O DIREITO DAS PRIVATIZAÇÕES
O DIREITO DAS PRIVATIZAÇÕES
Revista dos Tribunais | vol. 763/1999 | p. 47 - 55 | Maio / 1999
Doutrinas Essenciais de Direito Empresarial | vol. 2 | p. 1059 - 1077 | Dez / 2010
DTR\1999\258
Arnoldo Wald
Advogado. Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro.
Área do Direito: Administrativo
Sumário:
1. Introdução e considerações gerais - 2. As concessões - 3. As licitações - 4. O direito societário
1. Introdução e considerações gerais
A privatização corresponde a uma tendência mundial que surgiu tanto em virtude da globalização da
economia como em decorrência da falência do Estado-Providência ( Welfare State), ensejando o
redimensionamento das atribuições do Poder Público, para que o mesmo fosse eficiente, garantindo
o bom funcionamento dos serviços públicos essenciais.
A existência de importante déficit público e a impossibilidade de continuar financiando as despesas
estatais mediante a emissão de moeda, dentro de um clima inflacionário, fizeram com que, em todos
os países, se realizasse uma grande transformação do Estado que, na palavra de um sociólogo
francês, para ser moderno, tinha de ser modesto. 1
Assim sendo, o Estado onipresente, que se desenvolveu no Brasil, entre 1930 e 1990, deve ser
substituído pelo Estado regulamentador, executor e fiscalizador dos serviços públicos essenciais,
catalisador da produção e reformador de instituições. Ao mesmo tempo em que se abriu a economia
do país, tiveram de ser extintos certos monopólios estatais e a reserva de determinados mercados,
que não mais se coadunavam com a nossa época, especialmente quando o Estado deixou de ter os
recursos necessários para realizar os indispensáveis investimentos para garantir o desenvolvimento
da nossa economia.
A privatização tem vários sentidos, abrangendo desde a venda de ativos (bens públicos, empresas
públicas e ações de sociedades de economia mista) até a reformulação das concessões, que, em
certos setores, eram atribuídas, exclusiva ou quase exclusivamente, a empresas mistas. Também
constituem formas de privatização a extinção parcial ou total de monopólios estatais, a implantação
de um sistema de acordos de acionistas entre o Estado e empresas privadas nas sociedades de
economia mista, a transformação do Poder Público de acionista majoritário em acionista minoritário,
com ou sem uma ação especial ( golden share), a implantação dos chamados contratos de gestão e
até, em certo sentido, a abertura de determinadas atividades ou participações ao capital estrangeiro.
2
O conjunto de decisões referentes à privatização, em todos os sentidos, representa uma verdadeira
revolução econômica, política, jurídica e cultural. Como lembrava Ortega y Gasset, a revolução se
caracteriza por ser feita não contra os abusos, mas contra os usos. Trata-se, pois, de um verdadeiro
novo direito cujas regras abrangem o direito constitucional, o direito administrativo, o direito
econômico e até o direito do desenvolvimento, 3com reflexos no direito societário e no direito do
trabalho.
O leque de normas jurídicas que tratam do assunto, a partir da criação do Conselho de
Desestatização e da MedProv 26, há cerca de dez anos, até hoje, abrange numerosas emendas
constitucionais, leis complementares, leis ordinárias, medidas provisórias, decretos, regulamentos e
portarias ministeriais, tanto no plano federal quanto no dos diversos Estados e até no de alguns
Municípios.
As privatizações já realizadas e em curso ultrapassam cinqüenta bilhões de dólares e o Brasil
realizou, este ano, no plano das telecomunicações, uma das maiores privatizações do mundo, ao
transferir, para a iniciativa privada, o controle das empresas do sistema Telebrás.
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Embora diante de uma realidade econômica da maior importância e de um conjunto de textos
legislativos sobre as privatizações, concessões e parcerias nos mais diversos setores, que
permitiriam a elaboração de um verdadeiro Código do direito das privatizações, poucos foram os
estudos jurídicos exaustivos que trataram da matéria.
É verdade que os advogados participaram ativamente do processo de privatização, seja como
conselheiros do Poder Público, seja como assessores jurídicos de compradores, concessionários ou
parceiros do Estado. Por outro lado, o Poder Judiciário teve o ensejo de apreciar, numerosas vezes,
as medidas judiciais para evitar a privatização e, mais recentemente, as peculiaridades do direito de
licitação a ela referentes, que ensejaram contribuições jurisprudenciais da mais alta valia. Mas a
doutrina e a jurisprudência não tiveram tempo de assimilar as regras jurídicas, de sedimentar os seus
resultados e repercussões e de tentar deduzir alguns princípios e normas peculiares ao novo direito.
Neste estudo, destacarei três pontos do direito das privatizações que me parecem merecer uma
análise específica: as concessões, as licitações e os problemas societários.
2. As concessões
As privatizações, entendidas como simples vendas de ativos, têm a vantagem de aumentar a
eficiência das empresas, substituindo o espírito burocrático pelo espírito empresarial 4e liberando-as
da verdadeira camisa-de-força que, em geral, lhes impõe o direito administrativo. São, pois, um fator
importante para a redução de despesas e subsídios estatais, permitindo garantir, de modo
adequado, a estabilidade econômica e monetária do país.
Mais importante, todavia, pelos seus efeitos, são as concessões de obras e serviços, com as quais
não só se combate o déficit público, como também se resolve o problema angustiante do déficit de
infra-estrutura; e já se disse que um deles é tão nefasto quanto o outro. A solução do primeiro, por si
só, não é suficiente para assegurar o progresso do país, pois não basta reduzir as despesas. É
preciso criar novas fontes de produção e, conseqüentemente, de riqueza, multiplicar os empregos e,
para tanto, impõe-se eliminar os gargalos de estrangulamento que impedem ou dificultam o
desenvolvimento. É necessário aumentar e aprimorar a produção e distribuição de energia,
multiplicar e melhorar as estradas, ampliar e renovar a rede de telecomunicações e, finalmente,
assegurar, em todo o país, o adequado funcionamento dos serviços de água e saneamento, o que
pressupõe importantes recursos financeiros e tecnologias adiantadas que o Estado brasileiro não
possui no momento.
Ora, a concessão de serviços públicos, especialmente quando abrange a manutenção de
equipamentos ou a realização de obras, é uma maneira de mobilizar, no interesse público, de acordo
com a regulamentação e sob a fiscalização do Estado, tanto a poupança interna e externa como as
tecnologias mais modernas aplicadas nos países industrializados e as formas de administração (
management) da iniciativa privada. Atende-se, desta forma, mais adequadamente, aos interesses
dos usuários e da própria economia nacional. Por outro lado, transforma-se uma atividade que, no
passado, era deficitária ou pouco rentável e mal-aproveitada pelo Poder Público numa fonte de
receita, que permite o investimento estatal nas atividades não-rentáveis e, em particular, na
segurança, na educação e na saúde.
Mantém-se, assim, o serviço público sob a forma de delegação, com a responsabilidade da iniciativa
privada e o controle do Poder Público, sob a forma de regulamentação prévia e de fiscalização a
posteriori. Na medida em que os recursos investidos são privados, ocorre uma modificação básica do
papel do Estado, cuja intervenção não mais pode ser arbitrária, nem discricionária, mas sempre deve
ser razoável e baseada na lei.
Por serem as concessões contratos de longo prazo firmados num mundo no qual as tecnologias
estão evoluindo muito rapidamente, a relação entre o Estado e o concessionário deve inspirar-se
num conceito que juridicamente é novo - o da parceria. Trata-se de um contrato no qual as partes
têm uma finalidade específica, superando os seus próprios interesses, fazendo prevalecer, sempre,
os conceitos amplos de boa-fé e de lealdade e atendendo não só à letra, mas, também, ao espírito
da lei e do contrato. Indo mais longe, a parceria se distingue da maioria dos contratos de direito
privado, nos quais, muitas vezes, os interesses das partes são contrários e nenhuma delas é
obrigada a abrir mão dos seus direitos. Diferencia-se, ainda, dos contratos administrativos clássicos,
nos quais o Poder Público manda e o contratado privado obedece, sem prejuízo de poder obter uma
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indenização, no longo prazo, numa ação que é ordinária em todos os sentidos.
O que caracteriza a parceria é o dever da constante readaptação do contrato às novas
circunstâncias que vão surgindo no plano econômico, político ou técnico. Há na parceria um
verdadeiro dever de negociar para manter vivo e eficiente o contrato e fazer com que se cumpra a
sua função social. Pode-se até fazer referência a uma espécie de affectio contractus, do mesmo
modo que se cogita atualmente da affectio societatis dos sócios ou da affectio maritalis existente
entre os cônjuges. 5
A parceria que existe nas concessões, especialmente quando envolvem importantes investimentos
do concessionário, constitui, pois, um contrato de colaboração, flexível e dinâmico, que pressupõe a
existência de uma obrigação de cooperar, por parte dos contratantes, para encontrar sempre
soluções legais, justas e eqüitativas, diante de situações não previstas e, em certos casos,
imprevisíveis para o legislador ou para os contratantes.
Os fundamentos jurídicos dessa parceria se encontram na nova legislação, mas já têm os seus
princípios consagrados na Constituição brasileira quando ela garante, de um lado, o devido processo
legal substantivo, entendido como garantidor de todos os direitos fundamentais do contratado, e, de
outro, o equilíbrio econômico e financeiro do contrato, que é, há longo tempo, da tradição do nosso
direito.
É interessante salientar que talvez seja o Brasil o único ou um dos raros países a ter incluído na
Constituição a garantia da equação econômica e financeira do contrato. Certamente, é o único a ter
feito a distinção entre o equilíbrio econômico - entendido como garantia de rentabilidade - e o
financeiro - que assegura a simultaneidade do ingresso das receitas ( input) e do desembolso das
despesas ou dos investimentos (output) - o que, aliás, se explica pelo longo período inflacionário que
o país atravessou.
A jurisprudência dos tribunais tem feito com que os princípios acima referidos não sejam letra morta.
Ao contrário, em decisões reiteradas, o STJ, ao julgar os recursos especiais, e o STF, ao decidir os
recursos extraordinários, têm reconhecido o direito ao equilíbrio econômico-financeiro, especialmente
em relação ao concessionário. Mesmo quando há normas gerais, como as que se referem ao
congelamento de preços aplicáveis à totalidade das empresas, como aconteceu no caso dos planos
econômicos, ressaltou o Excelso Pretório que, quando lesivas aos interesses individuais, não se
pode aplicá-las às tarifas dos concessionários. 6
Justifica-se essa posição da jurisprudência tanto pelas determinações constitucionais (em particular,
o art. 37, XXI , da Constituição, como bem salientado em acórdão do TRF da 1.ª Região do qual foi
relator o eminente Min. Vicente Leal) 7como pelo fato de merecer o investimento feito pelo
concessionário um tratamento especial. É o que já entendia a jurisprudência da Suprema Corte
norte-americana quando, em voto do Justice Brandeis, afirmou a natureza peculiar do investimento
do concessionário feito no interesse público que, por este motivo, merece proteção especial,
ensejando, inclusive, em nosso país, consagração constitucional. 8
A parceria pressupõe, pois, obrigações, por parte dos contratantes, que não existiam no passado em
outros contratos. À obrigação de manter a continuidade e a modernidade do serviço público eficiente,
por parte do concessionário, corresponde à do Poder Público de manter a equação econômica e
financeira estabelecida no edital de licitação. Qualquer modificação básica só pode ser consensual
ou compensada imediatamente pela indenização adequada, por implicar verdadeira desapropriação
de um dos direitos do concessionário.
Torna-se, assim, muito importante definir, desde logo, no próprio edital, todos os direitos e deveres
das partes, evitando qualquer ambigüidade. É também conveniente prever o modo de solução de
eventuais divergências futuras, podendo ser adequado o recurso à arbitragem, que é aconselhado
pela melhor doutrina, para que se possam obter soluções rápidas em matérias que, muitas vezes,
são tecnicamente complexas. 9
No Brasil, a legislação sobre concessões, que praticamente levou meio século para ser elaborada,
pois prevista desde a Constituição de 1934, tem sido adequada, mas exige uma complementação,
considerando as peculiaridades dos vários setores envolvidos. Portanto, numerosas vezes, o STF
teve de se manifestar sobre alegadas inconstitucionalidades e o STJ apreciou os mandados de
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segurança e outros procedimentos pelos quais, em reiteradas ocasiões, no passado e no presente,
se tentou impedir a privatização abrangendo as empresas concessionárias.
A demora de conversão das medidas provisórias em textos legais também tem ensejado uma
incerteza que não se coaduna com os investimentos que devem ser feitos pelos concessionários.
Mas parece que estamos concluindo essa fase de adaptação da concessão à sua versão atual e
dinâmica, que representa uma ruptura com as nossas tradições do século passado, de tal modo que
podemos falar num verdadeiro renascimento do instituto. 10
Do ponto de vista técnico, também não foi fácil aos juristas brasileiros assimilar a concessão como
nova técnica de direito administrativo.
Efetivamente, a tradição jurídica brasileira em matéria de serviço público está ligada aos
ensinamentos dos juristas franceses, mas a nossa administração herdou a concepção portuguesa do
Estado operador da economia e também se inspirou na regulamentação e fiscalização das
concessões por entidades independentes, inovação americana que surgiu num país cujo direito não
conhece as concessões propriamente ditas, mas autoriza certas empresas a funcionar no interesse
público. 11 Assim, o estudioso das concessões é um comparatista por necessidade e até sem sabê-lo.
Cabe, todavia, reconhecer que o sistema de concessões está tendo sucesso no Brasil e que as
entidades reguladoras estão se implantando com espírito construtivo, substituindo, com vantagem,
as antigas autoridades burocráticas que desempenhavam papel análogo, embora com poderes mais
limitados, com outro espírito e finalidades diversas.
Concluímos, pois, que, como afirmado por um especialista inglês, para o país e para os usuários dos
serviços, "a propriedade privada sob controle público é muito melhor do que a propriedade do Estado
sob controle político". 12
3. As licitações
As licitações para o fim de concessão também merecem um comentário específico. Em primeiro
lugar, pelo fato de haver, em matéria de preço a ser pago pelo concessionário ao concedente, uma
inversão da tradição que existia nos contratos de empreitada, nos quais se considerava sempre
como sendo vencedor na licitação quem oferecia o menor preço. Já na concessão, a vitória cabe a
quem pretende pagar, ao Poder Público, o maior preço.
Por outro lado, a obediência ao edital há de ser meticulosa, tanto por parte dos licitantes quanto pela
autoridade. A importância dos recursos a serem investidos e dos eventuais lucros esperados levam
os interessados a verdadeiras batalhas judiciais, para que sempre prevaleça a norma jurídica, como
as que aconteceram na licitação da chamada "Banda B", na telefonia móvel.
Cabe salientar, aliás, a importância que passou a ter o Poder Judiciário ao julgar a matéria,
dedicando-lhe especial atenção e ponderando quais os requisitos indispensáveis e quais os que são
secundários, pouco relevantes ou até ilegais ou inconstitucionais para o julgamento de licitações. Em
particular, a E. 1.ª Seção do STJ tem tido, neste sentido, decisões memoráveis, nas quais se
destacaram, sucessivamente, os votos dos eminentes Ministros Demócrito Reinaldo, Humberto
Gomes de Barros, Ari Pargendler e José Delgado, entre outros.
No particular, o mandado de segurança continua a ser o grande instrumento de defesa dos direitos
individuais contra os eventuais atos arbitrários da administração, corrigindo, desde logo, as
ilegalidades, em vez de fazer com que só possam ensejar indenizações a serem pagas, longos anos
depois, em outra administração, com prejuízo para o Tesouro Nacional. 13
Uma das questões que talvez merecesse reexame é a da competência da Justiça Federal para
conhecer os mandados de segurança contra as sociedades de economia mista controladas pela
União. Parece-nos que não se deveria aplicar, no caso de licitação de interesse do Governo Federal
e com repercussões no seu patrimônio, as Súmulas que atribuem competência à Justiça Estadual
para apreciar ações contra as sociedades de economia mista, por existir incontestável interesse
federal, que justificaria uma interpretação compreensiva ou extensiva das normas sobre competência
existentes na matéria.
No tocante aos editais, é também preciso lembrar a importância específica que têm, no caso das
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concessões de longo prazo referentes aos serviços públicos de maior complexidade, os
conhecimentos técnicos e a idoneidade financeira das empresas licitantes, a fim de evitar fraudes e
frustrações em detrimento dos legítimos interesses da União Federal.
Na realidade, o interesse público não se limita - ou não se deve limitar - à obtenção do melhor preço,
mas deve exigir, também, que os licitantes tenham os conhecimentos tecnológicos e a experiência
necessária para assegurar a adequada realização das obras e a manutenção e atualização do
serviço de acordo com a evolução técnica que pode vir a ocorrer no futuro.
A idoneidade financeira deve ser proporcional ao valor das obras e serviços a serem realizados e,
neste sentido, poderia ser utilizado de modo mais amplo o perfomance bond, que necessitaria ter
uma regulamentação nacional compatível com a que existe no mercado internacional.
Finalmente, na medida em que se abriu o mercado às empresas estrangeiras, torna-se necessário
aceitar, com maior flexibilidade, mas com a adequada fiscalização, os documentos estrangeiros e os
critérios vigentes em outros países para determinados fins, a fim de atender não só à letra, mas ao
espírito da nossa legislação.
No fundo, trata-se de rever a Lei de Licitações e adaptá-la às novas necessidades, sem prejuízo de
um melhor controle das informações fornecidas aos licitantes e das respostas que lhes são dadas,
na fase anterior à licitação e que nem sempre atendem às determinações legais. Uma presença mais
ampla dos advogados da administração pública neste setor seria aconselhável para evitar
determinadas situações que têm ensejado recursos administrativos e judiciais. Ocorre, algumas
vezes, que a administração pretende fazer uma exigência razoável, numa determinada licitação, no
interesse público. Pode e deve fazê-la, mas somente se constar do edital, pois, a posteriori, não há
como introduzir novos critérios, mesmo quando são justificáveis e correspondem a interesses
legítimos.
Finalmente, é preciso reconhecer que as recentes licitações comprovam que, em tese, inexistem
fraudes ou acordos prévios das partes e que, na maioria dos casos, os resultados atendem,
exclusivamente, ao interesse público, havendo, assim, maior transparência. Para os casos nos quais
tal situação não ocorre, ou quando surge abuso ou desvio de poder por parte do concedente, talvez
se justificasse a criação do cargo de ombudsman, para que um ouvidor-geral pudesse, com
imparcialidade e maior afastamento da administração específica, determinar as providências
cabíveis, como chegou a ser sugerido pelo Prof. Caio Tácito. 14
4. O direito societário
Outra área que merece ser examinada é a dos reflexos das privatizações e concessões no direito
societário.
Em primeiro lugar, cabe lembrar que o Brasil tinha, no seu mercado de capitais, uma situação muito
peculiar, diferente da existente nos demais países, pois uma boa parte das dez maiores empresas de
capital aberto era constituída por sociedades de economia mista. Essas empresas eram e são
também as mais negociadas nas Bolsas brasileiras, representando entre 50% e 80% do movimento
das mesmas.
Com as privatizações nos setores elétrico, bancário e de telecomunicações, este panorama está
sendo profundamente alterado e as concessionárias, sob gestão privada, já ocupam uma parte
substancial do lugar das estatais, o que importa numa modificação relevante do nosso mercado de
capitais.
Por outro lado, as privatizações introduziram, em nosso mercado, o controle partilhado, com todas as
suas peculiaridades, abrangendo, inclusive, em determinados casos, o seu exercício conjunto pelo
Estado e por empresas privadas consideradas como sendo "sócios estratégicos". Podemos afirmar
que tal controle praticamente inexistia até a década de 90, enquanto, atualmente, essa forma de
gestão da empresa se multiplica, com um papel mais ativo dos fundos de pensão que, no passado,
não participavam da administração. Todo o problema do comando empresarial e a própria noção de
controle estão, assim, sofrendo importantes modificações, com reflexos na lei e na jurisprudência.
Cabe até indagar, agora, se há ou não uma espécie de controlador do grupo de controle que
comanda a empresa - ou seja, um controlador do controlador - e até que ponto o acordo de
acionistas pode ou não criar uma situação de controle por parte de quem não é o acionista
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majoritário.
A privatização também ensejou uma multiplicação de pequenos acionistas, que são os funcionários
da empresa, reunidos em clubes de investimento, ou sob outras formas, com certo poder de atuação
e, eventualmente, inclusive, de escolha de representantes nos Conselhos de Administração e Fiscal.
A posição dos acionistas minoritários se tornou mais relevante e eles estão acompanhando a gestão
empresarial com mais atenção e interesse do que os chamados acionistas passivos ( sleeping
partners) ou rendeiros que existiam no passado.
Coloca-se, assim, toda uma discussão sobre o governo da empresa, o direito dos acionistas
minoritários e dos acionistas preferenciais, ensejando um direito societário mais complexo, que exige
maior presença de advogados e Juízes para evitar a tirania, tanto dos majoritários como dos
minoritários.
A presença do usuário e a proteção do direito do consumidor são elementos importantes que se
fazem sentir na medida em que as empresas deixam de ser mistas ou públicas para serem privadas,
e as entidades reguladoras devem garantir o bom funcionamento dos serviços públicos geridos por
particulares.
Quanto às agências reguladoras independentes com poderes regulamentares e de fiscalização,
constituem também entidades que o nosso direito não conhecia e cujas atribuições hão de ser bem
definidas, assim como o exercício das mesmas deverá estar dentro dos limites em que a
Constituição reserva à lei a faculdade de obrigar as pessoas a fazer ou deixar de fazer algumas
coisas (art. 5.º, II ).
Finalmente, as privatizações devem resguardar os direitos dos minoritários, não podendo
sacrificá-los como recentemente pretendeu fazer o Governo de São Paulo, no caso de uma das
subsidiárias da Cesp, no que foi impedido oportunamente pela CVM e pelo clamor público, sem que
houvesse necessidade de recurso ao Poder Judiciário. 15 Mas, em grande parte, isto aconteceu
porque se sabia que os minoritários contariam com o recurso à Justiça que, se necessário, daria as
medidas cautelares adequadas.
Também o Estado não pode pensar como o fazia um banqueiro alemão, que considerava o acionista
um tolo e um arrogante: um tolo na medida em que entregava o seu dinheiro à empresa e um
arrogante porque ainda queria receber o seu dividendo. O Estado de Direito não mais permite que o
Poder Público abuse de sua força, devendo, ao contrário, submeter-se à lei, mesmo quando ele a
elabora e sanciona.
Assim, com a garantia do Poder Judiciário, há uma nova fase na vida brasileira, que surge com o
direito das privatizações, assegurando a prevalência do Estado de Direito, que deve ser respeitado
por economistas, empresários, administradores e funcionários, para que a sociedade possa alcançar
não só o progresso, mas, também, o desenvolvimento, que significa o aprimoramento das
instituições. É o direito que assegura o respeito a uma escala de valores. É ele que, na palavra de
um ilustre jurista italiano, submete a Economia e o Estado à Ética, que deve prevalecer em nossa
sociedade. Não há desenvolvimento nacional sem que a economia cresça de acordo com as normas
jurídicas, dentro do Estado de Direito e num clima de liberdade, responsabilidade e justiça.
(1) CROZIER, Michel. État moderne, État modeste, stratégie pour un changement. Paris, 1987.
(2) WALD, Arnoldo. "As quatros formas da privatização". Banco Hoje, ano 2, n. 14, p. 36, maio 1990.
(3) Idem. "O direito do desenvolvimento". RT 383/7.
(4) A respeito do espírito empresarial há ampla bibliografia, abrangendo, entre outras, as obras de
George Gilder, O espírito da empresa, São Paulo : Pioneira, 1989; Alvin Toffler, A empresa flexível,
Rio de Janeiro : Record, 1985; David Osborne e Ted Gaebler, Reinventado o governo. Como o
espírito empreendedor está transformando o setor público, São Paulo : M. H. Comunicação, 1994.
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(5) WALD, Arnoldo, MORAES, Luiza Rangel de e WALD, Alexandre de Mendonça. O direito de
parceria e a nova Lei das Concessões. São Paulo : Ed. RT, 1996. p. 38.
(6) RE 183.180-4, julgado pelo STF em 17.06.1997.
(7) RF 319/141.
(8) Acórdão proferido no caso Southwestern Bell Tel. Co., Harvard Law Review, v. 45, p. 60,
1931-1932.
(9) TÁCITO, Caio. "Arbitragem nos litígios administrativos". RDA 210/111; e DALLARI, Adilson Abreu.
"Arbitragem na concessão". Revista de Informação Legislativa 128/63.
(10) WALD, Arnoldo. "O renascimento do instituto da concessão". RDA 171/1-14 (jan./mar. 1988).
(11) PINTO, Bilac. Estudos de direito público. Rio de Janeiro : Forense, 1953. p. 8 et seq.
(12) BELLAK, John G. "Privatisation en Grande Bretagne de l'industrie des eaux et des égouts". In
Lesguillons, Sarmet e outros, op. cit., p. 180.
(13) VASCONCELLOS FILHO, Cunha. Prefácio ao mandado de segurança de Arnoldo Wald. Rio de
Janeiro, publicação do Dasp, 1955. p. 9-10.
(14) TÁCITO, Caio. " Ombudsman - O defensor do povo". Carta Mensal da Confederação Nacional
do Comércio 397/17.
(15) WALD, Arnoldo e NÓBREGA, Mailson da. "As privatizações e os minoratários". Gazeta Mercantil
de 09.03.1998.
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