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ROMA Portugues de Africa

O documento discute a escolha da língua portuguesa como língua oficial nas ex-colônias africanas, refletindo sobre as implicações políticas e linguísticas dessa decisão. A autora analisa a evolução da presença do português em África e as tensões entre a língua do colonizador e as línguas africanas, destacando a complexidade da identidade linguística e cultural. A adoção do português como língua de alfabetização e sua função na unidade nacional são abordadas, assim como as tentativas de ensino bilíngue que enfrentaram desafios significativos.

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ROMA Portugues de Africa

O documento discute a escolha da língua portuguesa como língua oficial nas ex-colônias africanas, refletindo sobre as implicações políticas e linguísticas dessa decisão. A autora analisa a evolução da presença do português em África e as tensões entre a língua do colonizador e as línguas africanas, destacando a complexidade da identidade linguística e cultural. A adoção do português como língua de alfabetização e sua função na unidade nacional são abordadas, assim como as tentativas de ensino bilíngue que enfrentaram desafios significativos.

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Isabel.leiria@netcabo.

pt
Roma3. 30.03.07

Português em África / Português de África?

A hesitação que este título revela é pertinente para o que pretendo dizer nesta exposição.
A mesma hesitação tive há anos quando orientei duas teses em Lisboa, uma feita por um
estudante angolano e outra feita por uma estudante moçambicana. Discutimos muito os títulos
das teses, que acabaram por se chamar Complementos verbais Preposicionados do Português
em Angola e a outra Clíticos Pronominais do Português de Moçambique. A hesitação e a
escolha que foi feita entre as preposições em e de estão sem dúvida relacionadas com o estatuto
da língua portuguesa nas ex-colónias (o que é uma questão de política linguística) e estão
também relacionadas com a questão da existência ou não de variedades nacionais em formação
no espaço africano (questão de natureza estritamente linguística.)

Abordarei, em primeiro lugar, a questão do ponto de vista da política linguística e só


depois do ponto de vista estritamente linguístico.

No que respeita à política linguística, as questões que se põem são: porquê escolher
como língua oficial a língua do colonizador em detrimento de uma língua africana (ou de
várias)? Teria sido a escolha do Português a melhor opção? Em que medida a língua do
colonizador se torna património nacional ao ser escolhida como língua oficial?
Nas respostas que têm sido dadas a estas perguntas é possível distinguir entre a posição
de africanos, de ex-colonizadores e de outras pessoas que se interessam pelo assunto.

Para traçar a história da presença da Língua Portuguesa em África, não é preciso recuar
ao tempo dos descobrimentos. Como observou Perpétua Gonçalves,

"mesmo admitindo que o início do processo de implantação [do Português] em África data de há
cerca de cem anos, este período relativamente longo, não pode ser tomado como um continuum
homogéneo […] visto que as independências nacionais representam uma quase ruptura na
dinâmica que esta língua tinha nos países africanos no período colonial” (Gonçalves 2004)

Recuemos então até aos anos quentes da luta armada, mais exactamente até seis ou sete
anos antes da independência das colónias portuguesas em 1975.

Não é difícil adivinhar a posição do regime português da época face às questões


linguísticas, que se acha sintetizada numa obra – "A Língua Portuguesa no Mundo" – de Jorge
Morais-Barbosa, publicada pela Agência-Geral do Ultramar, em 1968. Como explica o autor,
"por ter sido objecto de tão desvanecedor interesse […] pareceu haver alguma vantagem em
reeditá-la," em 1969.

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É particularmente relevante para o que nos interessa o capítulo final do livro,


"Problemas Actuais," em que trata da unidade da língua e do "estabelecimento da norma
linguística." Reconhece diferenças entre o Português que se fala em Portugal e o que se fala no
Brasil, mas desvaloriza a questão lembrando a "batalha de prestígio que tanta tinta fez correr
entre as variedades de Lisboa e Coimbra." Reconhece a variação social no espaço brasileiro,
mas afirma que "o que, de qualquer modo, importa acentuar é o facto de linguistas e filólogos
brasileiros serem os primeiros a defenderem que no Brasil, como em Portugal, se fala
português" (Morais-Barbosa 1969:149). No que respeita a África, lembra escritores
"ultramarinos" que têm contribuído para o "enriquecimento [do português] ao contacto com as
culturas e instituições regionais" e acentua que, "porque não é possível legislar sobre a evolução
linguística," "os estudos que vierem a efectuar-se com vista ao estabelecimento da [norma
portuguesa] deverão necessàriamente ter em conta as principais variedades do português
ultramarino" (Barbosa 1969: 148-150).

Morais-Barbosa, ao longo da obra, não foge à questão da presença do português em


contexto multilingue. Certamente consciente do futuro que se avizinhava, e do fim de um
Portugal formado por tantas "regiões" como as que vão do Minho a Timor, evoca o exemplo das
ex-colónias inglesas e francesas, que "se têm recusado a oficializar as línguas autóctones,"
"preferindo a da antiga potência colonial, francesa ou inglesa". E justifica:

"a oficialização de todas as línguas faladas num país representaria o regresso ao tribalismo e
portanto a pulverização daquele, e a oficialização de uma só criaria graves problemas políticos
ao ferir as susceptibilidades dos grupos étnico-linguísticos desfavorecidos." (Morais-Barbosa
1969:143)

Quanto ao ensino das línguas africanas, toma mais uma vez o exemplo de ex-colónias
para defender o ensino da língua da potência colonizadora e não o das línguas autóctones.
Aprendê-las é uma perda de tempo (a sua "utilidade seria mais que duvidosa" (Morais-
Barbosa1969:144-5). Isto não significa que não devam ser estudadas a nível universitário. Mas
as ex-colónias francesas e as inglesas não adoptam política igual em relação à língua de
alfabetização; o francês, no caso das ex-colónias francesas; no caso das ex-colónias inglesas,
línguas africanas nos primeiros anos, e, mais tarde, em inglês. Sempre segundo Morais-Barbosa,
tem inconvenientes esta última opção, tais como a dificuldade em formar professores que
alfabetizem em línguas africanas. Além disso, conclui:

"como a língua condiciona a cultura que veicula, o ensino e a consequente aprendizagem numa
língua africana implicam a elaboração de uma mentalidade, de uma forma de pensar que
deverá ser abandonada quando se passar a uma língua europeia..."

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e "esse é talvez o maior inconveniente da alfabetização numa língua que virá a ser abandonada
passados alguns anos." (Morais-Barbosa1996:146).

É interessante constatar que, na mesma altura em que estas palavras eram escritas,
Amílcar Cabral, o ideólogo africano que mais influência teve na formação dos opositores ao
regime colonial português, desvalorizava a relação entre a língua e a cultura que ela veicula, ao
afirmar:

“temos que ter um sentido real da nossa cultura. O português (língua) é uma das melhores coisas
que os tugas nos deixaram, porque a língua não é prova de nada mais, senão um instrumento,
um meio para falar, para exprimir as realidades da vida e do mundo". 1

Bem diferente era a posição de autoridades estrangeiras como Giuseppe Tavani. Num texto seu
de 1975, encontramos a seguinte reflexão:

“um grupo africano que faça sua a expressão linguístico-literária do antigo colonizador – seja ele
francês, inglês ou português – não poderá elaborar e transmitir, nesta forma, a sua experiência
original e autónoma do real, mas, quando muito, conseguirá inserir nela qualquer fragmento
isolado dessa experiência.” (Tavani (1975-76 / 1988: 517-518)

Tavani critica, neste texto, a posição assumida pelos movimentos de libertação durante
o 1º Festival Cultural Pan-Africano, que teve lugar em Argel, no Verão de 1969. Ao contrário
da delegação argelina, que chamou a atenção para o perigo de manter a língua da antiga
potência colonizadora, o chefe da delegação do PAIGC (Partido Africano para a Independência
da Guiné e Cabo Verde) e porta-voz dos outros movimentos de libertação de Angola e de
Moçambique limitou-se a propor, nas palavras de Tavani, “a codificação das línguas africanas e
o seu uso na instrução das massas, para os estudos e para adaptá-las às necessidades do mundo
moderno.” Esta referência genérica, comenta Tavani, evidencia uma falta de consciencialização
político-ideológica do problema em questão, que, pouco depois, se manifestaria na adopção, por
parte do PAIGC, do português como língua de alfabetização das massas dos territórios
libertados, em evidente contraste com as sugestões do Manifesto e com a experiência da
confinante República da Guiné-Conakry. Ainda hoje, Amílcar Cabral continua a ser visto como
o mentor desta opção.

Foi assim que, alcançada a independência, as cinco ex-colónias, Angola, Cabo Verde,
Guiné-Bissau, Moçambique e S. Tomé e Príncipe, acabaram por adoptar a língua portuguesa
como língua oficial. O facto suscitou justificadamente interrogações. Sendo a língua portuguesa

1
Citado por Cabral 2005.

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“vista e sentida como um instrumento de dominação,” “que ponderáveis razões teriam estado na
base desta decisão?” O escritor Manuel Ferreira, em 1990, faz a pergunta e responde-lhe assim:
“factores políticos, ideológicos, culturais, administrativos, etc., estão na base das grandes
decisões linguísticas tomadas por tais países.” E acrescenta: "Estranho destino, mas o
pragmatismo ditou a lei” (Ferreira1990/1995: 141). Pragmatismo é o que podemos ler nestas
palavras de Samora Machel, num discurso proferido em 1978 2:

“Alguns vão dizer que a Campanha Nacional de Alfabetização é para valorizar a Língua
Portuguesa. Em que língua é que vocês gostariam que nós desencadeássemos a Campanha de
Alfabetização? Em Macua, em Maconde, em Nyanja, em Changane, em Ronga, Ndau, em
Chuabo?” (Samora Machel 1978)

Na verdade, colaborando no processo de unidade nacional, sobrepondo-se à consciência


étnica, a língua portuguesa foi, ironicamente, um dos instrumentos mais valiosos ao serviço da
ideologia revolucionária dos Movimentos de Libertação. O moçambicano Lourenço do Rosário
diz:
“Todos os opositores do uso da língua portuguesa em Moçambique, por exemplo, foram
apodados de reaccionários e contra o processo de unidade nacional. Eram, muitas vezes,
relacionados com todos aqueles que, ao longo da história nacionalista, de uma forma ou de outra,
foram considerados traidores. Deste modo, se infere que pugnar pelo afastamento do português
do papel de única língua oficial era equivalente a uma conspiração contra a segurança do Estado.
(Rosário 1993: 111) 3

Ao impor o Português como língua obrigatória na educação, na informação, no sistema


judicial e jurídico, a sua expansão, no dizer de Lourenço do Rosário, “ foi natural e pode dizer-
se mesmo que aquilo que os portugueses não puderam fazer ao longo de todo o período de
colonialismo, fê-lo a Frelimo numa década.” (Rosário 1993: 111) E fê-lo sem complexos. Quem
o diz é Samora Machel:

“É a língua de unidade nacional. E não temos complexos (…) nós enriquecemos a Língua
Portuguesa, não somente a falamos, mas estamos a enriquecer a Língua Portuguesa.” (Samora
Machel 1981)

A consciência de que o uso de uma língua em diferentes espaços contribui para o seu
enriquecimento traz, por arrastamento, um sentimento de posse, assim expresso por um ministro
da informação de Angola em 1990 4:

2
Citado por Cabral 2005:28.
3
Ver também Firmino 1998:253.
4
27 de Julho de 1990, no discurso de encerramento do II Congresso da União dos Jornalistas Angolanos.

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“Perdida a sua função colonizadora, a Língua Portuguesa deixou de ter proprietários


exclusivos”…

Esta ideia vinha ganhando espaço, também em Portugal, desde o debate acalorado, em
1985, sobre o Acordo Ortográfico. Apesar de muitas vozes preconceituosas de políticos,
escritores e outros que, por falta de informação sobre os mecanismos que regulam a variação e a
mudança linguísticas, temiam a sua “degradação,” outros viam a sua apropriação por diferentes
povos como o melhor caminho para a preservação. Os linguistas não defendiam mais a
insustentável unidade da Língua Portuguesa, como no final dos anos 70, mas reconheciam a
existência de duas variantes nacionais (o Português Europeu e o Português Brasileiro) e a
inevitabilidade de, no espaço africano, outras estarem em formação.

Não se pense, contudo, que a unanimidade tem sido absoluta entre os africanos (do
mesmo modo que não tem sido entre os portugueses), não quanto à opção do português como
língua oficial, mas como primeira e única língua de ensino e de alfabetização. Estrangeiros,
africanos e portugueses, conscientes das desvantagens para as línguas e para os seus falantes
que acarreta a alfabetização numa Língua Segunda (em alguns casos, podemos dizer mesmo
Língua Estrangeira), têm tentado fazer ouvir a sua voz.
Experiências de ensino bilingue têm sido ensaiadas, mas sem grande sucesso. Na Guiné-Bissau,
por exemplo, no ano lectivo de 1977/78, com o apoio de Paulo Freire, foram criados Centros de
Educação Popular Integrada (CEPI). Foi decidido utilizar "a língua comunitária, o crioulo, como
língua de ensino para melhor facilitar a aprendizagem dos conteúdos e a inserção das crianças
na escola." Os resultados não foram muito visíveis, porque nas zonas de implantação dos CEPI
(manjaca, balanta e bijago) o crioulo não era língua veicular para estas populações, porque se
continuava a fazer sentir a influência dos ensinamentos de Amílcar Cabral (a língua oficial é o
português) e porque "a população tem uma atitude passiva e às vezes mesmo negativa quanto à
introdução do crioulo" (Barreto 2005). Este resultado pouco animador não trouxe, no entanto,
qualquer benefício para a divulgação do português. Embora não haja dados estatísticos, é sabido
que, actualmente, a língua veicular na Guiné-Bissau é o crioulo e que o Português tem de
concorrer com o Francês, língua oficial do Senegal, país que faz fronteira com a Guiné-Bissau e
onde procuram trabalho muitos guineenses.

Em Angola, até ao momento, parece não ter havido quaisquer experiências de ensino
bilingue, já que, só recentemente, o Ministério da Educação admitiu a hipótese de introduzir no
sistema de ensino algumas línguas consideradas nacionais (Cabral 2005:20).

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Em Moçambique, entre 1992 e 1996, foi desenvolvido um programa experimental de


ensino bilingue, sob orientação de investigadores da Universidade de Estocolmo, conhecido
como PEBIMO. Segundo a avaliadora externa do projecto, "os resultados obtidos eram mistos,
devido, principalmente, às dificuldades que o projecto experimentou na aplicação de um modelo
bilingue apropriado" (Benson 1998:295). De qualquer modo, os resultados parecem não ter
convencido todos os investigadores moçambicanos, até mesmo aqueles que, pela sua formação
anglo-saxónica, são insuspeitos. Exemplificando com o Lingala no Zaire e o Chichewa no
Malawi, Gregório Firmino afirma:

“A visão idílica de que as línguas africanas promovem o igualitarismo e neutralizam as


desigualdades foi refutada pelos resultados da investigação que mostram que o uso de algumas
destas línguas produz efeitos negativos comparáveis aos que usualmente se associam às línguas
ex-coloniais” (Firmino 2002:20).

Na sequência desta aceitação inquestionável da língua portuguesa como língua oficial, e


por muitos como língua de escolarização, Gregório Firmino propõe que lhe seja atribuído o
estatuto de língua nacional. Depois de dar outras razões, refere o facto de ter sido adoptada pela
FRELIMO como "língua oficial do movimento durante o levantamento anti-colonial", e por ter
sido usada, desde a independência, "como símbolo de unidade nacional."5 Como consequência,
reconhece Firmino, o Português, em Moçambique, entrou num processo de nativização
(Firmino 1998:259-263). E não só. Exactamente o mesmo fenómeno está em curso em Angola.
José Eduardo Agualusa, na edição do dia 23 de Setembro de 2006 do jornal Público, dá-nos
testemunho deste facto, citando um discurso do Presidente de Angola, do dia 11 do mesmo mês
e ano:

"Devemos ter a coragem de assumir que a Língua Portuguesa, adoptada desde a nossa
Independência como língua oficial do país e que já é hoje a língua materna de mais de um
terço dos cidadãos angolanos, se afirma tendencialmente como uma língua nacional em Angola.
Isso não significa de maneira nenhuma, bem pelo contrário, que nos devemos alhear da
preservação e constante valorização das diferentes Línguas Africanas de Angola, até aqui
designadas de 'línguas nacionais', talvez indevidamente, pois quase nunca ultrapassam o
âmbito regional e muitas vezes se estendem para além das nossas fronteiras."

Mas a referência à nativização dá-nos a deixa para introduzirmos o segundo tema desta
exposição: a existência ou não de uma variedade de referência (ou de tantas variedades quantos
os países em que o português é língua oficial).

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Não vai muito longe o tempo em que se faziam trabalhos de investigação sobre o
estado do português em África com base em textos literários. Luandino Vieira e mais
recentemente Mia Couto foram os autores mais usados para esse fim.6 Lourenço do Rosário, já
em 1993, tinha chamado a atenção para a inadequação deste procedimento:

“É estranha e digna de apreensão a leveza com que em Portugal, até em círculos com certo grau
de responsabilidade, se tomam os textos literários como fonte segura para a verificação do estado
da língua portuguesa nestas paragens.” (Rosário 1993:114).

De facto, sendo o texto literário o mais acessível para a investigação, ele foi muitas
vezes usado como se se tratasse de documento fiável para fins linguísticos. O mesmo Lourenço
do Rosário, em 1989, foi, creio eu, se não o primeiro pelo menos um dos primeiros, fora dos
circuitos estritamente dos linguistas, a usar, num curto artigo publicado na saudosa RILP
(Revista Internacional de Língua Portuguesa), material escrito não literário: cartas ao editor do
jornal “A voz de África”. Rosário afirma a propósito das cartas que transcreve:

“as cartas devem ser lidas em voz alta para melhor captação dos efeitos fonéticos e sintácticos. É
de supor que os seus autores as tenham composto também em voz alta, numa produção que
recria os ambientes narrativos da tradição oral.” (Rosário 1989:32).

Concordo com a utilidade de ler estas cartas em voz alta para se entender o texto, como
se pode fazer para Saramago. Mas não concordo com a hipótese de elas terem sido escritas em
voz alta para recriar ambientes narrativos da tradição oral. Atribuir a factores etno-linguísticos
certos fenómenos, neste caso os relacionados com a aquisição da modalidade escrita, é vulgar,
mas não é certamente uma explicação adequada, pois se trata apenas de uma aprendizagem
deficiente dos processos de construção do texto escrito. Encontramos dados semelhantes em
materiais produzidos por jovens africanos urbanos (que não creio terem contacto com essas
tradições) como os encontramos em jovens e adultos portugueses deficientemente escolarizados.
Não podem, portanto, ser encarados como característicos de uma gramática intermédia, logo
desviante em relação ao modelo (no caso africano, do Português Europeu). Este é um dos
exemplos de crenças sobre certos fenómenos cuja explicação é meramente linguística.

Outra crença, relacionada com o fenómeno de nativização, confere ao contacto com as


línguas africanas, em especial com as da família bantu, a responsabilidade pela maior parte dos
desvios do Português Africano em relação à norma de referência do Português Europeu. Na
verdade, a maior parte desses desvios situa-se em áreas de instabilidade que são comuns a todas
as variedades do Português: comuns às do Português Brasileiro (especialmente às variedades
populares), às variedades africanas (atrevo-me a dizer, às do estádio adulto escolarizado), mas

6
Veja-se, por exemplo, Salvato Trigo 1981. Muitos outros, usando o mesmo material, viram a luz do dia.

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também às do Português Europeu (até mesmo de sujeitos com um nível de instrução médio).
Embora a investigação realizada até ao momento não nos permita ser peremptórios, podemos
referir duas ou três áreas de instabilidade, nem sempre a evoluir na mesma direcção, assim
caracterizando as variantes nacionais: o sistema de formas de tratamento; a selecção e colocação
dos pronomes clíticos (o, a, lhe, lhes..); e a selecção de preposições.

Também é possível encontrar áreas particularmente instáveis só observáveis na


produção oral dos falantes. Mas, como é mais fácil trabalhar com dados de escrita e a pesquisa
no terreno não se acha muito desenvolvida, o estudo do oral e a caracterização através dele das
variedades africanas do português têm sido descurados.

Percorrendo jornais recentes dos vários países, verifiquei que o número de desvios, nas
áreas que identifiquei como instáveis, é muito reduzido, o que fazer pensar na intervenção
regularizadora de revisores de imprensa.7 Mesmo assim, algumas ocorrências parecem passar o
crivo de uma eventual revisão. Vou dar um exemplo.

Nos processos de elocução dos africanos, reconhecem-se traços característicos que


distinguem a sua fala da dos europeus (e da dos brasileiros). Não só falam "como homens
descansados", como Fernão de Oliveira caracterizava os portugueses do século XVI, mas
também há diferenças quanto ao grau de abertura e ao timbre de algumas vogais. O Português
Europeu tem uma distinção pouco produtiva, mas que a ortografia consagra, entre [a] e [].
Assim, distingue entre entramos, presente do indicativo, e entrámos, pretérito perfeito, quer na
oralidade quer na escrita. Essa mesma distinção parece não ser feita no Português Africano.
Encontrei disso abundante evidência em números recentes de jornais. Veja-se o seguinte texto
extraído da primeira página de um jornal são-tomense:

"A história conta-se em poucas linhas. O Chefe de Estado escreveu a Assembleia solicitando
autorização para se deslocar a Líbia e a Nigéria. Fradique de Menezes disse a imprensa que levava
consigo a Vice-Primeira Ministra e Ministra do Plano e Finanças com a missão especifica de
negociar com o seu homólogo libio apoios financeiros para fazer face a difícil situação económica e
financeira que o país atravessa. (Correio da Semana 06.05.2006 pp. 1)

Como é sabido, esta também não é uma questão absolutamente pacífica no Português
Europeu. Todos os exemplos assinalados a negro correspondem a pronúncias fechadas da vogal
que, em Português Europeu, seriam uma vogal aberta e acentuada graficamente, [a] e não [].
Neste comportamento africano, há quem veja a interferência do vocalismo das línguas bantu,
mas também é possível explicá-lo pela manutenção da indistinção entre [a] (aberto) e []

7
Porém, uma observação mais fina leva-me a supor que haverá uma diferença entre textos de colunistas e
reportagens, sendo mais provável encontrar nos segundos alguns desvios em relação ao PE.

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(fechado) que caracterizava o português medieval e que ainda se encontra em certos dialectos.
As variedades africanas não são necessariamente áreas de inovação da língua, pois também
podem conservar traços abandonados pela normalização centralizadora.

Em contrapartida, a mesma preposição a ([]), que como é sabido não passou para
nenhum dos crioulos de base lexical portuguesa, e que, tanto no Português Brasileiro como no
de África, é, em muitos contextos, substituída pela preposição em,8 serve-nos para exemplificar
um caso que pode ser considerado como de transfer das línguas bantu.

Perpétua Gonçalves (1996) estudou as ocorrências da preposição a num corpus


constituído por documentos escritos e orais, produzidos por estudantes universitários, nos quais
"parece possível encontrar algumas tendências estáveis da norma culta do Português de
Moçambique." Como é sabido, ainda que a preposição a, em Português Europeu, reja
obrigatoriamente o Objecto Indirecto (OI), há também alguns Objectos Directos (OD) que
podem ser regidos por ela, facto que torna a sua distribuição bastante opaca, em particular para
falantes do português Língua Segunda. Da análise dos dados fornecidos pelo corpus, Gonçalves
conclui que os falantes de Português de Moçambique generalizam esta possibilidade e inserem-
na junto de constituintes com a função gramatical de Objecto Directo sempre que este possui o
traço [+humano].9 Este comportamento é explicado pela autora como sendo uma reinterpretação
do papel desta preposição: ela passa a ser um marcador relacionado com a semântica do
complemento seleccionado pelo verbo, e não um marcador sintáctico com a função de introduzir
este complemento, como acontece em Português Europeu. Podemos pôr a hipótese de que este
fenómeno esteja relacionado com o facto de a distinção semântica [+ - humano] ser marcada
gramaticalmente nas línguas com as quais o Português está em contacto: as línguas bantu. Este
é um bom exemplo de que casos de transfer das línguas bantu, que não negamos existirem, só
poderão ser identificados recorrendo a instrumentos teóricos sofisticados e não com a mera
observação de ocorrências soltas.

A guerra colonial e sobretudo as guerras civis que se lhe seguiram, e a consequente


deslocação de populações para as capitais de Moçambique e de Angola, fizeram do Português a
única língua veicular disponível com uma função comparável à desempenhada pelo crioulo na
Guiné-Bissau, onde falam crioulo os deslocados das suas regiões de origem; aos que nelas
permanecem bastam as respectivas línguas nacionais. Como é evidente, a condição de língua
veicular é transitória: o que é veicular para uma geração será língua materna para a geração

8
Ver Cabral 2005:174.
9
Entre outros, são exemplos fornecidos pela autora: o professor alerta aos alunos; a filha do imperador amou ao
Manuel; a natureza não pode dominar ao homem.

9
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seguinte. Parece ser o que está a acontecer em Angola e Moçambique com o Português, à
semelhança do que acontece com o crioulo em Cabo Verde:

"É do senso comum que, cada vez mais, se fala menos Português em Cabo Verde." (Santos
2004)

Nos anos 80, era bem visto falar uma variedade do português com características
próprias. Actualmente há evidência de que, tanto em Angola como em Moçambique, se procura
uma conformidade cada vez maior com a norma do Português Europeu.10 Mais uma vez por
razões pragmáticas, suponho. Provavelmente porque precisam de uma norma, de uma referência
para o ensino e para outros fins socio-políticos, e estabelecê-la exige tempo e investigação. Até
a estabelecerem, tomarão como referência a do Português Europeu. Os africanos parecem assim
ser (continuarem a ser) reféns de uma situação que o colonialismo lhes impôs. As elites, por
pragmatismo ou porque a educação colonial lho inculcou (ou por ambos), escolheram aquilo
que, no seu entender, é o mal menor: a língua do colonizador como língua oficial. Por isso, mais
tarde ou mais cedo, se as coisas continuarem assim, o Português será de África, do mesmo
modo que é já (ainda?) do Brasil. Do mesmo modo que é de Portugal.

R EFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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10
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10
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