História Do Elyon Shaddai
História Do Elyon Shaddai
Elyon
Shaddai
Prévia: Em um mundo onde magia e tecnologia coexistem, a humanidade aprendeu a evoluir…
não apenas por necessidade, mas por pura sobrevivência. Quando as criaturas infernais do
Continente Negro cruzaram as fronteiras do mundo humano, a guerra tornou-se inevitável.
Espadas começaram a carregar runas arcanas. Armas de fogo passaram a disparar projéteis
encantados. Guerreiros comuns foram transformados em lendas vivas. Entre todos eles… um
homem se destacou. Um herói nascido da união entre ciência e feitiçaria. Um soldado capaz de
enfrentar o impossível… e matar o primeiro Rei Demônio com as próprias mãos. Anos
depois… esse homem teve um filho. Um gênio. Uma criança destinada a carregar o legado de
poder e destruição. Crescendo entre treinamentos brutais e lições de guerra, esse garoto foi
forjado no sangue e na disciplina. Quando a guerra explodiu novamente, ele partiu para o campo
de batalha… e foi lá… em meio ao horror e à perda… que o verdadeiro monstro dentro dele
despertou. Tomado por uma fúria incontrolável, ele aniquilou dezenas… talvez centenas de
inimigos… deixando um rastro de corpos e silêncio atrás de si. O tempo passou… e daquele
homem, nasceram dois filhos. Dois prodígios. Dois jovens destinados à grandeza. Mas o
destino… sempre cobra seu preço. Numa noite sem estrelas… a tragédia caiu sobre eles. Os
demônios retornaram. Famintos. Implacáveis. E em questão de horas… o herói e a guerreira…
pai e mãe… estavam mortos. A irmã… gravemente doente, vítima de uma maldição sombria. O
filho mais novo… aquele que um dia sonhara em ser como o pai… só conheceu o sabor da
perda e da culpa. Agora… com as mãos sujas de sangue e o coração queimando em ódio, ele fez
um juramento: Matar cada demônio que ousasse respirar neste mundo. Não importa
quantos. Não importa onde. Não importa o preço. A caçada começou. E o nome dele… será
lembrado entre os vivos e temido entre os mortos.
Prologo
Capítulo 1
No ano de 1270 da Era do Quinto Sol, quando as estrelas pareciam vacilar no firmamento e os
ventos uivavam como presságios em cada fenda de pedra, uma anomalia sacudiu as colunas do
mundo conhecido. Das profundezas insondáveis do oceano Oriental — além das rotas comerciais
dos homens do norte e das terras selvagens de Hyllanor — emergiu, como que por vontade de
forças arcanas esquecidas, um continente até então ausente dos mapas e memórias dos sábios.
Chamaram-no os homens de Continente Negro, não apenas por sua coloração escura e rochosa,
mas por uma presença profana que dele exalava, como se a própria terra exsudasse pecado.
Nessa nova terra, o céu permanecia eternamente encoberto por nuvens de fuligem e trovão. Jamais
se via sol ou estrela, e a noite, indistinta do dia, reinava como soberana sobre campos de ossos,
florestas retorcidas e rios de águas fétidas e estagnadas. A vegetação, se assim se podia chamar, era
composta por árvores de casca carmesim e folhas como lâminas, e havia fungos que brilhavam em
pútrido violeta, exalando vapores que adoeciam a alma antes do corpo. Era um mundo invertido,
onde a vida se debatia contra si mesma.
O Continente Negro não era simplesmente uma terra; era uma entidade viva de corrupção e
desespero, um pesadelo enraizado na própria essência do mundo. A vastidão que se estendia diante
dos olhos dos invasores era um abismo de trevas em que a luz parecia ser uma lembrança
esquecida. As montanhas escarpadas erguiam-se como dentes afiados contra um céu que nunca se
abria, suas cristas envoltas em neblinas pútridas, carregadas do cheiro de morte e enxofre. O solo
sob as botas dos guerreiros não era terra, mas uma crosta escura e endurecida, trincada como
cicatrizes de batalhas milenares, e por vezes rompida por fissuras das quais exalavam vapores
venenosos que queimavam a pele e entorpeciam a mente.
As florestas que cobriam parte das planícies não eram refúgios verdes, mas labirintos vivos de
árvores de casca carmesim, cujos galhos se entrelaçavam como garras tentando prender qualquer
um que ousasse atravessá-las. As folhas, afiadas como lâminas, farfalhavam com um som metálico
que parecia o sussurro cruel de espíritos torturados. Fungos luminescentes, em tons púrpura
doentios, cresciam em aglomerados, emitindo um brilho fúnebre que iluminava trilhas de morte e
sofrimento. A atmosfera era espessa e sufocante, como se a própria essência da vida fosse corroída
ali.
Das fendas daquela terra surgiram os demônios — criaturas informes, de corpos dilacerados e
recompostos com carne roubada, moldados por magia profana e antigos pactos de sangue.
Portavam bocas onde antes havia olhos, braços onde deviam estar as costelas, e falavam em línguas
esquecidas, que corroíam os ouvidos dos homens ao serem ouvidas. Junto deles vinham bestas
bípedes, humanóides de aspecto selvagem, dotadas de inteligência bruta e ódio instintivo contra
todas as raças vivas. Os primeiros a enfrentá-los foram exploradores e pescadores costeiros, cujos
navios retornaram partidos ou não retornaram nunca.
No coração do continente erguia-se o Trono do Vazio, uma fortaleza esculpida com ossos antigos
e pedra sangrenta. Suas torres retorcidas desafiavam as leis da arquitetura e da razão, e muitos que
tentaram mapeá-la enlouqueceram antes de terminar. Dizia-se que ali não vivia ninguém — apenas
esperava-se o retorno do soberano prometido: o Rei do Fim, o Ceifador das Raças.
Por alquimia, rituais e sacrifícios, surgiram os Despertos. Cada um era único, uma junção de poder
e dor. E por um tempo, pareciam suficientes. As linhas de frente estabilizaram. Vilas foram salvas.
Mas a paz era uma ilusão tênue, pois os demônios também evoluíam.
Num ritual realizado nas profundezas do Trono do Vazio, as almas de generais caídos e sacerdotes
profanos foram fundidas. Do fogo e da carne surgia Vlad, o primeiro Rei dos Demônios. Seu
corpo era uma amalgama de destruição, sua mente um turbilhão de eras e ódios. Com um gesto,
Vlad queimava florestas. Com um grito, despedaçava montanhas.
E então, no mais profundo dos salões do Conselho Arcano, no ventre de pedra da Torre Cinzenta
de Del'Vahr, foi iniciada uma obra que ultrapassava os limites da sanidade e da ortodoxia mágica.
Os Arcanistas, mestres da Tradição e da Heresia, reuniram não apenas seus maiores grimórios,
mas também sangue de dracos anciões, fragmentos do véu entre os mundos, lágrimas de deuses
esquecidos e cinzas de heróis mortos há eras. Combinaram alquimia com encantamentos
proibidos, forjando um receptáculo de carne e espírito: um menino, moldado ainda no ventre por
encantamentos estabilizadores, nutrido por fluxos de mana pura que percorriam a própria
fundação da torre.
Foi-lhe dado o nome de Lordran Arnheid, em honra a uma linhagem extinta de guerreiros cuja
coragem fora celebrada antes do Primeiro Crepúsculo.
Desde o primeiro suspiro, sua alma pulsava com poder bruto. Aos três anos, falava línguas arcanas
como se fossem canções de ninar. Aos sete, invocava pequenos círculos de fogo dourado, e aos
nove, rompeu por acidente o chão de obsidiana da torre em um surto de energia elemental. Seus
tutores não eram homens comuns: aprendia estratégia com generais centenários, disciplina com
monges que jejuavam por décadas, combate com mestres de cinquenta estilos marciais, e magia
com elfos que lembravam o nascimento das estrelas.
Durante sua juventude, foi marcado pelas Sete Runas Vivas, símbolos sagrados e conscientes, que
ardiam em seu corpo e sussurravam segredos antigos nas noites de lua dupla. Cada uma
representava uma força primordial: Fogo, Sangue, Vento, Terra, Luz, Sombra e Tempo. Nenhum
outro ser havia portado mais do que três sem se consumir.
Sua arma foi forjada no Coração de Gaia — uma câmara de magma viva, sob o Monte Vur-Kharan.
Ali, anões e dragões trabalharam lado a lado, pela primeira vez em eras, para moldar a Espada de
Sangue dos Céus, feita com os ossos de uma estrela cadente e temperada nas lágrimas de uma
deusa que chorou o destino dos mortais. A lâmina era leve como o pensamento, mas pesada como
o julgamento.
Lordran cresceu não como um príncipe mimado, mas como uma forja viva de sacrifícios. Dormia
entre as pedras, treinava sob chuvas de lâminas, meditava em desertos onde o tempo estagnava.
Cada cicatriz era um capítulo daquilo que ele se tornava: não apenas um guerreiro, mas um
símbolo. O legado dos vivos. O terror dos mortos. A centelha de um mundo ainda por renascer.
Quando completou vinte e três invernos, desceu da Torre Cinzenta, montado sobre um grifo de
penas negras, portando sua lâmina e as runas acesas. Sua chegada às Terras Fronteiriças foi um
prenúncio: onde antes reinava o silêncio do medo, ergueu-se o clamor da esperança.
O que se seguiu foi um único e colossal ato de guerra — um teatro de destruição e bravura, onde
cada cena era escrita com sangue e aço. Vinte campeões, ornados com as armas e esperanças de
todos os povos livres, cruzaram os portões do mundo profano. À sua frente, o Continente Negro
estendia-se como uma ferida viva no tecido do mundo — campos de cinzas negras, montanhas
que sussurravam em línguas mortas, rios que corriam para cima e desaguavam em abismos. A terra
rangia sob seus pés como se gritasse contra sua presença.
Ao primeiro passo, enfrentaram os vermes gigantes de Sarn-Okk, criaturas que se arrastavam sob
o solo e emergiam como colunas de carne e mandíbulas para devorar as colunas de marcha. Flechas
benditas e lanças rúnicas mal conseguiam deter suas investidas. O campeão dos halflings, Thirim
da Lança Dourada, perdeu a perna, mas fincou sua arma no olho do verme maior antes de tombar
com honra. Seu nome seria entoado nos salões da eternidade.
A segunda marcha os levou às planícies rubras de Nyzzar, onde o próprio céu ardia. Ali
enfrentaram as bestas aladas de carapaça metálica — demônios do vento, montados por cavaleiros
espectrais, cuja presença rasgava a sanidade. Arcanistas conjuravam escudos de luz, e as armas
cantavam em uníssono. Foi ali que a druida Kael'wyn, filha das Florestas Eternas, invocou raízes
ancestrais que perfuraram a rocha demoníaca, derrubando sete dos monstros em um só comando.
No terceiro avanço, adentraram o Vale das Vozes Mortas, onde os próprios mortos clamavam por
alívio. Os espectros dos que ali haviam caído — soldados humanos, elfos, até mesmo demônios
— flutuavam em desespero eterno, buscando corpos para possuir. Foi neste vale que Lordran,
diante da perdição iminente de seus irmãos de armas, ergueu a Espada de Sangue dos Céus aos
céus e recitou o Canto do Silêncio Eterno. A luz das runas se inflamou, e, num clarão como o sol
do meio-dia, as almas foram libertas, e o vale se calou pela primeira vez em séculos.
Após isso, a Aliança enfrentou os Guardiões de Mar'Khaal — colossos demoníacos com vinte
metros de altura, olhos de fogo e pele de ferro fundido. Combatendo por cinco dias sem cessar,
montanhas foram partidas e rios desviados. O guerreiro anão Durrik Martelo de Ossos partiu o
calcanhar de um deles com sua marreta encantada, enquanto a maga aasimar Elystra conjurava
uma prisão prismática que conteve outro tempo suficiente para que Lordran abrisse seu peito com
três golpes abençoados. Ali, caiu o último dos colossos.
No último dia, o clangor das lâminas soava como o rufar de tambores de guerra, ecoando pelas
torres retorcidas do castelo amaldiçoado. Cada golpe era um trovão que fazia o chão tremer,
enquanto as magias negras de Vlad irrompiam em tempestades de sombras e fogo sombrio,
tecendo feitiços que queimavam e corroíam o ar ao redor. Lordran, firme como uma rocha
esculpida pelos ventos do destino, desviava com destreza e revidava com golpes precisos, suas
lâminas cortando o ar com a fúria dos antigos heróis.
Em um momento de fúria concentrada, Lordran desferiu um golpe brutal que rasgou a armadura
infernal de Vlad, dilacerando-lhe o braço direito em um banho de sangue escarlate. Mas o Rei dos
Demônios, em sua ira monstruosa, desfez a guarda do espadachim, abrindo um corte largo na
armadura sagrada que o protegia, expondo carne e osso ao aço cruel.
Então, num salto audaz, como um falcão que mergulha sobre a presa, Lordran lançou sua espada
ao ar — uma lâmina reluzente que cintilou sob o fogo eterno — e, com um movimento ágil e
certeiro, cravou uma adaga encantada no braço, com um estalo horrendo que ecoou pela fortaleza
sombria.
O rugido furioso de Vlad reverberou nas paredes ancestrais, mas a vitória estava próxima, pois
naquele instante o destino se inclinava para o lado do herói imortal.
Cada golpe de Lordran cortava o ar com a fúria de mil tempestades, sua lâmina arrancando fendas
na pele imortal do Rei demoníaco, até que, num instante de pura audácia, ele dilacerou o outro
braço de Vlad — o mesmo que havia fincado sua adaga — fazendo jorrar sangue negro como tinta
das feridas abertas.
Por sua vez, Vlad contra-atacava com brutalidade, desfazendo a armadura encantada do campeão
em estilhaços e estalidos metálicos, cada investida carregada de um poder sombrio que fazia
estremecer os alicerces do castelo.
Então, Lordran, movido pela desesperança e pela esperança, lançou sua espada com precisão letal
— a lâmina cravou-se firme, enquanto sua outra mão empunhou uma adaga encantada, fincando-
a com um rugido de triunfo no peito do monstro, quase acertando seu coração com violência e
abrindo um caminho para a vitória.
— Diga-me, Vlad, acaso valeu o derramamento de sangue? Todo o caos e sofrimento? Olha a ti
mesmo, só e derrotado, prostrado diante do que desprezaste. Qual foi o preço de tua ambição?
— Eu fui forjado para manter o equilíbrio entre luz e trevas. Sou o caos que impede a estagnação.
Sou a sombra que lembra à luz sua finitude. Se cair aqui, que assim seja. Mas que nunca esqueçam:
a paz tem preço, e a guerra é eterna.
Por fim, Lordran ceifou suas pernas e, com lâmina no coração, pôs fim ao Rei dos Demônios. O
silêncio caiu pesado. Naquele momento, Lordran sentiu pena não do corpo inerte, mas da alma
aprisionada a um destino cruel. Até que um pensamento rápido cruzou sua mente: talvez Vlad,
como todos, fora mera peça num jogo ancestral, manipulado por divindades insondáveis.
Essa ideia, súbita e fulminante, inflamou a alma do herói com um fogo que queimava mais intenso
do que qualquer chama forjada nas profundezas do mundo. Não era apenas a ira comum dos
mortais, mas uma fúria transcendente, nascida do reconhecimento brutal de sua própria condição
— um peão num tabuleiro governado por forças invisíveis, cujos fios se entrelaçavam
silenciosamente nos bastidores da existência.
Cada pensamento se tornou um trovão retumbante em sua mente, um grito lancinante contra a
implacável teia do destino que tecia sua vida e a de todos os seres — humanos, deuses e demônios
— num emaranhado de manipulações e jogos antigos. Ele viu diante de si não apenas o fim de
Vlad, o Rei dos Demônios, mas a verdadeira raiz do sofrimento: o poder obscuro e insondável
que manobrava as sombras do universo, os senhores silenciosos que ditavam o fluxo das eras e o
equilíbrio frágil entre luz e trevas.
O juramento que fez, então, ecoou como um trovão soturno na vastidão da alma do mundo: lutaria
contra esses fios invisíveis, contra os mestres do destino que se ocultavam nas profundezas do
cosmos e nos recantos esquecidos do tempo. Sua batalha não seria apenas por vingança ou justiça,
mas por liberdade — a liberdade de escolher seu próprio caminho, de romper as correntes
invisíveis que mantinham todas as coisas sob um controle cruel e implacável.
O peso dessa decisão era esmagador, como carregar sobre os ombros o próprio firmamento, mas
também iluminava um caminho incerto e perigoso, onde poucas almas ousaram pisar. A guerra
contra Vlad era apenas um capítulo encerrado, uma batalha visceral contra o mal tangível e visível,
mas a verdadeira guerra — aquela que lutaria contra as sombras do poder supremo, contra a
própria essência do destino — estava apenas começando.
O silêncio que se seguiu foi denso e profundo, como se o próprio ar segurasse a respiração diante
da magnitude daquele momento. Em seus olhos, além do cansaço e da dor, brilhava agora uma
chama nova: a chama da rebeldia eterna, do guerreiro que desafia até mesmo os deuses.
Capítulo 2
No ano de 1271 da Era do Quinto Sol, quando as cicatrizes da guerra ainda queimavam como
brasas sob as ruínas do mundo, um silêncio sepulcral recaiu sobre os campos que outrora
bradaram com o clangor de espadas e o rugido de demônios. O firmamento, outrora tingido de
fogo e sombra, tingia-se agora de um cinza melancólico — como se até os céus lamentassem o
preço da vitória. Das vinte almas que marcharam sob o estandarte da Aliança das Raças Livres
rumo ao coração enegrecido do Continente Negro, apenas uma retornou com vida. Uma única
chama que não se apagara.
Lordran Arnheid — o guerreiro forjado por ritos arcanos e fornalhas de desespero — caminhava
solitário por entre as carcaças de horrores mortos e companheiros tombados. Sua armadura,
outrora reluzente como a alvorada, agora estava tingida de fuligem, de sangue, de lembranças. As
runas que adornavam seu corpo queimavam em um brilho tênue, como se exauridas pela
magnitude do embate final. Seus passos, pesados e lentos, faziam eco por entre vales devastados,
montanhas partidas e florestas mortas, até finalmente chegar aos portões de pedra cinzenta de
Khar Valdrah, a capital dos homens livres.
Ali, sob os olhos atônitos de reis, soldados, camponeses e arcanistas, Lordran ergueu o que
restava do inimigo derradeiro: a cabeça de Vlad, o Rei dos Demônios. Seu rosto decapitado ainda
exalava um fedor de trevas ancestrais, e seus olhos — mesmo sem vida — pareciam zombar do
mundo. Lordran a lançou aos pés do trono, e com a voz rouca e seca como o vento das planícies
do leste, disse apenas: “Missão cumprida.” Nenhum louvor foi solicitado. Nenhuma glória
desejada. Sem aguardar os clamores ou honrarias, Lordran envolveu-se em sua própria sombra e
desapareceu pela noite, deixando para trás os cantos de um povo salvo e os murmúrios de um
herói partido.
Anos se passaram, e o herói viveu não como um semideus, mas como um homem — um
homem que havia dançado com os deuses da morte e voltado. Tinha vinte anos quando aceitou
um novo papel, não mais como instrumento da guerra, mas como cavaleiro da corte, conselheiro
tático, protetor silencioso dos reinos que sobreviveram. Seu nome, sussurrado em tavernas e
celebrado em canções, tornara-se sinônimo de esperança, mas também de melancolia. As lendas
falavam de um olhar que carregava a eternidade da guerra e o vazio de mil mortes.
Foi num entardecer de outono, quando as folhas dançavam como lembranças douradas ao sabor
de ventos ancestrais, que o destino selou um encontro cujas consequências ecoariam além da
vida e da morte. Após retornar de uma patrulha às margens das Colinas Cinzentas, Lordran
Arnheid dirigia-se à Grande Biblioteca de Eldurwen — não por sede de conhecimento, mas por
respeito a um pedido feito por um velho conselheiro moribundo, que lhe confiara um tomo
antigo, selado em couro de basilisco, contendo profecias riscadas por mãos que viveram antes da
Primeira Aurora.
A biblioteca, templo silencioso de saber, erguia-se entre pilares de mármore negro e janelas em
vitral esmeralda, onde o tempo parecia dobrar-se em reverência. Ali, entre corredores cheios de
poeira encantada e pergaminhos que sussurravam nomes de reis esquecidos, Lordran avistou-a
pela primeira vez.
Selena Shaddai.
Estava sentada diante de um círculo de velas azuis, sua mão pairando sobre um grimório aberto,
enquanto símbolos de luz flutuavam no ar, moldando fórmulas ancestrais que até os mestres
hesitavam em pronunciar. Seus cabelos, negros como breu de meia-noite, caíam em ondas sobre
os ombros, e seus olhos — profundos, serenos, tão antigos quanto os segredos que estudava —
brilharam, não de espanto, mas de reconhecimento, como se já o conhecessem antes mesmo que
ele dissesse palavra.
Lordran, que já enfrentara horrores forjados no âmago do Continente Negro, sentiu algo que
jamais experimentara: uma quietude que não era fraqueza, mas entrega; não era temor, mas
contemplação. Pela primeira vez desde o fim da guerra, seu espírito, tão moldado por aço e
sangue, encontrava repouso em algo que não era pedra ou espada, mas na presença de alguém
cuja força vinha da sabedoria, e não da lâmina.
Ele não respondeu de imediato. Seus olhos, acostumados a buscar fraquezas e calcular ângulos
de ataque, agora buscavam sentido naquele olhar que não julgava, mas compreendia. E então,
pela primeira vez em muitos anos, Lordran sorriu — não um sorriso de triunfo, mas de
reencontro, como se algo há muito perdido houvesse voltado a arder dentro dele.
Foi ali, naquele santuário do saber, entre sombras suaves e luzes vacilantes, que começou o laço
entre o herói e a sábia. Não nasceu com juras ou promessas, mas com silêncios partilhados, com
respeito mútuo, com a certeza muda de que um reconhecia no outro aquilo que o mundo havia
tentado apagar: humanidade.
E naquele momento sagrado, o mundo continuou girando — mas algo, na tapeçaria do destino,
foi reescrito.
Selena e Lordran uniram-se não apenas pelo afeto, mas por propósitos convergentes. Enquanto
ele se dedicava à Academia de Guerreiros, onde transmitia o conhecimento das mil batalhas que
vivera, Selena reconstruía bibliotecas, recuperava manuscritos profanados pela guerra e buscava
compreender os segredos da magia primordial. Juntos, viviam em uma propriedade modesta nos
arredores da corte, onde as manhãs nasciam em brumas suaves e as noites morriam sob o
sussurro de estrelas ancestrais.
A vida ali era simples, mas plena: a luz do alvorecer pintava o lar com tons dourados; os treinos
de espada sob o sol do meio-dia se alternavam com leituras à sombra das vinhas; ao entardecer,
Selena preparava infusões de ervas e contava lendas antigas, enquanto Lordran reparava sua
armadura ou afiava a espada, agora mais por hábito do que por necessidade. À noite, partilhavam
silêncios carregados de significados, em que o toque das mãos dizia mais que as palavras.
Mesmo nas eras de ouro, o mal semeia raízes nas fendas do tempo. Os demônios remanescentes,
outrora dispersos como poeira, reuniam-se em círculos obscuros. Florestas profanadas
ocultavam rituais esquecidos. Cavernas vomitavam sombras antigas. A paz que cobria o reino era
uma tapeçaria delicada, e Lordran sabia — no âmago de sua alma calejada — que ela se
romperia.
Em 1273, Lordran foi nomeado Comandante Supremo das Forças do Reino. Sua experiência e
honra incontestável o tornaram figura inquestionável no Conselho Real. Selena, agora arquimaga
de Tol'Yareth, era consultada por sábios de todo o mundo conhecido. Pareciam inquebrantáveis.
Sete anos mais tarde, na alvorada do ano de 1280, nasceu o fruto sagrado daquela união: Eron
Shaddai Arnheid. Desde o instante em que abriu os olhos — vermelhos como rubis sob o luar
— os presságios foram incontáveis. Ventos mudaram de direção, animais silenciaram, as runas
que adornavam o lar de Lordran brilharam por dia. O menino era herdeiro não apenas de sangue
nobre e poder arcano, mas de um destino entrelaçado com forças maiores.
Aos dois anos, invocava luzes dançantes que respondiam às emoções. Aos cinco, superava os
acólitos da escola do mosteiro em todas as provas — desde a recitação das escrituras sagradas até
os duelos simulados de magia. Não era apenas poder. Era algo mais: um elo oculto, uma centelha
que parecia antecipar um chamado cósmico. Foi nesse contexto que estudiosos o submeteram a
exames místicos, alquímicos, astrais. Descobriram que o sangue de Selena, apesar de adormecido,
carregava um traço berserker — uma mutação primal oriunda de seu avô ancestral. Em Eron,
esse gene estava desperto. Mas inacessível, como uma chama contida num braseiro de gelo. Algo,
alguém, ou alguma hora viria a quebrar o lacre.
Eron viajou com os sábios, conheceu templos esquecidos, provou do orvalho das florestas vivas,
absorveu os idiomas dos deuses esquecidos. Mas mesmo com tudo isso, seu coração ainda
ansiava pelas noites junto ao pai, ouvindo histórias sob a lareira; pelo toque suave da mãe ao
limpar-lhe o rosto coberto de tinta arcana.
Era uma noite qualquer — ou parecia. Mas o céu, subitamente, se tingiu de vermelho escarlate,
como se a própria atmosfera sangrasse. Dele, rasgando-se como véus, surgiram portais: espirais
negras, girando com gritos e promessas de ruína. As hordas demoníacas, mais numerosas que
nunca, desceram como uma tempestade viva. Lordran empunhou sua lâmina. Selena ergueu
runas de contenção. Mas o ataque era coordenado, planejado, guiado por uma nova inteligência.
Arcad — o novo Rei Demônio, nascido não apenas do caos, mas da putrefação da alma de Vlad,
entrelaçado à essência corroída de mil demônios tombados em eras passadas — erguia-se como
um monólito de ódio encarnado. Seus olhos, não meramente flamejantes, mas verdadeiras
fornalhas ardendo com a dor de incontáveis gerações, perfuravam a realidade. Cada passo seu
parecia reverberar por entre as linhas do mundo como um sino de fim, arrastando a própria
gravidade com sua presença. Sua armadura era feita de placas negras como a noite sem estrelas,
talhadas com ossos trêmulos de antigos reis infernais, fundidas por blasfêmias antigas e forjadas
no âmago de abismos onde a luz jamais ousara tocar.
Ele não hesitou. Não recuou. O gesto foi súbito, mas carregava séculos de rancor: ordenou o
ataque direto à morada de Lordran Arnheid — o herói, o mito, o símbolo ainda vivo de uma
vitória que os demônios jamais esqueceram. As ordens foram transmitidas não por voz, mas por
um grito mental que atravessou os planos como uma flecha do destino, e seu exército respondeu
como se fosse uma única criatura movida por instinto e fúria ancestral.
No coração do massacre, Selena Shaddai não recuou. Ainda que arrastada por tentáculos de
energia profana, seus olhos mantinham a serenidade de quem conhece o peso de seu sacrifício.
Suas mãos, mesmo presas, desenhavam no ar símbolos ancestrais, tecendo encantamentos de
selamento com palavras em línguas esquecidas, protegendo não a si mesma, mas seu filho, onde
quer que estivesse. Seu sussurro era tão suave quanto o toque da brisa sobre a relva orvalhada,
mas em seu âmago havia fogo — um fogo de amor e promessa. Cada sílaba lançada ao ar era um
escudo, uma muralha invisível entre Eron e o horror que se avolumava.
Lordran, por sua vez, estava aprisionado. Correntes etéreas, feitas de almas condenadas e ferro
espiritual, envolveram seus braços e pernas, prendendo-o ao chão como se a própria terra o
traísse. Rugiu com a força de mil trovões, sua fúria sendo ecoada pelos ventos. Seus olhos,
banhados em lágrimas e raiva, assistiram, impotentes, à destruição de seu lar, à dor de sua amada.
Cada instante parecia se prolongar por eternidades, pois o tempo, naquele momento, parecia
saborear a agonia do herói.
Selena, mesmo diante da morte certa, não gritou. Não pediu clemência. Apenas olhou para
Lordran — um último olhar, que continha toda a sua história: o primeiro toque sob os salgueiros
do templo, o riso compartilhado ao pé da lareira, o nascimento de Eron, as noites em silêncio
abraçados sob o céu. E então, como que devolvendo ao mundo o que de melhor tinha, ela foi
consumida. Não por simples destruição, mas desfeita em essência por um feitiço devorador, um
encantamento que rasgava a alma para alimentar os fornos do inferno.
Lordran berrou, o som de sua dor rompendo as camadas do véu entre os mundos. E então, veio
o ato final: Arcad, caminhando com a solenidade de um carrasco e a crueldade de um deus caído,
ergueu uma lâmina forjada com as penas de anjos mortos e o osso do primeiro traidor. Sem dizer
palavra, com um gesto frio e impiedoso, decapitou o herói. Não por honra. Não por piedade.
Mas por desafio — um desafio lançado aos céus, aos homens, aos próprios deuses.
A cabeça de Lordran rolou pelo chão, seus olhos ainda abertos, não de surpresa, mas de dor
contida e revolta eterna. Arcad desejava que o mundo visse. Que os bardos cantassem. Que os
templos silenciassem. Que os sonhos fossem assombrados. O herói estava morto. E o novo
mundo, o mundo das trevas, renascia sob sua sombra.
Assim tombou Lordran Arnheid. Não em glória. Mas em sacrifício. E com sua queda, as
esperanças dos Reinos Livres balançaram como velas prestes a apagar-se sob a ventania de um
destino sombrio.
Quatro dias depois, Eron, retornando de um templo longínquo, viu apenas cinzas e corpos.
Nenhuma lágrima caiu. Ele apenas caminhou em silêncio até as cinzas da casa. Lá, retirou um
fragmento de armadura de seu pai — e o guardou no peito.
Foi então levado ao orfanato militar de elite. Lá, sob o açoite da disciplina e a vigília das sombras,
cresceu. Aos nove anos, já superava guerreiros adultos. Força, velocidade, magia — tudo fluía
com naturalidade.
Ali, nas muralhas austeras do orfanato militar de elite, onde o rigor substituía o afeto e a
disciplina moldava os ossos como ferros na bigorna, Eron conheceu aquela que viria a ser não
apenas sua rival, mas sua mais complexa aliada e silenciosa paixão: Shiena Voss. Era uma elfa
distinta, pertencente a um clã ancestral cujas raízes mergulhavam nas florestas encantadas de
Thal'Quessar, e cuja linhagem carregava os últimos fragmentos da antiga magia lunar. Seus
cabelos, de um tom violáceo que parecia absorver a luz do entardecer, caíam como seda
encantada até a cintura. Seus olhos, prateados como o luar refletido sobre o gelo, não apenas
viam — penetravam, desnudavam intenções, desafiavam verdades.
Desde o primeiro dia em que cruzaram olhares no campo de treino, uma tensão silenciosa se
formou, mais afiada que qualquer lâmina. Shiena não se curvava a elogios, não se comovia com
bravura alheia, e tampouco se deixava intimidar pela fama que seguia Eron como uma sombra.
Em vez disso, provocava-o. Desafiava-o nos treinos com golpes precisos e estratégias
imprevisíveis, testando seus limites físicos e emocionais. Humilhava-o com acertos calculados e
palavras certeiras, mas, em momentos de crise, era a primeira a estender-lhe a mão, a se colocar
entre ele e o perigo — como se a rivalidade fosse, na verdade, uma linguagem secreta que apenas
os dois compreendiam.
Com o tempo, suas disputas deixaram de ser apenas combates físicos. Tornaram-se debates
filosóficos, trocas de olhares prolongados, silêncios carregados de significados. Eram espelhos
um do outro — refletindo as falhas, as dores, as cicatrizes. Espinhos que, ao se entrelaçarem,
protegiam mutuamente o que havia de mais puro em seus corações. E raízes… raízes que
cresceram lentamente, firmando-se nos cantos mais ocultos da alma, nutridas pela admiração
mútua, pela cumplicidade inabalável e por um amor que, embora jamais confessado em palavras,
já se manifestava no modo como se protegiam, como lutavam lado a lado, como se olhavam
após cada batalha.
A magia, outrora guia e dádiva, começava a enlouquecer. Runas se desfaziam sob os dedos dos
magos, encantamentos se rebelavam contra seus conjuradores, e correntes arcanas que antes
fluíam como rios obedientes agora se agitavam como serpentes furiosas. As estrelas se moviam
em padrões erráticos, e os céus tornaram-se mapas ilegíveis dos presságios.
Reinos que por séculos coexistiram, ainda que por trégua instável, fecharam-se sobre si
mesmos como conchas feridas, erguendo muros e queimando pontes. Alianças foram
quebradas por medo, orgulho ou desespero. Os reis e rainhas, antes soberanos das decisões,
agora tremiam em seus tronos, traindo súditos e juramentos em troca de promessas vazias de
salvação.
Eron Shaddai Arnheid — já não apenas herdeiro de um nome, mas um guerreiro moldado em
ferro, dor e silêncio — sentia a mudança antes que ela se tornasse visível. Sentia-a nas raízes
do solo, no ar rarefeito das manhãs, no sussurro das pedras, no espelho onde os próprios olhos
lhe devolviam algo mais antigo que sua juventude. Um pressentimento visceral — não de
morte iminente, mas de ruptura. Como se o mundo não fosse mais capaz de conter sua própria
história.
E ele sabia, no íntimo de sua alma calejada, que a verdadeira guerra apenas começava. Não
aquela que se luta com exércitos, mas aquela que dilacera por dentro — onde se escolhe entre ser
máquina da tradição ou arauto de um novo destino.
Ali, no limiar entre passado e abismo, Eron enfrentava sua encruzilhada suprema. Podia
empunhar a espada que herdara em sangue e cumprir o papel esculpido por gerações — tornar-
se mais um herói entre muitos, arrastado como um peão pelo jogo cruel dos deuses e da guerra.
Ou… poderia romper o ciclo eterno de glória e tragédia, abandonar a repetição de destinos
herdados, e trilhar uma estrada inominada, perigosa, onde cada passo fosse escolha sua.
Um caminho onde sua humanidade não fosse uma fraqueza, mas uma força ancestral.
Onde a dor não fosse apenas combustível para a fúria, mas ponte para a compaixão. Onde o
amor — sim, aquele que guardava em silêncio por sua amiga, pelos pais perdidos, pelo mundo
em ruínas — fosse mais que uma lembrança: fosse uma força criadora.
Pois nas cinzas da antiga era, entre os escombros dos impérios e os gritos dos moribundos,
somente aquele que ousasse reescrever o próprio destino — rasgar os rolos sagrados,
desafiar a lógica dos deuses, e erguer uma nova verdade com as próprias mãos — poderia
sobreviver. E mais que isso: poderia vencer.
Capítulo 3
No silêncio fúnebre das florestas ancestrais e nos vales eternamente encobertos por névoas
pútridas, o Continente Negro, há muito esquecido pelos bardos e oculto dos mapas oficiais,
voltou a respirar. Não com o fôlego vibrante da vida, mas sim com a respiração pesada da morte,
da corrupção e do renascimento profano que brotava como um câncer ancestral, consumindo a
terra e o ar ao redor.
As raízes das árvores retorcidas, grossas como serpentes petrificadas, emergiam da terra
amaldiçoada como garras famintas, arrancando a essência da terra com força brutal. Suas copas,
fechadas e sufocantes, pendiam carregadas de frutos deformados — olhos palpitantes que
seguiam cada passo dos incautos que adentravam o território; bocas costuradas com fios de
sombra que sussurravam orações em línguas esquecidas, cujos sons, mesmo imperceptíveis,
faziam o sangue gelar nas veias. O ar, denso e pesado como um véu de luto, parecia pressionar
os pulmões de quem ousasse respirar perto das fronteiras malditas.
Rios outrora secos ressurgiam como veias de lodo fervente, carregando carcaças meio
dissolvidas, fragmentos de civilizações condenadas e o eco de gritos agônicos que ecoavam além
da razão, como se os mortos clamassem por justiça ou vingança eterna. Cada inspiração naquele
ar pútrido era um sacrifício silencioso; cada passo, um desafio à própria morte que parecia
espreitar a cada sombra.
Sob o comando implacável de Arcad, o novo Rei dos Demônios — forjado não em útero
mortal, mas no caldeirão arcano que restou da queda de Vlad — a terra pulsava como uma ferida
aberta e maldita no ventre do mundo. Arcad não era apenas um ser de fúria; seus olhos, brasas
líquidas vertidas da alma de antigos reis demoníacos, vigiaram os confins de sua terra com
voracidade predatória. Sua mente, fria e calculista, comandava seus exércitos com precisão
assustadora, movendo cada tropa como peças em um jogo divino onde cada cidade conquistada
era menos uma vitória e mais um rito sacrificial sangrento.
Fortalezas demoníacas surgiam como tumores sobre a carne viva do mundo. Cada bastião
erguido sobre antigos campos de batalha carregava a dor e o sofrimento das almas que ali
tombaram. Ossadas humanas se amontoavam entre vigas feitas de carne fossilizada; torres
erguiam-se como ossos erodidos de dragões mortos, e estandartes feitos de pele viva tremulavam
sob ventos carregados de maldições. Altos altares pulsavam ritmicamente, alimentando-se de
oferendas horrendas — corações ainda palpitantes sacrificados aos Deuses Sombrios cujos
nomes enlouqueciam até os mais fiéis escribas.
Nos laboratórios profanos, como úlceras pulsantes no chão, alquimistas grotescos — corpos
costurados e reanimados por necromancia — criavam horrores que desafiavam a razão: quimeras
de membros desproporcionais, olhos brotando de estômagos inchados, asas de corvos surgindo
das costas como lâminas afiadas. Não guiadas pela ciência, mas pelo desespero do abismo, essas
aberrações eram armas vivas da perversidade.
Arcad esperou vinte longos anos — não com impaciência, mas com a calma letal de um
predador que observa a presa adormecer. Os Reinos Livres, embriagados pela paz conquistada a
preço de sacrifícios, baixaram as armas, dissolveram seus conselhos e relegaram os grimórios às
prateleiras empoeiradas, esquecendo os horrores do passado. Na embriaguez da tranquilidade,
suas muralhas enfraqueceram, a vigilância cedeu, e seus corações tornaram-se complacentes.
Então, como o bater sombrio de asas de um corvo sobre um campo de sepulturas, os sinais
vieram. Mensageiros mutilados cruzaram continentes, guiados apenas pelo medo absoluto.
Aldeias desapareciam da noite para o dia; sombras devoravam colheitas; trombetas feitas de
ossos humanos ecoavam pelas planícies, anunciando o terror iminente. Cada história parecia um
delírio, mas todas eram terrivelmente verdadeiras.
Valembrim, a última grande fortaleza da Aliança das Raças Livres, tornou-se o centro do mundo.
As brasas da antiga chama reacenderam-se com temor e dever. Magos despertaram de longos
silêncios; clérigos abandonaram votos de silêncio; guerreiros que penduraram suas armas há
muito tempo empunharam-nas novamente, com dedos trêmulos, mas olhos firmes. A guerra
verdadeira, brutal e inexorável, retornava ao palco dos vivos.
Antes da aurora, enquanto a névoa ainda se agarrava às pedras frias das muralhas de Valembrim,
a fortaleza já despertava em um sussurro de aço e magia. Nos corredores estreitos, soldados
afiavam suas lâminas, ajustavam armaduras e murmuravam orações apressadas. O ar estava
pesado, impregnado do cheiro de ferro, suor e incenso queimado — o perfume das batalhas
iminentes.
Eron Shaddai Arnheid levantava-se cedo, seu corpo ainda marcado pelas batalhas passadas. Os
primeiros raios de sol filtravam-se por uma pequena janela de vidro fosco em seu aposento
espartano. Vestia a armadura leve, reforçada com fragmentos encantados, e revisava
meticulosamente sua espada Estelgard, limpando a lâmina com um pano macio, enquanto as
runas pulsavam com um brilho azulado.
Perto dali, Shiena Voss praticava movimentos fluidos com um arco antigo, entalhado em
madeira negra e adornado com folhas prateadas. Seu olhar era de concentração absoluta, e cada
flecha disparada perfurava o silêncio do campo de treinamento. Entre uma série e outra, ela
recitava encantamentos de proteção, suas palavras ecoando suaves como uma canção.
Os comandantes reuniam-se em uma sala ampla, iluminada por tochas tremeluzentes. Mapas de
couro estendido cobriam a mesa central, mostrando as posições inimigas e as defesas da
fortaleza. Ali, vozes firmes debatiam estratégias, equilibrando esperança e cautela.
O jantar era simples, composto de pão rústico, queijo forte e um caldo quente — mas ninguém
comia por prazer. As mentes estavam consumidas pelo peso do que vinha pela frente.
“Kael’thor pode ter sido derrotado, mas os portais ainda sangram,” disse Eron, apontando para
o mapa estendido diante deles. “Não temos tempo para comemorações. O inimigo é mais vasto
e cruel do que jamais enfrentamos.”
Harol, um comandante corpulento com o rosto marcado por cicatrizes profundas, respondeu:
“Precisamos reforçar as muralhas sul e norte. Os demônios atacam em ondas — perder essas
posições significa abrir caminho para o coração da fortaleza.”
Shiena, com seus olhos como lâminas afiadas e voz firme, acrescentou: “Os escudos mágicos
resistem, mas seu poder está diminuindo a cada hora. Sem nossos magos, seremos varridos.
Precisamos garantir a proteção dos conjuradores e manter as runas intactas.”
Lira, uma mulher ágil com uma cicatriz fina cruzando seu rosto, falou com voz rápida: “Nossas
patrulhas relataram movimentações suspeitas nas florestas próximas. Criaturas corrompidas,
provavelmente sentinelas do Abismo. Não podemos subestimar o que vem por trás das
sombras.”
Shiena colocou a mão no ombro de Eron, sua voz carregada de confiança: “Eron, não é apenas
seu fardo. Estamos juntos nisso. Confie em nós, como confiamos em você. A guerra se vence
com união, não com impulsos solitários.”
“Eu sei..., mas carrego a herança de Lordran, e não posso falhar. Não posso deixar que sua
memória seja manchada,” respondeu ele, visivelmente cansado, mas determinado.
Harol assentiu com firmeza. “Você não está sozinho nessa luta, jovem herdeiro. Somos muitos
— e é na nossa união que está a esperança.”
Shiena sorriu com convicção: “Os demônios sentem o medo, Eron. Se mostramos fraqueza, eles
avançam. Mas se erguermos juntos nosso escudo — não há escuridão que possa nos apagar.”
Com um olhar firme e quase um sorriso triste, Eron concluiu: “Então que venha o amanhecer.
Que seja o primeiro passo da nossa última defesa.”
Quando o sol finalmente rompeu o horizonte, o céu parecia tingido por sombras ancestrais,
carregado pelo peso das magias que se chocavam sobre a fortaleza. Feitiços flamejantes e
relâmpagos congelantes explodiam contra os portões de pedra enquanto catapultas anãs
lançavam projéteis que faziam o chão tremer.
Montado sobre Olvar, seu corcel negro de origem mística, Eron era uma tempestade viva. Sua
espada Estelgard brilhava com luz azulada, lançando faíscas toda vez que tocava o sangue
demoníaco. O som das lâminas sussurrava runas antigas, prometendo justiça e vingança.
A batalha era um coral de gritos, trovões e tambores de guerra. O chão rachava sob o peso dos
colossos, o céu explodia em chamas. Lanceiros humanos formavam muralhas de carne e
coragem; magos conjuravam tempestades e terremotos com dedos ensanguentados. Gritavam-se
nomes dos mortos, e os vivos respondiam com glória e fúria.
No coração do caos, ergueram-se duas figuras que selariam o destino de milhares. De um lado,
Eron Shaddai Arnheid, herdeiro do sacrifício, forjado em cicatrizes e profecias partidas. Do
outro, Kael’thor, o Primeiro Sangue das Legiões do Abismo — um colosso que não nascera de
útero mortal, mas de um ritual antigo, fundindo cem almas de guerreiros derrotados com a
essência de um demônio esquecido.
Kael’thor era maior que um ogro, sua armadura viva pulsava como carne metálica que sangrava
por fendas rúnicas. Cada passo fazia o chão recuar com medo. Sua espada, uma torre de dor e
ruína, tinha entalhes que pareciam trovões esculpidos em aço.
Eron avançou em silêncio, sua armadura uma sinfonia de movimentos contidos, sua espada
cantando em azul e prata, guiada pelas vozes dos ancestrais. Kael’thor gargalhou — uma
gargalhada gutural, que fazia o sangue gelar.
“Outro herdeiro. Outro cordeiro. Outro tolo,” ecoou sua voz, multiplicada por cem.
Doze minutos de confronto incessante: espada contra espada, magia contra maldição, chão
rachado, céu rasgado.
Cada golpe de Kael’thor era um terremoto; cada movimento de Eron, uma prece ancestral. O
peso da linhagem pulsava com força devastadora em sua alma.
Kael’thor liberou o selo em seu peito, abrindo uma segunda boca entre as costelas e soltando um
grito primal que lançou exércitos para longe e abriu fendas no solo.
Eron cambaleou, mas não caiu. Respirou fundo, reuniu forças e avançou, flutuando entre força e
fúria contida. Com um golpe único, cravou Estelgard no centro do tórax do monstro, onde batia
o coração das trevas.
Kael’thor rugiu, ergueu a cabeça e lentamente começou a desintegrar-se. Sua armadura rachou,
carne evaporou como névoa sob o sol, e as sombras berraram tentando fugir. Eron segurou
firme, olhos fixos, corpo inabalável.
O colosso virou pó e cinza; sua espada partiu-se e sumiu com o vento. O chão rachado se
recompôs lentamente.
O céu ainda sangrava. As fendas cuspiam luz púrpura, e os gritos e explosões distantes não
cessavam.
Shiena, nos salões do castelo, entalhava runas com mãos feridas, ofegante, mantendo o escudo
mágico que barrava novos horrores. Ela sabia — aquilo não era o clímax, mas apenas o
prenúncio.
O Continente Negro não era mero pedaço de terra esquecida, mas um organismo sombrio, vivo
e pulsante, um abismo faminto que devorava tudo ao redor. Suas florestas murmuravam
segredos proibidos; suas fortalezas eram cicatrizes abertas contra o céu; seus exércitos cresciam
em número e crueldade.
Por longos anos, a Aliança das Raças Livres manteve-se firme contra as investidas impiedosas
das forças das trevas, sustentada por heróis e guerreiros que não buscavam glória, mas apenas a
preservação da existência. Entre esses nomes que se gravaram na memória dos poucos que
sobreviveram, estava Eron Shaddai Arnheid — jovem de coração forjado na dor e na
determinação, cuja coragem e poder incansáveis mantinham viva, mesmo nas horas mais
sombrias, a tênue chama da esperança.
A chama não era um fogo exuberante ou vibrante, mas uma brasa quase esquecida, que
ameaçava se apagar sob o peso do desespero e das perdas incontáveis. Era uma luz trêmula,
muitas vezes sufocada por tempestades de sangue, traição e dúvidas, mas jamais extinta. Eron
sabia que seu papel não era o de um salvador absoluto, um guerreiro invencível que seria
lembrado em cantos de bardos. Sua missão era mais dura, mais silenciosa: era a de ser um farol
para os que ainda caminhavam na escuridão, o alicerce em que se apoiavam os desamparados.
Contudo, a guerra, essa entidade cruel e incontrolável, mostrou seu verdadeiro rosto — não o de
um inimigo que poderia ser derrotado com uma espada afiada ou um grito heroico, mas o de um
ciclo interminável e implacável, um espectro que se recusava a morrer. A cada batalha vencida, a
cada abismo selado, uma nova ameaça surgia, abrindo portas invisíveis para horrores ainda
maiores, como se o próprio tecido do mundo estivesse sendo corroído por dentro.
Eron sentia isso em cada fibra de seu ser: quando uma porta se fechava com um estrondo
ensurdecedor, outra se abria lentamente, rangendo e exalando um ar putrefato de desespero e
destruição. Era uma guerra sem fim, onde as vitórias eram apenas pausas breves, efêmeras como
a luz do amanhecer entre as sombras da noite eterna.
Nesse cenário de incertezas, não havia espaço para certezas absolutas. Nenhum herói, por mais
poderoso ou virtuoso que fosse, poderia carregar sozinho o peso esmagador da salvação. A
responsabilidade não podia ser delegada a um único nome, uma única espada, ou uma única
vontade. O futuro do mundo permanecia velado, um mistério tecido em fios intrincados de
dúvida, medo, esperança e promessa — uma tapeçaria complexa onde cada fio, por mais tênue,
era essencial para evitar que tudo se desfizesse.
Forças novas, imprevisíveis e inesperadas surgiriam no palco dessa guerra interminável. Alianças
frágeis e improváveis se formariam, rostos desconhecidos apareceriam em momentos decisivos,
e aqueles que pareciam simples peças no tabuleiro do destino poderiam revelar-se chaves para a
vitória ou para a ruína.
Enquanto o mundo vacilava à beira do abismo, o céu parecia carregar um peso impossível —
nuvens carregadas de sombras espessas bloqueavam até o brilho das estrelas, e o ar estava
impregnado com o cheiro amargo da fumaça, do ferro queimado e da terra remexida por
batalhas antigas. Era como se a própria essência do mundo tivesse se tornado uma corda bamba
entre a vida e a ruína, oscilando perigosamente sobre o vazio de um destino incerto.
A escuridão avançava como uma maré implacável, fria e sufocante, ameaçando engolir tudo em
seu caminho — florestas, montanhas, cidades, e até mesmo os corações daqueles que ainda
ousavam resistir. Seu toque era um frio cortante que drenava a esperança e a vontade, uma
sombra silenciosa que espalhava o desespero como veneno invisível.
Mas, mesmo nesse cenário desolador, uma chama persistia. Não era o fogo flamejante de
outrora, de glórias e conquistas grandiosas, mas uma luz mais tênue — uma rede delicada e
complexa de pequenas chamas, espalhadas em inúmeras mãos, rostos e corações. Era como um
manto de estrelas cintilando no véu da noite, conectadas por fios invisíveis de coragem, sacrifício
e fé.
Cada centelha daquela chama coletiva pulsava com a força de quem recusava a rendição, de
quem, apesar do medo esmagador e das perdas incalculáveis, escolhia continuar lutando. Era a
coragem compartilhada dos anões forjando armas no calor de suas forjas, dos elfos entalhando
runas antigas para proteger os vivos, dos humanos que se erguiam do chão ensanguentado com
os olhos ardendo de determinação.
Era o silêncio dos sacrifícios invisíveis — daqueles que deixaram suas famílias, que enfrentaram
feridas e a exaustão, que dormiam com o coração pesado, mas despertavam com a mesma
resolução inquebrantável. Era a esperança silenciosa daqueles que acreditavam que um amanhã
ainda poderia existir, mesmo quando tudo ao redor parecia anunciar o fim.
Na vastidão do Continente Negro, aquela luz difusa era um farol para os que ainda caminhavam
entre as ruínas e as sombras. Não dependia de um único herói, mas da união de muitos — uma
irmandade invisível que se fortalecia a cada passo, a cada suspiro compartilhado em meio ao
caos.
E enquanto a escuridão avançava, consumindo terras e corações, aquela chama — frágil, mas
teimosa — ardia com uma promessa sussurrada ao vento: que enquanto houvesse ao menos uma
luz, nenhuma noite poderia ser eterna. Que enquanto permanecessem juntos, jamais seriam
verdadeiramente derrotados.
Era essa chama coletiva — uma luz forjada não apenas pelo fogo de batalhas e armas, mas pelo
calor invisível que brotava da coragem compartilhada, das mãos que se entrelaçavam mesmo nas
piores tempestades, e dos corações que pulsavam em uníssono apesar das dores e perdas que
cada um carregava em silêncio. Um fogo alimentado pelo sacrifício silencioso dos que nunca
buscaram glória ou reconhecimento, mas que entregaram suas forças, suas esperanças e até suas
vidas para manter acesa a última centelha de salvação.
Essa luz era tênue, frágil como uma vela vacilante ao vento, mas indomável. Era a resistência que
não se curva diante do desespero, a recusa obstinada em aceitar que a noite poderia ser eterna.
Era a chama que, mesmo sob o peso esmagador das trevas, encontrava força na memória dos
que caíram, na fé dos que permaneciam e na promessa daqueles que ousavam sonhar com um
amanhã melhor.
Mais que uma simples luz, essa chama coletiva era o símbolo vivo de uma esperança que
transcende o indivíduo, um elo invisível que unia povos, raças e destinos em uma mesma luta —
a luta para que a escuridão não fosse o último capítulo, mas apenas o prólogo de uma história
que ainda seria escrita com coragem e redenção.
Contra todas as probabilidades — contra o desespero que sussurrava rendição, contra o silêncio
dos que haviam caído, contra a sombra que parecia não ter fim — aquela chama persistia. Não
apenas ardia: ela resistia. Mantinha viva a promessa de que, mesmo quando tudo ao redor parecia
consumido pela escuridão, ainda era possível romper o véu sombrio com um único facho de luz
verdadeira.
Era uma luz modesta, mas carregada de significado. Ela não guiava exércitos pela força, mas pela
fé. Não era uma tocha flamejante que devorava o inimigo, mas uma brasa constante, guardada no
íntimo dos que ainda ousavam acreditar. Cada olhar firme diante do horror, cada mão que se
estendia para levantar um companheiro caído, cada palavra sussurrada de coragem no meio da
noite fria — tudo alimentava essa chama.
E era ela que, passo a passo, guiava os sobreviventes por entre os escombros do mundo, como
um farol persistente no meio de um oceano de trevas. Nela se depositava a esperança de um
novo amanhecer — não apenas um futuro em que a vida florescesse outra vez, mas onde a
própria noção de humanidade fosse redimida, reconstruída sobre os alicerces de sacrifício,
compaixão e resistência.
Porque as trevas, por mais afiadas que fossem suas garras, não conheciam o calor do amor, a
força do perdão, nem a obstinação dos que se negam a cair. E era justamente essa força imortal
— forjada na união de corações marcados, mas ainda pulsantes — que as enfrentaria até o fim.
Não como heróis inalcançáveis, mas como seres humanos dispostos a pagar o preço para manter
acesa a fagulha que poderia, um dia, incendiar o céu com a luz da esperança vitoriosa.
Capítulo 4
Os ecos da Batalha de Valembrim continuavam a reverberar no ar, como um lamento
fantasmagórico que se recusava a se dissipar. O vento frio do Norte carregava consigo o cheiro
acre de ferro queimado e carne queimada, misturado ao silêncio pesado que se instalara entre os
sobreviventes. As muralhas, outrora inabaláveis e altivas, agora estavam reduzidas a escombros,
porém, sob o esforço incansável dos anões, erguiam-se novamente — suas mãos calejadas
moldando pedra após pedra com uma pressa desesperada, como se o próprio tempo estivesse
fugindo. Cada bloco colocado era uma promessa silenciosa de resistência, cada rachadura uma
memória da brutalidade que havia passado.
Os corpos espalhados pelo campo de batalha, tanto dos aliados quanto dos inimigos, foram
sepultados em covas rasas — um ato que revelava a urgência e o desespero daqueles que não
podiam se permitir o luxo do luto. Havia pressa, pois a guerra impiedosa não dava trégua nem
piedade. As lágrimas, quando vinham, eram discretas, guardadas para a solidão dos pensamentos,
e os olhos dos que permaneciam estavam endurecidos pela dor e pela responsabilidade que
carregavam. O peso do sacrifício e da perda empurrava cada alma para frente, mesmo quando o
coração implorava por descanso.
No meio desse cenário de escombros e fumaça, Eron Shaddai Arnheid caminhava com passos
firmes, embora seu corpo carregasse o cansaço e as marcas da batalha recente. Seus braços,
cobertos por crostas de sangue seco, contavam histórias silenciosas de confrontos cruéis e de
irmãos de armas tombados. Ao seu lado, Shiena Voss, a elfa de cabelos violáceos e olhos tão
azuis que pareciam feitos da própria essência do gelo antigo, examinava mapas espalhados sobre
uma mesa rústica, iluminada pela chama vacilante de uma lamparina. Seu olhar era afiado,
transbordando uma calma inquietante, a serenidade de quem sabe que o destino de muitos
repousa sobre suas decisões, e que cada movimento errado pode custar vidas.
Ao redor deles, os generais da Aliança discutiam em tons baixos, entrelaçando estratégias como
mestres em um tabuleiro de xadrez mortal. As vozes carregavam a urgência e a tensão do
momento, ecoando nas paredes de pedra da fortaleza remanescente. O semblante de Eron era
uma máscara impenetrável: não revelava esperança, nem desespero, apenas a dureza implacável
de alguém que viu o rosto mais sombrio da existência, onde humanos e demônios compartilham
o mesmo terreno da dor.
— Não é um recuo — sussurrou Shiena numa noite pesada, em meio ao silêncio quase reverente
da fortaleza. Sua voz tinha o peso de uma sentença irrevogável. — É uma armadilha mortal.
A Aliança, contudo, não podia recuar. Marchariam sob o açoite dos ventos gelados, atravessando
planícies que pareciam chorar sangue e sofrimento, armados apenas com sua fé na causa e na
liderança de seus comandantes. Elfos mantinham vigília nos galhos mais altos, observando cada
sombra; anões construíam máquinas de guerra com uma precisão quase sobrenatural; centauros
relinchavam em prontidão, e magos entoavam cânticos antigos enquanto traçavam runas
brilhantes nas armas e armaduras.
Entre os soldados, nos breves momentos de pausa, Eron encontrava abrigo na companhia de
Silas e Caim, jovens guerreiros cujas presenças eram o único calor humano em meio ao gelo da
guerra. Silas, com seu humor cortante e piadas fora de hora, conseguia arrancar risos breves e
necessários. Caim, por sua vez, era a encarnação da determinação, sempre o primeiro a se
levantar, o último a ceder à exaustão, um farol de esperança entre a escuridão.
Quando a fortaleza demoníaca surgiu no horizonte, a visão parecia arrancada dos pesadelos mais
profundos: muralhas pulsando sob uma névoa escarlate, torres tortuosas que desafiavam a lógica
e o bom senso, e um ar impregnado com o odor ácido e nauseante de sangue queimado e
enxofre. O ruído distante dos urros demoníacos — grotescos, distorcidos, desumanos —
preenchia o espaço, uma melodia macabra de morte iminente.
O plano para o assalto foi traçado com rigor quase cirúrgico: os magos ergueriam barreiras para
proteger os soldados, enquanto os arqueiros élficos disparam suas flechas flamejantes numa
chuva de morte. A vanguarda, comandada por Eron, avançaria pelos flancos, buscando romper
as defesas inimigas antes que pudessem reagir.
Na véspera do ataque, sob a luz trêmula da fogueira central, os líderes trocaram palavras que
pesavam como o ferro das armas em suas mãos.
— Amanhã — disse Eron, olhando firmemente para cada rosto — não recuaremos. Lutamos
por cada vida perdida, por cada lágrima silenciosa, pelo sacrifício daqueles que nunca mais verão
a aurora. Vlad caiu porque estivemos unidos. Arcad cairá da mesma forma.
Quando o sol nasceu, o céu se escureceu sob o peso das magias conjuradas. Feitiços flamejantes
e relâmpagos de gelo se chocavam contra os portões da fortaleza, enquanto o solo vibrava com
os impactos das catapultas anãs. Os soldados avançavam, conscientes de que cada passo podia
ser o último.
Montado em Olvar, seu corcel negro de origem mística, Eron era uma tempestade viva de aço e
magia. A espada que brandia trazia fragmentos da lâmina que um dia derrotou Vlad, e suas
lâminas cantavam com runas antigas, lançando luz azulada sobre o sangue demoníaco que
derrubava.
Mas o que os aguardava no interior da fortaleza era um horror ainda maior. Labirintos de
emboscadas, armadilhas traiçoeiras, fendas que escorriam monstros de carne e pedra, e magos
demoníacos lançando maldições que corroíam até o mais resistente aço.
No auge do combate, Caim, impetuoso e destemido, avançou além da linha segura. Um demônio
de olhos incandescentes lançou uma esfera negra que cortou o ar como uma lâmina invisível. O
golpe foi fatal; o corpo de Caim tombou em silêncio.
No momento em que o amigo caiu, o mundo pareceu desacelerar para Eron. Os gritos viraram
ecos distantes, o tempo perdeu sua pressa, e um fogo cruel tomou seu peito. Seus olhos se
tornaram chamas vermelhas, uma premonição da fúria que estava para explodir.
Ele se lançou então numa tempestade de aço e sangue. Soldados, humanos e monstros recuavam
perante a fúria sobrenatural que parecia encarnar a ira dos antigos deuses. O chão tremia sob
seus passos, e o céu parecia chorar diante da devastação.
Silas, mesmo assustado, clamava por cobertura, enquanto magos se esforçavam para conter o
vendaval que era Eron.
No coração daquele inferno, Eron ajoelhou-se. Seu corpo tremia de exaustão, coberto de sangue
— parte seu, parte alheio — e poeira negra dos demônios caídos. Seus olhos, antes acesos em
fúria, agora perdiam o foco entre os corpos que se amontoavam ao seu redor: companheiros
tombados com as armas ainda nas mãos, inimigos de formas grotescas destroçados por golpes
desesperados. Cada rosto no chão era um nome, uma lembrança, uma ferida nova cravada em
sua alma.
A vitória, embora real, era um fardo quase insuportável. Tinha o gosto metálico da perda, o
cheiro acre da morte, e o peso silencioso da culpa. Não havia cânticos de glória, nem sorrisos.
Apenas olhos baixos, soluços contidos e a certeza de que, embora tivessem vencido aquele dia,
algo dentro deles havia sido arrancado para sempre.
Dois soldados o ergueram com cuidado, quase reverência. Ele mal reagiu. Seu corpo estava à
beira do colapso, os músculos queimando em dor, o sangue pulsando com lentidão sob feridas
abertas. Mas mais grave que isso era a sombra que se formava dentro dele — um abismo escuro,
silencioso, onde morava o eco do trauma, da raiva incontrolável, e da imagem de Caim caindo
diante de seus olhos.
Quando o deitaram nas tendas de cura, rodeado por magos e curandeiros que sussurravam
encantamentos e aplicavam bálsamos com mãos trêmulas, Eron mantinha os olhos abertos, mas
sua mente parecia vagar. Não mais pelo campo de batalha, mas por dentro de si mesmo — um
labirinto interno feito de memórias partidas, rostos desaparecidos, promessas não cumpridas.
Ali, sob o véu perfumado das ervas e dos feitiços restauradores, começava uma guerra nova e
ainda mais brutal: a guerra silenciosa contra os espectros que moravam em sua memória. Contra
o peso de ser o último nome de uma linhagem de heróis. Contra a dor de sobreviver onde tantos
morreram. Contra o próprio medo de tornar-se o monstro que lutava para destruir.
Não havia glória naquilo. Não havia alívio. Apenas a longa travessia por dentro da própria alma,
entre cicatrizes recém-abertas e perguntas que não tinham resposta.
O verdadeiro inimigo já não tinha chifres nem garras. Era o vazio que se infiltrava por trás dos
olhos. Era o peso da espada que agora tremia em sua mão. Era a tênue linha entre a justiça e a
vingança.
E ali, naquele instante frágil, deitado entre os sons abafados da cura e do luto, com os olhos fixos
no teto de linho da tenda e o corpo cercado por mãos apressadas e vozes murmurantes, Eron
compreendia — com uma clareza quase cruel — que a guerra contra os demônios fora apenas a
superfície. Uma camada externa de um conflito muito mais profundo, mais silencioso, mais
implacável.
A verdadeira batalha, aquela que realmente ameaçava consumi-lo, não se travaria nos campos
ensanguentados, nem diante de bestas colossais, mas no interior de sua própria alma. Era uma
guerra sem tambores, sem clarins, sem testemunhas. Travada nos recantos escuros da mente, nos
sussurros que ninguém ouvia, nos pesadelos que se arrastavam para além do sono. Ali, onde
moravam os rostos dos mortos, os gritos contidos, as decisões irreversíveis.
Ele sentia a dor física, sim — cada músculo latejando, cada nervo queimando sob a lembrança
do esforço extremo. Mas era a dor invisível que o feria com mais profundidade: o olhar de Caim
ao cair, a última palavra sufocada de um soldado sem nome, o peso da espada em sua mão após
o fim. Aquilo o esmagava com mais força do que qualquer golpe inimigo.
Eron entendia, então, que nenhum feitiço de cura poderia selar as feridas que não sangravam.
Que nenhuma armadura protegeria contra as dúvidas que rastejavam pelo coração. Que
sobreviver, naquele mundo dilacerado entre esperança e desespero, exigia algo muito além da
força — exigia uma compaixão que ele mal sabia se ainda possuía, uma perseverança que só
poderia nascer das cinzas da própria dor.
Porque continuar respirando quando tudo parecia perdido, quando os amigos se tornavam
lembranças e a luz se escondia por trás de lembranças cruéis, era o combate mais penoso de
todos. Não havia glória nessa luta, nem estátuas, nem canções. Apenas a escolha de não se
render. De seguir em frente. Mesmo aos pedaços.
E naquele silêncio profundo, quase sagrado, entre o crepitar abafado das velas encantadas e o
som ritmado das gotas de sangue caindo em bacias de prata, Eron Shaddai Arnheid permaneceu
imóvel. Seus olhos, semiabertos e vítreos, fitavam um ponto indefinido no alto da tenda de
linho, como se ali pudesse encontrar alguma resposta — ou talvez consolo.
De tempos em tempos, o vento atravessava a lona da tenda, trazendo consigo o cheiro distante
de sangue seco, cinzas e flores esmagadas — o aroma da vitória que não tinha sabor, da glória
que vinha empapada em luto. Lá fora, alguns sobreviventes murmuravam preces ou choravam
em silêncio. Outros, apenas olhavam para o chão, vazios.
Eron sentia cada uma dessas presenças, mesmo de olhos fechados. Carregava-as em seus ossos
como um fardo invisível. A espada não estava mais em sua mão, mas o peso dela continuava ali
— não no braço, mas na alma. O sangue derramado, os nomes que não deu tempo de aprender,
os olhares que cruzou antes da morte chegar... tudo pulsava em sua mente como ecos que se
recusavam a se calar.
E então, no âmago desse momento quebrado, entre o toque leve de mãos que tentavam curá-lo e
a memória brutal da guerra que o quebrara, Eron fez uma escolha. Uma escolha silenciosa,
imperceptível aos olhos alheios. Não houve relâmpagos, nem fanfarras, nem visões sagradas.
Não por orgulho, pois este havia sido dilacerado junto com as muralhas de Valembrim.
Não por dever, pois o dever já era fardo conhecido, mas agora parecia pequeno diante do que
sentia.
Uma fé sem dogma, sem altar, sem templo. Uma fé feita de lembranças. Do riso de Shiena antes
da batalha. Do sacrifício silencioso de Caim. Do brilho nos olhos dos jovens recrutas que
acreditavam nele sem jamais conhecê-lo de verdade.
E foi por essa fagulha — por esse lampejo de algo maior que si mesmo — que Eron decidiu
seguir. Não para vencer. Não para conquistar. Mas para não se render. Para erguer-se uma vez
mais, mesmo que cambaleante. Para dar mais um passo, mesmo que sem forças.
Não com a bravura altiva de quem desafia os deuses, nem com a arrogância dos que se julgam
invencíveis. Sua decisão foi silenciosa, íntima — um sussurro na alma ferida, uma respiração
contida entre espasmos de dor física e tormentos invisíveis. Não havia garantias, nem promessas.
Apenas a escolha crua e sincera de permanecer.
Porque aquele “hoje” era, por si só, um milagre. Um intervalo entre a ruína e o renascimento.
Um instante em que o mundo não caiu. Uma pequena ilha de tempo em que a espada pôde
repousar, a carne ferida ser tocada com ternura, e o coração dilacerado lembrar que ainda batia.
Era um hoje trêmulo, frágil, mas real. Um hoje onde a morte recuara por um passo. Onde o céu,
ainda que rasgado, não desabara por completo. Onde a esperança, embora pálida, ainda respirava
— encarnada naquele jovem de olhos turvos, corpo mutilado e alma incendiada pela perda.
E nesse “hoje”, tão pequeno e ao mesmo tempo imenso, o mundo encontrou seu primeiro fio
de amanhã.
Um fio tênue como seda, invisível aos olhos comuns, mas que ligava os vivos aos caídos, os que
lutavam aos que sonhavam, os que haviam perdido tudo aos que ainda teimavam em acreditar. E
era nesse fio — tênue, mas indomável — que o destino do mundo se equilibrava.
Eron não sabia o que o amanhã traria. Mas sabia que, para que ele existisse, era preciso que
alguém resistisse hoje.
E ele resistiria.
Mesmo ferido.
Mesmo sozinho.
Capítulo 5
O aposento era simples, porém impregnado de um peso invisível que transcendia a mera
materialidade de suas paredes e móveis. As pedras cinzentas que formavam os muros, gastas e
riscadas pelo passar inexorável do tempo e pelos horrores da guerra, pareciam guardar em seu
âmago um silêncio carregado de histórias e sofrimentos. Era um espaço onde o mundo exterior,
com seu caos e ruínas, não ousava invadir — um refúgio imerso numa quietude densa, quase
palpável, onde o tempo parecia hesitar, distorcido pela dor e pela esperança.
A única fonte de luz vinha da janela estreita, cujo vidro antigo, manchado pelo pó e pelo desgaste
dos anos, filtrava o sol de maneira imperfeita. Os raios que penetravam tímidos cortavam o ar
carregado de umidade e silêncio, projetando sombras e desenhos sobre o chão de pedra fria. Era
um espetáculo silencioso e melancólico, como se o próprio tempo dentro daquele aposento se
recusasse a avançar normalmente, preferindo se arrastar, lento e relutante, a cada segundo
marcado por uma respiração vacilante, um suspiro quase inaudível. Ali, cada momento era um
fardo pesado demais para carregar, e ao mesmo tempo um milagre a ser celebrado.
Sobre a cama de madeira escura, simples, mas resistente, coberta por lençóis brancos que
contrastavam com o ambiente sombrio, repousava Eron Shaddai Arnheid. Herdeiro do sangue
nobre e pesado de Lordran, o guerreiro que carregava a esperança e o legado de gerações, agora
parecia uma sombra de si mesmo — um jovem à beira do abismo, suspenso entre a vida e a
morte, entre o que foi e o que ainda poderia ser. Seus cabelos, antes sedosos, selvagens e cheios
de vida, agora se encontravam colados à testa por suor frio, translúcido e quase gelado, como se
a própria essência do seu ser estivesse se esvaindo.
Sua pele, que já refletira o vigor dos dias de batalha e a saúde conquistada sob o sol implacável,
agora se tornara pálida, quase translúcida, lembrando a cera delicada de velas que se apagam
lentamente. Manchas roxas e violáceas, marcas da violência dos golpes e do tempo, adornavam
seu corpo, enquanto cicatrizes abertas e pontos recém-costurados indicavam a luta contínua
travada pelo seu corpo, mesmo naquele repouso forçado. As mãos que, em outra época,
empunhavam firmemente a espada e guiavam o destino dos seus companheiros, agora estavam
fracas, esqueléticas, retraídas sobre o peito, quase como se tentassem proteger, com um esforço
hercúleo, os últimos vestígios de uma alma que resistia teimosamente ao esquecimento.
E essa razão, essa força silenciosa que sustentava o fio da vida de Eron, tinha um nome,
carregado de um amor que transcendia a dor e o medo:
Shiena.
Ela era mais que uma presença constante à sua cabeceira. Era a guardiã da sua existência, a
âncora firme em meio à tempestade que ameaçava engoli-los. Cada passo seu naquele aposento
ecoava com a determinação de quem se recusa a aceitar o desfecho trágico, cada gesto carregava
o peso de uma promessa silenciosa feita entre eles. Seu olhar nunca se afastava do jovem
guerreiro, mesmo quando as forças pareciam se esvair.
Shiena tornava-se, assim, o coração pulsante daquele espaço quieto — a razão oculta que
mantinha as sombras à distância. Era o toque suave das suas mãos que despertava os ecos de
vida adormecidos em Eron, o som de sua voz que cruzava as fronteiras do silêncio para tocar a
essência daquele corpo quebrado. Mais do que cura, ela oferecia esperança — uma chama tênue,
porém indomável, que resistia contra o frio e a escuridão, tecendo fios invisíveis entre o mundo
dos vivos e o limiar onde Eron se encontrava.
E naquela pequena sala, entre os murmúrios dos magos e o respirar vacilante do guerreiro, o
amor silencioso de Shiena era a última fortaleza. Um símbolo da força que o destino não poderia
apagar — a prova de que, mesmo nos momentos mais sombrios, a luz ainda encontrava
caminhos para sobreviver.
Ela não se afastou. Nem por um instante. Desde o primeiro momento em que o corpo exausto e
ensanguentado de Eron foi trazido ao aposento, carregado pelo peso da destruição que o havia
consumido — com os restos de sangue seco, fuligem impregnada na pele e o pó cinzento da
guerra — Shiena se tornou uma rocha inabalável em meio ao caos. Seu olhar, outrora forjado em
cem batalhas, repleto de fúria, poder e determinação, agora estava inundado de lágrimas
silenciosas e um temor profundo, visceral. No entanto, apesar do medo que apertava seu peito
como ferro frio, seus olhos não se desviaram, não cederam sequer uma vez diante da imensidão
da dor e da incerteza.
Com uma calma quase ritualística, ela organizava aquele espaço como um verdadeiro santuário,
conferindo a ele um sentido de sacralidade e propósito. Cada gesto seu era meticuloso, um ato de
amor e esperança que transcendia o simples cuidar de um corpo ferido. As cortinas pesadas, de
tecido gasto, eram abertas religiosamente com o primeiro raio de sol, deixando a luz tênue
invadir o quarto, como um convite para que a vida voltasse a brilhar naquele espaço. Ao cair da
noite, as mesmas cortinas eram fechadas com a solenidade de um ritual antigo, como se fosse
uma barreira entre o mundo externo, repleto de dor, e aquele santuário onde a esperança ainda
lutava para sobreviver.
O pano que limpava delicadamente a testa quente e úmida de Eron era trocado a cada hora,
nunca deixando que o suor frio e pegajoso se tornasse um peso maior em sua já exausta
existência. A lamparina encantada, alimentada com óleo mágico, permanecia acesa, seu brilho
âmbar oscilante e pulsante como um coração que teimava em bater na escuridão mais profunda.
Era mais que uma fonte de luz; era um símbolo da vigília eterna que Shiena mantinha, uma
promessa de que ali ninguém desistiria enquanto houvesse fôlego.
Às vezes, em meio ao silêncio pesado, ela falava com ele — suas palavras eram suaves, quase
sussurros carregados de emoção e lembranças. Outras vezes, sua voz se elevava em canções
antigas, entoadas em élfico, a língua antiga da sua terra natal, melodias que pareciam névoas da
floresta, delicadas como pétalas que dançam ao vento. Cada palavra era uma súplica, uma oração
silenciosa e constante, uma promessa eterna para aquele corpo que mal respirava.
Os dias que se seguiram corriam lentos, como rios turvos e pesados, onde a correnteza parecia
carregar mais sofrimento do que alívio. No décimo dia, um feitiço de cura provocou uma reação:
um leve estremecer nos ombros de Eron, um tremor tão sutil que poderia ter passado
despercebido. Shiena, ao perceber, quase caiu de joelhos em reverência e emoção. Mas a
esperança foi logo abafada pelos médicos, que a advertiram — poderia ser apenas um espasmo
involuntário, um reflexo do corpo ainda lutando sem consciência. Porém, Shiena recusou-se a
aceitar essa possibilidade. Para ela, aquele gesto, por mais tímido que fosse, era a prova clara de
que Eron estava tentando, lutando contra a escuridão que o prendia.
No décimo terceiro dia, algo mais veio — um gemido fraco, quase um sussurro ressequido que
escapou de seus lábios partidos pelo silêncio. Era um som pequeno, quase frágil demais para
existir, mas carregado de tanta humanidade que fez o coração de Shiena pulsar como tambores
de guerra prontos para um último combate. Ela correu, desesperada, trouxe água, chamou
curandeiros para intervir, mas o silêncio voltou a tomar o aposento, denso e gélido como uma
sombra que não cedia. Ainda assim, aquele momento fora uma chama que se acendeu por um
breve instante, lembrando que ali ainda havia vida, ainda havia uma centelha que não se apagava.
No décimo sexto dia, o peso da vigília começava a cobrar seu preço terrível. A voz de Shiena,
antes clara e firme, agora saía rouca, tremida e cansada, cada palavra um esforço sobre-humano
para não sucumbir. Apesar do corpo exaurido, ela não cessava. Continuava a ler as histórias que
Eron amava, a cantar as canções que lhe traziam conforto, a falar com ele como se, naquele
contato íntimo, estivesse fazendo a ponte para trazê-lo de volta. E, de fato, dependia disso —
não apenas da magia ou da cura, mas da força do amor que os unia.
Quando a madrugada do vigésimo primeiro dia finalmente chegou, o mundo parecia conter o
fôlego. A névoa fria rastejava pelo chão de pedra como fantasmas antigos, envolvendo a
fortaleza num manto silencioso e tenso. Lá fora, o mundo ainda descansava, exausto e inquieto,
enquanto as estrelas, testemunhas silenciosas de mil batalhas, continuavam a brilhar com sua luz
distante.
A escuridão naquela noite parecia mais densa, mais opressiva, envolvendo o quarto em um
abraço quase sufocante. Mas Shiena, sentada firme à beira da cama, sentia algo diferente no ar —
uma mudança sutil, um peso que se alterava, uma esperança que tremia na ponta dos seus
sentidos, como se o próprio destino estivesse segurando a respiração, esperando.
E naquele momento, quando o tempo parecia suspenso, o silêncio da noite virou testemunha do
milagre que estava para acontecer.
Ela segurava a mão de Eron como em todas as noites anteriores, mas naquela algo sutil, quase
imperceptível, se fazia presente. Os dedos dele, antes inertes e frios como a pedra do aposento,
agora exibiam uma leveza tênue e diferente, uma vida escondida que emergia como um sussurro
delicado. Um calafrio percorreu o corpo de Shiena, não provocado pelo frio que rondava as
pedras antigas da fortaleza, mas por uma certeza profunda e quase mágica — aquela intuição que
precede os grandes momentos, os momentos em que o tempo parece suspenso antes do
despertar.
Com os olhos cerrados, ela reuniu toda sua força para oferecer uma última oração naquela noite
— uma prece que não era dirigida aos deuses ancestrais nem às forças invisíveis que pairavam
sobre o mundo, mas uma oração silenciosa feita diretamente a Eron. Não em palavras audíveis,
mas em lembranças vivas, em emoções entrelaçadas no tecido invisível da memória.
Sua mente viajou aos dias antigos, aos momentos de luz e alegria que, agora, pareciam tão
distantes e preciosos. Relembrou o sol escaldante do pátio da cidadela de Tharmul, onde ambos
treinavam com espadas e escudos, os risos que escapavam entre golpes e tropeços, a
camaradagem que crescia em meio ao suor e ao aço. Recordou-se da primeira vez que Eron
tocara sua mão — não por romantismo, mas simplesmente para ajudá-la a se levantar após uma
queda. Foi um gesto simples, quase casual, mas que jamais esqueceu: a suavidade escondida sob a
firmeza dos dedos dele, um toque que transmitia força e cuidado ao mesmo tempo.
Suas lembranças seguiram para as horas mais sombrias, quando a morte rondava de perto e
amigos tombavam lado a lado. Lembrou-se das batalhas cruéis contra as criaturas abissais do
Continente Negro, das noites longas e geladas em que a esperança parecia uma chama vacilante.
Mas mesmo na escuridão mais profunda, ele encontrava um jeito de sorrir para ela — um sorriso
silencioso que dizia, com palavras mudas: "Estamos aqui. Ainda resistimos."
Agora, tudo se resumia àquele instante — o presente que suspendeu o tempo, a linha tênue que
os ligava: memória, amor e esperança. O elo invisível que sustentava tudo aquilo.
E então... um toque.
Uma pressão tão leve quanto o pousar de uma pétala sobre a pele, mas real e inconfundível. Os
dedos de Eron apertaram os seus.
Shiena prendeu a respiração, paralisada pelo choque e pelo milagre. Não se moveu. Era como
estar na beira de um abismo, entre o sonho e a vigília, entre a esperança e o desespero. A
sensação era de que o mundo inteiro segurava a respiração junto com ela.
Novamente, sentiu — desta vez, um aperto fraco, mas deliberado, consciente. Como se,
emergindo das profundezas de um oceano escuro e sem fim, ele estendesse sua mão para a
superfície, buscando a conexão que era a sua âncora — para ela, para a vida.
Shiena levou a outra mão à boca, contendo o choro que ameaçava romper as barreiras da alma.
Lágrimas quentes, silenciosas, desceram por seu rosto pálido e exausto, misturando-se ao sorriso
mais puro e genuíno que florescera em seus lábios desde que aquela vigília começara.
— Eron... — sussurrou, a voz embargada pela emoção e fragilidade. — Amor... sou eu. Estou
aqui.
Os olhos de Eron, antes imóveis como pedra, começaram a se mover lentamente sob as
pálpebras cerradas. Era um despertar doloroso, uma luta silenciosa contra véus internos, contra
camadas de sono e sofrimento que o mantinham aprisionado.
Finalmente, eles se abriram, revelando um brilho turvo, indistinto, como os olhos de quem
desperta de um pesadelo sem forma, mas ainda vivos. Vivos.
Shiena inclinou-se para frente, apoiando-se delicadamente nos cotovelos sobre a cama, fixando
seu olhar no dele com a reverência de quem contempla a aurora após uma era de trevas
implacáveis.
Eron piscou lentamente, o lábio inferior tremendo num gesto involuntário. Palavras não eram
necessárias — tudo estava ali, no olhar que a reconhecia, na presença que retornava, na promessa
silenciosa de que ele voltara para ela.
No exato momento em que o sol nascente filtrava seus primeiros raios através da janela, a luz
que entrou naquele aposento foi diferente de todas as outras. Não era mais uma testemunha
distante e indiferente da dor e da luta, mas uma promessa viva. Um manto dourado, quente e
suave como o toque terno de uma mãe cuidando do filho febril, que envolvia os rostos cansados
de ambos com uma ternura impossível de ser encantada ou forjada por qualquer magia.
Shiena não soltou sua mão — não permitiu que o milagre escapasse.
Enquanto os magos circundavam a cama onde repousava Eron, seus semblantes refletiam a
soma do cansaço acumulado e da responsabilidade que pesava sobre seus ombros como uma
montanha invisível. As mãos ágeis e seguras, moldadas por anos de estudo e prática, moviam-se
com precisão quase ritualística, desenhando no ar e sobre a pele do guerreiro frágil símbolos
antigos que pulsavam com uma luz quase etérea. Cada gesto era calculado, cada palavra
sussurrada reverberava com o eco das eras passadas — encantamentos arcanos transmitidos por
mestres de gerações esquecidas, tecendo uma rede de esperança e vida ao redor daquele corpo
tão abatido.
Shiena, imersa nesse cenário carregado de magia e expectativa, não via apenas os feitiços ou
ouvia os termos técnicos que os magos trocavam apressadamente. Seus olhos estavam presos aos
de Eron, aqueles olhos que, até então, eram janelas fechadas e sombrias, agora começavam a se
abrir lentamente, revelando uma luz pálida, vacilante, porém absolutamente viva. Havia algo
naquele olhar que transcendia o simples despertar físico — era a centelha indomável de um
espírito que, apesar de esmagado, recusava-se a sucumbir.
Ela percebeu que, embora o corpo de Eron estivesse exaurido, marcado pelas batalhas internas
que ele travara no silêncio da mente e do sofrimento, ele estava presente. Presente de uma
maneira profunda, quase palpável, como se sua essência tivesse decidido, contra todas as
probabilidades, recusar a morte e abraçar a vida. Era um retorno não forçado pela obrigação ou
pelo destino, mas uma escolha feita na mais profunda vontade de continuar — de lutar, de amar,
de existir.
Naquele instante único, o mundo além das paredes frias e ásperas daquele aposento parecia
pausar sua marcha inexorável. O ruído distante da guerra, o estrondo dos conflitos que
devastavam as terras longínquas, as chamas vorazes que consumiam aldeias e florestas — tudo se
tornava irrelevante diante da magnitude daquele retorno. O próprio tempo parecia hesitar, como
um velho sábio que reconhece que algo raro e precioso acaba de acontecer.
As estrelas, testemunhas silenciosas das eras e guardiãs dos segredos do universo, continuavam a
brilhar acima, seus pontos de luz cintilando suavemente sobre os campos marcados pelo sangue
e pelas lágrimas derramadas em nome da sobrevivência. Mas ali, naquele pequeno quarto,
cercado pela fragilidade da existência humana e pela força implacável do amor, uma trégua
delicada e poderosa se estabelecia — breve, talvez efêmera, mas suficiente para transformar
destinos.
Eron, herdeiro de um legado tecido com luz e dor, com a história de guerreiros lendários
correndo em suas veias e cicatrizes que jamais se apagariam de sua carne e alma, escolhera viver.
Não por imposição, nem por simples dever cumprido. Ele escolhia, naquele instante, pelo
impulso mais puro e profundo da existência: o desejo indomável de continuar, de resistir, de
amar e ser amado. A chama da vida reacendia-se dentro dele, tênue, mas imortal, pronta para
iluminar os caminhos tortuosos que ainda viriam.
E naquele hoje — simultaneamente pequeno e imenso, como uma centelha quase imperceptível
brilhando na vastidão esmagadora da escuridão — o mundo inteiro encontrou seu primeiro fio
de amanhã. Um fio tão tênue que poderia ser facilmente esmagado por um sopro de desespero,
mas que, ao mesmo tempo, carregava uma força silenciosa e inquebrantável. Esse fio não era
solitário; entrelaçava-se a milhões de outros, formando uma teia invisível, mas resistente, uma
rede de esperança trançada por mãos que se recusavam a sucumbir, por corações que, mesmo
feridos e cansados, ainda pulsavam com a vontade de viver.
Era uma vida que, em sua essência mais pura e resiliente, dava seus primeiros passos hesitantes
em direção a um futuro incerto, um futuro em que a escuridão poderia, enfim, ser desafiada.
Cada inspiração que Eron tomava, ainda frágil e débil, marcava o compasso desse renascimento
— um ritmo lento, porém constante, um batimento que não se limitava àquele aposento de
pedra e sombras, mas reverberava fundo na alma de todos os que, naquele momento, lutavam e
esperavam. Era um tambor de guerra contra o silêncio frio do esquecimento, uma promessa
silenciosa de que a resistência persistia, mesmo quando tudo parecia perdido.
O movimento sutil dos olhos dele, ainda turvos e trêmulos, carregava um significado maior do
que qualquer palavra poderia expressar. Era o sinal de uma vontade que recusava desistir, a prova
de que dentro daquele corpo quebrado residia ainda uma chama, por mais débil que fosse, que se
recusava a apagar-se. A luz que emanava dali, por mais tênue, era uma faísca destinada a
reacender corações e a reacender sonhos há muito enterrados sob os escombros da guerra.
Naquele instante sagrado, dentro daquele aposento pequeno e modesto, onde o tempo parecia
fluir com uma cadência diferente, a vida triunfava. Não uma vitória ruidosa e gloriosa, mas uma
vitória lenta, difícil, quase sussurrada, porém inegavelmente real e palpável. Eron, o guerreiro que
enfrentara os horrores mais sombrios do continente negro, agora enfrentava a batalha mais
silenciosa e, talvez, a mais essencial de todas: a luta pela sua própria existência, pelo direito de
permanecer entre os vivos, de continuar escrevendo sua história.
Enquanto a luz tênue do sol começava a infiltrar-se lentamente pelas frestas da janela gasta, seus
raios delicados tingiam as paredes frias e austeras daquele quarto com um dourado morno, quase
sagrado. Cada feixe de luz parecia acariciar a pedra, aquecendo o ambiente onde até então
reinava o silêncio pesado e a sombra da dor. Lá fora, além das muralhas da fortaleza, o mundo
continuava a arder em meio ao caos da guerra — o estrondo constante das batalhas, o clamor
dos soldados, o crepitar das chamas que consumiam vilarejos e florestas. Um cenário brutal de
destruição, onde sonhos eram esmagados e esperanças pareciam sufocar sob o peso da realidade
cruel.
Mas, naquele momento exato, ainda que de forma sutil e quase imperceptível, uma notícia
silenciosa cruzava as fronteiras do campo de batalha e as paredes das masmorras escuras: a
esperança renascia.
Era uma fagulha pequena, frágil, quase tímida, mas de uma força surpreendente — um fio
delicado, porém resistente, o primeiro de muitos fios entrelaçados. Fios que representavam luta,
fé, resistência e amor, que como raízes invisíveis sustentavam o futuro de todos. Juntos, eles
começavam a tecer uma tapeçaria invisível, porém firme, que envolvia o horizonte de
possibilidades ainda não escritas. Essa trama, nascida da vontade de sobreviver e de resistir,
cobria lentamente as terras devastadas, prometendo que um novo amanhecer ainda poderia
brilhar, mesmo sobre as cinzas do passado.
Naquele instante frágil e ao mesmo tempo eterno, a vida revelava-se em sua forma mais pura e
essencial: uma força silenciosa, invisível aos olhos apressados, mas irresistível em seu poder. Era
um sopro tênue, sutil como a brisa matinal, mas firme o bastante para desafiar o caos que
dominava o mundo. Um canto suave, porém, persistente, que entoava a melodia da esperança,
do renascimento e da luta incessante. A luta para que, um dia, quem sabe, a escuridão — aquela
que parecia invencível — fosse finalmente vencida, e a luz retornasse para banhar as terras e os
corações cansados.
Assim, enquanto o sol se erguia lentamente no horizonte, tingindo o céu com tons de ouro,
âmbar e rosa suave, a antiga fortaleza começava a despertar de seu silêncio noturno. Os
corredores de pedra, que horas antes estavam mergulhados na escuridão e no silêncio sepulcral,
agora ganhavam vida aos poucos: o som distante de botas ecoava contra as paredes, vozes
apagadas trocavam ordens e murmúrios, e o ar carregado de fumaça e história parecia respirar
novamente. Lá fora, o céu clareava, revelando um campo de batalha ainda marcado pelas
cicatrizes recentes — trincheiras encharcadas, armas quebradas, estandartes rasgados, e o cheiro
pesado de terra revolvida e sangue seco.
Mas enquanto a rotina implacável da guerra seguia seu curso, dentro daquele quarto modesto e
esquecido pelo tempo, algo profundamente diferente acontecia. Um capítulo novo e decisivo
começava a ser escrito — não com tinta ou aço, mas com a força tênue e indomável da vida
renascente. A quietude do ambiente, carregada de dores e esperanças, parecia suspensa entre a
luz que agora invadia o espaço e as sombras que ainda se agarravam às paredes frias.
Era um capítulo tecido com fios delicados, entrelaçando as sombras do passado recente — as
batalhas, as perdas, o sofrimento — com a luz brilhante e frágil da esperança que surgia, tímida,
mas impossível de ser ignorada. Cada instante naquele aposento carregava o peso da luta
silenciosa entre o desespero e a fé, entre o fim e o começo. O ar, impregnado pelo aroma das
ervas curativas e o leve calor das lamparinas mágicas, pulsava com a energia vital de quem
recusava se entregar.
Apesar da crueldade do destino — que impiedosamente havia testado a força de corpos e almas
— ainda havia espaço para a centelha da vida. Essa centelha, pequena e preciosa como um
fragmento de luz na mais densa escuridão, carregava consigo um significado muito maior que a
mera existência de um homem. Ela era o farol que iluminava o caminho para todos aqueles que
ainda lutavam, a promessa silenciosa de que, mesmo nos dias mais sombrios, a chama da
esperança jamais seria completamente apagada.
E naquele quarto — humilde refúgio contra o caos do mundo — o futuro de muitos começava a
se desenhar. Um futuro que dependia não só da força física de um guerreiro, mas da resiliência
das almas entrelaçadas por laços de amor, coragem e fé. Era o início de uma jornada renovada,
onde a vida se recusava a ser vencida, e a esperança, mesmo frágil, se tornava a mais poderosa
das armas.
Capítulo 6
O retorno à consciência não foi um despertar — foi uma travessia tortuosa, um renascimento
doloroso por entre labaredas de sofrimento. Eron emergiu das trevas do coma como um
náufrago arrastado por correntes invisíveis, coberto por véus de agonia e confusão. O ar parecia
fogo ao passar por sua garganta. Cada músculo de seu corpo protestava com uma dor profunda,
surda e contínua, como se ossos e carne tivessem sido forjados novamente no calor da guerra.
Ele respirava com dificuldade, como se cada suspiro tivesse que vencer mil barreiras invisíveis.
O mundo ao seu redor era uma mistura de luzes difusas e sombras persistentes. O teto de pedra
acima dele parecia girar lentamente, como as engrenagens enferrujadas de uma máquina cósmica.
O ambiente exalava o cheiro terroso de pedra antiga, misturado ao perfume sutil de ervas
queimadas e flores frescas. Havia uma paz melancólica no ar — uma quietude frágil que parecia
prestes a se despedaçar com qualquer movimento.
Eron sentia-se deslocado. O tempo parecia correr de maneira desigual dentro dele — uma
eternidade de escuridão seguida de lampejos fugazes de dor. Durante longos minutos, seu nome
lhe escapava. Ele era apenas um corpo ferido sobre uma cama, uma alma perdida que pairava
entre dois mundos. Mas havia algo — ou melhor, alguém — que o mantinha preso à realidade.
Um calor constante, uma presença inabalável que resistia ao tempo, ao cansaço e até mesmo à
desesperança.
Shiena.
Ela estava ali, como sempre estivera. Sentada numa cadeira gasta pelo tempo e pelas noites sem
fim, com o corpo curvado de exaustão. Suas roupas, outrora finas e elegantes, agora estavam
amarrotadas e manchadas, tingidas pelas lágrimas que já não tinha forças para conter. O rosto —
tão delicado quanto orgulhoso — exibia os sulcos da vigília: olhos fundamente escurecidos por
olheiras, a pele fria e sem cor, as mãos trêmulas com os dedos entrelaçados aos dele, como se
assim pudesse mantê-lo ancorado à vida.
Mesmo adormecida, sua expressão era a de alguém que não descansava realmente. Havia tensão
em cada músculo, como se a qualquer momento o mundo pudesse desmoronar outra vez. Sua
cabeça pendia levemente para o lado, apoiada no ombro, e seus cabelos, antes presos com
cuidado, caíam soltos e rebeldes, moldando uma moldura de cansaço ao redor de seu semblante.
Eron, ainda confuso, tentou mover os olhos, mas o esforço lhe custou um gemido abafado. Uma
onda de dor percorreu sua espinha. Seu corpo estava envolto em lençóis ásperos de linho grosso,
e as mantas pesadas que o cobriam exalavam o aroma de verbena e camomila. Cada centímetro
da pele ardia com uma sensação de febre antiga, e os músculos reagiam como se não
pertencessem mais a ele.
Foi nesse instante que Shiena despertou — não por som, mas por instinto. Os olhos se abriram
de súbito, como os de uma guerreira em vigília. E ao vê-lo ali, com os olhos entreabertos e vivos,
soltou um soluço. Não de dor, mas de alívio absoluto — o tipo de emoção que nasce quando se
vê um milagre realizar-se após dias de súplicas mudas.
Ela se atirou para a frente, ajoelhando-se ao lado da cama, agarrando-lhe a mão com uma força
quase desesperada.
— Você voltou... você voltou pra mim... — sussurrou, com a voz trêmula e rouca, como folhas
secas sendo sopradas pelo vento.
Os olhos de Eron tentaram focar nela, e ele tentou falar. Seus lábios rachados se moveram com
dificuldade, soltando um som fraco, rouco, quase inaudível:
— Onde... estou?
Shiena inclinou-se, os olhos marejados fixos no rosto ainda pálido de Eron. A luz suave da
lamparina tremeluzia na parede de pedra, projetando sombras que pareciam acompanhar, em
silêncio, o peso das palavras que estavam por vir. Ela segurou a mão dele com ambas as suas —
mãos pequenas, mas calejadas, firmes apesar do tremor — e então, com a voz embargada pela
memória e pela dor, começou a falar.
— Quando o sol nasceu naquele dia… —…o céu escureceu como se a própria criação soubesse
o que viria. Magias de fogo e gelo cruzavam os céus como cometas vingativos. Os portões da
fortaleza tremiam, Eron… tremiam como se fossem feitos de papel. As catapultas dos anões
lançavam pedras encantadas que faziam o solo vibrar sob os pés dos soldados, e mesmo assim,
eles avançavam. Com medo. Mas avançavam.
O quarto em que ela falava era simples, aquecido apenas pela esperança e por incensos de
camomila e lavanda. A brisa que entrava pela janela, fria e úmida, balançava suavemente as
cortinas manchadas de tempo. Eron ouvia, ainda fraco, com o olhar perdido entre a vigília e a
lembrança. Mas algo em sua alma se acendia com cada palavra.
— Você estava montado em Olvar — continuou Shiena —, e juro… parecia que um espírito
ancestral montava com você. A sua espada… ela brilhava com uma luz que não era deste
mundo. Cada golpe cortava o ar e o destino ao mesmo tempo. E ainda assim, mesmo você
sendo tudo isso… não conseguimos evitar.
Ela engoliu em seco, suas mãos apertando com mais força as dele.
— Caim… — sua voz quebrou — ele avançou demais. Tentou proteger os arqueiros que
estavam isolados no flanco leste. Um demônio… olhos como brasas, pele de ossos vivos…
lançou uma esfera negra. Silenciosa. Letal. Ela cortou o ar, e quando alcançou Caim… ele… ele
só caiu. Não teve tempo de gritar. Não teve tempo de se despedir.
Do lado de fora, o mundo seguia quieto, como se respeitasse o momento sagrado que se
desenrolava naquele quarto.
— Você destruiu tudo. Demônios, paredes, portões… ninguém conseguia te parar. Nem Silas.
Nem os magos. Nada. Por horas você foi a tempestade. E quando tudo acabou… quando só
restava o silêncio e os corpos espalhados… você caiu. Você caiu, Eron. Como se toda a sua alma
tivesse sido sugada.
Ela limpou uma lágrima com a manga da túnica e olhou para ele com ternura desesperada.
Eron escutava em silêncio, mas dentro dele algo começou a ruir. Suas lembranças, enterradas em
algum canto escuro, começaram a emergir — não como memórias ordenadas, mas como
fragmentos de horror. Gritos. Chamas. Sangue. Caim, com os olhos vazios. Sua própria voz
rugindo por redenção.
Subitamente, a dor em sua cabeça se tornou insuportável. Ele gritou. Um grito rasgado, primal,
que ecoou pelas paredes de pedra e fez as lamparinas tremerem. Seu corpo se arqueou
violentamente, os olhos revirando-se, os dentes cerrados até que sangue escorresse pelos cantos
da boca. Curandeiros entraram correndo. Shiena gritava por ajuda. As sombras da morte haviam
voltado para cobrar seu preço.
Horas depois, ele despertou novamente — desta vez entre soluços e delírios. Chamava por
Caim. Por sua mãe. Por seu pai. Clamava por perdão, por descanso, por alívio. Shiena o abraçava
com força, murmurando palavras ternas, como uma sacerdotisa em meio a um templo
desmoronando.
Nos dias que se seguiram, a recuperação foi lenta e cheia de quedas. O corpo recusava-se a
comer. A mente recusava-se a dormir. Os pesadelos vinham com fúria: explosões, membros
decepados, o som de carne sendo dilacerada. Cada barulho metálico — uma armadura, um copo
caindo — fazia Eron se encolher como um animal acuado.
Vendo seu estado, o Conselho o afastou. A guerra podia continuar, mas ele não era mais um
guerreiro. Recebeu uma pensão, uma carta de louvor... e o silêncio cruel de quem é deixado para
trás.
Meses se passaram. Com a ajuda dos curandeiros, ele reaprendeu a caminhar. A sorrir. A respirar
sem culpa. Suas mãos, outrora treinadas para matar, agora colhiam ervas e curavam feridas.
Tornou-se curandeiro de sua vila. Um homem de silêncio e compaixão.
Shiena, por sua vez, tornou-se conselheira espiritual. Cuidava dos órfãos, dos viúvos, dos
soldados quebrados, como cuidara de Eron. Sua presença era bálsamo. Sua voz, esperança.
E quando a primavera retornou com seu perfume de renascimento, os dois decidiram recomeçar.
Construíram uma casa modesta, entre bosques e colinas, onde a paz podia florescer. Plantaram
um jardim. Criaram um lar. E, entre risos tímidos e histórias contadas ao crepitar do fogo,
começaram a construir algo que a guerra jamais poderia destruir.
Ali, nas sombras densas de um passado cravado a ferro e sangue, onde as cicatrizes ainda
murmuravam histórias de dor nas madrugadas silenciosas, Eron e Shiena encontraram algo que
guerreias jamais prometem: paz. Não a paz dos tratados ou das vitórias efêmeras, mas a paz
silenciosa e real — aquela que nasce da aceitação, do perdão e do amor paciente.
Eles já não eram ícones de bravura ou mitos encarnados. Eram apenas dois seres humanos —
quebrados, sim, pelas perdas, pelo horror, pelas noites insones e pelos gritos que ainda ecoavam
na mente de Eron. Mas vivos. Vivos e juntos.
Shiena, com a força terna de quem nunca desistiu, era agora mais do que a guardiã da alma de
um herói caído; ela era o pilar sobre o qual ele reconstruía sua humanidade. E Eron, que outrora
fora tempestade e aço, aprendera a valorizar o silêncio de um amanhecer ao lado dela mais do
que a glória de mil vitórias. Trocara o brilho das runas de guerra pelo calor de um abraço; o
rugido das batalhas pelo riso contido ao entardecer.
Após anos de reconstrução, serenidade e pequenos milagres diários, Eron e Shiena enfim
sentiram-se prontos para um novo passo. Mas esse momento não surgiu repentinamente — foi
uma lenta alvorada depois de uma longa noite sem estrelas. Não era apenas uma decisão material,
não se tratava apenas de fincar estacas ou levantar paredes. Era algo muito mais íntimo: a
construção cuidadosa de uma vida onde antes só existia ruína.
Nos primeiros meses, tudo ainda era frágil como vidro fino. Eron, mesmo fora de perigo, lutava
contra sombras que só ele via. O peso de Caim, a fúria descontrolada, os gritos do campo de
batalha — tudo isso se misturava aos sons inofensivos do presente. O estalar de uma lenha na
lareira ainda o fazia estremecer. O cheiro de ferro no ar após a chuva ainda o levava de volta ao
chão ensanguentado da fortaleza. E era nessas horas que Shiena, firme como uma rocha em
meio ao vendaval, tomava suas mãos e o trazia de volta. Com palavras ou silêncio. Com histórias
ou apenas com a presença constante de quem não recua.
Foram anos de rotinas pequenas, os dias de Eron e Shiena começaram a seguir um ritmo quase
ritualístico — não por obrigação, mas porque aquela cadência suave os ancorava à vida.
Ao amanhecer, antes mesmo que o sol rasgasse o céu com seus primeiros tons dourados,
Shiena já estava de pé. Ela começava o dia em silêncio, acendendo uma lamparina pequena junto
ao altar de madeira que havia esculpido com as próprias mãos — não um altar religioso, mas um
espaço de memória, com uma pedra marcada com o nome de Caim, uma mecha dos cabelos de
Eron guardada da época em que ele esteve em coma, e um pequeno frasco com terra do antigo
campo de batalha. Ali, ela respirava fundo, agradecia pela noite que passou, e pedia serenidade
para o novo dia.
Enquanto isso, Eron levantava-se com lentidão, mas sem pesar. Vestia roupas simples — calças
de algodão rústico, túnica de linho grosso — e ia direto até o poço para lavar o rosto com a água
fria da manhã, um gesto que ele chamava de “despertar a alma”. Em seguida, acendia o pequeno
fogão de ferro com lenha que ele mesmo cortava nos fins de tarde, e colocava para ferver uma
mistura de raízes e folhas: gengibre, hortelã, e às vezes canela ou erva-cidreira, dependendo do
humor de Shiena.
Após o desjejum, que consistia em pão escuro, frutas da estação e uma tigela de mingau de
cevada, ambos saíam de casa — mas tomavam caminhos distintos. Shiena seguia para o bosque,
onde mantinha seu pequeno santuário entre as árvores. Lá, ela encontrava as mulheres da vila
para sessões de aconselhamento, ajudava viúvas a reorganizar suas casas, e ensinava às crianças
órfãs lendas antigas que falavam de bondade e coragem. Também colhia flores para enfeitar a
mesa do jantar, e fazia isso com um cuidado quase cerimonial.
Eron, por sua vez, caminhava até a clareira onde construíra um jardim de ervas medicinais.
Ajoelhava-se na terra, sem pressa, limpava as raízes, verificava os caules. Conhecia cada planta
como se fosse um velho amigo: a arnica para contusões, a calêndula para queimaduras, a
valeriana para pesadelos. Ele aprendeu a cuidar da terra com a mesma dedicação com que antes
empunhava uma espada. Suas mãos, que já mataram, agora plantavam. Alfaces, batatas,
mandrágoras e funcho. Depois, passava pelo salão da vila onde mantinha um espaço
improvisado como curandeiro. curava feridas simples, oferecia conselhos aos jovens, preparava
unguentos para dores nas costas dos anciãos, lia livros de botânica e medicina rústica, e escutava
— porque a maioria das pessoas só queria ser ouvida. Seu olhar, antes frio e calculista, agora
tinha a calma de quem finalmente aprendeu a ver a beleza do mundo.
No meio da tarde, reencontravam-se para almoçar sob a sombra de uma cerejeira que haviam
plantado juntos no primeiro ano. Era um momento de silêncio confortável, onde o som do
vento nas folhas e o murmúrio do riacho vizinho pareciam preencher as palavras que não eram
ditas.
À tarde, Eron seguia para cortar lenha, reparar cercas, ajudar algum vizinho com um telhado. Se
era dia de mercado, carregava cestos com seus remédios e pomadas para a praça da vila, onde já
era conhecido como “o homem que curava sem perguntar sobre o passado”. Shiena, nesses dias,
acompanhava crianças nos estudos, ou escrevia longas cartas que depois enterrava perto do
santuário — mensagens que jamais seriam enviadas, mas que ajudavam a limpar a alma.
Ao anoitecer, voltavam para casa. Tomavam banho juntos — em silêncio, muitas vezes, apenas
dividindo a água morna e a companhia mútua. Depois, preparavam a ceia: sopa de raízes, pão
fresco, uma garrafa de vinho rústico trocado com um mercador anão da estrada. Riam das
histórias do dia. Shiena às vezes cantava uma canção élfica para embalar a noite, e Eron a
escutava com a cabeça encostada no colo dela.
E então dormiam. Um ao lado do outro, como sentinelas da esperança. Nem sempre o sono
era tranquilo, mas era dividido. E nesse partilhar, estavam vivos.
Shiena, por sua vez, tornou-se um pilar da comunidade. A mulher que velara por um herói
durante vinte e uma noites sem fim agora velava pelos sonhos dos outros. Criou um pequeno
santuário em meio ao bosque, onde recebia crianças órfãs, soldados marcados pela guerra,
mulheres que perderam seus maridos para monstros ou mágoas. Ali, ela contava histórias — não
de espadas e glórias, mas de sobrevivência, de renascimento. Tornou-se conselheira, confidente,
voz de ternura entre tantos ruídos.
Eron e Shiena, com o tempo, aprenderam a sorrir de novo. Não com o sorriso impetuoso dos
jovens que se acham imortais, mas com o sorriso maduro de quem já viu o pior e ainda assim
escolheu ficar. Brincavam com simplicidade: ela fingia que não sabia cozinhar só para ver o ar de
fingido desespero dele; ele errava de propósito os nomes das ervas só para vê-la rir. E esse riso
era como música para ambos — uma melodia rara que lembrava que estavam vivos. E juntos.
Houve recaídas, sim. Dias em que Eron trancava-se em silêncio, preso em pesadelos que
insistiam em voltar. Houve noites em que Shiena chorava sozinha no bosque, temendo que ele
jamais fosse o mesmo. Mas em cada uma dessas quedas, havia mãos estendidas. Havia ternura.
Havia paciência.
E com o passar dos anos, as memórias de sangue deixaram de ser feridas abertas. Tornaram-se
cicatrizes. Marcas, sim — mas marcas que contavam uma história que merecia ser lembrada, não
para alimentar a dor, mas para exaltar a superação.
Quando finalmente decidiram construir uma casa, não o fizeram num impulso. Escolheram o
terreno juntos: uma clareira cercada por árvores frondosas, com um pequeno riacho cortando o
campo, onde flores silvestres cresciam sem ninguém plantar. Era um lugar calmo, protegido,
onde o mundo parecia respirar mais devagar. Lá, ergueram um lar de madeira e pedra, com
janelas largas para que o sol entrasse, e um jardim onde Eron cultivava ervas e Shiena flores.
A cada pedra colocada na fundação, a cada viga erguida, pareciam também reerguer partes de si
mesmos.
Foi ali, entre o aroma de camomila e o som dos pássaros, que disseram em silêncio: “Estamos
prontos.” Não para esquecer o passado — mas para viver, enfim, um futuro.
Capítulo 7
Com o fruto árduo do trabalho dedicado de Eron como curandeiro na pequena vila, ele e Shiena
começaram a construir um refúgio que carregava em si a promessa de um futuro diferente. O
esforço deles não se restringia a curar feridas de batalha ou doenças passageiras; era uma
reconstrução do que restava da alma, um renascer delicado em meio a um mundo ainda instável.
A casa nova, maior e mais acolhedora, emergia aos poucos naquela paisagem marcada por terras
ainda marcadas por batalhas recentes, mas onde as estações prometiam a renovação da vida. As
paredes de madeira forte, recém-cortada e trabalhada, ainda exalavam o cheiro da floresta, um
aroma terroso e fresco que preenchia o ar e enchia o coração de quem cruzasse seu umbral. As
janelas amplas deixavam entrar a luz do sol, que dançava nos cantos do salão principal,
iluminando com um brilho dourado os móveis simples, porém escolhidos com cuidado para
durar gerações.
No quintal, camas elevadas guardavam as ervas medicinais cultivadas com esmero — tomilho,
manjericão, lavanda, e outras tantas que Eron e Shiena aprendiam a usar como aliados na luta
contra a doença e o sofrimento. Potes de vidro, contendo tinturas e ungüentos, alinhavam-se nas
prateleiras, reluzindo sob o sol como tesouros de cura. Livros, heranças de Shiena, adornavam as
estantes, suas páginas amareladas contendo saberes antigos, magias sutis e histórias que falavam
de esperança e transformação.
Mas, acima de tudo, aquela casa guardava um espaço maior — não apenas em sua arquitetura
simples, porém acolhedora, mas principalmente em seus corações marcados por cicatrizes
profundas e sonhos quase esquecidos. Era um espaço de renascimento, de promessas delicadas,
onde cada pedra assentada e cada tábua pregada ecoavam mais do que esforço físico: carregavam
o peso de uma esperança que, por muito tempo, parecia ter se perdido no tempo e nas sombras
da guerra.
A casa, com suas paredes firmes e janelas que deixavam o sol entrar em raios tímidos pela
manhã, parecia respirar junto com seus moradores. O chão de madeira cravado com passos
incertos e, ao mesmo tempo, determinados, guardava o eco das vozes baixas e sussurrantes de
duas almas que, após tantas tempestades, finalmente encontravam abrigo — um refúgio onde
poderiam cultivar não só ervas e remédios, mas também a possibilidade de um futuro.
E então, quase sem aviso, como o desabrochar inesperado de uma flor após um inverno longo e
cruel, a vida lhes sorriu novamente.
Ela chegou como uma luz tênue, um sopro delicado que preenchia o ar com uma calma doce e
profunda. O choro dela, embora débil, foi para Eron e Shiena o som mais poderoso que já
haviam ouvido — não apenas um sinal de que algo novo existia, mas uma promessa viva de que
a escuridão, por mais densa que fosse, nunca conseguiria apagar completamente a chama da
esperança.
Naelith era como o primeiro raio de sol que atravessa as nuvens após uma tempestade
interminável. Cada pequeno movimento seu, cada batida acelerada de seu coração minúsculo,
parecia pulsar em sintonia com o desejo latente dos pais — um desejo que pulsava silencioso em
seus peitos desde que o mundo desabou ao seu redor: o de acreditar, enfim, em um amanhã.
Ela carregava em si não só a carne e o sangue dos seus ancestrais, mas toda a carga emocional de
uma história que atravessava gerações. Era, ao mesmo tempo, um símbolo de redenção e uma
promessa que fazia tremer as bases daquele lar recém-construído.
Enquanto Shiena embalada a menina nos braços pela primeira vez, o tempo pareceu desacelerar,
como se o próprio universo tomasse um instante para testemunhar aquele milagre silencioso. O
calor suave da pele da criança contra a sua, o cheiro doce e frágil do recém-nascido, tudo
convergia para criar uma sensação única de paz e renascimento.
Eron, observando de perto, sentiu uma onda avassaladora de emoções que os anos de guerra não
lhe permitiram expressar antes: um misto de admiração, temor e um amor tão intenso que quase
doía.
A casa, agora viva com a presença da criança, parecia pulsar com uma nova energia, uma aura
que prometia transformar o passado doloroso em um futuro em que a esperança não seria
apenas uma palavra vazia, mas uma realidade palpável.
Naelith era o brilho tênue, porém firme, que iluminava aquele espaço — não só de madeira e
pedra, mas de corações que, mesmo marcados pela dor, encontravam força para sonhar
novamente.
O nome escolhido para a criança não fora mero acaso. "Naelith" significava “aquela que traz a
luz da esperança”, uma promessa e um lembrete do que Eron e Shiena haviam lutado para
preservar. Naelith era mais que uma criança: era um símbolo vivo da redenção e do amor que
emergia das cinzas da dor.
Desde o momento em que a pequena veio ao mundo, todos sentiram a magnitude daquela
presença. Seus cabelos, de um negro profundo, herdados do pai, pareciam absorver a luz ao
redor, criando um contraste hipnotizante com os olhos azul-claros que brilhavam com a
serenidade dos céus de primavera — olhos que pareciam conter a vastidão de um oceano calmo,
carregado de uma melancolia doce, como se carregassem memórias ancestrais de tempos
imemoriais.
A vila inteira celebrou seu nascimento com uma alegria genuína e comovente, interrompendo
momentaneamente a dureza do cotidiano marcado por incertezas. Os vizinhos se reuniram,
levando flores recém-colhidas das encostas verdejantes, pães quentes ainda fumegantes e
pequenas oferendas feitas com mãos trêmulas, na esperança de atrair sorte e proteção para a
criança. Pela primeira vez em muito tempo, lágrimas não eram de tristeza, mas de gratidão. Eron
chorou, seu rosto marcado pelas linhas da guerra e da perda, liberando a emoção acumulada em
anos de luta.
Mas a alegria, como a vida mesma, trazia sua sombra. Desde os primeiros dias, a fragilidade da
criança se fazia evidente. Sua pele era translúcida, quase etérea, e parecia absorver a luz em vez
de refletí-la, como se seu corpo estivesse em um estado constante entre o mundo dos vivos e
uma sombra iminente. O choro dela, tão delicado, era quase um sussurro, um apelo que
estremecia os corações de seus pais. Suas forças se esvaíam com facilidade, e as noites da família
foram tomadas por vigilâncias angustiantes e esperas silenciosas, com os olhos pesados pela
fadiga, mas nunca fechados diante da possibilidade de perda.
Após longas jornadas de consultas, exames exaustivos e rituais sagrados realizados pelos
curandeiros mais sábios da vila, o diagnóstico final caiu sobre eles como um sino fúnebre:
Consunção Etérea. Uma maldição cruel e rara, uma doença que drenava a mana vital da menina,
lentamente roubando sua essência mágica — a força que sustentava não só seu corpo, mas sua
própria existência.
A sentença era clara: sem um suprimento constante e mágico, Naelith se apagaria como uma vela
ao vento, desaparecendo lentamente na escuridão do esquecimento.
Desafiando o destino, os curandeiros, junto com a sabedoria e o empenho de Eron, criaram uma
solução que misturava ciência, magia e esperança — um dispositivo conhecido como Receptor
de Mana. Uma criação simples em aparência, mas profundamente vital em sua função.
Feito com metais leves e resistentes, couro tratado e runas gravadas à mão com precisão e amor,
o aparelho era uma extensão quase natural do corpo delicado de Naelith. Ele repousava contra
sua pele como uma armadura invisível, uma segunda pele que pulsava com uma energia azulada e
constante — a pedra de mana, brilhante e viva, que emitia um suave fulgor como se fosse um
coração batendo fora do peito da menina.
Foi por meio daquele pequeno artefato que Naelith conseguiu manter a tênue linha entre a vida e
o abismo.
Apesar das limitações impostas pela doença, Naelith cresceu cercada de amor e cuidado. O
brilho constante do Receptor iluminava não apenas seu corpo, mas seu espírito. Ela corria pelo
quintal, tropeçando em suas pernas pequenas, mas nunca desistia. Seu riso, embora entrecortado
por tosses, era contagiante — um remédio para as almas cansadas de seus pais.
Os olhos da menina refletiam uma determinação invencível, uma força silenciosa que encantava
todos na vila. Embora sua respiração falhasse com frequência, e seus lábios às vezes adquirissem
um tom arroxeado ameaçador, ela nunca deixava de sorrir para Eron e Shiena, como se dissesse:
"Ainda estou aqui. Ainda lutando."
Eron, cuja vida fora marcada por guerras épicas, agora travava um duelo silencioso e ainda mais
árduo — a luta diária para manter sua filha viva. Suas mãos que antes manejavam a espada com
maestria agora trabalhavam com delicadeza e precisão, buscando novas ervas, decifrando antigos
pergaminhos de cura, manipulando correntes de mana com uma paciência quase sobre-humana.
Shiena, por sua vez, tornara-se a fortaleza emocional daquela casa. Seu abraço era um porto
seguro, suas histórias antes de dormir, um bálsamo contra as dores, e suas canções suaves, uma
ponte para mundos onde a dor não podia alcançá-los.
Com o passar dos anos, embora a sombra da Consunção Etérea nunca tenha desaparecido, o
estado de Naelith estabilizou-se. O amor, o conhecimento e a dedicação de seus pais construíram
uma muralha invisível que protegia a menina da iminente escuridão.
Ela floresceu na medida de suas forças — pequena, mas valente, frágil, mas invencível na alma.
Porém, longe dali, nas entranhas esquecidas da terra, onde a luz jamais se atrevera a tocar, algo
começou a se mover. Uma presença ancestral, envolta em mistérios e trevas que antecediam até
mesmo os mais antigos registros humanos, rompeu os véus do esquecimento.
Não era simplesmente um espírito ou um feiticeiro caído, mas uma entidade que parecia
pertencer a um tempo anterior ao próprio mundo.
Com um feito impensável, essa força profana trouxe de volta à existência parte dos demônios
destruídos na última grande guerra. Não eram simples cópias, mas sim versões aprimoradas,
moldadas com uma crueldade que transcenderia os horrores do passado.
Cada demônio renascido carregava, dentro de si, as memórias e dores de todos os que haviam
caído, cada derrota, cada sofrimento, como se a própria essência da vingança tivesse se fundido a
eles.
Entre todas aquelas memórias, uma chamava atenção como uma ferida pulsante: Eron.
Ele, que em um acesso berserker havia ceifado incontáveis vidas demoníacas, tornou-se a
personificação da ruína para aqueles que antes espalhavam o terror sobre os humanos. Não era
apenas um inimigo; era o símbolo vivo da derrota e humilhação que eles jamais poderiam
esquecer.
Escavada e moldada em pedra e aço negro, iluminada por chamas eternas que jamais
tremulavam, o Ventre da Ira tornou-se um santuário sombrio e feroz, uma forja onde planos e
armas eram criados para um retorno triunfal.
Lá, os demônios estudavam os humanos não apenas pela percepção, mas através das memórias
compartilhadas que carregavam. Conheceram suas táticas, estratégias e armas, adaptando tudo
com uma crueldade refinada à sua natureza monstruosa.
Seus equipamentos não eram meras réplicas das armaduras humanas; longe disso, tornaram-se
extensões macabras e aterrorizantes de seus próprios corpos, fundidos numa simbiose profana
entre carne e metal. Essas armaduras não buscavam cobrir ou adornar, mas proteger apenas os
pontos vitais — a garganta, o coração, o plexo solar, as têmporas — os lugares onde a vida
poderia ser abruptamente extinta. Eram presas à pele viva por cordas feitas de tendões
encantados, tecidos a partir da essência dos próprios demônios e costurados com precisão cruel,
como se o aço e a carne formassem uma única entidade pulsante. O metal, negro como a noite
sem estrelas, fora forjado num processo sangrento e abissal: ossos triturados de inimigos antigos
fundidos em ligas amaldiçoadas, mergulhadas repetidas vezes em rituais profanos que conferiam
à superfície uma aura viva — um brilho sombrio que parecia respirar, pulsar, e ansiar por sangue.
O Ventre da Ira, a cidade subterrânea erguida no coração das profundezas esquecidas, era um
eco constante desse tormento. Os corredores de pedra negra reverberavam com o som
incessante dos martelos que golpeavam bigornas, um clangor ritmado que era ao mesmo tempo
forja e canto de guerra. Entre aquelas sombras, demônios se movimentavam com precisão letal,
afiadíssimos na arte da batalha, afiando lâminas, reparando armaduras e entoando cânticos
gutturais carregados de fúria ancestral — cânticos que ressoavam como juramentos de vingança,
cada palavra vibrando com o peso de séculos de ódio acumulado.
O ódio coletivo era um fogo voraz que queimava sem trégua nas profundezas, alimentando a
fúria e a determinação dos demônios. Era uma chama que nunca se extinguia, uma sede primal
de destruição que transformava o medo em raiva e a raiva em força implacável. Eron, uma
sombra do passado, um pesadelo encarnado, tornou-se o símbolo maior dessa ira. Ele era o
fantasma que assombrava seus sonhos febris, a lembrança brutal da derrota que os demônios
carregavam como uma ferida aberta. Seu nome, sussurrado entre os corredores escuros, era mais
do que uma memória — era uma convocação para o ódio, o estandarte de um fracasso que
precisavam apagar com sangue.
Mas, desta vez, não marchariam às cegas, impulsionados apenas por instinto selvagem.
Aprenderam com os erros do passado, moldaram-se como um exército disciplinado, estratégico,
cruel em sua precisão. Cada passo era calculado, cada golpe preparado com o peso de um
propósito mortal: destruir o homem que os devastara e enterrara suas esperanças no chão árido
da derrota.
Enquanto isso, na superfície, o mundo parecia seguir em seu ritmo pacífico e quase ingênuo. As
crianças corriam livres pelos campos verdejantes, suas risadas soltas flutuando pelo ar quente da
manhã. Os sinos da vila tocavam melodias simples, marcando o passar das horas com um
conforto quase sagrado, e o aroma do pão fresco, acabado de sair dos fornos rústicos, preenchia
as ruas de uma promessa silenciosa de sustento e continuidade. Era uma imagem de normalidade
que contrastava com a tempestade que se formava silenciosa e inexoravelmente abaixo da terra.
Naelith, envolta pela luz constante e tênue do Receptor de Mana, corria com passos incertos
atrás de borboletas coloridas que dançavam sobre as flores do jardim. Seu riso puro e cristalino
era uma música de esperança que preenchia o ar, um bálsamo contra o peso da incerteza que
pendia sobre seus pais. Eron e Shiena, seus olhos carregados de vigilância e afeto, observavam
cada movimento da filha, seus corações apertados entre a alegria e o temor pelo futuro que lhes
aguardava.
Mas, nas profundezas insondáveis, além da luz e da vida, um som começou a emergir, quase
imperceptível no início — o ritmo abafado de tambores que reverberavam como batidas de
corações invisíveis, marcando o despertar de uma fúria antiga e contida. A terra parecia vibrar
com uma energia escura, não um pulsar de vida, mas uma promessa de conflito e destruição por
vir.
A vibração sutil crescia, como um trovão distante que prenuncia a tempestade, até que se tornou
um sussurro palpável na pele, um tremor no ar pesado da noite.
Quando o momento certo finalmente chegasse — um instante marcado não pelo relógio dos
homens, mas pelo ritmo antigo e inexorável do destino — o mundo da superfície, ainda envolto
em sua paz ingênua e efêmera, seria cruelmente arrancado de sua letargia. Aquele mundo
tranquilo, onde o sol brilhava sobre campos verdejantes e o ar carregava o perfume de flores e
terra molhada, se veria lançado abruptamente no abismo sombrio da guerra, uma guerra que
ninguém mais queria, mas que, como uma sombra persistente, se aproximava silenciosa e
implacável.
Ali, nas vilas onde crianças brincavam despreocupadas, onde os sinos ecoavam suas melodias de
esperança e onde os sorrisos se espalhavam nas feiras e nas ruas empedradas, o sopro da
destruição começaria a se infiltrar. As noites pacíficas seriam rompidas por gritos, o ar antes
limpo e doce se tornaria denso com o cheiro acre da fumaça e do ferro queimado. A luz suave
do amanhecer seria ofuscada pelas chamas que lambiam as casas e as colinas. O chão que
sustentava gerações de vida seria rasgado por feridas abertas de batalhas sangrentas.
E no centro dessa tempestade inevitável estava ele — o homem que, há não muito tempo, fora
um ícone de terror invencível para as forças das trevas. Seu nome era uma lenda sussurrada entre
as sombras das masmorras demoníacas, uma lembrança cruel que fazia os mais poderosos
temerem e os mais obstinados vacilarem. Eron Shaddai Arnheid, o guerreiro cuja fúria já havia
ceifado incontáveis inimigos, transformando batalhas em carnificinas que até hoje se contam
com reverência e medo.
Mas agora, a maré se invertia. O caçador tornava-se a presa. O símbolo da destruição e da força
absoluta passava a carregar sobre os ombros o peso da perseguição implacável. Cada passo seu
seria seguido por olhos famintos de vingança, cada suspiro escutado por ouvidos atentos que
ansiavam por sua queda. Os demônios, forjados na dor e no ódio, não apenas desejavam sua
morte — eles planejavam sua ruína total, sua aniquilação definitiva, para apagar da memória do
mundo a lembrança de sua força.
A escuridão que se agitava no Ventre da Ira não mais permitiria que o passado fosse esquecido.
O clamor por vingança crescia, ecoando pelas cavernas profundas, atravessando as barreiras de
pedra e ferro, ameaçando romper a superfície com uma fúria há muito contida. Era uma
promessa sombria, uma tempestade silenciosa prestes a explodir, e nada, nem mesmo a
esperança que agora brilhava timidamente no coração de Eron, poderia deter o destino que se
aproximava.
Assim, na tênue linha entre a paz e o caos, entre a luz e a sombra, o jogo mortal começava. O
homem que um dia fora o terror invencível dos demônios agora caminhava no fio da navalha,
sabendo que, a qualquer momento, poderia se tornar o caçado — e que sua luta para proteger
tudo aquilo que amava seria mais difícil, mais brutal e mais desesperada do que jamais fora.
Capítulo 8
O inverno chegara mais cedo naquele ano, trazendo consigo um manto gélido que envolvia a vila
em névoas espessas e silenciosas, como se o próprio ar se tornasse pesado, carregado de
presságios e segredos velados. As pedras antigas das casas absorviam o frio, e as chamas nas
lareiras lutavam para aquecer não só os corpos, mas as esperanças que insistiam em resistir ao
tempo sombrio.
Naelith, agora com doze anos recém-completados, caminhava pelas trilhas de terra com passos
lentos e cuidadosos, enrolada num manto grosso, habilidosamente costurado por Shiena, que
combinava fios de lã e encantamentos discretos para proteger sua filha do vento cortante. Preso
ao peito da menina, o receptor de mana pulsava com uma luz azulada constante, uma segunda
respiração que mantinha a tênue linha entre vida e sombra, um farol mágico que iluminava sua
existência frágil e valente.
A rotina escolar seguia seu curso, mas uma sombra pairava nos olhos de Naelith desde o fatídico
ataque de Kaelar — uma marca invisível, um peso que nem toda criança poderia carregar. Ainda
assim, seu espírito se mostrava resistente, uma chama que se recusava a ser extinta. Naelith
destacava-se entre os alunos, não apenas por sua diligência, mas pela forma singular com que
manipulava a energia ao seu redor. Os mestres observavam atentos o modo como ela moldava
os fluxos de mana: onde outros precisavam de semanas para dominar um simples feitiço de
canalização, ela fazia isso em dias, quase como se a mana se curvasse à sua vontade, respondendo
de forma quase orgânica, íntima.
Eron, seu pai, observava de longe, seu olhar cada vez mais carregado de inquietação. Nas noites
silenciosas, enquanto a vila repousava em seus sonhos, ele ouvia os murmúrios da filha no quarto
ao lado. Palavras antigas, entoadas em línguas desconhecidas e guturais, ressoavam no ar,
permeadas ora de melancolia profunda, ora de poder contido. A pedra de mana em seu peito
vibrava intensamente, emitindo brilhos que pareciam dançar conforme os sons da voz da
menina. Shiena despertava assustada, perguntando-se se ele também ouvira — e ele sempre
assentia, embora seu coração se apertasse com a incerteza do que aquilo poderia significar.
Então, numa tarde gelada e cinzenta, algo inesperado aconteceu. Enquanto treinava com uma
das professoras no pátio da escola, Naelith tentava realizar o exercício básico de formar uma
esfera de luz mágica. Mas, em vez de uma esfera contida, a energia cresceu além do controle,
explodindo numa onda de mana que varreu o pátio. Cadeiras foram derrubadas, vidraças
estilhaçaram-se com estalos agudos, e os pássaros da floresta próxima levantaram voo em um
frenesi de medo.
O susto foi enorme, mas nenhum ferimento ocorreu. Naelith, porém, permaneceu imóvel no
centro do caos, os olhos arregalados e o receptor pulsando descontroladamente. Por um breve
instante, aqueles que a viram juraram que seus olhos assumiram um tom dourado intenso — um
brilho sobrenatural que logo desapareceu, dando lugar ao violeta profundo de sempre. A
professora correu a seu lado, envolvendo-a em um abraço protetor, tentando acalmar a menina
que tremia, confusa e assustada diante do poder que mal compreendia possuir.
Naquele mesmo dia, um mensageiro real do Conselho Escolar cruzou o limiar da porta de Eron
e Shiena: um mago ancião de longas barbas prateadas e olhos profundos, Mestre Elvar, cujo
nome era sussurrado com respeito em todas as academias de magia. A lareira crepitava
suavemente no centro da sala, lançando reflexos dançantes nas paredes de pedra, enquanto os
três se acomodavam ao redor de uma robusta mesa de carvalho, cujas marcas e cicatrizes
contavam histórias de inúmeras reuniões passadas.
Mestre Elvar limpou a garganta, ajustando o capuz pesado que lhe cobria os ombros, antes de
falar com um tom grave e medido.
— Senhores — começou ele, as palavras ecoando pela sala em meio ao tilintar das runas
gravadas na moldura da porta —, o que presenciamos no pátio escolar hoje não é um evento
trivial. Mesmo entre os jovens elfos de maior aptidão mágica, jamais vi algo assim.
Eron, sentado com as mãos firmemente entrelaçadas sob o queixo, ergueu o olhar, franzindo o
cenho com crescente preocupação.
— Então dizem que minha filha… — sua voz falhou por um instante, antes de se recompor —,
manifestou uma sobrecarga de canalização sem precedentes?
Elvar assentiu, apoiando os dedos em um tomo pesado que trazia consigo, como se o próprio
volume contivesse a gravidade das palavras que ia proferir.
— Exatamente, Eron. A combinação de sua herança mágica excepcional — parte de seu sangue
elfo e parte do poder que flui em sua família há gerações — com o uso constante do receptor de
mana, aparentemente provocou um fenômeno de amplificação. Em termos práticos, o corpo
dela se adaptou a operar em níveis de mana muito acima do normal.
Shiena, sentada ao lado do marido, levou a mão ao peito, sentindo o próprio coração disparar.
O mestre fechou os olhos por um breve instante, escolhendo cada palavra com cuidado.
— Sem um controle rigoroso e imediato, o próximo surto de energia pode romper as barreiras
internas de seu corpo. Tecidos e órgãos poderiam se despedaçar sob a pressão de uma força que
ela ainda não aprendeu a conter. Em outras palavras, ela corre risco de colapso interno e morte
súbita.
O silêncio se fez, pesado como uma pedra. Eron olhou para as chamas na lareira, seu reflexo
dançando entre o vermelho e o âmbar.
— Não vamos enviá-la para longe. — O choque do veto fez Elvar levantar uma sobrancelha. —
Já passamos tempo demais separados dela. Não permitiremos que nossa filha enfrente esse
perigo sozinha, longe dos familiares e de nosso cuidado.
— Ela precisa de nós — afirmou, a voz embargada de emoção. — E nós dela. Seria egoísmo
mandar alguém tão jovem para um lugar onde sequer poderíamos acompanhar seu progresso dia
a dia.
— Muito bem. Em respeito a essa decisão e ao amor que nutrem pela filha, eu mesmo
permanecerei aqui por algumas semanas para dar início ao treinamento. Não prometo milagres,
mas farei tudo o que estiver ao meu alcance para ensinar-lhe o controle necessário.
Naelith, até então observadora silenciosa, respirou fundo e ergueu o olhar, a determinação
brilhando em seus olhos violeta.
— Eu topo. — Sua voz soou firme, sem traços de hesitação. — Já causei susto suficiente e não
quero mais representar um perigo para ninguém. Quero aprender a dominar esse poder.
Eron sorriu, um gesto rápido e emotivo, e ergueu-se, cruzando o espaço até chegar ao lado da
filha. Encostou a mão no ombro dela, num toque que transmitia orgulho e ternura.
— Fico feliz que decidas lutar ao nosso lado, minha pequena. Vamos aprender juntos, passo a
passo.
Shiena permaneceu de pé, os olhos marejados de alegria e alívio, enquanto Mestre Elvar abria
seu grimório, pronto para delinear o primeiro exercício. Lá fora, as sombras do inverno
dançavam nas janelas, mas dentro daquela casa, entre o calor das chamas e o compromisso
renovado, havia a promessa de um futuro em que o poder de Naelith seria não apenas
controlado, mas transformado em proteção para todos.
Assim, as manhãs se tornaram uma rotina dupla: escola e treino com o mestre no campo ao lado
da vila. Ali, ela aprendia a sentir a mana como correntes invisíveis, a respirar para conter o fluxo
interno, a domar a energia antes que ela rompesse as barreiras do controle. Os exercícios
exauriam seu corpo e sua mente — músculos doloridos, mãos queimadas, mente exausta. Mas
ela avançava, dia após dia, enfrentando seus limites.
Inicialmente, Naelith manteve aquele segredo enterrado dentro do peito, como uma chama frágil
escondida sob as cinzas do medo. O peso das visões a assombrava em silêncio, como um
sussurro insistente que ameaçava dilacerar sua sanidade. Ela temia que, ao contar aos pais,
pudesse causar-lhes ainda mais preocupação — ou pior, que julgassem sua mente perdida, vítima
dos excessos da mana ou do receptor que pulsava permanentemente junto ao seu coração.
Por noites a fio, lutou para ignorar as imagens. Porém, numa madrugada em que a tempestade
rugia do lado de fora, como uma besta irada que arranhava as janelas com suas garras de vento e
trovões, a visão rompeu todas as barreiras do controle. Naelith despertou em gritos agudos, seus
olhos arregalados e úmidos fixos no teto como se pudesse ver além das sombras do quarto. Seu
corpo tremia convulsivamente, e a respiração escapava em baforadas entrecortadas, presa entre o
medo e o choque do que experimentava.
O som dos seus gritos perfurou a quietude da casa. Eron foi o primeiro a romper o silêncio,
correndo pelas escadas com passos pesados, o rosto tomado por uma expressão que misturava o
pânico e a urgência. Shiena veio logo atrás, os cabelos desgrenhados pela pressa, a mão já pronta
para estender conforto.
Ao entrarem, encontraram Naelith sentada na cama, as mãos apertando os lençóis com força
quase desumana, como se quisesse segurar o mundo e evitar que ele desmoronasse ao seu redor.
Seu rosto estava suado, pálido e marcado pela tensão que nem mesmo o calor do fogo conseguia
dissipar.
— O que foi, filha? — A voz de Eron soou grave, cheia de ternura e preocupação, enquanto ele
se ajoelhava ao lado dela. Seu toque era firme, mas delicado, como se soubesse o quão frágil era
o fio que mantinha sua filha ancorada à realidade.
Naelith demorou a responder, os olhos ainda vidrados pelo terror da visão. Finalmente, com a
voz trêmula e quase inaudível, murmurou:
O silêncio que caiu depois dessas palavras foi denso, carregado de uma gravidade sufocante. O ar
parecia pesar, o mundo ao redor tornando-se lento, como se até o tempo hesitasse diante
daquele anúncio.
Shiena levou a mão trêmula à boca, os olhos marejados quase transbordando lágrimas que ela se
recusava a deixar cair. Era um choro antigo, que carregava o medo de perder tudo aquilo que
havia conquistado, e a dor de uma guerra que teimava em bater à porta mais uma vez.
Eron a puxou para perto, envolvendo-a num abraço protetor, como se pudesse, com a força do
próprio corpo, afastar as trevas que ameaçavam engolir a família. Seu rosto endureceu, os olhos
que antes carregavam a serenidade do homem que se dedicava à cura, agora brilhavam com a
chama do guerreiro que nunca deixará de existir dentro dele.
— Está começando — ele sussurrou, mais para si mesmo do que para os outros, com uma voz
que misturava determinação e resignação.
Naelith, apesar do cansaço que lhe pesava nos ossos, apertou a mão do pai com uma força
surpreendente, o olhar queima-te cheio de uma coragem recém-descoberta.
— Se for preciso... eu lutarei também — sua voz soou firme, uma promessa tão sincera que fez o
coração de Eron arder com uma mistura de orgulho e medo.
Shiena, vendo aquela troca silenciosa de promessas, aproximou-se dos dois, envolvendo-os num
abraço apertado, quase desesperado. Era um abraço que dizia tudo o que as palavras não podiam
carregar: amor, medo, esperança e a promessa inquebrável de que ficariam juntos, custasse o que
custasse.
As paredes de pedra daquele quarto, frias ao toque e salpicadas de musgo em pequenas fissuras,
relembravam séculos de silêncio interrompido apenas por sussurros de vento nas frestas. As
tábuas do assoalho rangiam sob o peso dos passos lentos, ressoando como batidas de tambor em
meio ao silêncio da noite. A lareira, embora discreta, ainda exalava um tenue calor que dançava
sobre as tábuas proximais, criando sombras que se contorciam pelas paredes, transformando o
ambiente num palco de luz e escuridão. As cortinas de linho, grossas e pesadas, balançavam
suavemente diante de uma corrente de ar que entrava pela janela entreaberta, carregando consigo
o cheiro úmido da geada que se formava lá fora e o odor terroso das pegadas recentes na estrada
de terra.
Lá fora, a vila repousava sob o manto pesado daquelas neblinas invernais, suas ruas desertas
pontuadas apenas pelos reflexos trêmulos de tochas nas janelas. O estalido de galhos congelados
quebrando-se e o leve roçar das folhas secas carregadas pelo vento compunham uma melodia
sombria, um contraponto ao silêncio esperado de quem ainda dorme. Mas naquele quarto, cada
respiração — o suspiro contido de Shiena, os batimentos compassados do coração de Eron, o
pulsar rítmico da pedra de mana no peito de Naelith — soava como um hino de vigília.
Era ali, entre sombras que se moviam e luzes que tremeluziam, que o pacto selado naquela noite
tomava forma. Cada sensação — o frio que penetrava as camisas de lã, o calor intermitente da
lareira, o cheiro de ervas medicinais e o eco distante do vento ansioso — convergia para um
único entendimento: a paz era mera ilusão, e dali em diante, aquela casa seria o bastião onde a
guerra encontraria sua primeira resistência.
Mas dentro daquela casa, envoltos pela quietude interrompida apenas pelo som das respirações e
batimentos de coração, todos sabiam, com uma certeza profunda e silenciosa:
Capítulo 9
Durante os longos anos que se seguiram àquela noite de pavor e promessa, Naelith mergulhou
em um treinamento que foi ao mesmo tempo seu desafio mais árduo e sua salvação mais
preciosa. Sob a orientação de Mestre Elvar, ela passou a dedicar as primeiras horas de cada
manhã ao estudo silencioso e metódico da própria energia interna.
4. A dança do redirecionamento
Com o passar dos meses, o treinamento evoluiu para movimentos corporais. Inspirada nos
exercícios de espada de Eron, Naelith aprendeu a empunhar um bastão leve, ritmado por sua
própria energia. Cada giro do bastão era acompanhado por um fluxo de mana que partia do
receptor, percorria seu braço e jorrava em pequenas faíscas controladas. A meta era simples: se o
fluxo crescente ameaçasse romper seus limites, a menina deveria usar o bastão para redirecionar
o excesso, lançando-o de volta ao solo ou absorvendo-o de volta ao receptor.
Apesar de todo o progresso alcançado, Naelith permanecia, em essência, uma força delicada,
dependente do pulso constante do receptor de mana. Mesmo após anos de treino e refinamento
de suas habilidades, uma falha no aparelho poderia deixá-la à beira do colapso. Os curandeiros
calcularam que, se o receptor viesse a paralisar completamente, seu corpo ainda carregaria mana
residual capaz de mantê-la viva por até cinco dias. Três delas, segundo Eron, seriam gastas
apenas lutando contra o frio e a exaustão, e os dois dias finais consumiriam-se na dor da mana se
esvaindo, tecido a tecido.
Por outro lado, sem o receptor em si — se ele fosse arrancado do peito ou destruído — Naelith
jamais resistiria além de cinco horas. Cada minuto sem o pulsar azulado aumentaria
exponencialmente o risco de ruptura interna, até que seu corpo não conseguisse mais sustentar
sequer os processos vitais mínimos. Era por isso que, mesmo nos períodos “estáveis” de
manutenção, Eron e Shiena mantinham vigilância constante: verificavam o alinhamento do
receptor e recarregavam suas runas de segurança diariamente, não permitindo um único instante
de negligência.
Na prática, isso significava que cada exercício de treinamento nunca se encerrava por completo.
A estabilização tinha de se desdobrar em múltiplas camadas:
1. Monitoramento contínuo
– Todas as horas de vigília, alguém — Eron, Shiena ou Mestre Elvar — conferia o pulso
do receptor, anotando eventuais falhas de batimento. Um taque único fora do compasso
podia sinalizar o início de uma emergência.
2. Treinos de redundância
– Em cada sessão de canalização, Naelith aprendia a ativar runas secundárias costuradas
sob a pele por Shiena, capazes de fornecer quinze minutos extras de mana, tempo
suficiente para que a criança fosse carregada de volta à segurança e o receptor reparado.
3. Fortalecimento corporal
– A menina seguia um regime de alimentação reforçada e chás revigorantes à base de
raízes de ylliriana e pétalas de solenira, plantas conhecidas por melhorar a resistência ao
frio e à fadiga. Isso não garantia cura, mas adiava a fraqueza caso o receptor vacilasse.
4. Planejamento de emergência
– Em cada casa e na escola, havia sempre um kit de ferramentas mágicas pronto:
essências para recarga rápida do receptor, unguentos para ferir levemente a pele e ativar
reservas de mana interna, e amuletos de contenção para impedir picos fatais.
Naelith, ciente dessa dependência, carregava consigo o receio de um segundo em que o receptor
parasse. Mas também, pela primeira vez, sentia um orgulho silencioso: dominara tão bem seu
próprio corpo e espírito que sabia exatamente como estender sua própria linha de vida, mesmo
em face de uma falha catastrófica. Essa fragilidade, por mais assustadora que fosse, transformou-
se em sua maior motivação para continuar treinando — porque cada batida do receptor era, para
ela, um lembrete de quão preciosa e breve era cada vida.
Fim do prólogo
História principal
Capítulo 1
Após anos de incertezas e cuidados constantes, um novo ciclo começava. Eron e Shiena, em seus
olhares trocados à luz da lareira, sabiam que o tempo de reconstrução pedia florescer uma nova
esperança. Por muitos ciclos da lua, entregaram-se ao movimento silencioso da criação: Shiena,
de mãos postas em preces ao altar da vila; Eron, guardião paciente que oferecia à esposa toda a
ternura e proteção que o passado permitirá. Quando enfim Shiena concebeu, os deuses
pareceram sorrir pela primeira vez desde os dias sombrios da guerra.
Os nove meses que se seguiram foram tecidos com fios de amor e vigilância. Cada passo de
Shiena, cada gesto cotidiano, era acompanhado por Eron com um misto de devoção e ansiedade.
Seu olhar não deixava o ventre crescente; suas mãos, sempre inquietas, buscavam o calor do
corpo da esposa como se pudessem adiar qualquer notícia amarga. Naelith, apesar da saúde ainda
frágil, fez-se aprendiz de parteira: colhia ervas — camomila para as náuseas, raiz-de-sereno para
as noites agitadas —, preparava infusões doces e sentava-se ao lado de Shiena, descansando as
mãos sobre o ventre apreciado, imbuindo-o de toda a esperança que sobrava em seu peito.
As noites foram longas. A lareira, fiel testemunha, estalava e aquecia o salão, iluminando rostos
cansados que se permitiam sussurrar planos para um futuro em que o medo não dominasse.
Falavam de um jardim florido, de risos livres na varanda e de uma viagem ao mercado de
Arnved, naquela primavera ainda por vir. Mas, ao fim de cada conversa, o silêncio voltava para
quebrá-los — lembrança velada de que, além das janelas, a guerra ainda espreitava. Eron
reforçava as barreiras de proteção, traçando runas com “Arcanum Custodia” nas pedras do
perímetro, enquanto Shiena entoava cânticos de serenidade para manter a casa a salvo.
Dois anos transcorreram desde que Elyon chegou. Numa tarde de céu límpido e vento brando,
Naelith, agora quase adolescente, colhia flores silvestres à beira do riacho para mais uma infusão.
De repente, sentiu o ar se adensar, o tempo hesitar. Congelou, as pétalas escorregando de seus
dedos. Uma luz dourada banhou o mundo por um segundo: viu o pai e o irmão — Elyon com
cerca de quinze anos — treinando espadas sob um sol sereno, enquanto ela, sentada junto a uma
árvore, sorria costurando um manto cerimonial. Ali não havia sombra de guerra, apenas a
promessa de dez anos de paz, uma década de preparação antes da tempestade final.
Chegando em casa, coração em turbilhão, Naelith lançou-se aos braços dos pais, ofegante:
E então veio o momento de maior alegria: o segundo parto. Numa noite calma, sob um céu de
estrelas claras, parteiras conduziram Shiena até o centro do salão, iluminado apenas por
lamparinas. Eron, ajoelhado na varanda, uniu as mãos em prece enquanto as chamas
tremeluziam ao sabor do vento. Naelith, debruçada na porta, segurava um cobertor, os olhos
cheios de expectativa.
Horas de trabalho deram lugar a um choro suave: nasceu Elyon. O menino de feições
singulares— cabelos negros com fios arroxeados, olhos rubi e pele de marfim — era ao mesmo
tempo novo e antigo: herança de força e graça. Ao pegá-lo nos braços, Shiena sentiu cada batida
de seu coração como um tambor de vida, e Eron, ao beijar o topo da cabeça do filho, soube que
o Sacrifício de gerações agora renascia naquele suspiro.
Crescendo, Elyon mostrou-se robusto: nas primeiras lições de cura, fechava as próprias feridas
com delicadeza inédita. Empunhava espadas de treinamento como um veterano, movendo-se
com disciplina ensinada pelo pai. Aos cinco anos, foi enviado à Escola Militar de Arnved, onde
suportou manhãs gélidas, regime severo e conquistou respeito ao dominar táticas, feitiços
defensivos e a arte do aço.
No retorno aos oito anos, abraços familiares trouxeram-na como balsamo: Naelith correu ao
encontro do irmão, gargalhando sob o olhar emocionado dos pais. Mas, naquela mesma noite, a
terra gemeu sob a casa: o inimigo murmurava nas profundezas, demônios escavando túneis
invisíveis, ungidos num ódio cultuado por eras.
E enquanto a família se reunia sob a luz amarelada da lamparina, nem percebiam o tremor sutil
que rasgava a rocha sob seus pés e eles nem imaginavam o que estava por vir.
A noite parecia tranquila. O vento soprava leve entre as árvores da floresta, carregando o aroma
doce das flores silvestres misturado ao frescor da terra úmida. O céu, salpicado de estrelas,
parecia indiferente ao horror que se aproximava. Na casa da família Shaddai, as janelas estavam
entreabertas para deixar o ar fresco entrar, e o som distante dos grilos era o único que preenchia
o silêncio. Lá dentro, todos dormiam..., embalados por uma falsa sensação de segurança que, até
aquele momento, parecia inabalável. Havia meses que Eron e Shiena dormiam um pouco mais
tranquilos, e não apenas pela estabilidade que a saúde de Naelyth começava a apresentar. Não…
havia um outro motivo, mais profundo, quase espiritual. A visão de Naelyth. Ela vira o futuro,
como já acontecera tantas vezes antes, e garantira que, mesmo com as sombras se movendo ao
longe, a família teria pelo menos uma década de paz antes que qualquer grande ameaça se
erguesse novamente contra eles. Eron, apesar da desconfiança natural de um guerreiro que
sempre esperava o pior, havia decidido acreditar. Shiena, com o coração cansado de tanta guerra,
também havia se permitido respirar. O medo fora, por fim, colocado de lado. Mas naquela
noite..., a própria realidade traiu as previsões. Nas entranhas da terra, os demônios se moviam. O
túnel, cavado com magia profana e o esforço insano de centenas de criaturas, rompeu a última
camada de solo que os separava da superfície. Um cheiro de enxofre e carne queimada subiu
como uma explosão invisível. Garras arranharam as pedras. As criaturas, com seus corpos
disformes, olhos brilhantes como brasas, e bocas repletas de dentes irregulares, emergiram como
uma praga ancestral… como um pesadelo há muito adormecido… agora desperto. Silenciosos.
Calculistas. Famintos. O primeiro sinal para os mortais veio em forma de fogo.
O fogo serpentava pelas vigas da sala, projetando um clarão intermitente sobre as tábuas
forradas de tapetes.
O calor sufocante, o cheiro de fumaça, o brilho alaranjado invadindo o quarto… tudo se somou
àquela sensação primitiva de que algo terrível estava para acontecer. Saltou da cama como um
animal acuado, instinto puro.
Correu até a janela e o que viu fez seu coração parar por um segundo. Demônios. Dezenas...,
talvez centenas… cercando a propriedade. Criaturas de todos os tamanhos e formas, desde os
menores, com corpos ágeis e membros alongados como insetos, até bestas maiores, com pele
grossa como couro queimado e olhos que ardiam com uma luz maldita. O grito de Eron foi um
rugido que fez a casa inteira despertar:
— Pegue a adaga, Elyon! — Eron gritou, atirando-lhe a pequena lâmina de treino que o menino
guardava ao lado da cama. Sem hesitar, Elyon a apanhou.
— Mantenha-se atrás de mim. Proteja sua irmã a todo custo! Ao abrir a porta principal… o
inferno os esperava.
O primeiro demônio a avançar era um bruto de pele negra como breu, músculos retorcidos e
garras afiadas. Eron investiu num passo largo, espada empunhada com a firmeza de um
veterano: o aço cortou o ar num arco perfeito e abriu o tórax da besta, jorrando sangue negro
que vaporava ao tocar o assoalho quente. No entanto, antes que pudesse virar a lâmina para o
segundo atacante, uma criatura menor, ágil como um felino retorcido, saltou sobre seu ombro,
cravando as garras no braço esquerdo de Eron. Ele grunhiu, retraiu o braço ferido e cortou o
monstro pela metade num único movimento giratório.
Shiena, ao lado, entoava um cântico em élfico antigo. Suas mãos desenhavam runas no ar,
tecendo uma lâmina de vento puro que se materializou diante dela. Com um gesto fluido e quase
gracioso, ela arremessou essa lâmina contra dois demônios simultaneamente: o primeiro teve a
garganta cortada tão limpa que o jato de sangue formou um arco vermelho-sangue no ar; o
segundo tombou com uma perfuração que atravessou o peito.
Elyon puxou Naelyth pela mão, arrastando-a com desespero. As pernas da irmã, fracas, mal
conseguiam acompanhar.
Ela tropeçava, tossia, mas não soltava a mão dele. A cada metro, os olhos de Elyon se moviam
de um lado para o outro, procurando uma saída, um abrigo… qualquer coisa.
Mas os demônios perceberam a fuga. Três deles se destacaram do grupo principal, avançando
com a velocidade de predadores famintos. Elyon se virou, posicionando-se na frente da irmã. O
medo queimava sua garganta, mas ele o sufocava. Segurou a adaga com ambas as mãos e, com a
precisão desesperada de quem já treinara mil vezes em sua mente esse exato momento, lançou-se
contra o primeiro inimigo. Mirou na junção do pescoço… exatamente como seu pai lhe ensinara.
A lâmina penetrou fundo. O demônio recuou, urrando.
Mas o segundo já estava sobre ele. Eron viu. Num ímpeto, o guerreiro lançou-se como um
trovão, atravessando o campo de batalha para proteger os filhos. Cortou um… esmagou o crânio
do outro com um chute giratório. Shiena seguiu ao seu lado, protegendo-o com escudos de luz e
rajadas de vento cortante. Eles formavam um baluarte móvel: espada e magia dançando uma
coreografia mortal.
Quando Eron desviou de um cetro flamejante que um demônio empunhava, mas naquele instante
de vulnerabilidade… quando foi salvar Shiena.
Uma lança negra, perfurou as costas de Eron. O impacto foi seco, o som do metal rompendo
carne e osso ecoou como uma sentença.
Ajoelhou-se ao lado do marido, canalizando sua mana com urgência. O calor da magia explodiu
entre suas mãos, selando parcialmente a ferida, apenas o suficiente para que ele pudesse respirar…
e lutar… uma última vez.
Eron rasgava, esmagava, dilacerava. Seus golpes não tinham mais técnica… apenas força bruta e
desespero. Pegava demônios pelo pescoço e os arremessava contra os outros como se fossem
bonecos de trapo.
Em um instante cruel e silencioso, antes que Shiena pudesse reagir, a lâmina afiada do monstro
cortou seu pescoço.
A cabeça de Shiena rolou pelo chão, os olhos ainda entreabertos, buscando os filhos uma última
vez, pedindo perdão, força, esperança.
Seu grito de dor ecoou como um trovão que rasgava o silêncio da noite.
Com a fúria de um deus caído, ele investiu contra a horda, um furacão de destruição, mas seu
corpo já estava marcado, ferido, exausto.
Quando a última respiração escapou de seus pulmões, seus olhos se fecharam para sempre.
Naelyth e Elyon assistiram à queda dos pais com um silêncio cortante, cada um segurando o
próprio medo e a dor, encarando a nova realidade: estavam sozinhos.
Sem forças para lutar, sem poder para resistir, só restava fugir.
Elyon puxou Naelyth com todas as forças. Os dois passaram por um corredor estreito que levava
aos fundos da casa, agora parcialmente em chamas. A fumaça os cegava, a madeira rangia como se
fosse desabar. Atrás deles… o som das garras nas tábuas… a respiração quente dos perseguidores.
Enquanto corriam, um dos demônios arremessou uma espada longa em direção às costas de
Naelyth. Elyon, com um reflexo nascido do puro desespero, a empurrou com força para o lado.
Ambos caíram sobre a terra, rolando pelo chão coberto de cinzas e brasas.
Sem olhar para trás, continuaram correndo. As pernas do menino ardiam. Cada músculo gritava.
Seu pulmão parecia prestes a explodir…, mas ele não parava.
Elyon carregou a irmã quando as forças dela cederam. Os braços do garoto, pequenos e ainda sem
a musculatura de um homem, sustentaram o peso com uma determinação que nem ele sabia que
possuía.
Galhos cortavam sua pele. Pedras rasgavam as solas de seus pés descalços.
Elyon forçou o corpo além do limite. Quando chegou às primeiras casas, a voz dele saiu como um
grito rouco:
Silas, o velho amigo de Eron, que naquele instante varria a entrada de sua taberna, ouviu o grito e
correu. Seus olhos se arregalaram ao ver o estado das crianças.
Silas os acolheu em seus braços e os levou para dentro. Trancou as portas com todas as trancas
que possuía. Pegou bálsamos, ervas, tudo que podia para estancar os ferimentos de Naelyth.
Tentou acalmar Elyon…, mas o menino… apenas chorava.
Por enquanto
Capítulo 2
O cheiro de madeira queimada ainda se agarrava aos ossos de Elyon, como se o incêndio daquela
noite jamais houvesse deixado aquele quarto. Mesmo semanas depois, ele acordava no breu da
madrugada com o acrilho do resíduo de fumaça na garganta e os ecos distantes dos gritos de seus
pais martelando em sua mente. Sentava-se na cama de palha, o peito arfando como se precisasse
de ar puro, as mãos trêmulas cravadas nos lençóis já desfiados. Durante longos minutos,
permanecia imóvel, encarando o teto de tábuas rachadas, aguardando que, em qualquer instante,
as garras afiadas de um demônio surgissem nas sombras.
Ele fazia esforço para acreditar que estava seguro. Mas segurança, para Elyon Shaddai Arnheid,
transformara-se numa lembrança tão intangível quanto a infância que fora abruptamente
arrancada. Agora, sua vida tomara outro rumo.
Silas, companheiro de guerra do pai e amigo leal, oferecera-lhe abrigo sem hesitar. A taberna “O
Abrigo do Lobo” ergueu-se como um santuário rústico entre as muralhas de Arnved: vigas de
carvalho cravadas em pedras frias, mesas marcadas por lâminas e canecas manchadas de cerveja.
O aroma de malte envelhecido, suor e ferrugem preenchia o ar, enquanto gritos de bêbados e o
tilintar de canecos vibravam no chão grosso de tábuas.
O lampião balançava suavemente, projetando círculos tremeluzentes de luz e sombra pelas tábuas
desgastadas do sótão. O vento sibilava através de uma fresta na janela empoeirada, carregando
odores de pinho e orvalho matinal que se misturavam ao resíduo de fumaça impregnado nos panos.
Na cama ao lado, Naelith despertou com um suspiro, os cílios ainda grudados de sonolência. Ela
ergueu lentamente os braços, como se testasse a força dos próprios ossos, antes de apoiar os pés
descalços no chão frio.
— Bom dia, irmã — murmurou Elyon, voltando-se com o rosto iluminado pelo reflexo do
lampião. Seus olhos, ainda ardendo de vigília, suavizaram-se ao contemplar Naelith. Ele deixou o
livro de receitas de Shiena sobre o caixote ao pé da cama e aproximou-se, segurando
cuidadosamente uma tigela de barro fumegante.
O vapor subia em arabescos, perfumado por raízes amargas e um toque doce de mel. Naelith
inalou profundamente, fechando os olhos por um instante, absorvendo o conforto quente.
— Seu unguento funcionou melhor do que eu esperava — disse ela, a voz baixa, mas firme. —
Sinto menos dores hoje.
— Ainda estou para cruzar com aquela raiz-de-sol. Mas até lá, esta infusão de camomila e raiz-de-
marisco faz milagres.
Ele ofereceu a tigela, e ela inclinou-se para beber com cuidado, como uma sacerdotisa recebendo
um elixir sagrado. Cada gole parecia renovar um pouco do vigor que as febres tediosas haviam
arrancado.
Depois, quando o luar cedeu espaço ao clarear do dia, os dois desceram as escadas rangentes rumo
ao salão principal. Nas paredes inferiores, tochas recém-alimentadas lançavam um brilho âmbar,
revelando o mofo que se agarrava às pedras. O ar era espesso de cheiro forte de cerveja, mas
também de pão recém-assado, pois o ferreiro vizinho passara cedo para trocar farinhas por um
caldo que Silas conservara do dia anterior.
Elyon limpou o balcão com um pano em brasa, enquanto Naelith se acomodava sobre um barril
vazio, observando o movimento dos clientes que, curiosos, a saudavam.
— Bom dia, pequena — disse um mercenário de ombros largos, puxando um banco vazio para
que ela descansasse. — Como se sente hoje?
Ela sorriu com gratidão, mas seu olhar breve pousou no bolso de Elyon, onde a adaga repousava.
A lembrança do terror não tardaria em aflorar, mas ela respirou fundo, firmando a postura.
Enquanto isso, Silas, de avental já amarrotado, entregava a Elyon um saco de moedas miúdas. Em
seguida, puxou-o de lado e sussurrou:
— Tenho um alicate novo para você afiar, rapaz. Mas depois, não esquece de dar uma olhada
naquele tonél com vazamento no fundo.
Elyon assentiu, guardando as moedas e pegando a ferramenta com mãos hábeis. Ele aprendeu,
nos últimos meses, a lidar não apenas com facas, mas com todo tipo de metal — difícil, suave,
temperado ou corroído.
Naelith observava tudo com olhos atentos. O farfalhar dos mantos, o estalo das portas, o eco
distante de uma canção entoada por um viajante. Cada som era um lembrete de que, apesar da
fragilidade, a vida continuava pulsando em sua volta.
Quando o sol finalmente rompeu pelas frestas da porta de entrada, inundando a taverna de luz
alaranjada, Elyon estendeu a mão para a irmã.
Ela pôs-se de pé com esforço, o receptor de mana cintilando sob o tecido do colete de couro fino.
Juntos, subiram as escadas, ombro a ombro, cada passo um juramento silencioso de permanecerem
firmes, não apenas como irmão e irmã, mas como guardiões um do outro.
Cada gota de suor, cada respiração ofegante, era um passo rumo à segurança que buscavam. E,
mesmo que a paz real permanecesse distante, naquele sótão apertado, entre o cheiro de serragem
e memórias ardentes, irmão e irmã forjavam um pacto de sobrevivência mais forte que qualquer
barreira—para que, aconteça o que acontecer, fossem capazes de resistir.
Certa tarde de inverno, Elyon entrou no quarto e encontrou Naelith junto à janela, o olhar distante.
Em voz baixa, ela perguntou:
As mãos de Elyon tremeram com a simplicidade da pergunta. Ele se ajoelhou e tocou o cabelo da
irmã:
E enquanto a lua salpicava o sótão com finos feixes de luz, Elyon Shaddai Arnheid apertava a
adaga contra o peito e prometia, em silêncio:
O fogo na lareira do andar de baixo estalava alto o bastante para que Elyon sentisse o calor
atravessar o assoalho de tábuas gastas, mas ali em cima, no sótão, o ar permanecia cortante. Os
breves feixes de lua que escapavam pelas frestas da janela lançavam riscas de luz prateada sobre o
rosto de Naelith, destacando as sombras profundas sob seus olhos e o desalinho de seus cabelos
prateados. Quando Elyon empurrou a porta rangente, o tilintar distante de canecos e risadas
embargadas ecoou, lembrando-lhe que lá embaixo a vida tentava seguir, mas ali, naquele refúgio
precário, o peso da perda ainda pesava no ar.
A pergunta dela soou quase como um sussurro de vento gelado: “Será que eles sentiram medo…?”
Naelith apertava contra o peito o receptor de mana, o brilho azulado se refletindo nos vidros
embaçados da janela. Elyon sentiu o estômago contrair-se — não apenas pela pergunta, mas pelo
reconhecimento de que, embora a coragem de seus pais tenha sido imensa, seu último ato foi
humano demais para não ter sido tomado pelo pavor. Ajoelhou-se ao lado dela, o joelho rangendo
na tábua fria, e tocou o cabelo macio da irmã.
— Acredito que sim — respondeu ele, com a voz rouca de quem engoliu muitas lágrimas não
derramadas — Mas o que os guiou até o fim não foi a ausência de medo, e sim o amor por nós.
Seu pai… e nossa mãe lutaram com a mesma fúria que um guerreiro sente ao defender o último
bastião da vida.
Naelith inclinou a cabeça, absorvendo cada sílaba, e por um instante o vento criou fantasia de
sussurros nas frestas, como se o passado quisesse contar seus segredos. Elyon permaneceu ali,
ajoelhado, sentindo o peso do manto da responsabilidade cair sobre seus ombros jovens demais,
mas firmes — a lembrança viva de que proteção era mais que uma promessa; era uma herança que
ele carregava no sangue.
Quando a noite atingiu seu ponto mais escuro, Elyon virou-se para deixar a irmã em paz, mas
hesitou à cabeceira da cama. Apanhou a adaga curta que pendia no gancho de couro, a lâmina
ainda manchada de óleo de manutenção e tocada pelas runas ancestrais. Apertou-a contra o peito,
deixando que o frio do metal se mesclasse ao calor de sua determinação. A lâmina leve vibrava
como se respondesse ao juramento silencioso:
O lampião ao lado da cama oscilava, projetando vultos vacilantes nas vigas de carvalho expostas.
O vento lá fora sussurrava pelas frestas da janela empoeirada, carregando o perfume gélido de
pinho e umidade. Cada ínfima rajada espantava tecido antigo e fazia as sombras dançarem, como
se o passado insistisse em relembrar sua presença.
Elyon, ainda de joelhos sobre a tábua fria, sentiu o silêncio do sótão envolver-lhe os ossos. A
respiração de Naelith era um suspiro frágil, quase imperceptível, mas para ele soava como um
tambor de esperança. Ele apertou a adaga contra o peito, a lâmina pulsando — não com magia,
mas com o peso de seu juramento.
As runas gravadas no cabo pareciam brilhar num tom prateado, refletindo o escasso clarão lunar.
Elyon fechou os olhos por um instante, deixando que a memória do calor da lâmina lhe aquecesse
as mãos. Imaginou a fúria vermelha de seu pai, o olhar firme de sua mãe, e sentiu cada traço de
coragem que herdara deles.
Levantou o rosto, encarando o teto de tábuas rachadas. Sentiu o eco distante do fogo, dos gritos,
das correntes de horror que eles venceram — mas a que o cobrava agora uma dívida de sangue.
Abrindo a mão, olhou para a adaga, decidiu o seu caminho.
— Um dia, encontrarei justiça… ou morrerei tentando — murmurou, a voz tão suave que parecia
invocar ecos no próprio coração do sótão.
Naelith, despertando para o peso da promessa, abriu lentamente os olhos violeta. Eles brilharam
com uma confiança renovada, apesar das olheiras profundas. Ela ergueu-se na cama, enrolando o
receptor de mana contra o peito como um talismã.
— E eu estarei ao seu lado, Eli — sussurrou, a voz firme apesar da fragilidade. — Não importa o
que vier, lutaremos juntos.
As palavras dela foram como velas acesas no breu, incendiando a determinação no peito de Elyon.
Ele inclinou-se e apertou a mão dela, sentindo o pulso tênue sob a pele fria.
— Juntos — repetiu.
Naquele instante, a casa inteira pareceu respirar com eles. Longe dali o burburinho da taverna
cessara, o calor do fogo amainara, e até mesmo o vento aguardava o desfecho daquele pacto. Elyon
guardou a adaga num coldre improvisado junto à cintura e ergueu-se. O ranger dos joelhos
mesclou-se ao bater de seu coração.
Caminhou até a janela estreita e limpou o vidro enevoado com as mangas gastas da túnica. Lá fora,
a lua formava poças de prata sobre os telhados inclinados e os becos silenciosos. Ele olhou para a
vastidão das muralhas de Arnved, onde sombras e luzes se misturavam, e sentiu a aliança com a
irmã mais forte do que nunca.
Elyon deteve-se por um instante, sentindo o ar frio do sótão envolver-lhe os ombros como um
manto de pedra. A respiração de Naelith, ainda vacilante na penumbra, soava-lhe como o motor
de um navio frágil, prestes a zarpar em águas turbulentas. Ele aproximou os dedos do rosto da
irmã, limpando um fio de cabelo que caíra sobre sua testa pálida, e buscou a voz mais suave que
pôde:
— Cada passo que eu der contigo ao lado… — começou ele, os olhos refle-tindo a luz prateada
que escapava pelas frestas da janela —… será um treino, uma lição, mas também uma promessa
de que não enfrentarás nada sozinha.
— Quero aprender a curar minhas próprias feridas — disse ela, a voz ainda um sussurro, mas
carregada de determinação — e a proteger o peito dele, se for preciso.
À menção de “ele”, o garoto fechou os punhos, lembrando-se dos pais. A saudade apertou a
garganta, mas ele conteve a emoção com um aceno firme.
Ele abriu o coldre e retirou a pequena adaga de aço leve, na lâmina ainda cintilando as runas
ancestrais. Mostrou-a à irmã:
— Esta lâmina não serve apenas para cortar; é ferramenta de disciplina. Cada corte que eu te
ensinar será um traço de foco, um exercício de concentração e confiança.
Em seguida, embalou a adaga em tiras de pano que guardava num bolso interno e guardou-a ao
lado do colchão.
— Amanhã ao romper do dia, sairemos para o quintal — continuou apontando para o chão onde
um retalho de lona marcava o espaço de treino —. Lá, deves traçar com teu cajado — indicou o
canto empoeirado onde pendia um pedaço de madeira — círculos perfeitos. Cada círculo é um
selo: um laço que prende a mana à tua vontade.
— Dorme agora, Naelith. Amanhã será um dia de verão no meio do inverno: florescerá em ti a
guerreira e a curandeira.
Ela sorriu, franzindo os lábios, antes de virar-se para o lado e fechar os olhos. Elyon ficou um
instante observando o perfil dela, tão jovem e, mesmo assim, já tão cheia de coragem. O lampião
ao longe chiou e apagou-se, concedendo-lhes a escuridão, mas nem isso abalou o calor que
acendera em seu peito.
Ao descer as escadas, Elyon sentiu nos ossos a promessa daquele treino: a força partilhada, o
legado Shaddai transmitido de irmão para irmã — o primeiro passo de muitos que, juntos, dariam
forma à justiça que ele buscava.
Com cuidado, puxou a manta até o queixo de Naelith, ajeitou-lhe o travesseiro remendado e
apagou o lampião. O sótão mergulhou na penumbra, iluminado apenas pelos fragmentos de luar
que escapavam da janela.
De pé, Elyon permaneceu um instante, sentindo o frio e o silêncio envolverem-no como uma capa.
A adaga, presa à cintura, era agora mais que uma arma: símbolo de um destino inevitável.
E com passos silenciosos, desceu as escadas rangentes, deixando para trás o sótão onde dois
irmãos, unidos por dor e amor, haviam sacramentado seu pacto de sangue e sobrevivência.
Capítulo 3
As ruas de Arnved tinham vida própria — mas era uma vida áspera, de pele calejada e punhos
cerrados. Ela respirava pelos becos estreitos, sangrava pelos ladrilhos rachados e rugia entre os
arcos de pedra manchados pela fuligem das fornalhas que nunca se apagavam. Para Elyon
Shaddai Arnheid, aquele labirinto urbano de sombras e ecos se tornara mais que uma rota: era
seu campo de batalha. Seu templo. Sua arena.
O que antes era apenas o caminho entre a antiga escola militar e a taberna, agora era o território
onde ele refinava sua existência.
Um jovem ferido, com o peso do luto nos ombros e a promessa da vingança gravada nos ossos.
Acordava sempre antes do nascer do sol, quando o mundo ainda sonhava e o ar carregava o
silêncio cortante das horas mortas. A névoa rastejava pelos paralelepípedos como uma serpente
espectral, ocultando o que havia de belo e de podre nas entranhas da cidade. Era nesse limiar,
entre sonho e vigília, que Elyon se movia.
Saía sem ruído, para não despertar Naelith, cuja respiração leve e irregular ele aprendia a ouvir
mesmo à distância. Vestia as mesmas roupas puídas, amarrava o cinto onde pendia a adaga curta
— herança silenciosa de seu pai — e desaparecia entre as vielas com o cuidado de um ladrão e a
urgência de um caçador.
Saltava muros, escalava telhados, deslizava por entre caixas abandonadas e varais
pendurados. Andava por beirais estreitos como cordas, onde um deslize significava um osso
quebrado ou pior. Escorava-se em janelas úmidas, pulava entre vigas de sustentação apodrecidas
e se esgueirava por frestas tão estreitas que pareciam feitas apenas para sombras e ratos.
Joelhos esmigalhados, cotovelos esfolados, as palmas das mãos sempre cortadas. A dor
não o afastava. Não havia tempo para piedade ou lamento. Aprendeu a endurecer os punhos, a
morder os próprios lábios quando o sangue escorria, e a estancar feridas com tiras de pano
rasgado e álcool barato roubado dos fundos da taberna.
Voltava ao sótão ainda antes que os sinos das torres anunciassem a alvorada. Naelith, às vezes
desperta, o olhava com um misto de preocupação e respeito silencioso. Ele apenas sorria de
canto e se deitava ao seu lado por alguns minutos, sentindo a madeira ranger sob o próprio peso.
Enquanto cortava cebolas com a mesma destreza que decapitava outrora, ou alinhava barris
pesados como cadáveres, soltava palavras como lanças, certeiras, nunca desperdiçadas:
— Passos leves, garoto... o chão é teu inimigo mais antigo. — disse uma vez, com um trago de tabaco
preso no canto da boca. — Ele trai quem o esquece.
Outro dia, enquanto afiava uma lâmina com gestos quase cerimoniais:
— Se tiver que matar, mata primeiro. Fala vem depois. Quem espera escutar o fim da frase... morre com a
lâmina no pescoço.
No porão da taberna, entre barris de cerveja e sacos de grãos mofados, ele montou seu campo de
treino improvisado. Pregos viravam alvos. Ossos de galinha se transformavam em marcadores de
precisão. Frutas velhas eram penduradas como testas de inimigos imaginários. Aprendeu a lançar
objetos com firmeza, a calcular o peso da adaga, a girá-la entre os dedos, como uma extensão do
próprio corpo.
O “Abrigo do Lobo” era mais que um lugar de repouso — era um antro de histórias mortas,
um campo de prova. Um celeiro de monstros escondidos sob peles humanas. Por trás de
canecos e sorrisos tortos, ocultavam-se caçadores de recompensa, traficantes de artefatos
mágicos, ex-soldados desertores, bruxas arrependidas e demônios disfarçados em carne
e moeda.
Elyon aprendeu a ouvir o tom certo de voz antes de uma briga estourar. A notar a mão
escorregando devagar até o punho da espada. A entender o tipo de silêncio que antecedia uma
morte.
O chão tremia com as risadas abafadas e o tilintar ensurdecedor das canecas; o salão fervilhava
de vida bravia e recalcada. O ar cheirava a cerveja velha, fumaça de cachimbo e suor entranhado
nas tábuas como parte do próprio osso da estrutura. Era como se a madeira tivesse memórias, e
todas fossem ruins.
Cada sombra vivia sua própria desgraça. O ranger das cadeiras, o estalar dos dedos, os cochichos
envenenados: tudo parecia parte de um ritual antigo e repetido. Aquelas paredes já haviam visto
brigas, mortes e pactos silenciosos firmados com sangue pingando entre os dedos. Mas nada ali
era tão opressor quanto o que estava por chegar.
As conversas cessaram quase de imediato — não por respeito, mas por um tipo de medo
instintivo, ancestral. Darek havia chegado.
Seu corpo preencheu a entrada como uma maldição encarnada. Ombros largos, olhos pálidos
como gelo velho — não olhos de um homem, mas de um lobo faminto, sem pressa para
matar. As botas sujas deixavam um rastro de lama seca e sangue ressecado pelo caminho, e o
som dos passos sobre o assoalho soava mais como marteladas do que como caminhar.
Chamavam-no de Darek, o Corta-Raposa. Não porque caçava os ágeis, mas porque tinha o
hábito doentio de capturar jovens ladrões — e cortar-lhes os tendões para vê-los rastejar
como vermes antes de decidir se mereciam morrer.
Ele gostava de ver o desespero. Ria de súplicas. Fazia apostas com si mesmo sobre quantos
gritos a vítima soltaria antes de perder a voz. Certa vez, arrancou os olhos de um rapaz só para
ver "quanto tempo alguém anda sem enxergar num beco molhado". E contou. Em voz alta.
Enquanto os outros bebiam.
Darek avançou pelo salão como quem invade um terreno que já considera seu. Não pedia
licença. Exigia existência. Cada passo obrigava os outros a moverem suas canecas, suas
cadeiras, suas vidas — para fora do caminho.
— Três canecas da mais amarga, — cuspiu, com um sorriso torto. — Uma por mim, uma pelo verme que
matei ontem, e outra... pro próximo.
A terceira caneca chegou e ele a ergueu como se fosse um troféu. Bebeu devagar, os olhos
varrendo o salão como lâminas frias, e então começou o espetáculo.
— Vocês conhecem o Trilo, aquele filho de uma anã vadia que tentava pregar peças nos becos
do sul? — perguntou com voz carregada de escárnio. — Tentei dar a ele uma chance. Juro por minha
mãe morta...
— Dei três segundos pra correr. Um… dois… e no meio do três, atravessei o calcanhar dele
com uma flecha. — Darek gargalhou, um som que parecia o rasgo de uma garganta.
— Ele caiu feito bicho doente, arrastando o rabo sujo. Estava chorando. Sabe o que ele me
disse? — Darek se inclinou, os olhos arregalados de prazer perverso. — “Por favor, não corta de
novo.”
Mais risadas, agora de bêbados e covardes. Um ou outro forçava o riso, tentando não chamar
atenção.
— Então, cortei de novo. — E fez o gesto com os dedos, um estalar seco. — Um. Dois. Três. E
no último, eu enfiei a adaga no saco dele. Por baixo. Devagar.
A plateia riu. Mas era o riso de um incêndio — quente, descontrolado e cheio de medo.
Ninguém achava graça de verdade. Riam como se suas gargalhadas fossem escudos contra a ira
daquele monstro.
— Ele não gritou. Só balbuciou o nome da mãe. Então terminei com ele. Dei o presente dela —
o último pedaço que sobrou dele.
Silêncio.
Darek limpou a boca com o antebraço, largando a caneca vazia com força. Depois virou-se,
olhando fixo para Elyon, que até então servia mesas como quem observa tempestades no
horizonte.
Elyon sustentou o olhar. E naquele instante, algo no ar mudou. Como se as sombras tivessem
parado de dançar.
Darek sorriu.
— E você, moleque? Já fez alguém chorar por perder um membro? — disse, a voz embriagada,
mas o olhar afiado como os ossos sob sua pele. — Ou só limpa vômito e serve cerveja para os
homens de verdade?
O salão congelou.
Elyon, de pé à distância, absorvia tudo em silêncio absoluto. O sangue em suas veias parecia se
aquecer como se devolvesse vida aos músculos. Silas percebeu. O velho guerreiro, atento,
deixou escapar um sussurro:
— Deixa, moleque... gente assim vive para provocar. Não pegue a isca.
Mas Darek ignorou esse alerta. Quando Elyon carregava uma bandeja e passava mais perto do
balcão, o adulto esticou a perna com malícia — derrubando violentamente a bandeja e
espalhando canecas, cerveja e estilhaços pelo salão. A tavernada congelou num instante.
— Cuidado, garotinho... ou vai acabar igual aos que eu pego nas ruas.
O mundo pareceu silenciar. A taça do tempo quebrou. Elyon ficou de pé, enfrentando o
opressor sem dizer uma palavra. Seus olhos, antes insondáveis, agora eram brasas contidas.
Movimentou-se como se estivesse se fundindo com a respiração da taberna.
Um segundo depois, ele sacou uma faca de cozinha— discreta, mas letal— que traçou um
risco de prata cortante no ar. A lâmina atingiu o chão a poucos centímetros do pé de Darek,
cravando um sulco profundo na madeira velha. O impacto ecoou como um trovão contido.
Silêncio.
Darek engoliu em seco, viu ferro onde antes havia apenas sorriso. Encarou Elyon com olhos
estreitados, levantou-se num rompante e desembainhou uma espada curta, girando-a num gesto
de ameaça mortal.
Antes que pudesse avançar, Silas apareceu por trás dele, empunhando um pesado porrete de
carvalho.
— Aqui... não. — Foi um comando absoluto, mais vibrante que qualquer golpe. O salão se ferveu
em tensão.
Darek hesitou. Percebeu olhares vívidos — punhos cerrados, outros transeuntes prontos para
intervir. Rosnando, ele se afastou, empurrando cadeiras com força, e se mandou pelas sombras
da noite, com a bota arrastando nos ladrilhos. Silas exalou um suspiro, grave:
— Foi imprudente... murmurou a Elyon, os olhos brilhando de orgulho contido. — Mas rápido...
muito rápido.
Do topo da escada, Naelith prendeu o fôlego. Seu alívio misturava-se à apreensão: sabia que
aquilo era apenas o primeiro suspiro antes da tormenta.
Três noites depois, o sino noturno da cidade ainda não soava quando a porta da taberna foi
arrombada com violência. O som ecoou como um estilhaço de vidro sobre metal. Os clientes, já
temerosos de Darek, recuaram em silêncio mortal — moedas abandonadas ainda cintilavam
sobre mesas vazias. Outros, mais curiosos, permaneceram por assistir ao espetáculo.
Darek entrou sóbrio. A pele exibia cicatrizes frescas — marcas de ódios antigos, vestígios de
carne dilacerada. Última a entrar, soprou no chão com as costas erguidas.
Silas tentou intervir, mas já era tarde. A lâmina de Darek saiu do coldre com um silvo assustador.
Elyon olhou.
Viu lâmina.
Viu fúria.
A bandeja de madeira escapou-lhe das mãos como se o tempo parasse. O som abafado da
madeira atingindo o chão foi engolido pelo súbito silêncio. Copos giraram em câmera lenta,
cerveja voando como névoa âmbar, pingando em fios preguiçosos pelo ar denso de fumaça.
Elyon disparou.
Num único salto, ágil e felino, subiu no balcão com a leveza de quem crescera sobre telhados e
escombros. Com um gesto rápido, puxou duas facas escondidas sob o tampo de carvalho, e ali
estavam elas — gêmeas curtas, curvas, e tão familiares quanto as próprias mãos.
Seu olhar endureceu. O mundo perdeu cor e som. Restou apenas o pulsar seco do seu coração,
como um tambor antigo marcando o compasso da morte.
Darek, embriagado por raiva e orgulho ferido, ergueu a espada com ambas as mãos. Um golpe
vertical — alto e bruto — mirando esmagar Elyon como um touro em investida.
Inclinou o corpo para o lado como se dançasse com a lâmina, sentindo o sopro frio da aço
passar rente à sua têmpora, cortando o ar e parte do capuz. Atrás dele, o golpe se perdeu numa
viga de madeira. Faíscas. Lasca. Barulho.
As cadeiras voaram. Alguém gritou. Alguém puxou uma criança para longe.
Ele avançou.
Darek tentou recuar, mas tarde demais — a primeira faca já voava, certeira, no formato de uma
estocada baixa. Ela cravou fundo na coxa esquerda do homem. Um estalo úmido precedeu o
jorro de sangue que manchou o chão e os tornozelos de quem estava perto demais.
Darek berrou.
Cambaleando, girou a espada com fúria e desespero. Elyon, porém, já estava de lado, girando em
um arco curvo e fluido — e a segunda faca entrou no ombro de Darek como uma agulha
na carne do mundo. O impacto afundou até o cabo.
O oponente urrava, mas ainda estava de pé. Ferido, sim. Vencido? Não ainda.
Ele tentou mais uma investida. O corpo rangia, as pernas falhavam. Elyon observava — cada
erro, cada falha muscular, cada deslocamento de peso.
Elyon mergulhou por baixo do golpe seguinte, o corpo quase horizontal ao chão. Em um só
movimento contínuo, deslizou sob Darek e cortou com a faca restante o tendão atrás do
joelho já machucado.
O gigante caiu. Pesado. Quase de joelhos. A respiração dele era um lamento, o suor misturado ao
sangue que escorria em rios quentes sobre o chão de madeira pegajoso.
Elyon ficou em pé, com as roupas sujas, o rosto sereno — mas os olhos? Eram lâminas
afiadas.
Ele se curvou ligeiramente, a respiração ainda acelerada, mas sua voz saiu calma como aço frio:
Cada copo havia parado no ar. Cada mão, congelada. O velho que tocava alaúde no canto parou
com os dedos no ar. As velas tremeluziam, como se tivessem medo de continuar iluminando.
Darek, cuspindo sangue e humilhação, começou a se arrastar. Cada puxão de braço deixava um
novo rastro escarlate no chão. Ninguém se aproximou. Ninguém o ajudou.
Ele saiu — ou tentou sair — como um cão sarnento expulso de sua própria matilha. A porta
bateu atrás de si, e com ela, a sensação de que algo muito maior do que uma simples briga de
taberna acabara de acontecer.
Não comemorou.
Apenas permaneceu ali… com o peito arfando, o cheiro metálico de sangue impregnado nas
narinas… e um silêncio pesado ao redor.
Naquela noite, a cidade aprendera que um novo nome deveria ser temido.
Silas, em seguida, aproximou-se. Estendeu uma pequena caixa de madeira para Elyon. Tomas as
adagas revelavam lâminas bem forjadas — páginas viradas para uma nova etapa.
— Se for para enfrentar gente como ele… — disse com voz firme, colocando as presas na mão do
garoto — …então esteja verdadeiramente preparado.
Elyon apertou o couro dos cabos com determinação cravada no olhar, como se aquela arma
finalmente completasse algo que estivera incompleto dentro dele. As lâminas não eram apenas
instrumentos de combate — eram um símbolo. Representavam a ruptura com a infância, com a
impotência, com o trauma que ainda queimava como brasas vivas sob sua pele. Representavam o
início da forja de um novo ser: mais duro, mais rápido, mais letal.
Seu peito arfava, não pelo esforço, mas pelo peso de uma verdade que se assentava ali, sólida
como pedra: a guerra que o esperava era mais que um campo de batalha — era um destino
escrito com sangue e silêncio.
No alto da escada, Naelith observava, com os dedos entrelaçados diante do peito e os olhos
marejados. Em seu coração frágil, algo se acendia. Não era apenas medo pelo que Elyon se
tornaria — era a certeza de que aquele menino que ela viu correr entre lençóis sujos e folhas
caídas agora se erguia como um homem diante do abismo. E havia orgulho… profundo, sofrido,
mas verdadeiro. Como o firmamento se abrindo após uma tempestade que parecia eterna, ela o
via — não como um irmão que se ia, mas como uma chama que não se apaga, mesmo no vento
mais cruel.
Mas a verdadeira marca que deixaria no mundo não estaria nas vitórias que acumularia, nem nos
inimigos que derrubaria. Estaria no fogo que arderia em seu olhar mesmo quando tudo à sua
volta se rendesse à escuridão.
Era o nascimento de uma força silenciosa, forjada entre os escombros da perda e temperada pelo
aço do sofrimento. Uma centelha que não buscava glória, mas justiça. Não ansiava por aplausos,
mas por equilíbrio. E que, ao contrário dos heróis das histórias antigas, não se ergueria com a luz
— mas marcharia pelas sombras, carregando a memória dos que caíram e a promessa de que o
horror jamais passaria impune.
O nome Elyon Shaddai Arnheid, um dia sussurrado entre lamentos como o nome de um
órfão sobrevivente, deixaria de ser apenas uma lembrança dolorosa do filho de um herói
assassinado. Seria gravado em runas esquecidas, em canções proibidas nas tavernas e em
pesadelos murmurados entre as legiões demoníacas.
Uma promessa para os fracos, os quebrados, os esquecidos — de que alguém lutaria por eles nas
trevas que os reis e sacerdotes fingiam não ver.
E uma maldição para os monstros que rastejavam por entre as veias do mundo — pois onde
houvesse um sussurro de injustiça, onde uma chama fosse sufocada por mãos cruéis, Elyon viria
como uma lâmina em silêncio, uma tempestade em fúria.
Capítulo 4
Naquela noite, Elyon acreditava que seria apenas mais um entre tantos treinos solitários — mais
uma corrida para abafar o luto, mais uma escalada para sufocar a raiva, mais uma dança entre
sombras para calar o nome dos mortos que ainda ecoava em seus pensamentos.
Depois de fechar a taberna com Silas e cobrir Naelith, certificando-se de que ela dormia
tranquila, ele partiu para o frio cortante da madrugada. A névoa enroscava-se nas pernas como
véus de espíritos antigos, e o vento sussurrava entre os becos como se murmurasse segredos
esquecidos. As adagas recém-polidas balançavam discretas em sua cintura, quase como se
compartilhassem da inquietação de seu dono.
A casa.
E o cheiro…
Aquele mesmo cheiro.
Ferro queimado. Madeira encharcada de sangue. Ossos carbonizados. Pele queimada
misturada a enxofre.
Era um perfume da morte.
E então… viu.
Do lado esquerdo do terreno, onde costumava haver um pomar, uma estaca sobressaía da
terra como o dedo de um deus cruel.
Alguém a cravou fundo.
Alguém teve prazer em fazê-lo.
No topo…
a cabeça de Eron Arnheid.
O couro cabeludo havia sido arrancado, deixando o crânio exposto, brilhoso e rachado, como
porcelana trincada.
A mandíbula estava deslocada, como se tivesse sido arrancada com brutalidade e depois
recolocada à força.
Pregos finos, pretos, atravessavam a face em ângulos rituais — um padrão demoníaco
gravado com dor.
E os olhos…
Oh, os olhos.
Fixos no vazio.
Fixos em Elyon.
Como se, mesmo na morte, o pai vigiasse.
Como se tivesse visto o algoz.
Como se, até o último instante, tentasse proteger.
Elyon engoliu em seco, mas o gosto era de ferrugem.
Seus joelhos já vacilavam, e, no entanto,… ele continuou.
Um som de ossos.
Quebradiços.
Frágeis.
Mas ainda com peso.
Shiena.
E entre os ossos…
pedaços de cabelo loiro.
Longos. Manchados de barro e sangue.
Para sofrer.
Talvez tenha gritado. Talvez tenha chamado o nome de Elyon. Talvez tenha tentado lutar.
Mas ninguém veio.
E agora… ela era só silêncio.
A terra sob seus dedos era áspera, misturada com cacos de ossos.
Ele cravou as unhas até sangrar.
Até romper pele.
Até o sangue dele se misturar ao deles.
Quis vomitar.
Quis gritar.
Quis morrer.
E na sua mente, correndo junto com ele, havia apenas dois rostos:
O pé escorregou na cerâmica fria e úmida, coberta por uma camada escorregadia de limo e
neblina — um traço invisível da madrugada que se espalhava como doença.
E então, a escuridão.
Dez noites.
Dez malditas e invernais noites.
O corpo de Elyon permaneceu onde caiu: jogado como um cão vencido entre poças negras
e o esgoto exposto, entre os ossos de aves mortas, o mofo de paredes esquecidas e o zumbido
de moscas sem pudor.
As mãos, outrora firmes como as de um guerreiro, agora eram garras trêmulas, encolhidas
contra o peito, como se buscassem proteger um último suspiro de dignidade.
E então, o achou.
Deitado de lado.
Com um olho entreaberto e vazio, como se a alma já tivesse partido, mas o corpo tivesse
esquecido de seguir.
A poça ao redor de sua cabeça era espessa.
Sangue coagulado misturado com chuva, urina de animal e lodo.
Silas o levou nos ombros pelas vielas escuras, ignorando os olhares, os insultos, os cães.
Falava baixo com ele, como se Elyon pudesse ouvir.
“Fica comigo, garoto…”
“Fica comigo, caralho…”
“Você ainda tem que matar quem fez isso…”
Era um inferno interior que nem a água mais fria poderia apagar.
Silas não se cansava, apesar do corpo cansado e dos ossos doloridos. Ele limpava as feridas de
Elyon com mãos calejadas e trêmulas, as unhas quebradas e sujas pela vida dura que levava, mas
ainda assim gentis, como se quisessem arrancar o sofrimento do garoto junto com as impurezas.
Alimentava-o com caldos mornos, minúsculas colheradas que Elyon recebia entre momentos de
torpor e náusea, sempre murmurando palavras sussurradas que pareciam mais preces desesperadas
para deuses invisíveis do que conselhos. Palavras que talvez não fossem escutadas, ou talvez
fossem apenas ecos num deserto de dor.
Mas enquanto ele lutava para salvar aquele que considerava mais que um filho, uma parte de Silas
morria também, diante dos olhos que viam Naelith definhar pouco a pouco.
A menina, delicada como um galho ressequido no meio do rigoroso inverno, começava a ceder
sob o peso cruel da ausência de seu irmão. Era como se a essência vital que antes pulsava em suas
veias — o sopro de vida que Elyon, com suas mãos trêmulas e olhos cansados, ainda tentava
proteger — lentamente se esvaísse, como a última folha que se desprende na tormenta fria. Sem
as ervas que Elyon colhia com cuidado quase reverente, sem os feitiços silenciosos de cura que
lançava na penumbra da noite, sem o brilho de esperança que sua presença costumava infundir, o
corpo de Naelith se tornava terreno árido para a doença.
A febre chegou primeiro, sorrateira e traiçoeira, como uma serpente negra que se enroscava ao
redor dela, espalhando seu veneno invisível. Subiu lentamente, serpenteando pelo corpo frágil da
menina, incendiando sua pele pálida e translúcida até que suas veias pareciam linhas de fogo
pulsante sob a superfície. Seus lábios, outrora rosados e suaves, ressequiam-se, rachavam como a
terra seca sob o sol escaldante, exalando um aroma agridoce de sofrimento e desespero.
Logo depois, os calafrios chegaram como trovões gélidos. Tremores convulsivos sacudiam seu
corpo, ossos frágeis como porcelana prestes a se estilhaçar, incapazes de sustentar o peso cruel
daquele mundo implacável. A respiração, antes ritmada e tranquila como o sussurrar das folhas
numa tarde serena, tornou-se um ofegar errático e doloroso, como se cada inspiração fosse uma
luta para engolir não apenas o ar, mas a própria dor que consumia sua essência.
Silas, desesperado, correu atrás de ajuda. Chamou curandeiros rudes de aldeias próximas, trouxe
magos de cura da cidade vizinha, incansáveis em seus encantamentos e poções. Recorreu a rezas,
invocou deuses esquecidos, ofereceu promessas — promessas que o próprio Silas não sabia se
acreditava, mas que nasciam da pura angústia de um homem que não podia perder mais ninguém.
A inevitável lâmina da morte cortou mais fundo do que qualquer ferida física.
Naquela noite fria, quando a lua era um espectro pálido e o vento cantava lamentos entre as
árvores, Naelith partiu. Morreu ali, com os olhos entreabertos — fixos na porta, como se esperasse
o irmão entrar, como se a simples presença dele pudesse salvá-la de sua própria partida. Seu corpo
delicado, finalmente em silêncio, repousou na escuridão da pequena sala, enquanto o tempo
parecia parar para testemunhar a perda.
Silas enterrou Naelith nos fundos da taberna, sob uma cerejeira seca, suas raízes frágeis espremidas
entre a terra árida. Fez isso com mãos tremulas, marcadas pelo tempo e pelo peso da tristeza.
Talhou uma placa de madeira tosca, simples — nada digno para alguém tão jovem, tão cheia de
vida — com as próprias mãos, deixando as letras tremidas, quase arrancadas por lágrimas e
desespero.
Quando Elyon finalmente abriu os olhos, depois do que pareceram séculos de escuridão, o mundo
que conhecia já não existia.
O gosto metálico na boca era o primeiro aviso: sangue, febre e ferro, misturados em um amargor
que o fez engasgar. A dor no peito, surda e constante, era uma ferida invisível que rasgava seu ser
por dentro. Mas o que mais lhe esmagava era o vazio — um abismo negro que sugava tudo o que
restava de esperança.
Antes que sua visão pudesse focar na penumbra fraca do quarto, a verdade lhe caiu como um
martelo.
A ausência de Naelith era um buraco aberto no ar, um silêncio que gritava em sua mente.
O canto vazio da cama onde ela costumava dormir; o perfume doce e suave dela, que antes flutuava
como um fantasma entre aquelas paredes, agora completamente sumido.
Silas estava ali, sentado em silêncio no canto, com o corpo curvado e os olhos cansados,
misturando exaustão e luto numa expressão que rasgava o coração de Elyon.
Quando, com um esforço tremendo, Elyon conseguiu sentar-se, sentiu o peso do mundo esmagar
seu peito como uma pedra gigante. Era um peso sufocante, doloroso, que parecia não ter fim.
Ele gritou.
Derrubou a bacia com água quebrou a mesa pequena, tentou se levantar, mas as pernas fracas o
traíram. Caiu no chão, soluçando, com as mãos tremendo como folhas de outono, enquanto sua
mente implorava para que aquilo fosse um pesadelo cruel, e nada daquilo fosse real.
Mas era.
Silas se ajoelhou ao seu lado, não disse palavra. Apenas o segurou com força, como quem tenta
impedir que um barco afunde de vez.
— Eu tentei, moleque — murmurou o velho, a voz embargada e quebradiça. — Eu juro por tudo
que é sagrado… tentei até o fim.
Elyon chorou. Chorou até não ter mais lágrimas para derramar. Chorou até que o choro se
transformasse em silêncio absoluto, em vazio.
Ele passava horas ajoelhado diante da cova improvisada, o olhar vazio fixo na terra recém-
remexida sob a cerejeira seca. Às vezes, murmurava desculpas sem voz, outras vezes apenas
sussurrava o nome dela, como se pudesse, ao pronunciá-lo, arrancá-la da morte.
Primeiro, a culpa.
Cada momento que lembrava, cada pensamento que escapava, era uma flecha cravada no peito.
Por que não a salvou? Por que não fez mais? Por que não esteve ali quando ela mais precisava? A
culpa era um nó sufocante que apertava o coração, uma prisão invisível da qual não conseguia
fugir.
Raiva contra o destino cruel, contra os deuses que nada fizeram, contra os demônios invisíveis que
pareciam rir da sua dor. Raiva contra Silas, que nada pôde fazer, mas também contra si mesmo,
por sentir-se fraco, impotente, inútil.
Um propósito frio, certeiro como a lâmina da sua adaga. Um juramento que queimava em suas
veias mais forte que a febre que o derrubou.
A partir daquele dia, Elyon não era mais o menino que brincava entre as sombras da taberna. Não
era mais aquele que sonhava com um futuro pacífico.
Era uma alma marcada pelo fogo da perda, forjada na dor, que caminharia por um caminho escuro,
mas implacável.
Parou de brincar com as facas como um garoto aprendendo truques. Agora… cada golpe tinha
intenção. Cada treino era uma luta contra o tempo. Ele corria pelos becos até os pés sangrarem,
fazia flexões até os braços não aguentarem mais, cortava troncos de madeira até os nós dos dedos
racharem.
Silas… mesmo carregando sua própria dor… começou a treinar o garoto de forma séria.
Ensinou como segurar uma adaga para matar… e não apenas para intimidar.
Elyon começou a trabalhar. Fazia de tudo: entregas, recados, vigílias… e, quando o dinheiro
apertava… aceitava trabalhos de vigilância para gente de reputação duvidosa.
E, todas as noites, antes de adormecer… quando o corpo exausto finalmente cedia… a última
coisa que ouvia… era a voz da irmã, ecoando em algum canto profundo da mente:
"Nunca mais."
Capítulo 5
O tempo passava...
Dias e noites confundiam-se como ecos de uma lembrança distante, dissolvidos numa névoa
espessa que parecia jamais se dissipar de Arnved. O céu estava sempre acinzentado, como se o
mundo inteiro estivesse à beira de um choro que nunca vinha. E ele... já não chorava. Já não
falava. Já não dormia.
Sua pele já não carregava os sinais das feridas deixadas pelas batalhas, mas a alma... essa,
continuava aberta, escancarada como um campo de guerra abandonado. A lembrança da estaca
— do crânio do pai empalado como um aviso cruel dos demônios — queimava como brasa viva
cravada no coração. E Naelith… seu nome pairava no silêncio de cada madrugada, como uma
prece não atendida, como um eco que sangrava entre as frestas da mente.
Na penumbra dos fundos da taberna, Elyon moldava a si mesmo como quem forja uma lâmina
para atravessar o próprio peito.
O chão de terra batida, encharcado pela chuva dos últimos dias, tornara-se lama. Mas ele não se
importava.
Corria.
Treinava.
Saltava sobre troncos como um animal cercado.
Girava suas adagas com tamanha precisão que o som do vento cortado parecia um lamento.
A cada golpe contra os bonecos de palha — montados por Silas, silenciosamente, a cada noite
— um rosto se erguia em sua mente.
Darek, com aquele sorriso arrogante.
A mãe, rachada pela lâmina que nunca viu.
A irmã, chamando-o com olhos febris.
O pai, ajoelhado com a espada quebrada.
E quando o suor misturado ao sangue começava a escorrer dos seus punhos feridos, ele apenas
se abaixava, pressionava os joelhos no barro, e continuava.
Porque parar seria como permitir que a morte vencesse de novo.
Durante o dia, Elyon era um vulto silencioso, cumprindo tarefas nas vielas de Arnved —
entregas, escoltas, observações.
Durante a noite, era uma estátua diante do espelho trincado no quarto dos fundos.
O reflexo devolvia uma imagem que ele mal reconhecia: olhos fundos, pele pálida, músculos
tensos, o pescoço marcado pelas veias latejantes da insônia.
Silas, que sempre fora um velho de poucas palavras, agora era apenas presença — uma sombra
encostada ao batente da porta, fumando em silêncio enquanto observava Elyon com a dor
resignada de quem já perdera filhos que não eram de sangue.
Ele entendia.
Mais do que dizia.
Mais do que qualquer um jamais entenderia.
Saltou.
Não pensou.
Foi instinto.
Foi raiva.
Foi necessidade.
Mas o segundo...
Amarelos.
Fendas verticais.
O reflexo da infância perdida.
Quando o corpo caiu no chão, o sangue escuro formou símbolos indecifráveis na pedra.
Elyon se ajoelhou, ofegante.
A mão trêmula tocou o rosto do inimigo — um rosto que começou a se dissolver, como cera
sob o calor.
Era um demônio disfarçado.
De volta à taberna, Silas o aguardava com um copo de vidro grosso na mão e olhos que já
sabiam de tudo.
Silas assentiu.
Levantou-se.
E, sem dizer palavra, moveu uma estante velha com esforço, revelando uma portinhola de
madeira oculta.
Desceu.
E Elyon o seguiu.
O porão estava frio, úmido, iluminado apenas por uma lamparina pendurada em corrente.
Havia mapas nas paredes — todos antigos. Alguns riscados com sangue seco.
Armas.
Livros proibidos.
Fragmentos de armaduras demoníacas.
E no centro... um baú.
Negro.
Fechado com runas ancestrais.
Silas abriu.
Ali dentro, estavam coisas que ninguém deveria possuir: pergaminhos, armas de prata negra,
pedaços de unhas demoníacas, olhos preservados em vidro.
— Isso... — disse o velho, com a voz rouca — …é o que sobrou das últimas vezes em que eles
vieram.
Mas desta vez, não estão atacando.
Estão se infiltrando.
Estão estudando.
Estão nos testando.
Silas assentiu.
— E quando a trilha estiver pronta... algo virá por ela. Algo que a gente não está preparado pra
ver.
Ali, naquele porão, naquele instante em que o mundo respirava por entre sombras, Elyon
compreendeu.
Enquanto a chama da lamparina tremulava com o vento que vinha das rachaduras do porão,
Elyon sussurrou:
— Nunca mais.
E Silas respondeu:
— Nunca mais.
Capítulo 6
Ele se movia como parte da paisagem — não alguém que caminhava por Arnved, mas alguém
que pertencia àquela escuridão. O couro de suas botas absorvia o som, seus passos deslizavam
entre as pedras molhadas como uma prece dita sem fé. A cidade, de certa forma, o aceitava.
Como se soubesse que dentro dele havia algo mais antigo que o próprio medo.
O capuz lançado sobre os olhos projetava sombras que escondiam sua juventude, endurecida
por anos que não lhe foram dados, mas arrancados à força. As duas adagas — curtas, curvas,
gravadas com símbolos esquecidos — batiam levemente contra seu corpo, como corvos
pousados em seus ombros. Suas mãos estavam sempre próximas delas. Não por costume, mas
por necessidade.
Cada som era um alerta. O gotejar de uma calha rachada, o arranhar de alguma criatura sob os
alicerces, o ranger de uma porta empurrada pelo vento… tudo podia ser isca. Tudo podia ser a
morte.
Três anos haviam passado desde que a terra engolira o corpo de Naelith.
Três anos desde que as lágrimas secaram no rosto sujo de um garoto ajoelhado diante de um
túmulo cavado com as próprias mãos. A dor havia se transformado. Primeiro em raiva. Depois,
em silêncio. Agora, era algo mais frio. Algo afiado. Algo que carregava nas pontas dos dedos
toda vez que sacava as lâminas.
E naquela noite, enquanto o mundo ao redor mergulhava em neblina e suspiros contidos, Elyon
sabia que o destino rangia de novo — e ele, mais uma vez, teria de ser o dente da engrenagem
que esmagava.
Mas naquela noite, havia algo mais. Um som que não podia ser ouvido — mas que se
sentia. Como uma língua esquecida, sussurrando direto nos ossos. Era um silêncio carregado de
presságio, uma tensão que fazia a pele arrepiar e o coração bater mais forte sem motivo aparente.
Até os gatos — sempre tão despreocupados — desapareciam, fugindo para esconderijos onde
nem mesmo a luz ousava penetrar.
Elyon caminhava devagar, cada passo medido e consciente, absorvendo o ambiente com
olhos aguçados e mente alerta. Não era só mais uma noite qualquer. Havia um fio invisível
puxando-o para frente, uma certeza amarga de que algo estava sendo tramado nas sombras. Seu
corpo estava tenso, os músculos prontos para reagir, o ar frio entrando e saindo ritmadamente
pelos pulmões como uma dança silenciosa de sobrevivência.
Dentro, a luz era escassa, lançada pela lareira moribunda cuja brasa vermelha iluminava rostos
marcados pelo tempo e pelo desalento. O silêncio dominava, preenchido apenas pelo crepitar
tímido do fogo e pelos suspiros cansados dos poucos presentes. Cada caneca sobre as mesas
guardava mais silêncio do que bebida, testemunhas silenciosas de histórias enterradas em meias
palavras e olhares vazios.
Elyon sentiu o peso daquele ambiente, onde o mundo parecia esquecer até o nome dos vivos.
Aqui, na penumbra, encontravam-se aqueles que viviam à margem da esperança, homens e
mulheres moldados pela dureza das ruas, pelas traições e pelos segredos. E mesmo assim, ali
estava ele, com seus poucos aliados.
Silas.
A figura familiar, curvada e silenciosa, surgiu no fundo da taberna, como uma sombra que se
recusa a desaparecer. Elyon caminhou até ele sem pressa, o coração pesado, sem
pressentimentos claros, mas com a certeza amarga de que as peças daquele jogo obscuro estavam
sendo movidas — e que ele não era um mero espectador.
Era sempre à noite que o mundo o lembrava de que ele era feito de outra matéria.
Movia-se entre as sombras com a precisão de um predador moldado por anos de dor. O capuz
cobria o rosto, mas não o escondia do mundo — apenas o afastava, como se dissesse “vocês não
me conhecem…, mas eu conheço cada um de vocês”. As adagas não eram mais armas; eram
prolongamentos de seus punhos, afiadas como suas intenções. O couro do casaco rangia
levemente quando ele se abaixava — único som permitido em sua aproximação.
Três anos desde que seus dedos rasparam a terra fria ao sepultar Naelith, sozinha, envolta num
manto de linho e silêncio.
Ao entrar na taberna pelos fundos, o cheiro da cidade foi substituído por fumaça, gordura, suor e
licor barato. Mas havia algo mais… algo tenso. Denso. Como se as palavras estivessem sendo
mantidas presas à força nos peitos dos clientes. Elyon sentiu. As conversas eram sussurros. As
risadas, forçadas. E os olhares? Eram como folhas em vento fraco — todos desviavam, todos
evitavam encarar a escuridão nos olhos dele.
Silas apareceu no depósito pouco depois. Suas botas arrastavam no assoalho, mas os olhos?
Vivos, atentos. Como se já soubessem.
— Elyon — disse, com a voz baixa, quase um rosnado — escuta com atenção.
O velho olhava para além das paredes. Como se visse vultos nas frestas, mesmo ali, entre barris e
sacas de farinha.
— Chegaram mercadorias além do normal… não é só seda, nem especiarias — falou, cada
palavra mais lenta que a anterior. — Ouviu-se dizer que, entre os rolos de tecido e os pacotes de
incenso… veio algo letal. Não arma. Informação.
Elyon franziu o cenho. Seu corpo se enrijeceu antes mesmo de entender por completo.
Informação? Em caixas de comércio?
— Mapas? — sussurrou, num sussurro quase involuntário.
— Mapas… e talvez coisas ainda mais perigosas. Marcas. Códigos. Posições. Lugares onde o véu
entre os mundos está… mais fraco. Onde o ar fica denso. Aonde o calor vem debaixo da terra
sem motivo.
Elyon ficou em silêncio, mas seus olhos queimavam. Aquelas palavras tinham um gosto amargo,
conhecido. Fendas. Locais de travessia demoníaca. Portas que jamais deveriam ser abertas.
— Precisa impedir essa entrega, garoto. Antes que essa informação seja vendida… ou usada.
— Não vá de peito aberto. Esses homens não são ladrões de rua. São treinados. Leais até o fim.
Usam cápsulas de veneno nos dentes. Se falharem… morrem. E morrem sorrindo.
Meia hora depois, ele era uma sombra sobre os telhados de Arnved. O céu acima estava coberto
por nuvens baixas. Nenhuma estrela o guiava, mas ele não precisava. O caminho era o mesmo
que seu sangue indicava.
Seus pés pousavam leves nas telhas cobertas de orvalho. Seu corpo parecia parte da própria
cidade, esgueirando-se entre os prédios como uma lembrança de algo que foi esquecido — e
voltou para cobrar a dívida.
A neblina envolvia seus tornozelos como serpentes brancas. A lua, escondida, era cúmplice.
Chegando ao Mercado Velho, parou. Agachado no telhado de uma padaria abandonada, viu.
Três figuras.
A cena era errada. Nenhuma palavra era dita. O silêncio era absoluto.
Elyon estudou cada gesto. O mais alto parecia o líder: usava um casaco grosso, uma cicatriz
cortava-lhe o lado do rosto como um trovão ressecado. O segundo era magro, inquieto, mãos
nervosas sempre voltadas para o cabo da adaga. O terceiro… era o mais perigoso. Menor, mas
imóvel. Ombros firmes. Respiração contida. Um guerreiro.
Elyon puxou a adaga. Não com pressa, mas com precisão. A lâmina deslizou por trás da nuca do
homem, penetrando fundo, cortando a base do crânio com um som surdo. O vigia caiu com um
suspiro sem voz, os joelhos cedendo antes que o corpo compreendesse que havia morrido.
Não houve alarde. Apenas o som do sangue escorrendo para dentro da neblina.
O contrabandista magro girou com um grito sufocado, puxando a adaga num reflexo quase
infantil. Mas Elyon já estava em movimento, correndo baixo como um animal faminto.
A sequência que se seguiria seria o início de uma batalha brutal — e ele sabia: ou terminava ali,
ou tudo se perderia.
A névoa adensava-se sobre o Mercado Velho como um véu de luto, sufocando cada canto com
um silêncio viscoso. As pedras do calçamento estavam molhadas e escorregadias, refletindo as
poucas chamas tremeluzentes das lamparinas que resistiam ao vento do leste. O cheiro da cidade,
uma mistura de sangue seco, peixe podre e fuligem antiga, envolvia a pele como uma maldição
silenciosa. Não havia passos. Não havia vozes. Apenas o rumor distante de um sinete quebrado
pelo tempo.
Elyon estava agachado no beiral de uma padaria abandonada, fundido à escuridão, o capuz
lançando sombras sobre seu rosto de traços jovens, mas olhos gastos. Ele não se movia — era
como uma estátua talhada pela dor e pelo instinto. O corpo inteiro tensionado, como se cada
músculo carregasse a lembrança de sua irmã morta e do pai decapitado. Na mão, a adaga
principal — “Eron”, nomeada silenciosamente — pulsava quente, como se sedenta de carne.
Abaixo, três figuras encapuzadas trocavam pacotes e sussurros. Não eram comerciantes. Havia
algo metódico na postura deles, algo disciplinado demais para contrabandistas comuns. Elyon
estudou o ambiente: uma barraca caída à esquerda, uma pilastra trincada ao fundo. Terreno
limitado. Ideal para emboscadas. Péssimo para fuga. Perfeito.
Silêncio.
O primeiro homem, o vigia, sequer teve tempo de erguer a cabeça. Elyon caiu sobre ele como
um corvo de guerra. O braço esquerdo travou o pescoço do alvo, o direito deslizou a adaga sob a
mandíbula e cortou para cima. Um jato quente de sangue escorreu como um rio invertido. Os
músculos do vigia relaxaram, e o corpo caiu mudo sobre o chão úmido.
Elyon não perdeu tempo. Seus pés já estavam em movimento, virando o corpo para enfrentar os
dois restantes.
O mais magro deu um passo atrás, mas já sacava uma lâmina curva — ornamentada, mas afiada.
Seus olhos, arregalados pelo susto, buscavam uma saída. O líder, por outro lado, reagia como um
animal treinado. Gritou uma ordem curta — “Desgarra!” — e ergueu uma maça de ferro,
espessa e mortal.
O som que ela fez ao cortar o ar foi como o rugido de uma corrente sendo quebrada.
O chão escorregadio não perdoava, mas seus passos eram firmes. Ele girou o corpo no último
instante, evitando uma estocada rasa, e respondeu com precisão cirúrgica. A adaga cortou
horizontalmente a parte posterior do joelho do inimigo, decepando tendões como se fossem
cordas. O homem caiu, gritando em agonia, o som abafado pelo choque da dor.
Elyon, com um salto felino, girou o corpo para encarar o líder — o verdadeiro problema.
O homem brandia a maça com mãos calejadas. Tinha cicatrizes no rosto, na mão esquerda
faltavam dois dedos — um veterano. O primeiro golpe veio de cima, direto, brutal. Elyon rolou
para o lado, e a maça acertou o chão com força suficiente para trincar a pedra.
O segundo ataque foi lateral — uma tentativa de esmagar as costelas. Elyon ergueu o antebraço,
o couro reforçado absorvendo parte do impacto, mas o choque percorreu o osso como um raio.
Ele recuou dois passos, o pulmão gritando por ar.
E então, algo mudou. A fúria dele emergiu — não como descontrole, mas como foco.
Ele lembrou da voz de Silas: "Corte antes de pensar. Mova-se antes de duvidar."
A adaga esquerda avançou primeiro — uma distração —, e a direita seguiu num arco baixo,
mirando a junção entre a armadura improvisada e a barriga. O corte foi profundo, rasgando
carne e couro. O líder grunhiu, cambaleou, tentou levantar a maça — mas Elyon girou o corpo e
cravou ambas as lâminas, uma em cada lado do tórax. A lâmina direita atravessou o pulmão.
Um jorro abafado de sangue saiu da boca do homem, e seu corpo cedeu como uma muralha
ruindo por dentro. O som da queda ecoou nas pedras, e Elyon ficou parado por um momento,
respirando pesado, olhando fixo.
Ajoelhou-se junto ao contrabandista ferido. O homem, agora pálido, gemia, tentando rastejar
para longe.
— Quem mandou vocês? — a voz de Elyon era grave, controlada. Mas os olhos… queimavam.
O homem hesitou. Os olhos dele, quase infantis no desespero, brilharam com algo que parecia
arrependimento. Mas então... a mandíbula se fechou com força.
Craq.
Silêncio.
Elyon ficou de pé lentamente, com o rosto endurecido. Os dedos ainda apertavam o punho da
adaga com força desnecessária, até os nós dos dedos ficarem brancos. Ele não percebeu.
Quando retornou à taberna, o sol ainda não havia nascido — mas a noite já não era a mesma.
Silas, de pé, olhou-o como se soubesse. A camisa manchada de sangue, os olhos de alguém que
matou — e viu algo além da morte.
Elyon largou o cilindro sobre o balcão. Silas olhou para o selo com um temor antigo — aquele
tipo de pavor que não vem de ver sangue, mas de reconhecer símbolos esquecidos pelos deuses.
— Eles estão mesmo fazendo isso… — murmurou o velho, quase sem fôlego.
Elyon não respondeu de imediato. Pegou a bebida oferecida. A madeira sob os dedos estava
morna, como se absorvesse a história.
E nas sombras do amanhecer, enquanto a cidade despertava sem saber do que fora salvo, Elyon
sentia dentro de si a certeza inevitável:
Aquilo não era o fim de uma noite. Era o prólogo de uma guerra.
Capítulo 7
A névoa densa lá fora se infiltrava pelas frestas das janelas embaçadas, enrolando-se como dedos
gelados que tentavam atrasar o inevitável. O ar dentro da taberna parecia mais espesso, carregado
com o peso das palavras não ditas e do silêncio que se estendia como um manto opressor. O
crepitar morno da lareira era um contraste triste para o frio que crescia no peito de Elyon.
Silas permaneceu imóvel, o olhar fixo e enevoado, como se buscasse forças no passado para
encarar o presente. Cada ruga do seu rosto parecia contar histórias de batalhas perdidas, de
amigos que nunca voltaram e de promessas quebradas. Suas mãos, firmes apesar da idade,
descansavam pesadamente sobre o balcão — como se cada gesto carregasse o cansaço
acumulado de uma vida inteira.
Quando a voz dele finalmente rompeu o silêncio, saiu rouca e carregada de um peso quase
palpável, como se pronunciá-la fosse dar forma a um destino inescapável.
— Então é hoje... — disse, como se cada palavra fosse uma pedra descendo por um abismo.
Elyon sentiu o ar se apertar em seus pulmões. O olhar firme com que encarou Silas tentava
esconder o tremor que fazia sua garganta parecer uma corda esticada prestes a romper. A voz
saiu firme, mas a emoção mal contida quase fez as palavras falharem.
— Não posso mais ficar aqui, Silas... — falou, a dor silenciosa que carregava tão real quanto o
frio cortante da madrugada. — Se eu ficar, as presas vão acabar... E quando isso acontecer, não
haverá quem defenda Ashenport. Eu preciso sair. Preciso encontrar respostas... e talvez... — a
voz quebrou, afundando por um instante na incerteza — talvez encontrar os responsáveis por
tudo isso.
Silas inclinou a cabeça, aceitando o veredito como um juiz que sabe que o réu é inocente, mas a
sentença inevitável. Pegou o copo próximo, mas não bebeu. Em vez disso, empurrou-o para o
lado, um gesto simples que falava mais do que qualquer palavra poderia expressar.
— Você tem o sangue de Eron nas veias... e a teimosia da Shiena... — falou, seu sorriso torto
carregando um amargor quase melancólico, desprovido de qualquer humor. — Só tenta não
morrer como eles.
O silêncio que se seguiu era quase tangível, como uma sombra densa envolvendo os dois, cheia
de lembranças de batalhas, perdas e promessas feitas sob estrelas já mortas.
Sem dizer uma palavra, Silas se afastou, seus passos arrastados e lentos ressoando pelo piso de
madeira. O som da chave girando na velha fechadura cortou o silêncio como um estilete. Depois,
o ranger abafado da caixa sendo aberta reverberou pelo salão, desacelerando o tempo naquele
instante quase sagrado, enquanto Elyon esperava, consciente de que a vida que conhecia acabara
ali.
Silas voltou trazendo a caixa— um objeto gasto pelo tempo e pelas batalhas, marcado pelas
cicatrizes invisíveis que apenas quem carrega a guerra conhece. Ao pousar o pacote no balcão, a
voz rouca do velho soou como um eco das memórias enterradas:
— Isso aqui... — disse ele, com uma gravidade quase reverente — pertenceu a um amigo. Um
homem que, como você, acreditou que podia mudar o mundo com duas lâminas e um pouco de
sorte.
Com mãos calejadas e cuidadosas, Silas desfez o couro com a delicadeza de quem manuseia um
relicário sagrado. As duas adagas que surgiram, embora simples à primeira vista, revelavam sob a
luz tênue do salão entalhes finos e complexos, marcas gravadas por um artesão que entendia a
fragilidade da vida e o peso da morte.
— Não são encantadas... nem forjadas por mestres renomados — prosseguiu o velho, a voz
embargada pela emoção contida — mas nunca falharam com quem sabia empunhá-las.
Elyon sentiu o frio do metal escurecido acariciar a palma de suas mãos quando as pegou. Girou
uma lâmina com destreza, percebendo o equilíbrio perfeito, o peso exato que parecia falar
diretamente a ele, como se aquelas armas tivessem esperado por seu toque. Não eram meras
ferramentas, eram companheiras destinadas a compartilhar cada golpe, cada desafio, cada
sacrifício que o futuro lhe reservava.
— Prometo que farei bom uso delas. — Sua voz, apesar do fio de sorriso, carregava a firmeza e a
determinação de quem sabe que o caminho será árduo.
Silas estendeu a mão para o esperado aperto, mas, surpreendendo Elyon, o puxou para um
abraço breve, apertado, carregado de um amor silencioso que só os anos e o convívio profundo
poderiam cultivar.
— Não esquece... — murmurou no ouvido do jovem, ao soltá-lo — Se algum dia voltar, sempre
haverá um canto aqui.
Com um assentimento silencioso, Elyon baixou o capuz, ajustou as adagas na cintura, sentiu o
frio da manhã invadir sua pele sob a armadura, e abriu a porta para o mundo que o aguardava.
Cada passo que dava sobre as pedras irregulares da rua parecia pesar uma eternidade, o som
ecoando como um tambor que marcava uma despedida irrevogável. O cheiro salgado do mar
misturado ao ar úmido da manhã se infiltrava em seus sentidos, enquanto o grito distante das
gaivotas e o ritmo abafado das marteladas dos estaleiros se fundiam numa trilha sonora de adeus
e esperança.
No meio da rua, Elyon parou. Olhou para trás uma última vez, a taberna diante dele — suas
madeiras gastas pelo tempo, as janelas embaçadas e mal-cuidadas, o vulto silencioso de Silas
observando-o através do vidro como uma sentinela da memória. Uma imagem que gravaria para
sempre na alma, símbolo do que deixava para trás e do que levava consigo.
A estrada não levava até lá. Nenhuma trilha levava. A antiga casa onde crescera, onde o riso de
sua irmã ecoava e o cheiro de pão quente preenchia o ar, agora era apenas um fragmento
engolido pelo tempo — e pelo fogo.
A névoa cerrada que cobria as colinas parecia mais espessa naquele trecho esquecido do mundo.
Como se a própria terra quisesse ocultar aquela ruína do olhar dos vivos. Mas Elyon sabia o
caminho. Mesmo tantos anos depois, seus pés encontraram o solo sem hesitar, como se o corpo
lembrasse o que a mente evitava.
Quando chegou, o que restava da casa era um amontoado de pedras calcinadas e madeira
retorcida. O teto havia desabado, as paredes haviam sido comidas pelo tempo e pelas chamas. E
mesmo assim… havia algo ali. Uma presença. Um peso invisível. A lembrança da última noite.
As mãos, acostumadas a empunhar adagas, agora cavavam a terra com dedos nus. O solo estava
duro, frio, como se se recusasse a ceder. Mas ele não parou. As unhas quebraram. Os nós dos
dedos sangraram. E mesmo assim, ele cavou.
Quando terminou, haviam duas covas rasas, lado a lado, diante das ruínas do que um dia fora o
lar de sua infância.
Elyon ficou de pé, respirando com dificuldade, a poeira e o cheiro da terra molhada misturados
ao gosto do sangue na boca. Seus olhos, vazios por tanto tempo, agora pareciam prestes a
transbordar.
Do que restava no fundo da casa — entre cinzas, carvão e fragmentos de memória — ele
encontrou o que podia: ossos quebrados, joias calcinadas, um pedaço de tecido que ainda
guardava o tom vermelho escuro do manto de sua mãe.
Com mãos trêmulas, depositou os restos em cada cova. Nenhum ritual, nenhuma bênção
sagrada, nenhum padre ou cântico. Apenas ele. E o silêncio. E o peso absoluto do que perdera.
Procurou por galhos ao redor — secos, retorcidos, frágeis como ele se sentia por dentro. Com
esforço, montou duas cruzes toscas, amarradas com pedaços do próprio tecido que cortou de
sua roupa. Fixou uma sobre cada cova.
E ficou ali.
Parado.
O vento soprou entre as árvores mortas. O céu parecia ter esquecido o sol. Não havia som, nem
pássaros. Apenas a respiração dele. E a dor.
— Me desculpem. — disse por fim, com a voz rouca, quase inaudível. — Eu não fui forte o
bastante. Não cheguei a tempo.
Silêncio.
Ele ajoelhou-se mais uma vez. A cabeça baixa. Os olhos fixos no chão entre as covas.
— Mas eu juro… pelo sangue de vocês… pela memória de Naelith… e por tudo o que
perdemos…
— Eu vou matar cada um deles. Todos. Cada demônio. Cada homem que ajudou. Cada maldito
que sorriu enquanto vocês ardiam.
As palavras não tremiam. Não havia mais espaço para hesitação. Apenas promessa.
Ficou ali até o vento cessar, até a última lágrima secar no rosto sujo de terra. Então se ergueu.
Virou-se.
As duas cruzes de galhos ficaram ali, solitárias, marcando o fim de um capítulo que nunca seria
reescrito.
E enquanto a figura de Elyon desaparecia na névoa cerrada… o mundo girava, alheio à dor dos
seus filhos.
Carregava um juramento.
O ar frio da madrugada cortava a pele, trazendo consigo o cheiro salgado do mar, o odor forte
de madeira queimada e fumaça — um lembrete cruel de que Ashenport era ao mesmo tempo
prisão e refúgio. As sombras tornavam-se mais densas, ocultando olhos atentos e predadores
invisíveis.
À frente, o Portão Leste erguia-se como um monumento entre a relativa segurança da cidade e o
vasto mundo cruel que se estendia além. Ali moravam o perigo, o mistério e as respostas que
Elyon buscava — demônios sedentos, caçadores implacáveis, contrabandistas sorrateiros e
segredos enterrados em sangue e silêncio.
O peso da responsabilidade repousava em seus ombros, mas dentro dele ardia um fogo tênue,
alimentado por promessas e juramentos sussurrados ao vento.
Capítulo 8
O mundo além dos muros de Ashenport permanecia implacável, mas o perigo ali era algo mais
denso, mais palpável — uma presença que se insinuava por entre os galhos retorcidos, um
sussurro que se perdia no silêncio pesado da floresta. A estrada se estendia diante deles como
uma serpente sonolenta, curvando-se entre colinas despidas, onde a vegetação se retorcia sob o
manto constante de neblina espessa. Era como caminhar dentro de um quadro cinzento, onde
cores e sons eram sugados pela bruma, deixando apenas a sensação de solidão e alerta.
Cada passo de Elyon sobre o solo encharcado era abafado pela umidade, o barro grudando nas
solas das botas, enquanto o ar frio penetrava fundo em seus pulmões, trazendo um gosto
metálico, quase amargo, que pesava sobre a garganta. O silêncio era tão absoluto que parecia o
próprio mundo prendendo a respiração. Até que um estalo seco, nítido, cortou o ar — o som de
um galho rompido ou talvez de algo mais sinistro. Elyon não hesitou: ergueu as adagas, corpo
tenso, olhos rasgando as sombras em busca do perigo.
Ao seu lado, duas figuras emergiram da neblina como fantasmas da floresta: uma movia-se com a
firmeza serena de quem conhece a mata como a palma da própria mão, empunhando uma lança
com naturalidade e prontidão; a outra trazia a defesa de um escudo, avançando com passos
decididos, cada movimento carregado de experiência e vigilância. Eles não trocaram palavras,
apenas sorrisos contidos de reconhecimento mútuo — ali havia uma causa compartilhada, uma
urgência que dispensava apresentações.
Quando o primeiro clarão da manhã cortou a neblina, o trio avançou pela estrada que se abria
para a imponente silhueta da cidade. As muralhas de pedra, gastas pelo tempo e cobertas por
musgo, erguiam-se diante deles como sentinelas silenciosas, enquanto do interior vinha o cheiro
inconfundível de fumaça, suor e metal queimado. O barulho distante dos sinos ecoava através do
ar pesado, misturado ao clangor metálico das oficinas e ao murmúrio constante das ruas
movimentadas.
Ao cruzar o Portão Leste, a atmosfera mudou radicalmente: o ar ficou denso, repleto de uma
cacofonia de sons e odores. O mercado nas ruas inferiores fervilhava em um caos organizado.
Barracas improvisadas se amontoavam, anunciantes gritavam por atenção, comerciantes
arrastavam mercadorias e negociantes astutos barganhavam com clientes. Homens em armaduras
desgastadas caminhavam lado a lado com magos de rua, cujos dedos brilhavam com pequenos
feitiços lançados para atrair olhares e moedas. A fumaça misturava-se com o aroma forte do suor
e da cerveja, criando uma atmosfera carregada, quase sufocante.
Mas Elyon não se deixava distrair. Seu olhar cortava o tumulto, atento aos cantos escuros e aos
gestos furtivos — ele buscava algo, ou alguém. A presença de seus companheiros ao lado lhe
dava um alento, um respaldo silencioso.
Quando finalmente se acomodaram numa taverna escondida, o ar parecia ainda mais pesado. O
cheiro de tabaco misturado ao suor encharcado em roupas gastas, ao calor abafado da lenha
queimada e ao gosto amargo da cerveja velha, preenchia o recinto com uma opressão quase
física. As paredes eram de madeira escura, impregnadas de histórias de luta e de sofrimento,
refletidas no olhar cansado dos poucos presentes.
Mal se sentaram, a tensão explodiu. Palavras ásperas cortaram o ar, seguidas por gestos bruscos e
ameaçadores. Copos voaram, mesas balançaram, e corpos se chocaram com força. O tumulto
ameaçava sair do controle.
Elyon, junto aos outros, ergueu-se com a precisão e o silêncio de quem está habituado a
enfrentar o caos. Moviam-se como uma única entidade, cada gesto calculado para conter a
violência antes que ela tomasse proporções irreparáveis. Com vozes firmes e comandos claros,
apartaram os brigões, impondo ordem e acalmando os ânimos.
O salão inteiro prendeu a respiração. Os olhos fixaram-se neles — figuras que surgiram do nada
para pôr fim à desordem, despertando nos presentes uma mistura complexa de surpresa, respeito
e algo parecido com esperança. O silêncio que se seguiu não era mero vazio: era uma ponte
construída entre aqueles que enfrentavam o mundo sozinhos e aqueles que, pela primeira vez,
sentiam que poderiam não estar mais sós.
À medida que as chamas da lareira lançavam suas sombras trêmulas nas paredes, as vozes
baixaram, e as conversas se tornaram confidenciais. Cada palavra era medida, cada gesto
carregado de significado. Histórias começaram a ser reveladas, fragmentos de vidas marcadas por
perdas que iam além do físico, de cicatrizes que o tempo não apagara. O motivo que os unia
emergia, tímido, mas resoluto, no relato de cada um.
Ali, naquele pequeno refúgio esquecido pela brutalidade do mundo lá fora, Elyon sentiu pela
primeira vez que sua caçada — que até então carregava sozinho — começava a se transformar.
O peso da solidão cedera espaço à força de muitos, e o sangue que corria em suas veias teria
agora o eco da luta de outros.
Sabia que a estrada à frente seria longa e perigosa, mas, finalmente, não estaria mais sozinho.
Juntos, eles começavam a traçar os primeiros passos de um caminho que mudaria tudo.
O salão da taverna ainda guardava o cheiro forte e persistente de tabaco queimado, suor amargo
e o rescaldo áspero da briga que, poucos minutos antes, quase descambara para a violência. As
chamas trêmulas das velas lançavam sombras dançantes nas paredes gastas, fazendo os cantos
escuros parecerem vivos, sussurrando histórias antigas de dor e luta.
Elyon estava sentado, as adagas afiadas repousando levemente sobre o joelho. Seu olhar fixava a
ponta da lança de madeira, longa e robusta, fincada no chão ao lado do homem de pele
bronzeada, que a segurava com firmeza e determinação quase silenciosa. O anão, por sua vez,
descansava o pesado escudo encostado na parede próxima, as mãos entrelaçadas sobre o aro de
metal, buscando uma força interior, uma proteção não só física, mas espiritual.
O silêncio no grupo era denso, cheio do peso das palavras não ditas, até que Elyon quebrou o
momento, sua voz firme, carregada de uma dor antiga, mas decidida:
O homem ao seu lado ergueu a lança com um gesto lento e grave, o punho fechando-se com
força ao redor do cabo. Depois, inclinou a cabeça ligeiramente, como reafirmando sua própria
determinação:
— A escuridão tomou minha terra e levou minha amiga. — a voz rouca, carregada de um peso
ancestral, cortou o ar. — Esta lança é minha promessa para protegê-la e trazer paz de volta,
mesmo que eu tenha que atravessar o próprio inferno para isso. Não há outra escolha.
O anão bateu com a palma aberta contra o escudo, fazendo o metal ecoar como um som de
tambor de guerra, profundo e retumbante, que parecia acordar alguma chama esquecida no
coração de todos.
— Eu não empunho lâminas afiadas como vocês — sua voz era grave, firme, carregada de
convicção — mas meu escudo é um juramento sagrado. Eu carrego a palavra de um deus
esquecido, que fala de justiça e renovação. Minha missão é espalhar essa fé, para que a esperança
possa resistir quando a tempestade finalmente chegar. O escudo não é só proteção para mim,
mas para a chama que ainda brilha no meio dessa escuridão.
Os olhos dos três se encontraram, brilhando com a mesma mistura de dores profundas e
promessas silenciosas, feitas para si mesmos antes de serem ditas aos outros. A lareira estalava ao
fundo, e a luz amarelada desenhava nos rostos marcas de batalhas antigas e de um futuro incerto,
mas irrevogável.
— Separados, somos apenas sombras que se dispersam ao menor vento. — Sua voz ganhou
força, um rugido contido que ecoava na quietude da taverna — Mas juntos... juntos temos uma
chance real de virar a maré. De fazer com que essa escuridão recue, nem que seja por um
instante.
Um silêncio profundo caiu, não vazio, mas carregado de entendimento. Não era necessário mais
nada. Um homem, como se fosse um gesto instintivo de apoio, pousou a mão firme e quente
sobre o ombro do anão, transmitindo um conforto silencioso. Outro cruzou os braços, os olhos
fixos, atentos e sagazes, enquanto uma mulher, com uma leve inclinação da cabeça, parecia
absorver cada palavra como um juramento sagrado.
O homem da lança ergueu o braço num movimento lento, decidido — um selo não verbal de
compromisso, um voto não escrito que reverberava no silêncio.
— Unidos, nossas forças serão uma muralha — disse ele, a voz grave e segura — uma fortaleza
que o mal não poderá atravessar, não importa o quão escuro seja o caminho.
Elyon ergueu os olhos, brilhando com uma luz incandescente, quase palpável.
— Se cada um de nós é apenas uma faísca — declarou, com um tom carregado de esperança e
desespero ao mesmo tempo — juntos, seremos a chama que rasga a escuridão e ilumina até os
recantos mais sombrios deste mundo.
O grupo se levantou quase em uníssono, como se uma corrente invisível os ligasse, unindo não
só seus corpos, mas suas vontades e seus destinos. No peito de cada um ardiam promessas não
ditas, juramentos silenciosos de proteção, de sacrifício, de solidariedade profunda — uma
irmandade forjada não pelo sangue, mas pelo fogo das causas compartilhadas.
Então, uma voz firme, até então quieta nas sombras, rompeu o silêncio com autoridade
inabalável:
— Não importa o que venha. Não importa o quanto o caminho seja cruel. Enfrentaremos tudo.
Juntos.
O anão golpeou o escudo contra a mesa com um estrondo metálico, um som que parecia o
trovão distante de uma tempestade que se aproxima, reverberando nas paredes antigas da
taverna, ecoando no coração de todos ali presentes.
— Lutar lado a lado — afirmou, com uma convicção tão sólida quanto o aço que empunhava —
é a nossa única chance de sobreviver. De vencer.
Elyon sorriu, um sorriso que continha a mistura amarga da dor e da esperança. O peso solitário
que o oprimia parecia se dissolver no calor que começava a crescer ao seu redor — a promessa
silenciosa de que não estaria mais só.
— Está decidido — afirmou, com voz firme, cortando a névoa de incertezas — Seguiremos
juntos. Cada um com sua luta, seu fardo, suas cicatrizes — mas nenhum ficará para trás.
Nenhum ficará sozinho.
Nenhum deles disse mais nada por longos segundos. E, ainda assim, tudo fora dito.
Então, foi o homem da lança que se moveu primeiro. Em silêncio, sem cerimônia, ele retirou
uma pequena adaga de osso presa à cintura — rudimentar, cerimonial. Seus olhos, escuros como
as florestas do sul, encontraram os de Elyon com uma clareza ancestral.
— Se é sangue e fogo que nos une… — disse ele, num sussurro quase ritualístico — que seja o
sangue a primeira oferenda.
Segurou a lâmina com firmeza e passou o fio levemente sobre a palma esquerda, deixando o
sangue escorrer, quente, vivo, honesto.
O anão não hesitou. Com movimentos precisos, fez o mesmo. O corte era firme, a expressão
solene — como se honrasse um rito perdido de sua fé esquecida.
Elyon se adiantou, pegando a adaga com cuidado, quase reverência. Olhou para o fio manchado,
depois para os rostos que agora não eram mais estranhos, mas irmãos de propósito. Sem desviar
o olhar, cortou a própria mão e deixou que o sangue pingasse no chão de madeira da taverna,
misturando-se ao dos outros.
Sem que fosse preciso combinar, estenderam as mãos abertas e uniram as palmas feridas umas às
outras. Sangue se misturando com sangue. Dor partilhada. Destinos entrelaçados.
— Pela chama que não deixaremos morrer — entoou o anão, com a voz trêmula de fé.
Ali, sob o calor fraco da lareira e o olhar silencioso de outros viajantes, um pacto foi selado. Não
com assinaturas, nem com promessas vazias, mas com a própria carne.
Quando soltaram as mãos, ninguém disse mais nada. Mas havia algo diferente no ar. Um
magnetismo novo. Um laço invisível.
O mundo não soube naquele instante. Ashenport seguiu como sempre — seus bêbados nas
sarjetas, suas feridas abertas nas paredes, sua história esquecida nos cantos da lama. Mas algo
havia mudado. Um grupo havia nascido. Um fogo havia sido aceso.
E quando eles se levantaram, lado a lado, não eram mais apenas viajantes solitários à deriva em
um mundo corrompido.
E assim, com as mãos ainda latejando dos cortes e o espírito entrelaçado por um pacto invisível,
eles deixaram a taverna.
O sol ainda não nascera, mas o céu começava a mudar — do cinza profundo à púrpura
silenciosa, como se o próprio mundo estivesse despertando com eles. As ruas de pedra úmida
refletiam as luzes esparsas dos lampiões, e a névoa persistente, antes sufocante, agora parecia
abrir caminho diante de seus passos, como se reconhecesse a marcha de algo maior do que
homens comuns.
A cidade adormecida mal percebera, mas seus muros acabavam de testemunhar algo que, um dia,
seria contado entre sussurros e canções.
O primeiro passo ecoou com o peso de séculos sobre a terra. Atrás deles, a taverna fechava suas
portas mais uma vez, como se também selasse o último capítulo de uma vida anterior.
O guerreiro da lança, guiado pela esperança de salvar aquela que ainda respirava em seus sonhos.
O anão do escudo, portador de uma fé esquecida, cujas palavras ressoariam nas margens do
tempo.
E os outros — sombras com passados silenciosos e futuros ainda por escrever — marchavam
juntos agora.
Passaram pelos portões da cidade sem alarde. Mas cada um deles sabia: não havia mais volta. O
mundo lá fora os aguardava com dentes à mostra. Os demônios, os exércitos ocultos, as
conspirações enterradas sob os escombros da velha ordem.
Mas havia algo novo naquele mundo — algo que se movia contra as correntes, algo que crescia
como uma chama na escuridão.
Vontade.
Fúria.
Determinação.
Pois o que caminhava naquela manhã cinzenta não era um grupo de viajantes.
As botas afundavam levemente na terra encharcada pela neblina da madrugada. Cada passo era
como um juramento silencioso que se repetia entre eles — sem necessidade de palavras. O vento
soprava frio, mas não havia hesitação. A estrada diante deles parecia se estender até o fim do
mundo, coberta por sombras ancestrais e perigos ocultos que ainda não tinham nome.
Havia uma lenda crescendo com cada passo deles — não contada em pergaminhos ou cantada
por bardos, mas escrita no sangue e no silêncio. Uma lenda de caçadores que não buscavam
glória… apenas justiça. Ou vingança.
Campanha
Capítulo 1
Ragnarok
Capítulo 1
O sol já se escondia por trás da copa densa das árvores, deixando cair uma luz dourada
entre os galhos como se o tempo, por um instante, tivesse parado só para observá-los.
Silas permanecia de pé, imóvel à beira da clareira, enquanto Elyon se mantinha próximo
à mata, quase como parte dela — a luz tocando seu rosto apenas o suficiente para revelar
a sombra de uma expressão contida.
Anos haviam se passado desde a última vez em que se viram. Silas agora tinha o peso da
idade nos ombros, e Elyon, o peso do mundo nos olhos. Não havia mais o garoto
inquieto que fugia pelos telhados nem o velho que o repreendia entre suspiros cansados.
Havia apenas dois sobreviventes, marcados pelo tempo — e por escolhas que não
puderam evitar.
Sobre a mesa, deixou o anel de prata que Silas lhe dera anos atrás —
um símbolo de que ele havia voltado.
De que tudo se cumprira.
Então virou-se, lentamente, e caminhou de volta à cabana. Porque sabia que ladinos
nunca dizem adeus — eles simplesmente partem.
Mas, à medida que adentrava a floresta, o ritmo foi desacelerando. O cansaço, a fome e o
peso emocional começaram a se acumular nos ombros.
As árvores, altas e retorcidas, formavam túneis de sombra por onde a luz mal conseguia
passar. O vento ali parecia carregar vozes… ecos distorcidos de conversas antigas,
memórias de risadas, gritos de medo… tudo misturado.
Elyon caminhava em silêncio, com os olhos sempre atentos aos arredores. Suas duas
adagas balançavam nas laterais, presas ao cinto de couro, como extensões da própria
vontade de sobreviver.
O chão da floresta rangia sob seus pés. Pequenos galhos quebravam, folhas secas se
amontoavam nas botas desgastadas. De tempos em tempos, ele se abaixava para
observar pegadas, marcas em troncos, rastros de sangue seco… qualquer sinal de perigo.
O mundo parecia mais vazio do que nunca.
Quando parou para respirar, encostado em uma pedra coberta de musgo, o mundo ao
seu redor começou a… mudar.
Primeiro, uma distorção leve no ar. Como o calor que soube do asfalto num dia
quente…, mas ali, entre as árvores, com o frio cortando a pele, aquilo não fazia sentido.
Depois, o som.
Uma pressão nos ouvidos… como se algo estivesse vibrando muito abaixo da frequência
humana.
Ele ficou de pé imediatamente. As adagas já estavam nas mãos antes que ele percebesse.
O solo… tremeu.
Não era o tremor de um animal grande se aproximando. Era algo mais profundo. Como
se a própria terra estivesse tentando respirar… sufocada.
O céu, até então encoberto por nuvens pesadas, começou a se abrir…, mas não para
deixar passar o sol.
Uma fenda… uma ruptura no tecido do mundo… se rasgava bem ali, entre as copas das
árvores.
E então… aconteceu.
No lugar dela… uma planície infinita de rochas quebradas, céu rasgado por luzes
douradas e vermelhas… E ao longe… exércitos.
Criaturas que desafiavam a razão.
Seres de lenda.
Gigantes, serpentes, deuses… e monstros que pareciam ter saído direto de um pesadelo
coletivo.
O Ragnarok.
O fim de tudo… onde ele… um homem com duas adagas e uma promessa de
vingança… agora era apenas mais uma peça em um tabuleiro cósmico.
Elyon respirou fundo. Fechou os olhos por um segundo… e, mesmo ali, naquele novo
inferno, uma lembrança veio:
Ele abriu os olhos, e com os punhos firmes nas adagas, sussurrou para si mesmo:
Capítulo 2
O mundo estava em ruínas.
Não apenas quebrado, mas rasgado em sua essência — como se os alicerces da própria
realidade tivessem sido corrompidos por forças antigas demais para serem nomeadas.
O Ragnarok não era apenas um evento. Era um tempo, uma presença constante, um eco
de fim que vibrava nas entranhas da terra. O céu, pesado e estagnado, tingia-se de tons
alaranjados e cinzentos, como uma pintura feita com sangue seco e fumaça. As nuvens,
esgarçadas e imóveis, pareciam observar o mundo com olhos calados e impiedosos.
Elyon avançava por aquela vastidão desolada com passos silenciosos. As botas cobertas
de fuligem se firmavam com precisão milimétrica entre raízes expostas, pedras rachadas
e galhos que se assemelhavam a ossos carbonizados. Seu corpo, ágil como o de uma
sombra viva, movia-se entre as árvores retorcidas e rochas partidas com a leveza de
quem conhece o terreno mesmo quando o mundo inteiro mudou de forma.
O silêncio ao seu redor não era natural — era denso, sufocante, como se até os sussurros
do vento temessem quebrar a quietude dos mortos. E ele sabia: qualquer ruído poderia
chamar a atenção do que ainda rastejava sob a pele do mundo.
Não era noite, mas a luz parecia cansada, como se o sol tivesse esquecido como brilhar.
Um frio cortante se escondia sob o calor sufocante das brasas espalhadas entre os
destroços. Era uma terra sem lógica, regida pelo caos — o rescaldo final da guerra dos
deuses e monstros.
Elyon parou por um instante, os olhos percorrendo os arredores com atenção cirúrgica.
Sentia a exaustão nos músculos, mas não cedia a ela. A adrenalina de anos em fuga era
seu combustível. Precisava encontrar abrigo antes do anoitecer. Ali, naquele mundo
esquecido, a noite era mais perigosa do que a própria guerra.
Foi então que o viu: entre pedras irregulares e fragmentos de ruínas, havia um espaço
estreito, um vão escuro na encosta de um rochedo. Quase imperceptível, escondido entre
raízes secas e sombras espessas. Aproximou-se com cautela. Os dedos tocaram as
bordas da entrada, sentindo a aspereza da pedra e o cheiro de terra queimada. A abertura
era pequena, mas profunda o suficiente para servir como abrigo — pelo menos por uma
noite.
De fora, o abrigo mal podia ser visto. Elyon aproveitou isso. Reuniu algumas pedras
menores e empilhou-as disfarçadamente perto da entrada, criando uma ilusão de
desordem natural. Não era uma fortaleza, mas era invisível — e isso bastava.
Elyon recostou-se por um instante, os olhos fixos no fogo. Ali, entre o crepitar suave das
chamas e o cheiro de fumaça, sua mente viajou por memórias que ele preferia esquecer.
Rostos perdidos. Gritos abafados pelo tempo. A promessa que jurara manter — e que
ainda ardia dentro dele como uma chama silenciosa: matar todos os demônios.
Não era orgulho o que o mantinha de pé. Era culpa. Era ausência. Era a dor de tudo o
que já não podia ser consertado.
Capítulo 3
O horizonte de Midgard parecia um mar de ruínas sob um céu em chamas. Os
contornos das montanhas distantes tremeluziam sob o calor opressivo, como miragens
de um mundo antigo que insistia em não desaparecer. O ar estagnado carregava o peso
de um fim sem glória, e o silêncio era profundo demais para ser natural.
Elyon emergiu de seu abrigo entre as pedras — uma formação irregular, esculpida pela
fúria do tempo e das guerras. Moveu-se com a precisão de um caçador experiente, as
duas adagas firmemente presas à cintura, os olhos aguçados varrendo cada detalhe do
terreno à sua volta. Cada fibra de seu corpo estava alerta, como se sua própria carne já
tivesse se moldado à sobrevivência.
O mundo ali fora era ao mesmo tempo familiar e irreconhecível. As terras que um dia
foram verdes agora estavam cobertas por cinzas e espinhos secos. A grama morta
estalava sob suas botas a cada passo, produzindo um som agudo e frágil, como se o chão
estivesse repleto de ossos triturados. A cada avanço, Elyon ajustava seu centro de
gravidade, pisando leve, desviando do que podia denunciar sua presença.
Seus olhos, treinados pela escuridão e pela guerra, captavam tudo. Pequenas pegadas
esmagadas sobre o solo endurecido, como se algo tivesse se arrastado com pressa. Uma
árvore caída — suas raízes ainda expostas, e em seu tronco, marcas profundas de garras,
frescas, cortando a madeira como faca quente em manteiga. Entre os arbustos, um
brilho fugaz: olhos, vermelhos, observando. Mas quando Elyon fixou o olhar, o reflexo
sumiu.
Com cautela, ele desceu até um riacho raso, onde a água escura e turva corria
lentamente, arrastando pequenos fragmentos de folhas e cinzas. Apesar da aparência
opaca, o fluxo ainda espelhava o céu flamejante acima, como se o inferno estivesse
invertido na superfície.
Elyon ajoelhou-se e bebeu, sem pressa, a mão em uma das adagas o tempo todo.
Depois, mergulhou o rosto, sentindo a ardência da água gelada despertar seus sentidos.
O cansaço pesava nos ombros, mas ele o tratava como parte de si — uma segunda pele
que aprendeu a carregar sem se render.
Não havia tempo para fraquejar.
Silêncio.
Seus olhos, fixos na vegetação adiante, acompanharam o leve tremor das folhas. Uma
sombra se movia com velocidade, tentando contornar sua posição, mas Elyon já havia
previsto o padrão. Deslizou como um vulto, passos leves e respiração controlada, e
avançou pela lateral com a ferocidade de quem conhecia o peso do primeiro golpe.
Menor do que as bestas colossais que ele vira vagando ao longe, mas deformada, como
se tivesse sido moldada no calor da própria danação. Seus olhos vermelhos brilhavam
com um ódio cego, as garras gotejavam um veneno oleoso que fumegava ao tocar o
chão. Ela rosnou baixo, curvando o dorso como um felino prestes a saltar.
A fera atacou com fúria primitiva, mas previsível. Elyon desviava com elegância mortal,
as adagas dançando em arcos limpos, buscando as juntas, a garganta, os pontos onde a
carne era mais frágil. Um rosnado, um chiado, o som da lâmina abrindo carne viva.
A floresta morta ao redor parecia respirar de novo — não com vida, mas com fome.
Elyon ajeitou as adagas nas mãos e firmou os pés no chão estaladiço, o olhar endurecido
por algo mais do que coragem.
Era sobrevivência. Era raiva. Era propósito.
Capítulo 4
As sombras se moveram com rapidez entre as árvores retorcidas, ganhando forma e
número. Elyon sentiu o coração pulsar forte, cada batida como um tambor de guerra em
seu peito. Não havia espaço para hesitação.
A criatura que ele derrubara deu um último urro agônico, chamando reforços invisíveis.
Elyon agarrou as adagas com força, sentindo o aço frio como uma promessa de
sobrevivência. O ambiente tornou-se uma dança de movimento e silêncio, onde cada
passo podia ser o último.
Ele atacava com precisão cirúrgica, cada golpe visava pontos vitais. Mas os monstros
não vinham sozinhos — atacavam em grupo, usando sua velocidade para cercá-lo.
Sem perder tempo, Elyon girou, enfrentando outro adversário que vinha de sua direita,
desferindo golpes duplos com as adagas, deixando cortes profundos que faziam o
sangue escorrer.
Outros tentaram flanquear, mas ele girou, levantando uma pedra pequena para lançar
contra um deles — o atingiu no olho, fazendo-o recuar cambaleando.
Quando parecia que o combate estava sob controle, um rugido mais profundo e longo
cortou o ar.
Elyon parou.
Do meio da floresta, uma criatura maior emergiu: com pelagem negra como a noite,
olhos flamejantes e presas afiadas como lanças. Seu tamanho dobrava o de um homem, e
seus movimentos carregavam uma força brutal.
Ele avançou.
A fera investiu, e Elyon rolou para trás, sentindo o ar escapar quando as garras rasparam
o chão onde estava segundo antes.
Ele saltou para a lateral, cravando uma adaga no flanco da besta, que urrou, girando
para tentar esmagá-lo.
Elyon mal conseguiu escapar, sentindo um corte raspar sua armadura leve.
Com respiração pesada, ele buscou uma abertura. Usou a outra adaga para atacar o
pescoço da fera, cortando uma veia que fez o sangue jorrar.
Com um último movimento preciso, Elyon saltou, enterrando ambas as lâminas no peito
da criatura.
E que o Ragnarok, com toda sua fúria e destruição, ainda tinha muitos capítulos a
revelar.
Capítulo 5
O caminho de volta ao abrigo era pesado, cada passo carregado de cansaço e alertas.
Elyon mantinha as adagas firmes, o corpo ainda latejando pelas feridas, mas a mente
focada.
Ao avistar a fenda entre as pedras, seu porto seguro naquele mundo caótico, sentiu um
alívio momentâneo.
Entrou na base improvisada e se deixou cair sobre o chão frio por um instante, fechando
os olhos para controlar a respiração.
Com mãos firmes, Elyon examinou as feridas: cortes profundos, arranhões que ardiam
como fogo. Retirou as roupas rasgadas e cuidadosamente limpou o sangue e a sujeira.
Então, dirigiu-se aos corpos das feras que havia abatido. As criaturas, ainda quentes,
exalavam um cheiro forte de selvageria e morte.
Com uma precisão adquirida por anos de luta, Elyon usou uma faca pequena para
remover pedaços de pele e carne das feras, focando especialmente nas áreas mais
resistentes e flexíveis.
Com o material em mãos, ele voltou ao abrigo e começou a costurar as peles nas partes
vulneráveis de sua armadura leve. A pele espessa e resistente das feras seria uma
proteção extra, um escudo natural contragolpes e cortes futuros.
Precisava estar pronto para confrontos maiores, inimigos mais astutos e poderosos.
Quando terminou, Elyon vestiu o traje reforçado, sentindo o peso da responsabilidade e
da preparação.
Por horas, repetiu movimentos, saltos, ataques com as adagas, esquivas rápidas. Cada
exercício era uma dança precisa, uma repetição que gravava no corpo os reflexos
necessários para a batalha.
Pois ele sabia que, no Ragnarok, a sobrevivência não era apenas lutar.
Era evoluir.
Capítulo 6
Dia 1 – O Renascimento do Guerreiro
O sol ainda nascera tingindo o céu de vermelho quando Elyon já estava no campo de
treino improvisado. O corpo cansado da batalha ainda pesava, mas sua vontade não
permitia descanso.
Cada movimento era uma repetição feroz: esquivas rápidas, ataques precisos, saltos e
giros. Suas adagas cortavam o ar com um zumbido agudo, afiando não apenas as
lâminas, mas também os reflexos.
No silêncio cortado apenas pelo som das lâminas, ele sentia a tensão muscular crescer,
cada músculo queimando, pedindo pausa — mas ele continuava.
Era uma criatura menor, ágil, com olhos famintos e garras envenenadas.
O combate foi rápido, feroz. Elyon usou o terreno ao seu favor, desviando e contra-
atacando com golpes certeiros. Uma mordida raspou sua lateral, deixando uma marca
quente e dolorida.
Quando finalmente a criatura caiu, Elyon respirou fundo, sentindo o gosto amargo da
vitória misturado à adrenalina.
Dia 2 – O Encontro com a Fera das Sombras
Na segunda manhã, o treino foi interrompido por um rugido baixo que reverberou pela
floresta.
Do mato denso surgiu uma fera das sombras — um predador rápido, de pele escura e
olhos que brilhavam como brasas. Suas garras arranhavam o chão, prontas para atacar.
Elyon adotou uma postura mais defensiva, medindo o ritmo da criatura. O primeiro
ataque veio rápido e brutal, uma investida que quase o esmagou contra uma árvore.
Ele rolou para o lado, sentindo a terra raspar sua roupa, e contra-atacou com um golpe
na pata da fera, que urrava de dor.
A luta virou um jogo de gato e rato, onde ambos usavam a agilidade para encontrar
brechas. Elyon percebeu que precisava cansar o inimigo, evitando golpes diretos e
explorando fraquezas.
Após minutos extenuantes, conseguiu desarmar a fera com uma combinação de golpes e
esquivas, finalizando com um corte certeiro no pescoço.
Ao cair da criatura, Elyon caiu de joelhos, exausto, mas com o olhar firme.
No terceiro dia, Elyon focou em refinar seus movimentos, quase uma dança ritual. As
adagas eram uma extensão do seu corpo, cortando o ar em arcos precisos.
Durante o treino, uma tempestade de vento cortante invadiu a floresta, testando sua
concentração e equilíbrio.
Elyon reagiu com rapidez impressionante: girou para evitar um golpe, usando a adaga
para bloquear o ataque do segundo, contra-atacando com um golpe que desarmou um
deles.
O outro adversário não deu trégua, e o combate tornou-se uma sequência intensa de
ataques e defesas, com Elyon saltando, rolando e atacando, como uma sombra em
movimento.
Respirando pesado, sentiu cada músculo vibrar, uma mistura de dor e satisfação.
Dia 4 – O Último Teste
O combate foi um teste para toda a sua técnica e estratégia. O guerreiro atacava com
força bruta, tentando esmagar Elyon com golpes pesados.
Mas Elyon usou a agilidade e astúcia para se esquivar, encontrando aberturas entre os
golpes e contra-atacando com rapidez.
O duelo durou vários minutos de tensão extrema, até que Elyon, com um movimento
inesperado, cravou ambas as adagas nas juntas da armadura, desestabilizando o
adversário e finalizando-o.
Ao final, Elyon ficou em pé, respirando fundo, sabendo que cada luta o tornava mais
forte — e que desafios maiores estavam por vir.
Capítulo 7
O ar parecia mais pesado naquela manhã.
Elyon já havia percorrido um trecho além dos limites que havia estabelecido ao redor da
base. As árvores tornavam-se mais esparsas, o terreno mais irregular… e o silêncio mais
denso.
O chão… tremia.
Pequenas pedras vibravam a cada poucos segundos, como se algo muito grande se
movesse nas profundezas.
Era um gigante.
Em uma das mãos, o monstro carregava um tronco de árvore arrancado com raízes e
tudo… usado como um grande porrete improvisado.
A escala… a presença… o poder bruto daquela criatura… eram diferentes de tudo que já
havia enfrentado.
O coração batia acelerado, mas sua mente — como sempre — manteve a frieza.
“Se eu ficar parado… morro. Se correr em linha reta… morro. Se atacar sem pensar…
morro.”
Respirou fundo.
Avançou.
O gigante girou o tronco e esmagou o chão onde Elyon estava segundo antes. A
explosão de terra e pedra o lançou para o lado, mas ele rolou de imediato, voltando à
posição de combate.
Suas adagas… afiadas, mas parecendo insignificantes diante daquela muralha de carne.
O gigante cambaleou, girando o corpo numa tentativa de esmagá-lo com a mão livre.
Elyon deslizou para debaixo da criatura, cortando com a segunda adaga a parte interna
da perna, buscando os tendões.
Rápido.
Viu a abertura que precisava: o pescoço da criatura, logo acima da clavícula, pulsando
com aquela energia púrpura.
Com o máximo de velocidade que seu corpo permitia, Elyon correu em direção a uma
formação de pedras, usou a parede rochosa como impulso e saltou… as adagas prontas
nas mãos.
O impacto final.
Ele permaneceu ali por alguns minutos… deitado… encarando o céu partido… com um
sorriso amargo.
Levando uma mão ao peito, respirou fundo, e com as adagas de volta às bainhas…
retornou ao abrigo.
Capítulo 8
O tempo, naquele mundo, parecia fluir de maneira estranha. Dias e noites não seguiam
um ciclo normal. Às vezes, o céu permanecia vermelho por dias inteiros… outras vezes, a
noite descia com pressa, engolindo tudo em minutos.
Elyon parou de contar o tempo da forma convencional.
Todas as manhãs, antes mesmo que o vento sombrio trouxesse os gritos distantes das
batalhas ao longe, Elyon saía do abrigo.
Corria por quilômetros entre as pedras e raízes expostas, usando o terreno irregular para
fortalecer as pernas. Saltava de tronco em tronco, deslizava sob galhos baixos, escalava
formações rochosas com o peso de suas novas proteções de couro e pele de fera.
Seres rápidos, com corpos finos e membros alongados, que caçavam em grupo durante
as noites.
Criava armadilhas simples: buracos camuflados com estacas, troncos suspensos para
esmagamento, linhas de pedra para forçar o inimigo a seguir um trajeto previsível.
Quase três meses após a primeira luta contra um gigante, Elyon finalmente sentiu que
estava pronto para enfrentar outro.
Ele o caçou.
Seguiu rastros por dois dias inteiros.
Estudou os locais onde a criatura descansava.
Observou como ela se movia, como atacava as árvores para se alimentar.
Este tinha a pele coberta de musgo e pedras, como se o próprio solo tivesse crescido
sobre ele. As mãos eram largas, com dedos como toras de madeira.
Preparou garrafas improvisadas com óleo de gordura animal, para usar como armadilhas
de fogo.
A luta durou longos minutos…, mas quando o gigante tombou… o chão inteiro pareceu
suspirar.
Ao final de cada combate, Elyon retirava partes das criaturas: dentes, placas ósseas,
tendões endurecidos.
Usava tudo como material.
Sonhava com gritos… com sangue… com a visão de olhos flamejantes olhando para ele
de cima.
O Elyon que agora caminhava por aquele mundo não era mais o garoto que se despediu
de Silas na floresta.
Agora…
Ele era um caçador de gigantes.
E, no horizonte…
O próximo desafio… já se movia.
Capítulo 9
As semanas que se seguiram foram um ciclo sem fim de treino, sangue e reconstrução.
O corpo de Elyon agora exibia músculos mais densos, cicatrizes mais profundas e
reflexos refinados até a beira da exaustão.
Seus olhos… antes carregados de medo… agora tinham o brilho de alguém que havia
aceitado o próprio destino.
Todas as manhãs, antes do nascer do sol carmesim, ele corria longas distâncias pelas
encostas rochosas, com pesos improvisados presos aos tornozelos. Seus pulmões
queimavam, mas ele nunca parava.
Desenhava alvos em árvores com carvão, depois os atacava com suas adagas em
movimentos rápidos e calculados:
Estocada. Corte lateral. Giro. Finalização no pescoço.
Cada nova criatura que o atacava… morria mais rápido que a anterior.
As semanas que se seguiram foram um ciclo sem fim de treino, sangue e reconstrução.
O corpo de Elyon agora exibia músculos mais densos, cicatrizes mais profundas e
reflexos refinados até a beira da exaustão.
Seus olhos… antes carregados de medo… agora tinham o brilho de alguém que havia
aceitado o próprio destino.
Todas as manhãs, antes do nascer do sol carmesim, ele corria longas distâncias pelas
encostas rochosas, com pesos improvisados presos aos tornozelos. Seus pulmões
queimavam, mas ele nunca parava.
Desenhava alvos em árvores com carvão, depois os atacava com suas adagas em
movimentos rápidos e calculados:
Estocada. Corte lateral. Giro. Finalização no pescoço.
Cada nova criatura que o atacava… morria mais rápido que a anterior.
A voz do estranho cortou o ar, profunda, mas quase preguiçosa… como quem já sabia o
resultado da luta antes dela começar.
Elyon mal teve tempo de saltar para o lado antes que a lança rasgasse o ar onde sua
cabeça estava segundos antes.
O impacto da arma no solo explodiu o chão, abrindo uma cratera de terra e pedra.
Elyon rolou para longe, já com as duas adagas nas mãos.
“Rápido demais…”
Ele correu em zigue-zague, tentando fechar a distância para o combate corpo a corpo.
O oponente sorriu novamente e, com um giro da lança, criou uma barreira de aço e
vento ao redor de si, forçando Elyon a recuar.
Por três vezes, Elyon foi derrubado ao chão… e por três vezes… se levantou.
Quando o inimigo avançou com um golpe de cima para baixo, tentando cravar a lança
no peito de Elyon, este executou um movimento que vinha treinando por semanas:
Elyon aproveitou o momento: avançou como uma sombra, golpeando o flanco, depois
recuou antes de ser atingido por uma varredura da lança.
Os dois pararam por um segundo… os peitos arfando… o sangue caindo sobre a terra.
Elyon limpou o sangue da boca com as costas da mão e respondeu com um sorriso
cansado.
Capítulo 10
O mundo parecia ter parado por um instante.
O guerreiro girou a lança mais uma vez, agora com menos leveza…, mas ainda com
técnica assustadora. Os olhos dourados dele queimavam de frustração e empolgação.
Uma sequência de estocadas rápidas, cada uma com força suficiente para atravessar
pedra. Elyon esquivou da primeira, da segunda… a terceira roçou sua costela, abrindo
um rasgo profundo que fez o sangue jorrar.
A dor explodiu, mas ele usou o impulso da própria queda para girar o corpo no chão,
rastejando por baixo da guarda do inimigo e, com uma precisão desesperada, cravou
uma das adagas na panturrilha da perna direita do oponente.
Saltou para cima, usando o próprio corpo como projétil, e atingiu com a segunda adaga
a lateral do pescoço do adversário, um corte rápido, profundo e angular.
O guerreiro recuou cambaleando, segurando o pescoço com as duas mãos…, mas Elyon
já estava em movimento.
Num último salto desesperado, ele cravou ambas as lâminas no peito do inimigo,
atravessando carne, músculo… e o que quer que fosse aquele coração maldito que batia
ali.
Os olhos dourados, antes tão cheios de vida e arrogância… agora apenas tremeluziam
com uma última centelha de surpresa.
Silêncio.
Vivo.
Olhou para o céu… onde as nuvens negras giravam como uma ferida aberta.
Capítulo 11
O caminho de volta ao abrigo foi o mais lento que Elyon já percorreu.
Cada passo era uma luta contra a dor latejante que pulsava por todo o corpo. Os cortes
ainda sangravam, os músculos pareciam prestes a rasgar…, mas a mente dele estava
firme.
O corpo caído do inimigo ficou para trás por algumas horas, mas Elyon sabia que não
podia deixar aquele material ali… não depois do que viu.
Antes que o sol desaparecesse por completo, ele voltou, com dificuldade, até o cadáver.
Com paciência, Elyon desmontou cada peça: ombreiras, manoplas, peitoral, cinto e até
parte das proteções de perna.
Cortou tiras das roupas internas do guerreiro, enrolando-as para usar depois como faixas
improvisadas para curativos.
Colocou tudo numa lona de pele de fera e arrastou de volta até o abrigo.
A Forja Improvisada
Mesmo com o corpo exigindo repouso, Elyon trabalhou sob a fraca luz de uma fogueira.
Com uma pedra de granulação fina, lixou e ajustou cada peça da armadura para o seu
corpo.
Usou o couro de lobos abatidos semanas antes como revestimento interno, criando
camadas que suavizavam o contato com a pele e amorteciam impactos.
O peitoral… reforçou os pontos frágeis com placas ósseas de outras feras que havia
caçado.
Enquanto costurava, moldava e testava os encaixes… sentia que estava criando mais do
que uma armadura.
Quando finalmente parou, antes que o sono o vencesse de vez, Elyon tratou suas
próprias feridas.
Limpou os cortes com uma solução feita de ervas amargas que aprendera a identificar
nas semanas de exploração.
Aplicou uma camada de gordura animal sobre as áreas mais abertas, para impedir
infecções.
Nos dias seguintes, antes de permitir que o corpo entrasse em descanso total, Elyon
trabalhou no abrigo.
Arrastou pedras maiores para formar uma nova muralha semicircular ao redor da
entrada.
Fez uma cobertura de galhos reforçada com barro endurecido, para proteger contra a
chuva ácida que caía de vez em quando.
Espalhou sinos improvisados — feitos com ossos ocos e pedaços de metal — ao redor da
clareira. Assim, qualquer criatura que se aproximasse faria barulho antes de atacá-lo.
O Primeiro Descanso
Na quinta noite após a luta… quando o céu finalmente escureceu num tom profundo de
azul e violeta… Elyon se permitiu deitar-se.
Deixou as adagas ao alcance da mão, é claro…, mas permitiu aos olhos se fecharem.
Apenas o silêncio.
Pesado.
E… estranhamente… reconfortante.
Capítulo 12
As semanas se arrastavam como um ciclo interminável de combate, fome e treino.
O corpo de Elyon já não era o mesmo garoto que deixou Silas para trás.
Seus músculos estavam densos, os reflexos mais afiados, e os olhos… carregavam um
brilho sombrio… um reflexo de tudo que ele havia perdido e de tudo que já matou.
Parado.
Denso.
Quase… sufocante.
Uma voz.
Grave… ecoando como se viesse de dentro da própria terra.
— "Shaddai…"
Adagas em punho.
Olhos percorrendo cada canto escuro da floresta.
Alto.
Magro.
Envolto num manto negro… com faixas douradas retorcidas como veias mortas.
Sua pele… era cinzenta… com fissuras profundas de onde escorria uma luz tênue e
avermelhada, como magma contido.
Os olhos… duas esferas prateadas… sem pupilas…, mas carregadas de um ódio antigo.
O Sussurro da Herança
Kael’Thar caminhou alguns passos à frente… a voz carregada de desprezo e ironia.
Elyon congelou.
— …Você…
— "Sim…
Sou a carne que Eron dilacerou.
O espírito que ele enterrou no fundo daquele campo de batalha.
Mas o Ragnarok… me chamou de volta.
Renascido…
Distante da forma demoníaca que seu pai enfrentou…
Mas com a mesma fome…
E mais rancor ainda."
— Eu não sou o meu pai…, mas posso terminar o que ele começou.
Kael’Thar riu.
— "Pode… ou pode ser mais inteligente do que ele… e aceitar minha oferta."
A Aliança Tentadora
Kael’Thar prometeu força.
“Sirva-me.
Seja meu agente…
Minha lâmina no campo de guerra.”
Elyon hesitou.
Kael’Thar sorriu.
A Ascensão e a Queda
Os combates seguintes foram rápidos.
Mortais.
E quase… fáceis.
Pequenos detalhes.
A raiva… vinha mais rápido.
Ele acordava no chão… coberto de sangue… sem lembrar de ter desferido os golpes
finais.
As noites… eram povoadas por sonhos de guerra, de sacrifícios… de gritos… de… seu
próprio pai morrendo diante dele…
Vilas destruídas.
Corpos empilhados.
O mesmo padrão… a mesma fúria cega… que ele sabia que um dia seu pai enfrentou.
A Ruptura Final
Numa noite de céu vermelho… Elyon subiu até o pico da colina mais alta da região.
— "Está cansado de ser forte, Elyon? Quer recuar? Como seu pai fez?"
Fincou ambas as adagas sobre o centro da marca em seu peito… rasgando a conexão.
Os dois colidiram.
Luz e sombra explodiram no ar.
Kael’Thar usava sua forma etérea… golpeava com explosões de energia maldita…
Elyon, mesmo com o corpo gritando, desviava… contra-atacava…
Usava o terreno…
As pedras… as árvores…
A própria fúria como arma.
No momento final…
Num salto desesperado…
Elyon cravou ambas as adagas nos olhos do Deus-corrompido, canalizando toda a
vontade herdada de Eron… e a sua própria.
E… desintegrou-se.
O Pós-Batalha
Elyon caiu ao chão.
Exausto.
Sangrando.
Mas… livre.
E desta vez…
Elyon prometeu a si mesmo…
Capítulo 13
Os dias seguintes foram um borrão de febre, delírios e dor.
Elyon mal conseguia se mover.
Sempre olhando.
Durante o dia, Elyon mal conseguia respirar sem sentir as costelas queimarem.
Seus pulmões… carregados de sangue seco.
Os músculos… em constante espasmo.
Mas… mesmo assim… cada manhã… ele rastejava para fora do abrigo, apoiava-se em
uma árvore… e tentava… mesmo com o corpo quebrado… se levantar.
"Um homem…
Um Shaddai…
Matou Kael’Thar… de novo."
Muitos… duvidaram.
Outros… tremeram.
Criaturas das sombras… começaram a mudar de rota ao sentir o cheiro dele na floresta.
Até mesmo alguns pequenos demônios… que haviam tomado forma física por entre as
rupturas dimensionais do Ragnarok… decidiram não atravessar mais aquela região.
A alcunha… se espalhou.
"Shaddai."
As Sequelas
Elyon, por sua vez… mesmo ao ouvir ecos distantes de que estava se tornando uma
lenda… não se iludia.
A antiga marca de Kael’Thar… agora era um símbolo retorcido no centro de seu peito.
Como se a própria carne lembrasse do que aconteceu ali.
Havia noites em que… ao fechar os olhos… ainda ouvia a voz do Deus derrotado
sussurrando nos cantos da mente.
"Eu voltarei…"
Mas Elyon respondia em pensamento… sempre com a mesma frase:
Revisou os mapas que havia desenhado com carvão nos troncos das árvores, marcando
territórios de caçada… e rotas de fuga.
Trabalhava resistência.
Movimentação furtiva.
Ataques rápidos de múltiplas direções.
Ele sabia… que com o nome "Shaddai" ecoando novamente… inimigos maiores viriam.
Demônios.
Caçadores de deuses.
Encerramento do Capítulo
Na última cena daquela noite, ele subiu até o topo da colina onde a luta final com
Kael’Thar havia acontecido.
"Venham…"
Capítulo 14
O sol ainda não havia nascido quando Elyon abandonou sua base.
Seu corpo ainda carregava as marcas da última batalha, mas sua mente estava firme.
A floresta que o acolhera até então, por mais perigosa que fosse, agora parecia uma
prisão.
Mais ameaças.
Mais respostas.
Mais… sentido para sua existência.
A Primeira Passagem
Seguindo uma trilha pouco visível, Elyon adentrou uma região desconhecida.
As árvores tornavam-se mais altas, suas raízes entrelaçadas como serpentes petrificadas.
O ar trazia um cheiro diferente — uma mistura de ozônio, terra úmida e um leve aroma
metálico.
A quietude daquela floresta tinha uma qualidade quase sobrenatural, como se o próprio
espaço-tempo ali fosse mais denso, mais pesado.
Após horas de caminhada, Elyon chegou a uma clareira circular, onde antigas pedras
cobertas por musgo formavam uma espécie de altar.
Uma figura pequena e ágil, vestida com peles escuras e olhos brilhantes, observava-o.
— "Venha comigo. Há muito o que aprender. Mas os perigos aqui não são poucos."
Primeiros Desafios
Logo na entrada da próxima região, uma barreira invisível pareceu testar Elyon.
Kaelen avisou que ali viviam os Guardiões do Véu — seres ancestrais que protegiam os
limites entre mundos.
Das sombras, um ser enorme e grotesco emergiu — uma criatura meio pedra, meio
carne, com olhos incandescentes.
Capítulo 15
A sombra monstruosa avançava.
Seu rugido cortou a quietude da floresta, ecoando entre as árvores e levantando uma
tempestade de folhas secas.
Elyon agarrou firme suas adagas, sentindo o peso familiar do combate voltar a invadir
seu corpo.
O Primeiro Impacto
O ataque veio rápido — um golpe pesado da pata revestida de pedra, mirando o tronco
da árvore atrás de Elyon para expulsá-lo.
Ele rolou para o lado, sentindo a vibração do impacto que partiu a madeira em
estilhaços.
Era hora.
Movimento e Contra-ataque
Saltou entre as raízes, derrubou galhos secos e se escondeu atrás de uma pedra grande e
coberta de musgo.
A criatura investiu, mas Elyon usou um movimento rápido para escalar parte do corpo
da besta — fincando a adaga sob uma fissura que expelia uma fumaça escura.
A Dança Mortal
A cada golpe que desferia, a fera recuava um pouco, mas com uma fúria ainda mais
selvagem.
O Momento Decisivo
Quando a criatura abriu sua mandíbula para um ataque final, Elyon usou toda sua força
para saltar para trás, escapando por pouco da mandíbula de ferro.
Num movimento fluido, ele atacou o pescoço da criatura, cravando uma adaga em uma
veia visível entre as placas de pedra.
Com a outra adaga, desferiu um golpe certeiro entre as fissuras da cabeça, destruindo o
olho esquerdo da criatura.
Após a Luta
A vitória era amarga: o corpo do monstro exalava um cheiro forte, uma mistura de
enxofre e terra molhada.
Elyon encarou o horizonte, sabendo que aquela luta era apenas o prelúdio de algo maior.
Capítulo 16
Após a queda da primeira criatura, o silêncio na floresta tornou-se tenso, como o ar antes
de uma tempestade.
Do tronco de uma árvore gigantesca, uma segunda criatura emergiu — ainda maior,
com braços musculosos revestidos por uma couraça de pedra fosca, e um rosto
deformado, onde uma única fenda pulsava como um olho vermelho incandescente.
Seus passos sacudiam o chão, e o ar parecia vibrar com seu rugido baixo e ameaçador.
Ataque em Dupla
Elyon saltou para o lado, usando a impulsão para cravar uma adaga nas costelas
expostas da criatura.
A Solitude do Guerreiro
Ele deslizou por baixo do braço direito da criatura, cravando ambas as adagas em uma
junta macia.
A fera urrava de dor, mas girou rapidamente, lançando Elyon para longe com um soco
brutal.
O impacto o jogou contra uma rocha, derrubando-o por alguns segundos.
O Apelo da Natureza
Subiu no corpo da criatura, segurou firme e, com um movimento final, cravou uma
adaga no centro do peito dela.
Uma explosão de energia negra envolveu o corpo do Guardião, que caiu inerte.
O Preço da Vitória
Epílogo da Jornada
Nas semanas que se seguiram, Elyon e Kaelen avançaram por territórios inexplorados.
Elyon sabia que, além da força física, precisaria de sabedoria, aliados e coragem para
encarar o que vinha pela frente.
Capítulo 17
O crepitar suave da fogueira era o único som que preenchia a clareira envolta pela
escuridão da noite.
O céu estrelado parecia distante, quase como se o mundo estivesse suspenso entre
realidades.
Elyon sentava-se encostado em uma pedra fria, os músculos ainda latejando com o
esforço da luta.
O cheiro da madeira queimando misturava-se com o aroma da terra úmida e das folhas
que caiam lentamente ao chão.
Ele passou as mãos pelos cabelos sujos de poeira e suor, seus olhos observando as
sombras que dançavam ao redor.
A marca negra no peito, remanescente do encontro com Kael’Thar, ainda pulsava como
uma ferida aberta — um lembrete constante da batalha travada dentro e fora de si.
Elyon aceitou, o líquido amargo queimando a garganta, mas trazendo uma sensação
suave de alívio.
Sabia que a verdadeira batalha não era apenas contra monstros externos, mas contra o
que carregava dentro de si.
Sonhos o visitaram: cenas de campos devastados, da irmã que nunca mais viu, de uma
promessa feita sob sangue e fogo.
Ele sabia que precisava se levantar em breve, continuar sua jornada, mas por aquela
noite, aceitou o descanso.
Porque até mesmo um caçador com sangue de lenda precisava de um momento para
simplesmente… ser humano.
Capítulo 18
O sol começava a romper entre as copas das árvores quando Elyon se levantou da
clareira onde descansara.
O corpo ainda reclamava das batalhas recentes, mas a determinação que ardia em seu
peito era mais forte.
Kaelen já aguardava, as feições duras de quem conhece a floresta como a palma da mão.
— “Seguimos para o norte,” disse ele, olhando para o horizonte onde um vale se abria
entre montanhas enevoadas.
O caminho era árduo.
A Casa Antiga
Após horas de caminhada, envoltos por uma névoa espessa, eles avistaram uma
construção.
Era uma casa solitária, encostada numa encosta, parcialmente tomada por heras e
musgo.
A madeira era gasta pelo tempo e pelas intempéries, mas a estrutura resistia firme, quase
desafiadora.
— “Aqui,” disse Kaelen com um olhar grave. “Um antigo refúgio. Poucos se atrevem a
chegar até aqui.”
Exploração e Preparação
O interior era escuro, com móveis cobertos por panos grossos, e uma lareira apagada no
canto.
— “Este lugar já foi usado como base durante a última grande guerra. Dizem que abriga
segredos que podem mudar o rumo do Ragnarok.”
— “Segredos?”
— “Sim. Mas também perigos.”
Com cuidado, eles começaram a limpar a poeira e reparar pequenas partes da casa.
Embora a casa fosse um abrigo contra as feras e tempestades, havia algo inquietante no
ar.
À noite, o vento assobiava por entre as frestas, carregando murmúrios que pareciam
palavras incompreensíveis.
Mesmo assim, ele sabia que precisaria daquele lugar para se fortalecer.
E ali, naquele refúgio das cinzas, ele começaria a traçar seus próximos passos.
Capítulo 19
O Acidente
Uma tempestade rugia do lado de fora, o vento arremessava galhos contra as paredes da
casa antiga, enquanto relâmpagos rasgavam o céu.
Kaelen se levantou para acender mais velas e, ao movimentar-se próximo a uma estante
antiga, uma das prateleiras, instável pelo tempo, cedeu.
Nos olhos de Kaelen, um último lampejo de vida e uma palavra sussurrada, quase
inaudível:
— "Vingança…"
Ele expirou.
O Luto e a Determinação
Mas no fundo, algo se acendeu em seu coração — uma chama alimentada pela memória
do amigo e pelas promessas que Kaelen fizera de uma justiça maior.
Elyon se ajoelhou diante da lareira apagada e falou com voz firme, cheia de emoção:
Ele viajou por regiões inóspitas, enfrentou feras gigantes e seres que desafiavam a
lógica.
Cada cicatriz era uma lição. Cada derrota, um passo para frente.
Seu corpo tornou-se uma máquina perfeita, seu espírito forjado pelo fogo da dor e da
esperança.
O Chamado da Vingança
O lugar estava em ruínas, mas para ele, era um santuário de lembranças e determinação.
Elyon empunhou suas adagas, agora afiadas não só pelo aço, mas pelo ódio e pela
vontade implacável.
Capítulo 20
O Encontro
O céu se tingia de tons púrpura e vermelho enquanto Elyon avançava pelos campos
devastados pelo Ragnarok.
Os olhos do ser brilhavam como brasas ardentes, queimando a própria alma de quem
ousasse encará-lo.
Elyon apertou as adagas nas mãos, sentindo o frio do aço misturado com o calor da
determinação.
O Confronto Inicial
Sua voz ecoava como trovão, e a terra tremeu sob seu poder.
Elyon usou a agilidade, esquivando-se dos golpes pesados e lançando ataques precisos.
O Momento da Queda
A Fuga Dolorosa
O Refúgio e a Forja
O silêncio era quase palpável, quebrado apenas pelo som da chuva e do fogo na lareira.
Usou metais raros que encontrara em suas viagens — um aço negro com veios dourados,
reforçado com magia ancestral.
O Treinamento do Renascimento
Elyon passou meses treinando, dia após dia, até que o suor e o sangue tornassem parte
de sua rotina.
Ele desenvolveu novas técnicas para usar as adagas, focando na velocidade, na precisão
e na furtividade.
Cinco meses depois, Elyon retornou ao campo onde tudo havia quase terminado.
Com as novas adagas empunhadas firmemente, ele avançou, olhos fixos na presa.
O silêncio entre eles era uma tensão palpável, um instante onde o mundo parecia
segurar a respiração.
Ele respirou fundo, sentindo o peso de cada momento que o levou até ali.
O céu acima estava carregado, um manto escuro e opressivo que parecia sussurrar
promessas de destruição.
Elyon avançou, sentindo o peso dos anos de treino e dor em cada músculo.
O deus atacava com golpes de uma força descomunal, cada movimento capaz de reduzir
montanhas a escombros.
Mas Elyon era a antítese — veloz, ágil, uma sombra dançando entre os raios.
A luta era uma dança mortal entre força bruta e técnica refinada.
Estratégia e Resistência
Ele passou a usar o terreno a seu favor — saltando entre pedras, aproveitando a
cobertura das árvores, usando o vento e a chuva para confundir o inimigo.
Cada golpe desferido visava enfraquecer pontos específicos: juntas da armadura, fontes
de energia pulsante, olhos flamejantes.
O desgaste do deus era visível, mas ele retaliava com fúria crescente.
O Golpe Final
O mundo havia parado.
O ar, pesado como chumbo derretido, vibrava com o som grave de trovões distantes. O campo
de batalha estava coberto por destroços incandescentes, fumaça densa e o cheiro de carne
queimada misturado ao sangue de criaturas que jamais deveriam ter caminhado sobre a terra.
Elyon ofegava.
Seu peito subia e descia num ritmo irregular, cada respiração era como engolir brasas. As adagas
tremiam em suas mãos — não de medo, mas de esforço sobre-humano, de músculos em
frangalhos e tendões prestes a se romperem. O corpo coberto por feridas abertas, as roupas
rasgadas, a pele marcada por cinzas e brasões quebrados.
Num único instante, num momento que parecia suspenso entre o tempo e o eterno, Elyon viu.
A falha.
A runa central — maior que as outras, bem no meio do tórax da entidade — tremulava. Pulsava
com menos vigor. A armadura etérea que a protegia havia falhado por uma fração de segundo.
Num grito primal, que misturava todas as vozes do seu passado — a de Eron, de Shiena, de
Naelith — Elyon correu.
O chão explodia sob seus pés, fragmentos de pedra e poeira subindo como chuva invertida. O
campo parecia encolher, como se o universo inteiro observasse apenas aquele momento, aquele
movimento. Ele saltou, rodando no ar, as adagas cruzadas diante do peito, e então, com a força
de todos os anos de dor, treino e promessa...
Cravou.
As duas lâminas afundaram no centro da runa, rompendo o símbolo antigo com um som que
não pertencia a este mundo — uma nota dissonante, como um coral de mil vozes chorando em
agonia.
Não branca.
Não dourada.
Mas negra — negra como um eclipse feito de ódio e fogo, como o vácuo entre estrelas. A
explosão não teve som; ela engoliu o som. Um clarão acompanhado por uma onda de choque
que varreu o campo, arrancando árvores, fazendo as rochas se dobrarem e o próprio chão tremer
como se o mundo tivesse sido partido ao meio.
Elyon foi lançado para trás, o corpo girando no ar como um boneco ensanguentado. Caiu entre
escombros, os ossos protestando, o ar escapando dos pulmões, os olhos lutando para
permanecer abertos.
A poeira subiu.
O silêncio retornou.
Quando enfim o véu de fumaça começou a se dissipar, a forma colossal jazia imóvel sobre o
campo arruinado. Um corpo vasto como uma montanha caída, um templo vivo agora reduzido a
pedra morta. Os olhos estavam abertos, mas sem luz. A runa em seu peito havia sido desfeita —
uma cicatriz negra fumegante marcava o local onde antes pulsava o poder de eras esquecidas.
Elyon, com esforço hercúleo, se arrastou até um ponto elevado. Cravou a ponta de uma das
adagas no chão para apoiar-se de pé.
Vencera.
Ali, entre cinzas e cadáveres, com os joelhos cravados na terra que ainda fumegava, Elyon não
sorriu.
E num sussurro, quase engolido pelo vento gélido que corria entre as ruínas, ele murmurou:
— Nunca mais…
Nuvens densas, tingidas de vermelho e cinza, giravam lentamente sobre o campo enegrecido.
Não chovia.
Não havia trovões.
Mas o ar — o ar se tornara pesado, como se o próprio mundo tivesse prendido o fôlego para
testemunhar o impossível.
Como se a morte de um deus tivesse rompido algo fundamental na ordem das coisas.
Uma rachadura na realidade.
E então… o silêncio.
Não o silêncio comum, mas aquele que pesa.
Aquele que precede mudanças definitivas.
Aquele que ecoa quando algo sagrado morre.
Nos anos que se seguiram, seu nome cruzou montanhas, mares e desertos.
Essa havia sido a centelha, sim — a perda, a fúria, a ausência dos que amava.
Mas algo além disso nascera no fundo de seu peito…
Algo mais amargo, mais profundo.
E até lá…
Até que o sol surgisse sobre um mundo que não mais sangrasse…
O guardião solitário.
Aquele que não pediu por esse destino.
Mas o aceitou…
Porque sabia que alguém precisava fazê-lo.
Calado.
Letal.
E eterno.
Capítulo 21
Os anos que seguiram a queda do deus não trouxeram paz.
Ao contrário, pareciam carregar uma fúria contida do próprio mundo, como se a morte daquela
entidade tivesse deixado um vácuo, e as trevas — famintas e impacientes — corriam para
preenchê-lo.
O céu continuava encoberto, os ventos ainda uivavam por entre montanhas arrasadas e cidades
esquecidas.
Não havia mais ordem.
Reinos caíam, exércitos se dissipavam, e as antigas muralhas de pedra ruíam diante de criaturas
que jamais deveriam ter deixado os abismos primordiais.
Elyon caminhava através deste mundo — não como homem, nem como mito, mas como algo
entre os dois.
Um fardo invisível pesava sobre seus ombros a cada passo.
As cicatrizes se acumulavam, os nomes de seus mortos ainda ardiam em seus sonhos, mas seu
olhar permanecia firme.
Determinado.
Silencioso.
Numa madrugada fria, quando a névoa cobria os vales como um manto de luto, Elyon avistou os
contornos retorcidos de uma aldeia devastada.
Ashenvale.
Quando a última criatura caiu, soltando um uivo estrangulado que se perdeu na neblina, Elyon
permaneceu de pé.
O peito arfando.
Os olhos varrendo a escuridão.
Mas não havia mais inimigos.
Somente sobreviventes.
A princípio, hesitaram.
Temiam que ele fosse mais um monstro.
Mas seus gestos eram calmos.
Seus olhos, humanos.
E quando se ajoelhou para ajudar uma criança coberta de fuligem, os corações se abriram.
Caelin foi o primeiro a se apresentar — um ex-soldado marcado pela derrota, com as mãos
tremendo pelo trauma de perder sua tropa.
Depois veio Mira, jovem curandeira, com o olhar endurecido demais para sua idade e dedos
calejados por preparar remédios em meio ao pânico.
Começaram ali.
Três.
E depois, cinco.
Dez.
A lenda viva.
Ali, entre muralhas tortas e tochas que jamais se apagavam, havia algo mais forte que o medo.
Havia propósito.
Um ideal que ardia nos olhos dos camponeses e soldados, das crianças com espadas de madeira
e dos velhos curvados que ainda lembravam o mundo antes da ruína.
E assim ele partiu novamente, não mais como caçador solitário, mas como líder de expedições,
guiando homens e mulheres forjados em resistência.
O vento sussurrava seu nome.
As trilhas se abriam diante dele, e as trevas pareciam hesitar.
A cada aldeia encontrada, a cada fogueira reacendida, um fragmento do mundo era salvo.
Ferreiros surgiam com seus martelos manchados de sangue.
Arqueiros e rastreadores de olhos agudos juravam lealdade.
Magos errantes, curandeiros, andarilhos — almas dispersas que viram nele algo maior:
uma esperança que não pedia permissão para existir.
O grupo tornou-se uma força diversa, unida não pela ordem, mas por um ideal comum:
sobreviver com dignidade.
Lutar com propósito.
Reconstruir o que fora perdido.
Lorian.
As primeiras muralhas erguidas eram de pedra cinzenta, áspera, tirada das encostas próximas.
Depois vieram as casas de madeira robusta, os celeiros, os postos de guarda.
E por fim, os salões — onde se reuniam anciãos e jovens, guerreiros e curandeiras, sonhadores e
céticos.
Crianças aprenderam a história do mundo nos salões que antes serviram de abrigo.
Festivais foram criados — não para celebrar deuses mortos, mas a persistência humana.
As cinzas deram lugar às flores.
Um país.
Décadas passaram.
Seu corpo, antes uma máquina de combate, agora mostrava o peso do tempo.
Cabelos grisalhos.
Cicatrizes que não desapareciam mais.
Os olhos ainda ardiam — mas não com ódio.
Com memória.
E quando os bardos cantavam suas histórias — quando falavam da queda do deus, das batalhas
nas neves, das noites sangrentas em Ashenport —
Elyon apenas sorria, levemente, e continuava andando.
Lorian.
Um lar.
Um símbolo.
Uma prova viva de que, mesmo no fim do mundo,
mesmo quando os deuses caem e os céus choram cinzas…
E um garoto que um dia enterrou seus pais sob duas cruzes de galhos…
Capítulo 22
Os anos passaram como as estações.
Silenciosos. Implacáveis.
Como as folhas que caem sem pedir licença, como as marés que vêm e vão, levando consigo os
ecos de um tempo que não volta.
Elyon os viu sucederem-se sem trégua.
O homem que um dia desafiara o próprio céu — que cravara suas adagas no peito de um deus
caído e atravessara os campos enegrecidos do Ragnarok com os olhos acesos de vingança —
agora caminhava mais devagar.
Mas cada passo, embora mais pesado, ainda era firme.
Como raízes que resistem à tempestade.
A prata em seus cabelos era como neve nas montanhas: sinal de um inverno que chegou após
batalhas demais, mas também promessa de que a terra sob ela ainda respira.
Vida real.
Crianças corriam com risos que nunca haviam conhecido guerra.
Ferreiros moldavam aço não apenas para espadas, mas para arados e correntes de poços.
As ruas de pedra, antes tingidas de sangue, agora carregavam pegadas pequenas e poeira leve de
dias em paz.
Fora semear.
Naquela manhã de outono, a névoa ainda cobria os campos como um véu de luto gentil.
A relva estava úmida, e a brisa carregava o cheiro das folhas secas, do musgo, da madeira
queimada.
Mas havia um perfume novo no ar.
Esperança.
Um mensageiro correu pelas vielas, atravessando a Praça das Runas e subindo os degraus do
forte central:
— “É agora, senhor... Ela deu à luz!”
Chegou à pequena casa de pedra — não luxuosa, mas construída com carinho, junto aos bosques
que ele mesmo havia ajudado a preservar.
Ele se aproximou.
As mãos — calejadas, marcadas por mil guerras, por mil mortes — agora tremiam.
Ao tocar a pele macia da criança, sentiu como se o tempo, por um momento, tivesse parado de
destruir.
Sentiu o calor da vida nova — uma chama pequena, mas tão pura que quase fez seus olhos
transbordarem.
E naquele instante… não havia demônios.
Não havia luto.
Não havia adagas, nem fantasmas, nem deuses mortos.
Só havia aquilo:
o respiro de um recém-nascido.
E o coração de um pai que, por tanto tempo, não soubera se viveria para ver esse dia.
— “Já escolhemos o nome dele,” disse com a voz baixa, como o sussurro de uma prece antiga.
Elyon assentiu.
Seus olhos se voltaram para o bebê.
E ele viu…
Naquela pequena face adormecida…
o futuro.
Seu herdeiro.
Então, inclinou-se.
E como se selasse um pacto sagrado, como se falasse não apenas ao filho, mas ao mundo,
murmurou:
— “All-Mer.”
— “O Herdeiro do Mundo.”
— “Você não é apenas meu filho…
…você é o sangue do que veio antes, e a promessa do que virá depois.
Você é a prova viva de que a escuridão não venceu.
E um dia… um dia você será ainda maior do que eu fui.”
E nesse instante, quando os sinos tocaram na torre de vigília — não por alarme, mas por
celebração —
o povo de Lorian parou.
E compreenderam que o ciclo continuava.
Que a luz, mesmo depois do mais longo inverno, sempre encontra um modo de nascer.
All-Mer respirou.
Capítulo 23
O campo de treino ficava ao leste de Lorian, além do riacho estreito e da trilha dos
salgueiros, onde a relva era alta e o chão duro.
Elyon escolhera aquele lugar por um motivo simples: não havia ali vestígios de beleza
gratuita.
Somente pedra, terra, vento…
E o eco distante das antigas batalhas.
Ali, entre sombras alongadas e o brilho irregular das tochas que pendiam de postes toscos,
Elyon treinava All-Mer.
Todas as manhãs.
Antes mesmo que o sol ousasse se erguer sobre as montanhas ao norte.
— “Você está dançando, All-Mer,” disse Elyon finalmente, a voz rouca como madeira gasta.
— “Mas dançar não mata.”
Fome.
— “Vem.”
O combate começou.
Sem aviso.
Sem preparação.
Apenas aço contra vento.
All-Mer suava.
Saltava para trás.
Tentava imitar.
Mas sempre um segundo atrasado.
Sempre um passo abaixo.
Um golpe no ombro.
Outro na perna.
Depois no peito.
— “Levanta.”
Elyon não bradava.
Ele ordenava com a voz baixa.
— “Você quer matar deuses? Não consegue nem me encarar sem tremer.”
Elyon aparou.
Mas por um instante…
Viu.
Então, recuou.
Deixou o garoto acertar-lhe o braço.
Uma batida seca. Forte.
De dor real.
All-Mer parou, assustado.
— “Pai, eu…”
— “Não peça desculpas por lutar como se sua vida dependesse disso.”
Elyon sorriu pela primeira vez naquela manhã.
Um sorriso breve. Raro.
Mas verdadeiro.
O garoto ofegava.
Mas seus olhos… estavam em chamas.
Elyon aproximou-se.
Colocou as mãos nos ombros do filho.
E pela primeira vez, falou não como mestre, mas como pai:
— “Você não será como eu, All-Mer. Será melhor. Eu ensinei o aço. Mas você vai
aprender a não se tornar ele.”
— “Você vai aprender quando parar. Quando falar. Quando estender a mão em vez da
lâmina.”
All-Mer assentiu.
E por trás do suor, do cansaço, da dor…
nascia algo maior do que força.
Consciência.
Naquela noite, sob a luz do luar filtrada pelas janelas de pedra do salão, Elyon escreveu no antigo
diário:
"Ele está pronto para a dor, mas ainda não para o motivo dela."
"Mas logo… logo entenderá que lutar não é apenas resistir."
"É saber por que se levanta quando tudo já caiu."
O último legado.
Capítulo 24
O tempo correra como um rio impiedoso desde a morte de Elyon — seu pai, seu mestre, seu
legado.
All-Mer não carregava apenas as adagas herdadas, nem os ensinamentos esculpidos em suor e
sangue. Ele era agora o eco de uma era perdida, a sombra viva de uma esperança que insistia em
existir num mundo que sangrava lentamente sob o peso da ruína.
Foi no silêncio quase sagrado de uma biblioteca soterrada por eras — ocultada sob as raízes de
uma fortaleza esquecida pelo próprio tempo — que All-Mer encontrou aquilo que buscava. As
paredes de pedra estavam cobertas de musgo e encantamentos quebradiços, como se até o
próprio ar ali soubesse que guardar tais segredos era um fardo terrível.
No centro, repousava um grimório ancestral. Suas páginas estavam amareladas e frágeis como
pele de mortos, marcadas por runas que pulsavam com uma luz espectral — viva e profana.
Quando as palavras finais deixaram seus lábios, o mundo ao seu redor começou a se romper
como vidro sob pressão.
Sombras giravam, relâmpagos sussurravam em línguas esquecidas, e vozes ancestrais bradavam
dos quatro cantos da criação.
Fechou os olhos.
E acreditou.
Como punhos de luz flamejante, os próprios Deuses intervieram. Uma força invisível,
abrasadora, o arrancou da fissura temporal como se esmagasse uma abominação. Não era ódio.
Era ordem. A ordem imposta pela eternidade.
All-Mer foi lançado através do tempo como um cometa expulso do céu. Quando enfim
despertou, estava em um lugar que não reconhecia —
e ao mesmo tempo… reconhecia demais.
All-Mer caminhou entre povos antigos, disfarçado entre humanos comuns, tentando encontrar
um modo de corrigir os danos causados.
Usou seus poderes arcanos com parcimônia, curando os doentes, derrotando feras, salvando
aldeias que jamais deveriam ter existido com ele nelas.
Milagres.
Sinais.
Profecias.
Num entroncamento entre mundos, quando os véus entre as realidades estavam tênues, a
colisão se deu.
Do abismo de Helheim, onde as almas condenadas vagam sem voz, Kael’thor — um espírito de
um guerreiro esquecido, moldado por dor e ódio — emergiu.
Quando os dois se encontraram, o universo se curvou.
All-Mer foi lançado nas profundezas de Helheim, submerso em gelo e lamentos, arrastado por
correntes de trevas onde o tempo não corre, apenas repete.
Preso, esmagado pelo peso da condenação, ele gritou sem boca, sonhou sem olhos, resistiu sem
corpo.
Estava selado.
Três nomes.
Três eras.
Três destinos.
Capítulo 25
Kael’thor despertou dentro de um corpo que não lhe pertencia —
uma prisão viva moldada por carne alheia, músculos que não obedeciam instinto, ossos que
guardavam memórias que não eram suas.
E, ainda assim, sua mente era afiada como vidro negro: fria, cortante e precisa.
Por trás dos olhos de All-Mer, Kael’thor encontrava os velhos tomos enterrados sob poeira e
sacrifício.
Estudava as fundações arcanas que sustentavam o tempo, a matéria e o destino.
Cada símbolo era um prego em um caixão; cada conjuração, um passo rumo à heresia perfeita.
Feitiços interditos.
Rituais que até mesmo os anciãos haviam apagado de suas línguas.
Diagramas que exigiam sangue e dor para serem compreendidos.
Tudo isso ele absorvia, paciente como a morte, faminto como a eternidade.
E então, numa noite sem lua, quando o mundo parecia sustentar a respiração…
Kael’thor concluiu um ritual selado desde a aurora do mundo.
Não precisava mais viajar pelas linhas do tempo.
Descobrira algo mais perverso:
uma ponte espectral, invisível aos olhos dos mortais e além da percepção dos Deuses
adormecidos.
Sem forma.
Sem limite.
Sem rosto.
E, ainda assim…
Ele não cedeu.
Capítulo 26
Os anos haviam passado como vendavais sobre terras desertas —
levando consigo cidades, reinos e pedaços de alma.
Desde o dia em que Elyon selou seu destino com lâminas e promessas, sua jornada foi forjada a
fogo, suor e perda.
Mas ele não caminhara sozinho.
Cortaram selvas amaldiçoadas, escalaram montanhas sob tempestades, enfrentaram horrores que
o mundo moderno havia esquecido — ou preferido não lembrar.
Um deles, Kako — o índio de olhos ferozes e passos silenciosos como a brisa entre as folhas —
tornou-se o pilar em muitas noites onde o desespero era mais forte que o aço.
E quando finalmente ele se ergueu, encarnado em carne e poder, eles não recuaram.
Kael, a sombra sem tempo, desceu para enfrentar quem o havia desafiado.
Elyon e os seus resistiram com tudo o que restava.
Durante dias, talvez semanas — ou o que parecia uma eternidade —, a terra tremeu, o céu
sangrou, e a linha entre o real e o impossível foi riscada com sangue.
Sem promessas.
Sem juras.
Apenas um olhar partilhado entre guerreiros que sabiam que aquilo não se repetiria.
A velha taverna, com o telhado inclinado e o cheiro de vinho envelhecido, continuava de pé.
O tempo a mordera, mas não a quebrou.
Sobre a mesa, deixou o anel de prata que Silas lhe dera anos atrás —
um símbolo de que ele havia voltado.
De que tudo se cumprira.
E caminhou.
O chão da floresta rangia sob seus pés. Pequenos galhos quebravam, folhas secas se
amontoavam nas botas desgastadas. De tempos em tempos, ele se abaixava para observar
pegadas, marcas em troncos, rastros de sangue seco… qualquer sinal de perigo. O mundo
parecia mais vazio do que nunca.
Quando parou para respirar, encostado em uma pedra coberta de musgo, o mundo ao seu redor
começou a… mudar.
Primeiro, uma distorção leve no ar. Como o calor que sobe do asfalto num dia quente…, mas ali,
entre as árvores, com o frio cortando a pele, aquilo não fazia sentido.
Depois, o som.
Uma pressão nos ouvidos… como se algo estivesse vibrando muito abaixo da frequência
humana.
Ele ficou de pé imediatamente. As adagas já estavam nas mãos antes que ele percebesse.
O solo… tremeu.
Não era o tremor de um animal grande se aproximando. Era algo mais profundo. Como se a
própria terra estivesse tentando respirar… sufocada.
O céu, até então encoberto por nuvens pesadas, começou a se abrir…, mas não para deixar
passar o sol.
Uma fenda… uma ruptura no tecido do mundo… se rasgava bem ali, entre as copas das árvores.
E então… aconteceu.
No lugar dela… uma planície infinita de rochas quebradas, céu rasgado por luzes douradas e
vermelhas… E ao longe… exércitos.
Criaturas que desafiavam a razão.
Seres de lenda.
Gigantes, serpentes, deuses… e monstros que pareciam ter saído direto de um pesadelo
coletivo.
O Ragnarok.