NOTAS SOBRE A PRESENÇA DE FERNANDO PESSOA NO BRASIL
Alfeu Sparemberger 1
Resumo
Este artigo de revisão traz à consideração, inicialmente, as principais perspectivas de abordagem da
obra de Fernando Pessoa, de acordo com a leitura de Eduardo Lourenço. Na sequência apresenta e
analisa a trajetória da obra pessoana no Brasil, estabelecendo as linhas básicas da recepção do poeta
português. O período considerado estende-se do início do século 20 até o final da década de 40. Para
tanto, o texto incorpora as primeiras apreciações críticas da obra de Fernando Pessoa produzidas por
críticos portugueses e transcritas em periódicos brasileiros e as primeiras incursões de brasileiros na
multifacetada produção do poeta luso. O nome de Fernando Pessoa nunca foi completamente
desconhecido no Brasil, mesmo sendo autor de uma obra dispersa em revistas de efêmera duração.
Palavras-chave: Recepção. Fortuna crítica. Fernando Pessoa.
Abstract
This article review brings initially into consideration, the main approach perspectives of the work of
Fernando Pessoa, according to the reading of Eduardo Lourenço. The paper also presents and analyzes
the history of Fernando Pessoa’s work in Brazil, establishing the basic outlines of the Portuguese
poet’s reception. The period under consideration for this work, extends from the early 20th century
until the late 40’s. To this purpose, the text incorporates major critical assessments of Fernando
Pessoa’s work from Portuguese critics, the ones transcribed in Brazilian newspapers and journals, and
the first Brazilian incursions into the multifaceted work of the Portuguese Poet. The name Fernando
Pessoa has never been completely unknown in Brazil, even being an author of a work scattered in
newspapers and journals of ephemeral duration.
Keywords: Reception. Critical Fortune.. Fernando Pessoa.
1 A trajetória da fortuna crítica de Fernando Pessoa
No ensaio “A fortuna crítica de Pessoa” (1985/86), Eduardo Lourenço assinala que a
obra de Fernando Pessoa, desconhecido do grande público quando de sua morte, em 1935,
não passou despercebida por seus pares. O construto textual pessoano começa a ser erigido
em um número especial da revista Presença, como um primeiro índice de reconhecimento da
expressiva dimensão cultural que sua obra alcançaria. A jovem geração presencista é a
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1
Centro de Letras e Comunicação – Universidade Federal de Pelotas – UFPel – e-mail
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responsável pelo primeiro olhar crítico lançado sobre a produção de Fernando Pessoa,
constituindo-se, assim, num dos mais sólidos esteios da fortuna crítica do autor da “Ode
Marítima”. No início dos anos 50 a obra de Pessoa alcança pleno reconhecimento. Nessa
trajetória a compreensão do fenômeno heteronímico impôs-se como tema crítico merecedor
de investigação. Eduardo Lourenço realiza um sucinto panorama acerca da fortuna literária de
Pessoa, indicando as obras que colaboraram para a conformação daquele construto e
transformaram a sua obra no eixo central da cultura portuguesa. O livro de Jacinto do Prado
Coelho – Diversidade e unidade em Fernando Pessoa (1949) - representa o momento em que
a obra do autor de Mensagem (1935) (recorde-se que este foi o único livro em língua
portuguesa publicado em vida por Pessoa) torna-se “referência clássica dos estudos
universitários”, cumprindo um “rito de passagem da marginalidade cultural para o
reconhecimento institucional”. A partir deste marco Pessoa passa a ser visto como um
“clássico contemporâneo” e é traduzido e estudado em vários países. No Brasil, em especial, a
obra pessoana conheceu notória expansão e repercussão. No final dos anos 60 a “estrela-
Pessoa” já é visível no conjunto da cultura ocidental. A “consagração mítica” é consequência
do célebre ensaio de Roman Jakobson (escrito em colaboração com Luciana S. Picchio e
denominado “Les Oxymores Dialectiques de Fernando Pessoa”, 1968), que insere Fernando
Pessoa na constelação responsável pela Modernidade, rivalizando com Joyce, Picasso,
Stravinsky. Eduardo Lourenço conclui este tópico panorâmico da fortuna crítica de Pessoa
indicando cinco perspectivas adotadas pela crítica relativamente à sua obra.
A tese de Eduardo Lourenço é a de que a fortuna pessoana conheceu um percurso
relativamente estruturado. Nesse processo é revelador, mais do que uma cronologia, o rol das
mudanças de ótica em relação à obra de Pessoa e à “própria realidade literária.” No contexto
português a mudança de aportes teóricos e críticos operou-se, em boa medida, por causa de
Pessoa.
A primeira perspectiva inscreve-se numa “ordem classicamente literária”, “encarnada”
pelos presencistas e “sua estética de essência romântica”. A obra de Pessoa apresenta
problemas insolúveis aos presencistas, centrados que estavam na “tríade eu, espontaneidade,
originalidade, núcleo desta poética”. Nessa ótica, para Eduardo Lourenço,
A percepção e o juízo da poesia pessoana estão subdeterminadas pela questão que
durante uma vintena de anos fará correr muita tinta “psicologista: a da sinceridade
ou da insenceridade da criação de Pessoa. [...] Não tendo compreendido ou aceitado
que o gênio de Pessoa estava ligado precisamente à contestação radical da única
poética válida a seus olhos, esta primeira geração crítica, a que está na base da sua
promoção literária – em termos clássicos – não o ‘compreende’ ou compreende-o
demais, mas não nos termos adequados à ruptura exigida pelo tipo de criação do
autor de ‘Ode Marítima’. Pretende-se confiar Pessoa nos limites de um ‘literário’
que a sua obra está precisamente em via de subverter (1985/86, p. 24).
A segunda orientação pretendeu ver a literatura como “reflexo ou espelho do real”, ou,
por extensão, como transfiguradora do real concebido como realidade social, tributária de
uma visão da “História como luta de classes”. A poesia de Pessoa, ou antes seu construto
discursivo, afasta-se ostensivamente “do que nós podemos conferir à aventura humana
enquanto esforço bem sucedido para racionalizar o seu destino concreto, social”
(LOURENÇO, 1985/86, p. 24). A “resistência” da obra de Pessoa ao esforço de um vínculo
racional ao dado concreto decorre da compreensão de sua poesia como “fuga” para “fora do
mundo”, na expressão de Eduardo Lourenço e, ainda, da exigência ideológica com que o
marxismo configurou a exegese das obras literárias por volta de década de 40 do século 20
por todo o ocidente. A despeito de leituras penetrantes, o veio ideológico dominante naquela
época acaba deportando o poético para uma “instância heterogênea”.
A terceira perspectiva considera a obra de Fernando Pessoa “um universo constituído”.
Trata-se agora da resolução do “enigma visível da Heteronímia, reconduzindo-o ao da
conciliação entre a diversidade evidente e a unidade profunda”. O acento desta perspectiva
desloca a investigação do significado para o significante, vincando a viagem pelas vias da
“matéria do seu imaginário – a própria língua” – como resolução de uma poesia plural na sua
matriz.
O “caso Pessoa” não deriva, pelo viés da quarta perspectiva, somente da literatura,
alcançando, a rigor, a inauguração de uma “literatura-outra”, exigindo uma “crítica-outra”. O
registro nesta linha investigativa é outro:
Trata-se, ao mesmo tempo, de uma aventura existencial e ontológica, através da qual
se joga não só o sentido do Eu, mas, também, o sentido do Sentido. É a relação
verbo-mundo, signo-realidade que é questionado mesmo se o seu suporte continua
sendo ainda uma pluralidade de sujeitos (LOURENÇO, 1985/86, p. 25).
É uma linha que pretende organizar as demais perspectivas, aderindo ao poeta, sem a
recorrência a “uma crítica heterogênea”, admitindo-se a revelação de uma “poesia-
conhecimento”. A apreensão da obra pessoana decorre de um “ato sem mais significação que
a autorizada pela vivência de sua poesia, o que, no caso de Pessoa, quer dizer poesia que põe
em causa a essência mesma da poesia, e, nela, a própria literatura” (LOURENÇO, 1985/86, p.
25) e, a rigor, a “experiência do poético nem releva da aventura ontológica”. Nesse viés,
Teríamos de pensar num continente novo, numa perspectiva na qual a visão
paradoxal da Ausência importa mais que a do Ser, em suma, qualquer coisa da
ordem do neo-ontológico, quer dizer, no tipo de intuições que encontraram nas
formas mais extremas do neoplatonismo [...] (LOURENÇO, 1985/86, p. 25).
O ser assim compreendido ultrapassa o plasma da linguagem ou é a visão de “uma
linguagem que não consegue falar”. Daí que a crítica é, por mimetismo, metacrítica, “jogo de
espelhos” que é, afinal, nas palavras de Eduardo Lourenço, “um jogo no limite do silêncio”.
A última perspectiva analisa a obra de Pessoa como um jogo do “vivido imaginário”,
como “poeto-drama”. Em conformidade com uma alteração do empreendimento crítico,
ocorre o deslocamento “para o imaginário da língua, para os seus labirintos e impasses, cena
atrás da qual nada se joga, salvo o próprio jogo” (LOURENÇO, 1985/86, p. 25). O eu não tem
outro conteúdo que não o efeito das palavras – fato que a acuidade de Pessoa tão bem
capturou -, pois o eu é condensado num efeito puramente linguístico. As vertentes de uma tal
consideração da obra pessoana – como objeto e simulacro – remetem a R. Barthes e J. Lacan.
Tais perspectivas, ao revelarem Fernando Pessoa, converteram-no num “mito cultural vivo”,
fenômeno ainda em contínua expansão. Nesta linha, José-Augusto Seabra e Leyla Perrone
Moisés conferiram a este gênero de leitura o seu diploma universitário de nobreza.
2 Fernando Pessoa no Brasil: primeiros registros
Quando, mais para o fim dos anos 60, a obra de Fernando Pessoa experimentava
significativa visibilidade na cultura ocidental, ela já conhecia também um histórico
representativo de leituras no Brasil. A extraordinária voga de Pessoa no Brasil, para além da
assimilação que a poesia do autor de Mensagem destina à pátria como lugar de uma língua
comum, deveu-se sobretudo aos estudos críticos e de divulgação de Gilberto de Melo
Kujawski, Fernando Segolin, Massaud Moisés, Leodegário de Azevedo Filho, Carlos Filipe
Moisés, Maria Lúcia dal Farra, José Basílio Quesado e Wilma Areas, além dos portugueses
Fernando Mendonça e João Alves das Neves. Eduardo Lourenço completa a lista:
Se destacarmos entre essas contribuições, como particularmente importantes pela
antecipação e originalidade, as de Cleonice Berardinelli, Benedito Nunes e Leyla
Perrone, teremos uma idéia da extensão e da qualidade da contribuição brasileira
para a fortuna crítica de Pessoa (LOURENÇO, 1985/86, p. 23).
A “divulgação pública” de Fernando Pessoa no Brasil deu-se em 1938, no Boletim de
Ariel, com um artigo assinado por Adolfo Casais Monteiro intitulado “O exemplo de
Fernando Pessoa”, transcrito do Diário de Lisboa (de 9 de dezembro de 1937). Outros
números do mesmo Boletim, segundo Arnaldo Saraiva, prosseguiram com a divulgação de
Pessoa no Brasil:
O n. 11, de agosto, publicava também uma nota que dava Pessoa como o “único
poeta português igualável a Camões” e transcrevia poemas que em abril tinham
aparecido na revista lisboeta Mensagem. E o n. 12, de setembro, voltava a incluir
poemas pessoanos, desta vez transcritos da Revista de Portugal. Também a Revista
do Brasil publicou em novembro de 1938 um artigo, “A apresentação de Fernando
Pessoa”, assinado por João Gaspar Simões (SARAIVA, 2004, p. 187).
Nessa “Apresentação” João Gaspar Simões, que na época trabalhava nos papéis
deixados pelo autor da Ode Triunfal, oferece ao leitor brasileiro um apreciável quadro
informativo sobre a obra de Fernando Pessoa. Em linhas gerais, é possível destacar uma
exegese que contempla, na primeira parte, aspectos como:
a) o nome de Fernando Pessoa começa a frequentar os círculos que abordam a poesia
portuguesa, divulgando a obra de alguém quase “desconhecido em vida”;
b) a dispersão da obra de Pessoa em publicações efêmeras, dificultando um
conhecimento a pleno e imediato do autor (a necessidade que tem o interessado em
recorrer a revistas da época);
c) o equívoco em chamar Pessoa de poeta futurista (“conquanto tivesse experimentado
a chamada esthetica futurista”); Pessoa aderiu a todas as revoluções estéticas e
ainda criou uma “escola literária”: o sensacionismo;
d) o contexto e os companheiros, como Almada Negreiros e Mário de Sá-Carneiro,
dispostos a “quebrar o rythmo morto das letras nacionaes”;
e) o fingimento e a concepção da arte como um drama (Fernando Pessoa era “um
drama em gente”); os heterônimos e a mistificação; afirma João Gaspar Simões:
“Fernando Pessoa só era mystificador para o não ser. Era a necessidade de se
esconder a si próprio que o levava a mystificar. Mas era mystificando que Pessoa
se realizava como artista. Quer dizer: mystificando, cumpria-se. Mystificando:
realizava-se na sua própria mystificação. ‘Fingir é conhecer-se’ – escreveu elle.
Porque fingia, Fernando Pessoa conhecia-se. A sua arte era a única maneira de
Fernando Pessoa se conhecer a si próprio” (1938, p. 449).
E da segunda parte do texto é possível destacar:
a) a referência a uma “taboa biobliographica” enviada por Fernando Pessoa à revista
Presença (de 1928), em que o autor da Mensagem apresenta e “explica” o
fenômeno da heteronímia, com referências sobre dados biográficos de todas as
criações e a lista das obras de cada uma delas;
b) a retomada do tópico da mistificação; nos termos de Gaspar Simões: “Isto é: o
problema da realidades daquellas personalidades fictícias punha-o Fernando
Pessoa como problema metaphysico: o problema do conhecimento da realidade. A
sua mystificação assumia assim categoria de problema philosophico. E a verdade é
haver tanta mystificação na attitude de Fernando Pessoa como na do dramaturgo
ou na do romancista. Pois não é certo que mystificam o dramaturgo e o romancista,
creando personagens de quem nos descrevem os actos e a figura?” (1938, p. 451).
Na terceira parte encontra-se:
a) o fenômeno da heteronímia é explicado como tendência orgânica de Pessoa para a
“despersonalização e para a simulação”;
b) uma explicação de Gaspar Simões: “O seu drama em gente é um arranjo ou uma
mystificação pela qual lhe foi permitido falar em nome de varias tendências da sua
personalidade sem nunca descer àquelle nivel da realidade a que só descem os que
crêem no real: os dramaturgos e os romancistas” (1938, p. 452).
A quarta parte desta “Apresentação de Fernando Pessoa” investe ainda em alguns
aspectos tais como:
a) no fenômeno da heteronímia (pois considera o fato de que a vida de Pessoa
permaneceu no anonimato e o poeta mantinha uma relação de indiferença para
com o mundo circundante); assim, “Fernando continuava a representar o seu
drama”; “Falava de Alvaro de Campos com a mesma convicção alheada com que
Balzac referia aos seus heróes. Mas os heróes de Fernando Pessoa não se
realizavam literariamente. Viviam a seu lado, naquella sombra cheia de mysterio
que era para elle a realidade da sua própria imaginação” (SIMÕES, 1938, p. 452);
b) na formação escolar de Fernando Pessoa, em parte realizada em “contexto”
britânico; o lugar da infância e a inteligência como principal matriz da realização
poética: “A poesia, para um poeta intellectual como Fernando Pessoa, era, é mais
uma decantação de valores gerados na própria intelligencia do que um aflorar de
emoções. Um homem mais intelligente que sensível não sabe ser original sem o
amparo da intelligencia. É a intelligencia que lhe nobilita estheticamente a
expressão. [...] Assim, quando Fernando Pessoa fala do amor, não se refere a
nenhum amor concreto e particular: o amor nos versos de Fernando Pessoa é um
pensamento feito poesia” (SIMÕES, 1938, p. 454).
E, finalmente, nos dois últimos blocos do texto, Gaspar Simões destaca:
a) a inteligência como predisposição para a poesia: “Em Fernando Pessoa a
intelligencia era um instrumento de communicação com as potencias secretas da
própria vida” (SIMÕES, 1938, p. 456);
b) o interesse de Fernando Pessoa pela astrologia: “Mas também não era uma
intelligencia especulativa-racional. Não: era uma intelligencia determinada pelas
forças latentes de uma imaginação que se procurava nos próprios astros”
(SIMÕES, 1938, p. 456);
c) o ocultismo (no caso, poemas ocultistas antes como textos simbolistas): “Mas não
se pode dizer que Fernando Pessoa fosse uma sensibilidade inteiramente dada a
essa espécie de desagregação total da personalidade no seio do Universo, que é até
certo ponto a característica de toda a poesia occultista. Fernando Pessoa nunca
perdia a consciência da opposição entre o seu eu e o mundo. A sua consciência não
se fundia com a consciência universal. Pessoa sabia distinguir com firmeza o Eu
do não Eu. A sua intelligencia não o deixava perder o controle das suas
faculdades” (SIMÕES, 1938, p. 456-457);
d) a importância de um poema como a “Ode Marítima” na obra de Pessoa, capaz de
ilustrar o próprio drama pessoano.
O nome de Fernando Pessoa, contudo, não era, àquela altura, desconhecido no Brasil.
Apareceu inicialmente na transcrição do conto “O homem dos sonhos”, de Mário de Sá-
Carneiro, publicado pela Gazeta de Notícias (RIO, 1913), dedicado ao escritor português. Por
volta do mesmo ano Carlos Maul mencionou o nome de Pessoa numa conferência; na
Biblioteca Internacional de Obras Célebres, antologia de literatura internacional, editada em
Portugal, mas dirigida especialmente ao Brasil, Fernando Pessoa “deixou várias traduções
assinadas, e outras anônimas, feitas do inglês e do castelhano”; Ronald de Carvalho, com
intermediação de Luís de Montalvor, travou contato com Fernando Pessoa; e, finalmente,
cabe destacar o “capítulo” acerca da participação de brasileiros na revista Orpheu, porta-voz
dos anseios de vanguarda em Portugal. Ademais, “não custa acreditar que, em conversa com
camaradas brasileiros, esses escritores portugueses [Veiga Simões, Álvaro Pinto, Jaime
Cortesão, Carlos Lobo de Oliveira, Antônio Ferro e José Osório de Oliveira], amigos de
Pessoa, o citassem como um dos melhores representantes da literatura que então se escrevia
em Portugal; e só é estranho que alguns deles, como Álvaro Pinto e Antônio Ferro, que o liam
– dispersamente, é verdade – desde 1912, pelo menos, nada tenham feito publicamente para o
divulgar no Brasil” (SARAIVA, 2004, p. 187).
Entre os brasileiros, o primeiro a mencionar a grandeza de Fernando Pessoa foi
Ribeiro Couto. Em sua passagem por Portugal, em 1929, é possível que este autor tenha
conhecido pessoalmente Fernando Pessoa. Ele registrou o conhecimento da obra de Pessoa
em carta dirigida a Carlos Drummond de Andrade, em 1931. Antes, porém, de apresentar o
primeiro registro público sobre a obra de Pessoa no Brasil, cabe assinalar que Mário de
Andrade, contemplado por Carlos de Queirós com a oferta da Homenagem a Fernando
Pessoa (de 1936), era já conhecedor da obra do poeta português. No seu texto “Uma suave
rudeza” (de 1939), da obra O empalhador de passarinho, Mário de Andrade aponta para o
risco de se escrever sobre “arte estrangeira”, porque uma literatura não é uma procissão de
indivíduos desconexos entre si e da realidade nacional, e escreve estas palavras sobre o autor
de “Ode Marítima”:
O caso de Fernando Pessoa, para esta crônica portuguesa, me parece característico
do que afirmo. Os poucos brasileiros meus amigos, mais ou menos versados nessa
notável inteligência portuguesa, se assombram um bocado com a genialidade que lhe
atribuem certos grupos intelectuais de Portugal. Ora, nem portugueses nem
brasileiros estaremos provàvelmente errados nisto. É que Fernando Pessoa
representa, em certos grupos portugueses, uma concretização de ideais múltiplos que
nos escapa. E desconfio que à infinita maioria dos portugueses o nosso Machado de
Assis estará na mesma posição (ANDRADE apud SCHUTEL, 1976, p. 84)
A publicação do texto de Adolfo Casais Monteiro, em 1938, mostra que a recepção
brasileira coincide com a interpretação dos poetas e críticos da revista Presença, naquela
primeira perspectiva lançada por Eduardo Lourenço. Nas palavras de Monteiro, a obra de
Fernando Pessoa “surge sem esses mil e um traços de humanidade que costumam surgir da
leitura das tentativas pelas quaes o artista se foi aproximando da perfeição, do
amadurecimento” (1938, p. 215). A obra de Pessoa “surgiu definitiva”, “sem evolução”. A
simultaneidade dos heterônimos garantiu à obra de Pessoa a síntese de uma evolução não
realizada no tempo, por meio de fases de hesitação e de procura. Adolfo Monteiro argumenta
que, para Pessoa, a vida era a obra, a primeira confundindo-se com a de milhões de
indivíduos. A segunda, produzida sem qualquer traço de uma existência particular, desenhava
em eternidade a fisionomia do poeta, sem que o tempo atuasse no apagamento dos sinais da
passagem do homem. Tal fato, porém, não “desumaniza” a obra pessoana, ao contrário, pois
ela foi diretamente ao “interior do homem”. E acrescenta Adolfo Casais Monteiro: “O que lhe
falta é interesse pelo occasional, pelo circumnstancial, que muitos julgam ser todo o humano,
ai delles! A obra de Fernando Pessoa não revela o eterno do homem no accidental, mas no
proprio eterno. Despreza os disfarces do que parece: vae direita ao ser” (ANDRADE apud
SCHUTEL, 1976, p. 215).
Na sequência do texto, revelando uma intimidade resultante da convivência pessoal
com Fernando Pessoa, Adolfo Casais Monteiro deixa entrever um tema caro ao grupo
presencista: a pureza de um ideal, vale dizer, a sinceridade do artista, de obrigatória inscrição
na obra poética. O homem Pessoa não está na obra, ou melhor, a vida de Fernando Pessoa,
como já referido anteriormente, era a obra, de um ideal ascético, em que mais transparece o
homem – no seu contato com os outros homens – do que a obra. Daí, talvez, a irrealidade da
existência de alguém chamado Fernando Pessoa:
Ele era, para a maior parte de nós, tanto de outro mundo que não foi precisa a sua
morte para nos apparecer na pura nudez de sua obra, despido do tempo. Procurou
sempre existir nella; dahi o que á nossa fraqueza de demasiado terrenos pode-se
afigurar-se duro e incomprehensivel sacrifício: essa vida obscura que levou, ser
porventura o mais perfeito signal da sua grandeza. Lembremo-nos da indifferença e
do silencio, quando não do riso soez e do sarcasmo, que pouco ou mais os seus
contemporâneos lhe deram em paga da obra, compenetremo-nos bem do que
significa de domínio o soberbo, o heróico isolamento em que viveu, e poderemos
então dar o seu inteiro valor á fé inquebrantável com que permaneceu fiel a si
próprio e ao seu destino, que era levar a cabo a sua obra (MONTEIRO, 1938, p.
215).
3 A consolidação da presença de Fernando Pessoa no Brasil: a década de 40
No início dos anos 40, como oportunamente lembra João Alves das Neves, Domingos
Carvalho da Silva, em artigos pouco referidos, abordou a obra de Fernando Pessoa. O
primeiro, “Através da nova poesia portuguesa” (Correio Paulistano, 19 de setembro de 1943),
destacava Fernando Pessoa como “talvez o mais notável expoente da nova poesia portuguesa”
(apud NEVES, 1992, p. 56). Um segundo artigo, “Fernando Pessoa – ele mesmo”, publicado
no mesmo Correio Paulistano (06/02/1944), comentava a antologia publicada por Adolfo
Casais Monteiro em Lisboa, em 1942, e mencionava ainda um terceiro artigo, publicado no
mesmo periódico paulista. Os dados confirmam um crescente interesse no Brasil pela obra do
autor da Mensagem, fato consignado ainda pelo artigo de Murilo Mendes, “Fernando Pessoa”,
publicado na Folha da Manhã (RECIFE, 10/12/1944). O artigo de Murilo Mendes, além de
revelar dados biográficos do poeta português, reconhecido como “extraordinário”, de
esclarecer como estabeleceu contato com a obra e elogiar o trabalho de João Gaspar Simões,
organizador das edições da obra de Pessoa, investe na exegese da produção pessoana quando
afirma: “Este é o poeta da falta de solução, poeta da falta de atrito com as coisas, poeta da
solidão essencial, sem ornatos. Até agora os dois grandes poetas da solidão em Portugal eram
Antero de Quental e António Nobre. Mas penso que Fernando Pessoa é ainda muito mais
isolado” (apud FONSECA, 1985, p. 106). Ao explicar a afirmação, acrescenta: “Quanto a
Fernando Pessoa, está sozinho mesmo. Só com o só. Com a Esfinge, que não é outro senão
ele próprio”. E finaliza, observando que Fernando Pessoa
Possui (se se pode aplicar este verbo a um homem que não possui coisa alguma) o
exacto conhecimento da inutilidade dos gestos humanos. Sua angústia não gesticula,
não emprega a retórica. É de uma lucidez implacável. Chegou ao mais minucioso
exame de si mesmo, à filtragem da sua própria personalidade, a que se refere, apesar
de tudo, com carinho, como se se tratasse de uma terceira pessoa. Extremamente
complexo, tocou a própria simplicidade. Repito: não conheço lucidez tão grande em
nenhum outro poeta. Mas não é um racionalista (FONSECA, 1985, p. 107).
Murilo Mendes cita vários poemas de Fernando Pessoa, destacando o lado místico e
esotérico da obra, revelando especial interesse pela “Ode Marcial”. Ressalta-se que, 20 anos
depois, Mendes voltou a se ocupar de Fernando Pessoa, “desta vez para repudiá-lo”, no seu
texto “Murilograma a Fernando Pessoa” (de 1964). A identificação de Murilo com Fernando
Pessoa reaparece na década de 70, por meio de um retrato-colagem, descrição poética de “um
encontro imaginário” com o autor da “Ode Triunfal”. Esse trabalho representa, como assinala
Francis Lopes da Silva, a atividade de um “Murilo leitor crítico, contemplativo, a reverenciar
escritores e artistas representativos da cultura clássica, cujas obras lhe eram bastante
familiares, graças às constantes pesquisas e ao apurado gosto estético do poeta” (2008, p. 88).
Lúcio Cardoso também foi atraído pela poesia de Fernando Pessoa, com predileção
pelas Poesias, de Álvaro de Campos. Assinala João Alves das Neves que “O texto de Lúcio
Cardoso é na verdade um curto ensaio e havia sido lido anteriormente (24/5/1946) durante um
encontro na Faculdade de Direito de Belo Horizonte. O entusiasmo de Lúcio Cardoso ia desde
a Mensagem à Ode Marítima, obra daquele que ‘mais se aproximou de Camões, o único que
pode ser colocado à sua grande sombra’. E lembrava que ‘certamente todo poeta é um ser
múltiplo’, mas em Fernando Pessoa a multiplicidade era ‘a própria essência do seu ser, a
condições do seu drama, os alicerces da sua genial criação’ (NEVES, 1992, p. 58). Lúcio
Cardoso defendeu a tese de que “na diversidade da obra pessoana existe uma unidade
essencial” (apud FONSECA, 1985, p. 109). O texto de Lúcio Cardoso é precursor, em certa
medida, da postulação da unidade na diversidade da obra pessoana: “Não são cinco ou seis
homens diferentes, como ele próprio procurou nos fazer acreditar, baptizando-os com nomes
diversos. Ricardo Reis, Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Bernardo Soares são faces do
mesmo homem – Fernando Pessoa é o outro, simplesmente” (FONSECA, 1985, p. 109).
Ainda como registro, recorda João A. das Neves que, “Felizmente, o grande escritor mineiro
reincidiu e em 10/12/1950 veio a público na mesma carioca A Manhã dar ‘Uma explicação’
de Fernando Pessoa, além de ter comentado o “Mar português”, em Letras Brasileiras (Rio de
Janeiro, em janeiro de 1950)” (FONSECA, 1985, p. 59).
No presente quadro de recepção da obra de Fernando Pessoa merece considerável
relevância a publicação da antologia Poetas Novos de Portugal (1944), organizada e
prefaciada por Cecília Meireles. Escrito, provavelmente, em 1943, o prefácio era impactante,
pois afirmava, sem rodeios, que Fernando Pessoa era o “caso mais extraordinário das letras
portuguesas”. Naquela ocasião constituía um dos mais importantes estudos no Brasil sobre a
poesia portuguesa dos “novos” autores. Cecília Meireles menciona e transcreve, inicialmente,
trecho de uma carta de Fernando Pessoa, dirigida a João Gaspar Simões, em 1931, em que ele
“explica” o fenômeno da heteronímia. Descortinando ao leitor brasileiro o fenômeno da
heteronímia, Cecília recorre a dados de uma outra Carta de Fernando Pessoa, esta de janeiro
de 1935, novamente direcionada para o esclarecimento da multiplicidade de assinaturas do
poeta luso. Assim, são apresentados Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Álvaro de Campos.
Cecília Meireles arremata a apresentação dos heterônimos nos seguintes termos
Os que de mais perto viram e acompanharam a vida desse singular poeta parece não
terem concluído com absoluta clareza sobre o que ele tentou explicar
minuciosamente a respeito de seus heterónimos. Ficou-lhes a dúvida sobre os limites
de independência que haveria alcançado cada uma dessas outras personalidades
inventadas ou recebidas (NEVES, 1992, p. 70).
Apresentado ao leitor brasileiro o fenômeno da heteronímia, Cecília Meireles aborda a
obra do ortônimo, explicando não se tratar de “um caso simples: lírico da mais clara essência,
é, ao mesmo tempo esotérico, e súbito se faz profético e patriótico” (NEVES, p. 70). Assinala
que Fernando Pessoa não chegou a concretizar os projetos expostos na carta a Adolfo Casais
Monteiro, destacando que a “sua obra mais valiosa acha-se inédita e dispersa em revistas”,
vindo a público somente o livro Mensagem, em 1934. Cecília transcreve as respostas de
Fernando Pessoa aos reparos feitos por Gaspar Simões quanto ao reduzido número de
publicações levado a cabo por ele, Pessoa. Como resposta, o autor da “Ode Triunfal”
relembra as circunstâncias da publicação, um concurso literário, em que Mensagem recebeu o
segundo prêmio, e entende “que foi a melhor estreia que eu poderia fazer”. De fato, a faceta
nacionalista, mística e sebastianista da obra de Pessoa não havia sido plenamente manifesta
nas colaborações remetidas às revistas, exceto o poema “Mar português”, que faz parte da
Mensagem. Cecília Meireles assim comenta a atitude de Fernando Pessoa:
Devia ter o poeta uma razão misteriosa para assim falar. Sabe-se que foi estudioso
de coisas transcendentes, gozando de alta reputação entre os que se ocupam de
astrologia. Talvez, pois, a “Mensagem” que ele achava conveniente ter aparecido
naquele momento possua algum sentido profético que os tempos venham a
demonstrar, mas que, só com míseros olhos profanos, não se consegue atingir com
precisão (NEVES, 1992, p. 71).
Cecília Meireles selecionou poemas do livro Mensagem e dos heterônimos Ricardo
Reis, Álvaro de Campos e Alberto Caeiro, numa amostragem significativa. A maioria dos
poemas ainda não havia sido publicada em livro, somente em revistas, confirmando que
Cecília tinha um sólido conhecimento das publicações do Modernismo português. E, de fato,
é conhecida sua viagem a Portugal em 1934, na companhia do marido português Correia Dias,
para proferir conferências nas Universidades de Coimbra e Lisboa. Restou frustrada, no
entanto, a tentativa de conhecer Fernando Pessoa. A crítica literária tem, de outra parte,
apontado para afinidades entre as obras de Fernando Pessoa e Cecília Meireles: todas de
ordem existencial, vocabular e estilística.
A presença “oficial” de Fernando Pessoa no Brasil pode ser explicada como
decorrente do início da publicação, pela Editora Ática, em Lisboa, a partir de 1942, das obras
completas do poeta. É resultado ainda da publicação, também em 1942, de uma Antologia de
Autores Portugueses e Estrangeiros (em dois volumes) por Adolfo Casais Monteiro. Já
residente no Brasil, Monteiro organizou, para a Coleção Nossos Clássicos, uma antologia da
lírica pessoana, publicada em 1957, incluindo poemas em inglês, representada por quatro dos
35 Sonnets, apresentados no original e em tradução do próprio Casais e de Jorge de Sena. De
certo modo, essa antologia constituirá, para o leitor brasileiro, o texto “canônico” da poesia de
Fernando Pessoa. Como já referido, porém, os poetas brasileiros já tinham ciência da
produção divulgada antes dessas antologias: conheciam as edições da Ática e também as
revistas do Modernismo português, afora o conhecimento do livro Mensagem. Aliás, a revista
Orpheu, em seu primeiro número, foi um projeto luso-brasileiro, provavelmente idealizado no
Brasil. Encerra-se aqui o estudo do percurso da obra de Fernando Pessoa em terras brasileiras
nesse período. Cabe em outro capítulo a expansão da presença de Pessoa no Brasil nos anos
60 e 70.
Considerações finais
A riqueza da obra pessoana como um marco inesgotável da literatura moderna – em
linhas como a alteridade e a identidade, características das manifestações poéticas do século
20, - está na matriz da multiplicidade e da variedade de abordagens críticas que mereceu nos
últimos anos. Assim, pode-se afirmar com garantia que a obra do autor de Mensagem
constitui objeto de praticamente todas as orientações teóricas e críticas (tanto do texto quanto
do social). As metodologias utilizadas, a partir daquelas fontes, produziram leituras de ordem
sociológica, política, ocultista, psicanalítica, biográfica, estilística, filosófica etc.
O rastreamento da recepção crítica da obra de Fernando Pessoa no Brasil revela, em
grande medida, os desdobramentos do aporte da Teoria Literária no país. A obra do escritor
português foi objeto de estudo de poetas, jornalistas, da crítica não especializada e conheceu
uma respeitável repercussão nos meios acadêmicos, consolidada a partir dos anos 60 do
século passado, desde, com segurança, da publicação do primeiro volume da coleção Nossos
Clássicos (Livraria Agir), em 1957, inaugurada por Fernando Pessoa. O estudo da recepção
literária possibilita retraçar o destino dos textos pessoanos no imaginário dos leitores
brasileiros.
Referências
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Colóquio – Letras, . Lisboa, n. 88, 1985. p. 102-109.
LOURENÇO, Eduardo. “A fortuna crítica de Pessoa”. Revista Comunidades de Língua
Portuguesa, São Paulo, n. 6/7, 1985/86. p. 18-27.
MONTEIRO, Adolfo Casais. “O exemplo de Fernando Pessoa”. Boletim de Ariel, n. 7, 1938.
p. 215.
NEVES, João Alves das. As relações literárias de Portugal com o Brasil. Lisboa: Instituto
de Cultura e Língua Portuguesa, 1992. (Biblioteca Breve).
SARAIVA, Arnaldo. Modernismo brasileiro e modernismo português : subsídios para o
seu estudo e para a história das suas relações. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2004
[1986].
SCHUTEL, Luísa Enóe Cabral. Mário de Andrade: ensaios e textos comentados sobre
autores contemporâneos brasileiros e portugueses. Rio de Janeiro: Educom, 1976.
SILVA, Francis Paulina Lopes da. “Pessoa e Murilo Mendes: contrapassantes”. Verbo de
Minas – Letras, Juiz de Fora, v. 7, n. 14, jul-dez., 2008. p. 87-96.
SIMÕES, João Gaspar. “Apresentação de Fernando Pessoa”. Revista do Brasil, ano 1, n. 5,
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