão linda. — Ela sussurrou, sua voz cheia de algo tão profundo que
fez meu coração disparar.
Eu puxei-a para baixo, nossos corpos se alinhando perfeitamente enquanto
nossas bocas se encontravam novamente. Suas mãos começaram a explorar
minha pele, lentamente, como se ela quisesse saborear cada centímetro, como
se estivesse redescobrindo o que já era dela. E eu cedia, completamente
entregue, como se fosse a primeira vez que me permitia sentir tanto por
alguém.
— Lira… — Murmurei seu nome quando seus lábios começaram a traçar um
caminho pelo meu pescoço, descendo lentamente até encontrar a curva do
meu ombro. — Preciso de você.
— Você me tem. — Ela respondeu contra minha pele, a voz baixa e rouca,
cheia de promessas.
Quando seus dedos começaram a explorar mais abaixo, cada toque parecia
incendiar minha pele. Eu me arqueei contra ela, buscando mais, desejando
mais. E ela me deu exatamente o que eu precisava, com uma intensidade que
me fez esquecer de tudo, exceto dela.
Cada movimento era como uma dança perfeita, um encontro de almas que se
reconheciam. E quando finalmente cheguei ao ápice, gritando seu nome, Lira
estava lá, segurando-me, como se eu fosse a coisa mais preciosa do mundo.
Eu a puxei para cima, nossos lábios se encontrando novamente, e dessa vez
foi minha vez de explorar. Minhas mãos traçaram os músculos de suas costas,
meus lábios encontrando cada ponto sensível que eu sabia que a faria
estremecer. Queria que ela sentisse tudo o que eu sentia, queria dar a ela a
mesma intensidade, a mesma devoção.
— Eu te amo, Lira. — Murmurei contra sua pele, minhas palavras cheias de
emoção.
Ela congelou por um instante, apenas o suficiente para me olhar nos olhos,
antes de sorrir suavemente.
— Eu também te amo, Ayra. — Disse ela, sua voz cheia de algo tão sincero
que quase me fez chorar.
E então ela se entregou completamente, e eu a levei ao limite com tudo que
tinha. Era mais do que paixão; era algo bruto e inquebrável, algo que nos unia
de uma maneira que ninguém poderia destruir.
Quando finalmente nos deitamos lado a lado, o silêncio que se seguiu era
confortável, como um abraço invisível. Lira me puxou para seu peito, seus
dedos traçando círculos suaves em minhas costas.
— Nunca mais me deixe, Lira. — Pedi, minha voz baixa, quase um sussurro.
— Nunca. — Ela respondeu, beijando o topo da minha cabeça. — Eu
prometo.
E, naquela noite, adormeci nos braços dela, finalmente sentindo que tudo
estava no lugar certo.
☙❧
Lira Zamorano
Eu estava no ponto de encontro que havíamos combinado, em um armazém
vazio na periferia da cidade. O local era escuro e abafado, com cheiro de
ferrugem e poeira impregnando o ar.
O silêncio era absoluto, exceto pelo som de meus próprios passos ecoando
pelo chão de concreto. Lyza chegou pouco depois, como sempre rodeada por
dois homens de confiança, mas com sua expressão impassível de quem já
sabia mais do que deixava transparecer.
— Você veio sozinha? — Ela perguntou, arqueando uma sobrancelha
enquanto os olhos frios percorriam o ambiente.
— Ayra está ocupada mantendo as aparências. — Respondi, cruzando os
braços, minha postura firme, mas minha mente já antecipando qualquer
surpresa que Lyza pudesse trazer.
Ela deu um pequeno sorriso, aquele sorriso que nunca revelava muito, mas
que fazia o estômago revirar de ansiedade.
— Boa jogada. — Disse, assentindo levemente. — Eu tenho novidades.
— Estou ouvindo. — Respondi, tentando parecer mais tranquila do que
realmente estava. Lyza nunca trazia apenas "novidades". Sempre havia um
peso, uma estratégia oculta por trás de suas palavras.
— Arturo me procurou, assim que avisei que estava no México. — Ela
começou, casualmente, como se fosse um detalhe qualquer. — Disse estar
disposto a deixar algumas de suas demandas de lado. Parece que a morte de
sua filha realmente mexeu com ele. Mais do que ele gostaria de admitir.
Eu senti meu corpo enrijecer, um nó se formando em minha garganta. "Morte
de sua filha." Era estranho ouvir isso dito em voz alta, mesmo sabendo que
fazia parte do plano. Arturo, meu pai, que nunca demonstrou nada além de
controle e frieza, havia sido afetado? Não parecia possível, mas Lyza
raramente errava em suas análises.
— E o que isso significa? — Perguntei, mantendo a voz estável.
— Significa que Javier está assumindo cada vez mais o controle. Inclusive do
novo negócio que você e Ayra estavam cuidando. — Lyza disse, seus olhos
fixos em mim, avaliando cada micro expressão. — E isso, Lira, não é
interessante para mim.
Minha mente começou a trabalhar em alta velocidade. Claro que não era
interessante para ela. Javier ganhando poder significava menos espaço para
negociações, menos flexibilidade para as operações dela. Eu estava prestes a
perguntar o que exatamente ela tinha em mente quando ela deu um passo à
frente, seus olhos brilhando com algo que me fez estremecer.
— Eu aceitei o plano de vocês. — Ela disse, como se fosse uma declaração
casual. — Mas já tomei a liberdade de agir.
— O que você fez, Lyza? — Perguntei, meu tom mais afiado do que eu
pretendia.
— Mandei explodir o galpão onde Javier estará hoje a pedido meu, vou
perder dinheiro... — Ela disse simplesmente, como se estivesse discutindo o
tempo. — Mas não podemos perder tempo esperando que ele nos ataque
primeiro.
O chão pareceu desaparecer sob meus pés.
— Você fez o quê? — Minha voz saiu em um sussurro, mas carregada de
incredulidade.
— Era a melhor jogada. — Lyza continuou, indiferente à minha reação. —
Sem Javier, Arturo está ainda mais vulnerável. Vocês podem tomar tudo.
Meu coração começou a martelar no peito, cada batida ecoando como um
alarme.
— Ayra estava lá. — Eu disse, minha voz trêmula.
O sorriso de Lyza vacilou por um segundo. Ela piscou, como se precisasse
confirmar que tinha entendido certo.
— O quê? — Perguntou, agora com uma ponta de preocupação em seu tom.
— Ayra. Ela vai estar no galpão! — Minha voz subiu, um grito de desespero.
— Como você não sabia disso? Como não verificou?
— Eu achei que ela estaria aqui, com você Lira. — Lyza respondeu, agora se
defendendo, mas meu mundo já estava desmoronando.
Não esperei mais nenhuma palavra. Girei nos calcanhares e saí correndo para
fora do armazém. Meu corpo parecia em piloto automático, minha mente um
caos. Cada pensamento voltado para Ayra, para o que poderia ter acontecido.
Ela estava viva? Ela conseguiu sair?
Minhas mãos tremiam enquanto eu puxava o celular do bolso, discando o
número dela. O som do toque parecia eterno, até cair direto na caixa postal.
Meu estômago afundou, e minha respiração ficou ainda mais curta. Ela não
podia estar morta. Não depois de tudo.
Eu entrei no carro, acelerando imediatamente. A única coisa que importava
era chegar ao galpão. Encontrar Ayra. E, se algo tivesse acontecido a ela...
Lyza pagaria. Ela e qualquer um que tivesse participado desse desastre.
Ninguém tocava em Ayra Arellano sem enfrentar o inferno que eu estava
disposta a desencadear.
O carro cantou os pneus ao fazer a curva, mas eu não conseguia me importar.
Meus pensamentos eram um turbilhão desordenado enquanto meus olhos
ardiam com lágrimas que eu me recusava a derramar. O medo pulsava em
mim como um veneno, cada batida do meu coração era uma lembrança cruel
de que Ayra poderia estar morta.
O cenário do galpão já estava pintado na minha mente antes de eu chegar:
fogo, destruição e o som infernal de sirenes. Mas nada me preparou para o
que realmente vi quando cheguei lá. O céu estava tingido de laranja e cinza
pela fumaça densa que ainda subia do que restava do galpão. Viaturas da
polícia, bombeiros e paramédicos se misturavam com o caos de curiosos e
homens do cartel, todos parecendo atônitos.
Meu peito apertou tanto que mal consegui respirar. A dor parecia um punhal,
afiado e cruel, e por um instante, fiquei paralisada no banco do motorista,
incapaz de me mover. Mas então a realidade me atingiu com força. Ayra
estava lá. Eu não podia perder mais tempo.
Deixei o carro antes mesmo de estacionar corretamente e saí correndo em
direção ao caos. A fumaça queimava minha garganta e fazia meus olhos
lacrimejarem, mas eu não me importava. Meu único pensamento era
encontrar Ayra.
— Ayra! — Gritei, minha voz se erguendo acima do barulho de vozes e
sirenes. — Ayra!
Os olhares se voltaram para mim, e eu ouvi os murmúrios começarem. Não
demorou para que os rostos chocados se virassem na minha direção. É claro
que estavam chocados, eu deveria estar morta. Mas eu não podia me importar
menos. Ignorei todos e continuei avançando, meus olhos varrendo o cenário
de destruição enquanto o pânico crescia dentro de mim como uma onda
pronta para me engolir.
— Senhora, não pode passar daqui! — Um bombeiro tentou me barrar,
colocando uma mão no meu ombro.
Eu o empurrei com tanta força que ele cambaleou, os olhos arregalados, mas
não disse mais nada. Continuei correndo entre os destroços, meu coração
batendo descontroladamente. O cheiro de fumaça misturado a algo químico
era sufocante, e eu sentia meu peito arder, mas minha única preocupação era
Ayra.
— Ayra! — Gritei novamente, o desespero rasgando minha voz. — Onde
você está?!
A ideia de que ela poderia estar ali, entre os escombros, esmagada ou…
morta, me fazia perder o fôlego. Um soluço escapou, mas eu o engoli,
lutando contra o colapso que ameaçava me consumir. Continuei procurando,
vasculhando cada canto entre os destroços e os rostos ao redor.
Foi então que a vi.
Uma silhueta vacilante, apoiada em uma viga ainda de pé, com as roupas
chamuscadas e o cabelo desalinhado. Meu mundo pareceu parar. Meu
coração deu um salto tão forte que parecia que ia explodir.
— Ayra! — Gritei, correndo em direção a ela.
Ela ergueu o olhar, os olhos castanhos desfocados e exaustos, mas vivos.
VIVOS.
— Lira? — A voz dela era rouca, quase inaudível, mas foi o som mais lindo
que eu já ouvi.
Eu me joguei para frente, tropeçando nos escombros, mas não parei até
alcançá-la. Quando finalmente a toquei, minhas mãos seguraram seu rosto
como se quisessem ter certeza de que ela era real.
— Você está viva… Você está viva… — Eu repetia, a voz falhando enquanto
as lágrimas caíam sem controle. — Meu Deus, Ayra, você está aqui.
Ela tentou sorrir, mas eu vi a dor em seus olhos.
— Estou aqui… — Ela murmurou, quase um sussurro. — Você achou
mesmo que eu ia te deixar?
O soluço que eu segurava finalmente escapou, e eu me joguei nos braços
dela, abraçando-a com tanta força que quase a derrubei. Ela grunhiu, mas não
reclamou. Apenas me envolveu com seus braços, segurando-me como se
precisasse do meu toque tanto quanto eu precisava do dela.
— Você está machucada? — Perguntei, puxando-a para olhar melhor. Havia
fuligem no rosto dela, um corte na testa e as mãos tremiam levemente, mas
ela estava inteira. — Me diga a verdade, Ayra. Você está bem?
— Eu estou… bem o suficiente. — Ela disse, tentando parecer firme, mas eu
via o cansaço em cada linha do seu corpo.
— Você podia ter morrido, tudo culpa daquela idiota da Lyza! — Eu quase
gritei, a mistura de alívio e raiva transbordando.
— Isso foi ela? — Ayra franziu o cenho.
— Sim… E ela quase te matou.
— Quase. — Ela respondeu com um sorriso fraco. — Mas não morri, porque
não entrei no galpão.
Meu coração deu um salto de alívio, mas o medo ainda pulsava em mim.
— Vamos sair daqui. — Declarei, envolvendo seu braço ao redor dos meus
ombros. — Não vou soltar você nunca mais.
Enquanto a ajudava a sair daquele inferno, senti os olhares das pessoas ao
nosso redor, mas eu não me importava. Tudo que importava era que Ayra
estava viva e que, de alguma forma, nós duas tínhamos sobrevivido.
Ayra ainda se apoiava em mim enquanto caminhávamos para longe do caos,
o peso do seu corpo indicando o quanto ela estava exausta. Sua respiração era
irregular, e mesmo assim, ela parecia estar presa em algo que precisava dizer.
— Javier estava lá... — Sua voz era baixa, como se ainda estivesse
processando a informação. — Eu vi ele entrando antes de tudo… Antes de
explodir.
Parecia que o mundo parou novamente, mas dessa vez foi o meu coração que
acelerou. Senti uma onda de emoções conflitantes: alívio, raiva, satisfação.
Eu parei de andar, virando-me para encará-la. O rosto de Ayra estava pálido e
marcado pela fuligem, mas seus olhos estavam fixos nos meus, esperando
pela minha reação.
— Eu sei. — Disse, firme, segurando seus ombros e olhando-a diretamente
nos olhos. — Eu sabia que ele estaria lá.
Ela piscou, confusa, e deu um passo para trás, mesmo que hesitante.
— Mas eu estava fora da equação?
— Sim. A Lyza sabia onde Javier estaria… — Respirei fundo, sentindo meu
estômago revirar. — Mas ela contava que você estivesse comigo.
Ayra fechou os olhos, respirando fundo, como se estivesse tentando absorver
a informação. Quando os abriu novamente, havia somente compreensão.
— Ayra… — Eu comecei, mas ela ergueu uma mão para me interromper.
— Não, está tudo bem. Ele estava nos destruindo. Ele teria me matado, teria
matado você, e ele não ia parar enquanto não tivesse tudo que queria. — Ela
desviou o olhar, os ombros caindo em derrota. — Ele teve o que mereceu.
Puxei Ayra para um abraço apertado, sentindo sua respiração irregular contra
meu peito.
— Eu sei. — Murmurei. — Agora de alguma forma estamos mais seguras.
Ela se agarrou a mim como se eu fosse sua âncora, encostando a sua testa na
minha. Ficamos ali, paradas, em meio ao caos que parecia ter se distanciado
um pouco. O barulho ao nosso redor era apenas um sussurro distante. Tudo
que importava era que Ayra estava nos meus braços.
O preço tinha sido alto, mas eu faria tudo novamente para garantir que Ayra
estivesse segura. Que nós estivéssemos seguras. Porque, no final, ela era tudo
que importava.
☙❧
A mansão parecia a mesma de sempre, mas eu sabia que não era. Não depois
de tudo o que aconteceu. Os corredores impecáveis, os móveis imponentes,
tudo isso era apenas uma fachada para esconder o que havia sido perdido. A
mim nunca escapou que, dentro dessas paredes, muitas vidas foram
moldadas, quebradas e reconstruídas de formas que ninguém deveria
suportar.
Passei pelos seguranças com um aceno curto. Eles não ousaram me parar,
mas eu podia sentir seus olhares. Afinal, eu era o fantasma que voltou. A
filha morta que renasceu.
Quando entrei no escritório, ele estava lá, como sempre, atrás daquela mesa
de mogno. Arturo Zamorano não parecia surpreso ao me ver. Seu rosto
permanecia tão frio e impenetrável quanto eu me lembrava. Mas havia algo
nos olhos dele. Um lampejo de algo que eu não via há muito tempo. Cansaço,
talvez. Ou algo mais profundo.
— Lira. — Ele disse, baixo, mas com firmeza.
— Arturo.
Houve um silêncio denso entre nós. Ele me analisava como se tentasse
entender por que eu estava ali.
— Pensei que não veria aqui. Veio para me culpar? — Ele perguntou, sua
voz cortando o ar como uma faca. — Para esfregar Javier na minha cara o
que deixei acontecer?
— Eu vim porque… — Pausei, tentando encontrar as palavras certas. —
Porque, apesar de tudo, você ainda é meu pai.
Ele piscou, surpreso. Mas logo seu rosto endureceu de novo.
— Isso não muda nada, Lira. O mundo em que vivemos não permite
sentimentalismos.
— Não falo do mundo. — Retruquei, me aproximando da mesa. — Falo de
nós dois. Você pode se esconder atrás dessa máscara de poder e indiferença,
mas eu sei que você sente. Eu vi como você reagiu quando achou que eu
estava morta.
Seus dedos apertaram os braços da cadeira, mas ele não disse nada.
— Você pode fingir que não se importa, Arturo, mas a verdade é que, no
fundo, a morte da mamãe e do meu irmão te destruiu. — Continuei, minha
voz mais firme. — E, ao invés de enfrentar isso, você se enterrou no cartel. E
me enterrou junto com você.
Ele se levantou devagar, como se cada movimento pesasse uma tonelada.
Seus olhos, normalmente tão duros, estavam diferentes agora. Mais humanos.
— Eu cometi muitos erros, Lira. — Ele admitiu, com um cansaço que parecia
atravessar décadas. — Mas nunca foi minha intenção te enterrar. Eu só… Eu
não sabia como lidar com a dor. Não sabia como ser o pai que você
precisava.
Aquelas palavras, simples como eram, me atingiram como um golpe. Não
porque eu não soubesse. Mas porque ouvir Arturo admitir isso era algo que
eu nunca imaginei que aconteceria.
— Talvez nunca possamos consertar tudo. Mas… eu não quero continuar
carregando esse peso. — Disse, sendo sincera. — Eu quero ser livre;
Ele me olhou por um longo momento, e então, para minha surpresa, deu a
volta na mesa. Antes que eu percebesse, ele estava diante de mim, hesitante.
— Eu não posso mudar o que fiz. — Ele disse, sua voz mais baixa agora. —
Mas, está livre Lira… Tiro os grilhões que prendem você a mim, acho que é a
única coisa que posso fazer.
Por um momento, eu não soube o que dizer.
— Eu te perdoo. — Sussurrei. — Mas não posso fazer isso sozinha. Você
também precisa se perdoar, Arturo.
Ele assentiu, e então, pela primeira vez em anos, ele me abraçou. Não foi o
abraço mais forte ou o mais longo, mas foi o suficiente. Quando nos
afastamos, ele limpou a garganta, voltando a sua postura rígida, mas algo
havia mudado.
— O que você vai fazer agora? — Ele perguntou.
— Ficar ao lado da Ayra. — Respondi, um pequeno sorriso nos lábios. — E
viver, finalmente viver.
☙❧
Ayra Arellano
A noite estava vibrando com uma energia elétrica, uma mistura de celebração
e reverência, que fazia até o ar parecer mais denso. A posse como líder do
Cartel Dragão Vermelho era algo que, anos atrás, eu jamais teria imaginado.
Ainda mais com ela ao meu lado: Lira Zamorano, minha esposa, minha fênix
renascida.
O salão escolhido era luxuoso e imponente, decorado com o vermelho
intenso e o dourado que marcavam o Dragão Vermelho. Lustres de cristal
pendiam do teto alto, espalhando uma luz cálida que iluminava o ambiente
com uma sofisticação quase intimidante.
As mesas ao redor estavam cobertas de toalhas impecáveis e arranjos com
flores vermelhas, enquanto homens e mulheres poderosos, vestidos no mais
fino traje, conversavam entre si, mas constantemente lançavam olhares na
minha direção.
Eu estava vestida para impressionar. O terno preto sob medida com detalhes
em vermelho na lapela encaixava-se perfeitamente no meu corpo. Mas nada,
nada naquele salão se comparava a ela.
Lira caminhava ao meu lado, e o som de seus saltos ecoava no piso de
mármore. O vestido preto com detalhes dourados que abraçava suas curvas
parecia moldado por deuses. Sua postura era impecável, sua expressão, uma
mistura de firmeza e graça. Ela era um monumento de poder e elegância, e os
olhares que se voltavam para ela confirmavam o que eu já sabia: minha
esposa era a pessoa mais magnética naquele salão.
— Você está deslumbrante. — Murmurei para ela, me inclinando levemente.
Lira lançou-me um olhar de canto, seus olhos cinzentos faiscando com algo
entre diversão e desafio.
— Estou sempre. Mas obrigada por notar. — Ela respondeu com um sorriso
suave, me provocando, mas o toque leve de sua mão no meu braço revelou
algo mais profundo.
As formalidades começaram, e o mestre de cerimônias anunciou minha posse
oficial. Subi ao pequeno palco que fora montado no centro do salão.
Cada passo meu parecia ecoar em meu peito, cada olhar fixo em mim era
uma lembrança do peso dessa responsabilidade. Mas quando olhei para Lira,
sentada em uma das cadeiras reservadas para convidados de honra, ela me
deu um aceno quase imperceptível, como se dissesse que eu poderia carregar
aquele fardo.
O discurso foi breve, mas firme. Palavras escolhidas para lembrar a todos que
o Cartel Dragão Vermelho agora tinha um novo rumo, e que ninguém deveria
ousar duvidar disso. Quando finalizei, o salão irrompeu em aplausos, mas
minha atenção estava fixada em Lira, que levantou sua taça de champanhe
em minha direção, um sorriso que era só nosso iluminando seu rosto.
A cerimônia seguiu, com cumprimentos e conversas formais, até que algo
inesperado aconteceu. A movimentação na entrada do salão chamou minha
atenção.
E lá estavam elas.
Lyza entrou primeiro, seu andar confiante e calculado, o rosto adornado com
aquele sorriso enigmático que sempre escondia algo. Ao lado dela, Dyanne
caminhava, mais discreta, mas igualmente impressionante em um vestido
azul escuro que realçava sua beleza. O choque foi instantâneo, tanto em mim
quanto em Lira, que se endireitou ao meu lado, os olhos fixos nas duas.
— Bem, parece que temos visitas inesperadas. — Lira murmurou, sua voz
carregada de surpresa, mas também de curiosidade.
Eu as recebi com a postura que a ocasião exigia, mas não pude deixar de me
sentir intrigada. Lyza, que sempre foi tão calculista, viera até aqui, até esse
momento, que simbolizava mais do que uma posse, simbolizava uma união e
uma força renovada.
— Arellano. — Lyza me cumprimentou, estendendo a mão, seus olhos
percorrendo o salão com uma avaliação rápida antes de focar nos meus. —
Não podia perder a oportunidade de ver como você lida com o poder que
tanto quis.
— Lyza. — Respondi, aceitando o aperto de mão com um sorriso controlado.
— A surpresa é toda minha.
Dyanne sorriu para mim, mas foi a troca de olhares entre ela e Lira que
roubou minha atenção por um momento. Parecia haver algo não dito ali, algo
que não precisava de palavras.
— Espero que tenha gostado da cerimônia. — Lira comentou com Lyza, sua
voz doce, mas com aquela ponta de aço que eu tanto adorava.
Lyza apenas deu de ombros, mas o sorriso nos seus lábios indicava que ela
estava se divertindo com aquilo tudo.
Quando a noite avançou, eu senti a exaustão começar a pesar. Mas cada vez
que eu olhava para Lira, cada vez que via aquele olhar de orgulho e amor em
seus olhos, parecia que o peso se tornava mais fácil de carregar.
E, por um instante, enquanto o mundo ao nosso redor seguia em seu caos
calculado, eu me permiti um momento de calma. Lira segurou minha mão,
entrelaçando nossos dedos, e naquele instante, no meio de todo o poder e a
política, senti que tínhamos vencido.
Juntas.
— Tenho algo para você, querida… — Lira disse, com aquele tom que
misturava mistério e provocação, enquanto me guiava para fora do salão
lotado.
Seguimos até um pequeno jardim iluminado por luzes delicadas que pendiam
das árvores. O som suave da água corrente de uma fonte ao centro tornava o
ambiente quase mágico. E ali, na beirada da fonte, estava uma caixa
vermelha.
Meu olhar se fixou nela, mas logo voltou para Lira, que estava parada alguns
passos atrás de mim, os olhos cinzentos brilhando com algo que eu só podia
descrever como antecipação e carinho. Havia um sorriso pequeno em seus
lábios, aquele sorriso raro que me fazia esquecer de tudo ao meu redor.
— O que é isso, minha esposa? — Perguntei, sentindo meu coração acelerar
com a expectativa.
Ela se aproximou de mim devagar, seus saltos quase sem som sobre o
caminho de pedra, e então, de repente, fiquei parada enquanto ela deslizou os
braços ao redor da minha cintura, ficando atrás de mim. Seus lábios roçaram
meu pescoço, depositando um beijo suave e quente.
O toque deixou um leve resquício do batom vermelho que ela usava com
certeza, e o gesto foi tão íntimo que senti meu corpo inteiro se aquecer.
— Um presente para você, meu lindo caos. — Ela sussurrou contra minha
pele, a voz suave como um sopro. E então, com um empurrãozinho leve em
meus ombros, ela me incentivou. — Vá abrir, minha garotinha.
Eu sorri, incapaz de conter a excitação, e fui até a fonte, onde a pequena caixa
me aguardava. Quando a peguei, senti o peso leve, mas sólido. Olhei para
Lira mais uma vez, buscando algum indício do que poderia ser, mas ela
apenas acenou com a cabeça, os braços cruzados e aquele sorriso malicioso
nos lábios.
Com cuidado, levantei a tampa da caixa. O que encontrei lá dentro me fez
parar por um instante, surpresa e encantada.
Era uma corrente de ouro delicada, com um pingente em forma de dragão
incrustado com pequenos rubis, que brilhavam como chamas vivas sob a luz
do jardim. O dragão estava em volta de um pequeno círculo de esmeralda, um
detalhe que me fez prender a respiração.
Era perfeito, e não apenas por sua beleza, mas pelo que representava.
Peguei o colar com cuidado, sentindo o peso do ouro em meus dedos, e me
virei para Lira, que agora se aproximava com um olhar que misturava
orgulho e algo mais profundo.
— É… lindo. — Eu sussurrei, ainda sem palavras.
— Achei que seria perfeito para você. — Ela respondeu, pegando o colar de
minhas mãos. — O dragão vermelho, você, e a esmeralda que representa a
mim. Representa quem somos, juntas. Nosso mundo.
Meu coração deu um salto com aquelas palavras. Ela se aproximou e, com a
mesma calma que sempre fazia meu mundo parar, colocou o colar ao redor
do meu pescoço, ajustando-o com cuidado.
— Combina perfeitamente com você. — Lira murmurou, encarando-me de
perto antes de deslizar os dedos levemente sobre o pingente.
— Você é a única que sabe me surpreender assim, Lira. — Sussurrei,
sentindo minha voz falhar levemente.
— Claro que sou. — Ela disse, com um sorriso presunçoso. — Porque você é
minha!
Eu a puxei para mim, segurando sua cintura com firmeza enquanto encostava
minha testa na dela. Por um momento, o mundo desapareceu, e havia apenas
nós duas.
— Eu amo você. — Deixei escapar, sem hesitar.
O sorriso de Lira suavizou, e seus olhos brilharam com algo tão intenso que
parecia quebrar todas as barreiras que ela mantinha em pé.
— E eu amo você, Ayra Arellano. Mais do que consigo colocar em palavras.
Eu a beijei. Não foi um beijo urgente ou cheio de paixão, mas algo mais
profundo. Era uma promessa silenciosa, uma declaração de que, não
importava o que o futuro trouxesse, estaríamos juntas para enfrentar.
Naquele momento, sob as estrelas e as luzes do jardim, com o pingente
repousando sobre meu peito, senti que nada poderia nos derrubar. Não mais.
EPÍLOGO
O som das ondas quebrando suavemente contra a costa era a trilha sonora
perfeita para a manhã ensolarada na costa da Itália. A casa de férias que Ayra
e Lira haviam comprado ficava em uma encosta isolada, com vista para o mar
azul cintilante.
As portas da varanda estavam abertas, deixando a brisa salgada entrar,
enquanto o aroma de limões maduros das árvores próximas completava a
atmosfera.
Ayra estava sentada em uma espreguiçadeira na varanda, vestindo um vestido
leve que marcava suavemente a curva de sua barriga. O olhar dela estava fixo
no horizonte, mas uma mão repousava instintivamente sobre o ventre.
Havia algo quase sereno naquele gesto, uma paz que ela nunca imaginara
possível nos anos tumultuados de sua vida.
— Você está perdida em pensamentos outra vez.
Lira apareceu pela porta. Vestia uma camisa branca com as mangas dobradas,
o cabelo preso de forma casual, e aquele olhar que sempre parecia saber
exatamente o que Ayra estava pensando.
— Só estava pensando em como conseguimos chegar aqui!
Ayra respondeu, aceitando o toque que Lira lhe ofereceu. O toque das mãos
delas era tão natural agora, como se sempre tivesse sido assim.
Lira sentou-se ao lado dela. Seus olhos pousaram na barriga de Ayra, e, sem
pensar, ela estendeu a mão, acariciando o ventre com uma delicadeza que
Ayra sempre achava contraditória e doce para alguém como Lira Zamorano.
— Eu também me pergunto isso às vezes. — Lira sorriu, mas havia um tom
de incredulidade em sua voz. — Quem diria que duas herdeiras de cartéis
rivais terminariam assim?
Ayra riu, inclinando-se levemente para encostar a cabeça no ombro de Lira.
— Acho que Lyza Ferraro ficaria satisfeita em saber que sua “união forçada”
deu tão certo.
— Ela adora se dar esse crédito. — Lira revirou os olhos, mas sorriu em
seguida. — Mas fomos nós que fizemos isso dar certo. Mesmo com todos os
obstáculos, todas as brigas…
— E os tiros. — Ayra acrescentou, com um sorriso travesso.
Lira riu, beijando o topo da cabeça de Ayra.
— Sim, mesmo com os tiros.
O silêncio que seguiu foi confortável, preenchido apenas pelo som das ondas
e o canto distante das gaivotas. Ayra fechou os olhos, aproveitando o calor do
sol e o toque suave de Lira, que continuava traçando círculos delicados em
sua barriga.
— Já pensou em nomes? — Lira perguntou, quebrando o silêncio.
Ayra abriu um olho, olhando para ela com um sorriso.
— Pensei em alguns. Mas acho que vou esperar para discutir isso com a outra
mãe.
Lira arqueou uma sobrancelha, fingindo surpresa.
— Você quer dizer que eu tenho uma opinião?
— Talvez. — Ayra deu de ombros, mas o sorriso traía sua provocação. —
Desde que não seja algo pretensioso demais, como… “Zamorano Júnior”.
Lira gargalhou, inclinando-se para beijar Ayra novamente, desta vez nos
lábios da esposa.
— Prometo que vamos manter a simplicidade. Mas quero algo que represente
tudo o que passamos para chegar até aqui.
Ayra assentiu, voltando a olhar para o mar.
— Acho que, seja qual for o nome, ele ou ela já é muito sortudo. Terá duas
mães que farão de tudo para protegê-lo.
— E muito amor. — Lira completou, a voz carregada de emoção.
Elas permaneceram ali por mais alguns minutos, abraçadas, enquanto o sol
continuava a subir no céu italiano. Naquele momento, o passado parecia uma
memória distante, e o futuro era um horizonte cheio de possibilidades.
E pela primeira vez em muito tempo, Ayra e Lira não sentiam medo do que
estava por vir. Apenas gratidão pelo que haviam conquistado juntas.
— Vamos escolher o nome juntas esta noite? — Lira perguntou, ajudando
Ayra a se levantar com cuidado.
Ayra sorriu.
— Claro. Mas só depois que você cozinhar algo. Estou com fome de novo.
Lira revirou os olhos, mas segurou a mão de Ayra enquanto as duas
caminhavam para dentro da casa, deixando o som das ondas e a brisa leve
para trás. Agora, tinham mais que um ao outro: tinham um lar e um futuro
que criaram juntas.
E, enquanto a vida se movia lenta e pacificamente, Ayra sabia que finalmente
estava onde sempre deveria estar. Nos braços de Lira.
Fim…
Agradecimentos
Ufa… Que alegria poder entregar este livro, que marca o encerramento da
Série “Status”. Mas calma, pessoal! Quando digo que estamos encerrando,
não me refiro a um fim, mas sim ao início de novas histórias e novas
aventuras.
Sinto uma gratidão imensa por esta série e sou completamente apaixonada
por cada um dos personagens que a habitam. Também estou profundamente
tocada pelo carinho que vocês demonstraram por cada uma dessas obras;
vocês são realmente incríveis!
Gostaria de fazer um agradecimento especial à minha mãe, que, por um
tempo, me questionou sobre a minha ausência na escrita. Ela foi um
verdadeiro trampolim, me incentivando a mergulhar novamente nesse
universo e a trazer “Status Vitalis” e outras surpresas.
Portanto, não digo adeus, mas sim um até logo.
[1]
O shot é a forma mais comum e tradicional de consumir a bebida. Sirva uma dose de tequila em um
copo para beber de uma só vez.
[2]
É a prática de casais que fazem sexo com outra pessoa.
[3]
O torniquete é um dispositivo usado para parar/estancar o fluxo de sangue de um machucado. É
aplicado um pouco acima do membro lesionado e apertado até que o sangramento pare completamente.
[4]
Off-shoulder é uma tendência de roupas que expõe os ombros e o colo, também conhecida como
ombro a ombro ou ciganinha.
[5]
O Lamborghini Veneno é um supercarro de luxo com apenas nove unidades no mundo e três no
modelo Coupé.
[6]
Tradução livre: “Obrigada, esposa”.