NIETZSCHE (Apostila)
Affonso Henrique Vieira da Costa
Observação: Este é um texto incompleto e que foi feito apenas para encaminhar a aula.
Portanto, possui muitos saltos e muitos temas que precisam ser ainda desenvolvidos.
Mesmo assim, achamos por bem encaminhá-lo, de maneira que possa permitir uma
lembrança dos temas tratados na aula do curso referente ao pensador Friedrich
Nietzsche.
O tema de nosso curso é: “Os filósofos e o medo da morte”. Como, então, desde
esse problema proposto apresentar Nietzsche? Tomamos , inicialmente, como fio
condutor o filósofo italiano Gianni Vattimo e seu livro Introdução a Nietzsche, que
sugere três posições principais para o estudo da obra do pensador: 1) Que ele é tomado
como um filósofo e que está imerso na história do ser, até mesmo como o último
metafísico. Trata-se da posição de Heidegger. 2) Que ele é tomado como um crítico da
cultura, quando sua obra é apreendida até mesmo mais literariamente. Trata-se das
primeiras leituras que foram feitas sobre o filósofo. 3) Que ele é tomado pela posição
que encarna o filósofo no interior de uma filosofia da vida. Trata-se da posição de
Dilthey, próxima da segunda posição, quando aproxima Nietzsche dos sofistas, quando,
segundo ele mesmo, substitui a demonstração metódica pela persuasão.
O que Vattimo faz é, de algum modo, unir estas vertentes, pensando Nietzsche
como um filósofo, um filósofo do fim da metafísica e também se aproximar de seu
estilo literário, marca deste processo final, que reúne, tal como acontece com Heidegger
posteriormente, literatura e poesia. O que se presencia aí, então, é um vislumbre da
impossibilidade de compreender a filosofia sistematicamente e a possibilidade de
abertura para outra esfera de pensamento.
II
É o que começa a se dar com o jovem Nietzsche quando este, mesmo
determinado ainda pela metafísica Schopenhauriana, toma uma posição agudíssima com
relação à filologia, aproveitando-se desta para uma compreensão radical da formação do
mundo grego, de sua cultura. Tal compreensão, que se fundará na tensão por ele
descoberta entre o apolíneo e o dionisíaco, marcará decisivamente o seu pensamento,
afastando-o cada vez mais de Schopenhauer e do próprio Wagner, constituindo um
pensamento que vai ao encontro dos primórdios gregos alterando completamente os
estudos que sobre os mesmos eram feitos até então. Com isso, os gregos encarnam a
exemplaridade no que se refere ao modo como constituíram a sua cultura e como ela por
eles foi apropriada. Ouçamos esta passagem no início de A visão dionisíaca do mundo:
Os gregos, que nos seus deuses expressam e ao mesmo tempo calam a
doutrina secreta de sua visão de mundo, estabeleceram como dupla fonte
de sua arte duas atividades, Apolo e Dioniso. Esses nomes representam,
no domínio da arte, oposições de estilo que quase sempre caminham
emparelhadas em luta uma com a outra, e somente uma vez, no momento
de florescimento da ‘Vontade’ helênica, aparecem fundidas na obra de
arte da tragédia ática. O homem alcança em dois estados o sentimento de
delícia em relação à existência, a saber, no sonho e na embriaguez. A
bela aparência do mundo onírico, no qual cada homem é um artista
pleno, é o pai de toda arte plástica e, como iremos ver, também de uma
metade importante da poesia. Gozamos no entendimento imediato da
figura, todas as formas nos falam; nada há de diferente e desnecessário.
A configuração da civilização grega goza de uma plenitude inquietante, cuja
tragédia maior é o seu desmoronamento e o desmoronamento daquilo que
paulatinamente vai se constituindo na civilização ocidental. Este desmoronamento, por
exemplo, é visto como a história de um erro, conforme podemos ver em Crepúsculo dos
ídolos, no capítulo IV, que traz como título “Como o ‘mundo verdadeiro’ se tornou
finalmente fábula”. Em pouquíssimas linhas, com uma força tremenda, o filósofo traça
o que podemos chamar de o destino do ocidente a partir da decadência da grecidade.
Após, segundo Nietzsche, o rubor de Platão, o mundo verdadeiro foi abolido e, com ele,
o mundo das aparências. Começa, então, o apogeu da humanidade. “Incipt Zaratustra”.
III
Assim falava Zaratustra – um livro para todos e para ninguém. O subtítulo nos
assusta. Como assim: para todos e para ninguém? Começamos a compreender que o
livro não é para qualquer um. Está aí para todos aqueles que possam acolher o que por
ele é trazido à tona desde os subterrâneos dos desdobramentos de nossa história. Está aí
para todos aqueles que, tal como Zaratustra, desejam empreender uma jornada de
descida, de ocaso, ao fundo de tudo o que é e há, de maneira a perscrutar o desde onde
somos o que somos e como, a partir daí, pode-se antever uma transmutação do espírito
em nossa civilização.
Não à toa, Nietzsche é tomado como o filósofo da suspeita. Ele atravessa, com
seu olhar agudo e com seus ouvidos sintonizados, os desvãos de nossa civilização, suas
configurações e deformações, a decadência do humano, vislumbrando uma
transformação radical a partir da qual possa nascer o super-homem, aquele que pode se
apropriar do sentido da Terra.
O super-homem é o resultado do homem em transformação, do homem a
caminho em seu processo de transfiguração, onde a perspectiva que o toma como
animal racional vai sendo alterada em nome de outro sentido que se abre cada vez mais
com a “morte de Deus”, a saber: o sentido da Terra.
IV
Na Gaia Ciência, parágrafo 125, Nietzsche escreve:
O homem Louco. – Não ouviram falar daquele homem louco que em
plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar
incessantemente: “Procuro Deus! Procuro Deus!”? – E como lá se
encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou
com isso uma grande gargalhada. Então ele está perdido? Perguntou um
deles. Ele se perdeu como uma criança? Disse um outro. Está se
escondendo? Ele tem medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou? –
gritavam e riam uns para os outros. O homem louco se lançou para o
meio deles e trespassou-os com seu olhar. “Para onde foi Deus?”, gritou
ele, “já lhes direi! Nós os matamos – vocês e eu. Somos todos seus
assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber
inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte?
Que fizemos nós ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move ela
agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não
caímos continuamente? Para trás, para os lados, para frente, em todas as
direções? Existem ainda ‘em cima’ e ‘embaixo’? Não vagamos como que
através de um nada infinito? Não sentimos na pele o sopro do vácuo?
Não se tornou ele mais frio? Não anoitece eternamente? Não temos que
acender lanternas de manhã? Não ouvimos o barulho dos coveiros a
enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os
deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós os
matamos! Como nos consolar, a nós, assassinos entre os assassinos? O
mais forte e sagrado que o mundo até então possuíra sangrou inteiro sob
os nossos punhais – quem nos limpará esse sangue? Com que água
poderíamos nos lavar? Que ritos expiatórios, que jogos sagrados teremos
de inventar? A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós? Não
deveríamos nós mesmos nos tornar deuses, para ao menos parecer dignos
dele? Nunca houve ato maior – e quem vier depois de nós pertencerá, por
causa desse ato, a uma história mais elevada que toda a história até
então!” Nesse momento silenciou o homem louco, e novamente olhou
para seus ouvintes: também eles ficaram em silêncio, olhando espantados
para ele. “Eu venho cedo demais”, disse então, “não é ainda meu tempo.
Esse acontecimento enorme está a caminho, ainda anda: não chegou
ainda aos ouvidos dos homens. O corisco e o trovão precisam de tempo, a
luz das estrelas precisa de tempo, os atos, mesmo depois de feitos,
precisam de tempo para serem vistos e ouvidos. Esse ato ainda lhes é
mais distante que a mais longínqua constelação – e no entanto eles
cometeram! – Conta-se também no mesmo dia o homem louco irrompeu
em várias igrejas , e em cada uma entoou o seu Réquiem aeternaum deo.
Levado para fora e interrogado, limitava-se a responder: “O que são
ainda essas igrejas, se não os mausoléus e túmulos de Deus?”.
Duas passagens aí chamam a nossa atenção: 1) “A grandeza desse ato não é
demasiado grande para nós?” Esta pergunta é terrível, pois ela pressupõe que toda a
realidade até então vivida há de se desmoronar com a morte de Deus. Tudo aquilo que a
sustentava se esvai e já se sente a necessidade de uma transmutação desde um outro
sentido que também aí já se abre, muito embora, tal como a morte de Deus, não está ao
alcance de todos. 2) “Eu venho cedo demais”, disse então, “não é ainda meu tempo.
Esse acontecimento enorme está a caminho, ainda anda: não chegou ainda aos ouvidos
dos homens”. Perceber este acontecimento só é possível se se consegue entrar na
dinâmica de seu desdobramento, a saber, com uma ausculta atenta e minuciosa, no
tempo certo, lançar-se em seu dar-se. Para isso, no entanto, é necessária uma coragem
que somente o tresloucado tem, aquele que, de há muito, abandonou a compreensão do
homem como animal racional, lançando-se para o que há de vir, desde um outro logos,
de outro sentido que aí se dispõe.
Em todos esses lances, está em jogo a vida e a morte, a construção e a
destruição. Tudo exige esforço e disposição para uma transmutação da realidade. Esse
esforço, por sua vez, esforça-se por ir ao fundo, às origens de como a realidade se
desdobrou e de como foi possível tamanha decadência gerar o que Nietzsche vai
denominar de Niilismo, o esvaziamento de todos os valores supremos.
Ao lermos A genealogia da moral, observamos essa ida ao fundo, uma aventura
que persegue o fundamento de toda moral. Somente a partir daí, abre-se a possibilidade
de compreensão daquilo que nós nos tornamos, daquilo que nós mesmos somos. Por
isso mesmo, em abrindo o “Prólogo”, o filósofo escreve:
Nós, homens do conhecimento, não nos conhecemos; de nós mesmos
somos desconhecidos – e não sem motivo. Nunca nos procuramos: como
poderia acontecer que um dia nos encontrássemos? Com razão alguém
disse: “onde estiver teu tesouro, estará também teu coração”.
O nosso tesouro encontra-se ao fim de uma genealogia da moral, de onde
firmaram os valores de Bom e de Mau, de Bom e de Ruim, de como pôde surgir a culpa,
a má-consciência e também desde que lugar foram possíveis os chamados ideais
ascéticos.
Trata-se de uma reviravolta em tudo o que até aqui era tomado como ideal
civilizatório. A crítica de Nietzsche compreende que os valores que se impuseram até
então com a decadência da civilização foram tomados como “valores em si” e, com essa
sua fixação e sistematização, houve uma negação da própria vida. Ainda no “Prólogo”,
criticando duramente Schopenhauer, o filósofo diz:
Tratava-se, em especial, do valor do “não-egoísmo”, dos instintos de
compaixão, abnegação, sacrifício, que precisamente Schopenhauer havia
dourado, divinizado, idealizado, por tão longo tempo que afinal eles lhe
ficaram como “valores em si”, com base nos quais ele disse não à vida e
a si mesmo.
Importante destacar que esse “não”, que segue em itálico no texto, evoca um
espírito afirmativo, pleno de saúde, que se dispõe de outra perspectiva, a partir da qual
os valores emergem como o próprio ser da realidade, não mais como “valores em si”,
mas como o que emerge da própria vida enquanto Vontade de Poder. Aí, pôde ainda
dizer:
Precisamente nisso enxerguei o grande perigo para a humanidade, sua
mais sublime sedução e tentação – a quê? ao nada? –; precisamente nisso
enxerguei o começo do fim, o ponto morto, o cansaço que olha para trás,
a vontade que se volta contra a vida, a última doença anunciando-se terna
e melancólica: eu compreendi a moral da compaixão, cada vez mais se
alastrando, capturando e tornando doentes até mesmo os filósofos, como
mais inquietante sintoma dessa inquietante cultura europeia.
A moral da compaixão surge, segundo Nietzsche, da plebe, em sentido contrário
à moral do nobre. A moral do nobre nasce de uma afirmação da vida, de um dizer sim
ao risco, ao perigo, em meio a toda possibilidade de perder-se na aventura da vida.
Afinal de contas, o que é a vida senão esse constante aventurar-se? Caberia muito bem
ao nobre o lema da escola de Sagres, que diz “Navegar é preciso, viver não é preciso”,
para muitos criado por Tales de Mileto. Essa coragem, essa força do lançar-se no
imprevisto, em mares nunca antes navegados, é o que o nobre traz consigo. É esse modo
de viver, de entregar-se assim a tudo o que faz, que faz dele o que ele é. Ele é
plenamente o que faz. Não há aí uma separação de um “eu” pré-determinado que
posteriormente se lançasse na ação. Não há nenhum substrato por traz do fazer, da ação.
A ação do nobre é tão livre quanto o seu despojamento. Ele encontra-se, sente-se e
afirma-se num estar lançado no seio da vida, junto com tudo o que há e é. Aí tece ele o
seu mundo, o mundo conforme a sua força afirmativa de criação. Diz-nos Nietzsche em
A genealogia da moral, primeira dissertação, parágrafo 13:
Pois assim como o povo distingue o corisco do clarão, tomando este
como ação, operação de um sujeito de nome corisco, do mesmo modo a
moral do povo discrimina entre a força e as expressões da força, como se
por trás do forte houvesse um substrato indiferente que fosse livre para
expressar ou não a força. Mas não existe um tal substrato; não existe
“ser” por trás do fazer, do atuar do devir; “o agente” é uma ficção
acrescentada à ação – a ação é tudo.
Vê-se, com isso, a perspectiva do nobre, o lugar desde onde fala a sua nobreza,
isto é, a sua força de realização, que permite um bom combate afirmando-se plenamente
no seio da vida. É essa força que o plebeu ou escravo teme. Ele a teme por não tê-la, por
não dispor-se a conquistá-la. E porque não se dispõe, vinga-se de seu não poder,
querendo exigir do forte que não use de sua força, que não procure dominar e nem
subjugar.
Exigir da força que não se expresse como força, que não seja um querer-
dominar, um querer-vencer, um querer-subjugar, uma sede de inimigos,
resistências e triunfos, é tão absurdo quanto exigir da fraqueza que se
expresse como força.
A origem do Bom encontra-se na ação do nobre, que vê, no diferente de si, o
Mau. Já o escravo ou plebeu promove uma inversão terrível que abala toda a história
posterior. Por vingança sobre aquilo que não pode, determina-o como o Ruim, o que
leva à ruína. Já o seu fazer, que bem antes se pretende assegurado em algum substrato
fora da própria vida (por exemplo, em um além-mundo), é o que se torna o Bom. Essa
virada histórica, que se revela com mais precisão no advento do cristianismo e dos
ideais ascéticos, promove a multiplicação do que Nietzsche vai chamar de “homem
manso”, o “incuravelmente medíocre e insosso” e que já aprendeu “a se perceber como
apogeu e meta”.
Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma, já de
início a moral escrava diz Não a um “fora”, um “outro”, um “não-eu” – e
este Não é seu ato criador. Esta inversão do olhar que estabelece valores
– este necessário dirigir-se para fora, em vez de voltar-se para si – é algo
próprio do ressentimento: a moral escrava sempre requer, para nascer,
um mundo oposto e exterior, para poder agir em absoluto – sua ação é no
fundo reação.
VI
Onde, então, nos encontramos? Juntos com o destino da Europa, perdidos no
seio da morte de Deus e diante da desvalorização dos valores supremos. É quando o
mais estranho dos hóspedes bate à nossa porta – o Niilismo.
E precisamente nisso está o destino fatal da Europa – junto com o temor
do homem, perdemos também o amor a ele, a reverência por ele, a
esperança em torno dele, e mesmo a vontade de que exista ele. A visão
do homem agora cansa – o que é hoje o niilismo, se não isto?... Estamos
cansados do homem.
VII
Chegamos agora no Zaratustra, banhados pela luz do sol do meio-dia, desse sol
que permite antever uma possibilidade de transformação do humano.
Experienciar o Zaratustra é deixar-s ser tomado pela sua linguagem, pelo seu
dizer em meio ao ocaso do Ocidente. Experimentar o ocaso, a queda, abrindo-se ao
tempo da vontade, ao seu eterno retorno, onde se joga plenamente o jogo de vida e de
morte, em que todos os dados estão lançados. Este lance de dados nós já o encontramos
no “Prólogo”, quando Zaratustra afirma que
O homem é uma corda estendida entre o animal e o super-homem – uma
corda sobre o abismo.
É o perigo de transpô-lo, o perigo de estar a caminho, o perigo de olhar
para trás, o perigo de tremer e parar.
O que há de grande, no homem, é ser ponte, e não meta: o que pode
amar-se, no homem, é ser uma transição e um ocaso.
O homem é uma transição e um ocaso. É passagem. É simplesmente percurso,
viagem. Viagem é experiência. É na ação que ele já se vê jogado em meio ao risco de
perder-se. É essa transposição que o homem precisa fazer, lançando-se na experiência a
partir da qual uma transmutação poderá ser realizada. Por ser experiência, ela só se dá
no abismo, no perigo do não ser, no mais alto risco, que é o de permitir-se perder um
mundo e ganhar outro, passando para outro lado.
VIII
Essa experiência de perda e passagem já aparece no primeiro texto de
Zaratustra, a saber: “Das três metamorfoses”. Aí se trata de três formas do espírito: do
Camelo, do Leão e da Criança. Trata-se aí de pensar as transformações que são operadas
no Camelo e que dão origem ao Leão; no Leão e que dão origem à Criança.
Transformações que são (ou que podem) ser operadas no homem singular, como
também no seio, no conjunto da civilização. Cada figura dessas possui a sua hora, o seu
tempo certo de ser. A transformação se dá quando há uma saturação em cada figura e
uma necessidade interior que promove a mudança. Assim Nietzsche pensa toda a
história e, com ela, a superação do Niilismo na figura da criança, a partir da superação
da subjetividade cartesiana representada pelo espírito do Leão.
Perder um mundo para ganhar um outro, ser uma roda que gira desde si mesma,
possuir a leveza de ser e também de deixar ser, viver do elemento da criação desde sua
possibilidade de não ser, da morte mesma, é o que se dispõe ao pensamento que pensa
desde o Niilismo. Não é à toa que Nietzsche se auto-intitula o maior de todos os
niilistas, pois foi por ele atravessado por tudo quanto é lado.
Chegamos, então, ao texto escolhido para começarmos uma meditação. Trata-se
do texto contido na primeira parte do Zaratustra e que se chama “Da morte voluntária”.
Como esse texto se inicia? Nietzsche nos fala pela boca de Zaratustra:
Muitos morrem demasiado tarde e alguns, demasiado cedo. Ainda soa
estranha a doutrina: “Morre a tempo!”
É preciso que chamemos a atenção para o fato de que anteriormente falamos na
hora certa da transformação que pode ser operada no texto “Das três metamorfoses”.
Essa hora certa, esse tempo certo, é o tempo do amadurecimento, é a hora madura, nem
cedo demais e nem tarde demais, nem muito verde e nem muito maduro, tal qual o fruto
que colhemos do pé. Diz-se no interior que é quando o fruto está de vez. Pode ser
colhido.
IX
A “morte voluntária” exige um trabalho, um cultivo, uma espera. Ela prepara-se
para a despedida, para o salto, para o salto pra dentro da própria vida, lugar em que
sempre já estamos, mas que dele sempre se quis afastar na tentativa de alcance de um
além-mundo. A morte, por isso, é uma festa, é uma libertação, é um morrer para... o
sentido da Terra, desta mesma Terra que experimenta a morte de Deus. Essa morte
espreita a terribilidade da solidão de ter que fazer um mundo, de ter que construir a vida
em meio à possibilidade da morte. O tempo da vontade é aquele que, em nossa época
histórica, exige a morte voluntária, e, com ela, a presença do homem transfigurado, o
super-homem.
A morte, neste sentido, possui uma transitividade, ou seja, ela transfigura,
colocando o humano em seu devido lugar, junto a Terra. A Terra, agora, aparece como
o sagrado, como o elemento que eu não posso blasfemar. “Que a vossa morte não seja
uma blasfêmia contra o homem e a Terra”. A morte, por isso mesmo, é algo grandioso,
com o qual o homem precisa lidar, não fugindo dela, mas a encarando, trazendo-a junto
a si, mesmo com o maior dos medos, como a possibilidade de sua transformação. É
preciso para isso que cada um queira morrer para que, com a sua morte, renasça
transfigurado. Por isso, o filósofo afirma, por fim, que
Assim quero eu mesmo morrer, para que, meus amigos, por amor meu,
ameis mais a terra; e à terra quero voltar, para ter paz naquela que me
gerou.