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Manhã Dos Deuses - Reestruturado

O prólogo descreve a criação do mundo e dos Deuses Primordiais, que surgiram do Vazio e moldaram a realidade. Após a criação de diversas raças, uma guerra entre os Deuses e suas criações eclodiu, levando à destruição até que Zamir, o Deus da Paciência, impôs a proibição da guerra e se tornou o Deus Supremo. O primeiro capítulo apresenta Kai, um menino misterioso com olhos dourados, que é encontrado por Fred e Abbe, e que parece ter uma conexão especial com a Névoa.

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Manhã Dos Deuses - Reestruturado

O prólogo descreve a criação do mundo e dos Deuses Primordiais, que surgiram do Vazio e moldaram a realidade. Após a criação de diversas raças, uma guerra entre os Deuses e suas criações eclodiu, levando à destruição até que Zamir, o Deus da Paciência, impôs a proibição da guerra e se tornou o Deus Supremo. O primeiro capítulo apresenta Kai, um menino misterioso com olhos dourados, que é encontrado por Fred e Abbe, e que parece ter uma conexão especial com a Névoa.

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Prólogo

Antes de todo início, antes do tempo, antes da própria


existência, havia apenas o Vazio. Um silêncio ancestral
que nem mesmo os ecos da criação ousavam perturbar.
Foi do âmago desse Vazio que nasceram os Deuses
Primordiais, entidades dotadas de consciência pura, cuja
essência moldaria os pilares da realidade.
Não se sabe ao certo se eles surgiram espontaneamente
ou se foram chamados por algo ainda maior. Mas o fato
é que um a um, despertaram. O primeiro a abrir os olhos
foi Luminus, o Deus da Sabedoria, cuja luz cortou o
Vazio como o primeiro amanhecer. Logo após, veio
Luna, a Deusa da Pureza, cuja presença acalmava tudo
ao seu redor, como um sussurro eterno. Flugel, a Deusa
da Perseverança, surgiu com o som dos mares em fúria,
enquanto Mandrak, o Deus da Força, se ergueu como
uma montanha viva. Ecatus, o Deus da Inteligência,
forjou ideias antes mesmo de haver matéria. Velkon, o
Deus das Trevas e da Corrupção, brotou das sombras
como um fungo que cresce em silêncio. Imanity, a
Deusa da Esperança, nasceu da necessidade de resistir
ao que viria. E por fim, Zamir, o Deus da Paciência, cujo
olhar contemplava tudo, mas cujas palavras eram raras
como a aurora num mundo de trevas.
Foi Zamir quem sugeriu que moldassem um mundo.
Não por vaidade, mas como um experimento, uma
tentativa de dar forma à existência. E assim criaram um
planeta, vasto, fértil, diverso. Um espelho do que cada
um carregava dentro de si. Dividiram-no em terras,

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mares e céus, e então decidiram povoá-lo com criaturas
que refletissem seus princípios.
Luminus, em sua luz gloriosa, deu origem aos Anjos,
seres quase divinos, feitos à sua imagem. Dotados de
poder e sabedoria, portavam uma magia pura e
arrebatadora, porém efêmera, pois suas forças se
esvaíam rapidamente ao serem usadas em excesso. Seus
olhos brilhavam como sóis, e sua presença era um
lembrete constante de poder e soberania.
Luna, envolta em serenidade e bondade, criou os Elfos,
seres imortais ligados à natureza, com dons de cura,
precisão com o arco e uma telepatia que lhes permitia
comunicar-se sem palavras. Tinham aparência etérea e
uma pureza que beirava o sagrado, vivendo em
comunhão com as florestas e seus ciclos.
Flugel deu à luz às Sereias, senhoras das águas, capazes
de controlar os mares e convocar tsunamis com um
gesto. Sua agilidade em meio líquido era insuperável, e
seus cânticos podiam entorpecer até mesmo o coração
mais guerreiro.
Mandrak, com seu corpo moldado em rocha viva, criou
as Feras, seres humanoides com traços animais: caudas,
garras, orelhas aguçadas. Eram lobos, ursos, coelhos,
leões, e outros. Dominavam o instinto e a força bruta, e
sob a lua cheia, tornavam-se incontroláveis, travando
batalhas que só terminavam com a morte ou a exaustão.
Ecatus, o inventor, criou os Anões, pequenos em
estatura, mas gigantes em engenhosidade. Sem magia ou
força, forjavam armas, construíam máquinas e
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dominavam a arte da criação com ferro, bronze e vapor.
Suas cidades eram subterrâneas fortalezas de engenho e
persistência.
Velkon, por sua vez, forjou os Vampiros, criaturas da
noite, silenciosas e astutas. Viviam nas sombras,
manipulavam, enganavam e espreitavam. Velkos não os
dotou com força avassaladora ou luz, mas com
inteligência perversa e domínio das ilusões. Seus olhos
viam o que outros não podiam, e sua fome nunca
cessava.
Imanity criou os Humanos, frágeis em corpo, mas
portadores de uma centelha incomum. Eram adaptáveis,
unidos, capazes de fé e de amor como nenhuma outra
raça. Sem dons mágicos natos, venciam pelo esforço
conjunto, pela criatividade e pela esperança que
carregavam até nos dias mais sombrios.
Por fim, Zamir criou... nada. Silencioso, observava. Não
por omissão, mas por escolha. Ele entendia que, antes de
criar, era preciso entender. Antes de agir, era preciso
ouvir. E assim, enquanto os irmãos moldavam o mundo
com mãos impetuosas, Zamir apenas esperava.
Com o mundo criado e as raças dispersas, a paz foi
breve. Pois entre os Deuses, surgiu uma discórdia antiga
como o próprio Vazio: quem entre eles era o mais
digno? Quem deveria liderar? Não havia rei dos Deuses.
E logo, a ideia de uma guerra surgiu.
Zamir se opôs. ―Escolher pela força é coroar o caos,‖
disse ele. Mas os demais, embriagados de orgulho, não
ouviram. Cada um ergueu exércitos com suas raças,
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moldou armas arcanas e lançou-se à guerra. Foi uma
batalha como nenhuma outra. O céu queimou. A terra
rachou. Os mares sangraram.
Milhões de vidas foram ceifadas. Os Anjos brilharam
como cometas, mas caíam rápido quando esgotavam sua
magia. As Sereias invocavam marés que engoliam
cidades. As Feras rasgavam inimigos em pedaços sob a
lua. Os Elfos gritavam pelas árvores em chamas. Os
Vampiros se banqueteavam nas ruínas. Os Anões
contra-atacavam com máquinas flamejantes. E os
Humanos... sobreviveram. Caíam, mas voltavam.
Perdiam, mas resistiam. Sempre juntos.
Zamir, do alto de uma montanha intocada pela guerra,
observava. Viu o orgulho consumir os irmãos. Viu a dor
moldar as raças. Viu a loucura tomar o céu e o inferno
subir à superfície. E então, quando o mundo já quase não
era mais mundo... a guerra cessou.
Não houve um vencedor em campo. Os exércitos
estavam exaustos. Os Deuses, feridos. E naquele
momento de silêncio absoluto, Zamir se ergueu. Ele não
levantou a espada, nem gritou palavras de comando.
Apenas caminhou entre os destroços da criação e falou:
"Aqueles que usam sua força, a violência, o poder
militar e o desespero ao máximo... Aqueles que
acumulam torres de cadáveres e que se chamam
inteligentes, respondam: qual a diferença entre vocês e
os animais irracionais?"
Suas palavras não foram um discurso. Foram um
juramento. E no exato momento em que pronunciou tais
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frases, as leis da realidade tremeram. Uma nova regra se
inscreveu nas fibras do mundo: a batalha estava
proibida.
A guerra, enquanto manifestação física de conflito, foi
selada. Nenhuma espada pôde mais ser erguida sem que
a vontade se dobrasse. Os Deuses, mesmo relutantes,
ajoelharam. Pois ali, diante deles, Zamir se tornava o
Deus Supremo.
A onipotência não lhe veio por combate. Mas pela
paciência. Pela espera. Pela compreensão.
Ele tomou para si o trono dos céus. Rebatizou o planeta
como Zanthera, símbolo da reconstrução. E decretou:
―Todo aquele que deseja provar sua inteligência, deve
fazê-lo sem sangue. Conflito ainda existe, sim — mas
que seja por sabedoria, não destruição.‖
E assim se iniciou a Era do Silêncio. As raças, exaustas,
reconstruíram-se sob as novas regras. Os Deuses
recolheram-se. O mundo respirou novamente. Mas nas
sombras, a discórdia jamais dorme. E o conflito...
apenas mudou de forma.
Esse é o mundo onde tudo começa. Muito antes do
início. Muito antes de Kai ser encontrado na floresta.
Muito antes da verdade vir à tona.

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Capítulo 1 – O Menino da Névoa
O vento do norte uivava sobre os campos de Valerick
como um velho cansado tentando sussurrar segredos
esquecidos. Era o tipo de manhã em que o frio não
apenas cortava a pele, mas também invadia os ossos
com uma lentidão cruel. Fred avançava em silêncio, o
capuz puído escondendo os cabelos acobreados e os
olhos cinzentos que pareciam sempre prontos para notar
o que os outros não viam.
Abbe caminhava logo atrás, pisando firme sobre a relva
úmida, as botas afundando em trechos enlameados
deixados pela chuva da noite anterior. A jovem arqueira
tinha algo de feroz e contido em seus movimentos, como
um lobo recém-acordado. Trazia o arco nas costas e os
olhos atentos, varrendo o horizonte em busca de
qualquer sinal de perigo. Ou de algo mais.
— Fred! Espere! — sussurrou Abbe, ofegante.
Fred ergueu a mão, pedindo silêncio.
— Escute — disse ele, com a voz tão baixa que quase se
perdeu no vento.
Abbe parou, inclinou o corpo para frente e escutou. O
som era... estranho. Um murmúrio abafado, um eco
distante de algo que não pertencia àquela planície.
— Você ouviu isso? — perguntou ela.
— Sim. Venha.

6
Ele apontou para adiante, onde a névoa começava a se
adensar. O ar parecia mais frio ali, e cada respiração
formava nuvens brancas diante do rosto. A névoa
envolvia tudo em um véu opaco, como se quisesse
esconder algo.
Fred avançou com cuidado, e Abbe seguiu-o. O terreno
subia levemente, revelando uma clareira rodeada por
rochas cobertas de musgo. E ali, em pé sobre um
afloramento rochoso, estava o menino.
Descalço, vestido com um manto surrado e encharcado,
o garoto observava-os em silêncio. Seus cabelos escuros
estavam grudados na testa pela umidade. Mas o que
mais chamava a atenção eram os olhos: dourados como
o sol poente, brilhando com uma intensidade quase
sobrenatural.
Fred engoliu em seco.
— Por Zamir... — murmurou Abbe.
O menino ergueu a mão como quem pede calma.
— Eu não mordo — disse Fred, aproximando-se.
O garoto inclinou a cabeça.
— Vocês me ouviram?
Abbe trocou um olhar com Fred.
— Ouvir o quê? — perguntou ela.
O menino olhou para o céu encoberto.

7
— A Névoa. Ela falou comigo. Disse que vocês viriam.
Fred sentiu um arrepio subir pela espinha. Ele olhou ao
redor, mas tudo o que via era a névoa densa e silenciosa.
— Qual seu nome? — perguntou ele.
O garoto hesitou, depois balbuciou:
— Kai.
— Kai? — repetiu Fred.
— É o que lembro.
Kai — um nome simples, mas carregado de mistério.
— Kai... — murmurou Abbe, curiosa.
O menino sorriu de forma melancólica.
— Acho que é meu.
Fred se ajoelhou e estendeu a mão.
— Vamos levá-lo para Windell. Você está machucado?
Kai olhou para baixo, examinou o manto rasgado e o
corpo encharcado.
— Sinto frio e fome — admitiu.
— Então venha — disse Abbe, estendendo o braço.
Kai desceu das pedras com leveza surpreendente. Cada
passo seu não fazia barulho, como se ele pisasse em
nuvens.

8
— Meu nome é Abbelin Morvan — disse ela.
— Eu sou Fred Artheon — acrescentou Fred.
— Eu... sou Kai.
A névoa parecia recuar atrás deles, abrindo um caminho.
Sem um som, sem um aviso.
Enquanto caminhavam de volta, Fred lançou um olhar
para Abbe.
— Não é todo dia que encontramos uma criança com
olhos de ouro.
Abbe sorriu, mas o olhar dela era grave.
— Algo me diz que este é apenas o começo.
A casa dos Morvan era uma construção robusta de pedra
e madeira, com janelas amplas e uma lareira sempre
acesa. Situada na parte alta de Windell, era cercada por
vinhedos e oficinas — o lar da mais influente família
mercantil do reino de Imanity. Não apenas dominavam o
comércio de tecidos finos, metais forjados e especiarias
raras, como também mantinham ligações políticas com
os senados das três principais cidades humanas. Tudo
que passava por Windell, passava antes pelas mãos de
um Morvan.
Quando chegaram, o crepúsculo já tingia o céu de
laranja e lilás. A luz dourada das janelas anunciava que
o jantar estava prestes a ser servido. Assim que pisaram
no saguão principal, os ecos da porta se espalharam pela

9
madeira polida, e uma criada correu à frente para avisar
a chegada de Abbelin.
— Senhor Alastor, sua filha retornou — anunciou ela,
inclinando-se com pressa antes de desaparecer escada
acima.
O patriarca não demorou. Alastor Morvan era um
homem alto, de ombros largos e postura ereta, com a
barba entrelaçada em fios prateados que contrastavam
com o tom bronzeado da pele. Seus olhos, do mesmo
cinza acentuado de Abbe, eram gélidos como o
mármore, mas inteligentes como uma lâmina prestes a
ser desembainhada.
— Fred — disse ele, com um leve aceno de
reconhecimento ao rapaz — e... quem é este?
Abbe hesitou apenas por um instante, depois se
adiantou.
— Este é Kai. Encontramos ele nas colinas ao norte,
perto do Véu de Espinhos. Estava sozinho. Com frio.
E... a Névoa falou com ele.
Alastor arqueou uma sobrancelha. Era um homem
cético, forjado nos salões da política e nos campos de
batalha comerciais, mas sabia reconhecer quando algo
escapava do comum.
— A Névoa falou? — repetiu ele, descendo os últimos
degraus com passos medidos. Seus olhos pousaram em
Kai com intensidade, como se tentasse decifrá-lo ali
mesmo, naquele instante.

10
Kai não recuou. Observou o patriarca com seus olhos
dourados, calmo, imóvel.
— Ela me chamou — disse o menino, a voz leve, mas
firme. — Disse que alguém viria. E que eu devia vir com
eles.
O silêncio que se seguiu foi denso, quase sólido. Apenas
o estalar da lenha na lareira parecia lembrar que o tempo
ainda corria.
— Abbe, leve-o para o quarto de hóspedes do andar alto.
Fred, venha comigo — disse Alastor por fim,
voltando-se sem esperar resposta.
Kai olhou para Abbe. Ela assentiu e estendeu a mão,
conduzindo-o pela escada lateral. No topo, o corredor
era adornado com tapeçarias representando as glórias da
linhagem Morvan: caravanas cruzando desertos,
reuniões com reis, bandeiras hasteadas em cima de
fortalezas tomadas. Era uma herança pesada — e Kai
parecia pequeno demais sob ela.
Enquanto isso, na sala de estudos, Alastor servia um
cálice de vinho rubro para si enquanto pensava no que
havia acontecido.
— Diga-me tudo — ordenou o patriarca.
Fred não omitiu nada. Contou sobre o som estranho na
planície, sobre a clareira coberta de névoa, os olhos
dourados, as palavras do menino, a estranha leveza com
que se movia. Alastor ouviu tudo em silêncio, girando o
vinho no cálice.

11
Quando Fred terminou, o homem permaneceu imóvel
por um tempo, os olhos fixos em um ponto qualquer da
lareira.
— Diga a Abbe que o menino ficará. Vamos
alimentá-lo, aquecê-lo. E observar.
— Observar?
Alastor pousou o cálice sobre a mesa com um som seco.
— Ninguém sobrevive sozinho nas colinas do Véu de
Espinhos. Muito menos uma criança. Ou ele é um
milagre... ou uma ameaça. E, neste reino, ambos são
perigosos.
10 anos depois
Windell amanhecia em tons suaves de âmbar e neblina.
As chaminés soltavam fios de fumaça perfumada por
lenha de cedro, e os sinos da Torre Sul marcavam a sexta
hora com um eco tranquilo. O frio ainda era cortante,
como sempre fora nos outonos de Valerick, mas agora
Abbe já não se encolhia diante dele. Com os ombros
retos e o arco sempre a tiracolo, caminhava com o porte
de quem carregava não apenas um nome, mas também
um destino.
Dez anos haviam passado desde o dia em que
encontraram Kai entre a névoa. Anos que moldaram os
três como o vento molda as encostas das montanhas —
lenta, constante e irrevogavelmente.

12
Abbe — agora Abbelin Morvan — se tornara muito
mais do que uma herdeira de mercadores. Sob a tutela de
mestres contratados por seu pai e de soldados que
serviam a Casa Morvan, tornara-se uma arqueira de
precisão quase sobrenatural, além de estudiosa dos
mapas e das rotas comerciais que sustentavam o poder
de sua família. Sua beleza era discreta, marcada por
olhos cinzentos que viam mais do que deixavam
transparecer e por uma expressão que raramente se
entregava ao improviso. Mas era no silêncio que ela era
mais perigosa: ela ouvia, analisava, esperava. Como um
lobo à espreita.
Fred cresceu como um filho bastardo da Casa Morvan
— não pelo sangue, mas pela convivência. Após a morte
de seu pai, um velho amigo de Alastor, foi acolhido por
gratidão e fidelidade. Em Windell, tornou-se uma
espécie de sombra protetora de Abbe, e de Kai. Não
herdou títulos, mas herdou a confiança de Alastor. Era
forte, rápido, e teimoso como um touro. Onde Abbe era
estratégia, Fred era instinto. Onde ela hesitava, ele agia.
Os dois cresceram como aliados — e às vezes como
rivais — em treinamentos, missões e decisões
importantes para o futuro da família Morvan.
E havia Kai.
O menino da névoa crescera com eles, mas de maneira
diferente. Desde o início, houve algo nele que não se
ajustava completamente ao mundo ao seu redor. Era
quieto demais, atento demais, como se ouvisse ecos que
mais ninguém escutava. Sua ligação com a névoa —
embora nunca explicada — se intensificou com os anos.

13
Em noites úmidas, ele era visto vagando pelos arredores
de Windell, os olhos dourados refletindo a luz da lua
como se pertencessem a outra criatura. Muitos o
temiam. Outros o idolatravam. Nenhum o ignorava.
Abbe e Fred, contudo, jamais o trataram como um
estranho. Criaram uma espécie de triângulo invisível
entre si — amizade, cumplicidade e algo mais
indefinido. Os laços entre eles eram como raízes:
silenciosos, profundos, muitas vezes enterrados sob
camadas de emoções não ditas. Mas reais.
Kai agora era um jovem magro e ágil, com traços ainda
marcados pela infância perdida. Seus poderes — se é
que podiam ser chamados assim — haviam despertado
aos poucos. Às vezes, previa chuvas com uma exatidão
absurda. Outras, percebia presenças antes que qualquer
vigia as detectasse. Mas o mais estranho era sua
afinidade com a névoa. Ela parecia segui-lo, protegê-lo.
Às vezes até obedecê-lo.
A primeira vez que o viram desaparecer dentro dela e
surgir do outro lado do pátio da mansão Morvan, não
acreditaram. Depois, quando aconteceu de novo — e de
novo — deixaram de questionar. Kai era diferente. E
ponto.
...
Naquele dia, os três se encontravam no topo da Colina
dos Ventos, onde a vista de Windell se estendia até onde
os olhos podiam alcançar. Era uma manhã calma, mas
havia tensão no ar. O tipo de tensão que se instala

14
quando se sabe que algo está prestes a mudar, mesmo
que ainda não se saiba o quê.
— Estamos ficando grandes demais para Windell —
disse Fred, jogando uma pedra colina abaixo.
— Você sempre diz isso — respondeu Abbe, sem
desviar os olhos da cidade abaixo.
— E continuo certo. Tudo aqui tem cheiro de repetição.
Kai sorriu, sentado em silêncio sobre uma pedra lisa,
com o capuz abaixado. Os cabelos escuros estavam mais
longos agora, presos em um laço simples atrás da nuca.
Seus olhos, ainda dourados, pareciam captar mais do
que qualquer um ao redor.
— Nem tudo se repete — disse ele. — A névoa muda.
Sempre.
Fred riu, balançando a cabeça.
— Lá vem ele com os enigmas.
— Não são enigmas se você ouve direito — retrucou
Kai, com um leve sorriso. — Vocês é que escutam
demais o barulho e pouco o silêncio.
Abbe se levantou, os dedos tocando a aljava em suas
costas.
— E o que a névoa diz agora?
Kai não respondeu de imediato. Em vez disso, ergueu o
rosto e fechou os olhos por um instante.

15
— Que as fronteiras estão tremendo. E que o sangue vai
escorrer pelas pedras antes do próximo verão.
Fred olhou para ele, a expressão ficando mais sombria.
— Isso foi... uma metáfora?
— Não — disse Kai, com os olhos agora fixos no
horizonte. — Foi um aviso.
...
Nos últimos anos, tensões vinham crescendo nos reinos
ao redor de Imanity. Boatos de movimentações nas
fronteiras, caravanas atacadas por criaturas que não
deixavam rastros, e rumores sobre uma antiga ordem
voltando à superfície. Alastor Morvan, como patriarca
de uma das famílias mais influentes do reino, já
começava a preparar alianças, rotas alternativas e...
despedidas.
Naquela noite, enquanto as chamas da lareira lançavam
sombras dançantes sobre os salões da mansão Morvan,
Alastor convocou os três para a sala de estudos.
— Chegou a hora — disse ele, observando os três com
um olhar calculado, porém não sem certo orgulho.
— Hora de quê? — perguntou Fred.
— De vocês saírem de Windell.
O silêncio que se seguiu foi tão denso quanto aquele da
névoa, dez anos antes.

16
— Para onde? — perguntou Abbe.
— Para o sul. A cidade de Galebran está sofrendo com
ataques misteriosos, e o Senado pediu ajuda aos clãs
aliados. Não posso ir pessoalmente. Mas vocês... vocês
são mais úteis em campo do que eu poderia ser aqui.
— Você quer que investiguemos? — Fred inclinou-se
para frente, empolgado.
— Quero que sobrevivam — respondeu Alastor. — E
que descubram o que está se movendo na escuridão. As
histórias do Véu de Espinhos estão voltando. E se Kai
for parte disso... melhor estarmos do lado certo da
história.
Abbe trocou um olhar com Kai. O rapaz manteve o olhar
firme, sem piscar.
— A névoa chamou de novo? — sussurrou ela.
— Ainda não — respondeu ele, com um brilho contido
nos olhos dourados. — Mas ela está esperando.

17
Capítulo 2 – Cinzas do Norte

O céu de Valerick estava tingido de cinza quando os


primeiros passos da viagem começaram. A névoa
rastejava entre as raízes das árvores como se relutasse
em abandonar a terra, e o frio da madrugada mordia com
sutileza os dedos dos que ainda não haviam se aquecido
pela caminhada.
Fred, Abbe e Kai estavam prontos. As mochilas estavam
presas com cordas de couro, alguns mantimentos secos
divididos entre sacolas de linho, e uma carruagem
simples os aguardava — puxada por um par de yullaks,
as imponentes montarias de Valerick.
As criaturas, de porte robusto, lembravam um
cruzamento improvável entre búfalo e javali: patas
fortes com cascos largos, ideais para terrenos traiçoeiros,
e presas curvas que serviam tanto para cavar a neve
quanto para enfrentar predadores. Uma pelagem espessa,
em tons de cinza e marrom escuro, protegia seus corpos
do frio, enquanto protuberâncias ósseas despontavam da
testa e dos ombros como uma armadura natural.
Embora seus olhos expressassem uma inteligência
incomum, havia neles uma inquietude bruta — típica de
sua espécie, conhecida por ignorar comandos
complicados. O som ritmado das rodas na terra úmida
preenchia o silêncio que ainda pairava entre eles,
enquanto os yullaks resfolegavam, impacientes para
partir.
Ao cruzarem o portão leste de Windell, viram dois
homens à margem da estrada, curvando-se diante de um

18
pequeno totem de pedra. Gravado nele, o símbolo antigo:
duas mãos entrelaçadas por chamas azuis — um selo do
Nomen Dubium.
Os homens murmuravam palavras de aceitação, e logo
após, ambos sacaram espadas robustas. Era um duelo
cerimonial. Um deles havia sido acusado de roubo, e ao
invés de recorrer a tribunais, ambos haviam optado por
um Desafio Sagrado.
Kai, curioso como sempre, se inclinou para fora da
carruagem.
— É verdade, então? Todo lugar leva isso a sério? —
perguntou, os olhos brilhando.
Abbe assentiu com calma, cobrindo os ombros com o
manto.
— Mais do que sério. O Nomen Dubium é a base da
convivência entre os povos. Não há honra sem ele. E
sem honra… só restaria o caos.
Kai olhou para Fred, que mantinha os olhos fixos
adiante.
— E você, Fred? Nunca falou muito sobre essas coisas.
Sobre sua família, sobre... quem você é. Você fala como
quem já viu muita coisa.
Fred permaneceu em silêncio por um momento. O som
da luta ritual às costas deles ecoava como um lembrete
antigo. Quando finalmente respondeu, sua voz saiu
baixa, como se falasse mais para si do que para os
outros.

19
— Nomes e títulos não importam quando se vive à
margem das leis de Zamir... ou quando se é traído por
quem deveria honrá-las.
Kai franziu a testa. Abbe o observou de canto de olho,
mas não disse nada. Havia algo mais denso nas palavras
de Fred, algo que carregava o peso de uma cicatriz ainda
aberta.
A estrada serpenteava entre colinas e vales cobertos de
névoa. E enquanto o mundo ao redor despertava com
lentidão, as memórias que Fred tentava manter
enterradas começavam a emergir, como brasas sob a
cinza de um passado que jamais se apagaria.
...
A carruagem avançava pela trilha estreita entre os
pinheiros altos, cujas copas pareciam engolidas pela
névoa de Valerick. O som dos yullaks resfolegando, o
rangido suave da madeira e o farfalhar das folhas eram
os únicos sons que os acompanhavam. Era uma manhã
longa — dessas em que o tempo parece esticar para
dentro da memória.
Fred estava mais calado do que o normal.
— Você não é um simples andarilho — disse Kai,
quebrando o silêncio. — E nem parece alguém que
cresceu em Windell. Aqueles seus olhos… carregam
culpa demais. Ou dor demais. Ou os dois.

20
Fred não respondeu imediatamente. Os olhos fixos em
algum ponto distante do caminho. Finalmente, respirou
fundo e falou:
— Eu nasci em Galebran.
Abbe virou levemente o rosto, surpresa. Kai arqueou as
sobrancelhas, curioso.
— A capital? Mas você sempre evitou esse nome.
— É porque… é onde tudo acabou — murmurou Fred.
— Meu verdadeiro nome é Frederick Dhalion Vaan.
Filho de Elor e Serentha Vaan, os últimos monarcas
legítimos do Reino dos Homens.
Silêncio.
O nome soou estranho na estrada. Grande demais.
Pesado demais. Inesperado.
— Você é... o herdeiro? — Kai mal conseguia conter o
espanto.
— Era. Até meu tio, Lorde Cael Vaan, decidir que não
queria mais ser o segundo em linha de sucessão.
Fred fechou os olhos por um instante. E então, como se a
estrada fosse um espelho antigo, as memórias voltaram.
…Luzes dançando no salão real durante o Festival das
Cinzas. Um menino com roupas douradas correndo
pelos corredores. Gritos à noite. Chamas. A mãe
empurrando-o para um alçapão escondido. “Fique em
silêncio, Fred… e nunca confie em olhos que sorriem

21
demais…”
…O som da lâmina cortando o ar. O selo do Nomen
Dubium sendo negado pelo próprio sangue…
…E o silêncio. Um silêncio que se estendeu por anos.
— Cael traiu os votos sagrados. Não declarou desafio.
Não pediu consentimento. Ele matou meus pais à traição
— disse Fred, a voz endurecendo. — Quebrou o Nomen
Dubium. A maior lei dos homens. E mesmo assim… foi
coroado rei.
— Como? — Abbe perguntou, sussurrando. — Como o
povo aceitou?
Fred olhou para ela com amargura.
— Ele disse que meus pais estavam corrompidos,
tomados por influência demoníaca. Manipulou o clero.
Comprou a guarda real. Criou um novo código,
distorcido… onde ele mesmo julgava o que era justo ou
não. E para o mundo, eu... morri naquela noite.
Kai apertou os punhos.
— Isso é um crime não só contra o sangue, mas contra
Zamir! Ele quebrou a Lei!
Fred assentiu. — E é por isso que nunca falei. Porque se
o mundo souber que ainda estou vivo, Cael vai caçar
todos ao meu redor. E porque... — ele hesitou, os olhos
fixos no horizonte — ...porque eu mesmo não sei se
posso carregar esse nome de novo.
A estrada para Galebran continuava à frente,
serpenteando como um destino inevitável.

22
Abbe finalmente falou:
— Talvez seja hora de reaver não o trono… mas a
verdade.
Fred suspirou, o frio mordendo mais forte do que antes.
— Talvez… seja hora de convocar meu próprio Nomen
Dubium.

A estrada se abria entre colinas baixas e campos


esbranquiçados pela geada. Os yullaks estavam lentos
sob o peso da névoa que parecia cada vez mais densa,
como se o próprio mundo sussurrasse histórias antigas à
medida que avançavam.
Kai, como de costume, estava inquieto com o silêncio. O
que Fred havia revelado ainda pairava no ar, denso e
carregado, mas o garoto tinha outra pergunta na ponta da
língua, algo que martelava sua mente desde a noite
anterior.
— Abbe — começou, com o olhar perdido na estrada
—, por que o Fred disse que o tio dele ―quebrou o
Nomen Dubium‖? Não entendo muito bem como isso
funciona... é tipo uma magia? Um contrato? Uma
maldição?
Abbe não respondeu de imediato. Ela fitava a floresta à
margem da estrada, mas logo falou, com a voz serena e
firme, como alguém que já havia ensinado aquilo antes
— ou talvez, como alguém que jurou seguir essa lei com
o coração.

23
— O Nomen Dubium é uma das últimas dádivas
deixadas por Zamir antes de se calar. Não é uma magia.
Não é um contrato. É… um eco da divindade nos
corações conscientes. Uma regra sagrada que atravessa
raças, culturas, idiomas. Seu significado é simples, Kai:
―Prove quem é ou pereça.‖
— Mas provar o quê? — Kai inclinou a cabeça, curioso.
— Sua razão. Sua justiça. Seu direito de agir contra
outro ser consciente. — Ela voltou-se para ele, os olhos
sérios. — Ninguém pode ferir, roubar, humilhar ou
matar outro ser racional sem que antes declare um
desafio e tenha seu desafio aceito.
— Então ninguém luta? — Kai franziu a testa.
— Pelo contrário — disse Fred, com um sorriso torto —,
as pessoas lutam o tempo todo. Mas lutam com
consentimento. Isso muda tudo.
— O Nomen Dubium pode ser declarado com palavras,
símbolos, gestos… — completou Abbe. — Uma marca
no chão. Uma luva ao chão. Um selo queimado no ar.
Cada cultura tem sua forma. Mas todos entendem
quando ele foi declarado.
— E se alguém ignora o desafio?
O silêncio que seguiu à pergunta foi interrompido por
um grito agudo vindo da floresta.

24
O yullak de Abbe empinou, relinchando com um som
rouco de puro instinto. Fred puxou as rédeas com força,
a mão indo direto ao punho da espada.

Do meio da névoa, uma forma rastejou para fora — e o


ar pareceu ficar mais frio.
Tinha o corpo arqueado como o de um cão doente, mas
suas patas eram compridas e finas, dobradas nos ângulos
errados, como se tivessem sido montadas por alguém
que nunca viu um animal antes. A pele era uma mistura
de escamas secas e carne viva, com manchas
esverdeadas, como algo apodrecendo em vida.
No lugar do pescoço, pendia uma juba grossa de carne
solta, como músculos expostos balançando a cada
movimento.
Os olhos eram brancos, opacos, sem pupilas. Vazios.
E seu cheiro... era de metal queimado e coisa morta.
Uma Gera.
Feras sem mente. Sem alma. Nascidas onde o Vazio
toca o mundo.
— Atrás! — gritou Fred, descendo da carruagem com
rapidez.
A criatura saltou. Fred a interceptou com um golpe
horizontal, empurrando-a para a lateral da estrada. Abbe
ergueu as mãos e murmurou palavras antigas, um
círculo de proteção surgindo ao redor de Kai.
— O Nomen Dubium não se aplica a ela — gritou,
enquanto lançava uma rajada luminosa contra a criatura.
— Não tem mente. Não tem moral. Só fome.

25
Kai assistia, fascinado, enquanto Fred e Abbe
combatiam a criatura. A Gera rugia, espumando pela
boca, como se carregasse mil ecos de dor. Após uma
troca rápida de golpes, Fred perfurou seu peito com a
espada — e ela caiu, estrebuchando até virar pó.
— Como eu ia dizendo... — disse Abbe, retomando o
fôlego — ...o Nomen Dubium é só para seres
conscientes. Humanos, elfos, orcs, anões, arcanistas,
alguns autômatos... até dragões, se forem antigos o
bastante. Mas feras, monstros e corrompidos vivem fora
dessa ordem.
— E se alguém matar outro ser racional sem declarar o
desafio?
A expressão de Abbe ficou sombria.
— Essa é a quebra da Lei. Um crime contra a alma.
Aquele que comete esse ato é marcado...
espiritualmente. Às vezes de forma visível, às vezes não.
Mas o que é certo é que ele começa a perder a empatia, a
razão, a humanidade. Se continuar, se recusar a buscar
penitência... se torna algo irrecuperável.
— Um monstro?
— Não um monstro... um Ruínico — disse Fred,
limpando a lâmina no manto da criatura caída. — Um
ser que já foi racional, mas que escolheu o caminho da
ruína.
Kai engoliu em seco.

26
— E tem volta?
— Às vezes. — Abbe olhou para ele com tristeza. —
Mas quase sempre... já é tarde demais.
A estrada voltou ao silêncio. A Gera já desaparecia no
vento frio como poeira corrompida. A carruagem
retomou a marcha.
Lá na frente, o céu começava a clarear. E além das
colinas, ainda encoberta pelas brumas da manhã,
Galebran os aguardava.

27
Capítulo 3 - Ecos do Trono Perdido
A viagem havia sido longa e implacável. Os primeiros
raios do sol mal aqueciam o chão quando os três
cavaleiros cruzaram a última colina e, finalmente,
avistaram Galebran.
A cidade se estendia no horizonte como uma tapeçaria
dourada, abraçada por muralhas de pedra branca que
pareciam cintilar com a luz matinal. Torres se erguiam
majestosamente como lanças voltadas ao céu, cúpulas
douradas refletiam os raios solares, e as bandeiras
balançavam suavemente ao vento — ostentando o lobo
negro coroado, símbolo do atual regente.
Fred prendeu a respiração.
Aquela vista lhe roubava o fôlego, não apenas pela
grandiosidade da capital… mas pela lembrança amarga
de quem ela fora um dia.
— Está mais limpa do que eu lembrava — murmurou,
puxando o capuz sobre o rosto.
— E quieta… — comentou Abbe, olhando ao redor. —
Quietude demais para uma capital humana.
Kai não disse nada. Apenas manteve uma das mãos
próxima ao cabo da espada em sua cintura, como sempre
fazia quando não confiava no que via.
Seus Yullaks bufaram, agitados pelo cheiro da cidade.
As criaturas, resistentes e poderosas, tinham os
músculos tensos sob a pelagem espessa, os olhos
vermelhos atentos a tudo ao redor. Os cascos pesados

28
afundavam levemente na estrada de terra batida,
deixando rastros profundos.
As filas na entrada estavam ordenadas demais.
Mercadores, viajantes, clérigos e camponeses passavam
por revistas com precisão quase mecânica. Mas
ninguém parecia incomodado com isso — ao contrário,
a maioria sorria largamente para os guardas, como se
ansiasse por agradá-los.
— Sorrisos demais também… — resmungou Kai. —
Isso não é normal.
Fred manteve-se em silêncio.
Aproximaram-se do portão entre um grupo de viajantes
do norte, todos montados em carroças simples.
Disfarçados, seguiam o plano que haviam combinado
dias antes: Fred, vestido como um aprendiz de caçador
de relíquias; Abbe, com os trajes de uma mercadora
itinerante; e Kai, como seu protetor.
Quando os guardas os abordaram, o coração de Fred
bateu forte. Estavam armados, mas seus olhos... não
pareciam vivos. Olharam para os Yullaks, depois para
os três viajantes, e apenas assentiram com um gesto
breve. Não houve questionamentos.
— Estão… vazios — sussurrou Abbe, já adentrando os
limites da muralha.
Kai olhou por sobre o ombro, franzindo o cenho. —
Nem tentaram identificar a gente.

29
Galebran os recebeu como uma pintura viva. As ruas de
pedra pareciam polidas, as construções — de mármore
claro e vigas escuras — exibiam uma arquitetura
refinada, equilibrando tradição com grandiosidade.
Estátuas de heróis antigos se alinhavam nas avenidas,
sempre voltadas para o palácio no topo da colina.
Ao longe, sinos tocavam suavemente, como se uma
música invisível pairasse sobre a cidade inteira.
Perfumes doces flutuavam no ar — flores, especiarias,
pão fresco. As pessoas pareciam dançar ao caminhar,
com roupas coloridas, sorrisos largos, cumprimentos
exagerados.
— É tudo muito bonito — disse Fred, com a voz baixa.
— Mas está… limpo demais.
Seguiram pelas ruas centrais até encontrarem uma
pousada de aspecto tradicional: "Os Quatro Pilares",
uma construção de três andares, com janelas de moldura
curva e telhado de ardósia azul. Um brasão antigo jazia
entalhado sobre a porta — não o de Cael Vaan, mas um
emblema mais antigo, de uma família nobre esquecida.
O estábulo lateral já abrigava alguns cavalos e duas
carroças. O Yullak de Fred relinchou baixo,
incomodado com o cheiro de tantos animais
desconhecidos.
— Espero que esses bichos não arranquem a cabeça de
ninguém — murmurou Kai, descendo de sua montaria
com o cuidado de um soldado em território inimigo. O
Yullak chacoalhou a cabeça, irritado, mas deixou-se

30
conduzir até o estábulo após algumas palavras de
comando.
O estábulo era grande, com divisórias de madeira
reforçada e baldes de água gelada recém-preenchidos. O
tratador — um homem idoso de braços fortes e fala
arrastada — arregalou os olhos ao ver os Yullaks, mas
logo recuperou a compostura.
— Não vejo desses há muitos anos… — comentou,
tocando com cuidado o flanco de um deles. — Vieram
do norte?
— Da Fronteira de Verdan — respondeu Abbe,
enquanto acariciava o focinho de sua montaria. —
Viagem longa, mas eles aguentam mais do que nós.
— Isso é verdade — murmurou o homem, com uma
pontada de respeito na voz. — Vou alimentá-los bem e
deixá-los sozinhos… esses aí não gostam de companhia.
Depois de acomodarem as montarias, o trio seguiu para
o interior da pousada. O salão era acolhedor, com
móveis de madeira escura, uma lareira central acesa, e
tapeçarias pendendo das paredes. Um aroma de ervas e
vinho quente pairava no ar.
A dona, uma mulher de meia-idade com olhos atentos
demais para serem apenas curiosos, os recebeu com um
sorriso automático.
— Sejam bem-vindos aos Quatro Pilares. Quartos
individuais ou compartilhado?

31
Abbe respondeu por eles. — Dois quartos. Um para
mim, outro para os dois rapazes.
A mulher assentiu, registrou os nomes falsos fornecidos
e entregou as chaves com eficiência.
— Café da manhã até a nona hora. Evitem sair muito
tarde pelas ruas. A cidade anda... agitada à noite.
Fred sentiu um arrepio.
Subiram, deixaram as mochilas e se recomporam
rapidamente. Nenhum deles pretendia descansar ainda.
De volta às ruas, começaram a explorar a cidade a pé,
misturando-se à multidão.
A beleza era quase opressiva. Jardins impecáveis,
músicos em cada praça, fontes jorrando água cristalina
— tudo perfeito. Mas quanto mais caminhavam, mais
notavam os deslizes.
Um grupo de crianças rindo... mas uma delas, por um
instante, encarou Fred com os olhos cheios de lágrimas.
Um músico que repetia a mesma melodia
ininterruptamente, os dedos já ensanguentados nas
cordas do alaúde. Guardas que sorriam para as pessoas,
mas pisavam com força nos pés de mendigos antes de
seguir em frente.
Tudo era performance.
Fred sentia como se estivesse preso em uma peça de
teatro cujos atores haviam esquecido que estavam no
palco.

32
— Está me dando enjoo — disse Kai, num murmúrio. —
Não é magia sutil… é magia que força a realidade a
parecer bela.
— E o véu começa a falhar — completou Abbe. —
Vamos ver o quanto ele aguenta até a noite cair.
Andaram sem rumo por algum tempo, como se
buscassem, sem saber exatamente o quê, entre as ruas de
pedra lisa e casarões de arquitetura meticulosamente
simétrica. À medida que avançavam, a sensação de
desconforto só crescia, como um calor invisível sob a
pele, como se a própria cidade estivesse tentando sorrir
para eles à força.
Kai estreitou os olhos ao ver um grupo de donzelas
atravessando uma ponte florida. Riam alto, com vestidos
impecavelmente alinhados, os passos sincronizados
como se ensaiados. Mas uma delas, por um instante,
tropeçou. Seu sorriso vacilou, os olhos buscaram o chão
como se procurassem permissão para cair. Então, em um
estalo quase inaudível, como o som de um osso
deslocando-se, ela se endireitou novamente e voltou a
sorrir, os lábios tremendo.
— Isso não é normal — murmurou Kai. — Não é sutil...
essa coisa toda. Não é só uma ilusão... é... é como se
estivessem empurrando a realidade pra se encaixar num
molde que não combina com ela.
— É exatamente isso — disse Abbe, sem parar de andar.
— Estão forçando a narrativa. Manipulando percepção e
comportamento. Uma distorção coletiva, costurada com
fios de magia.
33
Kai franziu a testa, desviando de um vendedor de frutas
que lhes ofereceu uma maçã perfeita demais para
parecer real. Ele recusou com um gesto de cabeça, mas
sentiu, por trás do sorriso do homem, uma súplica muda.
— Mas que tipo de magia consegue fazer isso em tanta
gente? Em uma cidade inteira? — perguntou Kai,
enquanto viravam uma rua ladeada por casas de vidro
esmeralda, que refletiam suas silhuetas distorcidas. —
Isso é... ilusão, encantamento... o quê?
Fred e Abbe trocaram um olhar breve, como se
considerassem por um instante se valia a pena explicar.
Foi Abbe quem respondeu, em um tom didático que
misturava resignação e preocupação.
— Isso não é uma única magia, Kai. É um tecido de
efeitos entrelaçados. E sim, tem ilusão envolvida. Mas
também tem encantamento, compulsão emocional,
percepção seletiva e até manipulação de tempo e ritmo
— disse ela, passando a mão pela parede de uma casa. O
toque pareceu ondular brevemente a superfície, como
água presa por uma película.
— Mas isso não deveria ser possível, né? — insistiu Kai.
— Não em tão larga escala.
Fred finalmente falou, a voz grave e baixa:
— Depende de quem está tecendo.
— É magia humana, Kai — disse Abbe. — Da pior
espécie. Daquela que não brota de um vínculo com a

34
natureza, nem da harmonia dos elementos. Mas da
vontade. Da obsessão. Da imposição.
Eles pararam diante de uma escadaria que levava até um
terraço público, com vista para o rio que cortava a
cidade. Subiram em silêncio, apenas os passos ecoando
nos degraus de mármore polido.
Abbe continuou:
— A magia humana funciona de forma diferente das
outras. Elfos, anões, até mesmo as criaturas do Vazio,
todos canalizam magia através de algo — um ciclo, um
pacto, uma essência. Nós, humanos… moldamos a
realidade com base no que acreditamos ser verdadeiro.
Ou no que conseguimos fazer os outros acreditarem.
Fred assentiu lentamente. — É por isso que a magia
humana é perigosa. Ela não respeita limites naturais. Ela
se baseia em narrativas, em símbolos. Em poder coletivo
de crença.
Kai ficou em silêncio por um tempo. O vento no terraço
carregava aromas artificiais demais — flores que não
exalavam cheiro algum em suas raízes, mas embebiam o
ar com notas doces demais para serem naturais. O céu
estava limpo demais. Azul demais. Sem uma única
nuvem fora de lugar.
— Então se alguém aqui… — ele hesitou, encarando os
dois — se alguém poderoso o bastante controlar a
história que a cidade acredita... pode moldar tudo?

35
— Exato — disse Abbe, com pesar. — Se fizerem todos
acreditarem que estão felizes... que tudo está bem… a
própria magia que emana deles alimenta a ilusão. É um
ciclo fechado.
— A cidade toda virando uma farsa viva — disse Fred.
— Uma farsa alimentada pelo medo de ver o que
realmente está errado.
— Mas está falhando, né? — Kai perguntou, mais para
si mesmo. — A gente viu… aquela criança… o
músico...
— A verdade sempre vaza pelas rachaduras — disse
Abbe. — E à noite... a realidade se torna mais difícil de
manter.
Lá embaixo, a praça principal se estendia como um
tapete vivo. Pessoas dançavam, comerciantes gritavam
ofertas com vozes alegres demais. Um teatro de
perfeição incessante. Mas agora, com o que sabiam, Kai
percebia. Os olhos das pessoas não acompanhavam o
que diziam. As bocas sorriam, mas os dedos tremiam.
Os gestos eram mecanicamente ensaiados, como
marionetes se obrigando a parecer livres.
— Isso me lembra uma peça que vi uma vez — disse
Kai, com a voz distante. — Um rei que fazia seu povo
cantar o dia inteiro pra esconder o choro dele. No fim,
ele não sabia mais quem estava triste de verdade.
— E quem está fazendo isso aqui... já deve ter passado
desse ponto há muito tempo — murmurou Fred.

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Abbe apertou os olhos, olhando para o horizonte. As
torres douradas do palácio ao longe cintilavam como
uma miragem.
— Vamos descobrir o quanto esse teatro aguenta
quando as cortinas caírem.
Eles desceram as escadas, voltando ao labirinto de ruas e
fachadas brilhantes. O tempo parecia avançar mais
devagar ali, como se cada passo exigisse um esforço
extra. E, sem que percebessem de imediato, os músicos
haviam parado de tocar. As fontes estavam silenciosas.
E os olhares começavam a se voltar para eles.
Como se a cidade, por um instante, percebesse que algo
estava errado.
Como se ela os estivesse reconhecendo como o que
eram: intrusos na farsa.
Fred parou por um momento, fingindo admirar uma
vitrine de perfumes enfileirados em frascos de cristal.
Atrás do vidro, a vendedora sorriu, mas seus olhos não
piscavam. Por reflexo, Kai deu um passo para o lado.
— Precisamos encontrar alguém que ainda enxergue —
disse Fred, em voz baixa, os lábios quase imóveis. —
Alguém que saiba onde termina o palco e começa o
bastidor.
— E como você sugere que a gente faça isso? Gritando
―quem aqui está cansado de fingir‖? — ironizou Kai.

37
Abbe estalou a língua, examinando uma viela que
serpenteava entre dois prédios elegantes, mas que
parecia... incorreta. Não pela sujeira — mas pela
ausência. Ausência de música, de cheiro de flores, de
sorrisos decorativos.
— Por ali — apontou com o queixo. — Quando a
pintura começa a descascar, é por onde a verdade
escapa.
Sem chamar atenção, viraram naquela direção. À
medida que avançavam, o calçamento ficava irregular,
as paredes perdiam o brilho polido. Uma criança os viu e
correu — não por medo, mas como se soubesse que
aquilo era perigoso demais para ser testemunhado.
Mais alguns metros, e os sons da cidade desapareciam,
como se uma cortina de veludo tivesse se fechado atrás
deles.
Lá, entre muros cobertos de musgo, viram o que poderia
ter sido um antigo santuário ou mercado, agora tomado
por lonas rasgadas e fogueiras improvisadas. Pessoas —
não fantasias de gente — se encolhiam ali: idosos de
olhos vazios, jovens com a pele encardida pela fuligem,
crianças que não brincavam. Nenhuma música, nenhum
sorriso.
Kai murmurou:
— Isso ainda é Galebran?
— É o que sobrou dela — respondeu uma voz.

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Um velho surgiu de uma sombra. A pele marcada de
queimaduras, o olho esquerdo coberto por um pano
grosso. Carregava uma bengala, mas havia firmeza na
sua voz.
— Vocês não são daqui — disse. — Mas veem. Isso já é
mais do que a maioria consegue.
Fred assentiu. O homem ergueu um dos braços e
mostrou uma tatuagem esmaecida: uma flor de lótus
envolta em espinhos.
— Isso era o símbolo da cidade antes do golpe de Cael
Vaan. Antes da mentira ser mais real que a vida.
Kai se aproximou, agachando-se ao lado de uma criança
que brincava com um caco de espelho. Ela o olhou nos
olhos, e ele sentiu um calafrio: não havia reflexo algum
na superfície.
— Por que ninguém sai daqui? — perguntou.
O velho apontou para o alto.
— Porque a fé é uma jaula dourada. A magia humana
não é como as outras. Ela não é feita de fórmulas, nem
de elementos. É feita de... entrega. De narrativa. Eles
contaram uma história tão bonita que todos preferiram
acreditar nela a lembrar da verdade. Agora estão presos
no papel.
Abbe franziu o cenho.
— E quem alimenta isso? Não pode ser só o povo.

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O velho se aproximou de um canto do muro e afastou
uma lona. Atrás dela, desenhado com tinta escura e
símbolos arcânicos, estava um Círculo de Ressonância
— um selo mágico onde vários fios de cabelo humano,
pétalas secas e cristais vibravam suavemente.
— Toda noite, os "escolhidos" vão até o Templo da
Esperança e cantam a mesma canção. Sempre a mesma.
Repetem o texto. Reforçam a fé. Cada verso é uma
âncora.
Fred se aproximou, observando os fios se moverem sem
vento.
— Um teatro onde o público participa sem perceber. E
cada um que acredita reforça a mentira.
O velho assentiu. Sua voz era grave, mas contida.
— Vocês querem mesmo arrancar o pano do palco? É
isso?
— Queremos saber o que tem por trás dele — respondeu
Fred. — A verdade, por mais feia que seja.
O homem os encarou por longos segundos.
— Então precisam falar com o Sussurrador.
Abbe ergueu uma sobrancelha.
— Isso é um título?
— É um sobrevivente. Um dos primeiros que tentou
resistir quando Cael Vaan tomou a cidade. Disseram que

40
ele enlouqueceu... mas dizem muitas coisas. Ele mora
onde os sinos não tocam. Onde o tempo parou de se
fingir de normal. Ele sabe como começou — e talvez
saiba como terminar.
Fred trocou um olhar com os outros dois.
— E onde fica esse lugar?
O velho sorriu pela primeira vez, mas sem alegria.
— Abaixo do teatro central. Onde enterraram as
memórias.

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Capítulo 4 - Sinos que não tocam
As botas tocavam o calçamento irregular com uma
cadência hesitante, como se a própria cidade escutasse
seus passos. O silêncio era tão espesso que cada
respiração parecia alta demais. Abbe ajeitou a capa
sobre os ombros, mantendo os olhos nas sombras
projetadas pelas sacadas curvas e postes apagados.
— Eu juro que ele ainda estava com a gente quando
viramos a esquina — murmurou Kai, olhando para trás,
pela terceira vez.
— E agora nem sinal — completou Fred, a voz baixa,
mas tensa. — Nem pegadas, nem poeira mexida. Sumiu
como se nunca tivesse existido.
— Não ―como se‖ — corrigiu Abbe. — Isso é o tipo de
magia que essa cidade parece cultivar. Ilusão tão bem
costurada que faz você duvidar da memória.
O trio andava rápido, embora tentasse parecer casual. As
fachadas luxuosas tinham perdido o brilho. Não só pelas
sombras da noite, mas por algo mais profundo, como se
o verniz da farsa estivesse escorrendo pelas paredes. As
janelas, antes vivas com luzes mornas e gargalhadas
mecânicas, agora estavam escuras. Algumas, quebradas.
Uma brisa fria varreu a rua e trouxe consigo o cheiro de
madeira molhada e ferrugem.
— Isso estava assim antes? — perguntou Kai,
apontando para um lampião de rua retorcido, com a
haste torcida como se algo o tivesse esmagado.

42
Fred balançou a cabeça. — Não lembro. E isso me
incomoda mais do que se eu lembrasse de ter visto.
O único som era o de suas próprias pisadas e o ocasional
estalo distante — como madeira cedendo sob peso.
Finalmente, após mais dois quarteirões de vigilância
nervosa, avistaram a silhueta familiar da pousada Os
Quatro Pilares. Mesmo em meio à penumbra, a
estrutura mantinha sua presença sóbria: três andares,
telhado de ardósia azul, e o velho brasão esculpido sobre
a porta, sem a menor menção ao regime de Cael Vaan.
— Alguém mais sente que estamos sendo observados?
— sussurrou Abbe, enquanto sua mão repousava
disfarçadamente no cabo do punhal escondido sob o
manto.
— Desde o beco — disse Fred. — Mas não consigo
distinguir se é gente... ou a própria cidade.
Chegaram à entrada sem serem interceptados, e
empurraram a porta de madeira pesada.
O interior da pousada estava silencioso. Silencioso
demais.
A lareira ainda queimava, mas mais fraca do que antes.
As tapeçarias balançavam levemente, mesmo sem vento.
A dona não estava no balcão.
— Estranho — murmurou Kai. — Ela parecia do tipo
que dorme atrás do balcão com um olho aberto.
O sino da porta não tilintou ao se fecharem.

43
Fred estreitou os olhos para o salão vazio. Os móveis
estavam no mesmo lugar, mas havia algo diferente. A
disposição das cadeiras, talvez. Ou o fato de o vinho
quente não perfumar mais o ambiente.
— Vamos subir — disse Abbe, já andando. — Não
gosto desse silêncio.
Enquanto subiam as escadas, passos leves e abafados em
madeira envelhecida, o sentimento de deslocamento
crescia.
Nos corredores superiores, o ar parecia mais denso. O
chão rangia sob seus pés, e cada sombra parecia se
alongar por tempo demais.
— Aposto que se abrirmos a janela, não vai ter nada lá
fora — resmungou Kai.
— Se não tiver, pelo menos vai ser coerente —
respondeu Fred, tentando fazer humor, mas sua mão
também estava sobre a adaga.
Chegaram aos quartos. Abbe abriu o seu com cuidado,
examinando o interior. Tudo parecia igual... mas igual
demais. Como se alguém tivesse reorganizado as coisas
exatamente do jeito que estavam, tentando copiar a
disposição perfeita — e errando por um milímetro.
Kai e Fred entraram no deles. O quarto estava escuro,
mas ainda exalava o cheiro de madeira antiga e óleo de
lamparina.

44
Fred fechou a porta com calma. Depois a trancou com
duas voltas, sem cerimônia.
— Então… um velho some no ar, a cidade dorme com
os olhos abertos, e agora o teatro virou túmulo de
memórias. Estamos indo bem.
Kai jogou a mochila na cama e encostou na parede,
braços cruzados.
— O velho sabia demais. Aquela tatuagem... o símbolo
anterior à ascensão do Vaan...
— E ele disse que o Sussurrador está ―onde os sinos não
tocam‖.
— Abaixo do teatro central — completou Abbe da porta,
antes de fechar. — Amanhã, voltamos para lá.
Ela suspirou e jogou o capuz para trás.
— Mas antes, a gente precisa dormir. Ou pelo menos
tentar.
Silêncio.
Nenhum deles acreditava que seria fácil.
Lá fora, na rua, um único sino soou.
Só um. Baixo. Lento.
E depois… nada.
...

45
O quarto estava escuro, mas ninguém dormia. O som
distante do sino ainda parecia ecoar nos ossos. Kai
sentava-se no chão, costas contra a parede, olhos
vagando pelo teto como se esperasse que ele abrisse um
olho e falasse com ele.
— Tá... eu preciso perguntar uma coisa — ele começou,
quebrando o silêncio que já durava tempo demais. —
Essa história de ―realidade moldada pela fé‖. É isso
mesmo?
Fred, sentado na beirada da cama, passou a mão pelo
rosto, cansado. — É.
— Mas então qualquer um pode usar isso? É só...
acreditar?
Abbe riu baixo. Um som sem alegria.
— Se fosse assim, todo mundo seria um semideus aos
10 anos. Não é tão simples. Não basta você acreditar.
Tem a ver com o que os outros acreditam sobre você.
Kai franziu o cenho. — Como assim?
— A magia humana nasce da crença coletiva —
explicou Fred. — Não é só sua fé. É a fé dos outros em
você. É como... prestígio, fama, devoção. Quanto mais
pessoas acreditam que você é algo, mais a realidade se
ajusta pra tornar isso real.
Abbe se levantou e começou a andar pelo quarto, como
se organizasse os pensamentos junto aos passos.

46
— Um charlatão com cinco seguidores talvez consiga
parecer mais bonito do que é, ou fazer uma ferida sarar
mais rápido. Mas alguém com centenas de fiéis, pessoas
que realmente acreditam que ele é abençoado… esse
pode operar milagres.
— Curar? — perguntou Kai, agora mais curioso que
cético.
— Curar. Voar. Sobreviver a golpes fatais. Ser imortal,
por um tempo. Tudo depende da força da crença
coletiva. Mas... — Abbe parou, olhando pela janela —
...quanto mais forte a ilusão, mais frágil ela se torna se
alguém duvidar.
Fred completou: — A dúvida é veneno. Quanto maior o
milagre, menor a margem pra questionamento. Se uma
multidão vê um ―santo‖ sangrar, tossir, hesitar… tudo
pode ruir num estalar de dedos.
— Então... é um castelo de cartas? — murmurou Kai.
— Completamente — respondeu Abbe. — Lindo,
perigoso, e condenado a quebrar se olharem demais de
perto.
O silêncio voltou, denso como o ar abafado do quarto.
Kai recostou a cabeça na parede e exalou lentamente.
— Acho que entendi por que o velho virou fumaça. Se
ele era parte de uma mentira grande o bastante… e
alguém parou de acreditar…
Fred apenas assentiu.

47
Lá fora, o vento voltou a soprar. Só que agora trazia
consigo um som novo — passos.
Mas não havia ninguém na rua.
A madrugada chegou arrastando o tempo como um
lençol pesado. O som dos passos lá fora se dissolveu no
vento, e o mundo pareceu finalmente ceder ao cansaço.
Um a um, os três se renderam ao sono — inquieto, leve,
como se pudessem acordar a qualquer ruído.
Kai foi o último a fechar os olhos.
...
O sonho veio como uma avalanche de sensações. No
início, era só escuridão. Depois, flashes.
Uma risada. Um campo dourado, os pés correndo sobre
folhas secas. Windell, em seu outono interminável.
Abbe de cabelos soltos, girando com os braços abertos
enquanto folhas dançavam ao seu redor. Fred sentado
numa pedra, dedilhando um alaúde que ele nunca teve.
Uma canção sem melodia, mas que Kai conhecia.
— ―O que se perde, se dobra em dois‖ — dizia uma voz.
Não era de nenhum deles. Era a do velho.
O céu se rasgou em fragmentos de vidro. Cada pedaço
mostrava outra cena.
Um corpo queimando em uma pira solitária. Uma
tatuagem se formando com sangue vivo. Uma criança
chorando sozinha em um templo vazio. O brasão de
Cael Vaan — depois, o mesmo brasão partido ao meio.

48
Kai tentou correr, mas o chão derretia em névoa sob
seus pés.
―Ele está onde os sinos não tocam.‖
A frase se repetia, como se o sonho fosse uma caixa de
eco.
De repente, estava de volta ao território de Windell. Mas
tudo estava... errado. As colinas eram curvas demais. As
árvores, altas demais. O céu estava parado como uma
pintura. Havia figuras sem rosto nas janelas,
observando.
Abbe apareceu diante dele, mas seus olhos eram
espelhos. Refletiam tudo, exceto a verdade.
— Por que você deixou ele sumir? — perguntou ela,
com a voz do velho.
— Eu… não... — tentou responder, mas sua boca estava
cheia de areia.
A realidade tremeu. O som de um sino — aquele
mesmo, único e lento — explodiu no ar como um trovão
abafado.
Tudo quebrou. E Kai acordou.
Ele se ergueu com um sobressalto, o corpo suado, os
olhos dilatados. As primeiras luzes da manhã
filtravam-se pelas frestas da janela.

49
Fred estava ajoelhado ao lado da cama, tocando seu
ombro. Abbe, encostada na parede, observava com o
cenho franzido.
— Você tava murmurando... e se mexendo como se
estivesse lutando com alguma coisa — disse Fred, a voz
baixa mas firme.
— Tremeu a cama — completou Abbe. — Por um
momento eu achei que fosse um terremoto.
Kai levou as mãos ao rosto, respirando fundo. A
sensação do sonho ainda grudava nele como suor frio.
Os ecos, as imagens. O campo. O céu pintado. As
figuras sem rosto.
— Eu… acho que vi alguma coisa. Tipo… pistas. Mas
tudo embaralhado — disse ele, tentando organizar os
fragmentos. — O velho, Windell, o brasão partido,
vocês… E aquela frase. De novo. "Ele está onde os sinos
não tocam." Mas tinha mais…
— Mais? — Fred se aproximou.
Kai olhou nos olhos dele, ainda ofegante.
— Um rosto. Eu não reconheci. Mas... ele me
reconheceu. E sorriu.
Abbe trocou um olhar silencioso com Fred.
— É hoje — ela disse, erguendo o capuz de novo. — A
gente volta pro teatro. E cava fundo.

50
Fred assentiu. Kai ainda respirava fundo, mas já
começava a se mover, sacudindo a névoa do sonho.
Lá fora, pela primeira vez em horas, um pássaro cantou.
Mas distante. Hesitante.
E nenhum sino tocou.

51
Capítulo 5 - Ecos de Luz
O sol entrava pelas frestas da janela como se quisesse
expulsar a noite para bem longe — e por um momento,
conseguiu. Acordaram com a luz dourada banhando os
lençóis e o cheiro de pão fresco vindo do térreo.
Kai sentou-se devagar, passando a mão pelo rosto
suado. Tentou lembrar do que havia sonhado, mas tudo
era uma mistura disforme: vozes de Windell, risos
distorcidos, passos ecoando em corredores que se
dobravam sobre si mesmos. E o velho — aquele mesmo
que desaparecera — sussurrando algo que agora não
conseguia lembrar.
— Estou bem... eu acho — mentiu Kai, com a voz
arranhada. — Só foi... confuso.
Abbe ainda o encarava. — Confuso demais pra ser só
um sonho.
Apesar do clima estranho da noite anterior, o dia parecia
querer compensar. O trio se vestiu e desceu as escadas
com cautela. Mas ao chegarem ao saguão da pousada,
estacaram.
Estava cheio de vida.
Viajantes falavam alto em mesas fartas, risos ecoavam
pelo salão, o fogo da lareira crepitava com vigor, e o
cheiro de especiarias e vinho quente preenchia o ar com
aconchego. Tapeçarias limpas, lustres acesos. Um
músico dedilhava um alaúde no canto, sorridente. Tudo
como se a noite anterior jamais tivesse existido.

52
— Isso é impossível — murmurou Fred. — Ontem
parecia um mausoléu.
Kai olhou ao redor, olhos apertados. — Será que... a
cidade ―reverte‖?
Antes que pudessem especular mais, a dona da pousada
surgiu atrás do balcão, tão composta quanto lembravam
do primeiro dia. Cabelos presos num coque rígido,
avental branco sem um vinco fora do lugar. Mas seus
olhos — agora que sabiam o que procurar — traziam um
cansaço quase disfarçado. Quase.
Abbe se aproximou com um sorriso neutro. —
Dormimos bem. O... clima da cidade mudou bastante.
A mulher apenas assentiu, secando um copo com a
mesma energia mecânica de sempre.
— É sempre assim por aqui? — perguntou Fred,
forçando leveza na voz. — Calmo à noite... vibrante de
dia?
A dona olhou ao redor, como se medisse cada olhar
antes de responder. Quando falou, foi baixo:
— Algumas perguntas não pedem respostas. Pedem
silêncio.
Kai franziu o cenho. — Mas nós vimos coisas. Algo não
está certo.
A mulher os encarou por um momento que pareceu
longo demais. Depois, voltou a polir o copo e falou com
naturalidade:

53
— Vocês devem sair hoje, não? Aproveitar o mercado.
O centro é encantador nesta época do ano.
Abbe apertou os olhos, mas não pressionou. O trio ia se
afastando quando a mulher falou de novo — sem
encará-los:
— Ao meio-dia. Na colina dos salgueiros. Fora dos
muros. Levem capas. E não falem disso aqui dentro.
Foi só. Quando se viraram, ela já estava atendendo outro
cliente, como se nada tivesse dito.
As ruas da cidade pareciam outra realidade.
Crianças corriam com pipa nas mãos, vendedores
gritavam ofertas de frutas brilhantes, artistas de rua
apresentavam truques com cartas e moedas. O céu era de
um azul claro demais, e a brisa carregava perfume de
flores que, ontem, pareciam mortas.
— Isso aqui tá errado — murmurou Kai, olhando ao
redor como quem procura a rachadura num espelho
perfeito.
— Errado demais — disse Abbe. — Mas se tudo fosse
mesmo encenação, não deixariam pistas. O truque está
em nos fazer duvidar de nós mesmos.
Fred caminhava mais devagar, atento a detalhes —
janelas, becos, as sombras entre os prédios. — A dona
sabe. Ela viu o que vimos. Talvez... veja isso todos os
dias.

54
— E continua aqui — disse Kai, pensativo. — Tem que
ter um motivo pra isso.
Continuaram andando, disfarçando a tensão.
Procuravam algo — qualquer coisa — que denunciasse
o teatro, que confirmasse que a noite anterior não fora
um delírio coletivo. Mas tudo parecia perfeito demais.
Perfeito... até não ser.
Na esquina de uma loja de doces, onde uma criança
sorria com as mãos lambuzadas de caramelo, a sombra
dela projetada no chão mexia antes dos movimentos do
corpo.
— Vocês viram isso? — sussurrou Fred, estacando.
— Vi — disse Abbe. — E não quero ver de novo.
Kai encarou a criança, que agora ria inocente. Mas a
sombra... parara por um segundo depois. Como se
estivesse pensando.
— Precisamos ir até a colina. A cidade sorri demais de
dia — murmurou Kai — ...pra compensar tudo que
sussurra à noite.
E então, pela primeira vez, todos sentiram. Aquilo não
era uma cidade encantada.
Era uma cidade vigiada.
Andaram por horas.

55
A cidade de Galebran parecia se dobrar sobre si mesma,
como um véu bordado com cores e sons que encantavam
à primeira vista… e enjoavam na segunda. Por mais que
seguissem adiante, tudo se repetia em padrões sutis — o
mesmo homem regando as mesmas flores, o mesmo
cachorro dormindo embaixo da mesma barraca de
tecidos. Quando passavam por ele de novo, o cão ainda
não tinha mudado de posição. Nem respirava.
— Isso tá virando um teatro — disse Abbe, após um
tempo em silêncio. — E a gente tá no meio do palco sem
saber qual é a nossa fala.
Pararam diante de uma fonte ornamentada, cujas águas
pareciam mais cristalinas que o normal. Havia moedas
no fundo, dezenas delas, mas nenhuma se movia mesmo
sob a corrente. Kai tocou a borda de mármore. Estava
fria. Gelada demais para o calor do dia.
— E se for isso mesmo? — disse Kai. — Se tudo aqui
for encenação? Criada pra parecer perfeita, pra manter...
sei lá, a ilusão?
Fred o encarou, mas não respondeu de imediato. Em vez
disso, sentou-se num banco e observou as pessoas rindo,
comendo frutas, tirando medidas de vestidos. Ninguém
parecia perceber que havia algo errado.
— Meu tio… — começou ele, hesitante. — Cael
Vaan… ele sempre teve jeito com palavras. Não era só
carisma. Era... algo mais. As pessoas confiavam nele de
um jeito cego.
Kai se virou para ouvi-lo. Fred continuou:

56
— Quando eu era pequeno, ouvia as histórias. Que ele
curou uma aldeia inteira doente. Que trouxe chuvas em
tempos de seca. Que fez um soldado levantar dos mortos
pra lutar uma última vez. Eu achava exagero. Mas e se
não fosse? E se... as pessoas acreditaram tanto nessas
histórias… que viraram realidade?
Abbe cruzou os braços, sombrancelha franzida.
— A magia humana.
Fred assentiu. — A força da fé. Se uma cidade inteira
acredita que está salva… ela fica. Mesmo que esteja
podre por dentro.
Kai falou baixo, como se temesse ser ouvido:
— Se Cael Vaan criou essa cidade com magia baseada
na fé… então ele não só controla o lugar. Ele é o lugar.
Cada pessoa aqui é parte da crença que sustenta a
realidade.
Abbe olhou ao redor, olhos estreitos. — E qualquer
rachadura nessa ilusão é um risco. Não só pra ele… mas
pra todo o encantamento.
— Por isso a dona da pousada foi tão evasiva. Se ela
disser a coisa errada, a cidade ouve. E talvez… a cidade
reaja — completou Fred.
Continuaram andando, agora mais atentos. À medida
que as horas passavam, percebiam os sorrisos que
duravam tempo demais. As roupas de alguns cidadãos
que pareciam… idênticas. O padeiro que ainda oferecia

57
os mesmos três pães, com a mesma fala, para clientes
diferentes. E quando uma mulher tropeçou na calçada e
caiu, ninguém a ajudou. Todos pararam, sorriram... e
esperaram ela se levantar sozinha com um sorriso de
volta. Como se a dor fosse um erro de roteiro.
— Isso tá desabando — murmurou Abbe. — Devagar…
mas tá.
O sol já começava a inclinar-se, pintando o chão com
sombras mais longas. A brisa antes agradável agora
parecia sussurrar palavras que ninguém dizia. As flores
nos jardins pareciam mais plásticas. Os cheiros doces do
mercado… mais enjoativos.
— Que tipo de pacto você fez, Cael…? — sussurrou
Fred, como se o ar pudesse responder.
Quando finalmente se aproximaram dos portões da
cidade, as ruas estavam mais vazias. O barulho havia
diminuído. Os risos, antes constantes, agora eram só
ecos isolados.
Passaram pelos muros de pedra e subiram pela trilha
estreita entre as colinas. A grama ali parecia mais real —
irregular, com insetos voando, e uma névoa tênue que
não combinava com a perfeição lá embaixo.
— A cidade toda é um encantamento coletivo — disse
Kai. — Mas aqui… aqui fora, parece que a mentira já
não alcança direito.

58
No alto da colina, uma árvore solitária balançava ao
vento. Era um salgueiro — os galhos longos como
braços cansados, pendendo sobre a encosta.
Abaixo, Galebran parecia um quadro pintado à mão.
Linda, mas… parada. Intocada. Como se alguém
estivesse forçando o tempo a ficar em pausa.
A dona da pousada já os esperava.
Sem o avental, vestia um manto escuro, encapuzado, e
segurava algo nas mãos — um pequeno frasco de vidro.
Dentro, havia uma luz pulsante, tênue, como se
guardasse um sussurro preso. Seus olhos estavam
diferentes. Menos controlados. Mais… humanos.
— Estão atrasados — disse ela. — Mas ainda há tempo.
Kai respirou fundo. — Tempo pra quê?
Ela ergueu o frasco entre eles. A luz oscilou.
— Tempo pra acordar.
E então a verdade começou a ser contada.
A dona da pousada — cujo nome eles ainda não sabiam
— fitou-os com uma expressão que misturava urgência
e cansaço. Como quem guardara um segredo por tempo
demais, esperando o momento certo — ou apenas
possível — de contá-lo.
— O nome é Elira — disse ela, baixando o capuz. Seus
cabelos estavam soltos agora, prateados com fios de um
castanho antigo. Rugas marcavam os cantos dos olhos,

59
mas havia ali uma beleza firme, quase austera. — E não
estou fazendo isso por vocês. Estou fazendo com vocês.
Porque, gostem ou não... agora fazem parte disso.
Ela entregou o frasco a Kai. O objeto era quente ao
toque. A luz pulsava em sintonia com seu coração, como
se respondesse à vida ao redor.
— Isso é um fragmento de fé — explicou Elira. — Não
no sentido religioso. Mas fé verdadeira. Fé humana.
Acreditaram tanto numa história... que ela se partiu em
pedaços. E um deles veio parar aqui.
Abbe se adiantou, confusa. — Mas isso é magia, não é?
Magia humana. Como essa cidade?
— Exatamente como essa cidade. — Elira assentiu,
sombria. — Galebran já foi real. De verdade. Não essa
pintura viva que vocês veem agora. Mas algo nela... ou
alguém, foi sendo moldado. E quando o Lorde Cael
Vaan chegou com seus seguidores, com sua fé cega,
com suas palavras doces... a cidade acreditou.
Fred sentiu um calafrio ao ouvir o nome do tio. — Ele...
ele criou isso?
— Não sozinho. — Elira olhou para o céu, que
começava a tingir-se de laranja. — Mas ele foi o
primeiro a contar uma mentira convincente o bastante.
Que Galebran era abençoada. Que aqui não havia dor,
nem medo, nem morte. E as pessoas quiseram acreditar.
Porque é mais fácil viver em uma mentira confortável
do que enfrentar uma verdade crua.

60
— E com isso... a magia nasceu — murmurou Kai.
— Cresceu — corrigiu Elira. — A mentira foi
alimentada. E quando já era grande demais, ninguém
conseguia mais ver os erros. Nem mesmo queria vê-los.
E tudo que não se encaixava... desaparecia. Como
rachaduras cobertas de tinta fresca.
Abbe cruzou os braços. — Mas por que você continua
aqui, ajudando?
Elira hesitou por um momento. Então apontou para o
frasco nas mãos de Kai.
— Porque isso... era meu filho.
O silêncio caiu como uma rocha. Fred engoliu seco.
— Como...?
— Ele foi o primeiro a duvidar. — A voz dela saiu
rouca. — Começou a ver demais. Questionar demais.
Dizer que Galebran estava errada. Que os dias eram
perfeitos demais. Que as sombras... sorriam. E então...
ele sumiu. Só restou isso. Um eco da fé que o consumiu
e o fragmentou. A cidade não aceita dúvidas, Fred. Ela
se defende delas.
— E por isso você nos alertou — disse Kai, com a
respiração acelerada. — Porque estamos duvidando
também.
— E por isso não posso ajudá-los dentro dos muros. —
Elira apontou para a cidade, lá embaixo, onde a noite
começava a cair como um véu de ilusão. — Aqui fora, a

61
magia é fraca. As mentiras se desfazem mais fácil.
Vocês têm que escolher. Ou continuam fingindo que não
viram nada... ou tentam derrubar o castelo de cartas.
Fred fechou os punhos. — Cael Vaan... ele sabia que eu
viria?
— Ele precisava que você viesse — disse Elira,
encarando-o com força. — Porque você é sangue dele. E
seu retorno... valida a fábula. Dá força à crença.
— Eu sou uma peça no teatro dele — murmurou Fred.
— Mas também pode ser a rachadura — completou Kai.
Elira se afastou, envolta no crepúsculo. — Amanhã, ao
primeiro canto dos corvos, vão procurar abaixo do teatro
central. Fica além do castelo, nos subúrbios. Há alguém
lá que sabe mais do que eu, procurem o Sussurrador.
Alguém que não quer que a cidade continue sonhando.
Mas cuidado... quanto mais perto chegarem da verdade,
mais a mentira vai lutar para sobreviver.
Ela olhou por um instante para o frasco na mão de Kai.
— E se ouvirem vozes... escutem. As memórias da
cidade ainda falam. Algumas, choram. Outras... gritam.
E com isso, Elira virou-se e sumiu colina abaixo,
deixando apenas a escuridão crescente e a luz pulsante
do frasco — que agora tremia, como se reconhecesse os
primeiros passos da verdade.

62
Capítulo 6 – Quando a Névoa Sussurra Há 5 anos.
O nevoeiro havia descido sobre Windell como um
cobertor espesso, silencioso e inevitável.
Era primavera, mas a manhã trazia o peso de um inverno
esquecido. As árvores dos vinhedos se curvavam sob o
peso da umidade, e os lampiões a óleo ainda
tremeluziam nas esquinas, mesmo com o sol já alto —
um dia que se recusava a clarear por completo.
Kai estava em pé no alto do morro dos carvalhos, onde
os campos se encontravam com as florestas. Os olhos
dourados, ainda não tão intensos quanto hoje, varriam o
vale coberto de bruma com uma expressão
estranhamente calma.
Ele tinha apenas doze anos. Mas carregava no olhar algo
antigo.
— Você sumiu de novo. — A voz veio firme atrás dele.
Era Fred, ofegante, com uma túnica leve de treino e o
cabelo desgrenhado. — Todo mundo te procurou ontem
à noite.
Kai não respondeu de imediato. Nem se virou.
— Eu ouvi a Névoa — disse, por fim. — Ela estava...
cantando.
Fred se aproximou devagar.
— Não brinca com isso. Os camponeses já andam
murmurando histórias demais sobre você.

63
Kai abaixou os olhos. — Eles acham que eu trago azar?
— Alguns. Outros acham que você é um anjo. Ou um
demônio. Ou um mensageiro de Zamir. — Fred suspirou
e parou ao lado dele. — É isso que acontece quando
ninguém entende o que você é.
Kai hesitou. — E você? O que você acha?
Fred demorou a responder. Mas quando o fez, a voz veio
sincera:
— Eu acho que você é meu irmão. E que está
começando a ficar bom demais em desaparecer.
Kai sorriu, pequeno, mas real.
— Não desapareci. A Névoa me levou... só um pouco.
Fred arqueou a sobrancelha. — Você fala como se fosse
uma pessoa.
Kai olhou ao redor, e a neblina se adensou sutilmente.
— E se for?
Um arrepio passou por Fred. Não era medo... era uma
estranha reverência.
Mas o que viria em seguida marcaria o dia para sempre.
Do vilarejo, os sinos da capela bateram duas vezes —
um aviso incomum.
Gritos. Tambores. E então, o soar do sino pequeno, o
que só era tocado quando havia ataque.

64
— Os cães estão latindo — murmurou Fred, os olhos se
apertando.
Kai, no entanto, já estava virando o corpo com os olhos
fixos no horizonte.
— Estão vindo do sul.
— Mas você não pode saber disso — começou Fred.
Kai ergueu a mão. — Mas eu sei.
E naquele momento, do nevoeiro denso, surgiram as
formas distorcidas das criaturas.

Gera.
Pelo menos quatro — magras, bestiais, com bocas
cheias de dentes finos demais para algo que um dia fora
humano. Criaturas que só se aproximavam dos vilarejos
quando o Véu estava... tremendo.
Fred sacou a espada curta, ofegante. — Vai! Corre de
volta! Vai chamar o Alastor!
Mas Kai permaneceu firme.
— A Névoa me protege — disse.
Fred girou o corpo. — Kai, isso não é hora pra—
E então aconteceu.
As Gera avançaram.

65
Mas ao invés de atacarem os dois, pararam. Uma, a
maior, soltou um rosnado gutural. Outra recuou, os
olhos brancos arregalados.
Kai apenas observava.
E a névoa... moveu-se com ele.
Como se ganhasse vontade própria, a bruma se ergueu
ao redor do menino. Formou espirais, sombras
ondulantes que pareciam... sussurrar.
E então, com um estalo seco, as Gera viraram-se e
correram. Desapareceram sem deixar rastros, como se
algo maior estivesse ali, invisível, em guarda.
Fred ficou imóvel. A espada pendia ao lado do corpo. O
som dos sinos ainda ecoava ao longe.
Kai virou-se para ele.
— Você viu?
Fred assentiu, sem saber o que dizer.
Naquele dia, os rumores mudaram.
Alguns diziam que Kai havia sido tomado por um
espírito guardião, que a Névoa o obedecia.
Outros juraram que ele era uma maldição viva, e que as
criaturas fugiram não por medo... mas por respeito.
Mas uma coisa ficou clara para todos em Windell:

Kai não era apenas um menino encontrado na névoa.

66
Ele era parte dela.
...

Kai, em meio àquela névoa densa e pulsante, respirava


como se o próprio ar queimasse seus pulmões. Seus
olhos dourados estavam dilatados, e havia uma fúria
silenciosa crescendo em seu peito. O cheiro da Gera
morta ainda pairava ao redor — ferro e fumaça — mas o
pior não era o corpo da criatura.
Era o eco.
Algo dentro dele ainda sussurrava.
O silêncio ao redor parecia expectante. Como se a
própria floresta respirasse junto com ele.
E então, como uma vela sendo apagada de repente, tudo
ficou escuro.
Kai caiu de joelhos, os braços trêmulos. Tentou dizer
algo, mas as palavras não saíram. O mundo girava. A luz
da névoa se dissolvia.
— Abbe… — sussurrou, ou tentou.
Desabou.
...

Horas depois.
Ele acordou numa das tendas, coberto até o queixo com

67
uma manta de lã. O som do fogo crepitando preenchia o
espaço, misturado ao sussurro do vento noturno.
Fred estava de costas, afiando uma adaga. Abbe dormia
sentada, a cabeça tombada de lado. O arco repousava ao
alcance da mão.
Kai se ergueu devagar, os músculos protestando.
— O que... aconteceu?
Fred não virou.
— Você apagou. Caiu feito pedra. Tivemos que te
arrastar de volta.
— Eu... matei aquela coisa?
Fred deu de ombros, sem parar o movimento da lâmina.
— Você explodiu ela em fumaça. A criatura virou
cinzas antes de tocar o chão.
Kai olhou para as próprias mãos. Elas tremiam.
— Eu não lembro.
— Ninguém conseguiria esquecer aquilo fácil — disse
Fred, sem sarcasmo, mas também sem consolo. — Mas
você... não lembra mesmo. Nem um detalhe?
— Só... vozes. Como se estivessem dentro da minha
cabeça. Mas distorcidas. Como se falassem... debaixo
d’água.
Fred parou de afiar a lâmina por um instante. O silêncio
pesou.
68
— Isso já aconteceu antes?
Kai demorou a responder. Seus olhos dourados
encaravam o vazio da barraca.
— Não assim. Não com tanto... silêncio depois.
Kai permaneceu em silêncio por um tempo, observando
a sombra do fogo dançar na lona da tenda. Seus dedos
ainda estavam trêmulos, mas o que doía mais não era o
corpo — era a incerteza.
— Fred... — sua voz quebrou o silêncio, rouca. — Se
algum dia eu perder o controle... você vai me parar?
Fred virou-se devagar. Os olhos dele eram escuros,
sérios, mas não frios.
— Você acha que perdeu hoje?
Kai hesitou. Depois, assentiu.
— Não fui eu quem matou aquela Gera. Não do jeito
certo. Eu senti... algo despertando. Algo que não sou eu.
Era como... — ele procurava as palavras — ...como se
tivesse alguém atrás dos meus olhos. Observando tudo.
Esperando por uma brecha.
Fred não respondeu de imediato. Pegou um pedaço de
pano e limpou a lâmina devagar, como se processasse o
que ouvira.
— Eu já vi gente perder o controle — disse, por fim. —
Gente boa. Gente ruim. Todos tinham um limite. Mas

69
você... — ele encarou Kai — você não cruzou o limite.
Você sumiu.
Kai baixou o olhar, apertando os punhos.
— E se da próxima vez eu não voltar?
Fred se aproximou, sentando-se ao lado dele. O calor da
lareira deixava sombras nos seus rostos.
— Então nós vamos te trazer de volta — disse ele.
Simples. Sem dramatização. — Eu. A Abbe. Mesmo se
tiver que te arrastar pela névoa até os ossos sangrarem.
Kai quase riu, mas não conseguiu. Era um alívio
estranho, saber que alguém ficaria... mesmo quando ele
não estivesse mais ―ele‖.
— E se for tarde demais?
— Então vai ter sido um bom motivo pra me ferir. Mas
até lá... — Fred pegou uma jarra de água e a entregou a
ele — ...não se entrega. Não deixa o que te assombra
ditar o que você é.
Kai bebeu devagar, a garganta seca queimando ao
engolir.
— Obrigado.
Fred deu de ombros.
— Não me agradece ainda. Eu ainda acho que você vai
acabar me levando pra algum ritual bizarro em ruínas

70
esquecidas e aí sim a gente vai estar encrencado de
verdade.
Kai soltou uma risada fraca.
— Não prometo que não.
A risada cessou, mas algo ficou no ar — mais leve, mais
real.
Um momento de confiança entre dois jovens que
carregavam mais peso do que deveriam… e que, mesmo
assim, ainda estavam dispostos a carregar um ao outro.

Dois anos depois


A névoa voltara naquela noite. Densa, úmida, sem aviso.
Como sempre fazia quando Kai dormia inquieto.
Fred escutou os passos antes mesmo de vê-lo. Levantou
da cama, enrolado em uma manta, e foi até o corredor. A
porta do quarto de Kai estava entreaberta. Luz fraca
escapava por ela — não da lamparina, mas das janelas.
O luar parecia dobrar-se ao redor do rapaz.
Kai estava em pé. Olhos abertos. Mas ausente.
— Kai? — chamou Fred, baixinho.
Nenhuma resposta.
O olhar dourado de Kai estava fixo em algo que não
estava ali. As pupilas dilatadas, os músculos rígidos.
Como se estivesse preso dentro do próprio corpo. As

71
mãos trêmulas ao lado do corpo, e a respiração, rasa
demais.
— De novo… — murmurou Fred para si. Aproximou-se
devagar. — Ei, volta. Estou aqui, tá?
Kai piscou.
E então falou. Mas não com sua própria voz.
— Torres douradas... vozes demais... risos partidos... —
A fala era pausada, carregada de algo antigo. — E o
sussurro... o sussurro não para.
Fred segurou-o pelos ombros.
— Acorda, Kai. Está tudo bem.
— Galebran... — disse ele. — Eu vi. Antes de chegar lá.
Muito antes. Tem música... tem máscaras... mas
nenhuma face verdadeira.
E então, desabou.
Fred o segurou antes que caísse. Levou-o de volta à
cama, como fizera antes. Cobriu-o, mesmo com o corpo
quente de suor. Kai dormia como quem havia corrido
léguas, mesmo sem ter dado um passo.
No dia seguinte, Kai não lembrava de nada.
Mas Fred lembrava.
E naquele dia, anotou tudo que o amigo dissera. Palavra
por palavra. Como um guardião de um segredo que
ainda não sabia decifrar.
72
Dia seguinte
O sol da manhã mal tocava as pedras do pátio central da
casa dos Morvan, mas Abbe já estava lá, treinando tiros
contra alvos pendurados entre os parreirais. Ela ouviu
passos atrás de si — o rangido das botas de Fred no
cascalho.
— Ele acordou? — perguntou ela, sem virar.
Fred suspirou, parando ao lado dela.
— Sim. Não lembra de nada.
— Como sempre.
Abbe abaixou o arco e se virou. O olhar estava sério,
mas sem medo. Apenas preocupação.
— Vai acontecer de novo, Fred. Você sabe.
— Eu sei. Por isso estou anotando tudo.
Ele puxou do bolso interno do casaco um pequeno
caderno de capa de couro surrado. Estava amarrado com
tiras simples de tecido.
Abbe arqueou uma sobrancelha.
— Você virou escriba agora?
Fred abriu na página da noite anterior. As anotações
eram precisas, quase obsessivas. Letra firme, datas, até
detalhes do tom de voz.

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— ―Torres douradas... vozes demais... risos partidos... e
o sussurro... o sussurro não para.‖ — leu ele em voz
baixa.
Abbe passou os olhos pelas páginas anteriores. Várias
datas. Várias noites parecidas. Fragmentos de frases,
imagens recorrentes: "cidade que chora com o rosto
coberto", "um deus de olhos fechados", "a lua que gira
para trás", "portas que só abrem com o silêncio".
— Isso tudo... ele disse dormindo?
— Às vezes acordado. Às vezes no meio de um
pesadelo. Nunca se lembra depois. Mas... — Fred
fechou o caderno — ...tem um padrão. E cada vez mais,
ele fala da mesma cidade. Sempre ela.
Abbe assentiu lentamente.
— Galebran.
— Mesmo sem nunca ter ido.
Kai surgiu pouco depois, descendo as escadas do
interior da casa com passos pesados. O rosto pálido,
olheiras fundas, e os olhos dourados... estranhamente
opacos naquela manhã.
— Bom dia... — disse ele, embora sua voz não tivesse
certeza se era mesmo.
Fred e Abbe se entreolharam. Nenhum deles respondeu
de imediato.

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— Kai — começou Fred, com calma —, você tem
sonhado com alguma cidade?
Kai hesitou. Sentou-se no banco de pedra junto ao
canteiro, esfregando os olhos.
— Tenho. Acho que sim. Mas é estranho. Não parece
sonho... parece... lembrança. Mesmo que eu não saiba de
onde.
— Como ela é? — perguntou Abbe, já se aproximando.
Kai ergueu os olhos.
— Torres douradas. Salões grandes demais. Sorrisos
que não chegam nos olhos. E tem uma coisa... — ele
franziu o cenho — ...uma névoa que não se move. Como
se prendesse as pessoas dentro.
Fred sentou ao lado dele e entregou o caderno aberto.
— Você já nos contou tudo isso. Mas não acordado. E
nunca se lembra.
Kai passou os dedos pelas anotações. Os lábios
entreabertos. Quase em choque.
— Isso… é real?
— A cidade é — respondeu Abbe. — E vamos chegar
nela em algum momento. Mas acho que ela já chegou
até você, de algum jeito.
— Ou eu até ela — murmurou Kai.

75
Houve silêncio entre os três por um momento. Um
silêncio que, de alguma forma, parecia mais cheio de
significados do que qualquer conversa.
Fred colocou a mão no ombro de Kai.
— Não importa o que esteja acontecendo com você, ou
dentro de você. Nós estamos aqui. E vamos descobrir
isso juntos.
Kai assentiu devagar. Mas havia algo em seus olhos que
os dois notaram.
Algo novo.
Medo.

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Capítulo 7 – Vozes Sob o Véu
O trio caminhava em silêncio pela estrada de terra que
levava de volta aos portões de Galebran. O vento da
manhã agitava os mantos e soprava folhas secas ao redor
dos pés. Atrás deles, a colina dos salgueiros se perdia
entre névoa e galhos curvados.
Ninguém dizia nada. Ainda não.
— Ela parecia… saber demais — disse Abbe, por fim,
quebrando o silêncio.
— Sabia — respondeu Fred. — Mas nunca disse tudo.
Só o suficiente pra gente entender que ainda estamos
dentro de algo muito maior.
Kai andava com os olhos fixos no chão. A lembrança do
frasco de vidro com a luz sussurrante ainda martelava na
mente. Aquilo não era só um símbolo. Era uma ferida
embotada que pulsava em toda a cidade.
— E se ouvirem vozes... escutem. As memórias da
cidade ainda falam. Algumas, choram. Outras... gritam
— repetiu ele, baixinho.
Abbe assentiu.
— O que ela disse… ainda ecoa na minha cabeça. As
vozes. As memórias que gritam.
Fred olhou para as fachadas distantes que começavam a
surgir entre a bruma.

77
— Galebran tá segurando tudo com fios de fé. Fé
costurada como véu sobre os olhos. — Ele fez uma
pausa. — Mas o que tá embaixo... no âmago... sussurra.
Grita. E isso... um dia vai transbordar.
Kai ergueu os olhos, a expressão mais séria que o
habitual.
— E quando transbordar... vai arrastar tudo com ela.
A cidade já aparecia entre os primeiros pilares da
muralha sul. Mesmo àquela hora, já havia sorrisos
demais. Guardas demais. Perfume demais. Uma
coreografia perfeita demais para ser natural.
— Precisamos chegar ao teatro central — disse Fred. —
Se o que ela disse é verdade… o Sussurrador está lá
embaixo. E talvez ele saiba como quebrar isso.
— Ou o que acontece se isso se quebrar — murmurou
Abbe.
Entraram por uma das vielas menos movimentadas,
passando por açougues ainda fechados e lojas de
temperos em silêncio. O cheiro de madeira úmida e
especiarias adormecidas pairava no ar, e a cidade, mais
uma vez, tentava parecer viva.
Mas agora eles sabiam olhar com outros olhos.
As sombras tremiam diferente.
Os reflexos em vidros dançavam fora de ritmo.

78
E, por um instante, todos ouviram — muito ao longe —
uma gargalhada… que não tinha dono.
Kai estremeceu.
— O teatro fica ao norte, perto da praça das Almas —
disse Fred. — Vamos pelas laterais. Evitar os olhares.
E…
Ele parou, olhando para Abbe e depois para Kai.
— Se ouvirem alguma coisa estranha… não ignorem.
Não agora.
Abbe apenas assentiu, os olhos cinzentos já em alerta.
Kai puxou o capuz mais para frente.
A cidade estava viva. Mas algo sob ela, algo entre as
pedras e as histórias não ditas… estava começando a
acordar.
E eles estavam indo direto ao encontro disso.
...
A entrada dos fundos do Teatro Central não era
guardada. Ou, talvez, fingia não ser.
O trio se esgueirou por um corredor de serviço mal
iluminado e encontrou uma escada que descia, oculta
atrás de um biombo antigo. Uma fechadura corroída
cedeu com um estalo seco quando Fred forçou a adaga
entre as fendas.

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A porta rangeu como se abrisse uma cicatriz antiga. Um
corredor estreito e empoeirado os recebeu, descendo em
espiral sob a estrutura do teatro. A luz enfraquecia a
cada passo.
Fred puxou uma tocha da mochila e riscou o pederneira
com um gesto rápido. A chama crepitou, lançando
sombras dançantes contra as paredes de pedra.
— Melhor assim — disse Abbe, com alívio. — Não
gosto de andar no escuro… principalmente aqui
embaixo.
A escada parecia interminável.
E então, quando os degraus se abriram em um salão
circular abaixo da terra, o trio parou.
Ali, a pedra era antiga demais para ter sido construída
por mãos humanas recentes. Havia inscrições nas
paredes — fragmentadas, desgastadas, mas ainda
pulsando uma energia abafada. Ao centro, um altar de
pedra rachado... e uma campânula de vidro vazia, como
se algo tivesse estado ali. Algo que agora escapara.
Kai se adiantou, sem perceber.
— Esse lugar...
— Você já esteve aqui antes? — perguntou Abbe,
surpresa.
Kai hesitou. Seus olhos dourados cintilaram sob a luz
tremeluzente da tocha. Ele passou os dedos pelas

80
inscrições na parede, e por um instante sua pupila se
dilatou.
Fred se aproximou com cautela, apoiando a tocha num
suporte de ferro corroído. — Está tudo bem?
Kai piscou. Uma voz parecia sussurrar no fundo de sua
mente… mas quando tentou focar, era como tentar
agarrar névoa.
— Não sei — respondeu. — Mas… parece que sim.
Abbe examinava o altar.
— A campânula... estava segurando algo. Algo que
talvez fosse o próprio Sussurrador.
Fred girava lentamente, observando os detalhes das
paredes. — Ou algo que ele temia.
Kai se ajoelhou diante do altar. O chão parecia vibrar,
bem abaixo da superfície, como um coração que ainda
batia fraco.
— Esse lugar... lembra — disse ele, de repente. —
Lembra tudo. Mas ninguém escuta.
E então, como se tocado por algo invisível, Kai
arquejou. Uma onda de névoa escura escapou pelas
rachaduras do altar, envolvendo-o. Fred avançou, mas
Abbe o segurou.
— Espera — sussurrou. — Olha os olhos dele.

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Os olhos de Kai estavam dourados, mas opacos. Como
se estivessem olhando através de algo… ou de alguém.
Ele murmurava palavras desconexas. Nomes.
Fragmentos. Cidades perdidas. Datas que não sabiam se
pertenciam ao passado… ou ao futuro.
E então, colapsou.
Fred o segurou antes que o corpo tocasse o chão. A
névoa desapareceu tão rápido quanto surgiu.
Kai respirava. Mas não acordava.
— Isso… isso foi o Sussurrador? — sussurrou Fred,
alarmado.
— Talvez — disse Abbe, ajoelhando-se ao lado. — Ou
talvez o eco dele. Mas uma coisa é certa:
As vozes sob o véu estavam começando a falar de
verdade.
Kai permanecia desacordado, o corpo leve nos braços de
Fred, como se a própria névoa tivesse drenado seu peso.
— Vamos sair daqui — disse Fred. — Esse lugar está...
vivo. E não do jeito certo.
Abbe assentiu, os olhos ainda nos símbolos esculpidos
ao redor do salão. — E agora sabe que estamos aqui.
— O Sussurrador. — A voz de Fred soou baixa, como
se temesse dar nome a algo que preferia continuar sem
rosto. — Isso... foi só um fragmento, não foi?

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— Um eco, como a Elira disse. Mas foi forte o bastante
pra atravessar o Kai — murmurou Abbe. — Como se ele
fosse... uma ponte.
Fred não respondeu. Seus olhos estavam fixos no altar
rachado.
Um tremor muito sutil percorreu o chão. Nada que
quebrasse pedras ou fizesse poeira cair. Mas um
estremecer... como um suspiro de algo adormecido que
começa a se virar no sono.
— Temos que sair — repetiu Fred. — Agora.
Carregando Kai nos braços, ele subiu os degraus com
urgência contida. Abbe veio atrás, os olhos sempre
atentos, a mão no cabo da adaga.
Quando alcançaram novamente o corredor acima, o ar
parecia mais frio do que antes. O teatro, silencioso. O
som de seus próprios passos ecoava alto demais.
Passaram pela porta antiga, cruzaram os bastidores e
saíram pelos fundos sem serem vistos.
Só quando estavam a três quarteirões de distância, já
dentro de um beco estreito com caixas vazias e panos
pendendo das sacadas, Fred parou e pôs Kai sentado
contra a parede.
— Acorda, Kai… — murmurou ele, sacudindo-o de
leve.
Kai piscou.

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Uma, duas vezes.
— …Fred?
— Estou aqui — respondeu ele, aliviado. — Você nos
assustou. Desmaiou lá embaixo.
Kai levou uma das mãos à testa, como se ainda sentisse
o eco das vozes.
— Eu... lembro de uma névoa. Fria. E depois... palavras.
Palavras que não eram minhas.
— Você disse nomes. Datas. Cidades que ninguém mais
menciona — disse Abbe, ajoelhada perto. — Sabe o que
eram?
Kai apenas balançou a cabeça.
— Eu não… lembro. É como se algo tomasse meu lugar
por um instante. E depois me apagasse.
Fred respirou fundo. Sentou-se ao lado, deixando os
ombros caírem.
— Isso tá ficando mais intenso. Antes era só instinto.
Agora... parece que você carrega alguma coisa. Algo
que quer ser ouvido.
Kai o olhou, os olhos dourados ainda nublados.
— E se eu for só… um canal pra algo pior?
Silêncio.
Abbe quebrou o momento.

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— Não é só o que você carrega. É o que você faz com
isso. Mesmo sem lembrar… você nos trouxe até aqui.
— E nos fez ouvir — completou Fred.
Kai assentiu devagar, mas a dúvida não havia saído do
olhar.
Eles permaneceram ali por um tempo, o sol já descendo
no horizonte, tingindo as paredes de dourado antigo. A
cidade, ao redor, mantinha sua máscara — mas agora
sabiam que por baixo dela, as vozes choravam.
Abbe olhou para os dois, depois para a direção de onde
vieram.
— Galebran não vai deixar a gente continuar assim por
muito tempo. Se mexemos nesse véu... ele vai começar a
tentar nos silenciar.
Fred pegou um pequeno caderno de couro que guardava
no manto. Rabiscou ali as datas e nomes que lembrava
Kai ter sussurrado.
— A cidade inteira é um enigma — murmurou ele. —
Mas talvez… esses nomes sejam a chave.
Kai fechou os olhos por um instante, o rosto voltado
para o céu alaranjado.
— As vozes não querem ser ignoradas. E a cidade sabe
disso.
Abbe ergueu-se.

85
— Então vamos ouvir.
Fred fechou o caderno.
— Amanhã... vamos descobrir onde mais a cidade
tentou esconder os ecos. O teatro foi só o primeiro.
Kai encarou a cidade ao longe.
E ela parecia… observar de volta.

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Glosário

Gera – As Feras Sem Nome


As Geras são criaturas irracionais, movidas por instinto,
fome e fúria. Elas são o que acontece quando o vazio
toca a carne, quando a ausência de alma se infiltra num
ser vivo. Ninguém sabe ao certo de onde vieram —
algumas lendas dizem que são criações antigas que
escaparam ao controle, outras que nascem dos lugares
onde a realidade falha.
Características das Geras:
 Forma mutável: Elas têm formas grotescas e
desiguais, com membros assimétricos, pele
pálida, escamosa ou podre, e olhos opacos.
Algumas andam como feras, outras pulam como
gafanhotos gigantes. Cada Gera parece única,
mas todas compartilham o ar de degeneração e
desordem.
 Sem razão: São absolutamente irracionais.
Atacam por impulso, são atraídas por luz, som,
sangue e magia. Não falam, não negociam, não
recuam.
 Imunes ao Nomen Dubium: Como não têm
consciência moral, não podem ser desafiadas
nem obedecem a nenhum código. São como
incêndios: só podem ser evitadas ou combatidas.
 Origem misteriosa: Surgem perto de locais
corrompidos, fendas mágicas instáveis, ou

87
lugares esquecidos pela civilização. Muitas
vezes são precursores de calamidades maiores.

Yullaks – Montarias Selvagens de Valerick


Os Yullaks são animais de carga e montaria, nativos das
regiões frias e montanhosas de Valerick. Conhecidos
por sua força, resistência e temperamento difícil, eles
são os preferidos para longas viagens onde cavalos
comuns não aguentariam.
Características Físicas:
 Tamanho robusto, similares a um cruzamento
entre búfalo e javali, com patas fortes e casco
largo.
 Pelagem espessa que varia do cinza ao marrom
escuro, protegendo-os do frio.
 Possuem uma crina curta e eriçada, e uma
armadura natural de ossos protuberantes na testa
e ombros.
 Suas presas curvadas servem tanto para escavar
neve quanto para se defender.
Comportamento:
 São inteligentes para padrões animais, mas
irracionais – não obedecem ordens complexas
como uma criatura consciente faria.

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 Precisam de tempo para se acostumar com os
donos — são agressivos com estranhos e outras
criaturas.
 Em batalha, podem ser usados como aríetes ou
suporte de carga pesada.
Os Ruínicos
Ruínicos são seres conscientes que quebraram o Nomen
Dubium, violando a sagrada lei imposta por Zamir, e
sofreram as consequências espirituais por isso. Ao
desafiar ou ferir outro ser racional sem declarar ou
aceitar um Nomen Dubium, essas almas se corrompem
lentamente, perdendo fragmentos da própria
humanidade e mergulhando em um estado de ruína
espiritual.

Origem do Nome
O termo ―Ruínico‖ vem da expressão ancestral
"Marcados pela Ruína", usado pelos clérigos de Zamir.
Ao se tornarem foras-da-lei espirituais, essas pessoas
passam a emanar uma presença instintivamente
inquietante, perceptível até por crianças e animais.

Características:
 Aparência Física: Varia conforme o grau de
corrupção. Os mais marcados apresentam pele
cinzenta, olhos negros, veias saltadas, ausência

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de reflexo e mutações bizarras como dedos
longos demais ou articulações invertidas.
 Aura: Exalam um sentimento de desconfiança,
opressão ou medo mesmo sem dizer uma
palavra.
 Comportamento: Tendem à frieza, manipulação,
violência impensada ou fanatismo. Aos poucos,
perdem empatia, sono e senso de certo e errado.

Transformação:
A corrupção ocorre em etapas, chamadas de "Escalas da
Ruína":
1. Primeira Escala – o ser sente remorso, mas é
assombrado por pesadelos e sensação de ser
observado.
2. Segunda Escala – a alma começa a se afastar das
outras, e seus traços físicos começam a mudar.
3. Terceira Escala – o indivíduo perde a capacidade
de sentir empatia; sua voz e olhar tornam-se
perturbadores.
4. Quarta Escala – torna-se algo entre humano e
monstro, incapaz de distinguir justiça de
vontade.
5. Ruínico Pleno – agora um ser amaldiçoado,
vagando entre os mundos, caçado por guerreiros

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de Zamir, incapaz de retornar à humanidade sem
sacrifício.

Consequências e Regras:
 Podem ser mortos sem Nomen Dubium, pois já
não têm honra espiritual. É o equivalente a um
"excomungado existencial".
 Não pisam em templos de Zamir, pois suas
presenças fazem as relíquias e encantos reagirem
violentamente.
 Alguns buscam redenção, mas o caminho é
brutal — exige penitência, provas e um
Julgamento Espiritual.

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