PARA ONDE?
Don Kaletzip
Ir-me ao poço ou ao céu
Lama ou Nirvana
Depois da peste
Tudo seguirá com seus dentes
Ou como dantes
[ Sandro Dalpino ]
Os dias seguintes estiveram mais lentos; mas, antes...
Eu acordo em todas as horas. Não durmo, na verdade. Meu corpo fracassa
dentro de mim, mas ainda luto para não agonizar. Lá fora, os dias parecem ter
desistido, se isso pode ser dito, venho falando o tempo inteiro para o meu
amado. Ele continua tenso e me deixa mais ainda, e eu não sei o que fazer
para sair desse espelho sem nenhuma luz. Eu gritei de um pesadelo o nome de
*** numa noite e ele não acordou. Eu o toquei firme e ele não reagiu. Fiquei
desesperada quando não senti a respiração dele, mas aflita estava e por isso
mesmo não senti, talvez. Ele depois de um tempo abriu os olhos e me abraçou.
Eu chorei. Chorei muito. E ele me disse para ter coragem. Estava junto de mim.
Tudo escorria numa guerra invisível lá fora. Mas aqui dentro, parecia que tudo
estava em paz. A bandeira branca de nosso afeto persistia. Sim, a bandeira
branca, mesmo que amarfanhada pelo tempo, embora por isso mesmo valendo
a paz, porque houve muitas questões antes de tudo começar e tomar
proporções indescritíveis. Então, quando ele disse para que eu tivesse
coragem, mais chorei. Apertada em seu abraço, deixando as lágrimas
escorrerem em seu ombro. Eu chorei, como dona de um pranto infinito. Aliás,
pareço estar condenada. Não faço nada de diferente: ou caminho sem graça
pela casa ou choro.
Ao sair pelas ruas, uns sorrisos se encalharam nos olhares, mais
assustados do que jubilosos; mas, antes...
Quisera poder voltar a tudo de muito antes. Meu sorriso perdido por detrás da
máscara. Eu diria a *** que o amaria bem mais fortemente. E estou repetindo
isso comigo. Dizendo, até. Quisera poder sair com as amigas, fazer compras
para a casa, beber um gole de algum coquetel com os olhos vidrados em ***.
Impossível. Existirá a chance de algum futuro? Haverá de haver. Será preciso
olhar de outra forma para os olhares. Agora, está impossível. Todos os nossos
olhos estão presos no medo. Será que teremos uma outra chance de sentir
alguma felicidade perdida pelos atos nunca realizados? Neste instante, só
desejaria sair pelas ruas. Escolher o lugar de olhar para o céu de onde
quisesse. Apenas isso seria o bastante.
O mundo parecia ter se transtornado num palco de final de cena após a
fuga dos atores; mas, antes...
***, meu ***, esteja comigo nesses dias de suplício. As horas não passam e
não tenho mais coragem de ouvir os números alarmantes pela televisão. Será
o fim? Você me pediu para rezar, logo você. Quando falou isso, percebi o
quanto está preocupado. Percebi o quanto me quer na bolha, qualquer que
seja, apenas para nada acontecer comigo. *** quer sair para algumas compras,
sei lá, eu imploro para que não saia. Ele não consegue parar. Ele está ansioso
e perdido. Ele sai e volta logo com mantimentos, água, tanta coisa. E eu só
peço a ele para ficar comigo nesses dias sem fim ou de suplício sem fim.
Nesse tempo inerte. Com essa voz interior já emudecida. A gente encena isso,
como se a vida fosse um palco recôndito, sem plateia, e tantas vezes com
atores desconhecidos ou mesmo sem nenhum, por terem já se ido e ninguém
tomou conhecimento.
Ela permanecia dentro de si mesma, isolada. Por onde andaria aquela
certeza de tanta vida pela frente? Mas, antes...
Houve um tempo de descobertas. Outro de reconhecimento. Outro de se abrir
tal alguma flor. Porém, todos os instantes desses dias, mais me isolo na vida.
Penso que todo mundo está sentindo o mesmo. *** está se sentindo inútil. Eu
também estou me percebendo assim. Há incertezas por todos os lados e nós,
ilhados, estamos nos afogando. Quanto tempo ainda conseguimos ter? O que
é mesmo o tempo? ***, meu filósofo, está cada vez mais pensativo, ele se
enrosca em si mesmo como se fosse uma lagarta tocada. E eu o sigo. Até
quando? Pergunta, por sinal, filosófica. A filosofia parece apreciar apenas uma
capacidade: a de responder com outra pergunta. E nós seguimos a reboque de
todas as incertezas, por mais próximas da verdade possamos estar. Até
quando?
Naquele dia, ela atravessou as portas de incêndio, subiu os degraus.
Por que não preferiu o elevador? Por que antes o peso do mundo sobre as
próprias pernas? Mas, antes...
Mesmo perdida dentro desses cômodos, penso nas ruas, penso no trabalho.
Peso tudo com em uma balança desregulada. Tenho saudades, inimaginável
isso, daquele lugar onde passo grande parte de minha vida, colhendo todas as
possibilidades de gestos e atos. Para o bem e para o mal. Tenho uma saudade
terrível! E de algumas pessoas, apenas. Por algum motivo, pouco me dou ao
gesto de telefonar para alguém. Assim, ficamos eu e ***, ainda mais sofrido, a
nos entreter com silêncios. Ele teima em me abraçar, mas eu sinto em sua pele
o calor de um montanhoso receio. Fico a pensar se por ele mesmo, por mim,
por nós. Disse a ele um dia: “Você sente saudades de algum lugar fora daqui?
Eu sinto, jamais imaginei algo a acontecer assim”. Ele me olhou com aquele
olhar mais sublime, apenas ele sabe tê-lo ou apenas eu consigo enxergá-lo.
Sem dizer nada me abraçou, como sempre. Emudecido. Como sempre estava.
Seu pavor o emudecia. E eu tentava seguir, porque algo me dizia que isso
seria amor. E eu o abraçava também, forte, como se subisse aos céus sem
elevadores, em uma escada de estrelas, para sentir ainda a canção antiga.
No instante, admitiu-se profunda. Mas, antes...
Tirei aquela manhã para lavar as coisas. Além da alma. Fazer algo diferente.
Mexer-me. Assim, poderia me sentir útil num mundo sem perspectiva. Melhor
dizendo, não deveria jamais pensar em mundo sem perspectiva. O mundo é
agora, a vida. E eu tinha a toda hora meu ***. Ele me acolhia e sabia disso. E
me flagrei lavando tanta roupa há muito desusada, tanta louça aprisionada que
me desconheci encarando uma pessoa que tanto acumula o que de nada mais
serve. Eu já não era a mesma. Algo estava acontecendo. Quis dizer a ***,
entretanto, calei-me. Não quis dividir a sensação ou multiplicar os receios.
Tenho certeza, no entanto, de sentir um olhar de entendimento. Ele me
conhece e sabe da possibilidade naquele instante de alguma revolução interna.
Quando percebi isso, vivenciei a expectativa pelo desconhecido e penetrei em
um sonho ou delírio.
Continuava sozinha apesar da liberdade de volta às ruas. Mas, antes...
Olhei para *** no sofá. Seus olhos atravessando a parede para enxergar
somente as cenas de sua mente. Não seria alguma de serenidade. Aproximei-
me devagarinho dele. Sentei-me ao seu lado e olhei também para o infinito,
nossos olhares em paralelo ao fim do nada. Ele pegou a minha mão e apertou-
a. Quantas mãos se entrelaçavam naquele instante? Quantos pulmões
murchavam ou provocavam suspiros naquele instante? De mãos dadas, sei
que nos sentíamos sozinhos. Aquilo não era liberdade. O que porventura seria
a liberdade? Ficamos assim por muito tempo. Como se à espera de algo por
chegar, nem que fosse... Apertei também a mão de ***, e saímos daquele
transe. Nada mais.
As janelas abertas mais tornam o lugar de dentro uma prisão sem
grades. Mas antes...
Cheguei tantas vezes à janela e observei o vazio. Aquela não era a cidade dos
dias passados. Nesse olhar, surgiu a ideia de liberdade, mas como poderia
havê-la se aprisionados estamos? *** achegou-se a mim. Beijou minha nuca.
Senti um arrepio diferente. O amor misturado ao pavor. Ele conhecia todos os
meus medos. Eu sabia de todos os seus gestos buscando amainar os receios.
E ali ficamos presos um ao outro por quase uma dezena de minutos,
silenciosos, passando de um para o outro alguma força ainda. Eu estava nele e
ele em mim. E olhamo-nos por detrás das lágrimas. A vida talvez não fosse a
mesma depois de tudo. Mesmo sabendo que isso também é uma falácia. A
memória da humanidade é instantânea. Passa como um relâmpago.
Estávamos presos, muito além dos corpos, aos sintomas, aos dias, aos
contrastes, ao caos.
O mundo se transformara numa odisseia de valores desencontrados.
Mas, antes...
Nunca amei tanto *** como tenho a impressão de amar agora. A extremidade
dos sentimentos é uma incógnita. Já lera “O amor nos tempos do cólera”, do
Gabo. Eu estava me transportando para aquelas metáforas. E sem saber, eu
mesma estava envelhecendo. O amor é uma condição complexa de se tocá-la,
ao mesmo tempo que é uma palavra a penetrar no corpo e na alma sem avisar.
E esse mesmo amor se desfia, se transforma, se torna paradoxo ou dor. E
agora eu sei o quanto amo ***. Um dia, terei coragem de perguntar se essa
mesma sensação cabe no pensamento de ***. Ele dirá que sim, mas sou capaz
de saber das diferenças. Importa somente pensar na intensidade desse amor.
Apenas isso.
Ela abriu a porta da sala ainda vazia de antigos conhecidos. Mas,
antes...
Abro armários e gavetas antigas quase nunca revolvidas. Ali encontro álbuns
de fotografias. O quanto eu e *** fomos ao longo de uma vida. Apenas os dois,
longe de tudo e de todos. Exilados por uma condição de trabalho. Sozinhos,
sempre. Nunca tivemos filhos. E agora eu sinto o quanto faz falta uma pergunta
de algum deles, se estamos bem, tudo passará, logo estaremos juntos
novamente. No entanto, abraço os álbuns e de olhos fechados imagino que
dois ou três filhos desconhecidos possam estar sentindo esse abraço. Nunca
pudemos ter filhos. Fomos e somos apenas os dois. Presos um ao outro de
todas as formas. E, agora, presos por uma força diferente, obscura, terrível.
Abraço os álbuns e coloco-os novamente para um sono desde o passado,
quando havia muito mais sonhos e vida e futuro...
O dia correria certamente um tanto mais agitado, como se nada
houvesse acontecido. Mas, antes...
Há dias de sentir como quem partiu ou morreu, eterno Chico. Hoje tudo está
tendendo a um limite indescritível, mas as forças ainda resistem. Até um bom-
dia, ***, mais vigoroso deu-se a entender. *** está mais tranquilo. Algo está por
acontecer de maneira mais positiva. Tomara. Um abraço, temos a mania de
nos abraçar por tudo, por nada, um abraço nos propôs energia. Senti o amor
de ***. Dei a ele todo o amor que represei durante tanto tempo, além do
natural. Hoje está tudo como se fosse a vida normal. Tomara. Hoje pode ser
um dia para sorrir. Apesar de tudo.
Todos já sabiam, no entanto, não serem os mesmos. Mas, antes...
*** aproximou-se de mim. A mão tocou em meu rosto. Um dedo absorveu a
lágrima. Senti a sua respiração. Misturamos nosso silêncio mais uma vez.
Nossas mãos aqueceram nossas peles. Lá fora, havia algumas manifestações.
Mas esquecemos de ouvi-las. Estivemos em nós, no mais dentro de nosso
dentro. Será o fim de tanta dor? Será assim o nosso fim. E nos perdemos, cada
vez mais nos encontrando. O tempo da humanidade, o tempo do mundo deixou
de existir naquele instante. Nada mais a atravessar o mar revolto. Ninguém
mais. E a luz nos encontrou no dia seguinte.
No banheiro da repartição, Mara, ao espelho, revirou a nova ruga ou
cicatriz na face. Nem o sorriso pôde esconder o medo de prosseguir e amar a
vida. Mas antes...
Depois de amar, desesperadamente ***, como se fora o último dia, caminhei
até o banheiro. Mirei-me ao espelho e revirei a ruga, seria a antiga cicatriz
aparente. O sorriso é de medo ainda, medo de a vida estancar e não poder
amar *** novamente com muito mais corpo, afeto e delírio.