TAMARA CARDOSO ANDRÉ 
O DESENVOLVIMENTO DA ESCRITA SEGUNDO VIGOTSKI: 
POSSIBILIDADES E LIMITES DE APROPRIAÇÃO PELO LIVRO DIDÁTICO. 
Curitiba 
2007
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TAMARA CARDOSO ANDRÉ 
O DESENVOLVIMENTO DA ESCRITA SEGUNDO VIGOTSKI: 
POSSIBILIDADES E LIMITES DE APROPRIAÇÃO PELO LIVRO DIDÁTICO. 
Dissertação apresentada ao Programa de 
Pós-graduação em Educação da 
Universidade Federal do Paraná, para 
obtenção do título de mestre em Educação. 
Orientador: Prof. Dr. Gilberto de Castro 
Curitiba 
2007
3 
Dedico este trabalho à memória de meu pai, 
Alfredo Bastos André, pessoa que me ensinou 
a cultivar as funções psíquicas superiores.
4 
Agradeço à minha mãe, Alvani, pelo apoio 
incondicional a todos os meus projetos de 
vida; 
aos meus irmãos, Vânila e Alfredo, e 
cunhados, Alexandre e Jaqueline que, apesar 
da distância, participam sempre da minha vida; 
aos meus sobrinhos, Kadija, Gabriela e Theo, 
pela alegria que proporcionam e por nossos 
momentos de jogo; 
ao meu companheiro, Alexandre, pela ajuda, 
desde quando ingressar no mestrado era um 
sonho, até a finalização deste trabalho. Por ter 
me ensinado a dar forma científica a todos os 
meus anseios; 
à Susana, pelos livros e debates; 
à Liseane, pelo incentivo e pelas trocas de 
idéias; 
à Bartira, pela amizade e pela ajuda no inglês; 
ao Prof. Gilberto de Castro, por, sabiamente, 
orientar minhas idéias sem inibi-las; 
aos colegas da Unioeste, Alessandra, Catta, 
Cecília, Cristiane, Crizieli, Conceição, Denise, 
Fabiano, Fernando, Janaína, Samuel, 
Sebastião, Silvana e Vânia, pela recepção e 
acolhimento na instituição; 
ao CEAEC, pelo excelente ambiente de 
estudos proporcionado; 
especialmente aos ex-colegas de trabalho e ex-alunos 
da Escola Estadual de Ensino 
Fundamental Martins Costa Júnior, por terem 
participado do meu ingresso na educação 
brasileira, momento tão importante para a 
construção do sentido deste trabalho.
5 
La conciencia se refleja en la palabra lo mismo 
que el sol en una pequeña gota de agua. La 
palabra es a la conciencia lo que el 
microcosmos al macrocosmos, lo que la célula 
al organismo, lo que el átomo al universo. Es 
el microcosmos de la conciencia. La palabra 
significativa es el microcosmos de la 
conciencia humana. (VIGOTSKI, 1993: 346- 
347)
6 
SUMÁRIO 
RESUMO ............................................................................................................... 8 
ABSTRACT ........................................................................................................... 9 
INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 10 
1. A PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL E O MÉTODO DE 
ESTUDO DAS FUNÇÕES PSÍQUICAS SUPERIORES: PRIMEIRAS 
CONSIDERAÇÕES SOBRE A ESCRITA ......................................................... 
15 
1.1. A constituição da psicologia histórico-cultural ................................................ 15 
1.2. Experiência, trabalho e atividade ..................................................................... 17 
1.3. Funções psíquicas superiores: um processo cultural e social ........................... 20 
1.4. Os pressupostos do método da psicologia histórico-cultural para estudar as 
funções psíquicas superiores ................................................................................... 
28 
1.5. A escrita como função psíquica superior ......................................................... 31 
2. O DESENVOLVIMENTO DA ESCRITA PELA CRIANÇA ...................... 37 
2.1. O desenvolvimento da escrita pela criança ...................................................... 41 
2.1.1. Os rabiscos mecânicos .......................................................................... 49 
2.1.2. O jogo ................................................................................................... 50 
2.1.3. O desenho ............................................................................................. 56 
2.2. A passagem para a etapa superior da escrita .................................................... 59 
2.3. Primeiras conclusões sobre o desenvolvimento da escrita e suas relações 
com o processo de ensino e aprendizagem ............................................................. 
65 
3. RELAÇÕES ENTRE ORALIDADE, PENSAMENTO E ESCRITA .......... 71 
3.1. A linguagem e seu desenvolvimento para a psicologia histórico-cultural 71 
3.2. Relações entre fala e escrita nos três momentos do desenvolvimento da 
escrita ....................................................................................................................... 
84 
3.2.1 Escrita como representação simbólica na pré-história da ontogênese ... 85 
3.2.2. Escrita como simbolismo de segunda ordem ........................................ 88 
3.2.3. Apropriação da escrita como atividade cultural complexa ................... 93 
3.3. Conclusões sobre as relações entre pensamento, fala e escrita ........................ 98 
4. ESCOLHA DO LIVRO DIDÁTICO E CRITÉRIOS DE ANÁLISE .......... 102 
4.1. Metodologia empregada para escolha do livro didático ................................... 103 
4.2. Descrição do livro didático selecionado ........................................................... 104
7 
4.3. As categorias de análise ................................................................................... 104 
4.4. Metodologia empregada para análise do livro didático ................................... 107 
5. A APROPRIAÇÃO PELO LIVRO DIDÁTICO DA CONCEPÇÃO DE 
VIGOTSKI ACERCA DO DESENVOLVIMENTO DA ESCRITA ................ 
110 
5.1. Os conceitos de ‘mediação’ e ‘escrita’ no texto de assessoria pedagógica do 
livro didático ............................................................................................................ 
110 
5.2. A representação simbólica na pré-história da ontogênese ................................ 115 
5.2.1. O gesto .................................................................................................. 117 
5.2.2. O jogo .................................................................................................... 118 
5.2.3. O desenho .............................................................................................. 122 
5.3. A escrita como simbolismo de segunda ordem ................................................ 126 
5.4. Apropriação da escrita como atividade cultural complexa .............................. 135 
5.4.1. Relações entre fala e escrita .................................................................. 135 
5.4.2. A escrita como necessidade .................................................................. 142 
5.5. Conclusões a partir da análise do livro didático ............................................... 149 
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ 151 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................ 155 
REFERÊNCIAS INFOGRÁFICAS .................................................................... 158
8 
RESUMO 
A presente dissertação tem como objeto a apropriação da teoria de Vigotski acerca do 
desenvolvimento da escrita pelo livro didático de alfabetização. O objetivo maior foi 
investigar se a teoria de Vigotski tem implicações para o ensino e aprendizagem da 
escrita e se estas podem se concretizar no livro didático de alfabetização. Ou seja, não 
se tratou apenas de verificar se o livro didático analisado tem uma proposta pedagógica 
coerente com a teoria de Vigotski. Foram inferidos desta teoria três momentos do 
desenvolvimento da escrita: pré-história do desenvolvimento da escrita pela criança, 
escrita como representação dos sons da fala e escrita como linguagem. Estes três 
momentos coexistem durante o desenvolvimento da escrita, que não ocorre por etapas 
sucessivas e lineares. Para a criança desenvolver a escrita como linguagem, é preciso 
que compreenda a representação simbólica e as relações arbitrárias entre fonemas-grafemas. 
Mas o mais importante, na perspectiva da psicologia histórico-cultural, é que 
a criança aprenda a usar a escrita como meio de interlocução e expressão. Os fatores que 
levam a criança a desenvolver a escrita são as atividades envolvendo representação 
simbólica, que são o gesto, o desenho e o jogo, a interação social, a leitura e o uso da 
escrita em situações reais, nas quais esta se torna uma necessidade. Os fatores do 
desenvolvimento da escrita constituíram os critérios de investigação do livro didático. 
Assim, foi feita uma análise do livro didático, tanto no texto que este traz de orientação 
aos professores, quanto nos exercícios propostos, verificando como os fatores do 
desenvolvimento da escrita são apropriados e concretizados em atividades de 
alfabetização. Concluiu-se que o livro didático tem possibilidades limitadas para 
trabalhar na perspectiva da psicologia histórico-cultural porque não pode dialogar com 
professor e aluno e, consequentemente, não pode ser o interlocutor do aluno que 
expressa seus pensamentos através da escrita. 
PALAVRAS-CHAVE: escrita, desenvolvimento, relações entre oralidade e escrita, 
livro didático.
9 
ABSTRACT 
The present dissertation has as object of study, the appropriation of Vigotsky’s theory 
on the writing development by the educational book of literacy. The major aim of this 
research was to investigate if the Vigotsky’s theory has implications in the teaching and 
learning of writing and if they can be concretized in the educational book of literacy. It 
means that the study was not only the verification if the educational book analyzed has a 
pedagogical proposal coherent with Vigotsky’s theory. It was concluded from this 
theory three different moments of the writing development: pre-history of the writing 
development by child, the writing as a representation of sounds of speaking and the 
writing as language. These three different moments coexist during the writing 
development, which does not occur by successive and linear stages. For the child to 
develop the writing as language, it is necessary the comprehension of the symbolic 
representation and the arbitrary relations between phonemes and graphemes. But, the 
most important thing, from the perspective of historical-cultural psychology, is that 
child should learn to use the writing to make the representation of his thoughts and 
ideas. What makes the child to develop the writing are activities involving symbolic 
representation which are the gesture, the drawing and the game, the social interaction, 
the silent reading and the use of the writing in real situations in which it is necessary. 
The writing development factors constituted the investigation criteria of the educational 
book. It was accomplished an analysis on the educational book, including the teacher’s 
book and the exercises proposed, verifying how the writing development factors are 
appropriated and concretized in literacy activities. Finally, it was concluded that the 
educational book has limited possibilities to work in the perspective of historical-cultural 
psychology, because it can not dialog with teacher and student and 
consequently, it can not be the interlocutor of the student which express his thoughts 
through the writing. 
KEY-WORDS: writing, development, speaking and writing relation, educational book.
10 
INTRODUÇÃO 
Por quase três anos fui professora de segunda série do ensino fundamental na 
rede pública de Porto Alegre. Neste período, chamava-me atenção a grande quantidade 
de alunos que não conseguia ler e nem se expressar através da escrita. Dentre estes, 
havia alguns que se recusavam a escrever. Quando eu propunha alguma produção de 
texto, perguntavam se não podiam escrever uma frase. Escreviam frases curtas, sem 
sentido, reproduziam sempre as palavras cuja escrita já dominavam ou faziam total 
transcrição fonética. Não gostavam, e nem tentavam ler. Em propostas de leitura 
silenciosa, folheavam o livro e olhavam as gravuras com o olhar perdido, até que se 
cansavam e começavam a conversar, caminhar pela sala ou fazer outras coisas. Nas 
atividades para as quais havia necessidade de leitura, chamavam-me para explicar o que 
fazer. Em trabalhos em grupo, não se ocupavam das atividades de leitura e escrita. Às 
vezes, na ânsia de saber se estava havendo algum progresso, eu me aproximava, de um 
aluno por vez, e pedia que lesse para mim em voz alta. Nestas ocasiões, ou o aluno 
admitia não saber ler, ou soletrava as sílabas das palavras escritas, até se imobilizar 
diante de um encontro consonantal. Mas todos reconheciam as letras do alfabeto, tendo 
até memorizado sua ordem. E muitos adoravam copiar textos do quadro negro. Minha 
hipótese era de que estes alunos preferiam tarefas mecânicas porque estas os deixavam 
com a cabeça livre para pensar em outras coisas. 
Eu tinha vontade de levá-los ao gosto pela leitura e à expressão criativa através 
da escrita. Por este motivo tentava, com grande dificuldade, organizar minhas aulas de 
modo a atingir estes objetivos. Muitas vezes minha criatividade e paciência se 
esgotavam, e eu recorria a atividades que achava tradicionais, como exercícios de seguir 
o modelo, cópias e ditados. 
Pesquisei idéias e atividades em vários livros didáticos, mas não encontrava 
neles as respostas para meus anseios. Naquela época, primeira metade da década de 
2000, os livros didáticos traziam o construtivismo como referencial teórico, e pareciam 
tentar organizar suas atividades com base nas teorias de Emília Ferreiro. Eu me 
identificava muito com o construtivismo, mas achava que os livros didáticos reificavam 
a teoria de Ferreiro. Por este motivo, eu só usava os livros didáticos para recortar o 
alfabeto móvel que eles traziam e aproveitar alguns jogos e textos. 
Para lidar com os problemas encontrados em sala de aula, comecei a estudar 
sobre alfabetização e promover algumas modificações em minha prática. Aos poucos,
11 
minha visão empírica e intuitiva da realidade foi sendo substituída por uma 
compreensão mais científica dos problemas ligados à alfabetização. Além de Emília 
Ferreiro, tive bastante influência das autoras construtivistas Ana Teberosky e Liliana 
Tolchinsky; de Josette Jolibert, autora francesa; e dos brasileiros Regina Zilbermann, 
Sônia Kramer, Luiz Carlos Cagliari e Miriam Lemle. Nesta época, li A formação social 
da mente, de Vigotski. Não entendi o livro muito bem, pois Vigotski era um autor sobre 
o qual sabia pouco. Reconheci algumas contribuições do livro para a alfabetização, mas 
achei que eram muito poucas. A idéia de Vigotski, para mim, mais interessante, foi 
sobre a importância do brinquedo e do desenho para a alfabetização. 
Qual não foi minha surpresa quando, ao mudar-me para Foz do Iguaçu e assumir 
como professora temporária na Unioeste, deparei com Vigotski como principal 
referencial teórico adotado pelo Currículo Básico do Paraná e, conseqüentemente, por 
Projetos Políticos Pedagógicos das escolas municipais onde eu orientava os estágios das 
minhas alunas. Por que Vigotski como referencial teórico? Este autor me parecia não ter 
tantas contribuições para a alfabetização. A teoria de Vigotski foi associada por 
Gasparin (2003) a uma Pedagogia Histórico-Crítica. Por não encontrar, na época, 
nenhum autor que houvesse interpretado as contribuições de Vigotski para a 
alfabetização, resolvi tentar fazer esta relação. Por isso ingressei no mestrado com o 
projeto intitulado Contribuições de Vigotski para uma didática histórico-crítica da 
alfabetização. Entretanto, logo percebi que pensar em uma didática para a alfabetização 
com base em um autor cuja especificidade teórica não foi a alfabetização, era um 
objetivo pretensioso demais. 
Resolvi mudar meu projeto inicial, mas sem abrir mão de estudar as implicações 
da teoria de Vigotski para a alfabetização. Acabei optando por estudar o modo como o 
livro didático de alfabetização se apropria da teoria de Vigotski sobre o 
desenvolvimento da escrita, resgatando, assim, um antigo incômodo com relação a este 
instrumento pedagógico. 
Para realizar esta investigação, foi escolhido um livro didático distribuído às 
escolas públicas pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). A análise de 
apenas um livro se justifica, porque o presente trabalho não visa avaliar a apropriação 
da psicologia histórico-cultural pelos livros didáticos no Brasil, e sim as possibilidades 
do livro didático transmitir esta teoria de desenvolvimento da escrita. 
Cabe esclarecer que o livro analisado autodenomina sua concepção pedagógica 
de ‘sociointeracionista’, e não de histórico-cultural; sua concepção não é
12 
exclusivamente pautada na teoria de Vigotski. Consta também como referencial teórico 
adotado pelo livro, a teoria construtivista de Piaget e Emília Ferreiro. Além disso, 
outros autores constituem fonte bibliográfica do livro: Magda Soares, autora que discute 
o letramento; Fernando Hernández, propositor da pedagogia por projetos de trabalho; 
Luiz Carlos Cagliari e Miriam Lemle, autores que abordam a alfabetização à luz da 
lingüística e sociolingüística. Os Referenciais Curriculares Nacionais para a Educação 
Infantil e os Parâmetros Curriculares Nacionais também constam como referencial do 
livro. Conforme será visto no capítulo que trata do método usado para escolher e 
analisar o livro didático, não foi encontrado nenhum que trouxesse uma concepção 
exclusivamente pautada na psicologia histórico-cultural. Este fato não constituiu 
impeditivo para a análise, pois foram observadas no livro, tanto nos exercícios, quanto 
no texto aos professores, as categorias de Vigotski sobre o desenvolvimento da escrita. 
Esta análise tem como objetivo entender as possibilidades e os limites da 
transmissão da psicologia histórico-cultural para os professores pelo livro didático. 
Para isso, foi preciso investigar quais são as contribuições da psicologia histórico-cultural 
para a alfabetização e como o livro didático cita e transforma em exercícios as 
categorias desta teoria. Enfatizo que não foi objetivo investigar se o livro analisado 
apropriou-se ou não da teoria de Vigotski acerca do desenvolvimento da escrita. Esta 
análise foi necessária, mas com o objetivo de entender se pode um livro didático realizar 
uma proposta de alfabetização a partir da teoria de Vigotski sobre o desenvolvimento da 
escrita. A análise do livro didático a ser feita pretende ser crítica, e não neutra, pois está 
comprometida em avaliar o rigor com o qual uma teoria é apropriada por este 
instrumento. A importância de investigar o livro didático e seu potencial para transmitir 
ou não uma teoria reside no lugar que este ocupa no cotidiano das escolas. Com a 
distribuição gratuita do livro pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) para as 
escolas públicas de todo o país, o livro didático tornou-se um dos instrumentos de 
alfabetização usado nas escolas. Segundo Batista e Val (2004), desde o PNLD o livro 
didático está presente no cotidiano das salas de aula e é um elemento básico da 
organização do trabalho do professor. 
No entanto, antes de proceder à análise do livro didático, será feita uma 
interpretação do modo como Vigotski e seus colaboradores compreendem o 
desenvolvimento da escrita pela criança. Os referidos colaboradores são Luria e 
Leontiev. Estes autores participaram de um grupo de estudos liderado por Vigotski, o 
qual mencionarei mais adiante. Por ora, importa lembrar que Luria e Leontiev tiveram
13 
uma vasta produção intelectual. No entanto, apesar de terem uma produção teórica 
autônoma, nos estudos acerca do desenvolvimento da escrita aqui mencionados, Luria e 
Leontiev trabalharam como colaboradores de Vigotski. As obras de Luria aqui citadas, 
em sua grande maioria retiradas do Curso de Psicologia Geral, foram consideradas 
continuidade da teoria de Vigotski. 
Há dois aspectos importantes a observar. Em primeiro lugar, é preciso frisar que 
a teoria de Vigotski constitui uma proposta de psicologia fundamentada no materialismo 
histórico e dialético. Através do método dialético Vigotski investigou diversas funções 
psicológicas, dentre as quais se inclui a escrita, que não é, portanto, uma categoria 
central na obra do autor. Por este motivo, faz-se necessário, antes, abordar as categorias 
principais da obra de Vigotski para se chegar, depois, ao tema central - a escrita. 
Em segundo lugar, é preciso compreender que Vigotski não concebe o 
desenvolvimento da escrita como um processo formado por etapas sucessivas e 
hierárquicas, mas sim um processo complexo, repleto de saltos, rupturas e retrocessos. 
Proponho aqui a categorização da teoria de Vigotski sobre o desenvolvimento da 
escrita em três diferentes momentos, que serão tematizados a partir do segundo capítulo 
da dissertação. Esta proposta não tem o intuito de hierarquizar o desenvolvimento da 
escrita, mas sim de retirar categorias de análise que ajudem a compreendê-lo. Os três 
momentos do desenvolvimento da escrita, aqui propostos, foram inferidos da teoria de 
Vigotski, a partir de seus pressupostos. Sendo assim, esta dissertação visa a realizar uma 
proposta de releitura das proposições sobre escrita de Vigotski e colaboradores. 
No primeiro capítulo, trato de duas questões: o método materialista dialético e o 
conceito de escrita. Ao explicar como Vigotski utilizou o método materialista dialético 
para estudar a escrita, mostro como esta é concebida pelo autor como uma função 
psíquica superior. 
No segundo capítulo, abordo o modo com que Vigotski concebe a aprendizagem 
e o desenvolvimento da escrita. 
No terceiro capítulo, verso sobre os três momentos de desenvolvimento da 
escrita inferidos da teoria de Vigotski: pré-história da ontogênese da escrita; escrita 
como simbolismo de segunda ordem; escrita como função cultural complexa. Na análise 
de cada um destes momentos, enfoco as relações entre oralidade, pensamento e escrita. 
A partir deste capítulo, começo a delinear possíveis implicações da psicologia histórico-cultural 
para a alfabetização.
14 
No quarto capítulo, mostro o modo como foi feita a escolha do livro didático, o 
método usado para sua análise e as características do livro escolhido. As categorias de 
análise do livro didático foram retiradas dos três momentos do desenvolvimento da 
escrita inferidos da teoria de Vigotski. 
No quinto capítulo, realizo a análise do livro didático. Para cada momento do 
desenvolvimento da escrita, foram escolhidas de duas a três categorias, analisadas tanto 
nos exercícios do livro didático, quanto no texto aos professores. Durante a análise, não 
só investigo a forma de o livro didático se apropriar da psicologia histórico-cultural, 
mas também reflito sobre as possibilidades desta apropriação, propondo algumas 
contribuições práticas para a alfabetização.
15 
1. A PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL E O MÉTODO DE ESTUDO DAS 
FUNÇÕES PSÍQUICAS SUPERIORES: PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES 
SOBRE A ESCRITA 
O tema desta dissertação é o desenvolvimento da escrita segundo a psicologia 
histórico-cultural e as possibilidades e limites de sua interpretação e apropriação pelo 
livro didático de alfabetização. 
A escrita é uma dentre as muitas funções psicológicas estudadas por Vigotski e 
seus colaboradores, ao passo que o método materialista dialético é aspecto central da 
psicologia histórico-cultural, visto que constitui uma concepção que perpassa todas as 
categorias de análise desta teoria. Disto deriva a impossibilidade de entender o 
desenvolvimento da escrita para a psicologia histórico-cultural sem contextualizá-la 
entre outros conceitos relacionados com a escrita e sem entender os pressupostos do 
método utilizado por Vigotski, Luria e Leontiev para investigar o desenvolvimento da 
escrita. Assim, são dois os objetivos do presente capítulo: explicitar o conceito de 
escrita de Vigotski e o método usado pelo autor e seus colaboradores para investigá-la. 
No primeiro tópico será apresentado um breve histórico da constituição da 
psicologia histórico-cultural, bem como suas primeiras conclusões acerca do estudo das 
funções psíquicas superiores, a categoria cerne desta linha de estudos. No segundo 
tópico serão desenvolvidas três importantes categorias de Vigotski de suma importância 
para compreender as funções psíquicas superiores: o trabalho, a experiência e a 
atividade. No terceiro tópico, serão objetos de análise as funções psíquicas superiores e 
o modo como estas se constituem, na história da humanidade e na história do indivíduo. 
O quarto tópico trata dos principais pressupostos do método materialista dialético da 
psicologia histórico-cultural para o estudo das funções psíquicas superiores. Por fim, o 
quinto tópico delineia o conceito de escrita e sua relação com as funções psíquicas 
superiores. 
1.1. A constituição da psicologia histórico-cultural 
Foi aproximadamente a partir do ano de 1926 que Vigotski apareceu no cenário 
da psicologia russa para propor uma psicologia materialista dialética. Segundo Teixeira 
(2005), a proposta de Vigotski veio acompanhada de sua crítica à psicologia russa do 
início do século XX. Vigotski (apud TEIXEIRA, 2005) considerava que a ciência não 
poderia proporcionar um modelo satisfatório do psiquismo humano sem estudar as
16 
funções psíquicas superiores. Para ele, tanto a ciência natural quanto a fenomenologia 
tinham em comum o fato de não estudarem as funções superiores. Vigotski denominou 
sua análise de ‘crise na psicologia’. 
Analisando este primeiro momento de proposição da psicologia histórico-cultural, 
Teixeira (2005) explica que Vigotski não foi o único psicólogo russo da década 
de 1920 a propor uma psicologia materialista dialética. Quando Vigotski fez sua análise, 
as duas correntes então existentes – o materialismo e o idealismo – se subdividiam em 
várias escolas. Inicialmente, a psicologia materialista se dividia em materialismo 
mecanicista, do behaviorismo, e materialismo dialético, da psicologia histórico-cultural. 
O I Congresso Pan-russo de Psiconeurologia de Leningrado, em 1923, foi palco da 
disputa existente entre idealistas e materialistas. Os psicólogos identificados com a 
revolução soviética rejeitavam o idealismo de Chelpanov, dirigente do Instituto de 
Psicologia de Moscou e defensor de uma psicologia introspectiva, assim como o 
mecanicismo de Bekhterev, colaborador de Pavlov e criador da reflexologia. Por se 
sobressair na apresentação de uma proposta materialista dialética para a psicologia, 
Kornilov foi convidado a substituir Chelpanov na direção do Instituto de Psicologia de 
Moscou, levando como colaboradores Luria e Leontiev. 
No congresso de 1924, Vigotski apresentou o trabalho “Os métodos de 
investigação reflexológicos e psicológicos”, e foi convidado a integrar a equipe de 
Kornilov. Como o grupo formado concordou que Vigotski era o único integrante com 
formação marxista sólida, elegeram-no para liderar a análise crítica da psicologia do 
século XX. 
O que estava em jogo, portanto, era a superação da profunda crise 
na qual essa ciência mergulhara havia anos. E para isso era preciso 
superar, por um lado, a psicologia introspectiva baseada no 
idealismo filosófico e, por outro, as correntes materialistas 
mecanicistas. Ambas as tendências, segundo Vigotski, eram 
incapazes de estudar e descrever adequadamente a manifestação 
superior do psiquismo, que é a consciência. (TEIXEIRA, 2005: 25) 
Vigotski fez uma crítica contundente às duas correntes da psicologia materialista 
de sua época. Enquanto os darwinianos explicavam o problema do comportamento 
animal a partir da origem da experiência hereditária, os pavlovianos explicavam pelo 
mecanismo de multiplicação da experiência hereditária pela experiência pessoal que 
forma o reflexo condicionado. Afirma Vigotski (1991) que, ao se ater apenas aos
17 
comportamentos mais elementares do homem, estas psicologias nem se constituíam 
como críticas ao espiritualismo da psicologia idealista e nem respondiam sobre a 
diferença entre o homem e o animal. 
Foi sob a influência da teoria de Marx que Vigotski buscou as origens do 
comportamento consciente nas relações do indivíduo com o mundo exterior. De acordo 
com Luria (2003a), este modo de compreender os processos psicológicos era 
denominado por Vigotski de psicologia “cultural”, “histórica” ou “instrumental”. Cada 
uma destas três denominações mostra uma faceta da relação que distingue o homem do 
animal. Instrumental refere-se às atividades mediadoras de todas as funções 
psicológicas complexas, ou seja, aos estímulos auxiliares incorporados e produzidos 
pela pessoa. O aspecto cultural refere-se aos meios que a sociedade estrutura para 
organizar suas atividades de trabalho e ensino e os instrumentos físicos e mentais que 
utiliza. Um instrumento básico desenvolvido pela humanidade é a linguagem, enfatizada 
por Vigotski como tendo importante papel na organização e desenvolvimento dos 
processos de pensamento. O elemento histórico funde-se com o cultural. Os 
instrumentos que o homem usa para dominar o meio foram historicamente criados e 
aperfeiçoados. As funções psíquicas superiores se desenvolveram na história da 
humanidade graças à criação de instrumentos para mediar a relação do homem com a 
natureza. 
1.2. Experiência, trabalho e atividade 
Ao explicar a consciência a partir das relações entre indivíduo e sociedade, 
Vigotski (1991) considera que o grande erro das psicologias idealistas e materialistas da 
sua época foi desconsiderar que a experiência humana é histórica e social. A este 
respeito, o autor frisa que existem três tipos de experiências humanas: a experiência 
social, a experiência histórica e a experiência duplicada. 
A experiência social decorre do fato de as formas humanas de desenvolvimento, 
trabalho e aprendizagem serem sempre coletivas. As funções psicológicas se constituem 
na interação social porque o homem é um ser que vive coletivamente. 
A experiência histórica faz parte do componente social do comportamento 
humano, pois permite que cada homem tenha acesso a informações e conhecimentos 
obtidos pela humanidade como um todo. Os animais, ao contrário dos homens, não têm 
experiência histórica.
18 
(...) Hace falta, ante todo, señalar lo extraordinariamente amplio de 
la experiencia heredada por el hombre si la comparamos con la 
experiencia animal. El hombre no se sirve únicamente de la 
experiencia heredada físicamente. Toda nuestra vida, el trabajo, el 
comportamiento, se basan en la amplísima utilización de la 
experiencia de las generaciones anteriores, es decir, de una 
experiencia que no se transmite de padres a hijos a través del 
nacimiento. La llamaremos convencionalmente experiencia 
histórica. (VIGOTSKI, 1991: 45) 
A experiência duplicada é a capacidade que o homem tem de planejar a própria 
ação. O homem executa suas ações usando as mãos e os instrumentos de trabalho, 
porém as executa antes na mente. É graças à experiência duplicada que as formas de 
adaptação do homem são ativas. Adaptação ativa significa capacidade de transformar o 
ambiente e a si mesmo através da ação. O homem, diferentemente do animal, modifica 
o meio para sobreviver. Os animais se adaptam ao meio, ao passo que os homens 
adaptam o meio a si. Ainda que alguns animais possam produzir modificações em seu 
meio, como é o caso da abelha que faz uma colméia, eles o fazem de modo instintivo e 
uniforme. A ação dos animais é mecânica porque prescinde de planejamento prévio. 
É através do trabalho que o homem modifica a si e ao meio. Influenciado pela 
teoria de Marx, Vigotski concluiu que as origens do comportamento consciente 
deveriam ser achadas nas relações que o indivíduo mantém com o mundo exterior 
através do trabalho. Vigotski (1991) considera que as experiências histórica, social e 
duplicada do homem são permeadas pelo trabalho. O trabalho, que é sempre um 
processo coletivo, criou no homem a necessidade de planejar a própria ação. Mas, para 
planejar a ação, o homem precisou criar um código de signos estáveis, que é a 
linguagem. Na história da humanidade, a linguagem foi criada em função das 
necessidades surgidas nos processos de trabalho coletivo. Ao sentirem necessidade de 
dizer algo durante suas atividades, os homens primitivos começaram, gradativamente, a 
criar uma linguagem estável. O advento da linguagem permitiu aos homens a 
capacidade de planejar a própria ação, dividindo o trabalho em dois momentos distintos 
e inter-relacionados: planejamento e execução. Nesta perspectiva, considera-se que a 
capacidade de planejar advém da linguagem, surgida através das relações sociais no 
processo de trabalho. Portanto, na concepção da psicologia histórico-cultural, o trabalho 
é a função primeira da atividade humana, sendo a linguagem sua decorrência.
19 
Leontiev (s/d) explica a premissa que confere ao trabalho importância 
fundamental na formação da consciência do homem. Segundo este autor, foi o trabalho 
que possibilitou o desenvolvimento do cérebro, dos órgãos da atividade externa e dos 
órgãos dos sentidos. O cérebro e os órgãos humanos se hominizaram a partir do 
trabalho. “O órgão principal da atividade do trabalho do homem, a sua mão, só pode 
atingir a sua perfeição graças ao próprio trabalho”.(LEONTIEV, s/d: 76) 
Só graças a ele, graças a adaptação a operações sempre novas... é 
que a mão do homem atingiu este alto grau de perfeição que pode 
fazer surgir o milagre dos quadros de Rafael, as estátuas de 
Thorwaldsen, a música de Paganini. (ENGELS apud LEONTIEV, 
s/d: 76) 
Leontiev define trabalho como sendo o processo de ação do homem sobre a 
natureza. O trabalho é feito quando o homem coloca as forças de seu corpo em 
movimento para assimilar a matéria dando-lhe uma forma útil para sua vida. O homem 
modifica o meio e a si mesmo no processo de trabalho através do uso de instrumentos. 
Determinados animais até podem usar instrumentos; por exemplo, um símio pode usar 
uma vara para alcançar uma fruta no topo da árvore. No entanto, o uso que estes animais 
fazem dos instrumentos não é coletivo, não é consciente, e nem determina formas de 
comunicação entre os seres que a efetuam. Nos animais, toda atividade está diretamente 
relacionada à satisfação das necessidades biológicas, de modo que o objeto das 
atividades sempre se confunde com seus motivos biológicos. O homem, pelo contrário, 
distingue objeto e motivo durante o processo de trabalho; o que lhe permitiu fazer isso 
foi a criação de instrumentos. É fazendo uso de instrumentos que o homem distingue 
objeto e motivo e separa o trabalho nas fases de execução e planejamento. A estas 
ações, Leontiev dá o nome de ‘atividade’. Assim, enquanto o ato de caçar é apenas um 
movimento mais instintivo, preparar um instrumento para esta caçada é uma atividade. 
O fabrico e o uso de instrumentos só é possível em ligação com a 
consciência do fim da ação de trabalho. Mas a utilização de um 
instrumento acarreta que se tenha consciência do objeto da ação 
nas suas propriedades objetivas. O uso do machado, por exemplo, 
não responde ao único fim de uma ação concreta; ele reflete 
objetivamente as propriedades do objeto de trabalho para o qual se 
orienta a ação. O golpe do machado submete as propriedades do 
material de que é feito este objeto a uma prova infalível; assim se
20 
realiza uma análise prática e uma generalização das propriedades 
objetivas dos objetos segundo um índice determinado, objetivado 
no próprio instrumento. Assim, é o instrumento que é de certa 
maneira portador da primeira verdadeira abstração consciente e 
racional, da primeira generalização consciente e racional. 
(LEONTIEV, s/d: 88) 
O instrumento é sempre social, tanto porque seu emprego foi elaborado 
socialmente no transcurso do trabalho coletivo, quanto porque faz parte da cultura 
humana e media as interações do homem consigo, com o outro e com o meio. Embora 
seja uma prática às vezes individual, é através da prática social que o indivíduo adquire 
o uso de instrumentos. 
Os instrumentos podem ser materiais ou psicológicos. Assim como o homem usa 
um instrumento para arar a terra (instrumento material), também usa sua inteligência e 
habilidade para confeccionar o arado (instrumento interno). Aos instrumentos internos, 
Vigotski (2000) dá o nome de ‘signos’. A capacidade de operar com signos e 
instrumentos é característica central de todas as funções psíquicas superiores. Por este 
motivo, antes de explicar o que são signos e instrumentos e qual sua relação com a 
escrita, cabe, agora, enfocar o que são e como se desenvolvem as funções psíquicas 
superiores. 
1.3. Funções psíquicas superiores: um processo cultural e social 
As Funções Psíquicas Superiores são indissociadas de duas categorias 
fundamentais da obra de Vigotski: a cultura e o social. As funções psíquicas superiores 
são todas aquelas ações e capacidades intelectivas que foram desenvolvidas ao longo da 
história da humanidade através da cultura e da interação social, produzidas no processo 
de trabalho. Isto significa que as funções superiores são produzidas na história humana 
e apropriadas individualmente. Ou seja, os conhecimentos construídos historicamente 
são apropriados pelo individuo através da interação social e contato com a cultura. A 
história da humanidade se inter-relaciona com a história do indivíduo, pois, conforme já 
vimos, através da interação social, o homem recebe do meio toda a experiência histórica 
da humanidade. Vigotski (2000) chama o desenvolvimento histórico da humanidade de 
filogênese e o desenvolvimento do indivíduo, inserido no meio histórico-cultural, de 
ontogênese.
21 
As funções psíquicas superiores constituem dois grupos qualitativamente 
diferentes, mas indissociáveis. Por um lado, formam o grupo das funções que pertencem 
ao domínio dos meios externos, como a linguagem, a escrita, a aritmética, entre outros. 
Por outro lado, formam o grupo das funções superiores especiais ou internas, como a 
atenção voluntária, a memória lógica e a formação de conceitos. 
El concepto de “desarrollo de las funciones psíquicas superiores” y 
el objeto de nuestro estudio abarcan dos grupos de fenómenos que 
a primera vista parecen completamente heterogéneos pero que de 
hecho son de ramas fundamentales, dos cauces de desarrollo de las 
formas superiores de conducta que jamás se funden entre sí aunque 
estàn indisolublemente unidas. Se trata, en primer lugar, de 
procesos de domínio de los medios externos del desarrollo cultural 
y del pensamiento: el lenguage, la escritura, el cálculo, el dibujo; y, 
en segundo, de los procesos de desarrollo de las funciones 
psíquicas superiores especiales, no limitadas ni determinadas con 
exactitud, que en la psicología tradicional se denominam atención 
voluntaria, memoria lógica, formación de conceptos, etc. Tanto 
unos como otros, tomados en conjunto, forman lo que calificamos 
convencionalmente como procesos de desarrollo de las formas 
superiores de conducta del niño. (VIGOTSKI, 2000: 29) 
Ao explicar a inter-relação entre funções psíquicas internas e externas, 
Guillermo Arias Beatón (2005), pesquisador contemporâneo da Universidade de 
Havana, concebe as funções de domínio externo como produções culturais. Segundo o 
autor, através das interações sociais, o indivíduo se apropria dos instrumentos culturais, 
como a escrita e o cálculo, que levam ao desenvolvimento das funções psíquicas 
superiores internas. Por sua vez, estas funções internas permitem construções culturais 
mais elaboradas, como a informática e a arte. Disso decorre que as funções superiores 
produzem e são produtos das novas formas de conduta criadas pela cultura. Deste modo, 
são, simultaneamente, produtos das mudanças culturais ocorridas durante os processos 
de construção da sociedade humana e transformadoras da atividade psíquica. 
Queda clara una conclusión de que la psicología específicamente 
humana, se han ido constituyendo en el proceso de dominio de los 
contenidos culturales cada vez más complejos y de mayores 
exigencias y posibilidades, dado que han ido conformando en el
22 
sujeto nuevas y mas complejas formas y contenidos psicológicos 
que han sido la base de otros nuevos contenidos de la cultura 
surgidos por lás necesidades que se han ido creado en la también 
compleja relación del ser humano con su ambiente y su 
subsistencia, vida material y espiritual. De esta manera se há 
construido un proceso en espiral que tiende hacia el infinito. 
(BEATÓN, 2005: 218) 
Sendo assim, tanto as funções internas quanto as externas mediam-se 
mutuamente. Ou seja, a aquisição das funções externas catalisa o desenvolvimento das 
funções internas, a passo que estas permitem a criação de novas funções externas. O que 
possibilita este desenvolvimento processual mútuo é a vivência, a experiência e a 
interação social produzidas na cultura e no processo de trabalho. 
O desenvolvimento da escrita pode ser citado para exemplificar esta tese. A 
escrita é um processo de domínio dos meios externos do desenvolvimento da cultura e 
do pensamento. No entanto, apesar de ser externa ao homem, a escrita é um processo 
que se desenvolve junto e também como causa do desenvolvimento das funções 
superiores especiais ou internas. Isto significa que a escrita gera funções superiores 
especiais e também é fruto das mesmas. 
Uma importante conclusão que se retira daqui é acerca do modo como uma 
função psíquica superior impulsiona o desenvolvimento de outra, e como este processo 
se dá na cultura e na socialização. A partir desta concepção, a psicologia histórico-cultural, 
ao investigar as funções superiores, leva a questionar o quanto as 
possibilidades oferecidas pelo meio histórico-cultural, onde a criança está inserida, 
impulsionam ou dificultam seu desenvolvimento. 
Vigotski (2000), ao adotar uma perspectiva histórica, considera que, na 
ontogênese, a biologia e a cultura se entrelaçam no processo de desenvolvimento das 
funções psíquicas superiores. Na filogênese, considera que o comportamento do adulto 
é resultado de dois processos de desenvolvimento psíquico: a evolução biológica das 
espécies animais em direção ao Homo sapiens e o desenvolvimento histórico, através do 
qual o homem, gradativamente, tornou-se um ser culturalizado. 
De acordo com Vigotski (2000), geralmente se reconhece bem a diferença entre 
o desenvolvimento histórico da humanidade e a evolução biológica. Uma diferença 
básica é que as funções psíquicas superiores se desenvolveram na filogênese sem que o 
tipo biológico do homem tenha sofrido grandes modificações. Ao modificar o meio para
23 
sobreviver, o homem criou instrumentos que se tornaram como que órgãos humanos 
artificiais. Entretanto, os homens modificaram pouco a estrutura do próprio corpo 
biológico ao transformarem seu meio. No processo da ontogênese a cultura modifica as 
funções psíquicas e gera novas formas de conduta. Através do desenvolvimento 
histórico o homem social modifica a sua conduta. 
Segundo Vigotski (2000), na ontogênese, o processo de desenvolvimento das 
funções psíquicas superiores ocorre em paralelo com mudanças biológicas substanciais. 
O que determina o desenvolvimento de cada etapa da criança é o seu grau de 
desenvolvimento orgânico e seu grau de desenvolvimento do uso de instrumentos. Por 
exemplo, para que a criança aprenda a escrever, precisa ter desenvolvido certa 
maturação biológica e, ao mesmo tempo, a aprendizagem da escrita gera o 
desenvolvimento de várias funções psíquicas superiores. Ambos, desenvolvimento 
orgânico e uso de instrumentos, em seu entrelaçamento são o que determina o 
desenvolvimento infantil. Por este motivo, é difícil separar, no desenvolvimento da 
criança, o que é cultural e o que é biológico. Em outras palavras, na ontogênese, a 
escrita se desenvolve a partir da maturação biológica e da cultura da criança. A criança 
hoje está inserida em uma cultura letrada que já escolarizou a escrita. Portanto, ela 
aprenderá devido à orientação do seu meio, mas somente quando já tiver a maturação 
biológica necessária para aprender a escrever. Ninguém tentará ensinar uma criança de 
um mês de vida a escrever. O mesmo não ocorre na filogênese, pois nesta o 
desenvolvimento das funções superiores ocorreram historicamente sem provocar 
mudanças biológicas substanciais. O desenvolvimento da escrita exemplifica esta tese. 
De acordo com Vigotski (2000), na filogênese, ocorreu um processo gradativo de 
criação de um sistema para representar a fala. A história deste processo variou em cada 
povo, mas, geralmente, a escrita primitiva representou diretamente o objeto, sendo mais 
próxima do desenho. Apenas posteriormente, a escrita passou a representar os sons da 
fala. Este desenvolvimento, entretanto, não dependeu da maturação biológica do 
homem, mas tem uma história cultural, pois ocorreu a partir das relações sociais de 
homens envolvidos em processos coletivos de trabalho, de onde surgiam necessidades 
que suscitavam a criação de um sistema de escrita. A semelhança entre ontogênese e 
filogênese das funções psíquicas superiores é que em ambas, o social e o cultural, 
desempenham papel importante no seu desenvolvimento. 
Pino (2000), ao analisar manuscrito de Vigotski, escrito em 1929, esclarece o 
sentido de “cultural” e “social” na obra do autor. No manuscrito, Vigotski formula a lei
24 
genética geral do desenvolvimento cultural, segundo a qual toda função psicológica 
procede de um acontecimento social. Esta premissa do autor demonstra a importância 
das categorias “social” e “cultural” na sua teoria, apesar de ambas não serem 
conceituadas por Vigotski. A categoria fundamental para compreender o conceito de 
cultural e social na obra do autor é a história. No manuscrito, Vigotski entende história 
de duas formas: como “abordagem dialética geral das coisas” e como “história 
humana”. O conceito de história que Vigotski toma no manuscrito de 1929 aparece em 
uma nota introdutória. Nesta nota, o autor caracteriza a história no sentido de Marx e 
Engels, como materialista dialética, e cita a seguinte afirmação de Marx: “a única 
ciência é a história”, querendo com isso dizer que o conhecimento é um processo 
histórico que segue as leis da dialética. 
A questão preliminar, ao oferecer uma teoria da história do homem 
e do mundo no homem, instrumentaliza-nos para analisar o 
problema da relação natureza/cultura. Este é um problema de 
fundo nas análises que Vigotski faz das funções elementares ou 
naturais e das funções superiores ou culturais e da sua articulação 
na unidade da pessoa. Em termos bem gerais, esse problema pode 
ser assim colocado: na evolução das espécies ocorre um momento 
de ruptura quando a espécie homo desenvolve novas capacidades 
que lhe permitem transformar a natureza pelo trabalho, criando 
suas próprias condições de existência. Isto, por sua vez, permite ao 
homem transformar seu próprio modo de ser (cf. Marx, 1977, I, 
cap. 7; Marx & Engels, 1982, pp. 70-71). Esse momento de ruptura 
não interrompe o processo evolutivo mas dá ao homem o comando 
da própria evolução. A história do homem é a história dessa 
transformação, a qual traduz a passagem da ordem da natureza à 
ordem da cultura. Ao colocar a questão da relação entre funções 
elementares ou biológicas e funções superiores ou culturais, 
Vigotski não está seguindo, como o fazem outros autores, a via do 
dualismo. Muito pelo contrário, ele está propondo a via da sua 
superação. As funções biológicas não desaparecem com a 
emergência das culturais mas adquirem uma nova forma de 
existência: elas são incorporadas na história humana. Afirmar que 
o desenvolvimento humano é cultural equivale portanto a dizer que 
é histórico, ou seja, traduz o longo processo de transformação que
25 
o homem opera na natureza e nele mesmo como parte dessa 
natureza. Isso faz do homem o artífice de si mesmo. (PINO, 2000: 
51) 
A preocupação de Vigotski com a história o leva a articular os planos da 
ontogênese e da filogênese. A ontogênese não é uma repetição da filogênese, mas 
ambos, ontogênese e filogênese, formam uma síntese. A história pessoal é obra do 
indivíduo, mas é também parte da história humana. As transformações que ocorrem na 
ontogênese são casos particulares do que ocorre na filogênese. Enquanto algumas 
ciências, ao analisar a relação do homem com o meio social, enfocam como o homem se 
comporta no meio social, Vigotski enfoca o modo como o social constitui o homem, 
criando nele as funções psíquicas superiores. Para Vigotski, a natureza psicológica do 
homem advém da totalidade das relações sociais internalizadas que se tornam parte da 
estrutura psicológica. O modo como os homens se relacionam uns com os outros tem 
relação com as formas sociais de organização da produção e o acesso aos bens 
produzidos. O modo como os meios de produção social constituem a consciência aplica-se 
a todas as funções superiores, como a memória, a linguagem e a percepção. 
De acordo com Pino (2000), o outro tem papel fundamental para a constituição 
cultural do homem. Na teoria de Vigotski, o desenvolvimento cultural passa por três 
estágios: o dado pelo biológico, a significação atribuída pelos outros àquilo que é dado 
ao indivíduo pelo biológico e, por fim, a transformação da significação que o outro 
confere ao dado biológico em significação para o indivíduo. Neste processo, a mediação 
é exercida pela significação, sendo o outro o portador da significação. Pino (2000) cita o 
ato de apontar como exemplo desta gênese. Primeiro o ato de apontar da criança é uma 
expressão natural e biológica; depois o outro imprime um significado ao gesto de 
apontar; e, por fim, a criança internaliza o significado que o outro imprimiu ao seu 
gesto. O que é internalizado é a significação das coisas, e não as coisas em si. A 
significação é algo que emerge na relação, não sendo uma simples transmissão de 
pessoa para pessoa. Esta premissa demonstra que a teoria de Vigotski não é 
determinista. O outro é, ao mesmo tempo, objeto e agente do processo de internalização, 
pois é quem media a internalização e quem é internalizado. De acordo com Pino (2000), 
Vigotski utiliza o termo ‘conversão’ para enfocar como as relações sociais se 
transformam em relações intrapessoais. Quando o outro é internalizado o ‘eu’ não se 
transforma no ‘outro’, mas sim em algo diferente. O que permanece constante no
26 
processo de internalização é a significação. A significação social é convertida em 
significação pessoal, mas assume uma outra significação, aferida pelo indivíduo. 
Por exemplo, a significação social da relação “pai-filho”, instituída 
pela sociedade, converte-se na significação que tal pai tem para tal 
filho e vice-versa. Significações diferentes e que, por isso mesmo, 
são as fontes das crises e conflitos pessoais, como o mostra a 
experiência da vida cotidiana. A função mediadora da significação 
possibilita a reversibilidade do processo: o que é social se converte 
em pessoal e o que é pessoal se converte em social. Ela garante a 
coerência entre os mundos público e privado da pessoa. (PINO, 
2000: 68-69) 
Ao analisar o conceito de cultura na obra de Vigotski, Pino (2005) considera que 
quando o autor concebe o desenvolvimento psicológico como sendo de origem cultural, 
está querendo dizer que as funções psíquicas superiores são de origem social. Pino 
busca entender o conceito de cultura na obra de Vigotski. 
Não encontramos nos trabalhos de Vigotski uma discussão do 
conceito de cultura, muito menos uma definição propriamente dita. 
Vigotski introduz especificamente a questão da cultura quando 
discute o problema do desenvolvimento da criança, principalmente 
em textos de 1929 e 1931. Ao analisar os trabalhos dos psicólogos 
do seu tempo, Vigotski chega à conclusão de que o que faltava a 
eles era entender a natureza do desenvolvimento das formas 
superiores de conduta, objeto de sua pesquisa. Mas que natureza é 
essa? Ao que ele responde: o desenvolvimento é de natureza 
cultural. Cabe então perguntar: o que é para ele a cultura? Mais do 
que uma definição, ele dá um lacônico posicionamento: “cultura é, 
simultaneamente, o produto da vida social e da atividade social dos 
homens”.(PINO, 2005: 18) 
Pino considera que a definição de Vigotski é profunda e tem a ver com a 
concepção materialista histórica e dialética. Na sua definição, Vigotski mostra as teses 
de Marx e Engels sobre a natureza do homem, que servem para fundamentar a 
concepção de cultura. Vigotski está, na verdade, afirmando que a cultura é o conjunto 
das obras humanas, através das quais o homem modifica o meio e a si. Na perspectiva 
da psicologia histórico-cultural, a cultura engloba uma série de fatores que têm em
27 
comum o fato de serem obras humanas, portadoras de significado. A essência do 
desenvolvimento é o embate entre as formas maduras de conduta, sempre produto da 
interação social, com os comportamentos primitivos da criança. Isto significa que o 
desenvolvimento se dá pela colisão entre formas culturais e primitivas de 
comportamento. As funções psíquicas superiores não surgem do plano biológico, mas 
sim da cultura. Segundo Pino (2005), ao complexo problema da passagem das formas 
primitivas, de origem biológica, para as formas culturais de conduta, Vigotski dá o 
nome de ‘internalização’, enquanto Leontiev chama de ‘apropriação’. Pino explica que 
‘internalização’ é o processo de “reconstrução interna de uma operação externa”, 
conforme se encontra no Formação social da mente. ‘Apropriação’ é quando uma 
pessoa constrói suas significações, de modo interpretativo, a partir das significações 
produzidas nas suas interações1. 
Segundo Pino, ao falar de internalização, Vigotski está se referindo ao que 
podemos chamar de ‘processo de natureza semiótica’. A idéia de internalização ainda 
denota um dualismo entre externo e interno. Na verdade, o que é internalizado não é de 
ordem concreta, mas sim abstrata. O que é internalizado é a significação. Se o sujeito 
internaliza os significados do outro, não o faz de forma reprodutiva, mas sim de modo 
interpretativo. 
Ora, se a natureza da cultura é semiótica, pois o que faz de uma 
coisa um fenômeno cultural é a significação então o que constitui 
um ser biológico num ser cultural (sinônimo de humano) é, como 
aponta Vigotski, a conversão das significações culturais que 
definem a sociedade dos homens em significações pessoais, 
definidoras da subjetividade e da identidade pessoal de cada 
indivíduo. Essa compreensão do ser humano do homem só é 
possível numa perspectiva histórico-cultural que revela a 
emergência do simbólico no instante mesmo em que o primata 
primitivo começou a tornar-se homo. (PINO, 2005: 20) 
Para Pino, a presença da subjetividade na obra de Vigotski evita, por um lado, 
uma psicologia que vê o homem como ser fadado a sofrer totalmente as influências do 
meio, sem possibilidade de se constituir como indivíduo. Por outro lado, elimina uma 
concepção de ser humano coletivizado, sem subjetividade. Assim, para Vigotski, as 
1 Como a palavra ‘apropriação’ tem o sentido mais próximo aos significados construídos nesta 
dissertação, este será o temo usado a partir daqui toda vez que for referir ao ato de reconstrução subjetiva 
do outro.
28 
funções psíquicas superiores, em oposição às funções rudimentares, definem a 
especificidade do homem, embora sejam sempre de origem social. 
Vamos agora passar ao tópico no qual serão apresentadas as premissas e 
metodologias adotadas pela psicologia histórico-cultural para investigar as funções 
psíquicas superiores. 
1.4. Os pressupostos do método da psicologia histórico-cultural para estudar as 
funções psíquicas superiores 
Todas as investigações experimentais acerca do desenvolvimento da memória, 
da capacidade criadora e da escrita, entre outros, constituem estudos sobre as funções 
psíquicas superiores. Para estudar estas funções na perspectiva do método materialista 
histórico dialético, a psicologia histórico-cultural parte de três pressupostos: análise do 
processo de desenvolvimento da função psicológica que se pretende estudar e não da 
função já consolidada no sujeito; investigação explicativa, ao invés de descritiva; e 
análise genética do fenômeno. 
Podemos resumir, por lo tanto, lo que ya dicho sobre las tareas del 
análisis psicológico y enumerar en un enunciado los tres momentos 
decisivos que subyacen en este análisis: análisis del proceso y no 
del objeto, que ponga de manifiesto el nexo dinámico-causal 
efectivo y su relación en lugar de indicios externos que disgregan 
el proceso; por consiguiente, de un análisis explicativo y no 
descriptivo; y, finalmente, el análisis genético que vuelva a su 
punto de partida y restablezca todos los procesos del desarrollo de 
una forma que en su estado actual es un fósil psicológico. Estos 
tres momentos considerados en conjunto, están determinados por la 
nueva interpretación de la forma psicológica superior, que no es 
una estructura puramente psíquica, como supone la psicología 
descriptiva, ni una simple suma de procesos elementales, como 
afirmaba la psicología asociacionista, sino una forma 
cualitativamente peculiar, nueva en realidad, que aparece en el 
proceso del desarrollo. (VIGOTSKI, 2000: 105-6) 
Buscar uma metodologia para estudar o processo dialético de desenvolvimento 
das funções psíquicas superiores é o primeiro pressuposto da investigação de Vigotski. 
Dizer que as funções psíquicas superiores não serão estudadas como objeto, mas sim
29 
como processo, significa que estas não serão investigadas no momento em que já foram 
consolidadas, mas sim no seu processo de desenvolvimento e formação. Ou seja, as 
funções superiores serão tomadas em um método de investigação que busque captar seu 
movimento até o pleno desenvolvimento. 
O segundo pressuposto da investigação de Vigotski é a contraposição às análises 
meramente descritivas. Um fenômeno não pode ser meramente descrito, é preciso 
explicá-lo, colocar de manifesto as relações dinâmico-causais que estão na sua base. Na 
psicologia histórico-cultural, busca-se a explicação científica do fenômeno, e não 
apenas a descrição fenomênica. 
Para Vigotski (2000), passar do descritivo ao explicativo não se faz passando de 
uns conceitos para outros, é preciso estabelecer os nexos genéticos. O autor propõe a 
discriminação entre a análise fenotípica e a análise genética. Na análise fenotípica a 
investigação recai sobre a forma do fenômeno a ser estudado. A mera descrição da 
forma é considerada, por si só, uma análise científica. Por sua vez, a análise genética 
coloca de manifesto as relações efetivas, o que está oculto por trás de um processo. 
Assim, na concepção de Vigotski, a forma não pode ser tomada como conteúdo, a 
ciência não pode explicar a realidade apenas descrevendo o fenótipo dos fenômenos. 
Vigotski (2000) cita Marx, para quem a ciência não seria necessária se houvesse 
coincidência entre forma e essência. A essência dos objetos, que é sua verdadeira 
correlação, não coincide com suas manifestações externas. Por este motivo, a ciência 
deve descobrir a verdadeira correlação dos processos, deve buscar o que está por trás 
das manifestações externas. 
O terceiro pressuposto é que o estudo das funções psíquicas não pode recair 
sobre aquelas funções que já estão automatizadas. Quando as funções psicológicas a 
serem estudadas já estão consolidadas no sujeito da investigação, é preciso uma 
metodologia que a converta em um processo dinâmico. Para fazer uma função 
psicológica fossilizada adquirir movimento é preciso voltar para a sua origem. 
El centro de gravedad de nuestro interés se desplaza, se traslada en 
una nueva dirección. Lo que nos interesa más son los experimentos 
durante los cuales se va formando la reacción, los desechados por 
los investigadores de antaño. Para nosotros – para el análisis 
dinámico – explicar un fenómeno significa esclarecer su verdadero 
origen, sus nexos dinámico-causales y su relación con otros 
procesos que determinam su desarrollo. Por consiguiente, la tarea
30 
del análisis consiste em hacer que la reacción retorne al momento 
inicial, a las condiciones de su cierre y abarcar, al mismo tiempo, 
todo el proceso en su conjunto mediante una investigación objetiva 
– y no sólo su aspecto externo o interno -. La reacción terminada, 
que se repite de manera estereotipada, nos interesa tan sólo como 
un medio que permite marcar el punto final a que aboca el 
desarrollo de dicho proceso. (VIGOTSKI, 2000: 111-12) 
Ao estudar a reação complexa é preciso enfocá-la como um processo vivo, o que 
requer converter o objeto ao movimento de onde surgiu. A questão que se coloca é 
sobre a natureza real dinâmico-causal da reação complexa. Se o movimento é entendido 
de modo mais amplo como mudança do objeto, é possível dizer que o pensamento é 
também movimento. Vigotski (2000) reitera sua afirmação citando Engels, para quem o 
movimento é um atributo da matéria e abarca cada uma das mudanças que ocorrem no 
universo. A investigação da natureza do movimento, segundo Engels, deveria partir das 
formas mais rudimentares deste para poder estudar as formas mais complexas. “Toda 
forma superior de conducta es imposible sin las inferiores, pero la existência de las 
inferiores o accesorias no agota la esencia de la superior.” (VIGOTSKI, 2000: 119). Por 
este motivo, o estudo do movimento das funções psíquicas superiores requer uma 
metodologia que as faça voltar às suas origens. Se as funções objeto da investigação não 
forem estudadas desde o seu momento mais primitivo e elementar, não há como estudar 
a sua gênese. 
Portanto, as funções rudimentares constituem a base da metodologia das funções 
psíquicas superiores. O que significa isto? Significa que, ao estudar as funções psíquicas 
superiores, é preciso buscar o parente genético mais distante da função a ser estudada. É 
preciso entender qual a sua pré-história no desenvolvimento da criança (ontogênese) e 
também da humanidade (filogênese). Por este motivo, ao estudar o desenvolvimento da 
escrita, a psicologia histórico-cultural enfoca sua pré-história na ontogênese e na 
filogênese. 
Os três pressupostos do método dialético da psicologia histórico-cultural – 
análise do genótipo, e não do fenótipo; estudo de dada função psicológica em 
movimento, e não quando já solidificada no sujeito; análise investigativa, ao invés de 
meramente explicativa – pode-se dizer que embasam os experimentos de toda e 
qualquer função psíquica superior, incluindo a escrita. Para estudar funções como a 
escrita, Vigotski e seus colaboradores procederam a investigações experimentais, nas
31 
quais os sujeitos eram colocados diante de certos problemas a serem resolvidos. Como 
estes experimentos tinham o objetivo de estabelecer a gênese de dada função psíquica 
superior, chamaremos o método de genético-experimental, embora também o 
encontremos referenciado como instrumental (VIGOTSKI, 2000 e 2003) e como 
psicologia experimental (LURIA, 2003a). 
Para estudar a escrita no estágio inicial do seu desenvolvimento, a psicologia 
histórico-cultural traça a sua pré-história na ontogênese e na filogênese. Como a escrita 
é um conjunto de signos escritos que são usados para simbolizar os sons da fala, toda a 
atividade na qual a criança usa coisas para representar outras coisas pode ser 
considerada como forma primitiva de desenvolvimento da escrita. Por sua vez, na 
filogênese a escrita se desenvolveu a partir do momento em que os homens criaram 
meios através dos quais pudessem simbolizar mensagens que precisavam comunicar a 
outros ou ajudar a gravar informações. 
Neste sentido, Vigotski (2000) diz que o parente genético da escrita na 
ontogênese é o desenho, o gesto e o jogo, enquanto na filogênese são parentes genéticos 
todas as formas que o homem primitivo desenvolveu para gravar informações. Estas 
formas rudimentares de escrita; o nó na corda, a pictografia entre outros, na filogênese; 
e o gesto o desenho e o jogo, na ontogênese, devem ser o ponto de partida para estudar 
o desenvolvimento histórico da escrita. Isto significa que a escrita é estudada 
primeiramente a partir das funções rudimentares. 
Já vimos que o homem criou instrumentos externos e internos (signos) para 
mediar sua relação com a natureza e consigo. Enfocaremos, agora, os signos e 
instrumentos, conceituação necessária para entender a escrita, que é uma função 
psíquica superior e um sistema de signos e instrumentos. 
1.5. A escrita como função psíquica superior 
Vigotski (2000) apresenta três teses que ajudam a entender os signos e suas 
diferenças, semelhanças e inter-relações com os instrumentos. 
(...) Sin embargo, podemos establecer ahora, em calidad de punto 
de partida, tres tesis que, a nuestro juicio, están suficientemente 
aclaradas por lo ya dicho y son suficientemente importantes para 
comprender el método de investigación adoptado por nosotros. La 
primera de esa tesis se refiere a la similitud y a los puntos de 
contacto entre ambas formas de actividad; la segunda tesis
32 
esclarece los puntos fundamentales de divergencia y la tercera 
intenta señalar la relación psicológica real entre una y otra o, al 
menos, hacer una alusión. (VIGOTSKI, 2000: 93) 
Tanto signos quanto instrumentos têm uma função comum: a atividade 
mediadora. Do ponto de vista psicológico, signos e instrumentos pertencem à mesma 
categoria. Vigotski (2000) cita Hegel, para quem a mediação seria a propriedade mais 
característica da razão. Os signos e os instrumentos mediam as respostas do homem aos 
estímulos do meio, sendo, portanto, propriedades da razão, ou seja, mecanismos das 
funções psíquicas superiores. Eis a primeira tese: instrumentos e signos são incluídos 
nas atividades mediadoras. 
A segunda tese é que existem pontos fundamentais de divergência entre signos e 
instrumentos. Os instrumentos estão dirigidos para fora, pois, através deles, o homem 
influi sobre o objeto. O instrumento é uma atividade exterior através da qual o homem 
modifica a natureza. O signo, pelo contrário, não modifica o objeto da operação, mas é 
o meio através do qual o homem influi psicologicamente, ou seja, é um meio para a 
atividade interior, é dirigido para dominar o próprio homem, estando orientado para 
dentro. 
Llamamos signos a los estímulos-medios artificiales introducidos 
por el hombre en la situación psicológica, que cumplen la función 
de autoestimulación; adjudicando a este término un sentido más 
amplio y, al mismo tiempo, más exacto del que se da 
habitualmente a esa palabra. De acuerdo con nuestra definición, 
todo estímulo condicional creado por el hombre artificialmente y 
que se utiliza como medio para dominar la conducta – propia o 
ajena – es un signo. Dos momentos, por lo tanto, son esenciales 
para el concepto de signo: su origen y función. (...). (VIGOTSKI, 
2000: 83) 
A terceira tese é a de que existe uma relação psicológica real entre signos e 
instrumentos. Ora, tanto o domínio da natureza quanto o domínio da própria conduta 
apresentam uma relação recíproca, porque quando o homem transforma a natureza 
transforma também a si mesmo. Na filogênese o que permite fazer esta relação são os 
vestígios documentais. Na ontogênese é a observação direta que permite a análise desta 
relação. Na sua essência, o uso de signos e instrumentos leva o homem a agir não mais 
de acordo unicamente com suas necessidades biológicas. O homem que opera com
33 
signos e instrumentos acaba por realizar maior número de operações mentais, o que 
permite o desenvolvimento das funções psíquicas superiores e a passagem do plano 
biológico para o plano cultural. 
Explicando como se dá a passagem do plano natural para o plano cultural, Pino 
(2000) mostra que a atividade simbólica exerce papel central neste processo. Na 
ontogênese os planos culturais e naturais aparecem unidos, enquanto na filogênese 
ambos aparecem separados. Para Pino, é com o intuito de buscar as raízes naturais da 
atividade simbólica que Vigotski recorre ao esquema do triângulo, segundo o qual o 
signo ou instrumento é sempre o elemento que cria um novo caminho entre o estímulo e 
a resposta. De acordo com o modelo do triângulo, o homem cria um elemento que se 
transforma em um estímulo orientador da sua ação. Através da mediação o homem 
modifica o meio e a si próprio. Esta mediação é também dupla, pois pode ser técnica ou 
simbólica. Pela mediação técnica o homem dá uma nova forma ao meio, pela mediação 
simbólica confere a esta nova forma uma significação. O signo é reversível, ele sempre 
significa algo para quem recebe e também para quem emite. O signo opera na 
consciência e une autor e espectador em uma só pessoa. Como exemplo disso, podemos 
citar a interlocução: aquele que dirige a palavra ao outro também sofre os efeitos da sua 
própria fala. A significação é o que conecta a condição humana ao social, ou seja, que 
faz o homem passar do plano da biologia para o plano da cultura. A sociabilidade 
humana tem sempre relação com o modo como os homens organizam e produzem sua 
existência. Por isso, é possível afirmar que a convivência humana é regida por leis 
históricas, e não pela biologia. 
Para entender o modo como os indivíduos operam com signos e instrumentos, 
Vigotski (2002) e seus colaboradores fizeram experimentos para entender como as 
crianças usam os signos nas suas manifestações concretas diversas (desenho, escrita, 
números, etc). Também investigaram, na história da humanidade, como se dá a 
formação social dos signos e dos instrumentos. 
Os experimentos realizados por Vigotski e seus colaboradores para investigar o 
modo como os signos e os instrumentos se desenvolvem na história individual serão 
objetos do próximo capítulo. Por ora, cabe dizer que a escrita é um sistema de signos e 
instrumentos. É um sistema de instrumentos porque se manifesta externamente através 
das suas funções sociais, por exemplo, noticiar, entreter, divulgar, comunicar. É um 
sistema de signos porque é uma força que impulsiona o desenvolvimento humano. Na 
história da humanidade, a criação de sistemas de escrita só foi possível porque o homem
34 
desenvolveu antes certas funções psíquicas superiores. Entretanto, paradoxalmente, o 
desenvolvimento da escrita permitiu ao homem desenvolver mais funções psíquicas 
superiores, dentre as quais é possível citar a memorização mediada. 
Na filogênese, as primeiras formas de memorização mediada são os parentes 
genéticos da escrita. As marcas que os povos antigos faziam em árvores e cavernas para 
memorizar, e os nós que faziam em cordas para recordar quantidades são, segundo 
Vigotski (2000), os antecessores da nossa escrita atual. 
La historia de la operación de hacer un nudo en el pañuelo es 
extremadamente compleja e instructiva. En el momento de su 
aparición significó que la humanidad se aproximaba a los límites 
que separaban una época de otra: la barbarie de la civilización. R. 
Thurnwald dice que la naturaleza no tiene, en general, fronteras 
rígidas. Suele considerarse que la historia de la humanidad 
comienza con el descubrimiento del fuego, pero el límite que 
separa la forma inferior de existencia humana de la superior es la 
aparición del lenguaje escrito. El hecho de hacer un nudo como 
recordatorio fue una de las formas más primarias del lenguaje 
escrito y jugó un enorme papel en la historia de la cultura, en la 
historia del desarrollo de la escritura. El comienzo de desarrollo de 
la escritura se apoya en semejantes medios auxiliares de la 
memoria; no en vano son muchos los investigadores que califican 
de mnemotécnica la primera época del desarrollo de la escritura. El 
primer nudo recordatorio señalaba el nacimiento del lenguaje 
escrito sin el cual sería imposible toda la civilización. Las 
anotaciones en nudos ampliamente desarrollados llamados quipu se 
utilizaban en el antiguo Perú como anales históricos, como 
referencias a hechos de importancia estatal o personal.(...) 
(VIGOTSKI, 2000: 77-8) 
A escrita foi criada historicamente pelos homens envolvidos no processo de 
trabalho e transformação da natureza. Embora na filogênese os registros documentais 
demonstrem que sua primeira função foi servir como recurso à memória, no decorrer do 
seu desenvolvimento histórico, passou a ser apropriada de outras formas pelos homens, 
adquirindo complexas funções culturais. A importância que a escrita adquiriu na nossa 
cultura hoje, torna praticamente imprescindível sua transmissão de geração para geração
35 
através da escolarização, de modo a haver necessidade das crianças aprenderem a 
escrever ainda na tenra idade. 
A partir daqui, podemos traçar o conceito de escrita segundo a psicologia 
histórico-cultural. Para a psicologia histórico-cultural, a escrita é um sistema simbólico 
de signos e instrumentos, uma função cultural complexa e uma função psíquica 
superior. Quando a escrita media a relação do homem consigo, desenvolvendo nele as 
funções superiores de abstração, memorização mediada e raciocínio lógico, é um 
sistema de signos. Quando a escrita media a relação do homem com o meio, servindo 
para comunicar e expressar, é um sistema de instrumentos. A escrita é uma construção 
histórica. Sua origem reside no processo de trabalho, da necessidade sentida pelo 
homem de usar símbolos escritos para lembrar de fatos e eventos, além de registrar 
quantidades, usando marcas ou fazendo nós em cordas. Portanto, na história da 
humanidade, a primeira função da escrita foi servir de auxílio à memória. Ao longo do 
desenvolvimento filogenético, a escrita assumiu funções diversas, tornando-se uma 
função cultural complexa e uma linguagem diferente, embora inter-relacionada com a 
fala. Além disso, houve outra mudança substancial da escrita ao longo da história: sua 
conversão de representação de objetos para representação da linguagem. As primeiras 
formas de escrita da humanidade representavam diretamente os objetos, como 
demonstram os pictogramas. Nos sistemas alfabéticos e silábicos, a escrita passou a 
representar os sons da fala, usando unidades gráficas para representar unidades sonoras. 
Entretanto, bons leitores e escritores precisam desprender-se deste aspecto sonoro da 
escrita para operar com ela como linguagem. De qualquer modo, seja quando representa 
objetos, ou representa a linguagem, a escrita é um sistema de símbolos, uma vez que é 
formada por signos que representam algo, podendo-se dizer que a escrita é um sistema 
de signos simbólicos. 
Quanto à alfabetização, Vigotski considera que é preciso levar em conta a 
história da passagem da escrita como representação dos sons da fala para linguagem, 
mas não só. A alfabetização não pode se reduzir a um treino motor e nem à soletração. 
Ao invés disso, a escrita precisa ser tomada como uma função psíquica superior e uma 
atividade cultural complexa, que tem grande importância para o desenvolvimento da 
criança e da humanidade. 
O modo como o indivíduo aprende a operar com a escrita como linguagem será 
objeto do próximo capítulo, no qual serão apresentados os diferentes momentos da 
ontogênese da escrita.
36 
No entanto, pode-se antecipar que o presente capítulo já traz duas categorias 
que foram objeto de análise no livro didático: o conceito de escrita e de mediação. 
Analisamos como o texto do livro didático, destinado aos professores, conceitua a 
escrita. Além disso, investigamos como a mediação aparece, tanto no texto aos 
professores quanto nos exercícios. Para a análise da escrita, observamos as rupturas e as 
aproximações entre o conceito de escrita do livro didático e o conceito de Vigotski. Para 
a análise da mediação, investigamos se o texto aos professores e os exercícios do livro 
didático apresentam, ainda que de modo implícito, alguma concepção de mediação. Ou 
seja, quem e o que o livro didático considera que seja o mediador do processo de ensino 
e aprendizagem?
37 
2. O DESENVOLVIMENTO DA ESCRITA PELA CRIANÇA 
Ao estudar o desenvolvimento da escrita pela criança, na perspectiva da 
psicologia histórico-cultural, dois fatores precisam ser considerados. Em primeiro lugar, 
conforme já consta no capítulo anterior, o desenvolvimento da escrita não ocorre em 
etapas sucessivas. Segundo Vigotski (2000) a história do desenvolvimento da escrita 
pela criança é complexa. Está repleta de saltos, descontinuidades, alterações e 
interrupções porque é uma conduta cultural e, como tal, é produzida pela interação entre 
maturidade orgânica e cultura. 
Desde un punto de vista psicológico, el dominio de la escritura no 
debe representarse como una forma de conducta puramente 
externa, mecánica, dada desde fuera, sino como un determinado 
momento en el desarrollo del comportamiento que surge de modo 
ineludible en un determinado punto y está vinculado genéticamente 
con todo aquello que lo ha preparado e hizo posible. El desarrollo 
del lenguaje escrito pertenece a la primera y más evidente línea del 
desarrollo cultural, ya que está relacionado con el dominio del 
sistema externo de medios elaborados y estructurados en el proceso 
del desarrollo cultural de la humanidad. Sin embargo, para que el 
sistema externo de medios se convierta en una función psíquica del 
proprio niño, en una forma especial de su comportamiento, para 
que el lenguaje escrito de la humanidad se convierta en el lenguaje 
escrito del niño se necesitan complejos procesos de desarrollo que 
estamos tratando de explicar en sus líneas más generales. 
(VIGOTSKI, 2000: 185) 
Em segundo lugar é preciso entender que, no caso das crianças que vivem em 
uma cultura letrada, a aprendizagem da escrita começa antes do ingresso na escola. 
Segundo Luria, a escrita tem uma pré-história no desenvolvimento da criança. 
O momento em que uma criança começa a escrever seus primeiros 
exercícios escolares em seu caderno de anotações não é, na 
realidade, o primeiro estágio de desenvolvimento da escrita. As 
origens deste processo remontam a muito antes, ainda na pré-história 
do desenvolvimento das formas superiores do 
comportamento infantil; podemos até mesmo dizer que quando 
uma criança entra na escola, ela já adquiriu um patrimônio de
38 
habilidades e destrezas que a habituará a aprender a escrever em 
um tempo relativamente curto. (LURIA, 2003c: 143) 
Estes dois fatores a serem considerados estão inter-relacionados quando se trata 
do desenvolvimento da escrita. O desenvolvimento da escrita não ocorre por etapas 
sucessivas e sua aprendizagem não depende unicamente da transmissão escolar. Toda e 
qualquer função psíquica superior, inclusive a escrita, se desenvolve impulsionada por 
fatores culturais e biológicos, ou seja, através da interação entre aprendizagem e 
desenvolvimento. Por sua vez, a aprendizagem não ocorre somente na escola, mas 
também nas interações que a criança vivencia desde seu nascimento. 
A categoria ‘zona de desenvolvimento próximo’2 (ZDP) é um dos cernes da 
interação entre aprendizagem e desenvolvimento. A zona de desenvolvimento próximo 
está entre o nível de desenvolvimento real e o potencial. O nível de desenvolvimento 
efetivo, ou real, da criança são todas as aprendizagens que ela já consolidou, ou seja, já 
consegue executar de modo independente, sem precisar de ajuda. A zona de 
desenvolvimento potencial é o que a criança consegue fazer através da mediação de 
adultos, outras crianças ou instrumentos. Esta área permite vislumbrar os próximos 
passos da criança, suas potencialidades, sendo um indicativo tanto do que ela já 
produziu, quanto do que ela produzirá no processo de maturação. As interações com 
adultos ou outros pares criam na criança uma zona de desenvolvimento próximo quando 
a levam a atuar de modo mais evoluído, desenvolvendo suas potencialidades e 
adiantando seu desenvolvimento. A zona de desenvolvimento próximo é um indicador 
das diferenças individuais, pois crianças que apresentam o mesmo desempenho escolar, 
podem ter potenciais diferentes para a aprendizagem. 
Segundo Vigotski (2003), a categoria ‘zona de desenvolvimento próximo’ traz 
implicações sobre a relação entre educação e desenvolvimento. Antes desta concepção, 
preponderava a idéia segundo a qual o que a criança pode fazer de modo independente 
consiste no limite que se impõe ao processo de aprendizagem. Na prática, isto produziu 
efeito negativo na educação de crianças deficientes mentais. Como as pesquisas 
2 As traduções de muitos livros de Vigotski no Brasil - dentre os quais é possível citar Linguagem, 
desenvolvimento e aprendizagem (2003) e A formação social da mente (2002) - referem-se a ‘zona de 
desenvolvimento proximal’. Por sua vez, Paulo Bezerra na tradução do livro A construção do pensamento 
e da linguagem (2001), propõe que esta categoria seja traduzida como ‘zona de desenvolvimento 
imediato’. Aqui se optou por usar a tradução usada nos livros de Beatón (2001 e 2005) e no artigo de 
Ludmila Oboukhova (2006), pesquisadora contemporânea da Universidade Estatal de Moscou, traduzido 
por Flávia da Silva Ferreira Asbahr. A escolha se justifica porque a categoria ‘zona de desenvolvimento 
próximo’ se refere às atividades e aprendizagens mediadas. Como a palavra ‘próximo’ traz o conceito de 
mediação na sua significação, parece mais adequada para nomear esta categoria.
39 
estabeleceram que estas crianças apresentam pouca capacidade de pensamento abstrato, 
os docentes decidiram por eliminar da instrução todo conhecimento abstrato, limitando-se 
ao ensino através apenas de meios visuais. Esta prática acabou por consolidar a 
incapacidade das crianças portadoras de deficiência mental para operar com abstrações. 
Vigotski (2003) considera ineficaz o ensino que se limita apenas aos 
conhecimentos e habilidades já adquiridos pela criança. Esta concepção de ensino acaba 
por desenvolver pouco as funções psíquicas superiores. Ao invés de considerar apenas a 
maturação biológica necessária para a aprendizagem de certos conhecimentos, é preciso 
considerar também a importância de cada matéria escolar para o desenvolvimento das 
funções psíquicas superiores. 
Apenas o mínimo que se pode ensinar a uma criança é determinado pelos ciclos 
de desenvolvimento que já foram completos. Um bom ensino é aquele orientado para as 
funções superiores que ainda não foram desenvolvidas. Portanto, para a perspectiva da 
psicologia histórico-cultural, a pedagogia não se orienta para o passado do 
desenvolvimento infantil, mas sim para o futuro, ou seja, para as funções que podem ser 
desenvolvidas, embora a pré-história das funções psíquicas superiores auxilie a 
estabelecer níveis de ajuda necessários para a efetivação da aprendizagem. 
A categoria ‘zona de desenvolvimento próximo’, tomada separadamente do seu 
contexto, pode levar a uma interpretação simplista, segundo a qual o professor é o 
mediador do processo de aprendizagem que, por sua vez, ocorre quando o ensino se 
adianta ao desenvolvimento da criança. A conseqüência desta interpretação simplista 
pode ser um ensino tradicional, demasiadamente transmissivo e pouco voltado para a 
atividade da criança. 
De acordo com Beatón (2005), não é só o professor que media o processo de 
aprendizagem, mas também a família e a sociedade como um todo. As mediações para o 
processo de aprendizagem também podem ser a televisão, o computador, a atividade, a 
interação com outras crianças, entre outros. Além disso, em relação ao modo como se 
dá a interação pedagógica, ao se trabalhar segundo o conceito de zona de 
desenvolvimento próximo, é preciso considerar dois fatores. 
Em primeiro lugar, a zona de desenvolvimento próximo está constantemente se 
ampliando e modificando, e não é uma eterna zona de ajuda para que a criança consiga 
executar atividades que sozinha não consegue. Isto porque a qualquer momento a 
criança pode começar a fazer sozinha o que antes não conseguia e, a cada nova
40 
aquisição, aumenta sua zona de desenvolvimento potencial. Beatón explica bem esta 
mobilidade da zona de desenvolvimento próximo. 
Claro, aquí también hay outra lectura, porque, a veces, yo he 
podido observar que la ZDP parece ser una zona eterna de ayuda 
para el niño. No, la definición de la ZDP, parte de la idea de que en 
todo momento de desarrollo real o actual e incluso en el potencial, 
el sujeto puede hacer independientemente lo que antes hacía com 
ayuda. O sea, el ciclo del desarrollo hay que concebirlo como que 
un desarrollo actual, determina produce una zona potencial y esta 
zona potencial avanza con una determinada ayuda hacia una nueva 
zona de desarrollo real y actual, la que se define, como aquella en 
la que el nino, puede hacer independientemente, lo que antes hacía 
em colaboración com los OTROS. Es decir que la ZDP podemos 
verla siempre como progresiva en relación con los momentos 
anteriores. Tiende al infinito del desarrollo pscologico humano. 
(BEATÓN, 2005: 231-232) 
O outro é quem colabora para a aprendizagem da criança porque o 
desenvolvimento, para a psicologia histórico-cultural, ocorre do social para o individual. 
Os conteúdos volitivos, emocionais e intelectuais ocorrem primeiro no social e, logo em 
seguida, se apresentam de maneira intrapsicológica. Este é o motivo porque a ZDP é 
uma zona de interação, de mediação. Quando a criança consegue fazer sozinha o que 
antes fazia com os outros, é porque se apropriou da produção cultural humana. 
Em segundo lugar, um maior desenvolvimento psicológico e intelectual da 
criança requer intencionalidade pedagógica, de modo que é preciso qualificar a ajuda 
que fará a criança trabalhar na zona de desenvolvimento próximo. Esta ajuda para que a 
criança desenvolva suas potencialidades não pode ocorrer por meio apenas da 
transmissão externa do ensino tradicional. De acordo com Beatón (2005), a tese de 
Vigotski sobre os níveis de ajuda que o adulto pode prestar diante da atividade da 
criança refuta uma apropriação tradicional da categoria ZDP. 
Vigotski (apud BEATÓN, 2005) estabelece quatro níveis de ajuda que um 
adulto pode prestar para a criança atuar de modo mais autônomo. O primeiro nível de 
ajuda é quando o adulto recorda os objetivos da atividade que a criança precisa realizar. 
O que se espera neste nível de ajuda é que a criança elabore a atividade de modo mais 
independente possível. O segundo nível de ajuda é quando o adulto, diante da
41 
incapacidade da criança de realizar a atividade de modo mais independente, continua 
incentivando sua autonomia, mas através de questionamentos e comparações. O terceiro 
nível de ajuda é quando o adulto realiza a atividade junto com a criança, mas, em certo 
momento, a estimula a prosseguir sozinha na sua realização. O quarto nível de ajuda só 
deve ser prestado quando o adulto constata que os três níveis de ajuda anteriores não 
funcionaram. Neste caso, o adulto explica a atividade para a criança. Entretanto, em 
cada um destes quatro níveis o adulto deve sempre buscar ajudar a criança a 
desenvolver suas atividades de modo autônomo. Quanto mais consciência o adulto tiver 
quando à sua intenção pedagógica, maior ajuda poderá prestar ao desenvolvimento da 
criança. 
Vygotski, como es usual en él, en el manejo de las contradicciones, 
plantea que el proceso de enseñanza tiene que tener una 
intencionalidad... y también tienen que estimular la independencia, 
autonomía y el papel activo del sujeto (...) (BEATÓN, 2005: 248) 
Parece haver uma contradição entre incentivar a criança a trabalhar de modo 
autônomo e adiantar-se ao seu desenvolvimento. Esta contradição é aparente, pois, ao 
atribuir importância para a aprendizagem escolar, Vigotski não nega a necessidade da 
instrução e da ajuda prestada pelo adulto para que a criança aprenda. 
Além de ter implicações sobre a educação, a categoria ‘zona de desenvolvimento 
próximo’ também tem relação com o método experimental utilizado por Luria e 
Vigotski para investigar o desenvolvimento das funções psíquicas superiores. A relação 
encontra-se no fato de que os autores não investigavam somente o desenvolvimento real 
da criança, mas também o potencial. Este é o motivo por que os investigadores 
costumavam conversar e, até mesmo, ajudar as crianças durante as investigações. Foi 
com esta perspectiva que Luria e Vigotski investigaram o desenvolvimento da escrita 
pela criança. 
2.1. O desenvolvimento da escrita pela criança 
Para investigar o modo de a criança adquirir a linguagem escrita, Luria e 
Vigotski empenharam-se em um programa de estudos experimentais. Tais investigações 
consistiram em observar como crianças que ainda não haviam freqüentado a escola 
operavam com situações em que precisavam ler e escrever e como criavam instrumentos 
mnemotécnicos. Segundo Luria (2003b), durante muito tempo, os psicólogos do 
desenvolvimento humano achavam que o estudo empírico da criança era praticamente
42 
impossível. Ocorreu um avanço na investigação do desenvolvimento infantil quando a 
psicologia experimental passou a realizar experimentos psicológicos e observações para 
compreender as formas superiores de comportamento. 
O trabalho de Köhler, Lipmann, Bogen e outros sobre as primeiras 
manifestações de comportamento inteligente na criança; de Jaensch 
e sua escola sobre as formas primitivas de percepção na criança; de 
Katz, Kuenberg, Eliasberg e Weigl, sobre a abstração juvenil; de 
Ach, Rimat e Bacher, sobre a formação de conceitos; de C. Bühler, 
sobre as respostas de grupo das crianças pequenas; e, finalmente, 
os importantes estudos de Piaget sobre o pensamento primitivo na 
criança, e os de Kurt Lewin sobre o comportamento infantil em um 
ambiente natural, todos tiveram uma participação importante na 
promoção do estudo experimental das crianças. (LURIA, 2003b: 
85) 
No método da psicologia histórico-cultural, os sujeitos da investigação são 
colocados em situações nas quais precisam operar com signos e instrumentos. Também 
são feitas análises comparativas sobre como a criança resolve um problema sozinha e 
como o faz com ajuda de outra pessoa. Este tipo de atitude tem por objetivo 
compreender a ontogênese levando em conta a mediação, importante característica do 
desenvolvimento das funções superiores, e investigar o nível de desenvolvimento 
potencial da criança. 
Nos estudos acerca do desenvolvimento da escrita, Luria e Vigotski tiveram o 
objetivo de investigar a sua pré-história. Segundo os autores, o desvelamento da pré-história 
da escrita pode servir como importante instrumento para os professores. 
Se formos capazes de desenterrar essa pré-história da escrita, 
teremos adquirido um importante instrumento para os professores: 
o conhecimento daquilo que a criança era capaz de fazer antes de 
entrar na escola, conhecimento a partir do qual eles poderão fazer 
deduções ao ensinar seus alunos a escrever. (LURIA, 2003c: 144) 
Em uma de suas investigações para estudar o desenvolvimento da escrita, Luria 
solicitou que crianças não alfabetizadas usassem lápis e papel para fazer registros 
mnemônicos. Os objetivos do experimento foram observar como a criança passa do 
simbolismo do rabisco para a escrita pictográfica, e como usa signos para fazer registros 
mnemônicos antes de ter aprendido a técnica cultural da escrita. O experimento
43 
consistiu em observar como ocorrem as etapas da pré-história do desenvolvimento da 
escrita como sistema mnemônico. O pressuposto de tal experimento foi que as crianças 
já têm conhecimentos sobre leitura e escrita antes de ingressarem na escola. 
Segundo Luria, a escola proporciona uma técnica cultural de escrita. Mas antes 
de ingressar na escola, a criança cria seus meios de simbolismo que têm certa eficiência. 
Os métodos primitivos de escrita, criados pela criança, são perdidos quando esta 
ingressa na escola e aprende o sistema cultural. Este fato traz para a psicologia a 
necessidade de investigar a pré-história do desenvolvimento da escrita na ontogênese, e 
explicar os fatores que tornam a gênese da escrita possível. O meio efetivo de conseguir 
traçar e explicar esta pré-história é descrever os estágios pelos quais a criança passa para 
desenvolver a escrita. O ponto inicial é a descoberta das formas de escrita que a criança 
elabora antes da aprendizagem formal. 
Ainda de acordo com este autor, é preciso considerar que uma criança só tomará 
notas se as frases que lhe forem ditadas incluírem-se em uma destas duas categorias: ou 
devem ter um sentido afetivo para a criança, ou devem fazer referência a objetos 
instrumentais, que exerçam importante papel para uma dada ação. Por fim, para que seja 
capaz de anotar alguma coisa, é preciso que o ato de tomar nota tenha um sentido ou 
significado intrínseco. Ou seja, a criança deverá ser informada que o objetivo de tomar 
nota é recordar a frase que lhe foi dita. 
Nosso método era, na verdade, muito simples: pegávamos uma 
criança que não sabia escrever e lhe dávamos a tarefa de relembrar 
um certo número de sentenças que lhe tinham sido apresentadas. 
Comumente, este número ultrapassava a capacidade mecânica da 
criança para recordar. Uma vez que a criança compreendia ser 
incapaz de lembrar o número de palavras dado na tarefa, nós lhe 
entregávamos um pedaço de papel e lhe dizíamos para tomar nota 
ou “escrever” as palavras por nós apresentadas. É claro que, na 
maioria dos casos, a criança ficava completamente desnorteada 
com nossa sugestão. Dizia-nos não saber escrever, não ser capaz de 
fazê-lo. Mostrávamos a ela que os adultos escrevem coisas quando 
devem lembrar-se de algo e, em seguida, explorando a tendência 
natural da criança para a imitação puramente externa, sugeríamos 
que tentasse inventar alguma coisa e que escrevesse aquilo que 
iríamos dizer. Geralmente nosso experimento começava depois 
disso e nós apresentávamos à criança várias (quatro ou cinco)
44 
séries de seis ou oito sentenças simples, curtas e não-relacionadas 
umas com as outras. (LURIA, 2003c: 147) 
Luria observou quando os rabiscos no papel deixavam de ser apenas uma 
brincadeira para tornar-se um meio para atingir um fim, que, neste caso, era a utilização 
do rabisco como signo auxiliar à memória. Segundo Luria, o lápis e o papel entregues à 
criança eram os expedientes externos, que também podem ser chamados neste caso de 
instrumentos. Além disso, o lápis e o papel eram elementos conhecidos para a criança. 
Por sua vez, a operação mnemotécnica, atividade que lhe era solicitada realizar, era o 
expediente interno, pois exigia que a criança realizasse uma operação com signos. Com 
isso foi possível observar de que modo a criança aprende a dar novas funções para 
expedientes conhecidos, usando-os para dominar novos objetivos, e como opera com 
signos e instrumentos. 
Com este experimento, Luria observou todas as fases de relação da criança com 
lápis e papel, desde a sua utilização para fazer uma imitação mecânica da escrita do 
adulto, até o domínio inteligente da técnica de usar lápis e papel de modo a representar 
algo. Da técnica de escrever eram dados à criança somente seus aspectos externos 
(modelo da escrita do adulto, papel e lápis) para, com isso, poder observar as suas 
invenções e descobertas. 
Ao primeiro estágio observado de desenvolvimento da escrita como signo 
mnemotécnico, Luria deu o nome de fase ‘pré-escrita’, ou ‘pré-instrumental’. Nesta 
fase, comum às crianças de aproximadamente quatro e cinco anos, havia uma total 
incapacidade para compreender instruções. Segundo Luria, a incapacidade da criança 
para usar a escrita como signo mnemotécnico deriva da característica essencial desta 
fase pré-escrita, a bem dizer, a incapacidade de encarar a escrita como instrumento ou 
meio. As crianças situadas nesta fase imitavam a configuração da escrita do adulto, 
reproduzindo linhas repletas de ziguezagues, estilo letra cursiva. Além disso, escreviam 
reproduzindo o ritmo da entonação do adulto. Apesar disso, não entendiam a escrita 
como um ato com dada finalidade ou significado. Utilizavam a escrita de modo 
puramente externo e imitativo, dissociando-a do material a ser escrito. 
Houve, entretanto, crianças que, a despeito de traçarem apenas rabiscos, 
conseguiam depois lembrar de todas as sentenças. Nestes casos, os rabiscos, embora não 
constituindo uma escrita formal, foram considerados por Luria como sendo uma 
verdadeira escrita. Em algumas entrevistas, as crianças faziam rabiscos dispostos em 
diferentes locais da folha e conferiam significado a cada um. Houve uma criança que
45 
aferiu o significado “vaca” para um traço no canto da folha. Para Luria, esta criança 
estava passando a criar um sistema de auxílios técnicos da memória, semelhante aos 
povos primitivos. Não era o rabisco que significava algo, mas sim sua posição na folha. 
Luria considerou esta como sendo a primeira forma de escrita e a chamou de ‘escrita 
topográfica’. Este tipo de escrita não pode ser considerado como um signo simbólico, 
pois tem insuficiente estabilidade para auxiliar na memória: não desvenda o significado 
do que foi anotado, é apenas uma sugestão que evoca certa reação de associação. 
Nossos experimentos garantem a afirmação de que o 
desenvolvimento da escrita na criança prossegue um longo 
caminho que podemos descrever como a transformação de um 
rabisco não-diferenciado para um signo diferenciado. Linhas e 
rabiscos são substituídos por figuras e imagens, e estas dão lugar a 
signos. Nesta seqüência de acontecimentos está todo o caminho do 
desenvolvimento da escrita, tanto na história da civilização quanto 
no desenvolvimento da criança. (LURIA, 2003c: 161) 
Quando a criança consegue fazer anotações que simbolizam o conteúdo da fala, 
ela passa ao estágio do ‘signo-símbolo’. Luria considera que a criança pode passar do 
signo não diferenciado para o diferenciado de duas formas. Pode registrar as frases 
usando rabiscos arbitrários ou fazê-lo desenhando pictogramas que registrem o 
conteúdo da idéia. 
Para investigar como a criança começa a inventar signos descritivos e 
significativos, Luria se ateve, em seus experimentos, ao conteúdo das frases que eram 
apresentadas para que as crianças grafassem. Luria observou que quando acrescentava 
quantidades às frases, conseguia fazer com que algumas crianças parassem de imitar a 
configuração da escrita do adulto para produzir uma escrita diferenciada. Neste caso, 
passavam a reproduzir quantidades nas suas escritas, o que dava significado a elas. 
Deste fato o autor inferiu a possibilidade de as origens reais da escrita estarem na 
necessidade de registrar quantidades. Quantidade, forma e cor levaram a criança à 
pictografia, ou seja, a usar o desenho para recordar. Quando o desenho deixa de ser 
apenas um exercício motor e torna-se um meio para recordar, transforma-se em uma 
atividade intelectual complexa. Luria observou esta diferenciação em crianças de 
aproximadamente quatro anos e meio, embora admita que possa ocorrer até antes. No 
entanto, quando a criança memoriza apenas ao reproduzir cor, forma e tamanho, mas
46 
não registra imagens para ajudar a memorizar, sua escrita ainda não é uma 
representação. 
Luria observou que a escrita representativa, ou seja, por imagens, foi realizada 
por crianças de, aproximadamente, cinco ou seis anos de idade. A passagem para a 
pictografia só não ocorre quando a criança aprende antes a escrita alfabética. Do 
contrário, assim como na filogênese os homens inventaram os pictogramas, a criança 
também inventa desenhos com funções representativas. No entanto, quando Luria 
realizou o mesmo experimento com crianças que já estavam em processo de 
aprendizagem da escrita formal, observou a mesma passagem do rabisco não 
representativo para a imagem representativa. 
Luria pediu para que crianças que já sabiam escrever anotassem frases para 
memorizar, mas sem usar a escrita formal. O resultado foi que as crianças que já haviam 
aprendido as letras, ao não poderem usá-las, também não produziram pictogramas, 
embora já houvessem produzido desenhos para lembrar de frases nas fases anteriores à 
aprendizagem formal da escrita. Luria concluiu com isso que o ato de escrever, muitas 
vezes, precede a compreensão do que é a escrita. 
Uma coisa parece clara a partir de nossa análise do uso dos signos 
e suas origens, na criança: não é a compreensão que gera o ato, 
mas é muito mais o ato que produz a compreensão – na verdade, o 
ato freqüentemente precede a compreensão. Antes que a criança 
tenha compreendido o sentido e o mecanismo da escrita, já efetuou 
inúmeras tentativas para elaborar métodos primitivos, e estes são, 
para ela, a pré-história de sua escrita. Mas mesmo estes métodos 
não se desenvolvem de imediato: passam por um certo número de 
tentativas e invenções, constituindo uma série de estágios, com os 
quais deve familiarizar-se o educador que está trabalhando com 
crianças de idade escolar, pois isto lhe será muito útil. (LURIA, 
2003c: 188) 
Segundo Luria, pela falta da mediação, o desenho muitas vezes não se torna uma 
escrita pictográfica. Mediação, neste caso, é alguém que ajude a criança a usar o 
desenho para registrar frases. Esta ajuda pode ser um pedido para que a criança use 
desenho para representar forma, cor e quantidade, ou uma sugestão para que a criança 
use lápis e papel para produzir registros mnemônicos. Se há mediação, o desenho, que 
inicialmente é apenas uma brincadeira, torna-se, ao longo do desenvolvimento, um meio
47 
para registro. Nem sempre a criança que desenha bem usa o desenho como meio de 
registrar a fala. O que distingue o desenho de uma pictografia é que esta é usada como 
meio para recordar ou representar algo, e não apenas como brincadeira. A criança pode 
ainda passar para a escrita simbólica quando é desafiada a escrever algo que não seja 
possível expressar por pictogramas. Quando isso ocorre, há duas opções para ela: pode 
não anotar o objeto difícil que lhe pedem, mas um outro que guarde certa relação, ou 
pode anotar algo arbitrário no lugar do objeto difícil. No primeiro caso, a criança pode 
representar somente uma parte do todo que lhe foi pedido, por exemplo, desenha 
algumas estrelas, quando lhe pedem para usar a escrita para anotar a frase: “Há 1000 
estrelas no céu”. De acordo com Luria, uma criança que é capaz de abstrair as partes do 
todo, já alcançou um nível mais alto de desenvolvimento intelectual, mostrando-se nos 
limites da escrita simbólica. 
Estritamente falando, este período primitivo da capacidade de ler e 
escrever da criança, tão interessante para o psicólogo, chega ao fim 
quando o professor dá um lápis à criança. Mas ao dizer tal coisa 
não estaremos inteiramente certos. Do momento em que uma 
criança começa, pela primeira vez, a aprender a escrever até a hora 
em que finalmente domina essa habilidade há um longo período, 
particularmente interessante para a pesquisa psicológica. Ela está 
exatamente no limite entre as formas primitivas de inscrição que 
vimos anteriormente, possuidoras de um caráter espontâneo, pré-histórico, 
e as novas formas culturais exteriores, introduzidas de 
maneira organizada no indivíduo. É durante este período de 
transição, quando a criança ainda não dominou completamente as 
novas técnicas, mas também não superou a antiga, que emerge um 
certo número de padrões psicológicos de particular interesse. 
(LURIA, 2003c: 180) 
Sendo assim, Luria observou três níveis no desenvolvimento da escrita como 
sistema mnemônico. No nível ‘pré-instrumental’, a criança imita a configuração da 
escrita formal, reproduzindo linhas em ziguezague. Neste nível a criança não entende 
que a escrita pode ter um significado e não usa o lápis e o papel para produzir registros 
mnemônicos. Na fase da ‘escrita topográfica’, ou ‘signos-estímulo’, a criança produz 
rabiscos para representar algo, diferenciando-os pelo seu local no papel. Embora neste 
nível a escrita sirva de estímulo para a criança lembrar, ainda não possui um significado
48 
próprio, de modo que não é um signo-simbólico. No nível do ‘signo-simbólico’ a 
criança produz pictogramas que simbolizam o conteúdo da fala, sendo uma escrita 
representativa por imagens. Para Luria, a passagem para a escrita representativa é um 
salto no desenvolvimento da criança. No entanto, se a criança aprende a escrever sem 
entender o significado da escrita, pode não conseguir passar para a etapa representativa. 
Disto se infere a importância de a criança entender a função representativa para poder 
compreender a função cultural da escrita. Além disso, sem a mediação do adulto, que 
ajuda a criança a perceber que pode usar o desenho para representar a fala, o desenho 
pode não evoluir a ponto de tornar-se um símbolo. 
Mas não é somente o rabisco e o desenho que fazem a criança desenvolver a 
função representativa; outras atividades também desenvolvem na criança a capacidade 
de operar com signos e instrumentos, e entender que coisas podem ser usadas para 
representar outras coisas. No experimento aqui citado, Luria buscou investigar como a 
criança usa a representação simbólica para desenvolver a capacidade de fazer registros 
mnemônicos. Em outras formas de interação, a criança também usa coisas para 
representar outras coisas, de modo que a pré-história da escrita inicia muito cedo na 
ontogênese, antes mesmo da criança aprender a usar estratégias mnemônicas. Sendo 
assim, usar a pictografia como estratégia mnemônica não é a primeira forma de escrita 
produzida pela criança. 
Através de vários estudos experimentais, Vigotski (2000) concluiu que o 
desenvolvimento da escrita é iniciado antes mesmo do nascimento da linguagem, 
porque a forma mais rudimentar da escrita é o gesto. Assim como a escrita é usada para 
representar a linguagem, o gesto também o é, de modo que ambos são parentes 
genéticos. 
Quando a criança usa os primeiros signos visuais que fazem nascer a linguagem, 
já está exercendo uma função rudimentar da escrita. Para Vigotski, o gesto, primeiro 
signo visual da criança, nada mais é do que uma escrita no ar. O gesto contém em si a 
futura escrita da criança. Vigotski cita Wundt e Stern para reiterar esta afirmação e 
mostrar como o gesto é a forma rudimentar da escrita. Segundo Wundt (apud 
VIGOTSKI, 2000) existe uma relação entre gesto e representações pictográficas da 
criança. Algumas vezes o gesto figurativo reproduz um signo gráfico e, outras, o signo é 
a fixação do gesto. No desenvolvimento da criança, a escrita pictográfica advém dos 
gestos. O mesmo ocorre na filogênese, pois entre os primitivos a escrita pictográfica 
substitui o gesto.
49 
Na ontogênese o gesto é o ponto inicial na pré-história da escrita. Conforme 
vimos no capítulo anterior, o gesto torna-se uma forma de representação para a criança 
quando o adulto atribui significado a ele. Assim, se primeiro o gesto é um reflexo da 
criança que projeta o corpo em direção ao que quer, quando o adulto alcança o que a 
criança deseja, significa seu gesto uma representação da linguagem. Quando a criança 
passa a usar o gesto para, deliberadamente, apontar para o que quer, demonstra que se 
apropriou do gesto como forma representativa, como função simbólica. Esta 
apropriação só pode ser realizada através da interação, da mediação do outro. Surge 
aqui a primeira forma de escrita na ontogênese. 
La historia del desarrollo de la escritura se inicia cuando aparecen 
los primeros signos visuales en el niño y se sustenta en la misma 
historia natural del nacimiento de los signos de los cuales ha 
nacido el lenguaje. El gesto, precisamente, es el primer signo 
visual que contiene la futura escritura del niño igual que la semilla 
contiene al futuro roble. El gesto es la escritura en el aire y el signo 
escrito es, frecuentemente, un gesto que se afianza. (VIGOTSKI, 
2000: 186) 
Segundo Vigotski, o gesto é a primeira forma de escrita e, entre ele e a escrita 
formal, os parentes genéticos são os rabiscos mecânicos, o desenho e o jogo. 
2.1.1. Os rabiscos mecânicos 
Este momento é caracterizado pelos rabiscos da criança. Os traços deixados pelo 
lápis são mais um complemento do gesto do que uma representação gráfica 
propriamente dita. Um exemplo é a observação realizada por Stern (apud VIGOTSKI, 
2000). Em um de seus experimentos, Stern observou uma criança de quatro anos 
representar a ferroada do mosquito, usando um gesto pulsante da mão com a ponta do 
lápis. Segundo Vigotski, os primeiros rabiscos da criança não são desenhos, mas sim 
gestos. Isto se evidencia pelo fato de que, ao desenhar um objeto, a criança não desenha 
todas as suas partes, mas sua configuração mais geral. Por sua vez, quando precisa 
representar um conceito abstrato, a criança faz sinal com o lápis, ao invés de desenhar. 
Cuando se le propone que dibuje el buen tiempo, el niño hace un 
gesto suave horizontal, señalando con la mano la parte inferior de 
la hoja: “Esto es la tierra”, explica y esboza a continuación unas 
confusas rayas en la parte superior: “Y esto es el buen tiempo.” En
50 
observaciones especiales nos fue posible observar la afinidad entre 
el gesto y el dibujo; obtuvimos de un niño de 5 años de edad una 
representación simbólica y gráfica a través del gesto. (VIGOTSKI, 
2000: 187) 
Aqui cabe ressaltar que Vigotski não está se referindo aos rabiscos produzidos 
como meios mnemotécnicos. O experimento de Luria visou tão somente observar como 
a criança usa o lápis e o papel para produzir registros mnemônicos. Para a psicologia 
histórico-cultural, a escrita não tem como única função a mnemotécnica, esta foi apenas 
a primeira forma de escrita na filogênese. Vigotski está tratando aqui não de registros 
mnemônicos, mas sim de desenhos. O autor está mostrando como a criança representa 
idéias através do desenho. O ponto em comum entre esta análise do autor acerca do 
rabisco e o experimento de Luria, é que ambos trazem a importância do desenho para a 
aquisição da escrita. O desenho, por ser uma forma de representação, desenvolve a 
capacidade de escrever. Isto porque, para a criança poder usar as letras para produzir os 
sons da fala, precisa primeiro entender que pode desenhar a própria fala. 
2.1.2. O jogo 
O jogo é outro momento que estabelece nexos entre o gesto e a escrita. No jogo, 
uns objetos se constituem como signos de outros, ou seja, passam a representá-los. Isto 
é o que ocorre na escrita, quando segmentos gráficos são usados para representar 
segmentos sonoros. Apesar disso, para a psicologia histórico-cultural, a simbolização e 
a imaginação não são características inerentes do jogo. 
Segundo Leontiev (2003), a representação da criança que brinca não é simbólica 
porque ela não inventa um sistema de signos que servem para generalizar a realidade. 
Quando brinca, a criança representa a realidade. O símbolo e a imaginação existentes no 
jogo estão subordinados ao real. Este é o motivo por que a brincadeira, embora seja real, 
desenvolve a representação simbólica. 
Portanto, nas premissas psicológicas do jogo não há elementos 
fantásticos. Há uma ação real, uma operação real e imagens reais 
de objetos reais, mas a criança, apesar de tudo, age com a vara 
como se fosse um cavalo, e isto indica que há algo imaginário no 
jogo como um todo, que é a situação imaginária. Em outras 
palavras, a estrutura da atividade lúdica é tal que ocasiona o
51 
surgimento de uma situação lúdica imaginária. (LEONTIEV, 
2003:127) 
Além da imaginação não ser o elemento principal da brincadeira, o prazer 
também não é. Para Vigotski, o prazer não é uma característica definidora do brinquedo 
por dois motivos: há atividades que são mais prazerosas para a criança do que brincar e, 
nos jogos de competição, o prazer está diretamente ligado ao resultado do jogo. 
We know that a definition of play based on the pleasure it gives the 
child is not correct for two reasons – first, because we deal with a 
number of activities that give the child much keener experiences of 
pleasure than play. For example, the pleasure principle applies 
equally well to the sucking process, in that the child derives 
functional pleasure from sucking a pacifier even when he is not 
being satiated. On the other hand, we know of games in which the 
activity itself does not afford pleasure – games that predominate at 
the end of the preschool and the beginning of school age and that 
give pleasure only if the child finds the result interesting. These 
include, for example, sporting games (not just athletic sports but 
also games with an outcome, games with results). They are very 
often accompanied by a keen sense of displeasure when the 
outcome is unfavorable to the child3. (VIGOTSKI, 2005: 02) 
Mas o que faz a criança querer representar a realidade? De acordo com Leontiev 
(2003), ao brincar, a criança pode realizar formas de atividade que são específicas do 
mundo adulto, como cuidar de um bebê, dirigir um carro, fazer comida. A criança quer 
dirigir, mas não pode, então recorre ao faz-de-conta. A motivação da representação é 
entender as atividades dos adultos. Quanto mais a criança conhece o mundo, mais sente 
necessidade de brincar, pois trava contato com sua incapacidade de operar com os 
objetos que os adultos operam. Por este motivo, todas as ações empregadas pela criança 
durante o jogo têm como objetivo a própria atividade representativa. Por exemplo, ao 
3 Nós sabemos que definir o jogo como algo que proporciona prazer à criança não é correto por dois 
motivos – primeiro, porque trabalhamos com um número de atividades que proporcionam para a criança 
muito mais prazer e entusiasmo que o jogo. Por exemplo, o princípio do prazer pode ser aplicado ao ato 
de sugar uma chupeta, ação que leva a criança a vivenciar o mesmo prazer que sente ao ser amamentada. 
Por outro lado, sabemos de jogos nos quais as atividades em si não proporcionam prazer à criança – jogos 
que predominam no final da pré-escola e no início da idade escolar, e que dão prazer somente se a criança 
achar o resultado positivo. Isto inclui, por exemplo, jogos esportivos (não somente esportes atléticos, mas 
também jogos com resultados). Eles são freqüentemente acompanhados de um grande senso de desprazer 
quando o resultado é desfavorável pra a criança. (Tradução livre)
52 
fazer de conta que é um motorista, a criança não tem o objetivo de chegar a algum 
lugar. Seu único propósito é fazer de conta que é um motorista. 
Segundo Leontiev (2003), o brinquedo torna-se atividade principal da criança na 
idade pré-escolar. Não devido à quantidade de vezes que brinca, mas ao papel que o 
brinquedo exerce no seu desenvolvimento mental. 
O jogo é importante para o desenvolvimento por vários motivos. Segundo 
Vigotski (2005), quando brinca de faz-de-conta, a criança torna-se consciente das regras 
de sua cultura, pois, para fazer de conta, precisa agir de acordo com estas regras. Por 
exemplo, uma criança que brinca de mãe age de acordo com os deveres que regem as 
ações da mãe (alimentar, proteger, educar) e, deste modo, assimila as regras do mundo 
adulto. No faz-de-conta, a criança age de modo mais evoluído do que o habitual e, 
assim, a brincadeira cria uma zona de desenvolvimento próximo. Portanto, não são 
apenas nos jogos de regras, como xadrez e futebol, que existem regras; estas também 
estão presentes nos jogos imaginários. 
Leontiev (2003) faz uma importante análise sobre os tipos de brincadeira da 
criança. Segundo o autor, existem características que são comuns a todos os tipos de 
brinquedo: a conexão com a realidade, a representação de uma situação imaginária, o 
uso de signos-símbolos e as regras. 
Uma das primeiras formas de faz-de-conta é a atividade generalizada. Neste tipo 
de jogo, a criança que brinca, não imita as próprias ações ou as ações de uma pessoa 
específica, mas reproduz o típico, o geral. Assim, novamente, quando brinca que é um 
motorista, sua ação corresponde às ações concretas de qualquer motorista. 
No período pré-escolar, gradativamente os jogos com enredos se tornam jogos 
com regras estabelecidas socialmente. As regras da situação imaginária passam a surgir 
não apenas das regras inerentes a uma dada ação, mas também das relações 
estabelecidas ente os membros do grupo. Por exemplo, se a criança brinca que é 
motorista, se relacionará não somente com o carro, mas também com os passageiros. 
Na idade escolar, a criança passa a fazer jogos dramáticos, nos quais reproduz 
construções artísticas, incluindo aquilo que é típico do personagem representado e não 
uma generalização qualquer. 
A dramatização e o faz-de-conta são jogos ligados à realidade e às suas regras. O 
jogo de fantasia é diferente. Nele não há ação, regra ou objetivo, mas apenas uma ação 
exterior erguida sobre uma imagem fantasiosa criada pela criança. Este tipo de jogo 
pode ser chamado de limítrofe porque está nos limites ente o jogo e o devaneio. Como
53 
este tipo de jogo não tem regra, Leontiev considera-o mais um devaneio do que um jogo 
propriamente dito. 
Quando a criança torna-se mais consciente quanto às regras, surgem os jogos 
com regras que já foram estabelecidas culturalmente. Este é o caso de brincadeiras 
como ‘pega-pega’, esconde-esconde’, ‘pique’, entre outros. Este tipo de brincadeira 
passa a ter mais objetivos, embora o maior deles seja a atividade em si. Nesta categoria 
de jogos incluem-se os que têm um propósito; por exemplo, pegar os colegas; e os que 
têm duplo propósito; por exemplo, não se deixar pegar e salvar os colegas que foram 
pegos. 
Dentre os jogos com regras definidas encontram-se ainda os jogos didáticos. 
Jogos didáticos não são exercícios escolares, são brincadeiras que desenvolvem o 
conhecimento de algum conteúdo ou uma capacidade intelectual. 
Além de existirem jogos de diversos tipos, também há diferentes materiais. 
Leontiev (2003) faz uma distinção entre brinquedos de longo alcance e especializados. 
Estes são os brinquedos que apresentam funções fixas, como os carrinhos eletrônicos e 
bonecos que se movem ou falam. Os brinquedos de longo alcance podem ser usados em 
vários tipos de jogos. Geralmente são materiais não estruturados, como varas, blocos, 
caixas etc. Embora a criança possa usar um brinquedo especializado em jogos de faz-de-conta, 
os materiais não estruturados favorecem a representação simbólica. 
Na infância há vários tipos de brinquedo: representação generalizada, jogos com 
regras, jogos com duplo propósito, jogos didáticos, jogos limítrofes e dramatização. 
Para estes jogos existem basicamente dois tipos de materiais: os brinquedos 
especializados e os de longo alcance. Um mesmo tipo de jogo pode ser observado em 
diferentes idades. Embora em todas as idades as crianças brinquem das mesmas coisas, 
elas brincam de modo diferente. O símbolo está presente em todos os tipos de jogos, até 
mesmo em jogos com regras como o futebol e o xadrez, ainda que os jogos sejam 
sempre ligados às situações reais. Ou seja, apesar de não ser uma linguagem simbólica, 
para haver jogo, a criança precisa operar com signos simbólicos. Este é o motivo porque 
o jogo é uma forma de representação e constitui um nexo entre o gesto e a escrita. A 
situação que a criança representa é real e não simbólica. No entanto, os objetos que a 
criança usa para brincar tornam-se símbolos de outras coisas. 
El segundo momento que forma el nexo genético entre el gesto y el 
lenguaje escrito nos lleva a los juegos infantiles. Como sabemos, 
durante el juego unos objetos pasan a significar muy fácilmente
54 
otros, los sustituyen, se convierten en signos suyos 
(...).(VIGOTSKI, 2000: 187) 
Por via experimental, Vigotski (2000) criou situações para investigar como as 
crianças usam coisas para representar outras coisas no jogo. Através da investigação 
pôde exemplificar a gênese do jogo. O experimento consistia no seguinte: 
(...) un libro puesto en un lado de la mesa designaba la casa; las 
llaves a los niños; el lápiz a la niñera; el reloj a la farmacia; el 
cuchillo al doctor; la tapa del tintero, al cochero, etc. A 
continuación, se les presenta a los niños una historia sencilla al 
alcance de los sujetos del experimento mediante gestos expresivos 
dirigidos a los objetos mencionados. (VIGOTSKI, 2000: 188) 
A partir deste experimento, Vigotski distinguiu quatro momentos na gênese do 
jogo em sua relação com a atividade representativa: atividade motora sem faz-de-conta; 
faz-de-conta determinado pela ação e não pelo objeto; faz-de-conta determinado pela 
linguagem; uso de objetos para representar outros objetos, independente do gesto ou 
signo convencionado. 
A etapa da atividade motora sem faz-de-conta é característica das crianças 
pequenas, que determinam suas ações através da esfera visual. Crianças muito pequenas 
não brincam de faz-de-conta, simplesmente os objetos solicitam o que fazer com eles. 
Os jogos se limitam a exercícios motores, como agarrar, morder, atirar e sacudir 
objetos. 
A etapa do faz-de-conta determinado pela ação e não pelo objeto é característica 
das crianças em idade pré-escolar. Nesta fase, as crianças podem usar objetos para 
representar outras coisas, contanto que estes lhe permitam a ação pretendida no faz-de-conta. 
O importante, neste caso, não é que o objeto usado tenha aparência semelhante ao 
que representa na brincadeira, mas que sua estrutura permita representar os gestos 
adequados para o faz-de-conta. Vigotski (2000) cita o exemplo da criança que usa uma 
vassoura para representar um cavalo. É possível que a vassoura seja usada para 
representar um cavalo porque pode ser colocada entre as pernas e permite que a criança 
imite o movimento de uma cavalgada. Neste caso, é a ação que determina o jogo de faz-de- 
conta e não o objeto. Uma criança pré-escolar não usaria um objeto que não 
permitisse os movimentos de cavalgada na brincadeira de faz-de-conta. Não usaria um 
palito de fósforo ou uma caixa para representar o cavalo. O significado está no gesto, e
55 
não no objeto. A criança aplica no objeto o gesto simbólico correspondente ao que quer 
representar. 
Aproximadamente aos quatro anos, ocorre a etapa do faz-de-conta determinado 
pela linguagem. A criança realiza jogos onde produz a designação verbal 
correspondente do objeto. A linguagem é usada para atribuir sentido a cada objeto e 
ação executados durante o faz-de-conta, ou seja, para explicar os signos. A criança 
executa a ação de brincar e, ao mesmo tempo, explica o jogo para si mesma ou faz 
acordos com o grupo sobre o que cada objeto irá representar. 
Na etapa dos objetos para representar outros objetos, independente do gesto ou 
signo convencionado, o significado do gesto passa a ser transmitido para os objetos. 
Coisas são usadas para representar outras coisas, inclusive sem os signos convencionais. 
Segundo Vigotski, a partir do momento em que a criança usa coisas para 
representar outras coisas no jogo, se apropria da capacidade de compreender símbolos, o 
que é um importante fator do desenvolvimento da escrita. As palavras escritas são 
signos da palavra falada, assim como objetos podem funcionar como signos de outros 
objetos durante o jogo. Dito de outra forma, quando a criança compreende que coisas 
podem ser usadas para representar outras coisas, também pode entender que a escrita 
representa a fala. 
Así pues, desde ese punto de vista, el juego simbólico infantil 
puede entenderse como un sistema del lenguaje muy complejo que 
mediante gestos informa y señala el significado de los diversos 
juguetes. Sólo en la base de los gestos indicativos, el juguete va 
adquiriendo su significado; al igual que el dibujo, apoyado al 
cominezo por el gesto, se convierte en signo independiente. 
(VIGOTSKI, 2000: 188) 
Para resumir o exposto até aqui acerca do jogo, podemos dizer que este não é 
definido pelo prazer e nem por ser uma atividade simbólica. No entanto, o jogo abarca 
sempre simbolismo. O simbolismo e a regra estão presentes em todos os tipos de jogos: 
representação generalizada, jogos com regras, jogos com duplo propósito, jogos 
didáticos e dramatização. Apenas os jogos limítrofes não têm regras, mas estes se 
encontram no limite entre o jogo e a fantasia pura, ou delírio. Estes tipos de jogos 
podem ser encontrados em todas as fases do desenvolvimento da criança a partir, 
aproximadamente, do final da idade pré-escolar (quatro anos). Devido ao fato de o jogo 
requerer formas de representação simbólica, ele torna-se de suma importância para o
56 
desenvolvimento da escrita pela criança, conforme mostraram os experimentos de 
Vigotski. Assim como é preciso a interação com o outro para que o gesto torne-se um 
signo representativo, o mesmo ocorre com o jogo. A criança só conseguirá representar 
situações no jogo se estiver inserida na cultura, se tiver contato com as atividades 
realizadas pelo adulto. Sem conviver com adultos não há como a criança sentir 
necessidade de imitar suas atividades. É justamente a necessidade de imitar as 
atividades adultas que leva a criança a querer jogar. 
2.1.3. O desenho 
O desenho percorre a mesma história do desenvolvimento do jogo. Primeiro o 
desenho é um gesto da mão que segura um lápis, depois passa a designar por si mesmo 
um determinado objeto e, por fim, os traços do desenho recebem um nome 
correspondente. 
Uma importante característica do desenho é que este precisa, necessariamente, 
estar ligado à linguagem para que exerça função de símbolo. Claro que esta 
característica também faz parte do jogo. Ora, o jogo só exerce função de símbolo porque 
está ligado à linguagem. No entanto, há como desenhar sem nomear os próprios 
desenhos, enquanto não há como brincar sem utilizar a linguagem. Ao se constituir 
como representação do real, o jogo é, naturalmente, uma linguagem. 
Vigotski (2000) concluiu que o desenho é uma importante etapa do 
desenvolvimento da escrita quando a criança consegue representar sua fala através dele. 
Quando a criança entende que pode representar sua fala através do desenho, pode 
compreender o sistema simbólico da escrita. Mas, nem sempre a criança usa o desenho 
para representar a linguagem. 
Nas relações entre desenho e linguagem, Ch. Bühler (apud VIGOTSKI, 2000) 
percebeu que ocorre uma gradativa evolução dos traços do desenho. Primeiro a 
designação verbal do desenho é posterior e, depois, passa a ser simultânea até que, por 
fim, a designação precede o desenho. 
Segundo Vigotski (2000), por sua forma peculiar, é possível dizer que o desenho 
é uma etapa que antecede a linguagem escrita. O desenho é mais linguagem do que 
representação propriamente dita, pois é um relato gráfico sobre algo. Ao desenhar, a 
criança, com ajuda da linguagem, representa tudo aquilo que guarda na memória. Este é 
o motivo porque costuma falar e relatar enquanto desenha. Apesar de falar enquanto
57 
desenha, nesta etapa o desenho ainda não representa as palavras, mas sim os objetos. O 
desenho é uma abstração que a criança faz do objeto. 
De acordo com Vigotski (2000), com pouca idade, a criança já entende que o 
desenho pode significar algo. Mas para entender que seu próprio desenho pode 
significar algo, a criança precisa primeiro conferir significado ao desenho do outro. No 
entanto, é errôneo acreditar que, desde o início, os traços da criança têm função de 
signo. A primeira forma de interpretar o desenho do outro não é como signo, mas como 
objeto parecido com o que representa. 
Una niña a quien mostraron el dibujo de su muñeca, exclamó: 
“!Una muñeca igual que ésta!” Es probable que pensara en una 
muñeca igual a la suya. (VIGOTSKI, 2000: 193) 
Segundo Hetzer (apud VIGOTSKI, 2000), a influência que a linguagem exerce 
sobre os desenhos infantis prova que é sobre a linguagem que se edificam todas as 
formas de simbolismo. Para estudar como o simbolismo se edifica sobre a linguagem, 
Vigotski (2000) fez uma série de estudos experimentais nos quais propunha que as 
crianças representassem frases usando signos. Os experimentos demonstraram que as 
crianças escolares passam da escrita pictográfica para a ideográfica. Nas anotações, 
havia a supremacia da linguagem sobre a escrita. Algumas crianças transcreviam com 
um desenho cada palavra da frase citada. 
“No veo las ovejas, pero allí están.” El niño la transcribía del 
siguiente modo: pintaba la figura de un hombre (“yo”), luego la 
misma figura con los ojos vendados (“no veo”), dos ovejas, un 
dedo indicador y varios árboles tras los cuales se veía a las ovejas 
(“pero allí están”). (VIGOTSKI, 2000: 194) 
Este exemplo mostra uma criança que usou a linguagem para descobrir o melhor 
modo de representar o desenho. Assim, ilustra a tese segundo a qual a linguagem é 
decisiva para o desenvolvimento da escrita e do desenho. Segundo Vigotski (2000), 
experimentos como estes ajudam a restabelecer a pré-história do desenvolvimento da 
escrita. Investigar a pré-história na ontogênese é importante para entender como a 
criança domina o complexo procedimento da conduta cultural que é a linguagem escrita. 
Para que el niño llegue a ese descubrimiento fundamental debe 
comprender que no sólo se pueden dibujar las cosas, sino también 
el lenguaje. Ese fue el descubrimiento que llevó a la humanidad al
58 
método genial de la escritura por letras y palabras, y ese mismo 
descubrimiento lleva al niño a escribir las letras. Desde el punto de 
vista psicológico este hecho equivale a pasar del dibujo de objetos 
al de las palabras. Es difícil determinar cómo se produce tal 
transición ya que las investigaciones correspondientes no han 
llegado aún a resultados determinados y los métodos de enseñanza 
de la escritura comúnmente aceptados no permiten observar este 
proceso de transición. Una cosa es indudable: el verdadero 
lenguaje escrito del niño (y no el domínio del hábito de escribir) se 
desarrolla probablemente de modo semejante, es decir, pasa del 
dibujo de objetos al dibujo de las palabras. (VIGOTSKI, 2000: 
197) 
Vigotski considera que o segredo do ensino da escrita é organizar a passagem 
natural do desenho para a escrita. Ao dominar a linguagem escrita, é preciso ainda 
aperfeiçoá-la. 
Todo el secreto de la enseñanza del lenguaje escrito radica en la 
preparación y organización correcta de este paso natural. Tan 
pronto como se efectúa y el niño domina el mecanismo del 
lenguaje escrito, le queda como misión ulterior el de 
perfeccionarlo. (VIGOTSKI, 2000: 197) 
Podemos, agora, resumir como se dá a gênese da pré-história da escrita. A 
primeira etapa é o gesto, pois antes mesmo de aprender a falar, a criança usa o gesto 
para se comunicar. O gesto, portanto, representa a fala. Os rabiscos mecânicos, o jogo e 
o desenho são os nexos genéticos que unem o gesto com a escrita. Os rabiscos 
mecânicos são gestos transformados em marcas no papel. O jogo vem como etapa 
subseqüente na pré-história da escrita. No jogo a criança utiliza coisas para representar 
outras coisas, da mesma forma que a escrita representa a linguagem. Por fim, o desenho 
é a etapa na qual a criança finalmente consegue compreender que pode representar a 
própria fala, pode desenhá-la, tal como faziam os povos primitivos ao usarem a escrita 
pictográfica. A criança que desenha idéias já pode entender o sistema de signos-simbólicos 
da escrita formal, pois entende que pode desenhar a própria fala. Entretanto, 
nem toda a criança que desenha, representa. Para que o desenho seja uma representação, 
é preciso que seja mediado pela linguagem. Quando Luria investigou o uso do desenho 
como mnemotécnica, observou crianças que, a despeito de conhecerem as letras, não
59 
compreendem a representação. Por outro lado, os experimentos de Vigotski mostraram 
que a representação é uma função que inicia muito cedo no desenvolvimento da criança. 
Além disso, as funções representativas de gesto, desenho e jogo não são etapas 
sucessivas na qual uma forma substitui a outra. A cada etapa do desenvolvimento da 
criança estas formas de representação coexistem. Todos os experimentos realizados por 
Luria e Vigotski, para observar como crianças operam com signos antes de saber ler e 
escrever, demonstraram que a escrita é um processo complexo e não linear que se 
desenvolve devido à mediação. 
Se considerarmos a escrita uma função cultural complexa, teremos que admitir 
que seu desenvolvimento não se completa quando ela já foi apropriada pela criança 
como um sistema de relações arbitrárias entre fonemas e grafemas. Mesmo quando a 
criança se apropria do sistema alfabético da escrita, esta continua tendo uma história de 
desenvolvimento. Vejamos, no próximo item, como se dá a passagem para a etapa 
superior da escrita, ou seja, para o uso do sistema formal da escrita para representar a 
linguagem. 
2.2. A passagem para a etapa superior da escrita 
Os experimentos de Luria e Vigotski mostraram que quando a criança aprende a 
escrita formal, não necessariamente domina a escrita como representação. Assim como 
o desenho pode ser para a criança apenas uma brincadeira, e não um meio de representar 
a fala, a escrita formal pode ser para a criança apenas um exercício formal, e não uma 
linguagem. Entender a escrita como representação é saber operar com ela como 
linguagem. Embora a escrita seja um sistema de signos que convencionalmente 
representam os sons da fala, para a criança operar com ela como linguagem precisa 
desprender-se do seu aspecto sonoro. Usar a escrita como linguagem significa se 
expressar por meio dela do mesmo modo natural como o fazemos através da fala. Para 
falar, não pensamos nos sons que formam as palavras. A fala é um sistema vivo de 
comunicação. Através dela ocorre a expressão, a interação, a criação e o pensamento. Se 
a escrita é ensinada desvinculada de sua importância cultural e do seu uso em situações 
reais, ela não se torna para a criança uma linguagem. Ensinar de modo puramente 
mecânico e externo as relações entre letras e sons pode levar a criança apenas a 
memorizar as letras e seus sons, mas não conseguir operar com a linguagem escrita. 
Para nosostros es evidente que el dominio de este sistema complejo 
de signos no puede realizarse por una vía exclusivamente
60 
mecánica, desde fuera, por medio de una simple pronunciación, de 
un aprendizaje artificial. Para nosotros es evidente que el dominio 
del lenguaje escrito, por mucho que en el momento decisivo no se 
determinaba desde fuera por la enseñanza escolar, es, en realidad, 
el resultado de un largo desarrollo de las funciones superiores del 
comportamiento infantil. Sólo si abordamos la enseñanza de la 
escritura desde el punto de vista histórico, es decir, con la intención 
de comprenderla a lo largo de todo el desarrollo histórico cultural 
del niño, podremos acercarnos a la solución correcta de toda la 
psicología de la escritura. (VIGOTSKI, 2000: 184) 
Com isso Vigotski não está querendo dizer que não é importante ensinar à 
criança o sistema gráfico da escrita. No entanto, o ensino das relações arbitrárias entre 
letras e sons deve estar subordinado ao ensino da escrita como linguagem, como forma 
viva de comunicação. Segundo Vigotski (2000), a criança precisa passar da escrita 
como simbolismo de segunda ordem para simbolismo de primeira ordem. Quando a 
criança escreve prestando atenção nas relações grafemas-fonemas, sua escrita é um 
simbolismo de segunda ordem. A criança nesta etapa ainda escreve os sons da palavra e 
não diretamente a linguagem. A representação das palavras pelos sons é um simbolismo 
de segunda ordem e a representação da linguagem é o simbolismo de primeira ordem. A 
autêntica passagem para a linguagem escrita ocorre quando esta se converte em um 
simbolismo de primeira ordem, ou seja, quando a criança se liberta da necessidade de 
pensar nas relações grafemas-fonemas para poder escrever. No entanto, aprender a 
relação grafemas-fonemas é um momento também importante da aprendizagem, sem o 
qual a criança não conseguirá representar sua fala utilizando o sistema de escrita. 
A. Delacroix señala acertadamente que la peculiaridad de ese 
sistema radica en que representa un simbolismo de segundo grado 
que se transforma poco a poco en simbolismo directo. Esto 
significa que el lenguaje escrito está formado por un sistema de 
signos que identifican convencionalmente los sonidos y las 
palabras del lenguaje oral que son, a su vez, signos de objetos y 
relaciones reales. El nexo intermedio, es decir, el lenguaje oral 
puede extinguirse gradualmente y el lenguaje escrito se transforma 
en un sistema de signos que simbolizan directamente los objetos 
designados, así como sus relaciones recíprocas. (VIGOTSKI, 2000: 
184)
61 
Vigotski não sistematizou o desenvolvimento da escrita em etapas sucessivas. 
Entretanto, observando sua teoria acerca da escrita, é possível observar três diferentes 
momentos no processo de desenvolvimento da escrita: escrita como representação 
simbólica na pré-história da ontogênese através do gesto, do desenho e do jogo, escrita 
como simbolismo de segunda ordem e escrita como função cultural complexa. Cabe 
aqui, mais uma vez, ressaltar que estes três momentos não foram sistematizados por 
Vigotski, constituindo mais uma interpretação da sua obra, ou melhor, uma inferência. 
Estes três momentos não ocorrem de modo linear porque há saltos bruscos de uma etapa 
para outra, rupturas e até retrocessos. Basta lembrar que há crianças que relacionam 
letras e sons, mas não entendem a função cultural da escrita. Neste aspecto, existe um 
ponto de convergência entre ontogênese e filogênese. Na filogênese foi a descoberta da 
possibilidade de desenhar os sons da fala, em vez dos objetos, o que impulsionou o 
desenvolvimento da escrita. Na filogênese, a passagem da escrita pictográfica para a 
alfabética4 ou silábica5 pode ser observada ao longo da história. Na ontogênese, os 
métodos de ensino dificultam observar a passagem que a criança faz da representação 
pictográfica para a representação dos sons da fala, e desta para a linguagem, mas os 
experimentos confirmam este gênese. Segundo Vigotski (2000), entender esta gênese é 
importante para pensar em bons métodos de ensino da escrita. A humanidade aprendeu 
que pode desenhar a linguagem em vez dos objetos. A criança precisa aprender a 
mesma coisa. Para isto, o ensino precisa organizar de modo correto a passagem natural 
do desenho do objeto para o desenho da linguagem. 
Teniendo en cuenta el estado actual de los conocimientos 
psicológicos, a muchos les parecerá muy exagerada la opinión de 
que todas las etapas examinadas por nosotros – juego, dibujo, 
escritura – pueden ser presentadas como diferentes momentos de 
desarrollo del lenguaje escrito único por su esencia. Son muy 
grandes las rupturas y los saltos que se producen cuando se pasa de 
un mecanismo a otro para que la conexión de los diversos 
momentos se manifieste con suficiente evidencia y claridad. Son 
los experimentos y el análisis psicológico los que propician 
precisamente semejante conclusión y demuestran que por muy 
4 O sistema alfabético de escrita é aquele que representa as unidades sonoras mínimas das palavras. É o 
caso da escrita latina. 
5 O sistema silábico de escrita é aquele que representa as unidades maiores das palavras, ou seja, as 
sílabas. É o caso do sistema de escrita japonês.
62 
complejo que nos parezca el proprio proceso de desarrollo del 
lenguaje escrito, por muy embrollado, fragmentado e irregular que 
parezca, visto superficialmente, se trata, de hecho, de una línea 
única en la historia de la escritura que lleva a las formas superiores 
del lenguaje escrito. La forma superior a la que nos referimos de 
pasada, consiste en que el lenguaje escrito – de ser simbólico en 
segundo orden se convierte de nuevo en simbólico de primer orden 
– Los símbolos primarios de escritura se utilizan ya para designar 
los verbales. El lenguaje escrito se comprende a través del oral, 
pero ese cambio se va acortando poco a poco; el eslabón 
intermedio, que es el lenguaje oral, desaparece y el lenguaje escrito 
se hace directamente simbólico, percibido del mismo modo, que el 
lenguaje oral. Basta con imaginarse el inmenso viraje que se 
produce en todo el desarrollo cultural del niño gracias a su dominio 
del lenguaje escrito, gracias a la posibilidad de leer y por 
consiguiente, enriquecerse con todas las creaciones del genio 
humano en el terreno de la palabra escrita para comprender el 
momento decisivo que vive que el niño cuando descubre la 
escritura. (VIGOTSKI, 2000: 197-8) 
No momento da escrita como representação simbólica na pré-história da 
ontogênese, a criança comunica e interage usando o simbolismo do gesto, do desenho e 
do jogo. No momento da escrita como simbolismo de segunda ordem, a criança aprende 
a fazer uma análise sistemática da sua fala para converter sons em letras, ou seja, 
aprende as relações grafemas-fonemas. No momento da escrita como função cultural 
complexa, a escrita torna-se um importante meio de interlocução e inserção na cultura. 
A criança aprende que pode usar a escrita para muitas coisas importantes, como por 
exemplo: obter conhecimento e prazer, aprender uma receita, redigir ou ler uma carta, 
pegar ônibus, compreender as mensagens veiculadas nas placas e letreiros do espaço 
urbano, dentre outras funções. Os três momentos do desenvolvimento da escrita não 
ocorrem por etapas sucessivas porque a aprendizagem das relações grafemas-fonemas 
requer que a criança entenda que a escrita é um importante meio de interlocução. Se a 
criança não compreender que a escrita amplia as possibilidades de ação sobre o mundo, 
provavelmente não irá aferir significado à aprendizagem das relações grafemas-fonemas. 
Neste caso, o resultado pode ser a não aprendizagem do código escrito, ou a 
aprendizagem de uma decodificação sem sentido, ao invés de um meio de interlocução.
63 
Dito de outro modo, a aprendizagem das relações grafemas-fonemas requer que a 
criança já compreenda a escrita como função cultural complexa. Entretanto, no 
momento em que a criança aprende a decodificar a escrita, há um momento em que sua 
atenção volta-se mais para as relações grafemas-fonemas; ou seja, para o modo como os 
sons se convertem em letras e vice-versa; do que para o significado da escrita como 
função cultural complexa. 
Segundo Vigotski, para a criança se apropriar da escrita como função cultural 
complexa, é preciso que se desprenda do seu aspecto sonoro. De acordo com o autor, a 
leitura silenciosa é importante para a criança se desprender do aspecto sonoro da escrita 
e passar a usá-la como linguagem. A leitura silenciosa permite maior compreensão da 
escrita porque tem um ritmo mais adequado. A vocalização atrasa e dificulta a atenção e 
a compreensão. 
El estudio de la lectura demuestra que, a diferencia de la enseñanza 
antigua que cultivaba la lectura en voz alta, la silenciosa, es 
socialmente la forma más importante del lenguaje escrito y posee, 
además, dos ventajas importantes. Ya a finales del primer año de 
aprendizaje, la lectura silenciosa supera a la que se hace en voz alta 
en el número de fijaciones dinámicas de los ojos en las líneas. Por 
consiguiente, el proprio proceso de movimiento de los ojos y la 
percepción de las letras se aligera durante la lectura silenciosa, el 
carácter del movimiento se hace más rítmico y son menos 
frecuentes los movimientos de retorno de los ojos. La vocalización 
de los símbolos visuales dificulta la lectura, las reacciones verbales 
retrasan la percepción, la traban, fraccionan la atención. Por 
extraño que pueda parecer, no sólo el proprio proceso de la lectura, 
sino también la comprensión es superior cuando se lee 
silenciosamente. La investigación ha demostrado que existe una 
cierta correlación entre la velocidad de lectura y la comprensión. 
Suele creerse que cuando se lee despacio se comprende mejor, pero 
de hecho la comprensión sale ganando con la letura rápida ya que 
los diversos procesos se realizan con diversa rapidez y la velocidad 
de comprensión corresponde a un ritmo de lectura más rápida. 
(VIGOTSKI, 2000: 198) 
A leitura em voz alta apresenta características muito distintas da leitura 
silenciosa. Na leitura em voz alta, existe um intervalo visual, no qual a voz precede os
64 
olhos para sincronizar leitura com vocalização. Um bom leitor em voz alta tem um 
intervalo maior entre os olhos e a voz, a leitura está sempre antecedendo a vocalização. 
Por sua vez, na leitura silenciosa, o bom leitor apreende mais os significados 
representados do que as relações entre letras e sons. Neste caso, o significado da leitura 
se emancipa do som. Quando a criança, em início do processo de alfabetização, faz 
leitura silenciosa, consegue, gradativamente, desprender-se do aspecto sonoro da 
escrita. Isto não significa que a leitura em voz alta seja inadequada para o processo de 
alfabetização. Ora, não há como a criança se apropriar das relações letras-sons sem 
realizar a leitura oral. A leitura oralizada é importante para que a criança aprenda as 
relações grafemas-fonemas. A leitura silenciosa é um momento posterior à vocalização, 
quando se torna necessário que a criança se desprenda do aspecto sonoro da escrita e 
passe a operar com esta do mesmo modo natural que a fala. A criança só consegue 
realizar leitura silenciosa após se apropriar das relações grafemas-fonemas. 
Vigotski considera importante que a psicologia experimental investigue a escrita 
não como um problema sensório-motor, mas como um processo psíquico mais 
complexo. Para isso, é preciso investigar como ocorre a compreensão durante a leitura e 
defini-la como sendo um momento no desenvolvimento da reação mediada por 
símbolos visuais. Para Vigotski, a compreensão não se reduz à reprodução figurativa do 
objeto e nem ao nome que corresponde à palavra fônica. A compreensão da leitura 
supõe um manejo dos signos. Para compreender é preciso estabelecer relações entre os 
diversos signos e deslocar a atenção dos signos isolados para fixá-la mais no todo. 
Quando o leitor se atém apenas a cada signo isolado, não consegue entender o sistema 
de relações do texto. Deixa de fazer aquilo que é mais importante para compreender um 
texto: estabelecer relações, destacar o importante e passar dos elementos isolados para o 
sentido do todo.
65 
2.3. Primeiras conclusões sobre o desenvolvimento da escrita e suas relações com o 
processo de ensino e aprendizagem 
Inicialmente a escrita é um simbolismo de segunda ordem porque é formada por 
um sistema de signos que, convencionalmente, representam os sons das palavras orais, 
que, por sua vez, são signos de objetos e relações reais. Assim, o nexo intermediário 
entre a escrita e o que ela representa são as relações grafemas-fonemas. Este nexo 
precisa desaparecer para que a escrita se torne um simbolismo de primeira ordem, ou 
seja, representação direta da realidade. No entanto, para que isto ocorra, é preciso que a 
criança entenda a representação simbólica. Por este motivo, todos os parentes genéticos 
da escrita, a bem dizer, o gesto o desenho e o jogo, são atividades importantes para o 
processo de aquisição da escrita. A criança precisa entender que coisas podem ser 
usadas para representar outras coisas para entender que pode usar signos para 
representar a linguagem. 
Jogar, brincar e desenhar, também são meios de expressão significados pela 
criança a partir da oralidade e da interação. Aqui se nota um elo para compreender a 
relação entre oralidade e escritura. Primeiro a oralidade é o que media a representação 
nos jogos simbólicos. A criança significa seus gestos porque o adulto lhes confere 
sentido. Esta atribuição de sentido ocorre na interação, quando o adulto responde aos 
apelos da criança. Após, o gesto evolui para o desenho e o jogo. Tanto desenho, quanto 
jogo, são, inicialmente, formas gestuais. No desenho, a criança faz movimentos com o 
lápis imitando os gestos daquilo que quer representar. No jogo, a primeira forma de 
representação ocorre quando a criança brinca de faz-de-conta usando o objeto para 
representar os gestos indicativos dos fatos ou eventos que pretende imitar. Nos demais 
momentos da gênese do desenho e do jogo, a fala passa a ser usada pela criança para 
significar o que pretende representar; a criança fala enquanto desenha e usa a palavra 
para dizer o que cada objeto representará no jogo de faz-de-conta. 
A implicação da teoria sobre o desenvolvimento da escrita da psicologia 
histórico-cultural é que, antes da aprendizagem formal da escrita, a criança precisa 
brincar, jogar e desenhar. Quando Vigotski diz que a escrita é para a criança um 
simbolismo de segunda ordem, mostra que reconhece a importância de se ensinar as 
relações grafemas-fonemas. No entanto, Vigotski discorda que este ensino sistemático 
da escrita deva se sobrepor ou preceder o ensino da escrita como linguagem, como 
forma de expressão e sistema vivo de comunicação. Para a concepção histórico-cultural, 
o objetivo maior da escolarização não deve ser o ensino das letras, mas sim o ensino da
66 
escrita como linguagem. Operar com a escrita como linguagem significa usá-la de modo 
tão natural quanto se usa a fala. Uma criança, em início do processo de alfabetização, 
precisa pensar nas relações entre letras e sons para poder escrever, mas, para que seu 
processo de alfabetização se complete, precisa se desprender do aspecto sonoro da 
escrita. Por este motivo, o ensino da função cultural da escrita deve preceder o ensino 
das letras; do contrário, as atividades de traçar as letras e conhecer seus sons não farão 
sentido para a criança. Deste modo, é possível concluir que, para a criança conseguir 
operar com a escrita do mesmo modo natural que opera com a fala, precisa primeiro 
entender que pode desenhar a própria fala e assimilar a função cultural da escrita para, 
só então, aprender sistematicamente as relações grafemas-fonemas. 
Fica evidente, na teoria de Vigotski, que o objetivo da alfabetização não deve 
ser o ensino das letras, mas a aprendizagem da linguagem escrita. O ensino das letras 
faz parte do processo de alfabetização, mas não pode se sobrepor ao ensino da escrita 
como linguagem. Quando a criança domina a linguagem escrita, um universo cultural 
novo se abre à frente, justamente porque a escrita é uma espécie de linguagem com 
características diferentes da oralidade. 
As relações entre oralidade e escrita serão enfocadas no capítulo seguinte. Não 
porque estejam à parte das conclusões da psicologia histórico-cultural, mas porque 
merecem um tratamento especial, dada sua complexa relação com a ontogênese da 
linguagem. Por ora, cabe destacar quais são as principais conclusões que Vigotski 
extraiu de seus experimentos. Ao tratar da história do desenvolvimento da escrita na 
criança, Vigotski desenvolveu quatro teses. 
A primeira tese é que a escrita pode ser ensinada para crianças de tenra idade. 
Esta conclusão advém do fato de que, se a criança pré-escolar entende a função 
simbólica no jogo, já tem condições de entendê-la na escrita. 
Por las observaciones realizadas sobre el desarrollo de niños que se 
educan en un ambiente familiar donde se utilizan habitualmente los 
libros, el lápiz y, sobre todo, donde hay niños mayores que leen y 
escriben, sabemos que un niño de 4-5 años domina 
espontáneamente la escritura y la lectura, como domina el lenguaje 
oral. El niño empieza a escribir por sí mismo algunas cifras o 
letras, a distinguirlas en los rótulos, a formar palabras con ellas (...) 
(VIGOTSKI, 2000: 200)
67 
Vigotski considera que o ensino anatomista fisiologista conduz a criança para 
uma passividade mecânica. Ao invés de enfocar o ensino como um código a ser 
memorizado e reproduzido, a escola precisa levar a criança a ler e escrever textos que 
sejam significativos e importantes. 
A segunda tese de Vigotski é que a escrita deve ser ensinada como uma 
linguagem, como uma atividade cultural complexa. A aprendizagem da escrita como 
hábito motor leva a uma escrita mecânica, e não desenvolve a linguagem escrita como 
uma atividade cultural. 
A terceira tese de Vigotski é que a aprendizagem da escrita deve ocorrer do 
modo natural. A escrita e a leitura devem fazer parte dos jogos infantis. A escrita deve, 
aos poucos, se concretizar como linguagem nas interações entre alunos e professores 
envolvidos no processo de ensino e aprendizagem. 
La enseñanza natural de la lectura y escritura requiere una 
influencia adecuada en el medio circundante del niño; tanto leer 
como escribir deben se elementos de sus juegos. (...) Es preciso 
llevar al niño, de la misma manera natural, a la comprensión 
interna de la escritura, hacer que la escritura se convierta en una 
faceta de su desarrollo. A tal fin podemos indicar sólo un camino 
general. El pedagogo debe organizar la actividad infantil para pasar 
de un modo de lenguaje escrito a otro, debe saber conducir al niño 
a través de los momentos críticos e incluso hasta el descubrimiento 
de que no sólo puede dibujar objetos, sino también el lenguaje. 
Pero este método de enseñanza de la escritura pertenece al futuro. 
(VIGOTSKI, 2000: 203) 
A leitura fônica e mecânica, destituída de sentido, acaba por frear a 
aprendizagem da leitura e da escrita e o próprio desenvolvimento cultural da criança. 
Por fim, a quarta tese de Vigotski é de que o gesto, o desenho e o jogo são 
atividades importantes para o desenvolvimento da escrita. O desenho impulsiona o 
desenvolvimento da escrita porque é uma atividade importante para aprender a operar 
com signos e suas inter-relações. Não desenhar freia o processo de aprendizagem da 
escrita. 
Resumidamente pode se concluir que, para Vigotski, o desenho, o jogo e as 
atividades simbólicas fazem parte do processo de aprendizagem da leitura e escrita. A 
escrita precisa ser ensinada de modo a tornar-se significativa para a criança. Para isto,
68 
precisa ser compreendida como uma atividade cultural complexa e como um 
simbolismo de primeira ordem, ou seja, uma linguagem em si. A constituição da escrita 
como função cultural requer que a criança entenda que ela representa uma linguagem, e 
não tão somente os sons. 
Os elementos que permeiam a passagem da escrita como simbolismo de segunda 
para simbolismo de primeira ordem são a oralidade e a interação. Todas as formas de 
simbolismo se edificam sobre a interação. O elemento que media a relação com o outro 
é o símbolo, cuja primeira manifestação é o gesto. O gesto, como já vimos, é uma 
espécie de escrita no ar. Os nexos que ligam o gesto com a escrita são todos os meios de 
representação simbólica usados pela criança ao longo do seu desenvolvimento, a bem 
dizer: o rabisco, o jogo e o desenho. Por este motivo, é possível afirmar que, para 
Vigotski, o parente genético da escrita, que é o gesto, é a forma de linguagem anterior à 
fala. O que permite a evolução da linguagem como meio de representação simbólica é a 
apropriação. No caso dos primeiros gestos da criança, esta precisa se apropriar do 
significado que o adulto imprime ao seu ato. Em relação à escrita, a criança precisa, 
primeiro, se apropriar da idéia de que coisas podem ser usadas para representar outras 
coisas, o que ocorre no desenho e no brinquedo. Em uma etapa posterior, a criança 
precisa entender que pode desenhar os sons da fala. Se o sistema de escrita vigente na 
cultura da criança for silábico, caso do japonês, precisará entender que pode representar 
as sílabas da fala. Se o sistema de escrita for o alfabeto fonético, precisará compreender 
que escrever consiste em decompor a fala em unidades mínimas e representá-las usando 
grafemas. Mas este não é o momento final do desenvolvimento da escrita. Se 
inicialmente a criança escreve atendo-se aos sons da fala, precisará, em uma etapa 
posterior, se desprender do aspecto sonoro da escrita e passar a utilizá-la como 
linguagem. A escola contribui para que a escrita seja usada como linguagem quando 
organiza o ensino de modo a torná-la necessária para a criança. Além disso, outro 
aspecto que ajuda a criança a se desprender do aspecto sonoro da escrita é a leitura 
silenciosa. Ambos, leitura silenciosa e escrita como necessidade, requerem ou 
pressupõem a oralidade como elemento mediador da construção da escrita. 
Assim, conforme já foi dito, é possível inferir três principais momentos no 
desenvolvimento da escrita: representação simbólica na pré-história da ontogênese 
através do gesto, desenho e jogo; simbolismo de segunda ordem e, por fim, uso da 
escrita como função cultural complexa. Ou seja, para aprender a escrever a criança 
precisa entender que pode usar coisas para representar outras coisas, o que faz no gesto,
69 
no desenho e no jogo. Estes momentos não ocorrem em etapas sucessivas porque antes 
de aprender o aspecto sonoro da escrita a criança precisa significá-la como uma 
atividade cultural. Do contrário, é possível que a criança aprenda a decodificar a escrita, 
sem, entretanto, operar com ela como linguagem. Os fatores do desenvolvimento da 
escrita são todas aquelas atividades que propiciam sua apropriação como função cultural 
complexa. No momento da escrita como representação simbólica na pré-história da 
ontogênese, os fatores são o gesto, o jogo e o desenho, além de outras formas de 
representação. No momento da escrita como simbolismo de segunda ordem, os fatores 
do desenvolvimento são o ensino das relações entre letras e sons e a leitura silenciosa. 
No momento da escrita como função cultural complexa, os fatores do seu 
desenvolvimento são as atividades que envolvem os usos sociais da escrita. 
A partir daqui, podemos começar a falar da relação professor aluno no processo 
de desenvolvimento da escrita. Gesto, jogo, desenho, leitura silenciosa, ensino das 
relações entre letras e sons e escrita nos seus usos sociais só se constituem como fatores 
do desenvolvimento da escrita se houver a mediação da interação e da oralidade. O 
desenvolvimento da escrita é um processo de interação, mediação e símbolos. 
Simultaneamente, a interação media a apropriação da escrita como sistema de signos 
simbólicos e os símbolos mediam a apropriação da escrita. Todos estes fatores do 
desenvolvimento da escrita só podem se desenvolver se houver mediação e interação 
que levem a criança a se expressar e interagir com o meio. 
Enfocaremos, no próximo capítulo, as relações entre pensamento, oralidade e 
escrita no processo de alfabetização. A partir desta análise, tentaremos também enfocar 
as implicações pedagógicas da psicologia histórico-cultural para a alfabetização. Estas 
duas questões serão tratadas de modo inter-relacionado, visto que a relação entre 
oralidade e escrita está no cerne das interações pedagógicas entre professores e alunos 
envolvidos no processo de alfabetização. 
Das categorias de análise citadas neste capítulo, serão objeto de investigação no 
livro didático os seguintes fatores do desenvolvimento da escrita: o gesto, o desenho, o 
jogo, a leitura silenciosa, o ensino das relações grafemas- fonemas, a leitura silenciosa e 
o ensino da escrita como necessidade. Será feita uma investigação de como estes fatores 
aparecem tanto nos exercícios do livro, quanto no seu texto para os professores. Mas, 
primeiramente, teremos que enfocar, no próximo capítulo, os três momentos do 
desenvolvimento da escrita levando em conta o processo de interação entre professor e
70 
aluno no desenrolar destes momentos e, principalmente, as relações entre oralidade e 
escrita no processo de alfabetização.
71 
3. RELAÇÕES ENTRE ORALIDADE, PENSAMENTO E ESCRITA 
A proposta deste capítulo é revisitar os três momentos do processo de 
alfabetização - representação simbólica na pré-história da ontogênese da escrita; 
aprendizagem da escrita como simbolismo de segunda ordem; escrita como função 
cultural complexa -, focando mais as relações entre oralidade e escrita no processo de 
alfabetização. A partir desta reflexão, serão delineadas as primeiras considerações 
acerca das implicações da psicologia histórico-cultural para a alfabetização. Portanto, 
serão três as variáveis de análise deste capítulo: as relações entre pensamento e 
linguagem, as relações entre oralidade e escrita no processo de alfabetização e as 
prováveis implicações da psicologia histórico-cultural para o ensino e aprendizagem da 
leitura e escrita. A proposta deste capítulo parece ampla, mas é factível. Falar da 
relação entre oralidade e escrita no processo de aquisição da escrita significa falar desta 
como linguagem. A escrita, para Vigotski, é uma linguagem diferente da fala, porém 
com ela inter-relacionada. A concepção da escrita como linguagem está implícita em 
toda a psicologia histórico-cultural. É por este motivo que não é possível falar das 
implicações da teoria de Vigotski para a alfabetização sem falar da relação entre 
oralidade e escrita. 
3.1. A linguagem e seu desenvolvimento para a psicologia histórico-cultural 
Antes de relacionar a oralidade com a escrita e o pensamento, vamos, primeiro, 
conceituar linguagem e tratar da sua ontogênese. De acordo com Luria (1994), a 
linguagem pode ser entendida como um processo de transmissão de informações que 
emprega recursos da língua e pode se apresentar em duas formas de atividades: 
transmissão da informação, ou comunicação, e veículo de pensamento. A linguagem 
como veículo de informação requer a participação de interlocutores, enquanto a 
linguagem como veículo de pensamento ocorre quando o homem fala para si. No 
entanto, isto não significa que a linguagem é um meio de pensamento. A linguagem é 
um meio de expressão que, por um complexo sistema de significados, é unida com o 
pensamento pelo significado. 
O significado é o que caracteriza a linguagem humana. Vigotski (1993) 
investigou as relações entre pensamento e linguagem na ontogênese e na filogênese. O 
autor observou dois extremos no tratamento dado pelas psicologias da sua época às 
relações entre pensamento e linguagem. Por um lado, algumas correntes de psicologia
72 
tratavam o pensamento e a linguagem como dois processos plenamente dissociados, 
separados, Por outro lado, outras correntes da psicologia concebiam pensamento e 
linguagem como dois processos fundidos, indistintos. 
Segundo Vigotski, o estudo das relações entre pensamento e linguagem requer 
um método investigativo que não decomponha pensamento e linguagem em elementos 
isolados. A decomposição de uma unidade complexa em elementos isolados é um tipo 
de análise que faz com que as propriedades inerentes ao todos sejam perdidas, 
provocando um desmembramento. Vigotski (1993) usa como exemplo a análise química 
da água. A decomposição da água em seus elementos químicos mínimos, - hidrogênio e 
oxigênio -, não permite o entendimento do que é água. Do mesmo modo, quando a 
fonética e a semântica clássicas provocam um divórcio entre som e significado e 
estudam a palavra desintegrada em elementos isolados, torna-se estéril no que tange 
levar à compreensão do que é linguagem, como esta se desenvolve e quais suas relações 
com o pensamento. A solução apresentada por Vigotski para o estudo das relações entre 
pensamento e linguagem é a busca de um método que desmembre o todo a ser estudado 
em propriedades que não se decompõem, que sejam inerentes a uma dada totalidade 
enquanto unidade. Vigotaki concluiu que, para o estudo das relações entre pensamento e 
linguagem, a unidade que não se deixa decompor e contém as propriedades inerentes ao 
pensamento verbalizado é o significado da palavra, ou seja, o aspecto interno da 
palavra. 
O significado pertence ao reino do pensamento e da linguagem, sendo parte 
inalienável da palavra. Sem significado a palavra é som vazio, deixa de pertencer ao 
reino da linguagem. Mas a palavra nunca tem apenas um significado, pois ela expressa 
generalizações. O significado da palavra expressa sempre uma generalização. Uma 
vivência ou conteúdo só pode ser comunicado a outra pessoa se houver uma inserção 
deste conteúdo numa determinada classe e grupo de fenômenos, o que requer 
generalização. Assim, só há comunicação se há generalização. As formas superiores de 
comunicação psicológica só são possíveis porque o homem reflete o pensamento de 
modo generalizado. Isto significa que, quando dizemos uma palavra, ela não designa um 
objeto único, mas sim uma classe de objetos. A palavra não é, portanto, uma 
propriedade do objeto, não é um nome próprio. Por exemplo, quando dizemos a palavra 
‘mesa’ nos referimos a toda uma classe de móveis caracterizados pela mesma função e 
configuração geral. Usamos a palavra ‘mesa’ para referir a diversos tipos de mesa: 
madeira, fórmica, mármore, plástico etc. Algumas palavras abarcam generalizações
73 
mais simples, como é o caso da palavra “mesa”. Há, entretanto, outras palavras que 
abarcam generalizações muito mais complexas, como é o caso dos conceitos científicos, 
sobre o qual trataremos mais adiante. Além da generalização, existe outra característica 
da palavra, analisada por Luria, que é sua multiplicidade de significações, ou seja, a 
polissemia. Assim, há palavras que abarcam significações distintas. 
O desenvolvimento da linguagem da criança transcorre em direção da sua 
apropriação do significado generalizado da palavra. Por este motivo, Vigotski entende 
que uma criança pode, aparentemente, apresentar amplo vocabulário, mas, de fato, não 
ter ainda atingido o pleno desenvolvimento da linguagem. Para Vigotski (1993) uma 
criança de dois anos de idade não é capaz de realizar uma operação tão complicada 
quanto ter consciência da linguagem. A descoberta do significado da linguagem é um 
processo genético complexo, que passa por níveis mais primitivos de comportamento. 
Nas primeiras fases do desenvolvimento a criança domina mais a estrutura externa entre 
palavra e objeto do que a relação interna entre signo e significado. 
A partir destas considerações acerca do desenvolvimento da linguagem, Vigotski 
mostra que as relações entre pensamento e linguagem são variáveis ao longo do 
desenvolvimento. Ora, se a generalização expressa no significado da palavra é um elo 
que une pensamento e linguagem e, se o desenvolvimento da compreensão do 
significado generalizado é posterior ao desenvolvimento da fala da criança, isto 
demonstra que pensamento e linguagem são dois processo distintos. De acordo com 
Vigotski (1993), tanto na ontogênese, quanto na filogênese, pensamento e linguagem 
têm raízes genéticas distintas, constituindo-se processos que, ao longo do 
desenvolvimento, se juntam e se separam várias vezes. 
Enquanto nos homens o pensamento e a linguagem são dois processos distintos 
que se juntam em vários momentos, nos animais superiores o pensamento e a 
linguagem, além de serem processos genéticos distintos, são sempre separados. Estas 
premissas foram concluídas através dos experimentos de Köhler (apud VIGOTSKI, 
1993). Os experimentos de Köhler demonstraram que os macacos antropóides têm 
capacidade de produzir uma grande quantidade de fonemas. Por este motivo, estes 
macacos conseguem usar sons para descarregar emoções e manter contato psicológico 
com outros seres da mesma espécie. Além disso, podem fazer uso de alguns 
instrumentos rudimentares. No entanto, os sons produzidos pelos macacos antropóides 
nunca possuem um significado estável. Quanto ao uso de instrumentos, os macacos são 
capazes de usar uma vara para alcançar uma fruta no topo da árvore ou qualquer outra
74 
atividade do gênero. No entanto, só podem usar instrumentos que estejam ao alcance de 
sua visão, não são capazes de criar instrumentos de trabalho. Se não houver uma vara 
para alcançar uma fruta ao alcance de suas mãos, os macacos não serão capazes de criar 
uma. Disto se infere que, nos macacos antropóides, a linguagem nunca é usada como 
função de signo e instrumento, não constituindo atividade intelectual. Ou seja, entre os 
macacos antropóides o pensamento e a linguagem encontram-se plenamente distintos. 
Na história humana do desenvolvimento da linguagem também houve um 
período de inteligência prática e pré-lingüística, voltada para resolução de problemas 
ligados às necessidades de sobrevivência. Conforme já vimos, no desenvolvimento 
histórico do homem, a aquisição da linguagem é posterior ao trabalho e ao invento do 
emprego de instrumentos para resolver problemas de ordem prática. Sendo assim, a 
semelhança que existe entre o intelecto do homem e dos macacos antropóides é o 
rudimento de uso de instrumentos. A semelhança que existe entre a linguagem humana 
e a dos macacos antropóides é a fonética da fala, a função emocional e os rudimentos da 
função social da linguagem. No entanto, existe uma diferença fundamental na 
linguagem do homem e do macaco. Nos macacos antropóides nunca há uma fusão entre 
pensamento e linguagem, ambos são processos distintos. No homem, o pensamento e a 
linguagem apresentam raízes genéticas diferentes, pois existem fases de pensamento 
não verbal. Apesar disso, existe, no homem, uma estreita relação entre pensamento e 
linguagem. Na filogênese existem fases pré-lingüísticas no desenvolvimento da 
inteligência e pré-intelectuais no desenvolvimento da linguagem. Isto significa que, no 
desenvolvimento histórico do homem, houveram momentos de inteligência prática sem 
uso da linguagem e, por outro lado, produção de sons meramente como descarga 
emocional, destituída de inteligência. No entanto, a linguagem propriamente dita foi 
criada pelos homens em função das necessidades surgidas no processo de trabalho. É na 
ontogênese que se observa a produção de sons apenas para contato social e descarga 
emocional. 
Na ontogênese há fases de pensamento pré-lingüístico. Segundo Bühler (apud 
VIGOTSKI, 1993) a criança entre dez e doze meses encontra-se na idade do chimpanzé. 
A criança nesta fase já realiza certas invenções importantes para seu desenvolvimento, 
mas apenas através do pensamento instrumental, destituído de linguagem. As ações da 
criança desta idade são portadoras de sentido, mas, ainda assim, são independentes da 
linguagem. A criança pode balbuciar, berrar e falar algumas palavras, mas estas são pré-intelectuais, 
não têm nada em comum com o desenvolvimento do pensamento. A
75 
linguagem da criança nesta fase é predominantemente emocional. É o contato social 
rico da criança que vai dar lugar ao desenvolvimento dos recursos comunicativos. 
Segundo Vigotski (1993), no primeiro momento do desenvolvimento da 
linguagem os sons emitidos pela criança não têm significado, funcionando mais como 
reflexo. Mas, logo nos primeiros meses de vida da criança, a reação vocal, 
gradativamente, assume a função de contato social. Aproximadamente aos dois anos de 
idade a criança apresenta um vocabulário rico. No entanto, isto não significa que ela já 
domina plenamente a linguagem e reconhece as relações signos-significados. De acordo 
com Vigotski, embora uma criança de dois anos aparentemente domine todo o 
vocabulário, sua linguagem ainda não abarca as generalizações mais científicas e 
complexas. Por exemplo, um gato, para uma criança de três anos, é seu animal de 
estimação fofinho que faz ‘miau’. A criança de três anos ainda não reconhece o gato 
como um animal, pertencente à classe dos mamíferos e à família dos felídeos. 
Ante todo es increíble que un niño de año y medio o dos, cuando 
su pensamiento se halla en una fase extremadamente primitiva, sea 
capaz de hacer un descubrimiento que exige una inmensa tensión 
intelectual. Por eso es dudoso que el niño pequeño posea una 
experiencia psicológica tan compleja que le permita comprender la 
relación entre el signo y el significado. Como han demostrado los 
experimentos, es frecuente que incluso niños de más edad y adultos 
no lleguen a tal descubrimiento a lo largo de toda su vida; no 
alcanzan a comprender el significado convencional de la palabra lo 
mismo que no comprenden la relación entre el signo y su 
significado. (VIGOTSKI, 1993: 174) 
Assim, a primeira fase do desenvolvimento da linguagem da criança é afetiva 
volitiva. Na segunda fase o desenvolvimento da linguagem é intelectual, a criança 
descobre sua função simbólica. Ou seja, o desenvolvimento do pensamento é anterior ao 
desenvolvimento da linguagem. Aproximadamente aos dois anos de idade as linhas do 
desenvolvimento do pensamento e da linguagem se encontram e coincidem, dando lugar 
a um comportamento exclusivamente humano. A linguagem se intelectualiza e o 
pensamento se verbaliza. A criança começa a ampliar seu vocabulário, não só no que se 
refere a empregar maior número de palavras, mas, principalmente, a compreender 
significados que expressam generalizações mais complexas, caso dos conceitos 
científicos.
76 
Vigotski (1993) diferencia, no desenvolvimento da linguagem, os 
conhecimentos espontâneos dos conhecimentos científicos. Ambos se desenvolvem de 
modo diferente. Os conhecimentos espontâneos são generalizações simples, enquanto os 
conhecimentos científicos são generalizações complexas. As generalizações mais 
simples são aquelas que têm conexão direta com o objeto que representam. Por 
exemplo, a palavra ‘mesa’. Generalizações científicas ou conceituais vêm de palavras 
que abarcam características não diretamente observáveis através da experiência, mas 
apenas através do estabelecimento de relações dinâmico-causais. Tais palavras, para 
serem aprendidas, exigem um ensino mais sistemático. A importância da aprendizagem 
dos conceitos científicos reside no fato de que estes permitem ao homem desenvolver 
modos mais elaborados de pensamento lógico, abstrato e racional, ou seja, as funções 
psíquicas superiores. O conceito científico é uma forma mais evoluída de palavra, pois 
permite ao homem estabelecer maior número de relações. No entanto, os conceitos 
científicos não podem ser simplesmente assimilados, eles exigem desenvolvimento de 
funções como atenção arbitrária, memória lógica, abstração, comparação e 
discriminação. 
La experiencia pedagógica nos enseña no menos que la 
investigación teórica que la enseñanza directa de los conceptos 
resulta de hecho imposible y pedagógicamente infructuosa. El 
maestro que trate de seguir ese camino por lo general no 
conseguirá más que una assimilación irreflexiva de palabras, un 
simple verbalismo, que simula e imita los correspondientes 
conceptos en el niño, pero que de hecho encubre un vacío. En tales 
casos, el niño no adquiere conceptos, sino palabras, asimila más 
con la memória que con el pensamiento y se manifiesta impotente 
ante todo intento de emplear con sentido los conocimientos 
asimilados. En esencia, este procedimiento de enseñanza de los 
conceptos es el defecto fundamental del método verbal de 
enseñanza, puramente escolástico, que todos condenan. Este 
método sustituye el dominio de los conocimientos vivos por la 
asimilación de esquemas verbales muertos y hueros. (VIGOTSKI, 
1993: 185) 
Para Vigotski (1993), como o desenvolvimento dos conhecimentos científicos 
requer ensino sistematizado, a escola é um lugar privilegiado para sua aprendizagem.
77 
Quem passou pelo ensino escolar e teve acesso aos conhecimentos científicos estabelece 
mais relações e coordena melhor as palavras do que quem tem experiências limitadas. 
Além do significado generalizado, o significado da palavra também é dado 
através de outros fatores, como entonação e contexto de emprego da palavra. De acordo 
com Luria (1994), o emprego da palavra implica sempre na escolha de um significado 
entre muitos possíveis. Uma palavra pode ter vários significados, não só porque designa 
um grupo de objetos ao invés de cada objeto individualmente, mas também porque suas 
significações variam de acordo com o contexto. 
O sentido da palavra, que depende da tarefa concreta que o sujeito 
tem diante de si e da situação concreta em que se emprega a 
palavra, pode ser totalmente diferente embora exteriormente 
permaneça o mesmo. Por exemplo, a palavra “dez” tem sentidos 
inteiramente distintos na boca de uma pessoa que espera um ônibus 
e na boca do aluno que acaba de prestar exames; ela tem sentido 
diferente para a pessoa que espera o ônibus nº 3 e vê chegar à 
parada o nº 10 e para a pessoa que vê chegar o ônibus que tanto 
esperara. A palavra “tempo” tem sentidos inteiramente diferentes 
quando empregada pelo serviço de meteorologia ou quando, 
pronunciada por uma pessoa que, após longa conversa, levanta-se e 
diz: “bem, o tempo!”, querendo com isto dizer que a conversa está 
terminada; ela adquire um terceiro sentido na boca de uma velha 
que olha com reprovação para os jovens e diz: “que tempos”, 
querendo externar seu desacordo com as concepções e os costumes 
da nova geração. (LURIA, 1994: 22-3) 
A entonação é outro fator de mudança de sentido de uma palavra. Nas relações 
de emprego vivo da linguagem, a entonação, assim como o contexto, tem grande 
importância para o significado da palavra. A entonação é capaz de mudar o sentido da 
palavra. 
Basta pronunciar a palavra besta, uma vez sem qualquer entonação 
especial, e em outra com a entonação humilhante besta! para lhe 
dar o sentido de pessoa curta de inteligência, tola, simplória, 
pedante, etc.; a palavra pamonha, pronunciada sem entonação 
especial, significa uma espécie de bolo de milho verde 
condimentado; pronunciada com entonação especial, essa mesma 
palavra adquire o sentido de pessoa tola. (LURIA, 1994: 23)
78 
A entonação, a capacidade de generalização e abstração e o contexto, são os 
fatores que produzem a multiplicidade do significado da palavra. No emprego vivo da 
língua, todos estes fatores influem na significação. Por este motivo, o uso real da 
palavra é um processo de escolha do sentido adequado entre todos os possíveis 
significados da palavra. Sendo a palavra um sistema de múltiplos significados, é 
fundamental para a psicologia da comunicação e do pensamento compreender as 
relações entre pensamento e linguagem à luz do problema da significação. Para haver 
comunicação, é preciso haver significação e um sistema de signos que permitam a 
generalização. A comunicação, para a transmissão e compreensão de idéias, exige a 
linguagem humana, formada por um conjunto de signos. A comunicação sem signos é 
tão impossível quanto a comunicação sem significado. 
O significado pode ser visto como fenômeno da linguagem e do pensamento 
porque é, ao mesmo tempo, linguagem e pensamento. Como o significado é uma 
unidade do pensamento verbalizado, o problema da relação entre pensamento e 
linguagem deve ser de análise semântica, do sentido da linguagem e do significado da 
palavra. O significado da palavra é definido pelo contexto e pela entonação, presentes 
nas situações de emprego vivo da língua. Além disso, o significado expressa a 
capacidade que a palavra tem de generalizar. A generalização corresponde ao ato verbal 
do pensamento e, graças a ela, o pensamento reflete a realidade na consciência 
qualitativamente diferente do modo como o faz a sensação imediata. A generalização 
está no bojo das relações entre pensamento e linguagem. As formas superiores de 
comunicação psicológica só são possíveis porque o homem reflete a realidade no 
pensamento de modo generalizado. A generalização realizada no significado da palavra 
é o ato do pensamento. O significado é a condição sem a qual a palavra não existe. 
Isto mostra que na ontogênese as raízes genéticas do pensamento e da linguagem 
são distintas. Encontra-se no desenvolvimento da linguagem infantil uma fase pré-intelectual, 
uma etapa pré-lingüística do desenvolvimento do pensamento. Até 
determinado momento, pensamento e linguagem seguem linhas distintas, 
independentes. Quando pensamento e linguagem se encontram, o pensamento se faz 
verbal e a linguagem se faz intelectual. Diante disso, é preciso reconhecer a importância 
dos processos da linguagem interna no desenvolvimento do pensamento. A linguagem 
egocêntrica, que é o ato de a criança falar de si para si, resulta quase ininteligível para o 
meio mas, apesar disso, não é uma linguagem interna e sua origem é sempre social. A 
linguagem egocêntrica pode se tornar facilmente linguagem interna, mas isto não ocorre
79 
porque a linguagem egocêntrica se converte em interna. O que ocorre é uma mudança 
de função da linguagem. 
Para Piaget (apud VIGOTSKI, 1993), o pensamento da criança é mais 
egocêntrico do que o do adulto e constitui uma fase de transição entre o autismo e o 
pensamento socializado. Na concepção de Piaget, o momento primeiro do 
desenvolvimento infantil é o autismo. O pensamento realista se desenvolve através da 
coação produzida pela meio social. Piaget vê as raízes do egocentrismo em duas 
circunstâncias: na a-sociabilidade da criança e na sua natureza original voltada para a 
atividade prática. 
Ao analisar as hipóteses e os fundamentos factuais que levaram Piaget a 
conceber o egocentrismo como fator indiscutível no desenvolvimento da criança, 
Vigotski (1993) lembra que, ao estudar a linguagem, Piaget conclui que as conversas 
das crianças podem ser divididas em dois grandes grupos: a linguagem egocêntrica e a 
linguagem socializada. A linguagem egocêntrica seria um monólogo caracterizado pelo 
fato de a criança falar de si para si, não se colocar no ponto de vista do interlocutor e 
não preocupar-se com a compreensão mútua. Simplesmente a criança ocupa seus atos 
com falas particulares durante suas atividades. A linguagem social, por sua vez, seria o 
ato de comunicação em si, através do qual a criança comunica, critica, pergunta, pede, 
ordena, etc. 
Com o objetivo de compreender a função da linguagem no comportamento da 
criança, Vigotski (1993) realizou, em colaboração com Luria e Leontiev, um estudo 
clínico para compreender o que suscita a linguagem egocêntrica da criança e qual sua 
função no comportamento. Neste experimento, Vigotski, Luria e Leontiev organizaram 
o comportamento da criança ao modo da psicologia experimental de Piaget, com a 
diferença de que incluíram uma série de complicadores do comportamento. Por 
exemplo: para a criança desenhar, a situação era dificultada através da falta de lápis de 
alguma cor. Através deste estudo, Vigotski observou que ao deparar-se com fatores que 
dificultam sua ação, a criança tenta assimilar a situação complicada falando de si para 
si. Na ausência de complicadores ocorre um decréscimo da linguagem egocêntrica. 
Enquanto as crianças mais novas usavam a linguagem egocêntrica para planejar uma 
ação imediata e assimilar a situação complicada, as crianças mais velhas escutavam, 
refletiam e, depois, encontravam uma saída. Ao serem incitadas a dizer o que estavam 
pensando, as crianças mais velhas davam respostas que se assemelhavam ao 
pensamento em voz alta dos pré-escolares. Através desta observação, Vigotski concluiu
80 
que a mesma operação que entre os pré-escolares se realiza em voz alta, realiza-se no 
aluno escolar em forma de linguagem silenciosa. 
A partir deste experimento, Vigotski concluiu que a linguagem egocêntrica, 
além de função de expressão, descarga e acompanhamento do desempenho da criança, 
torna-se facilmente meio de internalização. Na medida em que se desenvolve a 
atividade da criança, a linguagem verbal externa se internaliza, ajudando a criança a 
elaborar melhor seu pensamento. Na idade escolar ocorre uma rápida extinção da 
linguagem egocêntrica, o que, segundo Vigotski, permite supor que a linguagem 
egocêntrica é uma forma de pensamento verbalizado que ajuda a elaborar a linguagem 
interna. Sendo assim, a linguagem egocêntrica é um momento do processo de 
internalização da criança, pois a leva a elaborar o próprio pensamento. 
Assim, embora a linguagem egocêntrica seja caracterizada pelo ato de falar de si 
para si, ela não constitui um indicativo de que a fala ou o pensamento da criança é 
egocêntrico. Para Vigotski a função da linguagem é comunicar, relacionar socialmente e 
influenciar os circundantes. A linguagem primordial da criança é social. A linguagem 
egocêntrica surge mais tarde no desenvolvimento da criança e não deixa de ser social, 
pois não é dissociada da realidade e da atividade prática e adaptação real da criança, 
mas sim um momento composicional da atividade racional. A linguagem egocêntrica se 
intelectualiza e ocupa a mente nas ações primárias e racionais, servindo de modelo para 
formação da intenção em uma atividade mais complexa da criança. Por este motivo, a 
atividade e a prática são os momentos que desvelam a função da linguagem egocêntrica. 
Além da fala egocêntrica, a criança passa ainda por uma fase na qual opera de 
modo ingênuo com a linguagem. Neste aspecto, Vigotski (1993) considera que o 
desenvolvimento da linguagem não se difere do desenvolvimento de outros processos 
psíquicos. Em todas as operações intelectuais a criança passa por uma fase ingênua de 
emprego de signos e instrumentos. Assim, por exemplo, antes de internalizar as 
operações matemáticas, a criança passa em por uma fase em que precisa contar com os 
dedos. A linguagem egocêntrica nada mais é do que a operação externa, ou seja, um 
momento do desenvolvimento da linguagem. No desenvolvimento da linguagem, depois 
de sua fase pré-intelectual, ocorre a operação ingênua, seguida da linguagem 
egocêntrica e, por fim, a operação interna. Como exemplo de operação ingênua Vigotski 
cita o emprego pela criança das estruturas e formas gramaticais antes de compreender as 
estruturas e operações lógicas correspondentes a estas formas. A criança emprega 
palavras como “porque”, “quando”, “se”, antes de dominar as relações causais,
81 
temporais e adversativas. O domínio da sintaxe da linguagem é anterior à sintaxe do 
pensamento. 
Apesar de haver o momento do desenvolvimento no qual pensamento e 
linguagem se unem, Vigotski não considera que obrigatoriamente o pensamento e a 
linguagem estão inter-relacionados no pensamento da pessoa adulta. Segundo Vigotski 
(1993), algumas zonas de pensamento, como o instrumental, o técnico e a inteligência 
prática, não guardam relação com o pensamento verbal. Além disso, o autor considera 
que a linguagem que tem uma função emocional-expressiva, não pode ser considerada 
uma atividade intelectual no sentido estrito do termo. Isto não significa que Vigotaki 
separa linguagem e pensamento de volição e afeto. Pra Vigotski, o afeto é um fator 
importante na relação entre pensamento e linguagem. Segundo o autor, a separação 
entre a parte intelectual e a parte afetiva e volitiva da consciência é um defeito que está 
contido na raiz da psicologia tradicional. Para o autor, quem separou o pensamento do 
afeto impossibilitou a explicação das causas do próprio pensamento, e inviabilizou o 
estudo da influência do pensamento sobre a parte afetiva da vida psíquica. 
Tanto o significado da palavra, quanto o desenvolvimento da linguagem, 
dependem sempre do contexto, da inserção da criança no meio histórico-cultural. A 
linguagem interna se desenvolve mediante transformações funcionais e estruturais. As 
estruturas da linguagem que a criança adquire na sua convivência com o meio 
convertem-se em estruturas fundamentais do seu pensamento. Por este motivo, é 
possível afirmar que o desenvolvimento da linguagem e do pensamento ocorre através 
da experiência sócio-cultural da criança. Embora o pensamento e a linguagem sejam 
dois processos distintos, no que se refere às suas raízes genéticas e, embora o 
desenvolvimento do pensamento seja anterior à linguagem, o pensamento da criança 
evolui em função do domínio dos meios sociais do pensamento, ou seja, em função da 
linguagem. 
Quanto à linguagem escrita, Vigotski considera que esta pressupõe, sempre, a 
existência da linguagem interior verbal. Por outro lado, a linguagem escrita provoca o 
aprimoramento da linguagem interior, assim como a fala egocêntrica provoca o 
aprimoramento do pensamento. Isto significa que, quando a criança fala sozinha em voz 
alta, ela melhora seu pensamento. É por este motivo que a fala egocêntrica ocorre mais 
frequentemente quando a criança está envolvida em um problema a ser resolvido. 
Quando sente necessidade de resolver um problema a criança recorre à fala egocêntrica 
porque esta a ajuda a organizar seu pensamento e chegar a uma solução. No entanto,
82 
para haver linguagem egocêntrica, é preciso já haver certa linguagem interior. A 
linguagem interior, como já vimos, evolui de uma fase pré-lingüística para uma fase 
lingüística na medida em que a criança se apropria dos elementos da cultura onde está 
inserida. Quase o mesmo ocorre com a escrita. Para que a criança possa escrever, 
precisa já ter desenvolvido certo pensamento verbal. Entretanto, na medida em que 
escreve, acaba por ampliar, por melhorar seu pensamento verbal. Nos seus primeiros 
escritos, a criança tende a transcrever o pensamento verbal, mas este não advém das 
formas de comunicação escrita, e sim das formas de comunicação oral. Ora, uma escrita 
que transcreve a oralidade pode tornar-se incompreensível para os interlocutores. Aos 
poucos a criança, seja por ler, seja por sentir-se impelida a comunicar-se através da 
escrita, sente necessidade de escrever de modo a ser compreendida pelo outro. Isto faz 
com que ela precise organizar sua escrita de modo a não reproduzir a oralidade. Afinal, 
o fato de a escrita referir-se a um interlocutor sempre ausente ou imaginário, - que não 
pode perguntar, intervir e de quem não se sabe quais os conhecimentos prévios sobre o 
que se quer comunicar -, exige uma organização minuciosa das idéias. Ou seja, a escrita 
exige muito mais organização das idéias do que a fala. Esta necessidade de organizar as 
idéias para poder escrever, leva a criança a organizar melhor o próprio pensamento. É 
neste sentido que Vigotski afirma: a sintaxe da linguagem interior é distinta da sintaxe 
da linguagem escrita, e o que sempre se encontra entre a escrita e a linguagem interior é 
a oralidade. 
Si el desarrollo del lenguaje exterior precede al interior, el lenguaje 
escrito aparece después del interior y presupone ya su existencia. 
El lenguaje escrito es, según Jackson y Head, la clave del lenguaje 
interior. Sin embargo, la transición del lenguaje interior al escrito 
exige lo que hemos denominado semántica voluntaria y que puede 
ser relacionada con la fonética voluntaria del lenguaje escrito. La 
gramática del pensamiento no coincide en en lenguaje interior y 
escrito, la sintaxis semántica del lenguaje interior es totalmente 
distinta de la lenguaje oral y escrito. En ella predominan unas leyes 
diferentes de estruturación del conjunto y de las unidades 
semánticas. En cierto sentido, cabe decir que la sintaxis del 
lenguaje interior es la contraposición directa de la sintaxis del 
lenguaje escrito. Entre estos dos polos se halla la sintaxis del 
lenguaje oral. (VIGOTSKI, 1993: 231)
83 
Ao relacionar a tese de Vigotski com o desenvolvimento da escrita, Smolka 
(1996) lembra que, na perspectiva de Vigotski, a fala egocêntrica tem o seu fim 
aproximado aos sete anos, período que coincide com o início da aprendizagem escolar 
da escrita. Como a escrita faz parte do discurso da sociedade letrada, acaba por se inter-relacionar 
com o discurso interior. Disto a autora infere a questão sobre como o contato 
com a escrita interfere na elaboração do discurso interior. 
Não poderíamos considerar que as primeiras tentativas infantis de 
produção da escrita, obscuras e desconhecidas dos adultos, vão se 
organizando, se explicitando se tornando textos para o outro, 
inclusive o “outro eu?”. E, nesse processo, não são inúmeras e 
variadas as possibilidades e os esquemas que as crianças 
desenvolvem para começar a ler e a escrever? Nesta perspectiva, 
além de dizermos que o discurso interior traz as marcas do discurso 
social, não poderíamos dizer que o discurso escrito, sobretudo na 
sua gênese, traz as marcas do discurso interior? (SMOLKA, 1996: 
71) 
Smolka observou que, ao escreverem textos, as crianças, em início do processo 
de alfabetização, reproduzem a própria fala na escrita. Para fazer este estudo a autora 
criou, em salas de aula de alfabetização, situações pedagógicas nas quais era permitido 
que as crianças produzissem textos e interagissem verbalmente com colegas e professor 
durante o trabalho. Smolka observou que, quando a livre expressão é possibilitada às 
crianças, estas escrevem textos mais criativos, porém, organizados de modo a reproduzir 
as marcas da oralidade: aglutinações, omissões, elipses e abreviaturas. Smolka concluiu 
que a escola bloqueia a fala da criança justamente para evitar a reprodução da oralidade 
na escrita. Para a autora, a escola inibe a produção da escrita como processo discursivo 
e dialógico através da imposição um único modo de escrever. No entanto, embora a 
escola consiga bloquear a fala da criança, não consegue bloquear seu pensamento, seu 
discurso interior, o que se evidencia nas suas produções textuais. Ou seja, a criança não 
reproduz a fala na escrita porque a escola não permite a expressão oral, mas acaba por 
expressar o seu pensamento, que também tem marcas da oralidade. Por isso, os textos 
marcados pela interdiscursividade necessitam de uma avaliação que vá além da análise 
da ortografia ou gramática. É preciso analisar estes textos sob a ótica da circunstância 
da sua produção e dos aspectos da atividade mental e discursiva da criança.
84 
De acordo com Smolka, a escola, com o intuito de evitar erros gramaticais, não 
permite que a criança expresse seus pensamentos através da escrita. A autora diz que há 
uma inter-relação entre escrita na fase inicial e discurso interior da criança. As crianças 
produzem textos marcados por abreviações, aglutinações e repetições, o que pode ser 
indicativo de que escrevem exatamente do jeito que pensam ou falam. Assim, quando 
escrevem o que pensam, as crianças acabam por produzir textos em desacordo com as 
normas gramaticais. Por medo deste tipo de produção, a escola evita que as crianças 
escrevam o que pensam, exigindo apenas a escrita de frases e palavras soltas. 
Que escrita é essa que a criança aprende na escola que faz com que 
ela “regrida” quando escreve o que pensa? Assim se comprova, 
mas uma vez, que a escola ensina as crianças a repetirem e 
reproduzirem palavras e frases feitas. A escola ensina palavras 
isoladas e frases sem sentido e não trabalha com as crianças, no 
ano escolar da alfabetização, o “fluir do significado”, a 
estruturação deliberada do discurso interior pela escritura. 
(SMOLKA, 1996: 69) 
O modo como a escola evita que as crianças escrevam em desacordo com as 
normas, acaba por frear a escrita significativa. A dialogia, presente no diálogo interno, 
se mostra na escrita da criança. Por este motivo, Smolka considera que as relações entre 
pensamento, oralidade e escrita devem ser mais trabalhadas no processo de 
alfabetização. 
3.2. Relações entre fala e escrita nos três momentos do desenvolvimento da escrita 
Conforme já vimos, fala e pensamento são diferentes da escrita no seu modo de 
organização e estruturação. Se a escrita transcrever o pensamento e a fala, se 
apresentará repleta de lacunas, elipses e abreviaturas, tornando-se ininteligível para seu 
interlocutor. A criança, em início do processo de alfabetização, por não ter consciência 
das diferenças entre pensamento, fala e escrita, reproduz seu pensamento na escrita. 
Quando a criança entende as funções da escrita, percebe que não é possível escrever 
reproduzindo a fala e o pensamento. A partir desta interpretação da teoria sobre o 
desenvolvimento da escrita da psicologia histórico-cultural, revisitaremos os três 
momentos do processo de desenvolvimento da escrita, enfocando de que maneira, em 
cada um deles, a escrita se relaciona com a fala.
85 
No capítulo anterior, foram apresentadas as quatro teses de Vigotski sobre o 
ensino da escrita: o ensino da escrita pode começar na educação infantil, com crianças 
de quatro anos, pois estas já têm potencial para compreender a função representativa; 
brincar, jogar e desenhar são atividades importantes para o processo de alfabetização; a 
escrita deve ser ensinada como uma função cultural complexa; a escrita deve ser 
ensinada como sendo algo necessário. Ao tratar das relações entre fala e escrita, estas 
teses serão revisitadas, com o sentido de compreender como se inserem nos três 
diferentes momentos de alfabetização observados na teoria de Vigotski. 
3.2.1 Escrita como representação simbólica na pré-história da ontogênese 
A primeira tese de Vigotski acerca do desenvolvimento da escrita é que o seu 
ensino deve começar na educação infantil. Conquanto a criança saiba usar coisas para 
representar outras coisas, já tem condições para entender que pode desenhar a própria 
fala. Mas o autor não está querendo dizer com isto, que a criança deva ser iniciada na 
aprendizagem sistemática das relações entre letras e sons na tenra idade. Se afirmarmos 
isto, estaremos entrando em franca contradição com sua segunda tese, segundo a qual 
desenhar, jogar e representar são formas iniciais de escrita que colaboram para o 
processo de alfabetização. 
Mello (2005) defende uma concepção de educação infantil que vai ao encontro 
da afirmação acima. Segundo a autora, a educação infantil é base para a aquisição da 
escrita e para a aprendizagem de modo mais amplo quando valoriza atividades de 
criação e expressão, como a pintura, o faz-de-conta, a dança, a poesia e a fala. Mello 
critica as concepções de educação infantil que, ao invés de valorizarem as atividades 
significativas, o lúdico, o diálogo e a expressão artística, ocupam o tempo com 
atividades mecânicas de escolarização precoce. A autora mostra que a teoria de Vigotski 
não é uma defesa da escolarização precoce e aprendizagem mecânica da escrita, mas da 
educação infantil como espaço e tempo de atividades significativas. 
Vygotsky já fazia em seu tempo – década de 1920 – uma crítica 
que permanece atual aos processos de apresentação escolar da 
escrita para as crianças, inclusive aquelas em idade escolar. Ele 
dizia: “Ensinamos às crianças a traçar as letras e a formar palavras 
com elas, mas não ensinamos a linguagem escrita.” (VIGOTSY, 
1995: 183).
86 
Queria dizer, com isso, que, na forma como em geral apresentamos 
a escrita para a criança, o ensino do mecanismo prevalece sobre a 
utilização racional, funcional e social da escrita. Criticava o fato de 
que em seu tempo, e também ainda hoje, de maneira geral, o 
ensino da escrita se baseia em um conjunto de procedimentos 
artificiais (...) (MELLO, 2005: 25-6) 
Para Mello, a apropriação da escrita como linguagem requer mais tempo 
dedicado ao lúdico e à arte, meios de expressão que desenvolvem as formas superiores 
de comunicação humana. O desenho, a pintura e a arte são atividades que formam a 
base da alfabetização. Para formar crianças leitoras e produtoras de texto, é preciso 
levá-las a desenvolver o desejo de expressar-se por meio de todas estas linguagens. A 
necessidade de expressão surge da aprendizagem significativa e cooperativa. Na escola, 
isto requer uma interação entre professor e alunos que respeite as necessidades que a 
criança pequena tem de brincar, representar, imaginar, criar e conhecer o mundo. 
O ensino precoce e mecânico das letras faz com que a criança não compreenda a 
escrita como linguagem. Para Vigotski, os instrumentos culturais que o homem criou ao 
longo da história são assimilados pelas novas gerações, na medida em que se 
apresentam como úteis. Este é o caso da escrita, que deve ser apresentada à criança de 
modo a possibilitar realizar as atividades para as quais foi criada. 
(...) duas teses da teoria histórico-cultural contribuem para 
pensarmos sobre os procedimentos que levam à aquisição da 
escrita: a tese sobre como se dá o processo de conhecimento 
humano e a tese sobre os momentos mais adequados para a 
influência do professor no processo de desenvolvimento infantil. 
A primeira tese – acerca do processo de conhecimento humano-aponta 
que as novas gerações se apropriam dos instrumentos 
culturais criados pelos homens ao longo da história – como, por 
exemplo, a linguagem escrita – à medida que realizam com esses 
instrumentos as atividades para as quais esses foram criados. No 
caso da escrita, é necessário utilizá-la – considerando o fim social 
para o qual foi criada – para escrever ao registrar vivências, 
expressar sentimentos e emoções, comunicar-se. (MELLO, 2005: 
29) 
Esta idéia da autora nos remete à filogênese da escrita. Nesta, as primeiras 
formas de escrita não representavam os sons da fala, mas os fatos e eventos, através de
87 
desenhos. As primeiras escritas pictográficas foram criadas para servirem de registros 
mnemônicos. No entanto, a escrita evoluiu na filogênese até tornar-se o que é hoje: uma 
importante função cultural que permite a expressão de idéias, sentimentos e 
informações, através de um sistema de signos-símbolos. A escrita não é o único meio de 
expressão, o desenho, a arte e a fala também são formas de se expressar, mas o 
desenvolvimento da história da escrita a tornou um poderoso meio de interlocução, 
interação na cultura e expressão do pensamento. A escola precisa proporcionar 
oportunidades para a criança se expressar de maneiras diversas antes de se apropriar da 
escrita. No entanto, é preciso que estas atividades de expressão sejam significativas e 
estejam inseridas em contextos de interlocução. 
Como já vimos, algo só se torna um símbolo para a criança através da interação. 
As ações da criança tornam-se gestos representativos quando um outro lhes confere 
significado. A criança só passa a usar o jogo como meio de representação da realidade 
quando há um outro que lhe mostra esta realidade. O desenho só adquire significado de 
linguagem para a criança quando o outro lhe mostra que é possível usar o desenho para 
representar a fala. Tudo isso nos remete às relações entre pensamento, oralidade e 
escrita. A criança desenvolve o pensamento através da apropriação das significações 
produzidas na interação. As interações que levam a criança à compreensão da 
representação simbólica do gesto, do jogo e do desenho, constituem importante fator do 
desenvolvimento da escrita. No caso da escola, como esta é um lugar privilegiado para a 
aquisição da escrita, é preciso a intencionalidade pedagógica de levar à aquisição de 
diferentes formas de representação e expressão. 
No capítulo que tratará da análise do livro didático, será verificado se ele traz, 
em seus exercícios, atividades envolvendo gesto, desenho e jogo. Além disso, será 
observado se estas atividades são apresentadas pelo livro como formas de representação 
e como isso é feito. Quando ao gesto, será observado se o livro propõe atividades nas 
quais a criança o use como forma de representação e expressão. O desenho, conforme já 
nem sempre representa a linguagem. Para que isso ocorra é preciso uma mediação que 
mostre à criança que ela pode usar o desenho para comunicar algo. Por este motivo, será 
observado, no livro didático, se as atividades que envolvem desenho são apenas 
brincadeiras, ou se levam a criança a desenvolver um tipo de expressão da linguagem. 
Por sua vez, a análise do jogo recairá sobre os tipos de jogos propostos pelo livro 
(faz-de-conta, dramatizações, jogos com regras, jogos com propósito), tema 
desenvolvido no capítulo anterior. Além disso, será enfocado o modo como o livro
88 
relaciona, nas atividades propostas e no texto para os professores, o jogo com o 
desenvolvimento da escrita. 
3.2.2. Escrita como simbolismo de segunda ordem 
A terceira tese de Vigotski diz que mais importante que o ensino das letras é o 
ensino da escrita como linguagem. Uma importante questão para tratar quanto a este 
tópico é entender que, para ensinar a escrita como simbolismo de segunda ordem, é 
preciso, antes, levar a criança a significá-la como linguagem. 
A passagem da escrita de simbolismo de segunda ordem para simbolismo direto 
ocorre quando a criança deixa de se ater às relações entre letras e sons e passa a operar 
com a escrita como linguagem. Não encontramos na teoria de Vigotski uma 
sistematização sobre as implicações pedagógicas da teoria da psicologia histórico-cultural 
sobre o desenvolvimento da escrita. Smolka (1996) corrobora esta afirmação, 
ao objetar que Vigotski não explica bem como se dá a passagem da escrita como 
simbolismo de segunda ordem para simbolismo direto. 
Segundo Vigotski (1993), a estrutura da fala e da escrita são diferenciadas. 
Quando falamos, não decompomos a palavra em unidades menores como fazemos na 
escrita. A escrita exige um desmembramento da palavra em unidades menores, e a 
recriação de uma palavra sonora com letras isoladas. Disto decorre a fonética da 
linguagem escrita, que é arbitrária. 
Evidentemente, un lenguaje sin sonido real, que el niño se imagina 
y piensa, que exige la simbolización de los símbolos sonoros, es 
decir, una simbolización de segundo grado, deberá ser tan difícil 
con respcto al lenguaje oral como lo es para el niño el álgebra con 
respecto a la aritmética. (VIGOTSKI, 1993: 230) 
Ensinar a escrita como simbolismo de segunda ordem significa enfocar as 
relações entre unidades sonoras e unidades gráficas, ou seja, o traçado das letras, os seus 
sons e como elas se juntam para formar as palavras. Este ensino é necessário, o que está 
implícito na teoria de Vigotski, mas não deve anteceder e nem sobrepujar o ensino da 
escrita como linguagem, como meio de expressão. Para que a criança consiga 
desmembrar sua fala e reproduzi-la em forma de signos escritos, é preciso um esforço 
voluntário de sistematização da própria escrita levando em conta suas diferenças em 
relação à fala.
89 
La investigación descubre además en qué consiste esa actitud 
diferente hacia la situación que se da en la lenguaje escrito. En 
éste, el niño ha de actuar voluntariamente, el lenguaje escrito es 
más voluntario que el oral. Ese es el leitmotiv de todo el lenguaje 
escrito. Ya la forma fónica de la palabra, que en el lenguaje oral se 
pronuncia automáticamente, sin desmembrarla en sonidos aislados, 
exige en la escritura una ordenación, una separación. El niño, al 
pronunciar cualquier palabra, no se da cuenta conscientemente de 
los sonidos que pronuncia y no realiza ninguna operación 
intencionada al pronunciar cada sonido aislado. En el lenguaje 
escrito, por el contrario, debe tomar conciencia de la estructura 
fónica de la palabra, desmembrarla y reproducirla voluntariamente 
en signos. (VIGOTSKI, 1993: 231) 
Assim, faz parte do processo de aquisição da escrita, no caso dos sistemas 
alfabéticos, este desmembramento das palavras em unidades mínimas de sons. Disto se 
infere que, para a psicologia histórico-cultural, o conhecimento do sistema gráfico é 
objeto de ensino da escrita. 
Em consonância com a psicologia histórico-cultural, Faraco (2003) mostra que o 
professor precisa, simultaneamente, conhecer o sistema gráfico e ensiná-lo, fazendo uso 
de elementos plenos de significação. Aqui vale refletir um pouco sobre o que significa 
conhecimento do sistema gráfico na perspectiva da psicologia histórico-cultural. A 
representação gráfica da língua portuguesa é alfabética. Significa que as unidades 
gráficas (letras) representam basicamente unidades sonoras (consoantes e vogais) e não 
palavras ou sílabas. Além disso, o sistema gráfico da língua portuguesa tem memória 
etimológica. Muitas palavras têm a origem, e não apenas as unidades sonoras, como 
critério de fixação de sua forma gráfica. Faraco cita como exemplo a palavra ‘homem’ 
grafada com ‘H’ inicial porque sua origem vem do latim. No passado, havia uma 
consoante antes do ‘o’ na palavra em latim ‘homo’, que originou ‘homem’. 
Outra característica do sistema gráfico é que ele não é uma representação fiel da 
fala. Uma palavra pode ser dita de muitas formas, variando conforme o dialeto do 
falante, mas a grafia é apenas uma. Dois fatores provocam relações arbitrárias na 
escrita: as mudanças que ocorreram na língua ao longo do tempo e as variações 
dialetais. Por exemplo, falamos /Ka.va.lu/ (cavalu), mas escrevemos ‘CAVALO’. 
Ninguém precisa mudar o jeito de falar para aprender a escrever. Ao invés disso, os
90 
alunos precisam aprender que a relação direta entre unidade sonora e letra ajuda a 
escrever muitas palavras, mas certas escritas são arbitrárias, exigindo estratégias 
cognitivas ou memorização. 
Segundo Faraco, o sistema gráfico tem dois tipos de relações: as biunívocas e as 
cruzadas. As relações biunívocas ocorrem quando uma unidade sonora corresponde a 
apenas uma unidade gráfica que, por sua vez, só representa aquela unidade sonora. Por 
exemplo, a relação entre unidade sonora /p/ e a unidade gráfica ‘P’ é biunívoca. 
Algumas relações podem ser biunívocas para uns dialetos e não serem para outros. Por 
exemplo, o emprego do ‘L’ ou ‘R’ pode ser uma relação arbitrária em variações 
dialetais, nas quais o ‘L’ em final de palavra é suprimido ou substituído por ‘R’ 
retroflexo (o ‘R’ pronunciado igual às palavras em inglês, tipo ‘girl’). Ex: /ko.ro.nEȉ/ 
(coroner), ao invés de /ko.ro.nEw/. 
As relações cruzadas ocorrem quando uma unidade sonora pode ter mais de uma 
representação gráfica, ou quando uma unidade gráfica representa mais de uma unidade 
sonora. Como exemplo do primeiro caso, temos a unidade sonora /ã/, que pode ser 
representada pelas grafias ‘ã’, ‘am’ e ‘an’. Como exemplo do segundo caso, temos a 
letra ‘r’ que pode representar as unidades sonoras /R/ (rato) e /r/ (aranha). 
Várias relações cruzadas são previsíveis pelo contexto. Para o ensino destas 
relações, que podem ser chamadas de contextuais, é preciso conscientizar a criança 
quanto às regras usadas para grafar corretamente. Segundo Faraco, corrigir a fala do 
aluno nunca é uma estratégia adequada de alfabetização, pois leva à ilusão de que o 
sistema gráfico é uma representação fiel da fala e de que não existem relações 
arbitrárias entre unidades sonoras e grafias. A hipótese inicial do aluno é de que cada 
letra representa um som. Esta hipótese é parcialmente correta no que se refere ao 
sistema alfabético. No entanto, o aluno não pode permanecer nesta hipótese, de modo 
que precisa encontrar no professor um auxílio para superá-la. O professor precisa criar 
meios para que os alunos superem gradativamente os erros gráficos advindos da 
transferência das características da fala para a escrita. Para isso, é importante que 
trabalhe na alfabetização com elementos sempre repletos de significados. 
Em qualquer situação, o que o professor não deve esquecer é que 
ele é um construtor de andaimes que criam condições para que os 
alunos internalizem o novo saber. É preciso, portanto, trabalhar na 
alfabetização, sempre com elementos verbais plenos de
91 
significados para a criança e em meio a atividades significativas 
com a leitura e a escrita. Como nos mostra Vygotsky, a 
internalização de um saber qualquer é um processo ativo que 
emerge de formas de vida coletiva, de interação entre o aprendiz, 
seus pares e membros mais experientes de sua comunidade. 
(FARACO, 2003: 55) 
O autor nos remete aqui ao papel do professor na interação com o aluno. O 
professor precisa criar condições para que o ensino do sistema gráfico não seja mero 
treino mecânico, mas uma aprendizagem plena de construção de significados, desde o 
início. O aluno não precisa primeiro aprender o sistema gráfico para depois aprender o 
significado da escrita como função cultural. Não podemos esquecer que, para as 
crianças de educação infantil, o mais interessante são as atividades de expressão, que 
formam a base para a alfabetização. Apenas quando a criança já significou a escrita 
como algo importante, é viável o ensino mais sistemático das letras. 
Outra autora que problematiza esta relação entre oralidade e escrita é Lacerda 
(1993). Segundo a autora, a teoria de Vigotski ajuda a pensar importantes aspectos da 
relação entre oralidade e escritura. Para Lacerda, a concepção tradicional de 
alfabetização considera que um bom desempenho oral é pré-requisito para a 
alfabetização. Na prática que se desprende desta concepção, a criança é ensinada a 
articular as palavras de modo que a fala possa servir de apoio para a escrita. Crianças 
que não falam ou que têm dificuldade na oralidade são consideradas incapazes para a 
alfabetização. A autora lembra que, para Vigotski, a aprendizagem da escrita tem 
relação com o desenvolvimento das funções psíquicas superiores e dos signos na 
infância, de modo que não pode ser conquistada através de treino mecânico. 
Lacerda também corrobora a tese defendida no início deste capítulo. Para a 
autora, o desenvolvimento da escrita não pode ser descrito através de uma sucessão de 
eventos, pois é constituído de descontinuidades, evoluções e involuções. O 
desenvolvimento da escrita não ocorre de modo linear. Este é o motivo por que, durante 
o processo de aprendizagem da escrita, a criança suscita, às vezes, a impressão de atraso 
e retrocesso. Os retrocessos e atrasos ocorrem devido às características peculiares do 
processo de internalização6 do sistema de escrita. Lacerda significa a categoria 
‘Internalização’, de Vigotski, como o momento no qual as estruturas da atividade que 
6 Embora nesta dissertação se tenha optado pelo uso da palavra ‘apropriação’, dada sua significação mais 
próxima ao que se está aqui defendendo, Lacerda usa o termo ‘internalização’, o que justifica seu uso 
neste trecho.
92 
são executadas em um plano externo, passam a ser executadas em um plano interno. Isto 
significa que os fenômenos sociais se transformam em fenômenos psicológicos, em um 
processo no qual os significados dos objetos e eventos são apreendidos pelo sujeito. 
Não são internalizadas as cópias dos objetos, mas sim as significações. A internalização 
ocorre através da linguagem e a significação é possível devido às operações com signos. 
O primeiro momento da internalização da escrita é a linguagem oral. 
Compreendida dessa forma, a linguagem oral é, num primeiro 
momento, o canal/elo de ligação entre a linguagem escrita e aquilo 
que ela pretende representar e, portanto, é pela própria linguagem 
oral que se dá a internalização de aspectos da aprendizagem da 
escrita. A linguagem oral serve como substrato para a construção 
da linguagem escrita, que mais tarde ganha autonomia como um 
sistema simbólico de primeira ordem, autônomo, podendo operar 
por si mesmo. A linguagem escrita, ao ser internalizada, bem como 
a linguagem oral, transforma-se para constituir o funcionamento 
interno. (LACERDA, 1993: 68) 
Para Lacerda, nem toda experiência de aprendizagem interfere de igual modo no 
desenvolvimento. As aprendizagens, os conhecimentos e as relações são incorporados 
em diferentes graus; o que se aprende através da oralidade pode interferir sobre a escrita 
e vice-versa. 
Embora o aspecto sonoro da escrita seja importante para seu processo de 
aprendizagem, a criança precisa superar a necessidade de recorrer às relações grafemas-fonemas 
para operar com a escrita como linguagem. Já vimos, no capítulo anterior, o 
quanto a leitura silenciosa ajuda neste processo, visto que faz com que a criança, 
gradativamente, pare de produzir sons a partir da escrita e passe a buscar o significado 
do texto. Assim, a análise do livro didático terá como objeto o modo como o livro 
trabalha as relações grafemas-fonemas nos exercícios e também a freqüência e 
qualidade das propostas de leitura silenciosa. Além disso, será enfocado o texto para os 
professores, com objetivo de avaliar a importância que o livro confere ao ensino do 
sistema gráfico da escrita. 
Entretanto, vamos antes enfocar o terceiro momento do desenvolvimento: a 
escrita como função cultural complexa.
93 
3.2.3. Apropriação da escrita como atividade cultural complexa 
Primeiro, cabe dizer que o tema analisado neste tópico é bastante delicado. 
Vigotski não desenvolveu uma teoria conclusiva sobre o que vem a ser escrita como 
atividade cultural complexa. Por este motivo, as conclusões deste tópico constituem 
uma interpretação possível da teoria de Vigotski. 
A terceira e a quarta tese de Vigotski sobre o processo de alfabetização são 
indícios que ajudam a compreender este momento. A terceira tese diz que a escrita deve 
ser ensinada como uma função cultural complexa. Por sua vez, a quarta tese diz que a 
escrita deve ser ensinada à criança como sendo algo necessário. Estas teses de Vigotski 
têm relação com a apropriação da escrita como atividade cultural complexa. A escrita é 
uma linguagem diferente, porém inter-relacionada com a fala. Apropriar-se da escrita 
como atividade cultural complexa é operar com suas funções sociais e usá-la como 
linguagem. 
Mas, antes de entender o que é operar com a escrita como linguagem, vamos 
traçar as diferenças e semelhanças entre escrita e fala, tanto no que se refere ao 
desenvolvimento de ambas, quanto às suas características. 
No que se refere ao desenvolvimento, Vigotski (1993) diz que a aprendizagem 
da escrita influi sobre o desenvolvimento da linguagem como um todo. No entanto, a 
fala e a escrita têm uma história diferente de desenvolvimento. Há uma defasagem entre 
desenvolvimento da fala e desenvolvimento da escrita. A criança adquire um bom 
desempenho verbal muito antes de apresentar um bom desempenho na escrita. O que 
explica esta defasagem não é a inferioridade da escrita em relação à fala, porque fala e 
escrita têm o mesmo vocabulário. Na verdade, a fala e o discurso interior são marcados 
por abreviaturas e omissões. A escrita, como se refere a um interlocutor ausente ou 
imaginário, precisa ser melhor explicada para ser compreendida pelo interlocutor7. A 
escrita não pode carregar as abreviaturas e omissões da fala. 
El lenguaje escrito es una función totalmente especial del lenguaje, 
que se diferencia del lenguaje oral no menos que el lenguaje 
7 Smolka (1996) faz uma crítica a esta premissa de Vigotski. Para a autora, há circunstâncias nas quais a 
escrita não precisa ser explicativa. Embora as críticas à teoria de Vigotski não sejam objeto deste 
trabalho, vale lembrar que não parece ser preocupação de Vigotski o estudo das diversas circunstâncias da 
escrita, ou dos diversos tipos de textos. O que Vigotski estuda é o desenvolvimento da escrita pela 
criança, e não as circunstâncias de uso do texto. Neste enfoque faz sentido dizer que a escrita, por ser 
dirigida a um interlocutor ausente ou imaginário, exige maior elaboração intelectual que a fala. Por 
exemplo, uma lista de supermercado não é um texto que precisa ser explicativo. No entanto a 
preocupação de Vigotski é com o desenvolvimento da escrita como um todo, sendo que a capacidade de 
escrever com consciência sobre o interlocutor é o nível mais alto deste desenvolvimento.
94 
interior se diferencia del exterior en cuanto a su estructura y a su 
modo de funcionamiento. Como muestra la investigación, el 
lenguaje escrito exige incluso para su desarrollo mínimo un alto 
grado de abstracción. Se trata de un lenguaje sin entonación, sin 
expresividad, sin nada de su aspecto sonoro. Es un lenguaje en el 
pensamiento, en las ideas, pero un lenguaje que carece del rasgo 
más importante del lenguaje oral: el del sonido material. 
(VIGOTSKI, 1993: 229) 
Ao explicar como a escrita organiza o pensamento, Vigotski afirma que esta 
exige mais consciência e intenção do que a fala. Além de ser formada por um sistema 
arbitrário de signos, a escrita é uma comunicação para um interlocutor ausente ou 
imaginário. Aprender a usar o sistema arbitrário de signos para comunicar-se com um 
interlocutor ausente ou imaginário, requer não só que a criança saiba como funciona o 
sistema de escrita, mas também que compreenda quais são suas funções sociais. Isto 
significa que, se o sistema de signos que forma a escrita é arbitrário, a criança precisa 
aprendê-lo tendo consciência das funções sociais da escrita. Para Vigotski, a escrita é 
uma operação mais intelectual do que a fala tanto porque exige maior esforço para 
expressar-se de modo a ser compreendido pelo outro, quanto porque obriga a tomar 
maior consciência quando à própria fala. 
De acordo com Vigotski (1993), se por um lado a aquisição da escrita é 
dificultada pela sua demanda de abstração e complexidade de composição, por outro 
lado seu uso constitui uma força que impulsiona o desenvolvimento da criança. O que 
orienta a linguagem escrita da criança é a consciência e a intenção. A criança precisa 
entender a escrita como uma função cultural complexa para saber com quais intenções 
usá-la. As funções psíquicas superiores de conscientização, abstração e intenção, 
exigidas pela escrita, acabam por fazer a criança agir de modo mais intelectual e, 
consequentemente, a ter mais consciência da fala. Estas funções psicológicas superiores, 
exigidas pela escrita, ainda não se desenvolveram quando a criança se inicia no processo 
de alfabetização, mas são desenvolvidas durante o processo. 
A escrita como linguagem se diferencia amplamente da fala e da fala interior. A 
escrita exige um acabamento superior ao acabamento da fala. Quando falamos, não 
precisamos detalhar como quando escrevemos. A fala interior é repleta de elipses e 
abreviaturas. A fala com o outro tem um interlocutor presente para ajudar na
95 
composição da comunicação. A escrita, sendo dirigida a um interlocutor ausente, exige 
construções mais elaboradas. 
Tratando das características que diferenciam a fala da escrita, Luria (1994) 
mostra que, enquanto na escrita, ou em uma palestra, é preciso partir da não 
compreensão do possível leitor ou ouvinte, a fala dialógica ocorre em uma situação na 
qual todos conhecem o conteúdo da linguagem. O falante não precisa retomar e 
explicar, pois seu ponto de partida é reconhecido previamente. As palavras proferidas 
em um diálogo são reconhecidas e compreendidas na medida em que os interlocutores 
participam a mesma situação. Por este motivo, um diálogo coloquial pode apresentar 
elipses e omissões sem prejuízo da compreensão dos interlocutores. 
Existem formas de linguagem falada que têm a peculiaridade de não poderem 
contar com o conhecimento prévio do interlocutor, não podendo conter elipses e 
abreviaturas, embora dispondo dos recursos extralingüísticos da fala. Este tipo de 
linguagem é a utilizada em palestras, dramatizações e narrativas. 
A linguagem escrita, na maioria de suas manifestações, requer mais rigor e 
precisão do que a fala. Quando a escrita é motivada pelos conhecimentos prévios do 
interlocutor, ou é uma resposta a outro enunciado, é preciso fazer uso da memória e 
colocar as idéias precedentes em uma relação lógica. A escrita de um enunciado pode 
assumir características bastante complexas quando o que se deseja comunicar é uma 
idéia nova. Neste caso, a idéia geral deve ser recodificada num complexo programa 
semântico de enunciado amplo. Os elementos desse programa precisam ser colocados 
em uma ordem estabelecida. Para escrever é preciso fazer uso de meios externos 
(anotações precedentes) e meios internos (recordação, seqüenciação do pensamento). A 
linguagem escrita não pode apoiar-se sobre meios extralingüísticos. A entonação é 
parcialmente substituída pela pontuação. Deste modo, a linguagem escrita vê-se forçada 
a apoiar-se em um sistema de códigos lógico-gramaticais. Para Luria, este exercício de 
codificação e decodificação de enunciados, acaba por organizar a atividade intelectual 
do sujeito. 
No entanto as linguagens falada e escrita têm outra importante 
função: são um meio de retoque do pensamento e desempenham 
importante papel no aprimoramento da atividade propriamente 
intelectual do sujeito. (LURIA, 1994: 72)
96 
As considerações de Luria sobre as diferenças entre fala e escrita, mostram o 
quanto a escrita não pode ser uma reprodução fiel da fala. A este respeito Eglê Franchi, 
no livro E as crianças eram difíceis... A redação na escola (1998) relata uma 
experiência pedagógica em uma turma de terceira série do ensino fundamental. A autora 
passou alguns meses trabalhando escrita de textos com crianças consideradas difíceis 
por terem uma história de fracasso escolar. Ao escreverem suas redações, as crianças 
reproduziam fielmente a própria fala, apresentando dificuldade na pontuação, que era 
substituída por repetição de palavras ou por emprego de conectivos, como ‘que’, ‘daí’, 
‘então’. 
De acordo com Franchi (1998) este tipo de texto estereotipado pode ter sua 
origem no jeito que os adultos falam com as crianças, nas histórias que são produzidas 
para o público infantil e nos próprios livros didáticos. A autora cita Possenti, que 
analisou como o adulto usa uma linguagem estereotipada e infantilizada para se 
comunicar com a criança e garantir sua compreensão. O adulto repete palavras e evita o 
uso de anafóricos por acreditar que a criança não tem capacidade de compreender um 
texto ou uma idéia mais esquemática. 
Ao longo do seu trabalho, a autora mostrou que, para as crianças desenvolverem 
a linguagem escrita, precisam desenvolver a linguagem em um sentido mais amplo. A 
escola precisa ensinar as diferenças entre fala e escrita, não no sentido da criança falar 
corretamente para escrever corretamente, mas no sentido de refletir sobre as diferenças 
entre fala culta e fala coloquial e os diferentes tipos de registros escritos. 
Para isso, faz-se importante que o ensino e a aprendizagem ocorram em meio a 
interações colaborativas entre professores e alunos e atividades significativas. A autora 
fez uma crítica aos métodos que ensinam a escrita punindo os erros dos alunos, ao invés 
de fazer uma avaliação séria e aprofundada das suas razões. No entanto, se o professor 
não entender as diferenças entre fala e escrita e entre fala coloquial e culta, não terá 
como avaliar a aprendizagem dos alunos. O mais importante aspecto do livro de 
Franchi, e que vai ao encontro da psicologia histórico-cultural, é a relação estabelecida 
entre escrita e interação social em um sentido mais amplo. Para fazer as crianças 
refletirem sobre a própria escrita, a autora/professora também as ajudou a refletir sobre 
as interações estabelecidas com colegas, amigos, familiares e membros da escola. Para 
fazer as crianças abstraírem as características da escrita, é preciso fazê-las refletir sobre 
a linguagem de maneira mais ampla.
97 
Mas há outro aspecto importante da linguagem para o qual 
Vygotsky chama a atenção. A linguagem, os sistemas de referência 
que constitui para a possibilidade de comunicação, não são 
somente o resultado de um trabalho social, uma herança que se 
adquire passivamente; a aquisição da linguagem e seu 
desenvolvimento somente se conseguem em ambientes de rica 
interação social. (...) (FRANCHI, 1998: 49). 
Diante da complexidade da escrita em relação à fala, faz-se necessária a 
aprendizagem em um contexto que suscite não só a necessidade de escrever, mas 
também de adaptar os registros escritos aos diferentes contextos. Ou seja, para a criança 
entender como pode redigir ou compreender um determinado texto, é preciso que este 
seja significado como algo importante. Segundo Vigotski, é preciso que a necessidade 
de escrever esteja madura para que a criança se alfabetize. 
La investigación nos lleva seguidamente a la conclusión de que los 
motivos que impulsan a recurrir al lenguaje escrito no están 
todavía al alcance del niño que comienza a aprender a escribir. 
Sin embargo, la motivación del lenguaje, su necesidad, al igual que 
en cualquier nuevo aspecto de actividad, se halla siempre al 
comienzo del desarrollo de esa actividad. De la historia de la 
evolución del lenguaje oral nos resulta bien conocido que la 
necesidad de comunicación verbal se desarrolla en el transcurso de 
toda la edad infantil y constituye una de las premisas más 
importantes de la aparición de la primera palabra con sentido. Si 
esa necesidad no ha madurado, se observa un retraso en el 
desarrollo del lenguaje. Pero al principio de la instrucción escolar, 
la necesidad del lenguaje escrito está totalmente inmadura. Se 
puede decir incluso, basándose en los datos de la investigación, que 
el escolar que comienza a escribir no sólo no experimenta la 
necesidad de esa nueva función del lenguaje, sino que se representa 
de una manera muy confusa para qué necesita esa función. 
(VIGOTSKI, 1993: 230) 
Vigotski, por um lado, leva a entender que a escrita precisa ser ensinada como 
necessidade. Por outro lado, deixa claro que quando a criança começa a aprender a 
escrever na escola ainda não tem consciência da necessidade da escrita, o que pode 
gerar atraso no desenvolvimento desta forma de linguagem. Estas duas premissas do
98 
autor levam a deduzir que a escola, ao mesmo tempo em que ensina o sistema formal de 
escrita, pode ensinar as funções da escrita na nossa sociedade. Várias formas de abordar 
o texto podem ser usadas pela escola de modo a demonstrar a escrita como necessidade. 
Por exemplo, um texto científico pode ser trabalhado pela escola de modo a responder 
às curiosidades da criança sobre o mundo. Os textos artísticos podem ser apresentados 
para a criança com o objetivo de levá-la ao prazer estético. Demais registros escritos, 
como carta, bula de remédio, receitas culinárias, sinopses de filme etc, podem ser 
trabalhados pela escola de modo a fazer a criança vivenciar situações reais de uso da 
escrita. 
Ao investigar o momento da escrita como função cultural complexa no livro 
didático, haverá dois objetos de análise: a escrita como necessidade e as diferenças entre 
fala e escrita. Na escrita como necessidade, será observado se o livro apresenta a escrita 
em contextos nas quais ela é necessária para a realização de atividades culturais 
significativas para a criança. Nas diferenças entre fala e escrita, serão objetos de análise 
tanto o texto para os professores, quanto os exercícios. O enfoque recairá sobre as 
reflexões das diferenças entre fala e escrita que o livro propõe aos professores e aos 
alunos. 
Vejamos, agora, uma conclusão mais geral sobre os diferentes momentos do 
desenvolvimento da escrita. 
3.3. Conclusões sobre as relações entre pensamento, fala e escrita 
Enfocar a oralidade como elo intermediário entre todas as formas de 
representação simbólica, pressupõe quatro tipos de relações no processo de ensino e 
aprendizagem da escrita. 
A primeira relação diz respeito à aprendizagem da escrita como simbolismo de 
segunda ordem. A criança precisa saber as relações entre letras e sons, precisa pensar 
nos sons das letras para poder escrever. 
A segunda relação refere-se às peculiaridades da escrita e suas diferenças em 
relação à fala. Não falamos do jeito que escrevemos apenas porque as relações entre 
letras e sons são cruzadas. Falamos de um jeito e escrevemos de outro porque na escrita 
o interlocutor é ausente e imaginário. Para que a escrita seja compreendida, é preciso 
maior preocupação do escritor com a compreensão do outro. Além disso, enquanto na 
fala podemos usar gestos, entonações e expressões para sermos compreendidos, na 
escrita a pontuação e a organização das idéias são os únicos recursos disponíveis.
99 
Também as formas de comunicação da escrita e da fala são diferenciadas. Se a escrita 
for uma transcrição da fala, a conseqüência é o não entendimento do interlocutor. Em 
uma perspectiva histórico-cultural, é preciso que a escola proporcione informações para 
a criança acerca das principais diferenças entre fala e escrita. 
A terceira relação diz respeito ao significado dos símbolos. Se não há um outro 
que ajude a criança a produzir linguagem a partir do desenho e da escrita, dificilmente 
haverá compreensão de que existem outras formas de expressão além da fala. A criança 
precisa ser estimulada, desde a educação infantil, a expressar sua fala e pensamento 
através de vários meios de representação, pois isto a ajudará a entender a escrita como 
um meio necessário de expressão. É com o sentido de desenvolver várias formas de 
expressão que o ensino da escrita começa na educação infantil. 
A quarta relação refere-se aos elos entre pensamento, oralidade e escrita. 
Embora a criança precise já ter desenvolvido certo pensamento verbal para poder 
escrever, a escrita ajuda a aprimorar o pensamento verbal. 
Com isto, podemos concluir que a ontogênese da escrita é resultado de um 
grande esforço. Resumidamente, as dificuldades da aquisição da escrita são cinco. A 
primeira dificuldade é a compreensão de que coisas podem ser usadas para representar 
outras coisas. A segunda dificuldade é compreender o sistema arbitrário das relações 
grafemas-fonemas. Disto decorre a terceira dificuldade, que é a necessidade suscitada 
pela escrita de realizar a abstração do aspecto sensorial da fala, ou seja, fazer uma 
análise mais acurada e sistemática dos sons das palavras, ao invés de comunicá-las 
espontaneamente. A quarta dificuldade do desenvolvimento da escrita é o fato de ela ser 
dirigida a um interlocutor ausente ou imaginário. Nem sempre a criança, ao ser iniciada 
na aprendizagem da escrita, tem noção de que esta é uma espécie de linguagem 
necessária na nossa cultura. Disto decorre a quinta dificuldade: compreender a escrita 
como uma função cultural complexa. Em outras palavras, entender a necessidade da 
escrita. 
A alfabetização é um processo difícil porque a linguagem escrita se diferencia 
amplamente da fala e da fala interior. A escrita exige um acabamento superior ao 
acabamento da fala. Quando falamos, não precisamos detalhar como quando 
escrevemos. Disto decorre que a escrita exige análise sistemática e atenção voluntária. 
La transición del lenguaje interior, reducido al máximo, del 
lenguaje para uno mismo al lenguaje escrito, desarrollado al 
máximo, el lenguaje para otra persona exige del niño
100 
complicadísimas operaciones de construcción voluntaria del tejido 
semántico. (VIGOTSKI, 1993: 232) 
Mas, se por um lado, a aquisição da escrita é dificultada pela sua demanda de 
abstração e complexidade de composição, por outro lado, seu uso constitui uma força 
que impulsiona o desenvolvimento da criança. O que orienta a linguagem escrita da 
criança é a consciência e a intenção. A criança precisa entender a escrita como uma 
função cultural complexa para saber com quais intenções usá-la. Além disso, precisa 
conscientizar-se quanto à estrutura complexa e diferenciada da escrita. Por este motivo, 
a maneira como os signos são empregados na escrita são assimilados pela criança de 
modo arbitrário e consciente. As funções psicológicas superiores exigidas pela escrita 
ainda não se desenvolveram quando a criança se inicia no processo de alfabetização, 
mas são desenvolvidas durante o processo. 
Resumiendo esta breve exposición de los resultados de las 
investigaciones sobre la psicología del lenguaje escrito, podemos 
decir que es un proceso totalmente diferente del lenguaje oral, 
desde el punto de vista de la naturaleza psíquica de las funciones 
que lo integran. Es el álgebra del lenguaje, la forma más difícil y 
complicada de la actividad verbal intencionada y consciente. Esta 
premisa nos permite llegar a dos conclusiones: 1) encontramos en 
ella la explicación de por qué se manifiesta en el escolar tan 
patente separación entre su lenguaje oral y su lenguaje escrito; esta 
separación está determinada y medida por la separación entre los 
niveles de desarrollo de la actividad espontánea, involuntaria y no 
consciente por un lado y la actividad abstracta, voluntaria y 
consciente, por otro; 2) al inicio del aprendizaje del lenguaje 
escrito, todas las funciones psíquicas que lo fundamentan no sólo 
no están completas, sino que ni siquiera han iniciado su verdadero 
proceso de desarrollo. El aprendizaje se apoya en procesos 
psíquicos inmaduros, que sólo se hallan al comienzo de su primer y 
principal ciclo de desarrollo. (VIGOTSKI, 1993: 232-3) 
Apesar de todas as dificuldades para o desenvolvimento da escrita, a escola não 
precisa esperar que a criança atinja certo nível de desenvolvimento para aprender a 
escrever. No entanto, também não se pode esperar que o ensino proporcione o 
desenvolvimento, acompanhando-o como uma sombra. Segundo Vigotski, o
101 
desenvolvimento tem uma lógica própria, não se subordina ao programa escolar, 
embora a aprendizagem sempre se adiante ao desenvolvimento. O que ocorre é uma 
interação entre as matérias escolares e o desenvolvimento da criança. Por um lado, 
existe um processo de ensino que tem sua lógica e sua seqüência. Por outro lado, temos, 
no interior da cabeça do aluno, uma lógica própria de desenvolvimento. A 
aprendizagem e o desenvolvimento na escola apresentam a mesma relação que a zona 
de desenvolvimento próximo e o nível de desenvolvimento real. Na aprendizagem 
infantil só é bom o que se adianta ao desenvolvimento da criança. Por outro lado, só se 
pode ensinar para a criança aquilo que está dentro de suas possibilidades. 
A partir da teoria da psicologia histórico-cultural sobre o desenvolvimento da 
escrita, é possível inferir implicações pedagógicas. Para desenvolver a escrita como 
simbolização, a escola precisa proporcionar atividades de expressão, desenho, jogo, 
dramatização e arte. Para desenvolver a escrita como simbolismo de segunda ordem, 
precisa ensinar o sistema gráfico e propor atividades de leitura silenciosa. Para 
desenvolver a escrita como simbolismo direto, precisa fazer atividades de reflexão sobre 
as diferenças entre fala e escrita. No bojo de todas estas atividades deve estar o ensino 
da escrita como uma linguagem necessária. Afinal, atividade, para a psicologia 
histórico-cultural, é quando há diferenciação entre objeto e motivo, ou seja, quando o 
homem faz algo sabendo por que faz, tendo consciência das necessidades que suscitam 
as ações humanas. 
Nisto cabe perguntar: será que o livro didático propõe atividades nos termos da 
psicologia histórico-cultural? Será que significa a escrita como algo importante na nossa 
cultura? Que finalidades o livro didático confere à escrita? Á luz das etapas do 
desenvolvimento da escrita e de suas possíveis implicações pedagógicas procederemos, 
no próximo capítulo, à análise do livro didático.
102 
4. ESCOLHA DO LIVRO DIDÁTICO E CRITÉRIOS DE ANÁLISE 
Para cumprir com os objetivos propostos neste trabalho, a escolha do livro 
didático precisou atender aos seguintes critérios: citar categorias de Vigotski acerca do 
desenvolvimento da escrita nos textos aos professores; constar no referencial teórico 
pelo menos dois livros importantes de Vigotski, além de livros de Smolka e Oliveira, 
autoras que escreveram sobre alfabetização e escrita segundo a perspectiva da 
psicologia histórico-cultural; apresentar atividades destinadas à alfabetização que 
indicassem alguma apropriação da teoria do autor; bom índice de aceitação pelas 
escolas; avaliação favorável no Guia do Programa Nacional do Livro Didático. As duas 
últimas condições se justificam porque investigar um livro didático que seja aceito pelo 
MEC e distribuído nas escolas torna os resultados desta pesquisa mais relevantes para a 
reflexão sobre a prática escolar. 
Para entender melhor como funciona a escolha dos livros didáticos pelas escolas, 
vejamos o que é e como funciona o PNLD. Este programa do Ministério da Educação 
foi implementado no ano de 1985 e passou a garantir a distribuição de livros didáticos 
nas escolas públicas para todos os estudantes dos anos iniciais do ensino fundamental. 
O PNLD é desenvolvido pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação 
(FNDE) e pela Secretaria de Educação Fundamental (SEF), órgãos ligados ao 
Ministério da Educação. A finalidade do PNLD é avaliar, adquirir e distribuir 
gratuitamente livros didáticos para o ensino fundamental público brasileiro. Do primeiro 
ao quarto ano do ensino fundamental, são distribuídos livros de Alfabetização, Ciências, 
História, Geografia, Matemática e Português. 
De acordo com Batista e Val (2004), em 1996 os livros didáticos passaram a ser 
submetidos à avaliação prévia. Esta avaliação é de natureza conceitual (as obras não 
devem conter erros) e política (devem ser isentas de preconceito, discriminação, 
estereótipos e proselitismo político e religioso). Os livros devem apresentar qualidade 
metodológica, entendida como emprego de diferentes estratégias de ensino e 
aprendizagem e coerência entre a metodologia indicada no texto de assessoria aos 
professores e os exercícios e práticas propostos aos alunos. No que se refere às 
atividades aos alunos, estas devem ser diversificadas, possibilitando a observação, 
análise, elaboração de hipóteses e memorização. A avaliação vem sendo realizada com 
a coordenação de docentes universitários e com a supervisão da SEF. Os livros recebem 
distinção de acordo com a avaliação da qualidade. Com base nesta avaliação, a SEF
103 
organiza o ‘Guia de Livros Didáticos’. Este guia é distribuído para as escolas usarem 
como apoio na escolha de seus livros. 
4.1. Metodologia empregada para escolha do livro didático 
Para cumprir com todos os critérios da pesquisa e escolher apenas um livro, foi 
preciso definir as prioridades da pesquisa e, a partir delas, fazer uma gradação de passos 
para escolha. Assim, os procedimentos foram os seguintes: 
1º - Leitura do guia do PNLD de 2007 – Alfabetização. O guia mostra que, a 
partir da avaliação dos livros didáticos, estes foram classificados em três blocos: livros 
que abordam de forma desigual os diferentes componentes da alfabetização e do 
letramento; livros que abordam de forma equilibrada os diferentes componentes da 
alfabetização e do letramento8; e livros que privilegiam a abordagem da apropriação do 
sistema de escrita. A partir da leitura do guia, foi verificado que os livros classificados 
no segundo bloco foram melhor avaliados pelo MEC, preenchendo maior número de 
requisitos como: trabalho com projetos, produção de textos, ensino do sistema de escrita 
e proposta de leituras. 
2º - Leitura das resenhas dos livros do segundo bloco do PNLD 2007. A partir 
desta leitura, foram selecionados os livros que apresentavam uma proposta 
interacionista, sociointeracionista ou histórico-cultural. Foram identificados sete livros 
neste enfoque. 
3º - Leitura do Guia do PNLD de 2004 – Alfabetização, para identificar a 
presença de um dos sete livros pré-selecionados a partir do guia de 2007. Conforme já 
foi explicitado, foi priorizada a escolha de um livro que fizesse parte do PNLD de 2004 
e 2007, pois a repetição em dois guias seguidos pode indicar que o livro teve boa 
aceitação nas escolas. Após esta terceira etapa, sobraram quatro livros dos sete pré-selecionados. 
4º - Foi feita a análise do exemplar para o professor de cada um dos quatro livros 
didáticos selecionados da leitura dos Guias do PNLD de 2004 e 2007. Foram 
selecionados os livros que apresentaram, nos textos aos professores, referências 
explícitas às categorias da teoria de Vigotski acerca do desenvolvimento da escrita. 
8 Para o Guia do PNLD, abordar de modo equilibrado os diferentes componentes da alfabetização e do 
letramento significa incorporar práticas de leitura, oralidade e produção de textos ao aprendizado das 
relações grafemas-fonemas. Embora o Guia do PNLD faça uma distinção entre alfabetização e 
letramento, esta não está explicitada em seu texto. Entretanto, a distinção entre alfabetização e letramento 
não é objeto deste estudo, e nem constitui uma análise importante para sua compreensão.
104 
Após, foi verificado se constavam, na bibliografia do livro didático, pelo menos dois 
livros de Vigotski, além de livros de Smolka e Oliveira, autoras que estudaram a 
concepção histórico-cultural de alfabetização. Nesta etapa restaram dois livros 
didáticos. 
5º - Foi feita a análise dos exercícios propostos nos dois livros didáticos. Foi 
priorizado o livro que apresentou mais atividades envolvendo gesto, desenho e jogo e 
situações reais de uso da escrita. 
Importa salientar que, tanto na leitura do Guias do PNLD, quando na análise dos 
livros didáticos, não foi encontrado um livro que apresentasse uma proposta unicamente 
pautada na psicologia histórico-cultural. 
A partir destes critérios, foi escolhido o livro de alfabetização da coleção 
‘Trocando Idéias. Alfabetização e Projetos’, de Mércia Maria Silva Procópio e Jane 
Maria Araújo Passos. Este livro, segundo o Guia do PNLD 2007, é o único organizado 
por projetos de trabalho9. 
4.2. Descrição do livro didático selecionado 
As autoras do livro didático escolhido são Mércia Maria Silva Procópio e Jane 
Maria Aparecida Passos. Procópio é pedagoga pela Universidade Estadual de Montes 
Claros, Minas Gerais, pós-graduada em Especialização do Pedagogo. A autora, que 
estuda alfabetização e aprendizagem desde 1987, atua como consultora em Educação 
Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio e é organizadora de cursos para formação 
de professores da Educação Básica. Passos é pedagoga pela mesma universidade e pós-graduada 
em Psicopedagogia. Já atuou como professora, psicopedagoga e supervisora 
escolar. Atualmente é tutora do Projeto Veredas, da Secretaria do Estado de Educação 
de Minas Gerais, pela Universidade Federal de Juiz de Fora, e professora de Psicologia 
da Educação na Faculdade do Vale do Gorutuba de Nova Porteirinha. 
O livro ‘Trocando idéias’ é definido pelo Guia Nacional do Livro Didático de 
2007 como o único que apresenta uma proposta por projetos de trabalho. São sete os 
projetos: “Todo mundo tem um nome”, “Histórias em quadrinhos, gibis e outros 
9 De acordo com Hernández (1998), projeto de trabalho é uma metodologia pedagógica na qual o 
processo de ensino e aprendizagem decorre de uma situação-problema negociada com o aprendiz. Esta 
situação pode ser uma dúvida, um questionamento, uma curiosidade ou necessidade de confeccionar algo. 
A busca de solução ao problema proposto inicia com a investigação dos conhecimentos prévios do aluno 
para levantar questionamentos e planejar a busca conjunta de informações. Embora o livro didático 
analisado se proponha a apresentar uma organização por projetos de trabalho, este não constitui o tema 
desta dissertação.
105 
“bichos””, “Quem conta um conto aumenta um ponto”, “É junho, pessoal!”, “Folclore”, 
“Plantas e bichos” e “Histórias de vida”. No texto para os professores são apresentados 
as justificativas e o desenvolvimento de cada projeto proposto. 
Dentro de cada projeto, são propostas oficinas para trabalhar a oralidade, a 
escrita, o jogo e a avaliação. As atividades propostas pelos projetos são divididas nas 
seguintes oficinas: oficina de idéias, oficina de linguagem oral, oficina de linguagem 
escrita, oficina divertida e roda de avaliação. 
Na “Oficina de idéias” são propostas questões iniciais para professor e alunos 
planejarem o projeto. Por exemplo, no projeto “Todo mundo tem um nome” o livro 
coloca a seguinte questão: “O que você gostaria de estudar no projeto todo mundo tem 
um nome?” (PROCÓPIO & PASSOS, 2006). Interessante observar que as questões 
colocadas pelo livro quase sempre se referem ao que o aluno gosta ou não gosta, não 
explorando de fato seus conhecimentos prévios ou trazendo questões instigantes que 
levem ao debate e formulação de hipóteses. Apenas no projeto “Histórias de vida”, há 
maior exploração dos conhecimentos prévios do aluno, quando o livro questiona o que 
os alunos pensam sobre preconceito e quais seus sonhos para o Brasil. 
Na “Oficina de linguagem oral” não constam sugestões de temas a serem 
debatidos entre alunos e professor, tampouco questões instigantes e polêmicas. Em 
poucas atividades os conhecimentos científicos são colocados como temas de debate, 
embora o livro proponha o estudo dos animais e das plantas. Neste capítulo, único sobre 
conhecimento científico, a oficina de linguagem oral limita-se à decisão em grupo sobre 
como será feito um relatório de observação de animais. As oficinas, em geral, referem-se 
mais à realização de atividades a partir da instrução do professor, ou brincadeiras e 
jogos nas quais a criança precisa representar ou ler em voz alta. São atividades que 
permitem a expressão oral. 
Na ‘Oficina de Escrita’ são propostas leituras e produções de texto. São poucas 
as propostas de produção de textos. Os tipos de textos que o livro apresenta são: 
convite, letra de música, história, história em quadrinhos, poemas, relato de opiniões, 
texto informativo, cartaz, receita culinária, instrução de jogo, biografia e autobiografia. 
São colocadas questões sobre as diferenças entre um tipo de texto e outro. 
A “Oficina divertida” apresenta sugestões de jogos, brincadeiras e atividades 
artísticas. Neste ponto, o livro propõe algumas brincadeiras interessantes, que serão 
analisadas mais adiante.
106 
A oficina “Roda de Avaliação” é o momento no qual o livro propõe questões 
para o aluno avaliar sua participação no projeto. 
Desde as primeiras páginas, o livro apresenta textos grandes e, em algumas 
atividades, sugere que o professor leia em voz alta, demonstrando referir-se a um aluno 
que ainda não domina o código escrito. 
Nota-se, nos projetos propostos no livro didático, uma ausência de 
questionamentos iniciais para introduzir conceitos científicos a partir dos 
conhecimentos prévios do aluno. São feitas propostas para o estudo das plantas e dos 
animais através de textos retirados de enciclopédia e poesias. A extinção dos animais é 
referida através de um poema, que não trata nem das causas e nem das conseqüências 
deste problema ambiental. 
O livro traz muitas imagens, fotos, desenhos e espaços para o aluno escrever, 
desenhar e recortar. Propõe leitura de imagens, principalmente de obra de artistas 
famosos. Este aspecto será objeto da análise realizada no próximo capítulo. 
O livro não apresenta nenhum tipo de preconceito religioso, racial ou de gênero. 
Utiliza sempre o gênero masculino e feminino. Por exemplo, ao fazer alusão ao 
professor, refere-se “professor e professora”. 
Quanto à linguagem empregada, a interlocução do livro é com o aluno. Ao se 
dirigir ao aluno o livro diz o que o professor deve fazer, como fica exemplificado neste 
trecho: “Para iniciar o estudo sobre nomes, você, seus colegas e seu professor ou sua 
professora irão organizar uma roda para começar a conversa.” (PROCÓPIO & 
PASSOS, 2006: 11). Neste modo de o livro comunicar-se com o professor, se evidencia 
uma concepção pedagógica centrada no aluno. No texto para o professor, intitulado pelo 
livro como ‘assessoria pedagógica’, a interlocução é com um leitor ausente. O texto de 
assessoria pedagógica não faz uma interlocução com o professor porque se dirige a este 
na terceira pessoa. Apenas no último tópico do texto, o livro se dirige ao professor, ao 
oferecer trinta e três sugestões complementares ao livro didático de alfabetização. Neste 
tópico, o livro utiliza o modo imperativo, como no seguinte trecho: “Desenvolva 
trabalhos em grupos cooperativos para possibilitar as trocas entre as crianças”. 
(PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 26) 
O livro traz um texto de assessoria pedagógica que orienta o professor quanto às 
concepções teóricas que fundamentam a proposta. 
A seqüência de atividades, sugerida pelo livro, demonstra certa concepção de 
desenvolvimento da escrita pela criança. Nas primeiras atividades, o livro apresenta
107 
fotos de crianças em diferentes idades e, ao lado, suas escritas, sendo que algumas 
demonstram o não domínio do sistema gráfico. Após as fotos, o aluno é encorajado a 
escrever, do seu jeito, o que é para ele ler e escrever. A seguir é apresentada a foto de 
uma inscrição feita em rocha por um povo primitivo e um pequeno texto que fala que a 
escrita não foi sempre do jeito que é hoje. A atividade seguinte é o projeto “Todo 
mundo tem um nome”, que traz várias atividades envolvendo a escrita do nome próprio. 
O livro finaliza com três páginas pautadas em branco, lugar reservado para o 
professor fazer suas anotações. 
4.3. As categorias de análise 
Para abordar o livro didático, foi enfocado tanto o texto para os professores, 
quanto as atividades propostas. Ambos foram analisados em conjunto e inter-relação, 
conforme ficará claro na explicitação da metodologia utilizada. 
Para analisar a apropriação da teoria de Vigotski pelo livro de alfabetização, 
foram enfocadas as categorias de Vigotski que se encontram presentes, tanto nos 
exercícios propostos, quanto no texto para os professores. Estas categorias são 
relacionadas com a teoria de Vigotski acerca do desenvolvimento da escrita. Por isso, o 
objeto da análise foram os três momentos do desenvolvimento da escrita na psicologia 
histórico-cultural: representação simbólica na pré-história da ontogênese, aprendizagem 
da escrita como simbolismo de segunda ordem, escrita como função cultural complexa. 
Além dos momentos do desenvolvimento da escrita, seus fatores também constituíram 
objeto da análise. Os fatores são os elementos que, segundo Luria e Vigotski, levam a 
criança ao desenvolvimento da escrita. 
4.3. Metodologia empregada para análise do livro didático 
Para cada momento do desenvolvimento da escrita, a princípio, foram 
selecionados seus fatores enquanto possíveis categorias de análise. As categorias foram 
numeradas do seguinte modo: 1 - Conceito de desenvolvimento da escrita; 2 - Gesto; 3 - 
Desenho; 4 - Jogo; 5 - Oralidade; 6 - Diferenças entre linguagem formal e informal; 7 - 
Interação; 8 - Leitura silenciosa; 9 - Subordinação do ensino das letras à necessidade da 
escrita; 10 - Exploração do aspecto sonoro da escrita; 11 - Valorização dos 
conhecimentos prévios do aluno; 12 - diferenças entre fala e escrita; 13 - Ensino de 
conceitos científicos; 14 - Tipos de textos; 15 - Produção de textos; 16 – Apropriação; 
17 – Mediação; 18 - Conceito de escrita.
108 
Foi feita uma leitura detalhada do livro didático, tanto dos exercícios propostos 
aos alunos, quando do texto de assessoria pedagógica. Durante a leitura, foram 
assinalados, ao lado de cada exercício ou trecho do texto de assessoria pedagógica, os 
números correspondentes às categorias ali observadas. A escolha de algumas categorias 
foi feita antes da leitura do livro didático, enquanto outras foram criadas a partir da 
leitura. Interessante salientar que em uma passagem do livro podiam ser observadas, 
algumas vezes, mais de uma categoria. Assim, por exemplo, em um exercício do livro 
no qual era solicitado que os alunos produzissem uma história em quadrinhos, foram 
assinalados os números 3, 14 e 15, correspondentes, respectivamente, às categorias: 
desenho, tipos de textos e produção de textos. 
Por fim, foi feita uma interpretação de como as categorias do desenvolvimento 
da escrita aparecem no livro didático, analisando sua possibilidade de apropriação pelo 
mesmo, bem como a coerência com a teoria de Vigotski. As 18 categorias iniciais foram 
reagrupadas no momento da análise interpretativa do modo como o livro didático se 
apropria da teoria de Vigotski. Este reagrupamento foi necessário porque algumas 
categorias iniciais puderam ser consideradas em conjunto, caso, por exemplo, das 
categorias apropriação, mediação e interação. 
Eis, abaixo, como ficaram agrupados os fatores do desenvolvimento da escrita 
ao final da análise interpretativa do livro didático: 
Categorias transversais a todos os momentos 
Mediação e conceito de escrita. 
Representação simbólica na pré-história da ontogênese 
Gesto, desenho, jogo. 
Escrita como simbolismo de segunda ordem 
Exploração do aspecto sonoro da escrita e leitura silenciosa e oral. 
Escrita como função cultural complexa 
Escrita como necessidade, diferenças entre fala e escrita. 
Novamente foi feita a leitura do livro, porém numerando os fatores do 
desenvolvimento da escrita segundo as categorias de 01 a 09. Assim, houve um
109 
reagrupamento das categorias que já haviam sido selecionadas. Por exemplo, atividades 
onde, na primeira leitura, havia sido assinalado “diferença entre linguagem formal e 
informal”, foi, na segunda leitura, assinalado como “diferenças entre fala e escrita”. 
Durante a leitura do texto para os professores e das atividades propostas, quando um dos 
fatores do desenvolvimento da escrita se apresentou - ou sendo citado ou como 
concretização em exercício de alfabetização - o seu número correspondente foi 
assinalado. 
Na análise de cada um dos momentos do desenvolvimento da escrita, foram 
buscados os exercícios e partes do texto aos professores, correspondentes aos seus 
fatores. A partir disto se procedeu à análise interpretativa de como o livro didático se 
apropriou da concepção histórico-cultural do desenvolvimento da escrita. 
Partindo desta análise, foi possível compreender como o livro didático – texto 
para os professores e estrutura das atividades – concebeu o desenvolvimento da escrita. 
No capítulo seguinte, aprofundaremos a análise dos exercícios e textos do livro, 
enfocando suas inter-relações com a concepção de desenvolvimento da escrita da 
psicologia histórico-cultural.
110 
5. A APROPRIAÇÃO PELO LIVRO DIDÁTICO DA CONCEPÇÃO DE 
VIGOTSKI ACERCA DO DESENVOLVIMENTO DA ESCRITA 
Este capítulo tem o objetivo de mostrar os resultados da análise do livro 
didático. Conforme já foi apresentado no capítulo anterior, foram objetos da análise os 
fatores dos momentos de desenvolvimento da escrita, observados na psicologia 
histórico-cultural, além dos conceitos de escrita e de mediação. A análise foi realizada 
tanto nos exercícios do livro didático, quanto no texto aos professores. 
Cabe retomar que o livro didático analisado não apresenta uma concepção 
pedagógica exclusivamente histórico-cultural. O livro define sua concepção como 
‘interacionista’ e nela inclui vários outros autores além de Vigotski. Entretanto, para 
cumprir o objetivo aqui colocado, este fator não constitui impeditivo da análise. Aqui 
foram investigadas as categorias do desenvolvimento da escrita da psicologia histórico-cultural, 
com o objetivo de compreender como elas, de algum modo, aparecem ou 
podem aparecer em um livro didático. O objetivo da investigação não foi julgar se o 
livro trabalha ou não na perspectiva da psicologia histórico-cultural, embora este análise 
tenha sido necessária em alguns momentos. 
O primeiro item deste capítulo trata, de modo inter-relacionado, de como as 
categorias ‘escrita’ e ‘mediação’ aparecem no texto de assessoria pedagógica do livro 
didático. O segundo item trata dos fatores gesto, jogo e desenho, referentes ao momento 
da pré-história do desenvolvimento da escrita na ontogênese. O terceiro item trata do 
momento da escrita como simbolismo de segunda ordem, enfocando, nos exercícios do 
livro didático, dois importantes fatores do desenvolvimento da escrita: o ensino das 
relações grafemas-fonemas e a leitura silenciosa. O quarto item traz o momento da 
escrita como função cultural complexa, através do enfoque da escrita como necessidade 
e as relações entre oralidade e escrita. 
5.1. Os conceitos de ‘mediação’ e ‘escrita’ no texto de assessoria pedagógica do 
livro didático 
Vigotski trata do desenvolvimento da escrita na ontogênese e filogênese sem, em 
momento algum, propor uma conceituação precisa sobre o que é escrita. Apesar disso, a 
análise acurada da sua teoria permite inferir um conceito de escrita. Este conceito, 
embora tenha sido formulado no primeiro capítulo desta dissertação, deve aqui ser 
retomado para melhor compreensão da análise do livro didático.
111 
A escrita é uma função psicológica superior que media a relação do homem com 
o mundo e consigo, sendo um sistema de signos e instrumentos. A escrita apresenta 
aspectos sensoriais diferentes da fala, pois representa uma linguagem desprovida de 
sons, além de ser, quase sempre, dirigida a um interlocutor ausente ou imaginário. Nos 
sistemas alfabéticos e silábicos, a oralidade constitui um meio de acesso à escrita. No 
sistema alfabético, a escrita reproduz os sons da fala para poder representar a 
linguagem. No entanto, quando se torna um simbolismo direto, as relações entre sons e 
sinais gráficos tornam-se secundárias, e a escrita passa a representar diretamente a 
linguagem. Nas culturas letradas, a escrita como simbolismo direto tornou-se uma 
necessidade. A relação de semelhança entre fala e escrita é que ambas são meios de 
interlocução e formam elos entre as pessoas. 
A aprendizagem da escrita requer consciência e intenção, pois exige a 
compreensão das suas diferenças em relação às outras formas de linguagem, bem como 
habilidade para adaptar o registro escrito à intencionalidade do enunciado. 
A categoria ‘escrita’ foi analisada no texto de assessoria pedagógica do livro 
didático, em interação com a outra categoria desta análise: a mediação. No texto do 
livro didático, as autoras, Procópio e Passos, citam Vigotski para mostrar sua concepção 
de escrita e mediação. O texto trata da mediação como importante fator para 
aprendizagem de língua portuguesa. A escrita é compreendida como sendo 
representação e mediação. Entretanto, as autoras apenas citam Vigotski na conceituação 
de mediação e escrita, não chegam a assumir que a proposta pedagógica do livro 
didático é histórico-cultural. A concepção de escrita expressa pelas autoras traz o 
conceito de mediação, mas não é uma concepção vigotskiana. 
Compreender a escrita como um sistema de representação que 
mediatiza a ação do homem no mundo e que, portanto, é produzido 
nas diferentes práticas sociais ao longo da história é de 
fundamental importância para o (a) educador (a) que assume a 
função de ensinar – promover a aprendizagem desse objeto de 
conhecimento. (PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 09) 
Vigotski só é citado quando as autoras concebem o conceito de linguagem. 
Ao conceber a linguagem como “um sistema de signos histórico e 
social que possibilita ao homem significar o mundo e a realidade” 
(Vigotski, 1989), o(a) educador(a) tem diante de si o desafio de
112 
organizar diferentes e significativos encontros da criança com este 
universo: a língua (...) (PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 05) 
Embora as autoras citem Vigotski para conceituar linguagem, tratam das 
relações entre fala e escrita, dois parágrafos abaixo, usando termos da lingüística 
textual. Importante ressaltar que, embora citem termos da lingüística textual, as autoras 
não explicitam as categorias desta concepção de linguagem, conforme demonstra a 
citação. 
(...) texto é manifestação lingüística do discurso, produto da 
atividade discursiva oral e escrita, constituindo uma teia de 
significados materializados no conjunto de relações entre os 
elementos da língua, os quais, ao se articularem, formam um todo 
coerente e coeso e configuram uma unidade significativa global, 
independentemente de sua extensão. Um texto se demarca pelo 
conjunto relacional de elementos da língua a partir da coesão e da 
coerência, o que se denomina textualidade. (PROCÓPIO & 
PASSOS, 2006: 06). 
O aluno e o professor são concebidos pelas autoras do livro a partir da psicologia 
histórico-cultural. O aluno é concebido como um indivíduo historicamente constituído e 
como um construtor de conhecimentos. Para explicar como se dá a dialética entre 
história individual e história social na apropriação do conhecimento, Procópio e Passos 
citam um trecho do livro A formação social da mente, de Vigotski, que fala da 
construção de significados pela criança através da interação com uma pessoa mediadora 
do conhecimento. O papel da criança neste processo, segundo o livro didático, é 
modificar o objeto de conhecimento e a si mesmo nas relações de ensino e 
aprendizagem. Por sua vez, o papel do professor é ser aquele que organiza as propostas 
pedagógicas e é co-autor e parceiro no desenvolvimento do trabalho pedagógico. As 
autoras citam ainda a categoria ‘zona de desenvolvimento próximo’ para lembrar que o 
professor deve investigar as possibilidades de desenvolvimento da criança, para elaborar 
sua proposta pedagógica. 
As autoras consideram que a zona de desenvolvimento próximo é o lugar 
privilegiado de mediação entre a criança e a língua. Através da mediação do professor, o 
aluno ascende a patamares mais elevados de conhecimento da língua portuguesa. Estes 
patamares o levam ao conhecimento do sistema de linguagem em sua norma culta.
113 
Vale lembrar o conceito de zona de desenvolvimento proximal 
como espaço privilegiado de mediação entre a criança e a língua 
portuguesa, como objeto de conhecimento. Considerando a zona de 
desenvolvimento proximal como “a distância entre o nível de 
desenvolvimento real, que se costuma determinar através da 
solução indiferente de problemas, e o nível de desenvolvimento 
potencial, determinado através da solução de problemas sob a 
orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros 
mais capazes” (Vygotsky, 1984), a mediação do(a) professor(a) é 
de fundamental importância para a criança reconstruir suas teorias 
e reelaborar seus conceitos espontâneos, transformando-os em 
conceitos próprios do sistema de linguagem, considerada em sua 
norma culta. (PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 08) 
Percebe-se que Procópio e Passos citam a categoria ‘zona de desenvolvimento 
próximo’ deslocada do contexto geral no qual ela se situa na obra de Vigotski. As 
autoras deixam de fora a importante tese de Vigotski, já citada em capítulo anterior, de 
que o trabalho na zona de desenvolvimento próximo visa a autonomia do aluno. Além 
disso, as autoras colocam apenas o professor como mediador da aprendizagem, de modo 
que acabam por desconsiderar que outros elementos podem ser mediadores. Para a 
psicologia histórico-cultural, o elemento mediador entre o sujeito e o desenvolvimento 
das funções superiores pode ser a própria pessoa, através do sistema de signos. Também 
um instrumento, ou a cultura, podem ser elementos mediadores. Entretanto, o livro 
didático cita somente o professor como mediador, deixando de fora outros fatores do 
processo de ensino e aprendizagem. O livro até faz alusão à importância de haver um 
ambiente alfabetizador para que ocorra a aprendizagem da leitura e escrita. Entretanto, 
considera que o professor é o único responsável por organizar este ambiente. 
Interessante observar que Procópio e Passos utilizam ‘mediação’ que é um conceito da 
psicologia histórico-cultural, e o transformam em uma espécie de didática. 
Vigotski (2000), ao demonstrar sua concepção de mediação, utiliza a imagem de 
um triângulo, no qual em uma ponta está o sujeito, na outra o objeto e, na terceira, um 
elemento que media o acesso do sujeito até o objeto. 
Procópio e Passos também apresentam um triângulo para representar a 
mediação. Segue, abaixo, a reprodução do triângulo apresentado pelo livro:
114 
Contexto socioistórico 
Contexto escolar 
Aluno(a) aprendiz 
relação dialética 
Língua 
portuguesa 
(PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 06) 
Professor(a) 
mediador (a) 
O livro assim explica o esquema do triângulo: 
Portanto, é preciso que o(a) professor(a), ao adotar o livro, 
compreenda as três variáveis componentes da relação e perceba 
que ela se insere em um contexto que extrapola o escolar, na 
medida em que concebe o discurso produzido em condições 
socioistóricas, materializado sob a forma de textos, reconhecendo a 
escola como um espaço privilegiado de aprendizado desse objeto. 
(PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 07) 
O conceito de mediação expresso pelo livro didático pode ser interpretado de 
modo indistinto de transmissão de conhecimento. 
O ensino transmissivo, proposto pelo livro no texto aos professores, entra em 
contradição com a sua própria linguagem. O processo de ensino proposto é centrado no 
professor, mas o livro se refere o tempo todo ao aluno, conforme já foi analisado no 
capítulo anterior. Se é o professor quem ensina, como pode ser o aluno quem conduz 
este processo? 
Das concepções de mediação e zona de desenvolvimento próximo, é possível 
inferir que estas se relacionam mais com um ensino pautado na cooperação dos 
envolvidos no processo de ensino e aprendizagem, do que na mera transmissão de
115 
conhecimentos. Podemos aqui nos remeter à Beatón (2005), autor que explica os níveis 
de ajuda que podem ser prestados para trabalhar na zona de desenvolvimento próximo. 
Para fazer os alunos realizarem coisas que sozinhos não conseguem, é preciso que o 
professor tenha intencionalidade pedagógica, mas, mais do que isso, que preste ajuda ao 
aluno, sempre visando sua autonomia. Embora a escola seja o lugar privilegiado para a 
aquisição de conhecimentos científicos, esta deve ocorrer em atividades nas quais os 
mediadores da aprendizagem sejam o professor, os demais alunos, o objeto de 
conhecimento e o próprio indivíduo. No caso do ensino da escrita, o gesto, o desenho, o 
jogo, a interação e a oralidade, entre outros, são importantes mediadores do processo de 
apropriação do sistema de signos-simbólicos da escrita, bem como da escrita como 
linguagem e função cultural complexa. 
Sendo assim, como a mediação é uma categoria transversal a todos os fatores do 
desenvolvimento da escrita, sua concretização nos exercícios propostos pelo livro 
didático está de algum modo implícita aos fatores do desenvolvimento da escrita, a bem 
dizer: o gesto, o desenho, o jogo, o ensino das relações grafemas-fonemas, a leitura 
silenciosa, o ensino da escrita como algo necessário e a oralidade. 
Para analisar os fatores do desenvolvimento da escrita, passemos aos seus 
momentos e suas respectivas categorias relacionadas. 
5.2. A representação simbólica na pré-história da ontogênese 
A representação simbólica é um momento presente em todas as fases do 
desenvolvimento da escrita. Na sua pré-história da escrita, a criança se apropria da 
função representativa do gesto, do jogo e do desenho. Ao desenhar e jogar, a criança 
descobre que pode usar coisas para representar outras coisas e que pode desenhar a 
própria fala. Esta descoberta abre caminho para a compreensão do sistema de signos 
simbólicos que formam a escrita, através dos sinais gráficos usados para representar os 
segmentos sonoros da fala. Na fase inicial da escrita, a criança se apropria das relações 
grafemas-fonemas, aprendendo que pode representar a linguagem através da escrita. Na 
escrita como função cultural complexa, a criança usa a escrita para representar a 
linguagem. 
Para tratar da representação simbólica na pré-história da escrita da criança, é 
preciso reportar-se aos seus principais fatores: o gesto, o jogo e o desenho. 
No texto de Assessoria pedagógica, as autoras, Procópio e Passos, não 
mencionam a concepção de Vigotski sobre a importância do gesto, do jogo e do
116 
desenho para o processo de alfabetização. Também não propõem nenhum tipo de 
relação entre desenvolvimento da escrita e representação simbólica. No texto, o 
brinquedo é referido como algo importante no desenvolvimento da criança, mas não 
como fator do desenvolvimento da escrita. Também não aparece no texto a relação entre 
jogo e representação simbólica. O jogo, no texto de Procópio e Passos, é concebido 
como algo que leva a criança a ressignificar o mundo, suas ações, suas experiências em 
relação ao outro, além de vivenciar aspectos relacionados ao prazer. 
Embora fale da importância do brinquedo para a construção de regras, Procópio 
e Passos não citam a teoria da psicologia histórico-cultural sobre a relação entre jogo e 
zona de desenvolvimento próximo. Para Vigotski (2000), no faz-de-conta, a criança 
vivencia as regras inerentes às situações que representa no jogo. Por exemplo, quando 
brinca que é professora, a criança age de acordo com as regras inerentes à atividade da 
professora. Como imita situações adultas, a criança acaba por agir de modo mais 
evoluído, o que cria uma zona de desenvolvimento próximo. Para o livro didático, o 
brinquedo desenvolve a vivência de regras porque brincar implica em estar com o outro 
e partilhar objetos e espaços. 
Outra característica importante do brinquedo é a possibilidade de 
vivenciar regras significativas para a organização e o 
enfrentamento das situações de conflito, pois brincar implica estar 
com o outro, partilhando objetos e espaços comuns. (PROCÓPIO 
& PASSOS, 2006: 19) 
No texto de assessoria pedagógica, a concepção de jogo não é relacionada com a 
teoria de Vigotski. O desenho e o gesto não são citados como fatores do 
desenvolvimento da escrita. Entretanto, se as atividades de jogo, desenho e gesto, 
propostos no livro didático, permitem que a criança use coisas para representar outras 
coisas, há aí uma correlação com a teoria da psicologia histórico-cultural sobre o 
desenvolvimento da escrita. Para saber como o livro didático trabalha a relação do 
desenvolvimento da escrita com o gesto, o desenho e o jogo, ou entre escrita e 
representação simbólica, foi preciso investigar os exercícios propostos ao aluno. Foi 
preciso observar as propostos, no livro didático, de exercícios envolvendo gesto, 
desenho e jogo, a fim de investigar se estes são relacionados com a representação 
simbólica, como sugere a psicologia histórico-cultural.
117 
5.2.1. O gesto 
Sabemos que o gesto é o mais antigo parente genético da escrita. A história do 
gesto, como já vimos, é de apropriação pela criança de um significado produzido na 
interação. Contanto que a criança tenha um mínimo de convivência com adultos, o gesto 
surge muito cedo no seu desenvolvimento, ainda nos primeiros meses de vida. O gesto 
não é uma atividade que se aprende na escola, mas sim uma ação da qual a criança se 
apropria na medida em que interage socialmente. 
No entanto, atividades com mímica podem ser bons meios para as crianças 
entenderem que podem expressar-se de diversas formas. Além disso, através da mímica 
ocorre a função representativa, pois gestos são usados como meio de linguagem para 
representar fatos, eventos e idéias. 
Procópio e Passos propõem uma atividade de mímica que consiste em transmitir 
as idéias de um texto informativo para os colegas adivinharem. O texto trata sobre os 
macacos, as regiões onde habitam e o modo como vivem em bandos e usam os gestos 
para se comunicarem uns com os outros. Esta proposta é uma espécie de jogo, no qual 
os alunos precisam usar gestos para representar a linguagem. Como o texto sobre os 
macacos é científico, o jogo é bastante desafiante, pois trata de idéias mais abstratas, 
mais difíceis de expressar através de gestos. 
A atividade de mímica proposta no livro é interessante porque leva a criança a 
abstrair as idéias de um texto para transmiti-las de outro modo que não a fala e nem a 
escrita. Para ganhar ponto no jogo é preciso que os colegas entendam o significado da 
mímica, o que faz a criança refletir sobre como pode se comunicar de modo que o outro 
entenda. Adaptar o modo de se comunicar aos diferentes registros e fazer-se entender é 
importante para o desenvolvimento da escrita como função cultural complexa. 
A mímica pode ser uma brincadeira interessante para crianças representarem a 
linguagem usando gestos. Pode-se desafiar as crianças a representarem ações diversas, 
através de mímica, para que seus colegas adivinhem. Também é possível classificar as 
ações na mímica, desafiando as crianças a representarem determinadas categorias de 
ações, por exemplo: profissões, animais, coisas que se faz em casa, coisas que se faz ao 
acordar, etc. A mímica é uma atividade alfabetizadora porque faz a criança usar gestos 
para representar a linguagem, do mesmo modo como se usa a escrita para representá-la. 
Se no livro é proposta apenas uma atividade envolvendo gesto, o jogo e o 
desenho estão muito mais presentes nos seus exercícios, conforme veremos no próximo 
tópico. Entretanto, à diferença da atividade com gesto, as demais pouco trazem o jogo e
118 
o desenho como formas de representação. Ao invés disso, o objetivo da maioria das 
atividades é fazer a criança ler e escrever palavras, frases ou textos usando a escrita 
formal, estando o jogo e o desenho em função disso. Para melhor entender esta 
conclusão passemos à análise do jogo. 
5.2.2. O jogo 
A análise dos jogos propostos no livro teve três enfoques: os tipos de jogos, o 
modo como eles trabalham o simbolismo e a relação com o desenvolvimento da escrita. 
Dentre os tipos de jogos apresentados no livro, apenas um foi do tipo dramatização. Os 
restantes foram jogos pedagógicos com regras. Embora mesmo os jogos com regras 
tenham atividade simbólica, apenas um jogo proporcionou o uso de coisas para 
representarem outras coisas. Em relação à escrita, todos os jogos demonstraram ter 
como finalidade pedagógica levar a criança a ler e escrever palavras, frases ou textos 
usando a escrita formal. Vamos aprofundar esta conclusão. 
Dentre os tipos de jogos propostos no livro, nenhum é de faz-de-conta 
generalizado. Ou seja, Procópio e Passos não sugerem que as crianças imitem uma 
situação ou personagem. No entanto, se considerarmos que a criança brinca de faz-de-conta 
para realizar atividades próprias do mundo adulto, como propõe Leontiev (2003), 
podemos inferir que o jogo de faz-de-conta só pode mesmo emergir da experiência de 
vida da criança. A atividade representativa do jogo se desenvolverá na medida em que a 
criança conviver com outras crianças e pessoas, ou seja, através da inserção na cultura. 
Claro que a escola também é lugar de brincar e representar, mas, para dispor deste 
espaço, ela não precisa do livro didático. 
Procópio e Passos apresentam uma proposta de jogo de dramatização. No 
projeto sobre contos de fadas, há uma página do livro onde aparece a sugestão para que 
a criança use meias, botões e tintas para confeccionar fantoches e representar uma 
história de conto de fadas. Há um texto trazendo dicas de como confeccionar o boneco, 
ensaiar e apresentar de modo que todos entendam. O fantoche é um jogo de 
dramatização e, ao mesmo tempo, uma atividade com gestos, pois é preciso manipular 
os bonecos com as mãos, representando com gestos seus movimentos e expressões. O 
interessante da proposta é a sugestão para que a criança planeje a ação de representar. 
Na perspectiva de Leontiev (s/d), planejar a própria ação em função de objetivos é o que 
caracteriza a atividade humana; na medida em que o homem planeja suas ações, 
desenvolve as funções psíquicas superiores. O objetivo colocado no livro para o
119 
planejamento da ação de representar é o de dramatizar de modo que os espectadores 
entendam o teatro. Assim, esta atividade, além de permitir a aprendizagem da 
linguagem dramática, também trabalha a escrita como função cultural complexa. 
O restante dos jogos apresentados no livro são de regras, ou pedagógicos. São 
jogos que levam a criança a ler e escrever nomes e listas de palavras, aparentando serem 
específicos para a fase inicial da escrita. Nos jogos que envolvem a escrita, são 
propostos no livro: a confecção de um jogo de memória com figuras e palavras, um 
bingo de letras, o amigo oculto, o alfabeto móvel para formar palavras e a pescaria de 
São João com brinde. 
Para fazer as crianças lerem, há no livro a proposta do jogo ‘Boca de Forno’, que 
se desenvolve a partir da seguinte música: 
O instrutor diz: A turma responde: 
- Boca-de-forno? -Forno! 
- Jacarandá? - Dá! 
- Se não fizer? - Apanha! 
- Seu rei mandou dizer que todos... 
(o instrutor dá uma tarefa.) 
(A turma executa a tarefa.) 
(PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 142) 
A partir deste jogo, o livro propõe que os alunos copiem o texto do jogo em letra 
cursiva. A seguir, traz algumas observações sobre sinais de pontuação. Quanto à letra 
cursiva, é importante salientar que seu exercício no início do processo de alfabetização é 
desnecessário, se formos considerar que, para Vigotski, o traçado das letras é menos 
importante do que o ensino da escrita como função cultural complexa. O espaço urbano 
é repleto de materiais escritos, e a criança tem acesso à leitura de diversos tipos de 
letras. Ao sentir necessidade de ler e escrever, a criança, provavelmente, se esforçará 
para entender todos os tipos de letras, inclusive a cursiva. Mais interessante que forçar a 
aprendizagem da letra cursiva, exigindo que a criança exercite seu traçado em 
atividades repetitivas, é ensiná-la na medida das suas necessidades e curiosidades. Se as 
autoras do livro didático compreendessem a concepção histórico-cultural de 
alfabetização, certamente não proporiam exercícios de traçado da letra cursiva, visto 
que o mesmo deve se apropriado pela criança de modo natural. Vigotski (2000) faz
120 
diversas críticas aos métodos de alfabetização que levam a criança a desenvolver um 
belo traçado, sem, contudo, apropriar-se da escrita como função cultural complexa. 
O livro trabalha também a leitura de instruções, em um texto no qual ensina a 
criança a fazer pés de latas. Nesta atividade, o livro mostra a escrita como necessidade, 
tema do qual trataremos mais adiante. Seria interessante, entretanto, que propusesse 
alguma reflexão sobre textos de instrução. Ao invés disso, apenas propõe exercícios 
para a criança aprender a letra cursiva. 
Vigotski (2000) leva a entender que o jogo é uma etapa do desenvolvimento da 
escrita. A criança que usa objetos para simbolizar outros e que brinca de faz-de-conta 
desenvolve a representação simbólica, função de suma importância para compreender o 
sistema arbitrário da escrita. Os jogos pedagógicos que envolvem escrita, como bingo e 
memória, também têm símbolos. Como diz Vigotski, todo jogo com regras simboliza 
dada situação, além de que a criança precisa ter imaginação para entender o motivo pelo 
qual precisa executar certas ações no jogo e excluir outras. No caso dos jogos de bingo, 
pescaria e memória, eles são ainda importantes para a criança realizar atividade de 
leitura e escrita, exercitando a escrita como simbolismo de segunda ordem, ou seja, 
trabalhando as relações grafemas-fonemas. 
No entanto, os jogos de faz-de-conta também precisam estar presentes na 
atividade da criança em fase inicial da escrita. Diante disso, o que pode um livro 
didático? Ora, o livro didático pode propor jogos com regras e pedagógicos. Quando o 
livro traz as letras de um alfabeto móvel ou as cartelas de bingo, poupa o professor de 
um trabalho manual e proporciona momentos importantes de jogo na alfabetização. 
Entretanto, certas atividades de faz-de-conta só podem ser proporcionadas pelo 
ambiente. Crianças precisam de materiais não estruturados (bola, caixas, sucatas e 
outros materiais que permitem criações lúdicas variadas) para usar coisas para 
representar outras coisas e imitar o mundo dos adultos. Um livro didático até pode, por 
exemplo, propor que a criança use uma caixa para fazer de conta que é um fogão. Mas 
para que a criança use uma caixa para representar um fogão, é preciso que o ambiente 
lhe proporcione a caixa, o espaço e o tempo necessários para esta brincadeira. O limite 
do livro didático é seu suporte, é o fato de o livro se constituir como um material 
impresso, não permitindo à criança a execução de determinadas ações, dentre as quais 
se inclui o brincar. Boa parte do que é necessário para brincar encontra-se na esfera das 
relações que se estabelecem na escola entre professor e alunos, dependendo mais do 
ambiente do que da proposta de um livro didático.
121 
Já vimos que os tipos de jogos propostos são pedagógicos e com regras, e que 
todos têm como objetivo levar a criança a ler e escrever textos, frases e palavras usando 
a escrita formal. Resta saber como o livro trabalha a simbolização em seus jogos. 
Leontiev (2003) diz que o símbolo, embora não seja inerente aos jogos, está de algum 
modo presente em todos eles, inclusive nos jogos com regras. Nesta perspectiva, os 
jogos propostos pelo livro didático desenvolvem o símbolo, ainda que não seja através 
do faz-de-conta. Entretanto, o livro não propõe atividades nas quais a criança usa coisas 
para representar outras coisas ou brinca de faz-de-conta. A maioria dos jogos propostos 
pelo livro tem o objetivo de levar a criança a escrever. Por este motivo, são jogos que 
trabalham principalmente a escrita como simbolismo de segunda ordem. 
Os jogos que trabalham o simbolismo de segunda ordem são o bingo e o alfabeto 
móvel, neste a criança precisa pensar nos sons das letras para formar certas palavras. No 
bingo, a variação proposta pelo livro didático é de palavras. Cada criança escreve em 
sua cartela uma palavra referente à festa de São João. O professor deve sortear letras. 
Cada criança cuja palavra tiver a letra sorteada pelo professor deve assinalá-la na sua 
cartela. Vence o jogo a criança que assinalar toda a cartela primeiro. Neste bingo, o 
professor pode trabalhar as relações biunívocas, arbitrárias e contextuais entre letras e 
sons. Assim por exemplo, ao sortear a letra ‘A’, pode refletir com os alunos porque seu 
som é de /ã/ na palavra ‘canjica’ e /a/ na palavra ‘pamonha’. No entanto, o livro não 
sugere ao professor que faça isso. 
Os jogos que trabalham o simbolismo direto são: fantoche, pé de lata e ‘boca de 
Forno’. No fantoche, a criança precisa escrever uma peça de teatro, o que a ensina a 
organizar as idéias em um texto dramático. Neste jogo, também seria interessante que o 
professor pedisse para as crianças transformarem um texto narrativo em um drama, o 
que o livro não sugere. No pé de lata, a criança precisa ler um texto informativo para 
aprender a confeccionar o brinquedo, de modo que a escrita é mostrada como algo 
necessário para obter informações. No ‘boca de forno’, a criança precisa memorizar o 
texto para poder brincar, ou seja, a escrita é mostrada como algo necessário para servir 
de recurso à memória. 
Além de jogos, o livro apresenta uma série de propostas de desenho. Vejamos, 
agora, de que modo estas trabalham a simbolização.
122 
5.2.3. O desenho 
Para investigar como o desenho aparece no desenvolvimento da escrita, é 
importante retomar brevemente sua gênese. Segundo Vigotski (2000), para a criança de 
até, aproximadamente, dois anos de idade, o desenho é apenas um gesto. Em torno de 
dois a quatro anos, a criança usa o desenho para relatar o que vê. Por isso, costuma falar 
enquanto desenha. Dos cinco anos em diante, assim como os povos primitivos 
representavam suas idéias através de pictogramas, a criança pode passar a usar o 
desenho para representar a linguagem. No entanto, antes de conferir significado ao 
próprio desenho, a criança precisa entender que o desenho do outro pode ter significado. 
Para Vigotski, quando a criança entende que pode representar a fala usando o desenho, 
pode aprender o sistema simbólico da escrita. 
A partir desta perspectiva, a análise do modo como o livro propõe atividades de 
desenho teve três enfoques: o desenho como representação da linguagem, o desenho 
como mnemotécnica e a relação estabelecida pelo livro entre desenho e escrita. 
O livro trabalha atividades de desenho como representação da linguagem de dois 
modos: expressão de idéias e desejos abstratos, e interpretação da pintura de um artista. 
Na expressão de idéias e desejos abstratos, as propostas do livro parecem 
solicitar que a criança desenhe porque ainda não sabe escrever, como se o desenho 
pudesse ser um substituto da escrita. Isto fica evidenciado nas ordens dos exercícios. O 
primeiro faz os seguintes questionamentos: “O que é ler? O que é escrever? Como é o 
seu jeito de escrever?” (PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 08). A instrução diz para a 
criança responder do seu jeito. Na página seguinte, o livro propõe que a criança 
responda de duas formas a uma mesma pergunta: com uso e sem uso da escrita. 
Este livro foi escrito para ensinar crianças como você e seus 
colegas a ler e escrever. Nos espaços abaixo, escreva, desenhe ou 
faça colagens que representam o que você gostaria de aprender 
durante o ano. (PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 09). 
Como ainda não saber escrever, a criança é solicitada a usar um outro jeito, que 
não a escrita, para dizer o que gostaria de aprender. A pergunta colocada no livro exige 
uma abstração por parte da criança. Como ela vai desenhar o que gostaria de aprender 
sem abstrair da sua resposta os elementos possíveis de serem desenhados? A criança 
pode desenhar um lápis e um livro, sinalizando que quer ler e escrever, ou lembrar dos 
diferentes registros escritos e desenhá-los, como uma carta, um livro, um cartaz, etc. Na
123 
mesma página desta proposta, o exercício do livro solicita que a criança “Apresente suas 
idéias para seus colegas e professor ou professora” (PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 09). 
O interessante destas atividades é que desenvolvem a escrita como meio de linguagem, 
pois a criança é encorajada a expressar uma idéia usando desenho. No entanto, por 
exigirem elevada abstração, é possível que a criança não consiga fazer estas atividades 
propostas. 
Na página subseqüente, o livro traz a foto de uma escrita pictográfica que mostra 
uma série de traços, aparentando serem registro de quantidades, e o desenho de dois 
animais e duas pessoas. Abaixo da foto, a legenda diz que se trata de uma inscrição feita 
em rocha há cerca de 12.000 anos, encontrada no parque nacional da Serra do Capivari, 
no Piauí. O seguinte texto acompanha a foto: 
Você sabia que o homem levou muito tempo para inventar a 
escrita? E que ele inventou para representar seus sonhos, desejos e 
pela necessidade de se comunicar com os outros? E que nem 
sempre a escrita foi do mesmo jeito? (PROCÓPIO & PASSOS, 
2006: 10) 
Para Vigotski (2000), a primeira função da escrita na história da humanidade foi 
a mnemotécnica. Como podemos ver na proposta do livro, a função mnemotécnica 
sequer é citada. Além disso, Vigotski diz ser possível que uma das primeiras funções da 
escrita tenha sido registrar quantidades. A despeito de haver na inscrição da rocha 
ilustrada no livro uma série de traços, parecendo registrar certa quantidade, não há 
exercícios ou textos, no livro, que exploram esta variável. 
Para trabalhar a inscrição na rocha a partir da concepção de Vigotski, o livro 
poderia trazer algum texto sobre a função que a escrita teve para os povos primitivos de 
ajudar a memorizar fatos, quantidades e objetos. Poderia propor que as crianças se 
imaginassem como homens primitivos e tentassem transmitir aos colegas certas 
informações relevantes usando inscrições. O próprio teste realizado por Luria poderia 
ser usado como recurso pedagógico; o professor leria uma série de frases para que os 
alunos memorizassem usando o desenho. 
Nas demais atividades que solicitam o uso de desenhos para representar idéias, o 
livro segue demonstrando, em seus enunciados, que a criança deve desenhar porque 
ainda não sabe escrever. A maioria das propostas para que a criança desenhe tem como 
objetivo explorar os conhecimentos prévios sobre o tema do projeto. No projeto ‘É
124 
junho, pessoal’, a criança deve desenhar ou escrever, em dupla, os conhecimentos 
prévios sobre festa junina. No projeto ‘Histórias em quadrinhos, gibis e outros “bichos”, 
a criança deve desenhar, em balões de diálogo, o que deseja aprender sobre o tema do 
projeto. A criança também é solicitada a registrar, do seu modo, onde podemos 
encontrar histórias em quadrinhos. 
Nas atividades propostas pelo livro, a criança registra com desenhos seus 
conhecimentos prévios sobre os temas dos projetos. Expressa idéias apenas na medida 
em que estas têm relação com o que gostaria de aprender ou já aprendeu sobre o tema 
do projeto. Quase não há propostas nas quais a criança usa o desenho com as mesmas 
funções culturais da escrita, ou seja, como meio de expressão, memorização, prazer 
estético, comunicação, etc. Em uma perspectiva histórico-cultural, o desenho poderia 
ser mais explorado como meio de expressão. Vigotski (2000) diz que quando a criança 
utiliza o desenho como linguagem, ou seja, representa com ele a própria fala, já tem 
capacidade de compreender o sistema de escrita. Como é possível registrar a própria 
fala usando desenho? Em atividades nas quais a criança queira e possa falar e comunicar 
idéias usando desenhos. Além das já citadas atividades nas quais a criança usa o 
desenho para memorizar, também pode desenhar para falar de si: o lugar e as pessoas 
com quem mora, seus sonhos, seus medos, do que gosta de brincar, o que gosta de 
assistir na televisão, fatos importantes que aconteceram na sua vida, etc. Também pode 
desenhar os conceitos científicos aprendidos na escola: os animais vertebrados e 
invertebrados, os dinossauros, a representação cartográfica de algum lugar, etc. Pode-se 
também explorar a função do desenho nas formas culturais de escrita: os logotipos, os 
sinais de trânsito, as legendas de mapas. E, por fim, a função estética do desenho e da 
pintura. 
Ao fazer atividades de expressão através do desenho, a criança poderá entender 
que o desenho é uma forma de comunicar idéias. Em uma reflexão mais aprofundada, 
poderá entender, ainda, que para vários homens poderem se comunicar uns com os 
outros através da escrita, é necessário um sistema de signos estáveis que permita 
comunicar idéias, fatos e eventos. Se cada um inventasse sua própria escrita, a 
compreensão seria muito difícil. 
O livro traz pinturas de artistas famosos e solicita que as crianças conversem 
sobre a imagem, mas pouco explora o significado da obra. Sem dizer quem é Picasso, e 
qual significação está contida na sua obra, o livro traz a pintura “Auto-retrato com 
palheta”. Depois solicita que a criança se olhe no espelho e faça seu auto-retrato. Esta
125 
atividade está inserida no projeto ‘Todo mundo tem um nome’. Seu objetivo 
provavelmente é trabalhar a identidade do aluno. No mesmo projeto, há também a 
pintura de Paul Klee e uma proposta de atividade a partir dela. Há um pequeno texto 
informando que Paul Klee foi um pintor suíço que viveu entre 1879 e 1940 e gostava de 
incluir letras do alfabeto e numerais na sua tela. A criança é solicitada a registrar as 
letras encontradas na foto da tela do pintor e, depois, a pintar sua própria tela, incluindo 
as vogais do próprio nome ou de outra pessoa. A clara intenção da atividade é trabalhar 
as vogais. 
O livro também usa pinturas para inserir temas trabalhados nos projetos. A 
primeira atividade do projeto “Plantas e bichos” é discutir qual lugar é representado 
pelo quadro “Jardim em flor”, de Claude Monet. O livro não traz informações sobre o 
pintor, e o objetivo da sua proposta provavelmente é fazer uma exploração inicial do 
tema ‘plantas’. No projeto “Histórias de vida”, o livro traz a história de vida do pintor 
espanhol Joan Miró. No texto para os professores, o livro explicita que o objetivo deste 
projeto é trabalhar duas modalidades textuais: biografia e autobiografia. A partir da 
leitura de algumas biografias (Miró, Villa-lobos e Daniel Munduruku) a criança é 
encorajada a escrever sua autobiografia. Após, o livro solicita que a criança reproduza a 
obra de Miró intitulada ‘Bailarina’. O livro pede que a criança observe a obra e crie um 
quadro a partir dela. Sugere que a criança planeje como fará a pintura e, depois, 
organize com a turma uma exposição para divulgar todos os trabalhos. 
As atividades de análise de obras não foram propostas em função de levar a 
criança a entender que uma pintura pode expressar idéias e sentimentos. As informações 
biográficas dos pintores sempre aparecem em função do projeto proposto, não para que 
a criança interprete melhor a obra. Assim, traz informações sobre Paul Klee para 
trabalhar as vogais e, sobre Miró, para mostrar a estrutura de uma biografia. 
Em uma perspectiva histórico-cultural, as obras de arte poderiam ser 
apresentadas às crianças acompanhadas de alguma informação sobre o pintor e sobre o 
lugar e época em que viveu. A partir destas informações, as crianças poderiam dizer o 
que pensam que o autor tentou expressar com a obra. Como crianças do primeiro ano do 
ensino fundamental ainda não dispõem de conhecimentos históricos e geográficos 
suficientes para compreender a influência do contexto sobre uma obra, poderiam ser 
analisadas obras de algum artista local, conhecido da turma ou convidado a ser 
entrevistado por ela. O modo como o livro apresenta as obras de arte e as coloca em 
função de projetos de ensino acaba por descontextualizá-las, esvaziá-las de significado.
126 
Vigotski (2000) diz que para a criança atribuir significado aos seus próprios desenhos, 
precisa primeiro significar o desenho do outro. Para a criança entender que o desenho 
pode ser uma espécie de linguagem, é preciso que entenda qual mensagem é transmitida 
pelo desenho ou pintura do outro. 
Nas demais atividades, o livro solicita que a criança desenhe para ilustrar textos 
ou palavras. Nesta categoria, incluem-se as seguintes atividades: ilustrar e escrever o 
nome da profissão de alguém da família; ilustrar uma música do folclore; ilustrar uma 
poesia sobre a cobra; ilustrar uma estrofe do poema ‘Quantos bichos no Brasil’, de 
Pedro Bandeira; e ilustrar a floresta e a casa da bruxa do conto ‘João e Maria’. Não se 
pode considerar que nestas atividades, nas quais o desenho acompanha o texto, a criança 
usa o desenho como meio de expressão e linguagem. 
A partir da análise do modo como o livro apresenta atividades de desenho, foi 
possível extrair algumas considerações sobre a relação estabelecida entre desenho, 
linguagem e escrita. Em algumas atividades a criança foi encorajada a representar idéias 
bastante abstratas através do desenho, como é o caso da atividade no qual é solicitada a 
desenhar o que gostaria de aprender e o que é ler e escrever. Mas, na maioria das 
propostas, a relação estabelecida entre desenho e escrita não leva a criança a operar com 
a escrita com linguagem ou meio de representação. O livro, na maioria das atividades, 
traz o desenho como algo que simplesmente acompanha e ilustra a escrita formal. A 
função mnemônica da escrita não é desenvolvida pelo livro didático, a despeito da sua 
importância na teoria de Vigotski. 
5.3. A escrita como simbolismo de segunda ordem 
Vigotski (2000) diz que, primeiro, a escrita representa os sons da fala para, 
depois, representar diretamente as idéias. A esta passagem da grafia dos sons das 
palavras para o uso da escrita como linguagem, Vigotski chama de passagem da escrita 
como simbolismo de segunda ordem para simbolismo direto. 
Diante disso, cabe perguntar o que vem antes, aprendizagem da relação 
grafemas-fonemas (simbolismo de segunda ordem) ou escrita como função cultural 
complexa (simbolismo direto)? Ora, ambos os momentos do desenvolvimento da escrita 
são simultâneos, embora o mais importante seja a escrita como simbolismo direto, visto 
que, para Vigotski (2000), mais importante que a decodificação e o traçado das letras, é 
operar com a escrita como linguagem.
127 
Dentro deste quadro de inferências a partir da teoria de Vigotski, fica bastante 
difícil entender como o autor concebe o ensino das relações grafemas-fonemas, que 
corresponde, no caso, ao ensino da escrita como simbolismo de segunda ordem. 
Conforme já foi dito nesta dissertação, Vigotski não explica como ocorre a passagem da 
escrita como simbolismo de segunda ordem para simbolismo direto. 
Entretanto, duas teses de Vigotski (2000) ajudam a inferir implicações sobre o 
ensino da escrita como simbolismo de segunda ordem: a tese de que a escrita deve ser 
ensinada de modo natural, fazendo parte dos jogos e brincadeiras da criança; e a tese de 
que a escrita deve ser ensinada de modo a levar a criança a sentir necessidade de 
escrever. 
Assim, podemos propor, de modo não conclusivo, dois fatores importantes para 
ensinar a escrita como simbolismo de segunda ordem: a compreensão da necessidade de 
memorizar o sistema arbitrário de signos-simbólicos que forma a escrita; e o jogo. Cabe 
retomar a afirmação de Vigotski para comprovar a adequação deste último fator com 
sua teoria: “La enseñanza natural de la lectura y escritura requiere una influencia 
adecuada en el medio circundante del niño; tanto leer como escribir deben ser elementos 
de sus juegos.” (VIGOTSKI, 2000: 203) A leitura silenciosa, por sua vez, é também 
uma das atividades que ajudam na passagem da escrita como simbolismo de segunda 
ordem para simbolismo direto. 
Sendo assim, compreender como o livro apresenta o momento do simbolismo de 
segunda ordem da escrita, significa investigar como ele apresenta, em seus textos e 
exercícios, o ensino das relações grafemas-fonemas. Compreender se ensina este 
aspecto formal da escrita em uma perspectiva que poderia ser considerada histórico-cultural, 
significa investigar se ensina as relações grafemas-fonemas levando a criança a 
refletir sobre sua importância, usando jogos e propondo leituras silenciosas. 
No texto de assessoria pedagógica do livro didático, as relações grafemas-fonemas 
são citadas como importantes aspectos da aprendizagem da escrita. O livro 
reconhece a importância de ensinar os aspectos formais da escrita, sem, entretanto, 
prescindir da sua função cultural, como demonstra o seguinte trecho: 
(...) o processo de alfabetização compreende a aquisição de 
um conjunto complexo de habilidades relativas ao sistema 
alfabético-ortográfico. Tal aquisição envolve desde a 
diferenciação entre escrita alfabética e outras escritas a 
habilidades próprias do nosso sistema de escrita, como
128 
orientação e alinhamento da escrita, função de segmentação 
entre as palavras em uma frase, função da pontuação, 
unidades fonológicas, reconhecimento do alfabeto e sua 
representação em diversos tipos de letra, relação fonema-grafema, 
regularidades e irregularidades ortográficas. 
No entanto, a aprendizagem relativa ao sistema alfabético-ortográfico 
não pode prescindir da aprendizagem distinta, porém 
correlata, dos diversos usos sociais da escrita, da compreensão das 
condições de sua produção, da diversidade e amplitude dos gêneros 
que circulam na sociedade contemporânea. (PROCÓPIO & 
PASSOS, 2006: 04) 
Neste trecho, Procópio &Passos demonstram conhecer os aspectos importantes 
para a aprendizagem do que Vigotski chama de simbolismo de segunda ordem. Embora 
as autoras não façam alusão à importância da leitura silenciosa para o desenvolvimento 
da escrita, propõem vários exercícios de leitura silenciosa, como veremos mais adiante. 
Para promover a aprendizagem das letras, a primeira atividade que o livro 
propõe é pedir para as crianças observarem um conjunto formado por numerais, letras e 
desenhos. Neste conjunto, devem circular os desenhos, marcar com um X os numerais e 
pintar de vermelho as letras. Este é um exercício que visa levar a criança a entender o 
que é e o que não é letra. Na página seguinte, há uma tabela com as letras de fôrma 
maiúsculas e minúsculas. Sobre a tabela há um pequeno texto, informando que com o 
alfabeto podemos escrever tudo o que desejamos. O exercício pede que a criança 
marque no alfabeto a primeira letra do nome do professor. 
Na página seguinte, o livro trabalha a letra ‘D’ a partir de uma rima de Ruth 
Rocha evolvendo palavras que começam com ‘D’. No exercício, o livro solicita que a 
criança reescreva um poema a partir de outra letra do alfabeto. 
Na mesma página, consta a já citada atividade sobre a pintura de Paul Klee, 
tendo o objetivo de ensinar as vogais. Após, os alunos devem recortar de jornais ou 
revistas a primeira letra dos nomes dos familiares e colar em um determinado espaço. 
Segue o já citado alfabeto móvel, as letras do alfabeto para os alunos recortarem, 
colarem em tampinhas e formarem palavras. 
Depois desta seqüência de atividades envolvendo as letras, ainda no projeto 
“Todos têm um nome”, o livro apresenta uma poesia rimada. O exercício propõe que o 
professor faça a leitura em voz alta para os alunos. Parece haver, por parte das autoras
129 
do livro, uma tentativa de interlocucionar com a criança nas propostas de exercícios. Os 
exercícios são propostos sempre se referindo ao aluno. Ao professor é dito o que fazer 
através da interlocução com o aluno. Os exercícios sugerem sempre para que o aluno 
peça, pergunte e leia com o professor. O interessante é que há, no livro, uma 
interlocução com os alunos, mas, ao mesmo tempo, fica evidente que o aluno é 
considerado como alguém que não sabe ler. Podemos citar como exemplo este trecho: 
“No texto a seguir, você vai conhecer duas crianças e suas três tias. Acompanhe a 
leitura de seu professor ou professora” (PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 23) O texto é 
uma rima de Luís Camargo, intitulada ‘As três tias’. A partir da rima, os exercícios 
propõem algumas questões interpretativas, sugerindo que o professor escreva as 
respostas no quadro. Para trabalhar o sistema gráfico, os exercícios propostos exploram 
as diferenças e semelhanças entre as palavras rimadas do texto. O aluno deve pintar as 
letras que diferenciam os nomes ‘Célia’ e Zélia’, pronunciar devagar os nomes para 
perceber as diferenças entre eles, identificar e marcar as palavras do texto que rimam e 
refletir sobre o efeito da sonoridade das palavras rimadas ao longo do poema. 
Não há uma reflexão de Vigotski e Luria sobre a importância da rima para a 
compreensão da escrita como simbolismo de segunda ordem. Entretanto, atualmente há 
autores que defendem a importância da rima para a compreensão das relações fonemas-grafemas, 
dentre os quais é possível citar Emília Ferreiro (2004). Nas páginas 
subseqüentes às atividades sobre rima, o livro propõe vários exercícios a partir da 
escrita do nome próprio: recortar de jornais e revistas as letras do nome, pintar em um 
quadro de alfabeto as letras do nome, escrever o nome em um crachá, escrever os nomes 
dos colegas. 
Ainda para trabalhar a leitura inicial, o livro traz exercícios que consistem em 
sublinhar determinada palavra em um texto e identificar palavras que terminam com a 
mesma letra. 
Como exercício para explorar as relações contextuais dos sons das letras, o livro 
traz uma proposta que consiste em apresentar a seguinte lista de palavras escritas com a 
letra ‘R’ em destaque: “CERTO, PIRATA, COMEÇAR, REIS” (PROCÓPIO & 
PASSOS, 2006: 47). Este exercício está inserido no projeto “Histórias em quadrinhos e 
outros “bichos””. As palavras são retiradas de uma história em quadrinhos, apresentada 
pelo livro, intitulada “Era uma vez”, de Ziraldo. O aluno é solicitado a ler as palavras 
com ajuda do professor. A partir da leitura destas palavras o livro traz os seguintes 
questionamentos:
130 
“a) Você conhece a letra que está em destaque nas palavras acima? 
Você saberia dizer o nome dela? 
b) Ouça e acompanhe no livro a história em quadrinhos, lida pelo 
professor ou pela professora. 
c) Que personagens de histórias que começam por “Era uma vez...” 
apareceram nesta história em quadrinhos? Volte às páginas em que 
ela se encontra e circule-os lá. 
d) Nos quadros acima, há palavras em que o R possui o mesmo 
som. Quais são elas? 
e) Volte ao texto para procurar outras palavras em que o R tem 
esse mesmo som e escreva-as aqui.” (PROCÓPIO & PASSOS, 
2006: 47) 
Além do ‘R’ o livro também trabalha com os sons do ‘L’, mas várias páginas 
depois. Para trabalhar o som do L, os exercícios do livro trazem os seguintes 
questionamentos: 
b) Qual é o som da letra L na palavra CORAL? 
c) Escreva duas palavras que terminam com a letra L. (PROCÓPIO 
& PASSOS, 2006: 135) 
Estes exercícios de reflexão sobre os sons das letras são interessantes para 
trabalhar as relações grafemas-fonemas. Conforme já vimos no capítulo anterior, é 
preciso ensinar para as crianças que as relações grafemas-fonemas não são biunívocas. 
Um meio interessante para isso, é fazer com que a criança reflita sobre os diferentes 
sons que as letras apresentam em diferentes palavras e sobre como uma mesma letra 
pode representar vários sons. Se as palavras trabalhadas tiverem significado para a 
criança, esta reflexão tornar-se-á mais efetiva, como mostra Faraco (2003). Assim, é 
possível concluir que as atividades do livro são interessantes para o ensino das relações 
grafemas-fonemas. Entretanto, são poucas; apenas a escrita do nome, as letras do 
alfabeto e os sons do ‘L’ e do ‘R’. 
Não é uma tarefa fácil trabalhar as relações grafemas-fonemas de modo 
significativo para a criança. Segundo Cagliari (2003), o ideal é que o professor faça 
algumas propostas mais sistemáticas de atividade para trabalhar estas relações, mas que, 
na maioria dos casos, ensine estas relações durante outras atividades, na medida em que 
as crianças apresentarem dúvidas ao ler e escrever. Assim, se a criança perguntar como 
escrever o som /KS/ na palavra ‘táxi’, o professor pode lembrar que este é um dos 
possíveis sons da letra ‘X’, e que geralmente, mas nem sempre, aparece em final de
131 
palavras, como: tórax, Tiranossauro rex, xérox. Em meio de palavra, podemos encontrar 
a letra ‘X’ com este som em palavras como ‘axila’. Este tipo de ensino das relações 
grafemas-fonemas, que ocorre na medida das dúvidas e questionamentos da criança, 
pode ser considerado como atividade na qual entender os signos-simbólicos é uma 
necessidade. A criança precisa entender que escrevemos de um jeito, mas falamos de 
outro, e que, se cada um escrevesse do jeito que fala, seria muito difícil compreender a 
escrita alheia e se fazer entender pelo outro através da escrita. Se a criança ler a palavra 
‘táxi’ aferindo o som de /ch/ à letra ‘x’, não compreenderá o enunciado. Ao escrever, a 
necessidade de ser compreendida pelo outro fará com que a criança queira escrever de 
modo correto. Quando compreender a importância de dominar as relações grafemas-fonemas 
para ler e escrever, a criança poderá questionar e buscar informações na 
medida em que forem surgindo dúvidas. No entanto, se não sentir necessidade de ler e 
escrever, não sentirá necessidade de saber as relações grafemas-fonemas. Por este 
motivo, o ensino do sistema formal da escrita precisa acompanhar situações reais de uso 
da escrita, na qual esta se torna, para a criança, uma linguagem. 
Também é possível trabalhar as relações grafemas-fonemas em meio a jogos. O 
já citado bingo é um exemplo. Outros jogos já conhecidos podem ser adaptados para 
trabalhar as relações grafemas-fonemas. Por exemplo, no ‘Jogo da Forca’, o professor 
pode pensar uma palavra para os alunos adivinharem e, a cada letra que estes acertarem, 
dar uma ‘pista’ dizendo o som que a letra representa na palavra. 
Assim, existem três formas de ensinar as relações grafemas-fonemas de modo 
significativo para a criança. Um meio é o ensino sistemático e reflexivo, a partir de 
questionamentos aos alunos e transmissão do conteúdo pelo professor, usando, para 
isso, palavras de um contexto significativo. Este é o único meio proposto pelo livro 
didático analisado, realizado no exercício que trabalha os sons do ‘R’ e do ‘L’. Outro 
meio é o professor ensinar as relações grafemas-fonemas na medida em que as crianças 
sentirem necessidade, durante atividades de leitura e escrita. Por fim, é possível 
aproveitar determinados jogos para promover a reflexão sobre as relações grafemas-fonemas. 
O limite do livro didático é o suporte, ele não pode ouvir a criança, nem 
responder às suas dúvidas no momento em que elas surgem. Pressupor que as relações 
grafemas-fonemas podem ser ensinadas na medida da curiosidade das crianças, implica 
em excluir a possibilidade de o livro didático trazer todas as respostas prontas. 
Em cada um destes três casos, é preciso que o professor tenha conhecimento do 
sistema gráfico. Talvez por isso fosse interessante o livro didático trazer, no texto aos
132 
professores, uma sistematização das características do sistema gráfico do português e os 
símbolos fonéticos que representam cada consoante, semivogal, vogal oral e vogal nasal 
do português brasileiro. Para o professor ensinar as relações grafemas-fonemas levando 
em conta que estas não são biunívocas, é preciso que tenha estas informações sempre à 
mão. É possível que o professor, muitas vezes, por não ter acesso a informações 
simples e corretas sobre o funcionamento do sistema gráfico, deixe de trazer 
informações relevantes acerca das relações grafemas-fonemas na medida em que 
surgem as dúvidas e dificuldades do aluno. Talvez por falta de conhecimento do sistema 
gráfico, o professor acabe optando pelo mais fácil, que é o ensino transmissivo das 
relações grafemas-fonemas por meio de exercícios repetitivos. Ora, para a criança 
querer aprender as relações grafemas-fonemas, é preciso que sinta necessidade deste 
conhecimento. Por isso, o modo mais adequado de proceder a este ensino é na medida 
das necessidades da criança e não em atividades descontextualizadas. 
Além das relações grafemas-fonemas, o livro traz exercícios para trabalhar 
outros aspectos do sistema gráfico do português. Há exercícios para ensinar a escrever 
deixando espaço em branco entre as palavras, tendo em vista que crianças em início de 
alfabetização costumam escrever sem separar as palavras. Também há exercícios para 
ensinar as sílabas e os sinais de pontuação. 
O livro traz várias propostas de leitura silenciosa. A cada texto, informa quem 
deverá ler. Os primeiros textos vêm acompanhados de sugestões para que o professor 
faça a leitura em voz alta, provavelmente porque os autores do livro supõem que a 
criança ainda não sabe ler: “Escute a leitura abaixo feita pelo professor ou pela 
professora. Você já o conhecia?” (PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 30) “Observe o texto 
ao lado e converse com os colegas sobre as questões que o professor ou a professora irá 
ler”. (PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 35) 
Na metade do livro, há uma sugestão para que a criança leia com ajuda do 
professor: “Agora você vai ler, com o auxílio do professor ou da professora, um conto 
por partes, tentando imaginar o que acontecerá em cada uma delas”. (PROCÓPIO & 
PASSOS, 2006: 74) Aqui, é provável que o livro suponha que a criança já consegue ler, 
contanto que seja com ajuda do professor. Vale lembrar que quase todos os textos do 
livro são apresentados em letra de fôrma maiúscula, enquanto as ordens dos exercícios 
são escritas em letras minúsculas. Somente os três últimos textos, no projeto “Histórias 
de vida”, são escritos em letra minúscula, provavelmente porque o livro supõe que, ao 
final do livro, a criança deverá estar lendo fluentemente todos os tipos de letras.
133 
Procópio e Passos parecem supor a gradativa autonomia do aluno na 
compreensão da leitura. Após vários textos que devem ser lidos pelo professor, há um 
que deve ser lido pelo professor e o aluno, um que deve ser lido pelos alunos reunidos 
em duplas e, por último, a proposta de que o próprio aluno leia, sozinho e em silêncio. 
O livro tem 209 páginas de exercícios; na página 164 há a primeira proposta para que a 
criança leia silenciosamente e sozinha. No livro, aparecem duas propostas para que a 
criança faça leitura silenciosa de um texto. Entretanto, aparecem 07 propostas de 
exercícios que obrigam a criança a fazer leitura silenciosa para cumprir com os 
objetivos: ordenar um texto cujas palavras estão fora do lugar, ilustrar parágrafos, 
completar textos com palavras que faltam, duas propostas de ordenar os parágrafos de 
um texto e duas de procurar palavras em um texto. Todos os textos destes exercícios são 
apresentados em letras de fôrma maiúsculas. 
Da análise da aprendizagem do simbolismo de segunda ordem foi possível 
concluir que a teoria de Vigotski leva a pensar alguns meios para o ensino da escrita 
como simbolismo de segunda ordem: ensino sistemático através da transmissão e de 
exercícios que levem a uma reflexão sobre as relações grafemas-fonemas; ensino destas 
relações na medida em que as crianças, envolvidas em atividades de leitura escrita, 
sentirem necessidade; e ensino através de jogos. Procópio e Passos trazem poucas 
propostas para trabalhar as relações grafemas-fonemas,, e nenhuma delas através de 
jogos. Entretanto, as atividades para o ensino dos sons de ‘R’ e do ‘L’ são interessantes, 
pois levam a criança a refletir e formulas hipóteses sobre o sistema gráfico. Outros 
aspectos da escrita como simbolismo de segunda ordem - pontuação, segmentação de 
palavras no texto e tipos de letras - ou não são trabalhadas, ou são de modo superficial. 
Por exemplo, no ensino da letra cursiva, o livro não propõe uma sistematização acerca 
do direcionamento do traçado das letras. 
Para trabalhar a pontuação, Procópio &Passos não chegam a propor uma 
reflexão sobre suas funções na língua portuguesa. Segundo Luria (1994), enquanto na 
fala usamos recursos diversos, como entonação e gesto, para nos fazermos entender na 
escrita só dispomos da pontuação. Nem os exercícios do livro, nem seus textos de 
assessoria pedagógica, fornecem aos professores subsídios para refletir sobre o uso de 
pontuação como recurso expressivo. Ao propor o trabalho sobre pontuação durante o 
processo de alfabetização, o livro se exime de trazer informações relevantes ao 
professor, limitando-se a questionário, única proposta do livro para trabalhar a 
pontuação.
134 
a) Circule no texto (boca-de-forno) tudo que não for palavra. 
b) Na sua opinião, para que serve no texto o que você 
circulou? 
c) Investigue, com o professor ou a professora, o que são os 
sinais usados e qual o uso deles na língua portuguesa. 
(PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 143) 
O interessante do livro são as atividades de leitura silenciosa, principalmente os 
exercícios cuja realização exige que a criança proceda à leitura silenciosa: colocar as 
frases de um texto em determinada ordem e procurar uma palavra em um texto, entre 
outras. Mas, apesar das atividades de leitura silenciosa do livro, é possível afirmar que 
ele não traz uma proposta que ajude o professor a trabalhar o sistema gráfico do 
português. Traz poucas atividades de ensino das irregularidades ortográficas e até 
mesmo do ensino das relações grafemas-fonemas em geral, e não o faz por meio de 
jogos. 
Conforme já foi tratado neste texto, parece que o interessante em uma proposta 
histórico-cultural seria trabalhar as relações grafemas-fonemas através de jogos e na 
medida da curiosidade e necessidade da criança envolvida em situações reais de escrita. 
No caso do ensino mais sistemático das irregularidades, seria interessante levar a 
criança a formular hipóteses, como o livro faz quando questiona sobre os sons do ‘R’. 
Partindo deste pressuposto, o que poderia um livro didático? Importante reiterar que 
poderia trazer, para o professor, uma sistematização das representações fonéticas do 
português brasileiro, bem como das regras das irregularidades ortográficas. Para os 
alunos, poderia trazer sugestões de jogos que trabalham as relações grafemas-fonemas e 
o alfabeto móvel. 
De posse de conhecimentos sobre o sistema gráfico do português e de 
instrumentos para seu ensino, o professor poderia trabalhar as relações grafemas-fonemas 
juntamente com atividades de uso real da escrita. Isto seria possível porque o 
professor poderia se sentir mais seguro para ensinar essas relações de modo mais 
espontâneo, na medida das curiosidades das crianças. As crianças, por sua vez, iriam 
conferir mais significado às complexas relações letras-sons, se este ensino ocorresse em 
função do uso da escrita como linguagem, ou seja, como função cultural complexa.
135 
5.4. Apropriação da escrita como atividade cultural complexa 
Vigotski pouco falou da escrita como atividade cultural complexa, o que 
dificulta a análise dos fatores do seu desenvolvimento. Entretanto, alguns indícios da 
teoria de Vigotski e seus colaboradores ajudaram a compreender importantes categorias 
referentes à apropriação da escrita como linguagem, como atividade cultural complexa. 
Para a compreensão deste momento, foram extraídas duas categorias de análise: as 
relações entre fala e escrita e a escrita como necessidade. 
5.4.1. Relações entre fala e escrita 
Para avaliar como o livro didático trata das diferenças e inter-relações entre fala 
e escrita, três aspectos foram enfocados: interação professor-aluno no processo de 
aquisição da escrita, diferenças entre enunciados orais e enunciados escritos, diferenças 
entre linguagem culta e coloquial na escrita e na fala. O primeiro aspecto analisado foi a 
interação professor-aluno. 
No texto de assessoria pedagógica, há vários trechos que encorajam o professor 
a interagir oralmente com o aluno. Uma das sessões do livro, presente em cada um de 
seus capítulos é a “Oficina de idéias”, destinada à troca de idéias entre professor e 
alunos: 
As oficinas de idéias constituem um espaço de negociação, acordo 
e tomada de decisão para o encaminhamento de questões na 
perspectiva do grupo envolvido. Neste sentido, a habilidade de 
dialogar com os outros e com o(a) professor(a) constitui um 
aspecto a ser vivenciado pela criança. Outro aspecto importante a 
ser potencializado nesse momento é a capacidade de planejar 
coletivamente, o que faz o projeto se tornar propriedade dos 
sujeitos nele envolvidos. Nas oficinas de idéias, as crianças se 
tornam parceiras do(a) professor(a) no ato de planejar e organizar o 
projeto. Nessa perspectiva, as negociações feitas são fundamentais 
para o desenvolvimento do trabalho. (PROCÓPIO & PASSOS, 
2006: 17) 
Como fica implícito nesta afirmação e nos demais elementos do texto de 
assessoria pedagógica, as interações orais entre professor e alunos são tomadas como 
oportunidade para planejar e organizar as atividades em conjunto, bem como discutir 
regras e normas.
136 
Nos exercícios propostos no livro, há atividades de oralidade e trabalho em 
grupo. A cada início de projeto, há incentivo para que alunos e professores planejem 
juntos como o tema será estudado. Também são propostas rodas de conversa para 
discutir, em grupo, regras da turma, atividades a serem realizadas e avaliação dos 
projetos. 
Nas interações entre professor e aluno, o livro traz algumas sugestões para que o 
professor ajude o aluno. No entanto, a ajuda sugerida pelo livro pouco se refere ao 
incentivo à autonomia do aluno. Aqui cabe lembrar os níveis de ajuda sugeridos por 
Vigotski (apud BEATÓN, 2005), conforme Capítulo 2 dessa dissertação. Para o autor, o 
adulto pode incentivar a autonomia comunicando os objetivos da atividade para que a 
criança a execute sozinha. Não conseguindo êxito, pode fazer questionamentos que 
levem a criança a raciocinar sobre os passos necessários à execução da atividade. 
Transmitir diretamente o que deve ser feito é um recurso para o caso de o aluno não ter 
conseguido realizar as atividades autonomamente. No entanto, antes se deve tentar dar 
início à atividade junto à criança para que ela, depois, prossiga sozinha. 
Quase todos os exercícios do livro onde há proposta para o professor ajudar o 
aluno aludem mais à transmissão de um conteúdo ou idéia do que a questionamentos 
que poderiam ser realizados. O professor deve ler para o aluno em voz alta, escrever as 
respostas do aluno no quadro, apontar nos exercícios o que é para ser feito. 
Não há proposta de co-autoria de texto entre professor e aluno, apenas atividades 
nas quais o professor é o escriba do aluno. A atividade abaixo serve como exemplo: 
a) No poema, uma das tias conta uma história. Quem é ela? O 
professor ou professora vai registrar no quadro a resposta da turma. 
b) Qual o nome da história que essa tia conta? O professor ou 
professora também vai escrever no quadro o nome da história. 
(PROCÓPIO & PASSOS, 2004: 24) 
Quanto ao professor escrever o que a criança dita, Smolka (1996) tem uma 
importante colocação. Segundo a autora, quando o professor coordena em sala de aula 
uma produção de texto coletivo, ele não apenas registra a fala dos alunos, mas é também 
co-criador do texto. Este tipo de atividade ajuda a criança a expressar-se sem uma 
preocupação imobilizadora com as regras ortográficas e gramaticais, pois o professor, 
como co-autor, ajuda a refletir sobre estes aspectos. Para Smolka, existe uma diferença 
quando da criança é exigida uma escrita com correção ortográfica e gramatical, e
137 
quando a escola permite que ela escreva para expressar suas idéias, pensamentos e 
sentimentos. Quando isto é feito, a criança pode tornar-se produtora de textos e 
significar a escrita como uma forma de expressão. Para isso é preciso permitir que a 
criança fale, se expresse. 
Embora Procópio e Passos, nas propostas de exercícios, tentem encorajar a 
interação entre professor e alunos, o fazem de modo estereotipado, artificial. A ordem 
dos exercícios interlocuciona com o aluno, mas é o professor quem é solicitado a ler. 
Além disso, conforme já foi dito no capítulo anterior, o texto de assessoria pedagógica 
interlocuciona com o professor no modo imperativo. Tratar com o outro no modo 
imperativo não seria uma comunicação opressora? Se o livro apresenta uma 
interlocução opressiva com o professor será que não o faz também com o aluno? 
Será que o tom imperativo, explícito na linguagem dirigida ao professor, não faz 
com que este se apropre de um ensino que evita a interação verbal e expressão do 
pensamento, tão necessários ao ensino da escrita como função cultural complexa? 
Além das interações professor-aluno, um importante aspecto do ensino das 
relações entre oralidade e escrita seria a reflexão sobre as diferenças entre fala e escrita 
e entre fala culta e fala coloquial, conforme já tratamos no capítulo quatro. 
Quanto às diferenças entre enunciados orais e escritos, vale retomar a concepção 
de Luria acerca deste tema. De acordo com Luria (1994), a fala durante um diálogo 
quase sempre pressupõe o conhecimento prévio do tema pelos participantes, motivo 
porque comporta elipses e omissões sem prejuízo da compreensão dos interlocutores. 
Luria chama este tipo de fala de ‘coloquial’. A escrita também é sempre formulada em 
função de um motivo. No entanto, pelo fato de a escrita ter um interlocutor ausente ou 
imaginário, precisa ser melhor explicitada e organizada. Se a escrita reproduzir as 
omissões, aglutinações e lacunas da fala, o resultado será a não compreensão do 
interlocutor. A escrita também pode pressupor o conhecimento prévio do interlocutor, 
assim como a fala. No entanto, isto não exime, nem aquele que escreve, e nem aquele 
que lê, de usar a memória para colocar as idéias em uma relação lógica que faça sentido 
e tenha relação com os conhecimentos prévios exigidos pelo texto. Podemos 
exemplificar esta tese de Luria do seguinte modo: um texto científico sobre as cobras 
pode já pressupor que o interlocutor saiba que esta espécie animal pertence à classe dos 
vertebrados e à família dos répteis. Isto, entretanto, não exime o leitor de organizar as 
idéias em um texto para estabelecer relações lógicas. Também não exime o leitor de 
retomar, na sua memória, seus conhecimentos prévios sobre a cobra a fim de
138 
compreender melhor o texto. Mas, de acordo com Luria, mais complexo é o texto que 
trata de idéias novas. Neste caso, é ainda maior o esforço que o escritor precisa 
empreender para colocar as idéias em uma relação lógica. 
Embora existam tipos de escrita que não exigem explicação detalhada e 
comportem omissões e lacunas (por exemplo: escrita para si, seja para sistematizar um 
estudo ou expressar sentimentos) não foi este tipo de escrita que Luria e Vigotski 
investigaram. O estudo dos autores recaiu sobre a escrita como meio de interação social. 
Ora, quem sabe interlocucionar com o outro através da escrita, saberá interolocucionar 
consigo, mas o contrário não procede. O objetivo da escrita deve ser seu pleno 
desenvolvimento, que é a interlocução, a interação social e expressão do pensamento, 
para si e para o outro. A criança precisa se apropriar da escrita de modo a usá-la como 
outro meio de interlocução e ação sobre o mundo, além da fala. 
Sendo assim, na perspectiva da psicologia histórico-cultural não se pode pensar 
nas diferenças entre fala e escrita somente no aspecto formal. Não basta ensinar que a 
escrita funciona de um jeito e a fala de outro porque a escrita não é transcrição fonética 
da fala e porque na escrita só dispomos de pontuação para comunicar idéias. Se a 
escrita, para a psicologia histórico-cultural, é diferente da fala nos seus motivos e no 
nível de conscientização exigida, é preciso trabalhar as diferenças e inter-relações em 
análise que vá além das regras ortográficas, da pontuação e diferenças de estrutura e 
organização entre fala e escrita. 
Podemos primeiro questionar: Luria e Vigotski dão alguma pista ou indício de 
como ensinar as diferenças entre fala e escrita considerando que esta exige mais 
consciência e intenção? E, em segundo, podemos questionar se é possível trabalhar, 
com turmas de alfabetização, as diferenças entre fala e escrita em uma análise que vá 
além destes aspectos. 
A resposta à primeira questão é sim. Os indícios de Vigotski para trabalhar as 
diferenças entre fala e escrita são duas de suas quatro teses sobre o ensino da escrita: 
mais importante que o ensino das letras é o ensino da escrita como linguagem; e a 
escrita deve ser ensinada como algo necessário. 
Na medida em que a criança compreender os motivos que impulsionam a escrita 
e o quanto é preciso adaptar o registro escrito a estes motivos, poderá realizar uma 
reflexão mais sistemática sobre as diferenças entre fala e escrita. Como isso poderia ser 
feito com turmas de alfabetização? As teses de Vigotski nos levam a entender que isto 
poderia ser feito através de atividades que reproduzissem os usos sociais da escrita.
139 
Aqui cabe retomar a citação de Vigotski: “Eso significa que la escritura debe tener 
sentido para el niño, que debe ser provocada por necesidad natural, como una tarea vital 
que le es imprescindible”. (VIGOTSKI, 2000: 201) 
Se a escrita é uma linguagem, como afirma Vigotski - “(...) es preciso enseñar al 
niño el lenguaje escrito y no a escribir las letras” (VIGOTSKI, 2000: 203) -, então suas 
diferenças em relação à fala, em uma perspectiva histórico-cultural, só poderão ser 
trabalhadas em situações reais de uso. Durante as situações reais de uso da escrita 
poderá ser feita uma reflexão mais sistemática sobre como adaptar o registro escrito à 
intencionalidade. 
O livro didático analisado traz uma atividade que se relaciona com esta 
perspectiva. No projeto ‘Folclore’, o livro sugere que a turma chame um folclorista para 
entrevistar. Junto com esta proposta, o livro sugere que as crianças reflitam o melhor 
modo de entrevistar o folclorista e registrar a entrevista: 
Reúna-se com a turma e o professor ou a professora para selecionar 
as perguntas para a entrevista. 
Após a seleção das perguntas, organizem o roteiro da entrevista, 
pensando nas questões a seguir: 
a) Como as pessoas entrevistadas serão recebidas? 
b) Como serão feitas as perguntas e como serão registradas as 
respostas? 
c) Como vocês irão agradecer aos entrevistados? (PROCÓPIO & 
PASSOS, 2006: 128) 
Esta atividade é interessante porque ajuda as crianças a refletirem sobre o modo 
de agir em uma situação de interlocução oral e escrita. Primeiro precisam refletir como 
fazer a entrevista para, por fim, refletir um modo de registrá-la por escrito. 
Procópio e Passos poderiam propor mais situações de uso real da escrita para 
promover a reflexão sobre as diferenças entre fala e escrita. Em uma perspectiva 
histórico-cultural, seria preciso promover meios para refletir mais sistematicamente 
sobre os modos de adaptar a escrita ao entendimento de um interlocutor ausente ou 
imaginário. Isto só pode ser feito em situações de uso real da escrita, o que será objeto 
de análise no tópico sobre escrita como necessidade. 
No que se refere às diferenças entre linguagem culta e coloquial na escrita e na 
fala, o texto de assessoria pedagógica do livro didático concebe que a escola deve evitar 
o mito de que é preciso corrigir a fala do aluno para que este possa se alfabetizar. Por
140 
outro lado, considera que o ensino da língua portuguesa deve levar a criança à 
aprendizagem da fala culta. 
A língua portuguesa, na perspectiva que adotamos, constitui-se 
como produto de práticas comunicativas organizadas em atividades 
discursivas orais e escritas e marcadas pelas condições de produção 
e uso determinadas historicamente. Além disso, é preciso 
considerar que a “língua portuguesa, no Brasil, possui muitas 
variedades dialetais” (PCN – língua portuguesa) não se 
configurando, portanto, como um sistema homogêneo de discurso, 
mas como um sistema diversificado e heterogêneo. Nesse sentido, 
“para poder ensinar língua portuguesa a escola precisa livrar-se de 
alguns mitos: o de que existe uma única forma ‘certa’ de falar – a 
que se parece com a escrita – e o de que a escrita é o espelho da 
fala – e, sendo assim, seria preciso ‘consertar’ a fala do aluno para 
evitar que ele escreva errado” (PCN língua portuguesa). Assim, “a 
questão não é falar certo ou errado, mas saber qual forma de fala 
utilizar, considerando as características do contexto de 
comunicação, ou seja, saber adequar o registro às diferentes 
situações comunicativas” (PCN língua portuguesa). (PROCÓPIO 
& PASSOS, 2006: 09). 
Nos exercícios do livro didático, são apresentadas algumas atividades nas quais 
o aluno é questionado se deve escrever ou falar usando linguagem formal ou informal. 
Por exemplo, ao escrever uma carta ao colega, a criança deverá, antes, decidir se 
escreverá em linguagem formal ou informal. Ao planejar uma entrevista a um 
folclorista, o livro questiona qual linguagem o aluno acha adequado usar na fala. O livro 
mostra que, tanto na fala, quanto na escrita, existe uma linguagem formal e outra 
informal. Também há questionamentos acerca das expressões presentes em músicas do 
folclore. Por exemplo, o livro questiona se as palavras ‘mulé’ e ‘namorá’, presentes em 
uma música, estão corretas, e questiona qual seria a palavra do dicionário adequada para 
substituí-las. 
No projeto “Histórias de Vida”, a criança deverá escrever a própria história ou a 
de alguém conhecido. O livro traz a seguinte sugestão: “Atenção: Se a pessoa for um 
amigo ou uma amiga, a linguagem poderá ser mais informal. Caso contrário, discuta 
com seu professor ou com sua professora a linguagem mais adequada”. (PROCÓPIO & 
PASSOS, 2006: 206)
141 
No projeto “Histórias em quadrinhos, gibis e outros “bichos””, há uma atividade 
na qual os personagens de uma história aparecem, com seus respectivos balões, 
reproduzindo o seguinte diálogo: “- Manhê! - Ainda acordado, filho? Tá sentindo 
alguma coisa? - Tô...” (PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 49). Ao lado dos personagens 
com seus balões há um quadro, no qual o mesmo diálogo é reproduzido em formato de 
texto, sem, entretanto, ser cópia fiel da fala: “- Mãe! - Ainda acordado filho? Está 
sentindo alguma coisa? - Estou...” (PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 49). 
A ordem do exercício pede que o aluno observe as diferenças entre o texto dos 
balões e o texto do quadro. Interessante observar que a ilustração do livro mostra os 
personagens de quadrinhos ao lado do texto que reproduz a fala, enquanto o texto 
correto do ponto de vista formal aparece em um quadro, sem personagens, mas apenas 
com os travessões. Aqui parece haver uma tentativa de associar a escrita reprodutora da 
fala com situações de diálogo entre pessoas e personagens. 
É possível concluir que o livro trata das diferenças entre linguagem formal e 
informal como se bastasse o aluno escolher qual forma de linguagem usar. Assim, se o 
interlocutor é um amigo, o aluno pode usar a escrita informal. Há ausência no livro 
didático de propostas que levem o aluno a refletir sobre como adaptar o registro escrito 
à compreensão do leitor. Ora, mesmo se o interlocutor do escrito for um amigo, isto não 
exime quem escreve de buscar se fazer entender através da escrita. 
Para tratar de variações dialetais, o livro traz um convite de festa de São João 
que reproduz a fala de um nativo do interior de São Paulo. O texto não apresenta erros 
decorrentes de trocas de letras em relações arbitrárias ou contextuais, e nem erros de 
concordância verbal. Ou seja, o texto não é uma transcrição fonética, e nem transcrição 
da fala, mas sim a reprodução de uma variação dialetal: 
A festa vai cumeçá bem cedo e ocê num vai pudê fartá. Venha 
vestido a caráter pra depois num se envergonhá. Fiquei sabendo 
que o(a) caipira mais bunito(a) até prêmio vai ganhá. O casamento 
vai ta muito animado, mas vê se não vai se atrasá. A quadrilha 
cumeça depois que o casamento acabá. A cumilança vai ta 
maravilhosa e ainda terá bingo, quentão, pipoca, camjica e muito 
mais... (PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 93) 
A partir deste texto, um exercício questiona se a criança sabe por que o autor 
usou esta linguagem, e se já ouviu alguém falando deste jeito. Quando o livro propõe 
que o aluno crie seu convite de festa de São João, questiona que linguagem irá usar.
142 
Provavelmente o livro tenta mostrar que a transcrição da variação dialetal dos 
habitantes do interior de São Paulo é adequada para um convite de festa junina, mas não 
para a redação de outros registros escritos. Portanto, esta não pode ser considerada uma 
atividade de reflexão sobre o motivo porque não podemos escrever do jeito que falamos. 
A atividade apenas transmite a idéia de que a reprodução da fala dos ‘caipiras’ é 
adequada para um convite de festa de São João. Podemos inclusive nos questionar se a 
idéia aqui transmitida não acaba por propagar uma imagem estereotipada da população 
do interior de São Paulo. 
Na análise das diferenças entre linguagem culta e coloquial na fala e na escrita, 
podemos chegar à mesma conclusão a que chegamos na análise das diferenças de 
estruturação da escrita em relação à fala. O livro didático não produz um 
questionamento maior sobre as diferenças entre fala e escrita. Para isso, precisaria levar 
o aluno a entender que: a escrita não é transcrição fonética da fala; a escrita não pode 
conter as mesmas lacunas, abreviações e aglutinações que a fala; a escrita exige maior 
detalhamento por se destinar a um interlocutor ausente ou imaginário. Este tipo de 
reflexão, em uma perspectiva histórico-cultural, só pode ser realizado na medida em que 
a criança for levada a sentir necessidade de serer compreendida e se expressar através da 
escrita. 
Por este motivo, o trabalho das relações entre fala e escrita só podem ser 
relacionados ao ensino da escrita como necessidade, última categoria analisada no livro 
didático. 
5.4.2. A escrita como necessidade 
Na análise da escrita como necessidade, o ponto de partida foi a seguinte 
questão: quais tipos de atividades poderiam ser realizadas para levar a criança a sentir 
necessidade da escrita? Quando Vigotski (2000) afirma que é preciso levar a criança a 
sentir necessidade da escrita, não qualifica esta necessidade. Embora o autor deixe claro 
que a escrita organiza o pensamento e desenvolve as funções superiores, não diz como a 
criança pode vir a sentir necessidade de escrever, nem diz por que a escrita é necessária. 
Como Vigotski não qualifica a necessidade, foi preciso defini-la a partir de 
indícios encontrados na psicologia histórico-cultural. Como já vimos, na perspectiva da 
psicologia histórico-cultural, ‘atividade’ é a ação que apresenta dois momentos distintos 
e inter-relacionados: planejamento e execução. A relação entre estes dois momentos é o 
objetivo. Toda atividade caracteriza-se por ter um objetivo. Por sua vez, os objetivos
143 
diferem das ações executadas no decorrer da atividade, de modo que esta é caracterizada 
pela não coincidência entre objeto e motivo (LEONTIEV, s/d). A partir deste princípio, 
foi definido que os tipos de atividade que podem desenvolver a necessidade da escrita 
são todas aquelas cujo objetivo não é apenas a aprendizagem formal da escrita, mas sim 
o seu uso em situações reais. 
Ao dizer que o objetivo do ensino não deve ser o ensino das letras, mas sim da 
escrita como linguagem, Vigotski fornece uma ‘pista’ para qualificarmos o que vem a 
ser escrita como necessidade. Dizer que a escrita é uma linguagem, significa concebê-la 
como outro meio, além da fala, de interação e interlocução. Quando a criança 
compreende a escrita como linguagem, significa que se apropria dos seus usos sociais e 
a utiliza para interagir, comunicar e influenciar e compreender seu meio. 
Em uma primeira leitura do livro, já foi possível perceber que ele trata a escrita 
como algo necessário, tanto nos exercícios, quanto no texto de assessoria pedagógica. 
Ou seja, ele propõe atividades nas quais a criança escreve com outros objetivos além do 
desenvolvimento da escrita. Claro que o objetivo do livro didático, em todas as suas 
atividades, é levar ao desenvolvimento da escrita. No entanto, há uma diferença entre 
exercícios que só consistem em escrever para aprender a escrever, e atividades que 
envolvem a leitura e a escrita para chegar a outros objetivos. São exemplos de 
exercícios cujo único objetivo é desenvolver a escrita: juntar sílabas para formar 
palavras, copiar textos, ler frases soltas, copiar frases, completar palavras com letras que 
faltam, etc. Por sua vez, são exemplos de atividades que envolvem a leitura e escrita 
para chegar a outros objetivos: ler uma receita para fazer um bolo, ler jornal para 
informar-se, escrever para trocar correspondência. O livro traz atividades dos dois tipos. 
No texto do livro didático destinado aos professores, a escrita como necessidade 
é relacionada aos diferentes tipos de texto. O livro didático cita uma categorização de 
tipos de texto proposta por Curto, Murillo e Texido (apud PROCÓPIO & PASSOS, 
2006: 10). Nesta categorização, são relacionados os seguintes tipos de texto: 
enumerativos, informativos, literários, expositivos e prescritivos. Cada tipo de texto é 
relacionado com sua respectiva função. Por exemplo, os textos literários são colocados 
como tendo as funções de distrair, partilhar emoções e desenvolver a sensibilidade 
estética; os textos enumerativos as funções de recordar, registrar, ordenar dados 
concretos e informações pontuais e assim por diante. 
Nos exercícios do livro didático, foram encontradas as seguintes atividades que 
trabalham a escrita como necessidade: troca de correspondência com um colega; leitura
144 
de uma receita de massinha de modelar para confeccionar bonecos; leitura de uma 
instrução para confeccionar fantoches e escrita de um roteiro para fazer o teatro de 
fantoches; gravação, em fita cassete, da leitura de uma lenda do folclore brasileiro com 
o objetivo, segundo o enunciado do livro, de mostrar às gerações futuras; leitura de uma 
instrução para montar um canteiro de plantas; redação de um relatório de observação de 
animais; escrita de cartazes para fazer manifestação em defesa do meio ambiente. Estas 
atividades trabalham a escrita como necessidade porque requerem que o aluno leia e 
escreva para atingir outros objetivos que não desenvolver os aspectos formais da escrita. 
Algumas atividades envolvendo a escrita como necessidade, inserem-se em 
determinado projeto temático. No projeto sobre festa de São João, intitulado “É junho, 
pessoal”, o livro propõe várias atividades envolvendo planejamento, organização e 
divulgação de uma festa de São João: primeiro sugere a escrita de um roteiro da 
organização da festa; depois a redação da lista de convidados da festa e a confecção do 
convite e do cartaz de divulgação. O livro traz impresso um exemplo de cartaz e outro 
de convite, provavelmente com o objetivo de servir de modelo aos alunos. O cartaz de 
divulgação vem acompanhado de instruções sobre regras para sua confecção: 
Durante a confecção lembre-se: 
I – O cartaz serve para ser lido de longe. 
II – O cartaz deve atrair o olhar das pessoas. 
III – As informações devem ser rápidas. (PROCÓPIO & PASSOS, 
2006: 96) 
Para a organização da festa, o livro traz uma receita de cajuzinho e outra de pé-de- 
moleque, doces típicos de festa de São João, e instruções para montar o jogo da 
pescaria e uma quadrilha. Sugere, ainda, que o aluno, em grupo, elabore uma notícia da 
festa para enviar a um jornal local ou da escola. 
O livro apresenta algumas omissões ao tratar a escrita como necessidade. A 
leitura e escrita de textos científicos praticamente não são contempladas. No projeto 
“Plantas e bichos”, o livro traz três textos retirados de uma enciclopédia. Embora o 
projeto tenha o objetivo de ensinar sobre as plantas e os bichos, não traz nenhum texto 
sobre as plantas, mas três sobre animais: a cobra, o macaco e o camaleão. Conforme já 
vimos, na perspectiva da psicologia histórico-cultural, os conceitos científicos são 
necessários para a evolução do pensamento. É possível afirmar que o livro didático traz 
poucas propostas para o desenvolvimento dos conceitos científicos. Os textos sobre os 
animais trazem apenas um apanhado de curiosidades sobre a cobra, o macaco e o
145 
camaleão, e não uma sistematização científica. Há vários temas que podem ser 
desenvolvidos para ensinar sobre os animais de modo a sistematizar um conceito 
científico: famílias dos animais, modos de reprodução, hábitos alimentares, cadeia e teia 
alimentar, extinção e declaração universal dos direitos dos animais, dentre outros. 
Conforme já vimos, Vigotski considera que o ensino de conceitos científicos 
requer do professor conhecimentos acerca da história do desenvolvimento da criança. 
Além disso, o ensino precisa desenvolver a autonomia do aluno. O contrário disso, um 
ensino meramente transmissivo e sem preocupação com a compreensão do aluno, acaba 
por gerar apenas a substituição de um conceito desconhecido por outro igualmente 
estranho ao aluno. Assim, se o ensino precisa desenvolver a autonomia do aluno, mas, 
ao mesmo tempo, os conhecimentos científicos são necessários para o desenvolvimento 
das funções superiores, é preciso pensar em modos de ensinar conceitos. 
É possível que a mesma tese de Vigotski sobre o desenvolvimento da escrita se 
aplique ao desenvolvimento dos conceitos científicos. Neste caso, é preciso ensinar os 
conhecimentos científicos como algo necessário para a criança. Como fazer isso? 
Talvez um meio seja aguçar a curiosidade da criança sobre o mundo que a cerca. Para 
isso, é preciso um diálogo maior entre professor e alunos, no qual estes possam expor 
suas dúvidas, questionamentos e hipóteses sobre os fenômenos naturais, as próprias 
vivências e sobre o que é visto e ouvido nos meios de comunicação. A leitura de textos 
científicos, nesta perspectiva, teria como objetivo obter informações relevantes para 
maior compreensão da realidade e também a ampliação do conhecimento sobre o 
mundo. Por sua vez, a escrita teria o objetivo de sistematizar e divulgar os conceitos 
científicos, além de ajudar a criança a se apropriar de suas aprendizagens. 
A maior lacuna do livro são suas propostas de produção textual. Embora traga 
atividades envolvendo os usos sociais da escrita, não incentiva a criança a escrever. Há 
duas propostas para a criança produzir textos artísticos: a criação do teatro de fantoches 
e a criação da história em quadrinhos. Chama a atenção, em ambas propostas, o roteiro 
que o livro propõe para que a criança crie sua história. 
Para a criação da história em quadrinhos, traz um quadro para a criança 
preencher, tendo o objetivo de ajudá-la a planejar sua história. No quadro, a criança 
deve preencher qual será o tema, o cenário e os personagens da história em quadrinhos. 
A página seguinte é destinada à escrita da história. 
Para a criação do texto de teatro de fantoches, o livro não sugere que seja criado 
um texto específico para teatro. Ao invés disso, pede que a criança crie, em grupo, uma
146 
história partindo do seguinte roteiro: título, autores (alunos), personagens, cenário, 
trama, desfecho e tipo de linguagem que será usada para escrever. Interessante observar 
que para cada item há três linhas para a criança preencher. 
O que se observa, tanto para a atividade de criação da história em quadrinhos, 
quanto para a atividade de criação da história para teatro de fantoches, é a delimitação 
imposta pelo livro. Na história em quadrinhos há seis espaços para a criança criar a 
história, todos do mesmo tamanho. Também há um espaço reservado para a criança 
preencher o autor e o título. Estes espaços delimitados entram em contradição com o 
modo como são organizadas as histórias em quadrinho em geral, sempre com 
quadrinhos em quantidades, tamanhos e formas variadas. Como exemplo de quadrinhos, 
o livro traz quatro histórias, com os seguintes personagens: Garfield, Calvin e Menino 
Maluquinho, dos quadrinistas Jin Davis, Bill Watterson e Ziraldo, respectivamente. 
Na criação do texto para teatro de fantoches, há um roteiro formatado com três 
linhas para a criança preencher em cada item. Não há nenhum exemplo de roteiro para 
teatro, pois a criança deve escrever um pequeno conto para representar, e não um teatro. 
Das observações acerca do modo como o livro propõe a criação nestas duas 
atividades fica um questionamento: será que se a criança entrasse em contato com 
vários exemplares de um tipo de texto e dispusesse de espaços e propostas mais livres 
para a criação, não desenvolveria mais a capacidade de escrita? Será que estas 
delimitações do livro nas atividades de escrita não emperram o desenvolvimento, 
produzindo um modo estereotipado e formatado de produzir textos? 
Nas demais atividades de produção de texto, também se percebe a tendência de 
reescrever seguindo um modelo ou roteiro pré-definido. No projeto “Histórias de 
Vida”, o livro propõe que o aluno escreva uma biografia ou autobiografia a partir do 
seguinte roteiro: “Sobre quem vou escrever? Como e onde vou obter informações sobre 
essa pessoa? Como vou registrar as informações obtidas? Como irei organizar as 
informações em um texto? O que farei com a história após escrevê-la? Para quem irei 
escrever? Para quem enviarei o texto depois de escrito?” (PROCÓPIO & PASSOS, 
2006: 185). 
A princípio parece que este é só o projeto para a escrita de uma biografia ou 
autobiografia. Entretanto, duas páginas depois o livro apresenta o seguinte quadro para a 
criança comparar sua vida com a de Miró:
147 
Miró Você 
Data de nascimento 
Cidade onde nasceu 
Pessoas com quem 
viveu ou vive 
Interesses pessoais 
Outras coisas que quiser 
registrar 
(PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 188) 
Provavelmente, este tipo de formatação já é uma espécie de sugestão para que a 
criança escreva a biografia ou autobiografia seguindo o modelo pré-estabelecido. 
A partir da análise das atividades de produção de textos propostas no livro 
didático, fica a seguinte questão: o fato de todas as atividades de produção de textos 
consistirem em propostas para que as crianças formatem suas escritas em tabelas e 
quadros, não seria um meio de evitar seus erros? Cabe aqui lembrar a já citada crítica 
que Smolka (1996) faz ao fato de a escola não permitir que a criança escreva sobre o 
que pensa. Segundo a autora, isto ocorre porque a escola tem medo dos erros do aluno, 
uma vez que, quando a criança está em início do processo de alfabetização, revela seu 
pensamento na escrita, com todas suas lacunas, elipses e abreviaturas. Será que, ao 
evitar as situações de produção de texto que permitam a livre expressão, o livro não está 
revelando o medo dos erros presentes na escrita da criança em fase inicial de 
alfabetização? 
Podemos, aqui, fazer uma relação com a escrita como sistema de signos e 
instrumentos. Os exercícios do livro didático tomam a escrita mais como instrumento do 
que como signo. As atividades, embora levem a criança a interagir com o meio através 
da escrita, pouco possibilitam a apropriação da escrita como meio de compreensão de 
conhecimentos mais amplos e sistematizados sobre a escrita como linguagem e 
possibilidade de interlocução. Aqui cabe lembrar que, se falamos da escrita como 
necessidade como sendo um fator para o seu desenvolvimento, esta necessidade não 
constitui, necessariamente, um uso instrumental da escrita. Sabemos que, quando o 
homem usa a escrita em situações sociais, concretas, pode tanto estar usando-a como 
signo, quanto como instrumento. É bastante tênue o limite entre signo e instrumento. 
Assim, por exemplo, uma carta, embora possa ser um instrumento para que os homens
148 
se comuniquem à distância, também pode se constituir como signo, ao transformar, ou 
pelo menos agir sobre, as funções psíquicas superiores. Sendo assim, pensar nos usos 
sociais da escrita, - escrita de carta, leitura de receita culinária, bula de remédio, jornal, 
erc. -, não significa tomar a escrita apenas como instrumento. 
Para Vigotski (2000), a escrita precisa tornar-se uma função cultural complexa. 
O autor não chega a aprofundar o que vem a ser escrita como função cultural complexa, 
no entanto, a leitura atenta de alguns escritos de Vigotski e Luria leva a entender que 
escrita como função cultural complexa é o mesmo que uso da escrita como uma 
linguagem, qualitativamente diferente da fala, embora com ela relacionada. Já vimos 
que Vigotski considera que a fala é o nexo intermediário inicial entre as formas de 
representação e seus significados, mas este nexo precisa desaparecer para a criança 
operar com a escrita como linguagem. Recapitulando, são três as aprendizagens que a 
criança precisa fazer para desenvolver a escrita como linguagem: apropriar-se das 
relações grafemas-fonemas a ponto de não precisar mais pensar nelas para escrever; 
entender que a escrita é diferente da fala porque se dirige a um interlocutor ausente ou 
imaginário, não podendo conter as mesmas lacunas, elipses e abreviaturas que a fala; e 
apropriar-se da escrita como uma necessidade. 
Agora, temos elementos para pensar se o livro didático analisado pode 
constituir-se como mediador do processo de ensino da escrita como função cultural 
complexa. Embora traga atividades envolvendo diversos tipos de textos e possibilidades 
variadas de usos da escrita, o livro não permite que a criança tenha uma compreensão 
mais complexa acerca da escrita. O suporte do livro didático já é, por si só, um limite 
para a mediação da aprendizagem da escrita. A aprendizagem da escrita, na perspectiva 
de Vigotski, exige interlocução ativa. Um livro não pode, de fato, dialogar com a 
criança. O livro de Procópio e Passos traz outra dificuldade, o excesso de exercícios que 
levam a criança a formatar sua escrita em quadros e tabelas. Estes exercícios, de algum 
modo, podem levar a criança a se apropriar de uma escrita formatada, limitada. Como a 
criança vai usar a escrita para se comunicar se não pode usá-la para se expressar? O 
livro propõe que a criança use a escrita em situações reais cotidianas, como ler uma 
receita, uma instrução, escrever um cartaz e um convite. Entretanto, tem muitos limites 
no que tange a apresentar, para a criança, a escrita como outro meio de interlocução, 
além da fala. Com isso, acaba sendo limitada a interlocução estabelecida entre criança, 
professor e livro didático, no que se refere às relações entre pensamento, oralidade e 
escrita. A criança não compreende como a escrita pode expressar idéias e pensamento
149 
de modo qualitativamente diferente da fala. Também não aprende a recorrer à escrita 
para sanar curiosidades e dúvidas ou obter prazer estético. 
5.5. Conclusões a partir da análise do livro didático 
Os fatores de desenvolvimento da pré-história da escrita na ontogênese 
apareceram no livro didático, que trouxe atividades envolvendo o gesto, o desenho e o 
jogo. Estes elementos só se constituem como nexos intermediários do desenvolvimento 
da escrita se atuam como meios de representação simbólica. Para isso, o gesto e o 
desenho precisam representar a linguagem e o jogo conter elementos de simbolismo, 
nos quais coisas sejam usadas para representar outras coisas. O gesto, como primeiro 
meio de simbolização desenvolvido pela criança, não é uma atividade escolar; qualquer 
criança que cresça em interação com um outro, que atribua significado aos seus 
movimentos, usará o gesto para simbolizar a linguagem, ou seja, como forma 
rudimentar de escrita. O desenho pode não ser, para a criança, uma linguagem; a criança 
pode desenhar bem e, no entanto, não saber usar o desenho para representar a fala. O 
desenho, enquanto representação, requer a mediação de um outro. A maioria dos 
exercícios do livro didático traz atividades nas quais o desenho é usado apenas como 
meio de ilustrar um texto, e não como linguagem. Os jogos que aparecem no livro são, 
em sua grande maioria, pedagógicos, tendo como objetivo levar a criança a ler e 
escrever. Embora o jogo de faz-de-conta seja importante para o desenvolvimento da 
escrita, pouco cabe ao livro propor este tipo de jogo, que emerge sempre das interações 
entre as crianças. Para que a criança brinque de faz-de-conta necessita de espaço e 
tempo, e não da proposta de um livro didático. O gesto, o desenho e o jogo são fatores 
do desenvolvimento da escrita que dependem de um outro que construa com a criança 
as significações de suas ações. Por este motivo, é possível afirmar que o professor e a 
escola têm um papel muito mais importante nas atividades de representação simbólica 
do que o livro didático. O livro pode até trazer propostas de gestos, jogos e desenhos, 
mas a significação destes como linguagem e interação só pode emergir das interações 
entre a criança e o adulto. Ora, o desenvolvimento da escrita ocorre a partir da 
representação simbólica mediada pela linguagem e pela interação com o outro. 
O ensino da escrita como simbolismo de segunda ordem poderia ser mais 
contemplado no livro. Na perspectiva da psicologia histórico-cultural, este ensino pode 
ser realizado através de jogos e de atividades nas quais a criança compreenda a 
necessidade de aprender os aspectos formais da escrita, para conseguir usá-la como
150 
linguagem. As relações grafemas-fonemas, importante fator do desenvolvimento da 
escrita como simbolismo de segunda ordem, é um ensino complexo que exige do 
professor conhecimento sobre o sistema gráfico. Talvez seja pelo desconhecimento do 
sistema gráfico que o professor não consiga ensinar as irregularidades ortográficas na 
medida da curiosidade e necessidade da criança. É mais fácil sistematizar o ensino das 
irregularidades em forma de exercícios e instrução formal, do que trabalhá-las de modo 
mais espontâneo, respondendo aos questionamentos que os alunos fazem quando 
envolvidos em situações reais de uso da escrita. Também para elaborar jogos que 
trabalhem as irregularidades ortográficas, é preciso conhecimentos do sistema gráfico, 
pois, no jogo, as crianças ficam mais livres e espontâneas, pensam e perguntam mais. 
Nos exercícios repetitivos e transmissões pelo professor, é mais fácil controlar a 
curiosidade da criança. O livro didático poderia servir de suporte ao professor para o 
ensino do sistema gráfico, se trouxesse a sistematização das regularidades e 
irregularidades ortográficas, para servir de consulta ao professor sempre que ele, ou seus 
alunos, apresentassem dúvidas neste sentido. 
O ensino da escrita como linguagem requer interação professor-aluno em prol de 
atividades significativas envolvendo os usos reais da escrita. O livro analisado traz 
várias atividades neste sentido, como organização de entrevista, relatório de observação 
de animais, execução de receita culinária. Entretanto, não traz propostas de atividades 
nas quais a criança se expresse livremente através da escrita. Provavelmente, para evitar 
a escrita idiossincrática da criança que transcreve a fala, o livro traz propostas de 
produção de texto nas quais a criança precisa adaptar sua escrita a tabelas e formatos 
rígidos. 
Resta saber se o livro didático analisado apresenta ou não uma proposta hitórico-cultural 
de alfabetização. A partir da resposta a essa questão, podemos também pensar 
em qualquer livro didático. Poderia um livro didático desenvolver a escrita como função 
cultural complexa? Com quais instrumentos de ensino? Para buscar resposta a esta 
questão, passemos a uma análise conclusiva, englobando as possibilidades e os limites 
da apropriação pelo livro didático da totalidade da teoria sobre o desenvolvimento da 
escrita da psicologia histórico-cultural.
151 
CONSIDERAÇÕES FINAIS 
Podemos começar esta conclusão buscando responder às questões: como o livro 
didático de alfabetização se apropria da teoria de Vigotski sobre o desenvolvimento da 
escrita? Pode um livro didático se apropriar desta teoria? Como? 
Em relação ao livro didático analisado, podemos dizer que ele não se apropria da 
teoria de Vigotski acerca do desenvolvimento da escrita. Se tomarmos ‘apropriação’ no 
sentido histórico-cultural de reconstrução subjetiva da palavra do outro, da cultura e do 
conhecimento histórico, não há apropriação pelo livro didático analisado da teoria de 
Vigotski. O livro cita a ‘mediação’ e a ‘zona de desenvolvimento próximo’, importantes 
categorias do autor, no seu texto de assessoria pedagógica. Entretanto, cita 
descuidadamente, sem tentar desvelar para o professor-interlocutor o significado destas 
categorias e suas implicações para o processo de alfabetização e de ensino-aprendizagem. 
Cita sem explicar, erradamente, levando a entender que mediação é o 
mesmo que transmissão do conhecimento. 
A teoria de Vigotski sobre o desenvolvimento da escrita traz importantes 
contribuições para a alfabetização. O autor remete à importância do jogo, do desenho, 
da leitura silenciosa, da passagem da escrita como simbolismo de segunda para primeira 
ordem, do ensino da escrita como sendo algo necessário para a criança, da importância 
das interações para a construção de qualquer forma de representação simbólica, dentre 
as quais se inclui a escrita. 
O livro didático analisado traz atividades de jogo, desenho, leitura silenciosa e 
uso da escrita em situações reais. Embora contenha algumas boas atividades, 
principalmente jogos, na sua grande maioria são propostas destituídas de simbolismo e 
de significação. Isto porque a criança não é levada a se expressar através da escrita. Os 
exercícios propostos no livro obrigam a criança a escrever segundo modelos rígidos, 
preenchendo tabelas e respondendo questões. Há alguns bons textos para a criança ler 
no livro didático: histórias em quadrinhos, poemas, lendas, contos, letras de música. 
Mas estes bons textos são acompanhados de uma espécie de cerceamento da 
compreensão, da expressão e da atividade criadora da criança. Logo após o texto vem 
uma questão objetiva, uma tabela para a criança preencher, um exercício para trabalhar 
as letras. São poucas as questões postas no livro que levam a criança a refletir sobre as 
idéias de um texto.
152 
O impedimento de que a criança escreva livremente advém, provavelmente, do 
medo das escritas idiossincráticas, próprias do início do processo de alfabetização. 
Procópio e Passos, autoras do livro, podem ter revelado um medo das escritas 
idiossincráticas da criança. Claro que este medo não é das autoras, é, sim, um medo 
presente na cultura da escola, que foi apropriado pelas autoras e expresso no livro 
didático. Também o modo como aparecem, no livro didático analisado, as propostas de 
interpretação de textos, revelam o medo das interpretações idiossincráticas do texto pela 
criança. 
Para Vigotski (1993), a fala egocêntrica é um momento da apropriação subjetiva 
da cultura. O pensamento é anterior à fala egocêntrica, até mesmo porque existe, na 
ontogênese, uma etapa de pensamento pré-lingüístico, ou seja, não verbal. Mas a escrita 
é posterior ao pensamento verbal, pois, para escrever, a criança já precisa ter 
desenvolvido uma fala, uma verbalização interior. Pensamento e escrita são coisas 
distintas. O pensamento é repleto de lacunas, aglutinações, omissões. Se a escrita 
transcrever o pensamento, o resultado será a não compreensão pelo outro. Por este 
motivo, é preciso que, gradativamente, a criança aprenda a organizar sua escrita para 
que ela possa ser compreendida pelo outro. Mas, para isso, é preciso que sinta 
necessidade de ser compreendida pelo outro. 
A escrita para o outro se torna uma escrita para si na medida em que, ao ser 
organizada e sistematizada para a compreensão do outro, acaba por organizar o próprio 
pensamento. Entretanto, não se pode fugir do texto idiossincrático que reproduz fala e 
pensamento, ele faz parte do processo de apropriação da escrita. Como a criança sentirá 
necessidade de escrever se não for encorajada a escrever suas idéias e pensamentos? 
Como a criança poderá organizar escrita e pensamento sem poder escrever seu 
pensamento? E a escrita do próprio pensamento é, necessariamente, idiossincrática na 
sua fase inicial. Ora, a escrita não é somente necessária para atividades pragmáticas, 
como ler uma receita culinária ou fazer uma lista de supermercado. Mais do que isso, 
ela é uma linguagem, qualitativamente diferente da fala, que organiza o pensamento. 
O que são o gesto, o desenho e o jogo se não formas iniciais de representar o 
próprio pensamento? Não jogar e não desenhar, segundo Vigotski (1993), freia o 
processo de desenvolvimento da escrita. Podemos, hipoteticamente, afirmar que a 
ausência destas atividades freia o desenvolvimento da escrita porque impede a 
expressão.
153 
Do mesmo modo, podemos afirmar, hipoteticamente, que impedir a criança de 
expressar seu pensamento através da escrita impede sua passagem às formas superiores 
de escrita. 
Em defesa do livro didático, podemos dizer que ele não se coloca como único 
tutor do processo de desenvolvimento da escrita, mas sim como apenas um dos 
elementos. Por este motivo, a ausência de possibilidades para que a criança desenvolva 
as formas superiores de escrita nos exercícios do livro didático não impede que o 
professor trabalhe nesta perspectiva. 
Contudo o livro promove, sim, uma apropriação pelo professor de certa 
concepção de ensino e aprendizagem da escrita. Concepção pragmática, que impede a 
passagem às etapas superiores de escrita porque não permite a escrita como outro meio 
de comunicação além da fala, e porque impede a interpretação livre de textos. 
Concepção que denota o medo das idiossincráticas interpretações de textos e produções 
escritas das crianças e, com isso, reduz as possibilidades para que a criança utilize a 
escrita como linguagem. 
Podemos passar à última questão: pode um livro didático se apropriar da teoria 
de Vigotski sobre o desenvolvimento da escrita? Como? Para se apropriar da teoria de 
Vigotski, o autor do livro didático precisa conferir à escrita o significado de linguagem 
e função cultural complexa. Mas os significados da escrita como linguagem emergem 
justamente das interações sociais. O livro só pode interagir em sentido unidirecional 
com professor e aluno, pois não pode ouvir e dialogar. A interação do livro com 
professor e alunos é limitada. 
Por este motivo, seria interessante que autores de livros didáticos não tentassem 
assumir, na escrita dos exercícios e de textos de assessoria pedagógica, a função de um 
outro que dialoga com professor e aluno. Esta tentativa resultará sempre fracassada, 
dado o limite da interação entre um livro e um interlocutor imaginário. A interação 
possível entre o livro e a pessoa é a interpretação subjetiva da pessoa e a preocupação, 
de quem escreve o livro, em se fazer entender. Ora, não há diálogo entre livro e aluno, 
ou entre livro e professor, de modo que é uma estereotipia, e um contra-senso, o livro 
ser escrito em modo de diálogo com aluno ou com professor. 
É preciso pensar nas necessidades dos professores e alunos envolvidos no 
processo de ensino e aprendizagem da escrita, segundo a psicologia histórico-cultural. 
Estas necessidades, como já vimos, são todas as formas de representação cuja
154 
significação é mediada pelo outro, além do ensino sistemático das arbitrariedades da 
escrita. 
Dentre estas necessidades, há alguma que o livro didático possa suprir? Quais? 
Penso que há várias. Para o professor, o livro pode trazer uma sistematização das regras 
do sistema gráfico da língua portuguesa e sugestões de atividades envolvendo gesto, 
desenho e jogo. Para o aluno pode trazer propostas de jogos que o levem a fazer leitura 
oral e silenciosa ou refletir sobre as relações grafemas-fonemas. Também pode trazer 
alfabeto móvel e passatempos. As propostas de interpretação e produção de texto devem 
emergir da interação entre professor e aluno, não do livro didático. 
Assim, um livro didático pode, sim, ser constituído na perspectiva da psicologia 
histórico-cultural. No entanto, apenas como coadjuvante, como um dos muitos 
elementos que mediam o desenvolvimento da escrita. Mas, para isso, é preciso que os 
autores de livro didático, em geral, assumam conscientemente seu papel de coadjuvante, 
ou seja, que entendam quais são as necessidades requeridas pela apropriação da escrita 
pelas crianças e, dentre estas, quais as que pertencem ao domínio da interação entre 
professor e aluno e quais as que podem ser objeto do livro didático.
155 
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158 
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Disponível em http://www.marxists.org/archive/vygotsky/works/1933/play.htm, em 
26.06.2005.

A alfabetização para a teoria histórico cultural

  • 1.
    TAMARA CARDOSO ANDRÉ O DESENVOLVIMENTO DA ESCRITA SEGUNDO VIGOTSKI: POSSIBILIDADES E LIMITES DE APROPRIAÇÃO PELO LIVRO DIDÁTICO. Curitiba 2007
  • 2.
    2 TAMARA CARDOSOANDRÉ O DESENVOLVIMENTO DA ESCRITA SEGUNDO VIGOTSKI: POSSIBILIDADES E LIMITES DE APROPRIAÇÃO PELO LIVRO DIDÁTICO. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná, para obtenção do título de mestre em Educação. Orientador: Prof. Dr. Gilberto de Castro Curitiba 2007
  • 3.
    3 Dedico estetrabalho à memória de meu pai, Alfredo Bastos André, pessoa que me ensinou a cultivar as funções psíquicas superiores.
  • 4.
    4 Agradeço àminha mãe, Alvani, pelo apoio incondicional a todos os meus projetos de vida; aos meus irmãos, Vânila e Alfredo, e cunhados, Alexandre e Jaqueline que, apesar da distância, participam sempre da minha vida; aos meus sobrinhos, Kadija, Gabriela e Theo, pela alegria que proporcionam e por nossos momentos de jogo; ao meu companheiro, Alexandre, pela ajuda, desde quando ingressar no mestrado era um sonho, até a finalização deste trabalho. Por ter me ensinado a dar forma científica a todos os meus anseios; à Susana, pelos livros e debates; à Liseane, pelo incentivo e pelas trocas de idéias; à Bartira, pela amizade e pela ajuda no inglês; ao Prof. Gilberto de Castro, por, sabiamente, orientar minhas idéias sem inibi-las; aos colegas da Unioeste, Alessandra, Catta, Cecília, Cristiane, Crizieli, Conceição, Denise, Fabiano, Fernando, Janaína, Samuel, Sebastião, Silvana e Vânia, pela recepção e acolhimento na instituição; ao CEAEC, pelo excelente ambiente de estudos proporcionado; especialmente aos ex-colegas de trabalho e ex-alunos da Escola Estadual de Ensino Fundamental Martins Costa Júnior, por terem participado do meu ingresso na educação brasileira, momento tão importante para a construção do sentido deste trabalho.
  • 5.
    5 La concienciase refleja en la palabra lo mismo que el sol en una pequeña gota de agua. La palabra es a la conciencia lo que el microcosmos al macrocosmos, lo que la célula al organismo, lo que el átomo al universo. Es el microcosmos de la conciencia. La palabra significativa es el microcosmos de la conciencia humana. (VIGOTSKI, 1993: 346- 347)
  • 6.
    6 SUMÁRIO RESUMO............................................................................................................... 8 ABSTRACT ........................................................................................................... 9 INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 10 1. A PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL E O MÉTODO DE ESTUDO DAS FUNÇÕES PSÍQUICAS SUPERIORES: PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A ESCRITA ......................................................... 15 1.1. A constituição da psicologia histórico-cultural ................................................ 15 1.2. Experiência, trabalho e atividade ..................................................................... 17 1.3. Funções psíquicas superiores: um processo cultural e social ........................... 20 1.4. Os pressupostos do método da psicologia histórico-cultural para estudar as funções psíquicas superiores ................................................................................... 28 1.5. A escrita como função psíquica superior ......................................................... 31 2. O DESENVOLVIMENTO DA ESCRITA PELA CRIANÇA ...................... 37 2.1. O desenvolvimento da escrita pela criança ...................................................... 41 2.1.1. Os rabiscos mecânicos .......................................................................... 49 2.1.2. O jogo ................................................................................................... 50 2.1.3. O desenho ............................................................................................. 56 2.2. A passagem para a etapa superior da escrita .................................................... 59 2.3. Primeiras conclusões sobre o desenvolvimento da escrita e suas relações com o processo de ensino e aprendizagem ............................................................. 65 3. RELAÇÕES ENTRE ORALIDADE, PENSAMENTO E ESCRITA .......... 71 3.1. A linguagem e seu desenvolvimento para a psicologia histórico-cultural 71 3.2. Relações entre fala e escrita nos três momentos do desenvolvimento da escrita ....................................................................................................................... 84 3.2.1 Escrita como representação simbólica na pré-história da ontogênese ... 85 3.2.2. Escrita como simbolismo de segunda ordem ........................................ 88 3.2.3. Apropriação da escrita como atividade cultural complexa ................... 93 3.3. Conclusões sobre as relações entre pensamento, fala e escrita ........................ 98 4. ESCOLHA DO LIVRO DIDÁTICO E CRITÉRIOS DE ANÁLISE .......... 102 4.1. Metodologia empregada para escolha do livro didático ................................... 103 4.2. Descrição do livro didático selecionado ........................................................... 104
  • 7.
    7 4.3. Ascategorias de análise ................................................................................... 104 4.4. Metodologia empregada para análise do livro didático ................................... 107 5. A APROPRIAÇÃO PELO LIVRO DIDÁTICO DA CONCEPÇÃO DE VIGOTSKI ACERCA DO DESENVOLVIMENTO DA ESCRITA ................ 110 5.1. Os conceitos de ‘mediação’ e ‘escrita’ no texto de assessoria pedagógica do livro didático ............................................................................................................ 110 5.2. A representação simbólica na pré-história da ontogênese ................................ 115 5.2.1. O gesto .................................................................................................. 117 5.2.2. O jogo .................................................................................................... 118 5.2.3. O desenho .............................................................................................. 122 5.3. A escrita como simbolismo de segunda ordem ................................................ 126 5.4. Apropriação da escrita como atividade cultural complexa .............................. 135 5.4.1. Relações entre fala e escrita .................................................................. 135 5.4.2. A escrita como necessidade .................................................................. 142 5.5. Conclusões a partir da análise do livro didático ............................................... 149 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ 151 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................ 155 REFERÊNCIAS INFOGRÁFICAS .................................................................... 158
  • 8.
    8 RESUMO Apresente dissertação tem como objeto a apropriação da teoria de Vigotski acerca do desenvolvimento da escrita pelo livro didático de alfabetização. O objetivo maior foi investigar se a teoria de Vigotski tem implicações para o ensino e aprendizagem da escrita e se estas podem se concretizar no livro didático de alfabetização. Ou seja, não se tratou apenas de verificar se o livro didático analisado tem uma proposta pedagógica coerente com a teoria de Vigotski. Foram inferidos desta teoria três momentos do desenvolvimento da escrita: pré-história do desenvolvimento da escrita pela criança, escrita como representação dos sons da fala e escrita como linguagem. Estes três momentos coexistem durante o desenvolvimento da escrita, que não ocorre por etapas sucessivas e lineares. Para a criança desenvolver a escrita como linguagem, é preciso que compreenda a representação simbólica e as relações arbitrárias entre fonemas-grafemas. Mas o mais importante, na perspectiva da psicologia histórico-cultural, é que a criança aprenda a usar a escrita como meio de interlocução e expressão. Os fatores que levam a criança a desenvolver a escrita são as atividades envolvendo representação simbólica, que são o gesto, o desenho e o jogo, a interação social, a leitura e o uso da escrita em situações reais, nas quais esta se torna uma necessidade. Os fatores do desenvolvimento da escrita constituíram os critérios de investigação do livro didático. Assim, foi feita uma análise do livro didático, tanto no texto que este traz de orientação aos professores, quanto nos exercícios propostos, verificando como os fatores do desenvolvimento da escrita são apropriados e concretizados em atividades de alfabetização. Concluiu-se que o livro didático tem possibilidades limitadas para trabalhar na perspectiva da psicologia histórico-cultural porque não pode dialogar com professor e aluno e, consequentemente, não pode ser o interlocutor do aluno que expressa seus pensamentos através da escrita. PALAVRAS-CHAVE: escrita, desenvolvimento, relações entre oralidade e escrita, livro didático.
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    9 ABSTRACT Thepresent dissertation has as object of study, the appropriation of Vigotsky’s theory on the writing development by the educational book of literacy. The major aim of this research was to investigate if the Vigotsky’s theory has implications in the teaching and learning of writing and if they can be concretized in the educational book of literacy. It means that the study was not only the verification if the educational book analyzed has a pedagogical proposal coherent with Vigotsky’s theory. It was concluded from this theory three different moments of the writing development: pre-history of the writing development by child, the writing as a representation of sounds of speaking and the writing as language. These three different moments coexist during the writing development, which does not occur by successive and linear stages. For the child to develop the writing as language, it is necessary the comprehension of the symbolic representation and the arbitrary relations between phonemes and graphemes. But, the most important thing, from the perspective of historical-cultural psychology, is that child should learn to use the writing to make the representation of his thoughts and ideas. What makes the child to develop the writing are activities involving symbolic representation which are the gesture, the drawing and the game, the social interaction, the silent reading and the use of the writing in real situations in which it is necessary. The writing development factors constituted the investigation criteria of the educational book. It was accomplished an analysis on the educational book, including the teacher’s book and the exercises proposed, verifying how the writing development factors are appropriated and concretized in literacy activities. Finally, it was concluded that the educational book has limited possibilities to work in the perspective of historical-cultural psychology, because it can not dialog with teacher and student and consequently, it can not be the interlocutor of the student which express his thoughts through the writing. KEY-WORDS: writing, development, speaking and writing relation, educational book.
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    10 INTRODUÇÃO Porquase três anos fui professora de segunda série do ensino fundamental na rede pública de Porto Alegre. Neste período, chamava-me atenção a grande quantidade de alunos que não conseguia ler e nem se expressar através da escrita. Dentre estes, havia alguns que se recusavam a escrever. Quando eu propunha alguma produção de texto, perguntavam se não podiam escrever uma frase. Escreviam frases curtas, sem sentido, reproduziam sempre as palavras cuja escrita já dominavam ou faziam total transcrição fonética. Não gostavam, e nem tentavam ler. Em propostas de leitura silenciosa, folheavam o livro e olhavam as gravuras com o olhar perdido, até que se cansavam e começavam a conversar, caminhar pela sala ou fazer outras coisas. Nas atividades para as quais havia necessidade de leitura, chamavam-me para explicar o que fazer. Em trabalhos em grupo, não se ocupavam das atividades de leitura e escrita. Às vezes, na ânsia de saber se estava havendo algum progresso, eu me aproximava, de um aluno por vez, e pedia que lesse para mim em voz alta. Nestas ocasiões, ou o aluno admitia não saber ler, ou soletrava as sílabas das palavras escritas, até se imobilizar diante de um encontro consonantal. Mas todos reconheciam as letras do alfabeto, tendo até memorizado sua ordem. E muitos adoravam copiar textos do quadro negro. Minha hipótese era de que estes alunos preferiam tarefas mecânicas porque estas os deixavam com a cabeça livre para pensar em outras coisas. Eu tinha vontade de levá-los ao gosto pela leitura e à expressão criativa através da escrita. Por este motivo tentava, com grande dificuldade, organizar minhas aulas de modo a atingir estes objetivos. Muitas vezes minha criatividade e paciência se esgotavam, e eu recorria a atividades que achava tradicionais, como exercícios de seguir o modelo, cópias e ditados. Pesquisei idéias e atividades em vários livros didáticos, mas não encontrava neles as respostas para meus anseios. Naquela época, primeira metade da década de 2000, os livros didáticos traziam o construtivismo como referencial teórico, e pareciam tentar organizar suas atividades com base nas teorias de Emília Ferreiro. Eu me identificava muito com o construtivismo, mas achava que os livros didáticos reificavam a teoria de Ferreiro. Por este motivo, eu só usava os livros didáticos para recortar o alfabeto móvel que eles traziam e aproveitar alguns jogos e textos. Para lidar com os problemas encontrados em sala de aula, comecei a estudar sobre alfabetização e promover algumas modificações em minha prática. Aos poucos,
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    11 minha visãoempírica e intuitiva da realidade foi sendo substituída por uma compreensão mais científica dos problemas ligados à alfabetização. Além de Emília Ferreiro, tive bastante influência das autoras construtivistas Ana Teberosky e Liliana Tolchinsky; de Josette Jolibert, autora francesa; e dos brasileiros Regina Zilbermann, Sônia Kramer, Luiz Carlos Cagliari e Miriam Lemle. Nesta época, li A formação social da mente, de Vigotski. Não entendi o livro muito bem, pois Vigotski era um autor sobre o qual sabia pouco. Reconheci algumas contribuições do livro para a alfabetização, mas achei que eram muito poucas. A idéia de Vigotski, para mim, mais interessante, foi sobre a importância do brinquedo e do desenho para a alfabetização. Qual não foi minha surpresa quando, ao mudar-me para Foz do Iguaçu e assumir como professora temporária na Unioeste, deparei com Vigotski como principal referencial teórico adotado pelo Currículo Básico do Paraná e, conseqüentemente, por Projetos Políticos Pedagógicos das escolas municipais onde eu orientava os estágios das minhas alunas. Por que Vigotski como referencial teórico? Este autor me parecia não ter tantas contribuições para a alfabetização. A teoria de Vigotski foi associada por Gasparin (2003) a uma Pedagogia Histórico-Crítica. Por não encontrar, na época, nenhum autor que houvesse interpretado as contribuições de Vigotski para a alfabetização, resolvi tentar fazer esta relação. Por isso ingressei no mestrado com o projeto intitulado Contribuições de Vigotski para uma didática histórico-crítica da alfabetização. Entretanto, logo percebi que pensar em uma didática para a alfabetização com base em um autor cuja especificidade teórica não foi a alfabetização, era um objetivo pretensioso demais. Resolvi mudar meu projeto inicial, mas sem abrir mão de estudar as implicações da teoria de Vigotski para a alfabetização. Acabei optando por estudar o modo como o livro didático de alfabetização se apropria da teoria de Vigotski sobre o desenvolvimento da escrita, resgatando, assim, um antigo incômodo com relação a este instrumento pedagógico. Para realizar esta investigação, foi escolhido um livro didático distribuído às escolas públicas pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). A análise de apenas um livro se justifica, porque o presente trabalho não visa avaliar a apropriação da psicologia histórico-cultural pelos livros didáticos no Brasil, e sim as possibilidades do livro didático transmitir esta teoria de desenvolvimento da escrita. Cabe esclarecer que o livro analisado autodenomina sua concepção pedagógica de ‘sociointeracionista’, e não de histórico-cultural; sua concepção não é
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    12 exclusivamente pautadana teoria de Vigotski. Consta também como referencial teórico adotado pelo livro, a teoria construtivista de Piaget e Emília Ferreiro. Além disso, outros autores constituem fonte bibliográfica do livro: Magda Soares, autora que discute o letramento; Fernando Hernández, propositor da pedagogia por projetos de trabalho; Luiz Carlos Cagliari e Miriam Lemle, autores que abordam a alfabetização à luz da lingüística e sociolingüística. Os Referenciais Curriculares Nacionais para a Educação Infantil e os Parâmetros Curriculares Nacionais também constam como referencial do livro. Conforme será visto no capítulo que trata do método usado para escolher e analisar o livro didático, não foi encontrado nenhum que trouxesse uma concepção exclusivamente pautada na psicologia histórico-cultural. Este fato não constituiu impeditivo para a análise, pois foram observadas no livro, tanto nos exercícios, quanto no texto aos professores, as categorias de Vigotski sobre o desenvolvimento da escrita. Esta análise tem como objetivo entender as possibilidades e os limites da transmissão da psicologia histórico-cultural para os professores pelo livro didático. Para isso, foi preciso investigar quais são as contribuições da psicologia histórico-cultural para a alfabetização e como o livro didático cita e transforma em exercícios as categorias desta teoria. Enfatizo que não foi objetivo investigar se o livro analisado apropriou-se ou não da teoria de Vigotski acerca do desenvolvimento da escrita. Esta análise foi necessária, mas com o objetivo de entender se pode um livro didático realizar uma proposta de alfabetização a partir da teoria de Vigotski sobre o desenvolvimento da escrita. A análise do livro didático a ser feita pretende ser crítica, e não neutra, pois está comprometida em avaliar o rigor com o qual uma teoria é apropriada por este instrumento. A importância de investigar o livro didático e seu potencial para transmitir ou não uma teoria reside no lugar que este ocupa no cotidiano das escolas. Com a distribuição gratuita do livro pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) para as escolas públicas de todo o país, o livro didático tornou-se um dos instrumentos de alfabetização usado nas escolas. Segundo Batista e Val (2004), desde o PNLD o livro didático está presente no cotidiano das salas de aula e é um elemento básico da organização do trabalho do professor. No entanto, antes de proceder à análise do livro didático, será feita uma interpretação do modo como Vigotski e seus colaboradores compreendem o desenvolvimento da escrita pela criança. Os referidos colaboradores são Luria e Leontiev. Estes autores participaram de um grupo de estudos liderado por Vigotski, o qual mencionarei mais adiante. Por ora, importa lembrar que Luria e Leontiev tiveram
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    13 uma vastaprodução intelectual. No entanto, apesar de terem uma produção teórica autônoma, nos estudos acerca do desenvolvimento da escrita aqui mencionados, Luria e Leontiev trabalharam como colaboradores de Vigotski. As obras de Luria aqui citadas, em sua grande maioria retiradas do Curso de Psicologia Geral, foram consideradas continuidade da teoria de Vigotski. Há dois aspectos importantes a observar. Em primeiro lugar, é preciso frisar que a teoria de Vigotski constitui uma proposta de psicologia fundamentada no materialismo histórico e dialético. Através do método dialético Vigotski investigou diversas funções psicológicas, dentre as quais se inclui a escrita, que não é, portanto, uma categoria central na obra do autor. Por este motivo, faz-se necessário, antes, abordar as categorias principais da obra de Vigotski para se chegar, depois, ao tema central - a escrita. Em segundo lugar, é preciso compreender que Vigotski não concebe o desenvolvimento da escrita como um processo formado por etapas sucessivas e hierárquicas, mas sim um processo complexo, repleto de saltos, rupturas e retrocessos. Proponho aqui a categorização da teoria de Vigotski sobre o desenvolvimento da escrita em três diferentes momentos, que serão tematizados a partir do segundo capítulo da dissertação. Esta proposta não tem o intuito de hierarquizar o desenvolvimento da escrita, mas sim de retirar categorias de análise que ajudem a compreendê-lo. Os três momentos do desenvolvimento da escrita, aqui propostos, foram inferidos da teoria de Vigotski, a partir de seus pressupostos. Sendo assim, esta dissertação visa a realizar uma proposta de releitura das proposições sobre escrita de Vigotski e colaboradores. No primeiro capítulo, trato de duas questões: o método materialista dialético e o conceito de escrita. Ao explicar como Vigotski utilizou o método materialista dialético para estudar a escrita, mostro como esta é concebida pelo autor como uma função psíquica superior. No segundo capítulo, abordo o modo com que Vigotski concebe a aprendizagem e o desenvolvimento da escrita. No terceiro capítulo, verso sobre os três momentos de desenvolvimento da escrita inferidos da teoria de Vigotski: pré-história da ontogênese da escrita; escrita como simbolismo de segunda ordem; escrita como função cultural complexa. Na análise de cada um destes momentos, enfoco as relações entre oralidade, pensamento e escrita. A partir deste capítulo, começo a delinear possíveis implicações da psicologia histórico-cultural para a alfabetização.
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    14 No quartocapítulo, mostro o modo como foi feita a escolha do livro didático, o método usado para sua análise e as características do livro escolhido. As categorias de análise do livro didático foram retiradas dos três momentos do desenvolvimento da escrita inferidos da teoria de Vigotski. No quinto capítulo, realizo a análise do livro didático. Para cada momento do desenvolvimento da escrita, foram escolhidas de duas a três categorias, analisadas tanto nos exercícios do livro didático, quanto no texto aos professores. Durante a análise, não só investigo a forma de o livro didático se apropriar da psicologia histórico-cultural, mas também reflito sobre as possibilidades desta apropriação, propondo algumas contribuições práticas para a alfabetização.
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    15 1. APSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL E O MÉTODO DE ESTUDO DAS FUNÇÕES PSÍQUICAS SUPERIORES: PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A ESCRITA O tema desta dissertação é o desenvolvimento da escrita segundo a psicologia histórico-cultural e as possibilidades e limites de sua interpretação e apropriação pelo livro didático de alfabetização. A escrita é uma dentre as muitas funções psicológicas estudadas por Vigotski e seus colaboradores, ao passo que o método materialista dialético é aspecto central da psicologia histórico-cultural, visto que constitui uma concepção que perpassa todas as categorias de análise desta teoria. Disto deriva a impossibilidade de entender o desenvolvimento da escrita para a psicologia histórico-cultural sem contextualizá-la entre outros conceitos relacionados com a escrita e sem entender os pressupostos do método utilizado por Vigotski, Luria e Leontiev para investigar o desenvolvimento da escrita. Assim, são dois os objetivos do presente capítulo: explicitar o conceito de escrita de Vigotski e o método usado pelo autor e seus colaboradores para investigá-la. No primeiro tópico será apresentado um breve histórico da constituição da psicologia histórico-cultural, bem como suas primeiras conclusões acerca do estudo das funções psíquicas superiores, a categoria cerne desta linha de estudos. No segundo tópico serão desenvolvidas três importantes categorias de Vigotski de suma importância para compreender as funções psíquicas superiores: o trabalho, a experiência e a atividade. No terceiro tópico, serão objetos de análise as funções psíquicas superiores e o modo como estas se constituem, na história da humanidade e na história do indivíduo. O quarto tópico trata dos principais pressupostos do método materialista dialético da psicologia histórico-cultural para o estudo das funções psíquicas superiores. Por fim, o quinto tópico delineia o conceito de escrita e sua relação com as funções psíquicas superiores. 1.1. A constituição da psicologia histórico-cultural Foi aproximadamente a partir do ano de 1926 que Vigotski apareceu no cenário da psicologia russa para propor uma psicologia materialista dialética. Segundo Teixeira (2005), a proposta de Vigotski veio acompanhada de sua crítica à psicologia russa do início do século XX. Vigotski (apud TEIXEIRA, 2005) considerava que a ciência não poderia proporcionar um modelo satisfatório do psiquismo humano sem estudar as
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    16 funções psíquicassuperiores. Para ele, tanto a ciência natural quanto a fenomenologia tinham em comum o fato de não estudarem as funções superiores. Vigotski denominou sua análise de ‘crise na psicologia’. Analisando este primeiro momento de proposição da psicologia histórico-cultural, Teixeira (2005) explica que Vigotski não foi o único psicólogo russo da década de 1920 a propor uma psicologia materialista dialética. Quando Vigotski fez sua análise, as duas correntes então existentes – o materialismo e o idealismo – se subdividiam em várias escolas. Inicialmente, a psicologia materialista se dividia em materialismo mecanicista, do behaviorismo, e materialismo dialético, da psicologia histórico-cultural. O I Congresso Pan-russo de Psiconeurologia de Leningrado, em 1923, foi palco da disputa existente entre idealistas e materialistas. Os psicólogos identificados com a revolução soviética rejeitavam o idealismo de Chelpanov, dirigente do Instituto de Psicologia de Moscou e defensor de uma psicologia introspectiva, assim como o mecanicismo de Bekhterev, colaborador de Pavlov e criador da reflexologia. Por se sobressair na apresentação de uma proposta materialista dialética para a psicologia, Kornilov foi convidado a substituir Chelpanov na direção do Instituto de Psicologia de Moscou, levando como colaboradores Luria e Leontiev. No congresso de 1924, Vigotski apresentou o trabalho “Os métodos de investigação reflexológicos e psicológicos”, e foi convidado a integrar a equipe de Kornilov. Como o grupo formado concordou que Vigotski era o único integrante com formação marxista sólida, elegeram-no para liderar a análise crítica da psicologia do século XX. O que estava em jogo, portanto, era a superação da profunda crise na qual essa ciência mergulhara havia anos. E para isso era preciso superar, por um lado, a psicologia introspectiva baseada no idealismo filosófico e, por outro, as correntes materialistas mecanicistas. Ambas as tendências, segundo Vigotski, eram incapazes de estudar e descrever adequadamente a manifestação superior do psiquismo, que é a consciência. (TEIXEIRA, 2005: 25) Vigotski fez uma crítica contundente às duas correntes da psicologia materialista de sua época. Enquanto os darwinianos explicavam o problema do comportamento animal a partir da origem da experiência hereditária, os pavlovianos explicavam pelo mecanismo de multiplicação da experiência hereditária pela experiência pessoal que forma o reflexo condicionado. Afirma Vigotski (1991) que, ao se ater apenas aos
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    17 comportamentos maiselementares do homem, estas psicologias nem se constituíam como críticas ao espiritualismo da psicologia idealista e nem respondiam sobre a diferença entre o homem e o animal. Foi sob a influência da teoria de Marx que Vigotski buscou as origens do comportamento consciente nas relações do indivíduo com o mundo exterior. De acordo com Luria (2003a), este modo de compreender os processos psicológicos era denominado por Vigotski de psicologia “cultural”, “histórica” ou “instrumental”. Cada uma destas três denominações mostra uma faceta da relação que distingue o homem do animal. Instrumental refere-se às atividades mediadoras de todas as funções psicológicas complexas, ou seja, aos estímulos auxiliares incorporados e produzidos pela pessoa. O aspecto cultural refere-se aos meios que a sociedade estrutura para organizar suas atividades de trabalho e ensino e os instrumentos físicos e mentais que utiliza. Um instrumento básico desenvolvido pela humanidade é a linguagem, enfatizada por Vigotski como tendo importante papel na organização e desenvolvimento dos processos de pensamento. O elemento histórico funde-se com o cultural. Os instrumentos que o homem usa para dominar o meio foram historicamente criados e aperfeiçoados. As funções psíquicas superiores se desenvolveram na história da humanidade graças à criação de instrumentos para mediar a relação do homem com a natureza. 1.2. Experiência, trabalho e atividade Ao explicar a consciência a partir das relações entre indivíduo e sociedade, Vigotski (1991) considera que o grande erro das psicologias idealistas e materialistas da sua época foi desconsiderar que a experiência humana é histórica e social. A este respeito, o autor frisa que existem três tipos de experiências humanas: a experiência social, a experiência histórica e a experiência duplicada. A experiência social decorre do fato de as formas humanas de desenvolvimento, trabalho e aprendizagem serem sempre coletivas. As funções psicológicas se constituem na interação social porque o homem é um ser que vive coletivamente. A experiência histórica faz parte do componente social do comportamento humano, pois permite que cada homem tenha acesso a informações e conhecimentos obtidos pela humanidade como um todo. Os animais, ao contrário dos homens, não têm experiência histórica.
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    18 (...) Hacefalta, ante todo, señalar lo extraordinariamente amplio de la experiencia heredada por el hombre si la comparamos con la experiencia animal. El hombre no se sirve únicamente de la experiencia heredada físicamente. Toda nuestra vida, el trabajo, el comportamiento, se basan en la amplísima utilización de la experiencia de las generaciones anteriores, es decir, de una experiencia que no se transmite de padres a hijos a través del nacimiento. La llamaremos convencionalmente experiencia histórica. (VIGOTSKI, 1991: 45) A experiência duplicada é a capacidade que o homem tem de planejar a própria ação. O homem executa suas ações usando as mãos e os instrumentos de trabalho, porém as executa antes na mente. É graças à experiência duplicada que as formas de adaptação do homem são ativas. Adaptação ativa significa capacidade de transformar o ambiente e a si mesmo através da ação. O homem, diferentemente do animal, modifica o meio para sobreviver. Os animais se adaptam ao meio, ao passo que os homens adaptam o meio a si. Ainda que alguns animais possam produzir modificações em seu meio, como é o caso da abelha que faz uma colméia, eles o fazem de modo instintivo e uniforme. A ação dos animais é mecânica porque prescinde de planejamento prévio. É através do trabalho que o homem modifica a si e ao meio. Influenciado pela teoria de Marx, Vigotski concluiu que as origens do comportamento consciente deveriam ser achadas nas relações que o indivíduo mantém com o mundo exterior através do trabalho. Vigotski (1991) considera que as experiências histórica, social e duplicada do homem são permeadas pelo trabalho. O trabalho, que é sempre um processo coletivo, criou no homem a necessidade de planejar a própria ação. Mas, para planejar a ação, o homem precisou criar um código de signos estáveis, que é a linguagem. Na história da humanidade, a linguagem foi criada em função das necessidades surgidas nos processos de trabalho coletivo. Ao sentirem necessidade de dizer algo durante suas atividades, os homens primitivos começaram, gradativamente, a criar uma linguagem estável. O advento da linguagem permitiu aos homens a capacidade de planejar a própria ação, dividindo o trabalho em dois momentos distintos e inter-relacionados: planejamento e execução. Nesta perspectiva, considera-se que a capacidade de planejar advém da linguagem, surgida através das relações sociais no processo de trabalho. Portanto, na concepção da psicologia histórico-cultural, o trabalho é a função primeira da atividade humana, sendo a linguagem sua decorrência.
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    19 Leontiev (s/d)explica a premissa que confere ao trabalho importância fundamental na formação da consciência do homem. Segundo este autor, foi o trabalho que possibilitou o desenvolvimento do cérebro, dos órgãos da atividade externa e dos órgãos dos sentidos. O cérebro e os órgãos humanos se hominizaram a partir do trabalho. “O órgão principal da atividade do trabalho do homem, a sua mão, só pode atingir a sua perfeição graças ao próprio trabalho”.(LEONTIEV, s/d: 76) Só graças a ele, graças a adaptação a operações sempre novas... é que a mão do homem atingiu este alto grau de perfeição que pode fazer surgir o milagre dos quadros de Rafael, as estátuas de Thorwaldsen, a música de Paganini. (ENGELS apud LEONTIEV, s/d: 76) Leontiev define trabalho como sendo o processo de ação do homem sobre a natureza. O trabalho é feito quando o homem coloca as forças de seu corpo em movimento para assimilar a matéria dando-lhe uma forma útil para sua vida. O homem modifica o meio e a si mesmo no processo de trabalho através do uso de instrumentos. Determinados animais até podem usar instrumentos; por exemplo, um símio pode usar uma vara para alcançar uma fruta no topo da árvore. No entanto, o uso que estes animais fazem dos instrumentos não é coletivo, não é consciente, e nem determina formas de comunicação entre os seres que a efetuam. Nos animais, toda atividade está diretamente relacionada à satisfação das necessidades biológicas, de modo que o objeto das atividades sempre se confunde com seus motivos biológicos. O homem, pelo contrário, distingue objeto e motivo durante o processo de trabalho; o que lhe permitiu fazer isso foi a criação de instrumentos. É fazendo uso de instrumentos que o homem distingue objeto e motivo e separa o trabalho nas fases de execução e planejamento. A estas ações, Leontiev dá o nome de ‘atividade’. Assim, enquanto o ato de caçar é apenas um movimento mais instintivo, preparar um instrumento para esta caçada é uma atividade. O fabrico e o uso de instrumentos só é possível em ligação com a consciência do fim da ação de trabalho. Mas a utilização de um instrumento acarreta que se tenha consciência do objeto da ação nas suas propriedades objetivas. O uso do machado, por exemplo, não responde ao único fim de uma ação concreta; ele reflete objetivamente as propriedades do objeto de trabalho para o qual se orienta a ação. O golpe do machado submete as propriedades do material de que é feito este objeto a uma prova infalível; assim se
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    20 realiza umaanálise prática e uma generalização das propriedades objetivas dos objetos segundo um índice determinado, objetivado no próprio instrumento. Assim, é o instrumento que é de certa maneira portador da primeira verdadeira abstração consciente e racional, da primeira generalização consciente e racional. (LEONTIEV, s/d: 88) O instrumento é sempre social, tanto porque seu emprego foi elaborado socialmente no transcurso do trabalho coletivo, quanto porque faz parte da cultura humana e media as interações do homem consigo, com o outro e com o meio. Embora seja uma prática às vezes individual, é através da prática social que o indivíduo adquire o uso de instrumentos. Os instrumentos podem ser materiais ou psicológicos. Assim como o homem usa um instrumento para arar a terra (instrumento material), também usa sua inteligência e habilidade para confeccionar o arado (instrumento interno). Aos instrumentos internos, Vigotski (2000) dá o nome de ‘signos’. A capacidade de operar com signos e instrumentos é característica central de todas as funções psíquicas superiores. Por este motivo, antes de explicar o que são signos e instrumentos e qual sua relação com a escrita, cabe, agora, enfocar o que são e como se desenvolvem as funções psíquicas superiores. 1.3. Funções psíquicas superiores: um processo cultural e social As Funções Psíquicas Superiores são indissociadas de duas categorias fundamentais da obra de Vigotski: a cultura e o social. As funções psíquicas superiores são todas aquelas ações e capacidades intelectivas que foram desenvolvidas ao longo da história da humanidade através da cultura e da interação social, produzidas no processo de trabalho. Isto significa que as funções superiores são produzidas na história humana e apropriadas individualmente. Ou seja, os conhecimentos construídos historicamente são apropriados pelo individuo através da interação social e contato com a cultura. A história da humanidade se inter-relaciona com a história do indivíduo, pois, conforme já vimos, através da interação social, o homem recebe do meio toda a experiência histórica da humanidade. Vigotski (2000) chama o desenvolvimento histórico da humanidade de filogênese e o desenvolvimento do indivíduo, inserido no meio histórico-cultural, de ontogênese.
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    21 As funçõespsíquicas superiores constituem dois grupos qualitativamente diferentes, mas indissociáveis. Por um lado, formam o grupo das funções que pertencem ao domínio dos meios externos, como a linguagem, a escrita, a aritmética, entre outros. Por outro lado, formam o grupo das funções superiores especiais ou internas, como a atenção voluntária, a memória lógica e a formação de conceitos. El concepto de “desarrollo de las funciones psíquicas superiores” y el objeto de nuestro estudio abarcan dos grupos de fenómenos que a primera vista parecen completamente heterogéneos pero que de hecho son de ramas fundamentales, dos cauces de desarrollo de las formas superiores de conducta que jamás se funden entre sí aunque estàn indisolublemente unidas. Se trata, en primer lugar, de procesos de domínio de los medios externos del desarrollo cultural y del pensamiento: el lenguage, la escritura, el cálculo, el dibujo; y, en segundo, de los procesos de desarrollo de las funciones psíquicas superiores especiales, no limitadas ni determinadas con exactitud, que en la psicología tradicional se denominam atención voluntaria, memoria lógica, formación de conceptos, etc. Tanto unos como otros, tomados en conjunto, forman lo que calificamos convencionalmente como procesos de desarrollo de las formas superiores de conducta del niño. (VIGOTSKI, 2000: 29) Ao explicar a inter-relação entre funções psíquicas internas e externas, Guillermo Arias Beatón (2005), pesquisador contemporâneo da Universidade de Havana, concebe as funções de domínio externo como produções culturais. Segundo o autor, através das interações sociais, o indivíduo se apropria dos instrumentos culturais, como a escrita e o cálculo, que levam ao desenvolvimento das funções psíquicas superiores internas. Por sua vez, estas funções internas permitem construções culturais mais elaboradas, como a informática e a arte. Disso decorre que as funções superiores produzem e são produtos das novas formas de conduta criadas pela cultura. Deste modo, são, simultaneamente, produtos das mudanças culturais ocorridas durante os processos de construção da sociedade humana e transformadoras da atividade psíquica. Queda clara una conclusión de que la psicología específicamente humana, se han ido constituyendo en el proceso de dominio de los contenidos culturales cada vez más complejos y de mayores exigencias y posibilidades, dado que han ido conformando en el
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    22 sujeto nuevasy mas complejas formas y contenidos psicológicos que han sido la base de otros nuevos contenidos de la cultura surgidos por lás necesidades que se han ido creado en la también compleja relación del ser humano con su ambiente y su subsistencia, vida material y espiritual. De esta manera se há construido un proceso en espiral que tiende hacia el infinito. (BEATÓN, 2005: 218) Sendo assim, tanto as funções internas quanto as externas mediam-se mutuamente. Ou seja, a aquisição das funções externas catalisa o desenvolvimento das funções internas, a passo que estas permitem a criação de novas funções externas. O que possibilita este desenvolvimento processual mútuo é a vivência, a experiência e a interação social produzidas na cultura e no processo de trabalho. O desenvolvimento da escrita pode ser citado para exemplificar esta tese. A escrita é um processo de domínio dos meios externos do desenvolvimento da cultura e do pensamento. No entanto, apesar de ser externa ao homem, a escrita é um processo que se desenvolve junto e também como causa do desenvolvimento das funções superiores especiais ou internas. Isto significa que a escrita gera funções superiores especiais e também é fruto das mesmas. Uma importante conclusão que se retira daqui é acerca do modo como uma função psíquica superior impulsiona o desenvolvimento de outra, e como este processo se dá na cultura e na socialização. A partir desta concepção, a psicologia histórico-cultural, ao investigar as funções superiores, leva a questionar o quanto as possibilidades oferecidas pelo meio histórico-cultural, onde a criança está inserida, impulsionam ou dificultam seu desenvolvimento. Vigotski (2000), ao adotar uma perspectiva histórica, considera que, na ontogênese, a biologia e a cultura se entrelaçam no processo de desenvolvimento das funções psíquicas superiores. Na filogênese, considera que o comportamento do adulto é resultado de dois processos de desenvolvimento psíquico: a evolução biológica das espécies animais em direção ao Homo sapiens e o desenvolvimento histórico, através do qual o homem, gradativamente, tornou-se um ser culturalizado. De acordo com Vigotski (2000), geralmente se reconhece bem a diferença entre o desenvolvimento histórico da humanidade e a evolução biológica. Uma diferença básica é que as funções psíquicas superiores se desenvolveram na filogênese sem que o tipo biológico do homem tenha sofrido grandes modificações. Ao modificar o meio para
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    23 sobreviver, ohomem criou instrumentos que se tornaram como que órgãos humanos artificiais. Entretanto, os homens modificaram pouco a estrutura do próprio corpo biológico ao transformarem seu meio. No processo da ontogênese a cultura modifica as funções psíquicas e gera novas formas de conduta. Através do desenvolvimento histórico o homem social modifica a sua conduta. Segundo Vigotski (2000), na ontogênese, o processo de desenvolvimento das funções psíquicas superiores ocorre em paralelo com mudanças biológicas substanciais. O que determina o desenvolvimento de cada etapa da criança é o seu grau de desenvolvimento orgânico e seu grau de desenvolvimento do uso de instrumentos. Por exemplo, para que a criança aprenda a escrever, precisa ter desenvolvido certa maturação biológica e, ao mesmo tempo, a aprendizagem da escrita gera o desenvolvimento de várias funções psíquicas superiores. Ambos, desenvolvimento orgânico e uso de instrumentos, em seu entrelaçamento são o que determina o desenvolvimento infantil. Por este motivo, é difícil separar, no desenvolvimento da criança, o que é cultural e o que é biológico. Em outras palavras, na ontogênese, a escrita se desenvolve a partir da maturação biológica e da cultura da criança. A criança hoje está inserida em uma cultura letrada que já escolarizou a escrita. Portanto, ela aprenderá devido à orientação do seu meio, mas somente quando já tiver a maturação biológica necessária para aprender a escrever. Ninguém tentará ensinar uma criança de um mês de vida a escrever. O mesmo não ocorre na filogênese, pois nesta o desenvolvimento das funções superiores ocorreram historicamente sem provocar mudanças biológicas substanciais. O desenvolvimento da escrita exemplifica esta tese. De acordo com Vigotski (2000), na filogênese, ocorreu um processo gradativo de criação de um sistema para representar a fala. A história deste processo variou em cada povo, mas, geralmente, a escrita primitiva representou diretamente o objeto, sendo mais próxima do desenho. Apenas posteriormente, a escrita passou a representar os sons da fala. Este desenvolvimento, entretanto, não dependeu da maturação biológica do homem, mas tem uma história cultural, pois ocorreu a partir das relações sociais de homens envolvidos em processos coletivos de trabalho, de onde surgiam necessidades que suscitavam a criação de um sistema de escrita. A semelhança entre ontogênese e filogênese das funções psíquicas superiores é que em ambas, o social e o cultural, desempenham papel importante no seu desenvolvimento. Pino (2000), ao analisar manuscrito de Vigotski, escrito em 1929, esclarece o sentido de “cultural” e “social” na obra do autor. No manuscrito, Vigotski formula a lei
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    24 genética geraldo desenvolvimento cultural, segundo a qual toda função psicológica procede de um acontecimento social. Esta premissa do autor demonstra a importância das categorias “social” e “cultural” na sua teoria, apesar de ambas não serem conceituadas por Vigotski. A categoria fundamental para compreender o conceito de cultural e social na obra do autor é a história. No manuscrito, Vigotski entende história de duas formas: como “abordagem dialética geral das coisas” e como “história humana”. O conceito de história que Vigotski toma no manuscrito de 1929 aparece em uma nota introdutória. Nesta nota, o autor caracteriza a história no sentido de Marx e Engels, como materialista dialética, e cita a seguinte afirmação de Marx: “a única ciência é a história”, querendo com isso dizer que o conhecimento é um processo histórico que segue as leis da dialética. A questão preliminar, ao oferecer uma teoria da história do homem e do mundo no homem, instrumentaliza-nos para analisar o problema da relação natureza/cultura. Este é um problema de fundo nas análises que Vigotski faz das funções elementares ou naturais e das funções superiores ou culturais e da sua articulação na unidade da pessoa. Em termos bem gerais, esse problema pode ser assim colocado: na evolução das espécies ocorre um momento de ruptura quando a espécie homo desenvolve novas capacidades que lhe permitem transformar a natureza pelo trabalho, criando suas próprias condições de existência. Isto, por sua vez, permite ao homem transformar seu próprio modo de ser (cf. Marx, 1977, I, cap. 7; Marx & Engels, 1982, pp. 70-71). Esse momento de ruptura não interrompe o processo evolutivo mas dá ao homem o comando da própria evolução. A história do homem é a história dessa transformação, a qual traduz a passagem da ordem da natureza à ordem da cultura. Ao colocar a questão da relação entre funções elementares ou biológicas e funções superiores ou culturais, Vigotski não está seguindo, como o fazem outros autores, a via do dualismo. Muito pelo contrário, ele está propondo a via da sua superação. As funções biológicas não desaparecem com a emergência das culturais mas adquirem uma nova forma de existência: elas são incorporadas na história humana. Afirmar que o desenvolvimento humano é cultural equivale portanto a dizer que é histórico, ou seja, traduz o longo processo de transformação que
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    25 o homemopera na natureza e nele mesmo como parte dessa natureza. Isso faz do homem o artífice de si mesmo. (PINO, 2000: 51) A preocupação de Vigotski com a história o leva a articular os planos da ontogênese e da filogênese. A ontogênese não é uma repetição da filogênese, mas ambos, ontogênese e filogênese, formam uma síntese. A história pessoal é obra do indivíduo, mas é também parte da história humana. As transformações que ocorrem na ontogênese são casos particulares do que ocorre na filogênese. Enquanto algumas ciências, ao analisar a relação do homem com o meio social, enfocam como o homem se comporta no meio social, Vigotski enfoca o modo como o social constitui o homem, criando nele as funções psíquicas superiores. Para Vigotski, a natureza psicológica do homem advém da totalidade das relações sociais internalizadas que se tornam parte da estrutura psicológica. O modo como os homens se relacionam uns com os outros tem relação com as formas sociais de organização da produção e o acesso aos bens produzidos. O modo como os meios de produção social constituem a consciência aplica-se a todas as funções superiores, como a memória, a linguagem e a percepção. De acordo com Pino (2000), o outro tem papel fundamental para a constituição cultural do homem. Na teoria de Vigotski, o desenvolvimento cultural passa por três estágios: o dado pelo biológico, a significação atribuída pelos outros àquilo que é dado ao indivíduo pelo biológico e, por fim, a transformação da significação que o outro confere ao dado biológico em significação para o indivíduo. Neste processo, a mediação é exercida pela significação, sendo o outro o portador da significação. Pino (2000) cita o ato de apontar como exemplo desta gênese. Primeiro o ato de apontar da criança é uma expressão natural e biológica; depois o outro imprime um significado ao gesto de apontar; e, por fim, a criança internaliza o significado que o outro imprimiu ao seu gesto. O que é internalizado é a significação das coisas, e não as coisas em si. A significação é algo que emerge na relação, não sendo uma simples transmissão de pessoa para pessoa. Esta premissa demonstra que a teoria de Vigotski não é determinista. O outro é, ao mesmo tempo, objeto e agente do processo de internalização, pois é quem media a internalização e quem é internalizado. De acordo com Pino (2000), Vigotski utiliza o termo ‘conversão’ para enfocar como as relações sociais se transformam em relações intrapessoais. Quando o outro é internalizado o ‘eu’ não se transforma no ‘outro’, mas sim em algo diferente. O que permanece constante no
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    26 processo deinternalização é a significação. A significação social é convertida em significação pessoal, mas assume uma outra significação, aferida pelo indivíduo. Por exemplo, a significação social da relação “pai-filho”, instituída pela sociedade, converte-se na significação que tal pai tem para tal filho e vice-versa. Significações diferentes e que, por isso mesmo, são as fontes das crises e conflitos pessoais, como o mostra a experiência da vida cotidiana. A função mediadora da significação possibilita a reversibilidade do processo: o que é social se converte em pessoal e o que é pessoal se converte em social. Ela garante a coerência entre os mundos público e privado da pessoa. (PINO, 2000: 68-69) Ao analisar o conceito de cultura na obra de Vigotski, Pino (2005) considera que quando o autor concebe o desenvolvimento psicológico como sendo de origem cultural, está querendo dizer que as funções psíquicas superiores são de origem social. Pino busca entender o conceito de cultura na obra de Vigotski. Não encontramos nos trabalhos de Vigotski uma discussão do conceito de cultura, muito menos uma definição propriamente dita. Vigotski introduz especificamente a questão da cultura quando discute o problema do desenvolvimento da criança, principalmente em textos de 1929 e 1931. Ao analisar os trabalhos dos psicólogos do seu tempo, Vigotski chega à conclusão de que o que faltava a eles era entender a natureza do desenvolvimento das formas superiores de conduta, objeto de sua pesquisa. Mas que natureza é essa? Ao que ele responde: o desenvolvimento é de natureza cultural. Cabe então perguntar: o que é para ele a cultura? Mais do que uma definição, ele dá um lacônico posicionamento: “cultura é, simultaneamente, o produto da vida social e da atividade social dos homens”.(PINO, 2005: 18) Pino considera que a definição de Vigotski é profunda e tem a ver com a concepção materialista histórica e dialética. Na sua definição, Vigotski mostra as teses de Marx e Engels sobre a natureza do homem, que servem para fundamentar a concepção de cultura. Vigotski está, na verdade, afirmando que a cultura é o conjunto das obras humanas, através das quais o homem modifica o meio e a si. Na perspectiva da psicologia histórico-cultural, a cultura engloba uma série de fatores que têm em
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    27 comum ofato de serem obras humanas, portadoras de significado. A essência do desenvolvimento é o embate entre as formas maduras de conduta, sempre produto da interação social, com os comportamentos primitivos da criança. Isto significa que o desenvolvimento se dá pela colisão entre formas culturais e primitivas de comportamento. As funções psíquicas superiores não surgem do plano biológico, mas sim da cultura. Segundo Pino (2005), ao complexo problema da passagem das formas primitivas, de origem biológica, para as formas culturais de conduta, Vigotski dá o nome de ‘internalização’, enquanto Leontiev chama de ‘apropriação’. Pino explica que ‘internalização’ é o processo de “reconstrução interna de uma operação externa”, conforme se encontra no Formação social da mente. ‘Apropriação’ é quando uma pessoa constrói suas significações, de modo interpretativo, a partir das significações produzidas nas suas interações1. Segundo Pino, ao falar de internalização, Vigotski está se referindo ao que podemos chamar de ‘processo de natureza semiótica’. A idéia de internalização ainda denota um dualismo entre externo e interno. Na verdade, o que é internalizado não é de ordem concreta, mas sim abstrata. O que é internalizado é a significação. Se o sujeito internaliza os significados do outro, não o faz de forma reprodutiva, mas sim de modo interpretativo. Ora, se a natureza da cultura é semiótica, pois o que faz de uma coisa um fenômeno cultural é a significação então o que constitui um ser biológico num ser cultural (sinônimo de humano) é, como aponta Vigotski, a conversão das significações culturais que definem a sociedade dos homens em significações pessoais, definidoras da subjetividade e da identidade pessoal de cada indivíduo. Essa compreensão do ser humano do homem só é possível numa perspectiva histórico-cultural que revela a emergência do simbólico no instante mesmo em que o primata primitivo começou a tornar-se homo. (PINO, 2005: 20) Para Pino, a presença da subjetividade na obra de Vigotski evita, por um lado, uma psicologia que vê o homem como ser fadado a sofrer totalmente as influências do meio, sem possibilidade de se constituir como indivíduo. Por outro lado, elimina uma concepção de ser humano coletivizado, sem subjetividade. Assim, para Vigotski, as 1 Como a palavra ‘apropriação’ tem o sentido mais próximo aos significados construídos nesta dissertação, este será o temo usado a partir daqui toda vez que for referir ao ato de reconstrução subjetiva do outro.
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    28 funções psíquicassuperiores, em oposição às funções rudimentares, definem a especificidade do homem, embora sejam sempre de origem social. Vamos agora passar ao tópico no qual serão apresentadas as premissas e metodologias adotadas pela psicologia histórico-cultural para investigar as funções psíquicas superiores. 1.4. Os pressupostos do método da psicologia histórico-cultural para estudar as funções psíquicas superiores Todas as investigações experimentais acerca do desenvolvimento da memória, da capacidade criadora e da escrita, entre outros, constituem estudos sobre as funções psíquicas superiores. Para estudar estas funções na perspectiva do método materialista histórico dialético, a psicologia histórico-cultural parte de três pressupostos: análise do processo de desenvolvimento da função psicológica que se pretende estudar e não da função já consolidada no sujeito; investigação explicativa, ao invés de descritiva; e análise genética do fenômeno. Podemos resumir, por lo tanto, lo que ya dicho sobre las tareas del análisis psicológico y enumerar en un enunciado los tres momentos decisivos que subyacen en este análisis: análisis del proceso y no del objeto, que ponga de manifiesto el nexo dinámico-causal efectivo y su relación en lugar de indicios externos que disgregan el proceso; por consiguiente, de un análisis explicativo y no descriptivo; y, finalmente, el análisis genético que vuelva a su punto de partida y restablezca todos los procesos del desarrollo de una forma que en su estado actual es un fósil psicológico. Estos tres momentos considerados en conjunto, están determinados por la nueva interpretación de la forma psicológica superior, que no es una estructura puramente psíquica, como supone la psicología descriptiva, ni una simple suma de procesos elementales, como afirmaba la psicología asociacionista, sino una forma cualitativamente peculiar, nueva en realidad, que aparece en el proceso del desarrollo. (VIGOTSKI, 2000: 105-6) Buscar uma metodologia para estudar o processo dialético de desenvolvimento das funções psíquicas superiores é o primeiro pressuposto da investigação de Vigotski. Dizer que as funções psíquicas superiores não serão estudadas como objeto, mas sim
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    29 como processo,significa que estas não serão investigadas no momento em que já foram consolidadas, mas sim no seu processo de desenvolvimento e formação. Ou seja, as funções superiores serão tomadas em um método de investigação que busque captar seu movimento até o pleno desenvolvimento. O segundo pressuposto da investigação de Vigotski é a contraposição às análises meramente descritivas. Um fenômeno não pode ser meramente descrito, é preciso explicá-lo, colocar de manifesto as relações dinâmico-causais que estão na sua base. Na psicologia histórico-cultural, busca-se a explicação científica do fenômeno, e não apenas a descrição fenomênica. Para Vigotski (2000), passar do descritivo ao explicativo não se faz passando de uns conceitos para outros, é preciso estabelecer os nexos genéticos. O autor propõe a discriminação entre a análise fenotípica e a análise genética. Na análise fenotípica a investigação recai sobre a forma do fenômeno a ser estudado. A mera descrição da forma é considerada, por si só, uma análise científica. Por sua vez, a análise genética coloca de manifesto as relações efetivas, o que está oculto por trás de um processo. Assim, na concepção de Vigotski, a forma não pode ser tomada como conteúdo, a ciência não pode explicar a realidade apenas descrevendo o fenótipo dos fenômenos. Vigotski (2000) cita Marx, para quem a ciência não seria necessária se houvesse coincidência entre forma e essência. A essência dos objetos, que é sua verdadeira correlação, não coincide com suas manifestações externas. Por este motivo, a ciência deve descobrir a verdadeira correlação dos processos, deve buscar o que está por trás das manifestações externas. O terceiro pressuposto é que o estudo das funções psíquicas não pode recair sobre aquelas funções que já estão automatizadas. Quando as funções psicológicas a serem estudadas já estão consolidadas no sujeito da investigação, é preciso uma metodologia que a converta em um processo dinâmico. Para fazer uma função psicológica fossilizada adquirir movimento é preciso voltar para a sua origem. El centro de gravedad de nuestro interés se desplaza, se traslada en una nueva dirección. Lo que nos interesa más son los experimentos durante los cuales se va formando la reacción, los desechados por los investigadores de antaño. Para nosotros – para el análisis dinámico – explicar un fenómeno significa esclarecer su verdadero origen, sus nexos dinámico-causales y su relación con otros procesos que determinam su desarrollo. Por consiguiente, la tarea
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    30 del análisisconsiste em hacer que la reacción retorne al momento inicial, a las condiciones de su cierre y abarcar, al mismo tiempo, todo el proceso en su conjunto mediante una investigación objetiva – y no sólo su aspecto externo o interno -. La reacción terminada, que se repite de manera estereotipada, nos interesa tan sólo como un medio que permite marcar el punto final a que aboca el desarrollo de dicho proceso. (VIGOTSKI, 2000: 111-12) Ao estudar a reação complexa é preciso enfocá-la como um processo vivo, o que requer converter o objeto ao movimento de onde surgiu. A questão que se coloca é sobre a natureza real dinâmico-causal da reação complexa. Se o movimento é entendido de modo mais amplo como mudança do objeto, é possível dizer que o pensamento é também movimento. Vigotski (2000) reitera sua afirmação citando Engels, para quem o movimento é um atributo da matéria e abarca cada uma das mudanças que ocorrem no universo. A investigação da natureza do movimento, segundo Engels, deveria partir das formas mais rudimentares deste para poder estudar as formas mais complexas. “Toda forma superior de conducta es imposible sin las inferiores, pero la existência de las inferiores o accesorias no agota la esencia de la superior.” (VIGOTSKI, 2000: 119). Por este motivo, o estudo do movimento das funções psíquicas superiores requer uma metodologia que as faça voltar às suas origens. Se as funções objeto da investigação não forem estudadas desde o seu momento mais primitivo e elementar, não há como estudar a sua gênese. Portanto, as funções rudimentares constituem a base da metodologia das funções psíquicas superiores. O que significa isto? Significa que, ao estudar as funções psíquicas superiores, é preciso buscar o parente genético mais distante da função a ser estudada. É preciso entender qual a sua pré-história no desenvolvimento da criança (ontogênese) e também da humanidade (filogênese). Por este motivo, ao estudar o desenvolvimento da escrita, a psicologia histórico-cultural enfoca sua pré-história na ontogênese e na filogênese. Os três pressupostos do método dialético da psicologia histórico-cultural – análise do genótipo, e não do fenótipo; estudo de dada função psicológica em movimento, e não quando já solidificada no sujeito; análise investigativa, ao invés de meramente explicativa – pode-se dizer que embasam os experimentos de toda e qualquer função psíquica superior, incluindo a escrita. Para estudar funções como a escrita, Vigotski e seus colaboradores procederam a investigações experimentais, nas
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    31 quais ossujeitos eram colocados diante de certos problemas a serem resolvidos. Como estes experimentos tinham o objetivo de estabelecer a gênese de dada função psíquica superior, chamaremos o método de genético-experimental, embora também o encontremos referenciado como instrumental (VIGOTSKI, 2000 e 2003) e como psicologia experimental (LURIA, 2003a). Para estudar a escrita no estágio inicial do seu desenvolvimento, a psicologia histórico-cultural traça a sua pré-história na ontogênese e na filogênese. Como a escrita é um conjunto de signos escritos que são usados para simbolizar os sons da fala, toda a atividade na qual a criança usa coisas para representar outras coisas pode ser considerada como forma primitiva de desenvolvimento da escrita. Por sua vez, na filogênese a escrita se desenvolveu a partir do momento em que os homens criaram meios através dos quais pudessem simbolizar mensagens que precisavam comunicar a outros ou ajudar a gravar informações. Neste sentido, Vigotski (2000) diz que o parente genético da escrita na ontogênese é o desenho, o gesto e o jogo, enquanto na filogênese são parentes genéticos todas as formas que o homem primitivo desenvolveu para gravar informações. Estas formas rudimentares de escrita; o nó na corda, a pictografia entre outros, na filogênese; e o gesto o desenho e o jogo, na ontogênese, devem ser o ponto de partida para estudar o desenvolvimento histórico da escrita. Isto significa que a escrita é estudada primeiramente a partir das funções rudimentares. Já vimos que o homem criou instrumentos externos e internos (signos) para mediar sua relação com a natureza e consigo. Enfocaremos, agora, os signos e instrumentos, conceituação necessária para entender a escrita, que é uma função psíquica superior e um sistema de signos e instrumentos. 1.5. A escrita como função psíquica superior Vigotski (2000) apresenta três teses que ajudam a entender os signos e suas diferenças, semelhanças e inter-relações com os instrumentos. (...) Sin embargo, podemos establecer ahora, em calidad de punto de partida, tres tesis que, a nuestro juicio, están suficientemente aclaradas por lo ya dicho y son suficientemente importantes para comprender el método de investigación adoptado por nosotros. La primera de esa tesis se refiere a la similitud y a los puntos de contacto entre ambas formas de actividad; la segunda tesis
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    32 esclarece lospuntos fundamentales de divergencia y la tercera intenta señalar la relación psicológica real entre una y otra o, al menos, hacer una alusión. (VIGOTSKI, 2000: 93) Tanto signos quanto instrumentos têm uma função comum: a atividade mediadora. Do ponto de vista psicológico, signos e instrumentos pertencem à mesma categoria. Vigotski (2000) cita Hegel, para quem a mediação seria a propriedade mais característica da razão. Os signos e os instrumentos mediam as respostas do homem aos estímulos do meio, sendo, portanto, propriedades da razão, ou seja, mecanismos das funções psíquicas superiores. Eis a primeira tese: instrumentos e signos são incluídos nas atividades mediadoras. A segunda tese é que existem pontos fundamentais de divergência entre signos e instrumentos. Os instrumentos estão dirigidos para fora, pois, através deles, o homem influi sobre o objeto. O instrumento é uma atividade exterior através da qual o homem modifica a natureza. O signo, pelo contrário, não modifica o objeto da operação, mas é o meio através do qual o homem influi psicologicamente, ou seja, é um meio para a atividade interior, é dirigido para dominar o próprio homem, estando orientado para dentro. Llamamos signos a los estímulos-medios artificiales introducidos por el hombre en la situación psicológica, que cumplen la función de autoestimulación; adjudicando a este término un sentido más amplio y, al mismo tiempo, más exacto del que se da habitualmente a esa palabra. De acuerdo con nuestra definición, todo estímulo condicional creado por el hombre artificialmente y que se utiliza como medio para dominar la conducta – propia o ajena – es un signo. Dos momentos, por lo tanto, son esenciales para el concepto de signo: su origen y función. (...). (VIGOTSKI, 2000: 83) A terceira tese é a de que existe uma relação psicológica real entre signos e instrumentos. Ora, tanto o domínio da natureza quanto o domínio da própria conduta apresentam uma relação recíproca, porque quando o homem transforma a natureza transforma também a si mesmo. Na filogênese o que permite fazer esta relação são os vestígios documentais. Na ontogênese é a observação direta que permite a análise desta relação. Na sua essência, o uso de signos e instrumentos leva o homem a agir não mais de acordo unicamente com suas necessidades biológicas. O homem que opera com
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    33 signos einstrumentos acaba por realizar maior número de operações mentais, o que permite o desenvolvimento das funções psíquicas superiores e a passagem do plano biológico para o plano cultural. Explicando como se dá a passagem do plano natural para o plano cultural, Pino (2000) mostra que a atividade simbólica exerce papel central neste processo. Na ontogênese os planos culturais e naturais aparecem unidos, enquanto na filogênese ambos aparecem separados. Para Pino, é com o intuito de buscar as raízes naturais da atividade simbólica que Vigotski recorre ao esquema do triângulo, segundo o qual o signo ou instrumento é sempre o elemento que cria um novo caminho entre o estímulo e a resposta. De acordo com o modelo do triângulo, o homem cria um elemento que se transforma em um estímulo orientador da sua ação. Através da mediação o homem modifica o meio e a si próprio. Esta mediação é também dupla, pois pode ser técnica ou simbólica. Pela mediação técnica o homem dá uma nova forma ao meio, pela mediação simbólica confere a esta nova forma uma significação. O signo é reversível, ele sempre significa algo para quem recebe e também para quem emite. O signo opera na consciência e une autor e espectador em uma só pessoa. Como exemplo disso, podemos citar a interlocução: aquele que dirige a palavra ao outro também sofre os efeitos da sua própria fala. A significação é o que conecta a condição humana ao social, ou seja, que faz o homem passar do plano da biologia para o plano da cultura. A sociabilidade humana tem sempre relação com o modo como os homens organizam e produzem sua existência. Por isso, é possível afirmar que a convivência humana é regida por leis históricas, e não pela biologia. Para entender o modo como os indivíduos operam com signos e instrumentos, Vigotski (2002) e seus colaboradores fizeram experimentos para entender como as crianças usam os signos nas suas manifestações concretas diversas (desenho, escrita, números, etc). Também investigaram, na história da humanidade, como se dá a formação social dos signos e dos instrumentos. Os experimentos realizados por Vigotski e seus colaboradores para investigar o modo como os signos e os instrumentos se desenvolvem na história individual serão objetos do próximo capítulo. Por ora, cabe dizer que a escrita é um sistema de signos e instrumentos. É um sistema de instrumentos porque se manifesta externamente através das suas funções sociais, por exemplo, noticiar, entreter, divulgar, comunicar. É um sistema de signos porque é uma força que impulsiona o desenvolvimento humano. Na história da humanidade, a criação de sistemas de escrita só foi possível porque o homem
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    34 desenvolveu antescertas funções psíquicas superiores. Entretanto, paradoxalmente, o desenvolvimento da escrita permitiu ao homem desenvolver mais funções psíquicas superiores, dentre as quais é possível citar a memorização mediada. Na filogênese, as primeiras formas de memorização mediada são os parentes genéticos da escrita. As marcas que os povos antigos faziam em árvores e cavernas para memorizar, e os nós que faziam em cordas para recordar quantidades são, segundo Vigotski (2000), os antecessores da nossa escrita atual. La historia de la operación de hacer un nudo en el pañuelo es extremadamente compleja e instructiva. En el momento de su aparición significó que la humanidad se aproximaba a los límites que separaban una época de otra: la barbarie de la civilización. R. Thurnwald dice que la naturaleza no tiene, en general, fronteras rígidas. Suele considerarse que la historia de la humanidad comienza con el descubrimiento del fuego, pero el límite que separa la forma inferior de existencia humana de la superior es la aparición del lenguaje escrito. El hecho de hacer un nudo como recordatorio fue una de las formas más primarias del lenguaje escrito y jugó un enorme papel en la historia de la cultura, en la historia del desarrollo de la escritura. El comienzo de desarrollo de la escritura se apoya en semejantes medios auxiliares de la memoria; no en vano son muchos los investigadores que califican de mnemotécnica la primera época del desarrollo de la escritura. El primer nudo recordatorio señalaba el nacimiento del lenguaje escrito sin el cual sería imposible toda la civilización. Las anotaciones en nudos ampliamente desarrollados llamados quipu se utilizaban en el antiguo Perú como anales históricos, como referencias a hechos de importancia estatal o personal.(...) (VIGOTSKI, 2000: 77-8) A escrita foi criada historicamente pelos homens envolvidos no processo de trabalho e transformação da natureza. Embora na filogênese os registros documentais demonstrem que sua primeira função foi servir como recurso à memória, no decorrer do seu desenvolvimento histórico, passou a ser apropriada de outras formas pelos homens, adquirindo complexas funções culturais. A importância que a escrita adquiriu na nossa cultura hoje, torna praticamente imprescindível sua transmissão de geração para geração
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    35 através daescolarização, de modo a haver necessidade das crianças aprenderem a escrever ainda na tenra idade. A partir daqui, podemos traçar o conceito de escrita segundo a psicologia histórico-cultural. Para a psicologia histórico-cultural, a escrita é um sistema simbólico de signos e instrumentos, uma função cultural complexa e uma função psíquica superior. Quando a escrita media a relação do homem consigo, desenvolvendo nele as funções superiores de abstração, memorização mediada e raciocínio lógico, é um sistema de signos. Quando a escrita media a relação do homem com o meio, servindo para comunicar e expressar, é um sistema de instrumentos. A escrita é uma construção histórica. Sua origem reside no processo de trabalho, da necessidade sentida pelo homem de usar símbolos escritos para lembrar de fatos e eventos, além de registrar quantidades, usando marcas ou fazendo nós em cordas. Portanto, na história da humanidade, a primeira função da escrita foi servir de auxílio à memória. Ao longo do desenvolvimento filogenético, a escrita assumiu funções diversas, tornando-se uma função cultural complexa e uma linguagem diferente, embora inter-relacionada com a fala. Além disso, houve outra mudança substancial da escrita ao longo da história: sua conversão de representação de objetos para representação da linguagem. As primeiras formas de escrita da humanidade representavam diretamente os objetos, como demonstram os pictogramas. Nos sistemas alfabéticos e silábicos, a escrita passou a representar os sons da fala, usando unidades gráficas para representar unidades sonoras. Entretanto, bons leitores e escritores precisam desprender-se deste aspecto sonoro da escrita para operar com ela como linguagem. De qualquer modo, seja quando representa objetos, ou representa a linguagem, a escrita é um sistema de símbolos, uma vez que é formada por signos que representam algo, podendo-se dizer que a escrita é um sistema de signos simbólicos. Quanto à alfabetização, Vigotski considera que é preciso levar em conta a história da passagem da escrita como representação dos sons da fala para linguagem, mas não só. A alfabetização não pode se reduzir a um treino motor e nem à soletração. Ao invés disso, a escrita precisa ser tomada como uma função psíquica superior e uma atividade cultural complexa, que tem grande importância para o desenvolvimento da criança e da humanidade. O modo como o indivíduo aprende a operar com a escrita como linguagem será objeto do próximo capítulo, no qual serão apresentados os diferentes momentos da ontogênese da escrita.
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    36 No entanto,pode-se antecipar que o presente capítulo já traz duas categorias que foram objeto de análise no livro didático: o conceito de escrita e de mediação. Analisamos como o texto do livro didático, destinado aos professores, conceitua a escrita. Além disso, investigamos como a mediação aparece, tanto no texto aos professores quanto nos exercícios. Para a análise da escrita, observamos as rupturas e as aproximações entre o conceito de escrita do livro didático e o conceito de Vigotski. Para a análise da mediação, investigamos se o texto aos professores e os exercícios do livro didático apresentam, ainda que de modo implícito, alguma concepção de mediação. Ou seja, quem e o que o livro didático considera que seja o mediador do processo de ensino e aprendizagem?
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    37 2. ODESENVOLVIMENTO DA ESCRITA PELA CRIANÇA Ao estudar o desenvolvimento da escrita pela criança, na perspectiva da psicologia histórico-cultural, dois fatores precisam ser considerados. Em primeiro lugar, conforme já consta no capítulo anterior, o desenvolvimento da escrita não ocorre em etapas sucessivas. Segundo Vigotski (2000) a história do desenvolvimento da escrita pela criança é complexa. Está repleta de saltos, descontinuidades, alterações e interrupções porque é uma conduta cultural e, como tal, é produzida pela interação entre maturidade orgânica e cultura. Desde un punto de vista psicológico, el dominio de la escritura no debe representarse como una forma de conducta puramente externa, mecánica, dada desde fuera, sino como un determinado momento en el desarrollo del comportamiento que surge de modo ineludible en un determinado punto y está vinculado genéticamente con todo aquello que lo ha preparado e hizo posible. El desarrollo del lenguaje escrito pertenece a la primera y más evidente línea del desarrollo cultural, ya que está relacionado con el dominio del sistema externo de medios elaborados y estructurados en el proceso del desarrollo cultural de la humanidad. Sin embargo, para que el sistema externo de medios se convierta en una función psíquica del proprio niño, en una forma especial de su comportamiento, para que el lenguaje escrito de la humanidad se convierta en el lenguaje escrito del niño se necesitan complejos procesos de desarrollo que estamos tratando de explicar en sus líneas más generales. (VIGOTSKI, 2000: 185) Em segundo lugar é preciso entender que, no caso das crianças que vivem em uma cultura letrada, a aprendizagem da escrita começa antes do ingresso na escola. Segundo Luria, a escrita tem uma pré-história no desenvolvimento da criança. O momento em que uma criança começa a escrever seus primeiros exercícios escolares em seu caderno de anotações não é, na realidade, o primeiro estágio de desenvolvimento da escrita. As origens deste processo remontam a muito antes, ainda na pré-história do desenvolvimento das formas superiores do comportamento infantil; podemos até mesmo dizer que quando uma criança entra na escola, ela já adquiriu um patrimônio de
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    38 habilidades edestrezas que a habituará a aprender a escrever em um tempo relativamente curto. (LURIA, 2003c: 143) Estes dois fatores a serem considerados estão inter-relacionados quando se trata do desenvolvimento da escrita. O desenvolvimento da escrita não ocorre por etapas sucessivas e sua aprendizagem não depende unicamente da transmissão escolar. Toda e qualquer função psíquica superior, inclusive a escrita, se desenvolve impulsionada por fatores culturais e biológicos, ou seja, através da interação entre aprendizagem e desenvolvimento. Por sua vez, a aprendizagem não ocorre somente na escola, mas também nas interações que a criança vivencia desde seu nascimento. A categoria ‘zona de desenvolvimento próximo’2 (ZDP) é um dos cernes da interação entre aprendizagem e desenvolvimento. A zona de desenvolvimento próximo está entre o nível de desenvolvimento real e o potencial. O nível de desenvolvimento efetivo, ou real, da criança são todas as aprendizagens que ela já consolidou, ou seja, já consegue executar de modo independente, sem precisar de ajuda. A zona de desenvolvimento potencial é o que a criança consegue fazer através da mediação de adultos, outras crianças ou instrumentos. Esta área permite vislumbrar os próximos passos da criança, suas potencialidades, sendo um indicativo tanto do que ela já produziu, quanto do que ela produzirá no processo de maturação. As interações com adultos ou outros pares criam na criança uma zona de desenvolvimento próximo quando a levam a atuar de modo mais evoluído, desenvolvendo suas potencialidades e adiantando seu desenvolvimento. A zona de desenvolvimento próximo é um indicador das diferenças individuais, pois crianças que apresentam o mesmo desempenho escolar, podem ter potenciais diferentes para a aprendizagem. Segundo Vigotski (2003), a categoria ‘zona de desenvolvimento próximo’ traz implicações sobre a relação entre educação e desenvolvimento. Antes desta concepção, preponderava a idéia segundo a qual o que a criança pode fazer de modo independente consiste no limite que se impõe ao processo de aprendizagem. Na prática, isto produziu efeito negativo na educação de crianças deficientes mentais. Como as pesquisas 2 As traduções de muitos livros de Vigotski no Brasil - dentre os quais é possível citar Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem (2003) e A formação social da mente (2002) - referem-se a ‘zona de desenvolvimento proximal’. Por sua vez, Paulo Bezerra na tradução do livro A construção do pensamento e da linguagem (2001), propõe que esta categoria seja traduzida como ‘zona de desenvolvimento imediato’. Aqui se optou por usar a tradução usada nos livros de Beatón (2001 e 2005) e no artigo de Ludmila Oboukhova (2006), pesquisadora contemporânea da Universidade Estatal de Moscou, traduzido por Flávia da Silva Ferreira Asbahr. A escolha se justifica porque a categoria ‘zona de desenvolvimento próximo’ se refere às atividades e aprendizagens mediadas. Como a palavra ‘próximo’ traz o conceito de mediação na sua significação, parece mais adequada para nomear esta categoria.
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    39 estabeleceram queestas crianças apresentam pouca capacidade de pensamento abstrato, os docentes decidiram por eliminar da instrução todo conhecimento abstrato, limitando-se ao ensino através apenas de meios visuais. Esta prática acabou por consolidar a incapacidade das crianças portadoras de deficiência mental para operar com abstrações. Vigotski (2003) considera ineficaz o ensino que se limita apenas aos conhecimentos e habilidades já adquiridos pela criança. Esta concepção de ensino acaba por desenvolver pouco as funções psíquicas superiores. Ao invés de considerar apenas a maturação biológica necessária para a aprendizagem de certos conhecimentos, é preciso considerar também a importância de cada matéria escolar para o desenvolvimento das funções psíquicas superiores. Apenas o mínimo que se pode ensinar a uma criança é determinado pelos ciclos de desenvolvimento que já foram completos. Um bom ensino é aquele orientado para as funções superiores que ainda não foram desenvolvidas. Portanto, para a perspectiva da psicologia histórico-cultural, a pedagogia não se orienta para o passado do desenvolvimento infantil, mas sim para o futuro, ou seja, para as funções que podem ser desenvolvidas, embora a pré-história das funções psíquicas superiores auxilie a estabelecer níveis de ajuda necessários para a efetivação da aprendizagem. A categoria ‘zona de desenvolvimento próximo’, tomada separadamente do seu contexto, pode levar a uma interpretação simplista, segundo a qual o professor é o mediador do processo de aprendizagem que, por sua vez, ocorre quando o ensino se adianta ao desenvolvimento da criança. A conseqüência desta interpretação simplista pode ser um ensino tradicional, demasiadamente transmissivo e pouco voltado para a atividade da criança. De acordo com Beatón (2005), não é só o professor que media o processo de aprendizagem, mas também a família e a sociedade como um todo. As mediações para o processo de aprendizagem também podem ser a televisão, o computador, a atividade, a interação com outras crianças, entre outros. Além disso, em relação ao modo como se dá a interação pedagógica, ao se trabalhar segundo o conceito de zona de desenvolvimento próximo, é preciso considerar dois fatores. Em primeiro lugar, a zona de desenvolvimento próximo está constantemente se ampliando e modificando, e não é uma eterna zona de ajuda para que a criança consiga executar atividades que sozinha não consegue. Isto porque a qualquer momento a criança pode começar a fazer sozinha o que antes não conseguia e, a cada nova
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    40 aquisição, aumentasua zona de desenvolvimento potencial. Beatón explica bem esta mobilidade da zona de desenvolvimento próximo. Claro, aquí también hay outra lectura, porque, a veces, yo he podido observar que la ZDP parece ser una zona eterna de ayuda para el niño. No, la definición de la ZDP, parte de la idea de que en todo momento de desarrollo real o actual e incluso en el potencial, el sujeto puede hacer independientemente lo que antes hacía com ayuda. O sea, el ciclo del desarrollo hay que concebirlo como que un desarrollo actual, determina produce una zona potencial y esta zona potencial avanza con una determinada ayuda hacia una nueva zona de desarrollo real y actual, la que se define, como aquella en la que el nino, puede hacer independientemente, lo que antes hacía em colaboración com los OTROS. Es decir que la ZDP podemos verla siempre como progresiva en relación con los momentos anteriores. Tiende al infinito del desarrollo pscologico humano. (BEATÓN, 2005: 231-232) O outro é quem colabora para a aprendizagem da criança porque o desenvolvimento, para a psicologia histórico-cultural, ocorre do social para o individual. Os conteúdos volitivos, emocionais e intelectuais ocorrem primeiro no social e, logo em seguida, se apresentam de maneira intrapsicológica. Este é o motivo porque a ZDP é uma zona de interação, de mediação. Quando a criança consegue fazer sozinha o que antes fazia com os outros, é porque se apropriou da produção cultural humana. Em segundo lugar, um maior desenvolvimento psicológico e intelectual da criança requer intencionalidade pedagógica, de modo que é preciso qualificar a ajuda que fará a criança trabalhar na zona de desenvolvimento próximo. Esta ajuda para que a criança desenvolva suas potencialidades não pode ocorrer por meio apenas da transmissão externa do ensino tradicional. De acordo com Beatón (2005), a tese de Vigotski sobre os níveis de ajuda que o adulto pode prestar diante da atividade da criança refuta uma apropriação tradicional da categoria ZDP. Vigotski (apud BEATÓN, 2005) estabelece quatro níveis de ajuda que um adulto pode prestar para a criança atuar de modo mais autônomo. O primeiro nível de ajuda é quando o adulto recorda os objetivos da atividade que a criança precisa realizar. O que se espera neste nível de ajuda é que a criança elabore a atividade de modo mais independente possível. O segundo nível de ajuda é quando o adulto, diante da
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    41 incapacidade dacriança de realizar a atividade de modo mais independente, continua incentivando sua autonomia, mas através de questionamentos e comparações. O terceiro nível de ajuda é quando o adulto realiza a atividade junto com a criança, mas, em certo momento, a estimula a prosseguir sozinha na sua realização. O quarto nível de ajuda só deve ser prestado quando o adulto constata que os três níveis de ajuda anteriores não funcionaram. Neste caso, o adulto explica a atividade para a criança. Entretanto, em cada um destes quatro níveis o adulto deve sempre buscar ajudar a criança a desenvolver suas atividades de modo autônomo. Quanto mais consciência o adulto tiver quando à sua intenção pedagógica, maior ajuda poderá prestar ao desenvolvimento da criança. Vygotski, como es usual en él, en el manejo de las contradicciones, plantea que el proceso de enseñanza tiene que tener una intencionalidad... y también tienen que estimular la independencia, autonomía y el papel activo del sujeto (...) (BEATÓN, 2005: 248) Parece haver uma contradição entre incentivar a criança a trabalhar de modo autônomo e adiantar-se ao seu desenvolvimento. Esta contradição é aparente, pois, ao atribuir importância para a aprendizagem escolar, Vigotski não nega a necessidade da instrução e da ajuda prestada pelo adulto para que a criança aprenda. Além de ter implicações sobre a educação, a categoria ‘zona de desenvolvimento próximo’ também tem relação com o método experimental utilizado por Luria e Vigotski para investigar o desenvolvimento das funções psíquicas superiores. A relação encontra-se no fato de que os autores não investigavam somente o desenvolvimento real da criança, mas também o potencial. Este é o motivo por que os investigadores costumavam conversar e, até mesmo, ajudar as crianças durante as investigações. Foi com esta perspectiva que Luria e Vigotski investigaram o desenvolvimento da escrita pela criança. 2.1. O desenvolvimento da escrita pela criança Para investigar o modo de a criança adquirir a linguagem escrita, Luria e Vigotski empenharam-se em um programa de estudos experimentais. Tais investigações consistiram em observar como crianças que ainda não haviam freqüentado a escola operavam com situações em que precisavam ler e escrever e como criavam instrumentos mnemotécnicos. Segundo Luria (2003b), durante muito tempo, os psicólogos do desenvolvimento humano achavam que o estudo empírico da criança era praticamente
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    42 impossível. Ocorreuum avanço na investigação do desenvolvimento infantil quando a psicologia experimental passou a realizar experimentos psicológicos e observações para compreender as formas superiores de comportamento. O trabalho de Köhler, Lipmann, Bogen e outros sobre as primeiras manifestações de comportamento inteligente na criança; de Jaensch e sua escola sobre as formas primitivas de percepção na criança; de Katz, Kuenberg, Eliasberg e Weigl, sobre a abstração juvenil; de Ach, Rimat e Bacher, sobre a formação de conceitos; de C. Bühler, sobre as respostas de grupo das crianças pequenas; e, finalmente, os importantes estudos de Piaget sobre o pensamento primitivo na criança, e os de Kurt Lewin sobre o comportamento infantil em um ambiente natural, todos tiveram uma participação importante na promoção do estudo experimental das crianças. (LURIA, 2003b: 85) No método da psicologia histórico-cultural, os sujeitos da investigação são colocados em situações nas quais precisam operar com signos e instrumentos. Também são feitas análises comparativas sobre como a criança resolve um problema sozinha e como o faz com ajuda de outra pessoa. Este tipo de atitude tem por objetivo compreender a ontogênese levando em conta a mediação, importante característica do desenvolvimento das funções superiores, e investigar o nível de desenvolvimento potencial da criança. Nos estudos acerca do desenvolvimento da escrita, Luria e Vigotski tiveram o objetivo de investigar a sua pré-história. Segundo os autores, o desvelamento da pré-história da escrita pode servir como importante instrumento para os professores. Se formos capazes de desenterrar essa pré-história da escrita, teremos adquirido um importante instrumento para os professores: o conhecimento daquilo que a criança era capaz de fazer antes de entrar na escola, conhecimento a partir do qual eles poderão fazer deduções ao ensinar seus alunos a escrever. (LURIA, 2003c: 144) Em uma de suas investigações para estudar o desenvolvimento da escrita, Luria solicitou que crianças não alfabetizadas usassem lápis e papel para fazer registros mnemônicos. Os objetivos do experimento foram observar como a criança passa do simbolismo do rabisco para a escrita pictográfica, e como usa signos para fazer registros mnemônicos antes de ter aprendido a técnica cultural da escrita. O experimento
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    43 consistiu emobservar como ocorrem as etapas da pré-história do desenvolvimento da escrita como sistema mnemônico. O pressuposto de tal experimento foi que as crianças já têm conhecimentos sobre leitura e escrita antes de ingressarem na escola. Segundo Luria, a escola proporciona uma técnica cultural de escrita. Mas antes de ingressar na escola, a criança cria seus meios de simbolismo que têm certa eficiência. Os métodos primitivos de escrita, criados pela criança, são perdidos quando esta ingressa na escola e aprende o sistema cultural. Este fato traz para a psicologia a necessidade de investigar a pré-história do desenvolvimento da escrita na ontogênese, e explicar os fatores que tornam a gênese da escrita possível. O meio efetivo de conseguir traçar e explicar esta pré-história é descrever os estágios pelos quais a criança passa para desenvolver a escrita. O ponto inicial é a descoberta das formas de escrita que a criança elabora antes da aprendizagem formal. Ainda de acordo com este autor, é preciso considerar que uma criança só tomará notas se as frases que lhe forem ditadas incluírem-se em uma destas duas categorias: ou devem ter um sentido afetivo para a criança, ou devem fazer referência a objetos instrumentais, que exerçam importante papel para uma dada ação. Por fim, para que seja capaz de anotar alguma coisa, é preciso que o ato de tomar nota tenha um sentido ou significado intrínseco. Ou seja, a criança deverá ser informada que o objetivo de tomar nota é recordar a frase que lhe foi dita. Nosso método era, na verdade, muito simples: pegávamos uma criança que não sabia escrever e lhe dávamos a tarefa de relembrar um certo número de sentenças que lhe tinham sido apresentadas. Comumente, este número ultrapassava a capacidade mecânica da criança para recordar. Uma vez que a criança compreendia ser incapaz de lembrar o número de palavras dado na tarefa, nós lhe entregávamos um pedaço de papel e lhe dizíamos para tomar nota ou “escrever” as palavras por nós apresentadas. É claro que, na maioria dos casos, a criança ficava completamente desnorteada com nossa sugestão. Dizia-nos não saber escrever, não ser capaz de fazê-lo. Mostrávamos a ela que os adultos escrevem coisas quando devem lembrar-se de algo e, em seguida, explorando a tendência natural da criança para a imitação puramente externa, sugeríamos que tentasse inventar alguma coisa e que escrevesse aquilo que iríamos dizer. Geralmente nosso experimento começava depois disso e nós apresentávamos à criança várias (quatro ou cinco)
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    44 séries deseis ou oito sentenças simples, curtas e não-relacionadas umas com as outras. (LURIA, 2003c: 147) Luria observou quando os rabiscos no papel deixavam de ser apenas uma brincadeira para tornar-se um meio para atingir um fim, que, neste caso, era a utilização do rabisco como signo auxiliar à memória. Segundo Luria, o lápis e o papel entregues à criança eram os expedientes externos, que também podem ser chamados neste caso de instrumentos. Além disso, o lápis e o papel eram elementos conhecidos para a criança. Por sua vez, a operação mnemotécnica, atividade que lhe era solicitada realizar, era o expediente interno, pois exigia que a criança realizasse uma operação com signos. Com isso foi possível observar de que modo a criança aprende a dar novas funções para expedientes conhecidos, usando-os para dominar novos objetivos, e como opera com signos e instrumentos. Com este experimento, Luria observou todas as fases de relação da criança com lápis e papel, desde a sua utilização para fazer uma imitação mecânica da escrita do adulto, até o domínio inteligente da técnica de usar lápis e papel de modo a representar algo. Da técnica de escrever eram dados à criança somente seus aspectos externos (modelo da escrita do adulto, papel e lápis) para, com isso, poder observar as suas invenções e descobertas. Ao primeiro estágio observado de desenvolvimento da escrita como signo mnemotécnico, Luria deu o nome de fase ‘pré-escrita’, ou ‘pré-instrumental’. Nesta fase, comum às crianças de aproximadamente quatro e cinco anos, havia uma total incapacidade para compreender instruções. Segundo Luria, a incapacidade da criança para usar a escrita como signo mnemotécnico deriva da característica essencial desta fase pré-escrita, a bem dizer, a incapacidade de encarar a escrita como instrumento ou meio. As crianças situadas nesta fase imitavam a configuração da escrita do adulto, reproduzindo linhas repletas de ziguezagues, estilo letra cursiva. Além disso, escreviam reproduzindo o ritmo da entonação do adulto. Apesar disso, não entendiam a escrita como um ato com dada finalidade ou significado. Utilizavam a escrita de modo puramente externo e imitativo, dissociando-a do material a ser escrito. Houve, entretanto, crianças que, a despeito de traçarem apenas rabiscos, conseguiam depois lembrar de todas as sentenças. Nestes casos, os rabiscos, embora não constituindo uma escrita formal, foram considerados por Luria como sendo uma verdadeira escrita. Em algumas entrevistas, as crianças faziam rabiscos dispostos em diferentes locais da folha e conferiam significado a cada um. Houve uma criança que
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    45 aferiu osignificado “vaca” para um traço no canto da folha. Para Luria, esta criança estava passando a criar um sistema de auxílios técnicos da memória, semelhante aos povos primitivos. Não era o rabisco que significava algo, mas sim sua posição na folha. Luria considerou esta como sendo a primeira forma de escrita e a chamou de ‘escrita topográfica’. Este tipo de escrita não pode ser considerado como um signo simbólico, pois tem insuficiente estabilidade para auxiliar na memória: não desvenda o significado do que foi anotado, é apenas uma sugestão que evoca certa reação de associação. Nossos experimentos garantem a afirmação de que o desenvolvimento da escrita na criança prossegue um longo caminho que podemos descrever como a transformação de um rabisco não-diferenciado para um signo diferenciado. Linhas e rabiscos são substituídos por figuras e imagens, e estas dão lugar a signos. Nesta seqüência de acontecimentos está todo o caminho do desenvolvimento da escrita, tanto na história da civilização quanto no desenvolvimento da criança. (LURIA, 2003c: 161) Quando a criança consegue fazer anotações que simbolizam o conteúdo da fala, ela passa ao estágio do ‘signo-símbolo’. Luria considera que a criança pode passar do signo não diferenciado para o diferenciado de duas formas. Pode registrar as frases usando rabiscos arbitrários ou fazê-lo desenhando pictogramas que registrem o conteúdo da idéia. Para investigar como a criança começa a inventar signos descritivos e significativos, Luria se ateve, em seus experimentos, ao conteúdo das frases que eram apresentadas para que as crianças grafassem. Luria observou que quando acrescentava quantidades às frases, conseguia fazer com que algumas crianças parassem de imitar a configuração da escrita do adulto para produzir uma escrita diferenciada. Neste caso, passavam a reproduzir quantidades nas suas escritas, o que dava significado a elas. Deste fato o autor inferiu a possibilidade de as origens reais da escrita estarem na necessidade de registrar quantidades. Quantidade, forma e cor levaram a criança à pictografia, ou seja, a usar o desenho para recordar. Quando o desenho deixa de ser apenas um exercício motor e torna-se um meio para recordar, transforma-se em uma atividade intelectual complexa. Luria observou esta diferenciação em crianças de aproximadamente quatro anos e meio, embora admita que possa ocorrer até antes. No entanto, quando a criança memoriza apenas ao reproduzir cor, forma e tamanho, mas
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    46 não registraimagens para ajudar a memorizar, sua escrita ainda não é uma representação. Luria observou que a escrita representativa, ou seja, por imagens, foi realizada por crianças de, aproximadamente, cinco ou seis anos de idade. A passagem para a pictografia só não ocorre quando a criança aprende antes a escrita alfabética. Do contrário, assim como na filogênese os homens inventaram os pictogramas, a criança também inventa desenhos com funções representativas. No entanto, quando Luria realizou o mesmo experimento com crianças que já estavam em processo de aprendizagem da escrita formal, observou a mesma passagem do rabisco não representativo para a imagem representativa. Luria pediu para que crianças que já sabiam escrever anotassem frases para memorizar, mas sem usar a escrita formal. O resultado foi que as crianças que já haviam aprendido as letras, ao não poderem usá-las, também não produziram pictogramas, embora já houvessem produzido desenhos para lembrar de frases nas fases anteriores à aprendizagem formal da escrita. Luria concluiu com isso que o ato de escrever, muitas vezes, precede a compreensão do que é a escrita. Uma coisa parece clara a partir de nossa análise do uso dos signos e suas origens, na criança: não é a compreensão que gera o ato, mas é muito mais o ato que produz a compreensão – na verdade, o ato freqüentemente precede a compreensão. Antes que a criança tenha compreendido o sentido e o mecanismo da escrita, já efetuou inúmeras tentativas para elaborar métodos primitivos, e estes são, para ela, a pré-história de sua escrita. Mas mesmo estes métodos não se desenvolvem de imediato: passam por um certo número de tentativas e invenções, constituindo uma série de estágios, com os quais deve familiarizar-se o educador que está trabalhando com crianças de idade escolar, pois isto lhe será muito útil. (LURIA, 2003c: 188) Segundo Luria, pela falta da mediação, o desenho muitas vezes não se torna uma escrita pictográfica. Mediação, neste caso, é alguém que ajude a criança a usar o desenho para registrar frases. Esta ajuda pode ser um pedido para que a criança use desenho para representar forma, cor e quantidade, ou uma sugestão para que a criança use lápis e papel para produzir registros mnemônicos. Se há mediação, o desenho, que inicialmente é apenas uma brincadeira, torna-se, ao longo do desenvolvimento, um meio
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    47 para registro.Nem sempre a criança que desenha bem usa o desenho como meio de registrar a fala. O que distingue o desenho de uma pictografia é que esta é usada como meio para recordar ou representar algo, e não apenas como brincadeira. A criança pode ainda passar para a escrita simbólica quando é desafiada a escrever algo que não seja possível expressar por pictogramas. Quando isso ocorre, há duas opções para ela: pode não anotar o objeto difícil que lhe pedem, mas um outro que guarde certa relação, ou pode anotar algo arbitrário no lugar do objeto difícil. No primeiro caso, a criança pode representar somente uma parte do todo que lhe foi pedido, por exemplo, desenha algumas estrelas, quando lhe pedem para usar a escrita para anotar a frase: “Há 1000 estrelas no céu”. De acordo com Luria, uma criança que é capaz de abstrair as partes do todo, já alcançou um nível mais alto de desenvolvimento intelectual, mostrando-se nos limites da escrita simbólica. Estritamente falando, este período primitivo da capacidade de ler e escrever da criança, tão interessante para o psicólogo, chega ao fim quando o professor dá um lápis à criança. Mas ao dizer tal coisa não estaremos inteiramente certos. Do momento em que uma criança começa, pela primeira vez, a aprender a escrever até a hora em que finalmente domina essa habilidade há um longo período, particularmente interessante para a pesquisa psicológica. Ela está exatamente no limite entre as formas primitivas de inscrição que vimos anteriormente, possuidoras de um caráter espontâneo, pré-histórico, e as novas formas culturais exteriores, introduzidas de maneira organizada no indivíduo. É durante este período de transição, quando a criança ainda não dominou completamente as novas técnicas, mas também não superou a antiga, que emerge um certo número de padrões psicológicos de particular interesse. (LURIA, 2003c: 180) Sendo assim, Luria observou três níveis no desenvolvimento da escrita como sistema mnemônico. No nível ‘pré-instrumental’, a criança imita a configuração da escrita formal, reproduzindo linhas em ziguezague. Neste nível a criança não entende que a escrita pode ter um significado e não usa o lápis e o papel para produzir registros mnemônicos. Na fase da ‘escrita topográfica’, ou ‘signos-estímulo’, a criança produz rabiscos para representar algo, diferenciando-os pelo seu local no papel. Embora neste nível a escrita sirva de estímulo para a criança lembrar, ainda não possui um significado
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    48 próprio, demodo que não é um signo-simbólico. No nível do ‘signo-simbólico’ a criança produz pictogramas que simbolizam o conteúdo da fala, sendo uma escrita representativa por imagens. Para Luria, a passagem para a escrita representativa é um salto no desenvolvimento da criança. No entanto, se a criança aprende a escrever sem entender o significado da escrita, pode não conseguir passar para a etapa representativa. Disto se infere a importância de a criança entender a função representativa para poder compreender a função cultural da escrita. Além disso, sem a mediação do adulto, que ajuda a criança a perceber que pode usar o desenho para representar a fala, o desenho pode não evoluir a ponto de tornar-se um símbolo. Mas não é somente o rabisco e o desenho que fazem a criança desenvolver a função representativa; outras atividades também desenvolvem na criança a capacidade de operar com signos e instrumentos, e entender que coisas podem ser usadas para representar outras coisas. No experimento aqui citado, Luria buscou investigar como a criança usa a representação simbólica para desenvolver a capacidade de fazer registros mnemônicos. Em outras formas de interação, a criança também usa coisas para representar outras coisas, de modo que a pré-história da escrita inicia muito cedo na ontogênese, antes mesmo da criança aprender a usar estratégias mnemônicas. Sendo assim, usar a pictografia como estratégia mnemônica não é a primeira forma de escrita produzida pela criança. Através de vários estudos experimentais, Vigotski (2000) concluiu que o desenvolvimento da escrita é iniciado antes mesmo do nascimento da linguagem, porque a forma mais rudimentar da escrita é o gesto. Assim como a escrita é usada para representar a linguagem, o gesto também o é, de modo que ambos são parentes genéticos. Quando a criança usa os primeiros signos visuais que fazem nascer a linguagem, já está exercendo uma função rudimentar da escrita. Para Vigotski, o gesto, primeiro signo visual da criança, nada mais é do que uma escrita no ar. O gesto contém em si a futura escrita da criança. Vigotski cita Wundt e Stern para reiterar esta afirmação e mostrar como o gesto é a forma rudimentar da escrita. Segundo Wundt (apud VIGOTSKI, 2000) existe uma relação entre gesto e representações pictográficas da criança. Algumas vezes o gesto figurativo reproduz um signo gráfico e, outras, o signo é a fixação do gesto. No desenvolvimento da criança, a escrita pictográfica advém dos gestos. O mesmo ocorre na filogênese, pois entre os primitivos a escrita pictográfica substitui o gesto.
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    49 Na ontogêneseo gesto é o ponto inicial na pré-história da escrita. Conforme vimos no capítulo anterior, o gesto torna-se uma forma de representação para a criança quando o adulto atribui significado a ele. Assim, se primeiro o gesto é um reflexo da criança que projeta o corpo em direção ao que quer, quando o adulto alcança o que a criança deseja, significa seu gesto uma representação da linguagem. Quando a criança passa a usar o gesto para, deliberadamente, apontar para o que quer, demonstra que se apropriou do gesto como forma representativa, como função simbólica. Esta apropriação só pode ser realizada através da interação, da mediação do outro. Surge aqui a primeira forma de escrita na ontogênese. La historia del desarrollo de la escritura se inicia cuando aparecen los primeros signos visuales en el niño y se sustenta en la misma historia natural del nacimiento de los signos de los cuales ha nacido el lenguaje. El gesto, precisamente, es el primer signo visual que contiene la futura escritura del niño igual que la semilla contiene al futuro roble. El gesto es la escritura en el aire y el signo escrito es, frecuentemente, un gesto que se afianza. (VIGOTSKI, 2000: 186) Segundo Vigotski, o gesto é a primeira forma de escrita e, entre ele e a escrita formal, os parentes genéticos são os rabiscos mecânicos, o desenho e o jogo. 2.1.1. Os rabiscos mecânicos Este momento é caracterizado pelos rabiscos da criança. Os traços deixados pelo lápis são mais um complemento do gesto do que uma representação gráfica propriamente dita. Um exemplo é a observação realizada por Stern (apud VIGOTSKI, 2000). Em um de seus experimentos, Stern observou uma criança de quatro anos representar a ferroada do mosquito, usando um gesto pulsante da mão com a ponta do lápis. Segundo Vigotski, os primeiros rabiscos da criança não são desenhos, mas sim gestos. Isto se evidencia pelo fato de que, ao desenhar um objeto, a criança não desenha todas as suas partes, mas sua configuração mais geral. Por sua vez, quando precisa representar um conceito abstrato, a criança faz sinal com o lápis, ao invés de desenhar. Cuando se le propone que dibuje el buen tiempo, el niño hace un gesto suave horizontal, señalando con la mano la parte inferior de la hoja: “Esto es la tierra”, explica y esboza a continuación unas confusas rayas en la parte superior: “Y esto es el buen tiempo.” En
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    50 observaciones especialesnos fue posible observar la afinidad entre el gesto y el dibujo; obtuvimos de un niño de 5 años de edad una representación simbólica y gráfica a través del gesto. (VIGOTSKI, 2000: 187) Aqui cabe ressaltar que Vigotski não está se referindo aos rabiscos produzidos como meios mnemotécnicos. O experimento de Luria visou tão somente observar como a criança usa o lápis e o papel para produzir registros mnemônicos. Para a psicologia histórico-cultural, a escrita não tem como única função a mnemotécnica, esta foi apenas a primeira forma de escrita na filogênese. Vigotski está tratando aqui não de registros mnemônicos, mas sim de desenhos. O autor está mostrando como a criança representa idéias através do desenho. O ponto em comum entre esta análise do autor acerca do rabisco e o experimento de Luria, é que ambos trazem a importância do desenho para a aquisição da escrita. O desenho, por ser uma forma de representação, desenvolve a capacidade de escrever. Isto porque, para a criança poder usar as letras para produzir os sons da fala, precisa primeiro entender que pode desenhar a própria fala. 2.1.2. O jogo O jogo é outro momento que estabelece nexos entre o gesto e a escrita. No jogo, uns objetos se constituem como signos de outros, ou seja, passam a representá-los. Isto é o que ocorre na escrita, quando segmentos gráficos são usados para representar segmentos sonoros. Apesar disso, para a psicologia histórico-cultural, a simbolização e a imaginação não são características inerentes do jogo. Segundo Leontiev (2003), a representação da criança que brinca não é simbólica porque ela não inventa um sistema de signos que servem para generalizar a realidade. Quando brinca, a criança representa a realidade. O símbolo e a imaginação existentes no jogo estão subordinados ao real. Este é o motivo por que a brincadeira, embora seja real, desenvolve a representação simbólica. Portanto, nas premissas psicológicas do jogo não há elementos fantásticos. Há uma ação real, uma operação real e imagens reais de objetos reais, mas a criança, apesar de tudo, age com a vara como se fosse um cavalo, e isto indica que há algo imaginário no jogo como um todo, que é a situação imaginária. Em outras palavras, a estrutura da atividade lúdica é tal que ocasiona o
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    51 surgimento deuma situação lúdica imaginária. (LEONTIEV, 2003:127) Além da imaginação não ser o elemento principal da brincadeira, o prazer também não é. Para Vigotski, o prazer não é uma característica definidora do brinquedo por dois motivos: há atividades que são mais prazerosas para a criança do que brincar e, nos jogos de competição, o prazer está diretamente ligado ao resultado do jogo. We know that a definition of play based on the pleasure it gives the child is not correct for two reasons – first, because we deal with a number of activities that give the child much keener experiences of pleasure than play. For example, the pleasure principle applies equally well to the sucking process, in that the child derives functional pleasure from sucking a pacifier even when he is not being satiated. On the other hand, we know of games in which the activity itself does not afford pleasure – games that predominate at the end of the preschool and the beginning of school age and that give pleasure only if the child finds the result interesting. These include, for example, sporting games (not just athletic sports but also games with an outcome, games with results). They are very often accompanied by a keen sense of displeasure when the outcome is unfavorable to the child3. (VIGOTSKI, 2005: 02) Mas o que faz a criança querer representar a realidade? De acordo com Leontiev (2003), ao brincar, a criança pode realizar formas de atividade que são específicas do mundo adulto, como cuidar de um bebê, dirigir um carro, fazer comida. A criança quer dirigir, mas não pode, então recorre ao faz-de-conta. A motivação da representação é entender as atividades dos adultos. Quanto mais a criança conhece o mundo, mais sente necessidade de brincar, pois trava contato com sua incapacidade de operar com os objetos que os adultos operam. Por este motivo, todas as ações empregadas pela criança durante o jogo têm como objetivo a própria atividade representativa. Por exemplo, ao 3 Nós sabemos que definir o jogo como algo que proporciona prazer à criança não é correto por dois motivos – primeiro, porque trabalhamos com um número de atividades que proporcionam para a criança muito mais prazer e entusiasmo que o jogo. Por exemplo, o princípio do prazer pode ser aplicado ao ato de sugar uma chupeta, ação que leva a criança a vivenciar o mesmo prazer que sente ao ser amamentada. Por outro lado, sabemos de jogos nos quais as atividades em si não proporcionam prazer à criança – jogos que predominam no final da pré-escola e no início da idade escolar, e que dão prazer somente se a criança achar o resultado positivo. Isto inclui, por exemplo, jogos esportivos (não somente esportes atléticos, mas também jogos com resultados). Eles são freqüentemente acompanhados de um grande senso de desprazer quando o resultado é desfavorável pra a criança. (Tradução livre)
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    52 fazer deconta que é um motorista, a criança não tem o objetivo de chegar a algum lugar. Seu único propósito é fazer de conta que é um motorista. Segundo Leontiev (2003), o brinquedo torna-se atividade principal da criança na idade pré-escolar. Não devido à quantidade de vezes que brinca, mas ao papel que o brinquedo exerce no seu desenvolvimento mental. O jogo é importante para o desenvolvimento por vários motivos. Segundo Vigotski (2005), quando brinca de faz-de-conta, a criança torna-se consciente das regras de sua cultura, pois, para fazer de conta, precisa agir de acordo com estas regras. Por exemplo, uma criança que brinca de mãe age de acordo com os deveres que regem as ações da mãe (alimentar, proteger, educar) e, deste modo, assimila as regras do mundo adulto. No faz-de-conta, a criança age de modo mais evoluído do que o habitual e, assim, a brincadeira cria uma zona de desenvolvimento próximo. Portanto, não são apenas nos jogos de regras, como xadrez e futebol, que existem regras; estas também estão presentes nos jogos imaginários. Leontiev (2003) faz uma importante análise sobre os tipos de brincadeira da criança. Segundo o autor, existem características que são comuns a todos os tipos de brinquedo: a conexão com a realidade, a representação de uma situação imaginária, o uso de signos-símbolos e as regras. Uma das primeiras formas de faz-de-conta é a atividade generalizada. Neste tipo de jogo, a criança que brinca, não imita as próprias ações ou as ações de uma pessoa específica, mas reproduz o típico, o geral. Assim, novamente, quando brinca que é um motorista, sua ação corresponde às ações concretas de qualquer motorista. No período pré-escolar, gradativamente os jogos com enredos se tornam jogos com regras estabelecidas socialmente. As regras da situação imaginária passam a surgir não apenas das regras inerentes a uma dada ação, mas também das relações estabelecidas ente os membros do grupo. Por exemplo, se a criança brinca que é motorista, se relacionará não somente com o carro, mas também com os passageiros. Na idade escolar, a criança passa a fazer jogos dramáticos, nos quais reproduz construções artísticas, incluindo aquilo que é típico do personagem representado e não uma generalização qualquer. A dramatização e o faz-de-conta são jogos ligados à realidade e às suas regras. O jogo de fantasia é diferente. Nele não há ação, regra ou objetivo, mas apenas uma ação exterior erguida sobre uma imagem fantasiosa criada pela criança. Este tipo de jogo pode ser chamado de limítrofe porque está nos limites ente o jogo e o devaneio. Como
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    53 este tipode jogo não tem regra, Leontiev considera-o mais um devaneio do que um jogo propriamente dito. Quando a criança torna-se mais consciente quanto às regras, surgem os jogos com regras que já foram estabelecidas culturalmente. Este é o caso de brincadeiras como ‘pega-pega’, esconde-esconde’, ‘pique’, entre outros. Este tipo de brincadeira passa a ter mais objetivos, embora o maior deles seja a atividade em si. Nesta categoria de jogos incluem-se os que têm um propósito; por exemplo, pegar os colegas; e os que têm duplo propósito; por exemplo, não se deixar pegar e salvar os colegas que foram pegos. Dentre os jogos com regras definidas encontram-se ainda os jogos didáticos. Jogos didáticos não são exercícios escolares, são brincadeiras que desenvolvem o conhecimento de algum conteúdo ou uma capacidade intelectual. Além de existirem jogos de diversos tipos, também há diferentes materiais. Leontiev (2003) faz uma distinção entre brinquedos de longo alcance e especializados. Estes são os brinquedos que apresentam funções fixas, como os carrinhos eletrônicos e bonecos que se movem ou falam. Os brinquedos de longo alcance podem ser usados em vários tipos de jogos. Geralmente são materiais não estruturados, como varas, blocos, caixas etc. Embora a criança possa usar um brinquedo especializado em jogos de faz-de-conta, os materiais não estruturados favorecem a representação simbólica. Na infância há vários tipos de brinquedo: representação generalizada, jogos com regras, jogos com duplo propósito, jogos didáticos, jogos limítrofes e dramatização. Para estes jogos existem basicamente dois tipos de materiais: os brinquedos especializados e os de longo alcance. Um mesmo tipo de jogo pode ser observado em diferentes idades. Embora em todas as idades as crianças brinquem das mesmas coisas, elas brincam de modo diferente. O símbolo está presente em todos os tipos de jogos, até mesmo em jogos com regras como o futebol e o xadrez, ainda que os jogos sejam sempre ligados às situações reais. Ou seja, apesar de não ser uma linguagem simbólica, para haver jogo, a criança precisa operar com signos simbólicos. Este é o motivo porque o jogo é uma forma de representação e constitui um nexo entre o gesto e a escrita. A situação que a criança representa é real e não simbólica. No entanto, os objetos que a criança usa para brincar tornam-se símbolos de outras coisas. El segundo momento que forma el nexo genético entre el gesto y el lenguaje escrito nos lleva a los juegos infantiles. Como sabemos, durante el juego unos objetos pasan a significar muy fácilmente
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    54 otros, lossustituyen, se convierten en signos suyos (...).(VIGOTSKI, 2000: 187) Por via experimental, Vigotski (2000) criou situações para investigar como as crianças usam coisas para representar outras coisas no jogo. Através da investigação pôde exemplificar a gênese do jogo. O experimento consistia no seguinte: (...) un libro puesto en un lado de la mesa designaba la casa; las llaves a los niños; el lápiz a la niñera; el reloj a la farmacia; el cuchillo al doctor; la tapa del tintero, al cochero, etc. A continuación, se les presenta a los niños una historia sencilla al alcance de los sujetos del experimento mediante gestos expresivos dirigidos a los objetos mencionados. (VIGOTSKI, 2000: 188) A partir deste experimento, Vigotski distinguiu quatro momentos na gênese do jogo em sua relação com a atividade representativa: atividade motora sem faz-de-conta; faz-de-conta determinado pela ação e não pelo objeto; faz-de-conta determinado pela linguagem; uso de objetos para representar outros objetos, independente do gesto ou signo convencionado. A etapa da atividade motora sem faz-de-conta é característica das crianças pequenas, que determinam suas ações através da esfera visual. Crianças muito pequenas não brincam de faz-de-conta, simplesmente os objetos solicitam o que fazer com eles. Os jogos se limitam a exercícios motores, como agarrar, morder, atirar e sacudir objetos. A etapa do faz-de-conta determinado pela ação e não pelo objeto é característica das crianças em idade pré-escolar. Nesta fase, as crianças podem usar objetos para representar outras coisas, contanto que estes lhe permitam a ação pretendida no faz-de-conta. O importante, neste caso, não é que o objeto usado tenha aparência semelhante ao que representa na brincadeira, mas que sua estrutura permita representar os gestos adequados para o faz-de-conta. Vigotski (2000) cita o exemplo da criança que usa uma vassoura para representar um cavalo. É possível que a vassoura seja usada para representar um cavalo porque pode ser colocada entre as pernas e permite que a criança imite o movimento de uma cavalgada. Neste caso, é a ação que determina o jogo de faz-de- conta e não o objeto. Uma criança pré-escolar não usaria um objeto que não permitisse os movimentos de cavalgada na brincadeira de faz-de-conta. Não usaria um palito de fósforo ou uma caixa para representar o cavalo. O significado está no gesto, e
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    55 não noobjeto. A criança aplica no objeto o gesto simbólico correspondente ao que quer representar. Aproximadamente aos quatro anos, ocorre a etapa do faz-de-conta determinado pela linguagem. A criança realiza jogos onde produz a designação verbal correspondente do objeto. A linguagem é usada para atribuir sentido a cada objeto e ação executados durante o faz-de-conta, ou seja, para explicar os signos. A criança executa a ação de brincar e, ao mesmo tempo, explica o jogo para si mesma ou faz acordos com o grupo sobre o que cada objeto irá representar. Na etapa dos objetos para representar outros objetos, independente do gesto ou signo convencionado, o significado do gesto passa a ser transmitido para os objetos. Coisas são usadas para representar outras coisas, inclusive sem os signos convencionais. Segundo Vigotski, a partir do momento em que a criança usa coisas para representar outras coisas no jogo, se apropria da capacidade de compreender símbolos, o que é um importante fator do desenvolvimento da escrita. As palavras escritas são signos da palavra falada, assim como objetos podem funcionar como signos de outros objetos durante o jogo. Dito de outra forma, quando a criança compreende que coisas podem ser usadas para representar outras coisas, também pode entender que a escrita representa a fala. Así pues, desde ese punto de vista, el juego simbólico infantil puede entenderse como un sistema del lenguaje muy complejo que mediante gestos informa y señala el significado de los diversos juguetes. Sólo en la base de los gestos indicativos, el juguete va adquiriendo su significado; al igual que el dibujo, apoyado al cominezo por el gesto, se convierte en signo independiente. (VIGOTSKI, 2000: 188) Para resumir o exposto até aqui acerca do jogo, podemos dizer que este não é definido pelo prazer e nem por ser uma atividade simbólica. No entanto, o jogo abarca sempre simbolismo. O simbolismo e a regra estão presentes em todos os tipos de jogos: representação generalizada, jogos com regras, jogos com duplo propósito, jogos didáticos e dramatização. Apenas os jogos limítrofes não têm regras, mas estes se encontram no limite entre o jogo e a fantasia pura, ou delírio. Estes tipos de jogos podem ser encontrados em todas as fases do desenvolvimento da criança a partir, aproximadamente, do final da idade pré-escolar (quatro anos). Devido ao fato de o jogo requerer formas de representação simbólica, ele torna-se de suma importância para o
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    56 desenvolvimento daescrita pela criança, conforme mostraram os experimentos de Vigotski. Assim como é preciso a interação com o outro para que o gesto torne-se um signo representativo, o mesmo ocorre com o jogo. A criança só conseguirá representar situações no jogo se estiver inserida na cultura, se tiver contato com as atividades realizadas pelo adulto. Sem conviver com adultos não há como a criança sentir necessidade de imitar suas atividades. É justamente a necessidade de imitar as atividades adultas que leva a criança a querer jogar. 2.1.3. O desenho O desenho percorre a mesma história do desenvolvimento do jogo. Primeiro o desenho é um gesto da mão que segura um lápis, depois passa a designar por si mesmo um determinado objeto e, por fim, os traços do desenho recebem um nome correspondente. Uma importante característica do desenho é que este precisa, necessariamente, estar ligado à linguagem para que exerça função de símbolo. Claro que esta característica também faz parte do jogo. Ora, o jogo só exerce função de símbolo porque está ligado à linguagem. No entanto, há como desenhar sem nomear os próprios desenhos, enquanto não há como brincar sem utilizar a linguagem. Ao se constituir como representação do real, o jogo é, naturalmente, uma linguagem. Vigotski (2000) concluiu que o desenho é uma importante etapa do desenvolvimento da escrita quando a criança consegue representar sua fala através dele. Quando a criança entende que pode representar sua fala através do desenho, pode compreender o sistema simbólico da escrita. Mas, nem sempre a criança usa o desenho para representar a linguagem. Nas relações entre desenho e linguagem, Ch. Bühler (apud VIGOTSKI, 2000) percebeu que ocorre uma gradativa evolução dos traços do desenho. Primeiro a designação verbal do desenho é posterior e, depois, passa a ser simultânea até que, por fim, a designação precede o desenho. Segundo Vigotski (2000), por sua forma peculiar, é possível dizer que o desenho é uma etapa que antecede a linguagem escrita. O desenho é mais linguagem do que representação propriamente dita, pois é um relato gráfico sobre algo. Ao desenhar, a criança, com ajuda da linguagem, representa tudo aquilo que guarda na memória. Este é o motivo porque costuma falar e relatar enquanto desenha. Apesar de falar enquanto
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    57 desenha, nestaetapa o desenho ainda não representa as palavras, mas sim os objetos. O desenho é uma abstração que a criança faz do objeto. De acordo com Vigotski (2000), com pouca idade, a criança já entende que o desenho pode significar algo. Mas para entender que seu próprio desenho pode significar algo, a criança precisa primeiro conferir significado ao desenho do outro. No entanto, é errôneo acreditar que, desde o início, os traços da criança têm função de signo. A primeira forma de interpretar o desenho do outro não é como signo, mas como objeto parecido com o que representa. Una niña a quien mostraron el dibujo de su muñeca, exclamó: “!Una muñeca igual que ésta!” Es probable que pensara en una muñeca igual a la suya. (VIGOTSKI, 2000: 193) Segundo Hetzer (apud VIGOTSKI, 2000), a influência que a linguagem exerce sobre os desenhos infantis prova que é sobre a linguagem que se edificam todas as formas de simbolismo. Para estudar como o simbolismo se edifica sobre a linguagem, Vigotski (2000) fez uma série de estudos experimentais nos quais propunha que as crianças representassem frases usando signos. Os experimentos demonstraram que as crianças escolares passam da escrita pictográfica para a ideográfica. Nas anotações, havia a supremacia da linguagem sobre a escrita. Algumas crianças transcreviam com um desenho cada palavra da frase citada. “No veo las ovejas, pero allí están.” El niño la transcribía del siguiente modo: pintaba la figura de un hombre (“yo”), luego la misma figura con los ojos vendados (“no veo”), dos ovejas, un dedo indicador y varios árboles tras los cuales se veía a las ovejas (“pero allí están”). (VIGOTSKI, 2000: 194) Este exemplo mostra uma criança que usou a linguagem para descobrir o melhor modo de representar o desenho. Assim, ilustra a tese segundo a qual a linguagem é decisiva para o desenvolvimento da escrita e do desenho. Segundo Vigotski (2000), experimentos como estes ajudam a restabelecer a pré-história do desenvolvimento da escrita. Investigar a pré-história na ontogênese é importante para entender como a criança domina o complexo procedimento da conduta cultural que é a linguagem escrita. Para que el niño llegue a ese descubrimiento fundamental debe comprender que no sólo se pueden dibujar las cosas, sino también el lenguaje. Ese fue el descubrimiento que llevó a la humanidad al
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    58 método genialde la escritura por letras y palabras, y ese mismo descubrimiento lleva al niño a escribir las letras. Desde el punto de vista psicológico este hecho equivale a pasar del dibujo de objetos al de las palabras. Es difícil determinar cómo se produce tal transición ya que las investigaciones correspondientes no han llegado aún a resultados determinados y los métodos de enseñanza de la escritura comúnmente aceptados no permiten observar este proceso de transición. Una cosa es indudable: el verdadero lenguaje escrito del niño (y no el domínio del hábito de escribir) se desarrolla probablemente de modo semejante, es decir, pasa del dibujo de objetos al dibujo de las palabras. (VIGOTSKI, 2000: 197) Vigotski considera que o segredo do ensino da escrita é organizar a passagem natural do desenho para a escrita. Ao dominar a linguagem escrita, é preciso ainda aperfeiçoá-la. Todo el secreto de la enseñanza del lenguaje escrito radica en la preparación y organización correcta de este paso natural. Tan pronto como se efectúa y el niño domina el mecanismo del lenguaje escrito, le queda como misión ulterior el de perfeccionarlo. (VIGOTSKI, 2000: 197) Podemos, agora, resumir como se dá a gênese da pré-história da escrita. A primeira etapa é o gesto, pois antes mesmo de aprender a falar, a criança usa o gesto para se comunicar. O gesto, portanto, representa a fala. Os rabiscos mecânicos, o jogo e o desenho são os nexos genéticos que unem o gesto com a escrita. Os rabiscos mecânicos são gestos transformados em marcas no papel. O jogo vem como etapa subseqüente na pré-história da escrita. No jogo a criança utiliza coisas para representar outras coisas, da mesma forma que a escrita representa a linguagem. Por fim, o desenho é a etapa na qual a criança finalmente consegue compreender que pode representar a própria fala, pode desenhá-la, tal como faziam os povos primitivos ao usarem a escrita pictográfica. A criança que desenha idéias já pode entender o sistema de signos-simbólicos da escrita formal, pois entende que pode desenhar a própria fala. Entretanto, nem toda a criança que desenha, representa. Para que o desenho seja uma representação, é preciso que seja mediado pela linguagem. Quando Luria investigou o uso do desenho como mnemotécnica, observou crianças que, a despeito de conhecerem as letras, não
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    59 compreendem arepresentação. Por outro lado, os experimentos de Vigotski mostraram que a representação é uma função que inicia muito cedo no desenvolvimento da criança. Além disso, as funções representativas de gesto, desenho e jogo não são etapas sucessivas na qual uma forma substitui a outra. A cada etapa do desenvolvimento da criança estas formas de representação coexistem. Todos os experimentos realizados por Luria e Vigotski, para observar como crianças operam com signos antes de saber ler e escrever, demonstraram que a escrita é um processo complexo e não linear que se desenvolve devido à mediação. Se considerarmos a escrita uma função cultural complexa, teremos que admitir que seu desenvolvimento não se completa quando ela já foi apropriada pela criança como um sistema de relações arbitrárias entre fonemas e grafemas. Mesmo quando a criança se apropria do sistema alfabético da escrita, esta continua tendo uma história de desenvolvimento. Vejamos, no próximo item, como se dá a passagem para a etapa superior da escrita, ou seja, para o uso do sistema formal da escrita para representar a linguagem. 2.2. A passagem para a etapa superior da escrita Os experimentos de Luria e Vigotski mostraram que quando a criança aprende a escrita formal, não necessariamente domina a escrita como representação. Assim como o desenho pode ser para a criança apenas uma brincadeira, e não um meio de representar a fala, a escrita formal pode ser para a criança apenas um exercício formal, e não uma linguagem. Entender a escrita como representação é saber operar com ela como linguagem. Embora a escrita seja um sistema de signos que convencionalmente representam os sons da fala, para a criança operar com ela como linguagem precisa desprender-se do seu aspecto sonoro. Usar a escrita como linguagem significa se expressar por meio dela do mesmo modo natural como o fazemos através da fala. Para falar, não pensamos nos sons que formam as palavras. A fala é um sistema vivo de comunicação. Através dela ocorre a expressão, a interação, a criação e o pensamento. Se a escrita é ensinada desvinculada de sua importância cultural e do seu uso em situações reais, ela não se torna para a criança uma linguagem. Ensinar de modo puramente mecânico e externo as relações entre letras e sons pode levar a criança apenas a memorizar as letras e seus sons, mas não conseguir operar com a linguagem escrita. Para nosostros es evidente que el dominio de este sistema complejo de signos no puede realizarse por una vía exclusivamente
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    60 mecánica, desdefuera, por medio de una simple pronunciación, de un aprendizaje artificial. Para nosotros es evidente que el dominio del lenguaje escrito, por mucho que en el momento decisivo no se determinaba desde fuera por la enseñanza escolar, es, en realidad, el resultado de un largo desarrollo de las funciones superiores del comportamiento infantil. Sólo si abordamos la enseñanza de la escritura desde el punto de vista histórico, es decir, con la intención de comprenderla a lo largo de todo el desarrollo histórico cultural del niño, podremos acercarnos a la solución correcta de toda la psicología de la escritura. (VIGOTSKI, 2000: 184) Com isso Vigotski não está querendo dizer que não é importante ensinar à criança o sistema gráfico da escrita. No entanto, o ensino das relações arbitrárias entre letras e sons deve estar subordinado ao ensino da escrita como linguagem, como forma viva de comunicação. Segundo Vigotski (2000), a criança precisa passar da escrita como simbolismo de segunda ordem para simbolismo de primeira ordem. Quando a criança escreve prestando atenção nas relações grafemas-fonemas, sua escrita é um simbolismo de segunda ordem. A criança nesta etapa ainda escreve os sons da palavra e não diretamente a linguagem. A representação das palavras pelos sons é um simbolismo de segunda ordem e a representação da linguagem é o simbolismo de primeira ordem. A autêntica passagem para a linguagem escrita ocorre quando esta se converte em um simbolismo de primeira ordem, ou seja, quando a criança se liberta da necessidade de pensar nas relações grafemas-fonemas para poder escrever. No entanto, aprender a relação grafemas-fonemas é um momento também importante da aprendizagem, sem o qual a criança não conseguirá representar sua fala utilizando o sistema de escrita. A. Delacroix señala acertadamente que la peculiaridad de ese sistema radica en que representa un simbolismo de segundo grado que se transforma poco a poco en simbolismo directo. Esto significa que el lenguaje escrito está formado por un sistema de signos que identifican convencionalmente los sonidos y las palabras del lenguaje oral que son, a su vez, signos de objetos y relaciones reales. El nexo intermedio, es decir, el lenguaje oral puede extinguirse gradualmente y el lenguaje escrito se transforma en un sistema de signos que simbolizan directamente los objetos designados, así como sus relaciones recíprocas. (VIGOTSKI, 2000: 184)
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    61 Vigotski nãosistematizou o desenvolvimento da escrita em etapas sucessivas. Entretanto, observando sua teoria acerca da escrita, é possível observar três diferentes momentos no processo de desenvolvimento da escrita: escrita como representação simbólica na pré-história da ontogênese através do gesto, do desenho e do jogo, escrita como simbolismo de segunda ordem e escrita como função cultural complexa. Cabe aqui, mais uma vez, ressaltar que estes três momentos não foram sistematizados por Vigotski, constituindo mais uma interpretação da sua obra, ou melhor, uma inferência. Estes três momentos não ocorrem de modo linear porque há saltos bruscos de uma etapa para outra, rupturas e até retrocessos. Basta lembrar que há crianças que relacionam letras e sons, mas não entendem a função cultural da escrita. Neste aspecto, existe um ponto de convergência entre ontogênese e filogênese. Na filogênese foi a descoberta da possibilidade de desenhar os sons da fala, em vez dos objetos, o que impulsionou o desenvolvimento da escrita. Na filogênese, a passagem da escrita pictográfica para a alfabética4 ou silábica5 pode ser observada ao longo da história. Na ontogênese, os métodos de ensino dificultam observar a passagem que a criança faz da representação pictográfica para a representação dos sons da fala, e desta para a linguagem, mas os experimentos confirmam este gênese. Segundo Vigotski (2000), entender esta gênese é importante para pensar em bons métodos de ensino da escrita. A humanidade aprendeu que pode desenhar a linguagem em vez dos objetos. A criança precisa aprender a mesma coisa. Para isto, o ensino precisa organizar de modo correto a passagem natural do desenho do objeto para o desenho da linguagem. Teniendo en cuenta el estado actual de los conocimientos psicológicos, a muchos les parecerá muy exagerada la opinión de que todas las etapas examinadas por nosotros – juego, dibujo, escritura – pueden ser presentadas como diferentes momentos de desarrollo del lenguaje escrito único por su esencia. Son muy grandes las rupturas y los saltos que se producen cuando se pasa de un mecanismo a otro para que la conexión de los diversos momentos se manifieste con suficiente evidencia y claridad. Son los experimentos y el análisis psicológico los que propician precisamente semejante conclusión y demuestran que por muy 4 O sistema alfabético de escrita é aquele que representa as unidades sonoras mínimas das palavras. É o caso da escrita latina. 5 O sistema silábico de escrita é aquele que representa as unidades maiores das palavras, ou seja, as sílabas. É o caso do sistema de escrita japonês.
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    62 complejo quenos parezca el proprio proceso de desarrollo del lenguaje escrito, por muy embrollado, fragmentado e irregular que parezca, visto superficialmente, se trata, de hecho, de una línea única en la historia de la escritura que lleva a las formas superiores del lenguaje escrito. La forma superior a la que nos referimos de pasada, consiste en que el lenguaje escrito – de ser simbólico en segundo orden se convierte de nuevo en simbólico de primer orden – Los símbolos primarios de escritura se utilizan ya para designar los verbales. El lenguaje escrito se comprende a través del oral, pero ese cambio se va acortando poco a poco; el eslabón intermedio, que es el lenguaje oral, desaparece y el lenguaje escrito se hace directamente simbólico, percibido del mismo modo, que el lenguaje oral. Basta con imaginarse el inmenso viraje que se produce en todo el desarrollo cultural del niño gracias a su dominio del lenguaje escrito, gracias a la posibilidad de leer y por consiguiente, enriquecerse con todas las creaciones del genio humano en el terreno de la palabra escrita para comprender el momento decisivo que vive que el niño cuando descubre la escritura. (VIGOTSKI, 2000: 197-8) No momento da escrita como representação simbólica na pré-história da ontogênese, a criança comunica e interage usando o simbolismo do gesto, do desenho e do jogo. No momento da escrita como simbolismo de segunda ordem, a criança aprende a fazer uma análise sistemática da sua fala para converter sons em letras, ou seja, aprende as relações grafemas-fonemas. No momento da escrita como função cultural complexa, a escrita torna-se um importante meio de interlocução e inserção na cultura. A criança aprende que pode usar a escrita para muitas coisas importantes, como por exemplo: obter conhecimento e prazer, aprender uma receita, redigir ou ler uma carta, pegar ônibus, compreender as mensagens veiculadas nas placas e letreiros do espaço urbano, dentre outras funções. Os três momentos do desenvolvimento da escrita não ocorrem por etapas sucessivas porque a aprendizagem das relações grafemas-fonemas requer que a criança entenda que a escrita é um importante meio de interlocução. Se a criança não compreender que a escrita amplia as possibilidades de ação sobre o mundo, provavelmente não irá aferir significado à aprendizagem das relações grafemas-fonemas. Neste caso, o resultado pode ser a não aprendizagem do código escrito, ou a aprendizagem de uma decodificação sem sentido, ao invés de um meio de interlocução.
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    63 Dito deoutro modo, a aprendizagem das relações grafemas-fonemas requer que a criança já compreenda a escrita como função cultural complexa. Entretanto, no momento em que a criança aprende a decodificar a escrita, há um momento em que sua atenção volta-se mais para as relações grafemas-fonemas; ou seja, para o modo como os sons se convertem em letras e vice-versa; do que para o significado da escrita como função cultural complexa. Segundo Vigotski, para a criança se apropriar da escrita como função cultural complexa, é preciso que se desprenda do seu aspecto sonoro. De acordo com o autor, a leitura silenciosa é importante para a criança se desprender do aspecto sonoro da escrita e passar a usá-la como linguagem. A leitura silenciosa permite maior compreensão da escrita porque tem um ritmo mais adequado. A vocalização atrasa e dificulta a atenção e a compreensão. El estudio de la lectura demuestra que, a diferencia de la enseñanza antigua que cultivaba la lectura en voz alta, la silenciosa, es socialmente la forma más importante del lenguaje escrito y posee, además, dos ventajas importantes. Ya a finales del primer año de aprendizaje, la lectura silenciosa supera a la que se hace en voz alta en el número de fijaciones dinámicas de los ojos en las líneas. Por consiguiente, el proprio proceso de movimiento de los ojos y la percepción de las letras se aligera durante la lectura silenciosa, el carácter del movimiento se hace más rítmico y son menos frecuentes los movimientos de retorno de los ojos. La vocalización de los símbolos visuales dificulta la lectura, las reacciones verbales retrasan la percepción, la traban, fraccionan la atención. Por extraño que pueda parecer, no sólo el proprio proceso de la lectura, sino también la comprensión es superior cuando se lee silenciosamente. La investigación ha demostrado que existe una cierta correlación entre la velocidad de lectura y la comprensión. Suele creerse que cuando se lee despacio se comprende mejor, pero de hecho la comprensión sale ganando con la letura rápida ya que los diversos procesos se realizan con diversa rapidez y la velocidad de comprensión corresponde a un ritmo de lectura más rápida. (VIGOTSKI, 2000: 198) A leitura em voz alta apresenta características muito distintas da leitura silenciosa. Na leitura em voz alta, existe um intervalo visual, no qual a voz precede os
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    64 olhos parasincronizar leitura com vocalização. Um bom leitor em voz alta tem um intervalo maior entre os olhos e a voz, a leitura está sempre antecedendo a vocalização. Por sua vez, na leitura silenciosa, o bom leitor apreende mais os significados representados do que as relações entre letras e sons. Neste caso, o significado da leitura se emancipa do som. Quando a criança, em início do processo de alfabetização, faz leitura silenciosa, consegue, gradativamente, desprender-se do aspecto sonoro da escrita. Isto não significa que a leitura em voz alta seja inadequada para o processo de alfabetização. Ora, não há como a criança se apropriar das relações letras-sons sem realizar a leitura oral. A leitura oralizada é importante para que a criança aprenda as relações grafemas-fonemas. A leitura silenciosa é um momento posterior à vocalização, quando se torna necessário que a criança se desprenda do aspecto sonoro da escrita e passe a operar com esta do mesmo modo natural que a fala. A criança só consegue realizar leitura silenciosa após se apropriar das relações grafemas-fonemas. Vigotski considera importante que a psicologia experimental investigue a escrita não como um problema sensório-motor, mas como um processo psíquico mais complexo. Para isso, é preciso investigar como ocorre a compreensão durante a leitura e defini-la como sendo um momento no desenvolvimento da reação mediada por símbolos visuais. Para Vigotski, a compreensão não se reduz à reprodução figurativa do objeto e nem ao nome que corresponde à palavra fônica. A compreensão da leitura supõe um manejo dos signos. Para compreender é preciso estabelecer relações entre os diversos signos e deslocar a atenção dos signos isolados para fixá-la mais no todo. Quando o leitor se atém apenas a cada signo isolado, não consegue entender o sistema de relações do texto. Deixa de fazer aquilo que é mais importante para compreender um texto: estabelecer relações, destacar o importante e passar dos elementos isolados para o sentido do todo.
  • 65.
    65 2.3. Primeirasconclusões sobre o desenvolvimento da escrita e suas relações com o processo de ensino e aprendizagem Inicialmente a escrita é um simbolismo de segunda ordem porque é formada por um sistema de signos que, convencionalmente, representam os sons das palavras orais, que, por sua vez, são signos de objetos e relações reais. Assim, o nexo intermediário entre a escrita e o que ela representa são as relações grafemas-fonemas. Este nexo precisa desaparecer para que a escrita se torne um simbolismo de primeira ordem, ou seja, representação direta da realidade. No entanto, para que isto ocorra, é preciso que a criança entenda a representação simbólica. Por este motivo, todos os parentes genéticos da escrita, a bem dizer, o gesto o desenho e o jogo, são atividades importantes para o processo de aquisição da escrita. A criança precisa entender que coisas podem ser usadas para representar outras coisas para entender que pode usar signos para representar a linguagem. Jogar, brincar e desenhar, também são meios de expressão significados pela criança a partir da oralidade e da interação. Aqui se nota um elo para compreender a relação entre oralidade e escritura. Primeiro a oralidade é o que media a representação nos jogos simbólicos. A criança significa seus gestos porque o adulto lhes confere sentido. Esta atribuição de sentido ocorre na interação, quando o adulto responde aos apelos da criança. Após, o gesto evolui para o desenho e o jogo. Tanto desenho, quanto jogo, são, inicialmente, formas gestuais. No desenho, a criança faz movimentos com o lápis imitando os gestos daquilo que quer representar. No jogo, a primeira forma de representação ocorre quando a criança brinca de faz-de-conta usando o objeto para representar os gestos indicativos dos fatos ou eventos que pretende imitar. Nos demais momentos da gênese do desenho e do jogo, a fala passa a ser usada pela criança para significar o que pretende representar; a criança fala enquanto desenha e usa a palavra para dizer o que cada objeto representará no jogo de faz-de-conta. A implicação da teoria sobre o desenvolvimento da escrita da psicologia histórico-cultural é que, antes da aprendizagem formal da escrita, a criança precisa brincar, jogar e desenhar. Quando Vigotski diz que a escrita é para a criança um simbolismo de segunda ordem, mostra que reconhece a importância de se ensinar as relações grafemas-fonemas. No entanto, Vigotski discorda que este ensino sistemático da escrita deva se sobrepor ou preceder o ensino da escrita como linguagem, como forma de expressão e sistema vivo de comunicação. Para a concepção histórico-cultural, o objetivo maior da escolarização não deve ser o ensino das letras, mas sim o ensino da
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    66 escrita comolinguagem. Operar com a escrita como linguagem significa usá-la de modo tão natural quanto se usa a fala. Uma criança, em início do processo de alfabetização, precisa pensar nas relações entre letras e sons para poder escrever, mas, para que seu processo de alfabetização se complete, precisa se desprender do aspecto sonoro da escrita. Por este motivo, o ensino da função cultural da escrita deve preceder o ensino das letras; do contrário, as atividades de traçar as letras e conhecer seus sons não farão sentido para a criança. Deste modo, é possível concluir que, para a criança conseguir operar com a escrita do mesmo modo natural que opera com a fala, precisa primeiro entender que pode desenhar a própria fala e assimilar a função cultural da escrita para, só então, aprender sistematicamente as relações grafemas-fonemas. Fica evidente, na teoria de Vigotski, que o objetivo da alfabetização não deve ser o ensino das letras, mas a aprendizagem da linguagem escrita. O ensino das letras faz parte do processo de alfabetização, mas não pode se sobrepor ao ensino da escrita como linguagem. Quando a criança domina a linguagem escrita, um universo cultural novo se abre à frente, justamente porque a escrita é uma espécie de linguagem com características diferentes da oralidade. As relações entre oralidade e escrita serão enfocadas no capítulo seguinte. Não porque estejam à parte das conclusões da psicologia histórico-cultural, mas porque merecem um tratamento especial, dada sua complexa relação com a ontogênese da linguagem. Por ora, cabe destacar quais são as principais conclusões que Vigotski extraiu de seus experimentos. Ao tratar da história do desenvolvimento da escrita na criança, Vigotski desenvolveu quatro teses. A primeira tese é que a escrita pode ser ensinada para crianças de tenra idade. Esta conclusão advém do fato de que, se a criança pré-escolar entende a função simbólica no jogo, já tem condições de entendê-la na escrita. Por las observaciones realizadas sobre el desarrollo de niños que se educan en un ambiente familiar donde se utilizan habitualmente los libros, el lápiz y, sobre todo, donde hay niños mayores que leen y escriben, sabemos que un niño de 4-5 años domina espontáneamente la escritura y la lectura, como domina el lenguaje oral. El niño empieza a escribir por sí mismo algunas cifras o letras, a distinguirlas en los rótulos, a formar palabras con ellas (...) (VIGOTSKI, 2000: 200)
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    67 Vigotski consideraque o ensino anatomista fisiologista conduz a criança para uma passividade mecânica. Ao invés de enfocar o ensino como um código a ser memorizado e reproduzido, a escola precisa levar a criança a ler e escrever textos que sejam significativos e importantes. A segunda tese de Vigotski é que a escrita deve ser ensinada como uma linguagem, como uma atividade cultural complexa. A aprendizagem da escrita como hábito motor leva a uma escrita mecânica, e não desenvolve a linguagem escrita como uma atividade cultural. A terceira tese de Vigotski é que a aprendizagem da escrita deve ocorrer do modo natural. A escrita e a leitura devem fazer parte dos jogos infantis. A escrita deve, aos poucos, se concretizar como linguagem nas interações entre alunos e professores envolvidos no processo de ensino e aprendizagem. La enseñanza natural de la lectura y escritura requiere una influencia adecuada en el medio circundante del niño; tanto leer como escribir deben se elementos de sus juegos. (...) Es preciso llevar al niño, de la misma manera natural, a la comprensión interna de la escritura, hacer que la escritura se convierta en una faceta de su desarrollo. A tal fin podemos indicar sólo un camino general. El pedagogo debe organizar la actividad infantil para pasar de un modo de lenguaje escrito a otro, debe saber conducir al niño a través de los momentos críticos e incluso hasta el descubrimiento de que no sólo puede dibujar objetos, sino también el lenguaje. Pero este método de enseñanza de la escritura pertenece al futuro. (VIGOTSKI, 2000: 203) A leitura fônica e mecânica, destituída de sentido, acaba por frear a aprendizagem da leitura e da escrita e o próprio desenvolvimento cultural da criança. Por fim, a quarta tese de Vigotski é de que o gesto, o desenho e o jogo são atividades importantes para o desenvolvimento da escrita. O desenho impulsiona o desenvolvimento da escrita porque é uma atividade importante para aprender a operar com signos e suas inter-relações. Não desenhar freia o processo de aprendizagem da escrita. Resumidamente pode se concluir que, para Vigotski, o desenho, o jogo e as atividades simbólicas fazem parte do processo de aprendizagem da leitura e escrita. A escrita precisa ser ensinada de modo a tornar-se significativa para a criança. Para isto,
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    68 precisa sercompreendida como uma atividade cultural complexa e como um simbolismo de primeira ordem, ou seja, uma linguagem em si. A constituição da escrita como função cultural requer que a criança entenda que ela representa uma linguagem, e não tão somente os sons. Os elementos que permeiam a passagem da escrita como simbolismo de segunda para simbolismo de primeira ordem são a oralidade e a interação. Todas as formas de simbolismo se edificam sobre a interação. O elemento que media a relação com o outro é o símbolo, cuja primeira manifestação é o gesto. O gesto, como já vimos, é uma espécie de escrita no ar. Os nexos que ligam o gesto com a escrita são todos os meios de representação simbólica usados pela criança ao longo do seu desenvolvimento, a bem dizer: o rabisco, o jogo e o desenho. Por este motivo, é possível afirmar que, para Vigotski, o parente genético da escrita, que é o gesto, é a forma de linguagem anterior à fala. O que permite a evolução da linguagem como meio de representação simbólica é a apropriação. No caso dos primeiros gestos da criança, esta precisa se apropriar do significado que o adulto imprime ao seu ato. Em relação à escrita, a criança precisa, primeiro, se apropriar da idéia de que coisas podem ser usadas para representar outras coisas, o que ocorre no desenho e no brinquedo. Em uma etapa posterior, a criança precisa entender que pode desenhar os sons da fala. Se o sistema de escrita vigente na cultura da criança for silábico, caso do japonês, precisará entender que pode representar as sílabas da fala. Se o sistema de escrita for o alfabeto fonético, precisará compreender que escrever consiste em decompor a fala em unidades mínimas e representá-las usando grafemas. Mas este não é o momento final do desenvolvimento da escrita. Se inicialmente a criança escreve atendo-se aos sons da fala, precisará, em uma etapa posterior, se desprender do aspecto sonoro da escrita e passar a utilizá-la como linguagem. A escola contribui para que a escrita seja usada como linguagem quando organiza o ensino de modo a torná-la necessária para a criança. Além disso, outro aspecto que ajuda a criança a se desprender do aspecto sonoro da escrita é a leitura silenciosa. Ambos, leitura silenciosa e escrita como necessidade, requerem ou pressupõem a oralidade como elemento mediador da construção da escrita. Assim, conforme já foi dito, é possível inferir três principais momentos no desenvolvimento da escrita: representação simbólica na pré-história da ontogênese através do gesto, desenho e jogo; simbolismo de segunda ordem e, por fim, uso da escrita como função cultural complexa. Ou seja, para aprender a escrever a criança precisa entender que pode usar coisas para representar outras coisas, o que faz no gesto,
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    69 no desenhoe no jogo. Estes momentos não ocorrem em etapas sucessivas porque antes de aprender o aspecto sonoro da escrita a criança precisa significá-la como uma atividade cultural. Do contrário, é possível que a criança aprenda a decodificar a escrita, sem, entretanto, operar com ela como linguagem. Os fatores do desenvolvimento da escrita são todas aquelas atividades que propiciam sua apropriação como função cultural complexa. No momento da escrita como representação simbólica na pré-história da ontogênese, os fatores são o gesto, o jogo e o desenho, além de outras formas de representação. No momento da escrita como simbolismo de segunda ordem, os fatores do desenvolvimento são o ensino das relações entre letras e sons e a leitura silenciosa. No momento da escrita como função cultural complexa, os fatores do seu desenvolvimento são as atividades que envolvem os usos sociais da escrita. A partir daqui, podemos começar a falar da relação professor aluno no processo de desenvolvimento da escrita. Gesto, jogo, desenho, leitura silenciosa, ensino das relações entre letras e sons e escrita nos seus usos sociais só se constituem como fatores do desenvolvimento da escrita se houver a mediação da interação e da oralidade. O desenvolvimento da escrita é um processo de interação, mediação e símbolos. Simultaneamente, a interação media a apropriação da escrita como sistema de signos simbólicos e os símbolos mediam a apropriação da escrita. Todos estes fatores do desenvolvimento da escrita só podem se desenvolver se houver mediação e interação que levem a criança a se expressar e interagir com o meio. Enfocaremos, no próximo capítulo, as relações entre pensamento, oralidade e escrita no processo de alfabetização. A partir desta análise, tentaremos também enfocar as implicações pedagógicas da psicologia histórico-cultural para a alfabetização. Estas duas questões serão tratadas de modo inter-relacionado, visto que a relação entre oralidade e escrita está no cerne das interações pedagógicas entre professores e alunos envolvidos no processo de alfabetização. Das categorias de análise citadas neste capítulo, serão objeto de investigação no livro didático os seguintes fatores do desenvolvimento da escrita: o gesto, o desenho, o jogo, a leitura silenciosa, o ensino das relações grafemas- fonemas, a leitura silenciosa e o ensino da escrita como necessidade. Será feita uma investigação de como estes fatores aparecem tanto nos exercícios do livro, quanto no seu texto para os professores. Mas, primeiramente, teremos que enfocar, no próximo capítulo, os três momentos do desenvolvimento da escrita levando em conta o processo de interação entre professor e
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    70 aluno nodesenrolar destes momentos e, principalmente, as relações entre oralidade e escrita no processo de alfabetização.
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    71 3. RELAÇÕESENTRE ORALIDADE, PENSAMENTO E ESCRITA A proposta deste capítulo é revisitar os três momentos do processo de alfabetização - representação simbólica na pré-história da ontogênese da escrita; aprendizagem da escrita como simbolismo de segunda ordem; escrita como função cultural complexa -, focando mais as relações entre oralidade e escrita no processo de alfabetização. A partir desta reflexão, serão delineadas as primeiras considerações acerca das implicações da psicologia histórico-cultural para a alfabetização. Portanto, serão três as variáveis de análise deste capítulo: as relações entre pensamento e linguagem, as relações entre oralidade e escrita no processo de alfabetização e as prováveis implicações da psicologia histórico-cultural para o ensino e aprendizagem da leitura e escrita. A proposta deste capítulo parece ampla, mas é factível. Falar da relação entre oralidade e escrita no processo de aquisição da escrita significa falar desta como linguagem. A escrita, para Vigotski, é uma linguagem diferente da fala, porém com ela inter-relacionada. A concepção da escrita como linguagem está implícita em toda a psicologia histórico-cultural. É por este motivo que não é possível falar das implicações da teoria de Vigotski para a alfabetização sem falar da relação entre oralidade e escrita. 3.1. A linguagem e seu desenvolvimento para a psicologia histórico-cultural Antes de relacionar a oralidade com a escrita e o pensamento, vamos, primeiro, conceituar linguagem e tratar da sua ontogênese. De acordo com Luria (1994), a linguagem pode ser entendida como um processo de transmissão de informações que emprega recursos da língua e pode se apresentar em duas formas de atividades: transmissão da informação, ou comunicação, e veículo de pensamento. A linguagem como veículo de informação requer a participação de interlocutores, enquanto a linguagem como veículo de pensamento ocorre quando o homem fala para si. No entanto, isto não significa que a linguagem é um meio de pensamento. A linguagem é um meio de expressão que, por um complexo sistema de significados, é unida com o pensamento pelo significado. O significado é o que caracteriza a linguagem humana. Vigotski (1993) investigou as relações entre pensamento e linguagem na ontogênese e na filogênese. O autor observou dois extremos no tratamento dado pelas psicologias da sua época às relações entre pensamento e linguagem. Por um lado, algumas correntes de psicologia
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    72 tratavam opensamento e a linguagem como dois processos plenamente dissociados, separados, Por outro lado, outras correntes da psicologia concebiam pensamento e linguagem como dois processos fundidos, indistintos. Segundo Vigotski, o estudo das relações entre pensamento e linguagem requer um método investigativo que não decomponha pensamento e linguagem em elementos isolados. A decomposição de uma unidade complexa em elementos isolados é um tipo de análise que faz com que as propriedades inerentes ao todos sejam perdidas, provocando um desmembramento. Vigotski (1993) usa como exemplo a análise química da água. A decomposição da água em seus elementos químicos mínimos, - hidrogênio e oxigênio -, não permite o entendimento do que é água. Do mesmo modo, quando a fonética e a semântica clássicas provocam um divórcio entre som e significado e estudam a palavra desintegrada em elementos isolados, torna-se estéril no que tange levar à compreensão do que é linguagem, como esta se desenvolve e quais suas relações com o pensamento. A solução apresentada por Vigotski para o estudo das relações entre pensamento e linguagem é a busca de um método que desmembre o todo a ser estudado em propriedades que não se decompõem, que sejam inerentes a uma dada totalidade enquanto unidade. Vigotaki concluiu que, para o estudo das relações entre pensamento e linguagem, a unidade que não se deixa decompor e contém as propriedades inerentes ao pensamento verbalizado é o significado da palavra, ou seja, o aspecto interno da palavra. O significado pertence ao reino do pensamento e da linguagem, sendo parte inalienável da palavra. Sem significado a palavra é som vazio, deixa de pertencer ao reino da linguagem. Mas a palavra nunca tem apenas um significado, pois ela expressa generalizações. O significado da palavra expressa sempre uma generalização. Uma vivência ou conteúdo só pode ser comunicado a outra pessoa se houver uma inserção deste conteúdo numa determinada classe e grupo de fenômenos, o que requer generalização. Assim, só há comunicação se há generalização. As formas superiores de comunicação psicológica só são possíveis porque o homem reflete o pensamento de modo generalizado. Isto significa que, quando dizemos uma palavra, ela não designa um objeto único, mas sim uma classe de objetos. A palavra não é, portanto, uma propriedade do objeto, não é um nome próprio. Por exemplo, quando dizemos a palavra ‘mesa’ nos referimos a toda uma classe de móveis caracterizados pela mesma função e configuração geral. Usamos a palavra ‘mesa’ para referir a diversos tipos de mesa: madeira, fórmica, mármore, plástico etc. Algumas palavras abarcam generalizações
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    73 mais simples,como é o caso da palavra “mesa”. Há, entretanto, outras palavras que abarcam generalizações muito mais complexas, como é o caso dos conceitos científicos, sobre o qual trataremos mais adiante. Além da generalização, existe outra característica da palavra, analisada por Luria, que é sua multiplicidade de significações, ou seja, a polissemia. Assim, há palavras que abarcam significações distintas. O desenvolvimento da linguagem da criança transcorre em direção da sua apropriação do significado generalizado da palavra. Por este motivo, Vigotski entende que uma criança pode, aparentemente, apresentar amplo vocabulário, mas, de fato, não ter ainda atingido o pleno desenvolvimento da linguagem. Para Vigotski (1993) uma criança de dois anos de idade não é capaz de realizar uma operação tão complicada quanto ter consciência da linguagem. A descoberta do significado da linguagem é um processo genético complexo, que passa por níveis mais primitivos de comportamento. Nas primeiras fases do desenvolvimento a criança domina mais a estrutura externa entre palavra e objeto do que a relação interna entre signo e significado. A partir destas considerações acerca do desenvolvimento da linguagem, Vigotski mostra que as relações entre pensamento e linguagem são variáveis ao longo do desenvolvimento. Ora, se a generalização expressa no significado da palavra é um elo que une pensamento e linguagem e, se o desenvolvimento da compreensão do significado generalizado é posterior ao desenvolvimento da fala da criança, isto demonstra que pensamento e linguagem são dois processo distintos. De acordo com Vigotski (1993), tanto na ontogênese, quanto na filogênese, pensamento e linguagem têm raízes genéticas distintas, constituindo-se processos que, ao longo do desenvolvimento, se juntam e se separam várias vezes. Enquanto nos homens o pensamento e a linguagem são dois processos distintos que se juntam em vários momentos, nos animais superiores o pensamento e a linguagem, além de serem processos genéticos distintos, são sempre separados. Estas premissas foram concluídas através dos experimentos de Köhler (apud VIGOTSKI, 1993). Os experimentos de Köhler demonstraram que os macacos antropóides têm capacidade de produzir uma grande quantidade de fonemas. Por este motivo, estes macacos conseguem usar sons para descarregar emoções e manter contato psicológico com outros seres da mesma espécie. Além disso, podem fazer uso de alguns instrumentos rudimentares. No entanto, os sons produzidos pelos macacos antropóides nunca possuem um significado estável. Quanto ao uso de instrumentos, os macacos são capazes de usar uma vara para alcançar uma fruta no topo da árvore ou qualquer outra
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    74 atividade dogênero. No entanto, só podem usar instrumentos que estejam ao alcance de sua visão, não são capazes de criar instrumentos de trabalho. Se não houver uma vara para alcançar uma fruta ao alcance de suas mãos, os macacos não serão capazes de criar uma. Disto se infere que, nos macacos antropóides, a linguagem nunca é usada como função de signo e instrumento, não constituindo atividade intelectual. Ou seja, entre os macacos antropóides o pensamento e a linguagem encontram-se plenamente distintos. Na história humana do desenvolvimento da linguagem também houve um período de inteligência prática e pré-lingüística, voltada para resolução de problemas ligados às necessidades de sobrevivência. Conforme já vimos, no desenvolvimento histórico do homem, a aquisição da linguagem é posterior ao trabalho e ao invento do emprego de instrumentos para resolver problemas de ordem prática. Sendo assim, a semelhança que existe entre o intelecto do homem e dos macacos antropóides é o rudimento de uso de instrumentos. A semelhança que existe entre a linguagem humana e a dos macacos antropóides é a fonética da fala, a função emocional e os rudimentos da função social da linguagem. No entanto, existe uma diferença fundamental na linguagem do homem e do macaco. Nos macacos antropóides nunca há uma fusão entre pensamento e linguagem, ambos são processos distintos. No homem, o pensamento e a linguagem apresentam raízes genéticas diferentes, pois existem fases de pensamento não verbal. Apesar disso, existe, no homem, uma estreita relação entre pensamento e linguagem. Na filogênese existem fases pré-lingüísticas no desenvolvimento da inteligência e pré-intelectuais no desenvolvimento da linguagem. Isto significa que, no desenvolvimento histórico do homem, houveram momentos de inteligência prática sem uso da linguagem e, por outro lado, produção de sons meramente como descarga emocional, destituída de inteligência. No entanto, a linguagem propriamente dita foi criada pelos homens em função das necessidades surgidas no processo de trabalho. É na ontogênese que se observa a produção de sons apenas para contato social e descarga emocional. Na ontogênese há fases de pensamento pré-lingüístico. Segundo Bühler (apud VIGOTSKI, 1993) a criança entre dez e doze meses encontra-se na idade do chimpanzé. A criança nesta fase já realiza certas invenções importantes para seu desenvolvimento, mas apenas através do pensamento instrumental, destituído de linguagem. As ações da criança desta idade são portadoras de sentido, mas, ainda assim, são independentes da linguagem. A criança pode balbuciar, berrar e falar algumas palavras, mas estas são pré-intelectuais, não têm nada em comum com o desenvolvimento do pensamento. A
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    75 linguagem dacriança nesta fase é predominantemente emocional. É o contato social rico da criança que vai dar lugar ao desenvolvimento dos recursos comunicativos. Segundo Vigotski (1993), no primeiro momento do desenvolvimento da linguagem os sons emitidos pela criança não têm significado, funcionando mais como reflexo. Mas, logo nos primeiros meses de vida da criança, a reação vocal, gradativamente, assume a função de contato social. Aproximadamente aos dois anos de idade a criança apresenta um vocabulário rico. No entanto, isto não significa que ela já domina plenamente a linguagem e reconhece as relações signos-significados. De acordo com Vigotski, embora uma criança de dois anos aparentemente domine todo o vocabulário, sua linguagem ainda não abarca as generalizações mais científicas e complexas. Por exemplo, um gato, para uma criança de três anos, é seu animal de estimação fofinho que faz ‘miau’. A criança de três anos ainda não reconhece o gato como um animal, pertencente à classe dos mamíferos e à família dos felídeos. Ante todo es increíble que un niño de año y medio o dos, cuando su pensamiento se halla en una fase extremadamente primitiva, sea capaz de hacer un descubrimiento que exige una inmensa tensión intelectual. Por eso es dudoso que el niño pequeño posea una experiencia psicológica tan compleja que le permita comprender la relación entre el signo y el significado. Como han demostrado los experimentos, es frecuente que incluso niños de más edad y adultos no lleguen a tal descubrimiento a lo largo de toda su vida; no alcanzan a comprender el significado convencional de la palabra lo mismo que no comprenden la relación entre el signo y su significado. (VIGOTSKI, 1993: 174) Assim, a primeira fase do desenvolvimento da linguagem da criança é afetiva volitiva. Na segunda fase o desenvolvimento da linguagem é intelectual, a criança descobre sua função simbólica. Ou seja, o desenvolvimento do pensamento é anterior ao desenvolvimento da linguagem. Aproximadamente aos dois anos de idade as linhas do desenvolvimento do pensamento e da linguagem se encontram e coincidem, dando lugar a um comportamento exclusivamente humano. A linguagem se intelectualiza e o pensamento se verbaliza. A criança começa a ampliar seu vocabulário, não só no que se refere a empregar maior número de palavras, mas, principalmente, a compreender significados que expressam generalizações mais complexas, caso dos conceitos científicos.
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    76 Vigotski (1993)diferencia, no desenvolvimento da linguagem, os conhecimentos espontâneos dos conhecimentos científicos. Ambos se desenvolvem de modo diferente. Os conhecimentos espontâneos são generalizações simples, enquanto os conhecimentos científicos são generalizações complexas. As generalizações mais simples são aquelas que têm conexão direta com o objeto que representam. Por exemplo, a palavra ‘mesa’. Generalizações científicas ou conceituais vêm de palavras que abarcam características não diretamente observáveis através da experiência, mas apenas através do estabelecimento de relações dinâmico-causais. Tais palavras, para serem aprendidas, exigem um ensino mais sistemático. A importância da aprendizagem dos conceitos científicos reside no fato de que estes permitem ao homem desenvolver modos mais elaborados de pensamento lógico, abstrato e racional, ou seja, as funções psíquicas superiores. O conceito científico é uma forma mais evoluída de palavra, pois permite ao homem estabelecer maior número de relações. No entanto, os conceitos científicos não podem ser simplesmente assimilados, eles exigem desenvolvimento de funções como atenção arbitrária, memória lógica, abstração, comparação e discriminação. La experiencia pedagógica nos enseña no menos que la investigación teórica que la enseñanza directa de los conceptos resulta de hecho imposible y pedagógicamente infructuosa. El maestro que trate de seguir ese camino por lo general no conseguirá más que una assimilación irreflexiva de palabras, un simple verbalismo, que simula e imita los correspondientes conceptos en el niño, pero que de hecho encubre un vacío. En tales casos, el niño no adquiere conceptos, sino palabras, asimila más con la memória que con el pensamiento y se manifiesta impotente ante todo intento de emplear con sentido los conocimientos asimilados. En esencia, este procedimiento de enseñanza de los conceptos es el defecto fundamental del método verbal de enseñanza, puramente escolástico, que todos condenan. Este método sustituye el dominio de los conocimientos vivos por la asimilación de esquemas verbales muertos y hueros. (VIGOTSKI, 1993: 185) Para Vigotski (1993), como o desenvolvimento dos conhecimentos científicos requer ensino sistematizado, a escola é um lugar privilegiado para sua aprendizagem.
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    77 Quem passoupelo ensino escolar e teve acesso aos conhecimentos científicos estabelece mais relações e coordena melhor as palavras do que quem tem experiências limitadas. Além do significado generalizado, o significado da palavra também é dado através de outros fatores, como entonação e contexto de emprego da palavra. De acordo com Luria (1994), o emprego da palavra implica sempre na escolha de um significado entre muitos possíveis. Uma palavra pode ter vários significados, não só porque designa um grupo de objetos ao invés de cada objeto individualmente, mas também porque suas significações variam de acordo com o contexto. O sentido da palavra, que depende da tarefa concreta que o sujeito tem diante de si e da situação concreta em que se emprega a palavra, pode ser totalmente diferente embora exteriormente permaneça o mesmo. Por exemplo, a palavra “dez” tem sentidos inteiramente distintos na boca de uma pessoa que espera um ônibus e na boca do aluno que acaba de prestar exames; ela tem sentido diferente para a pessoa que espera o ônibus nº 3 e vê chegar à parada o nº 10 e para a pessoa que vê chegar o ônibus que tanto esperara. A palavra “tempo” tem sentidos inteiramente diferentes quando empregada pelo serviço de meteorologia ou quando, pronunciada por uma pessoa que, após longa conversa, levanta-se e diz: “bem, o tempo!”, querendo com isto dizer que a conversa está terminada; ela adquire um terceiro sentido na boca de uma velha que olha com reprovação para os jovens e diz: “que tempos”, querendo externar seu desacordo com as concepções e os costumes da nova geração. (LURIA, 1994: 22-3) A entonação é outro fator de mudança de sentido de uma palavra. Nas relações de emprego vivo da linguagem, a entonação, assim como o contexto, tem grande importância para o significado da palavra. A entonação é capaz de mudar o sentido da palavra. Basta pronunciar a palavra besta, uma vez sem qualquer entonação especial, e em outra com a entonação humilhante besta! para lhe dar o sentido de pessoa curta de inteligência, tola, simplória, pedante, etc.; a palavra pamonha, pronunciada sem entonação especial, significa uma espécie de bolo de milho verde condimentado; pronunciada com entonação especial, essa mesma palavra adquire o sentido de pessoa tola. (LURIA, 1994: 23)
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    78 A entonação,a capacidade de generalização e abstração e o contexto, são os fatores que produzem a multiplicidade do significado da palavra. No emprego vivo da língua, todos estes fatores influem na significação. Por este motivo, o uso real da palavra é um processo de escolha do sentido adequado entre todos os possíveis significados da palavra. Sendo a palavra um sistema de múltiplos significados, é fundamental para a psicologia da comunicação e do pensamento compreender as relações entre pensamento e linguagem à luz do problema da significação. Para haver comunicação, é preciso haver significação e um sistema de signos que permitam a generalização. A comunicação, para a transmissão e compreensão de idéias, exige a linguagem humana, formada por um conjunto de signos. A comunicação sem signos é tão impossível quanto a comunicação sem significado. O significado pode ser visto como fenômeno da linguagem e do pensamento porque é, ao mesmo tempo, linguagem e pensamento. Como o significado é uma unidade do pensamento verbalizado, o problema da relação entre pensamento e linguagem deve ser de análise semântica, do sentido da linguagem e do significado da palavra. O significado da palavra é definido pelo contexto e pela entonação, presentes nas situações de emprego vivo da língua. Além disso, o significado expressa a capacidade que a palavra tem de generalizar. A generalização corresponde ao ato verbal do pensamento e, graças a ela, o pensamento reflete a realidade na consciência qualitativamente diferente do modo como o faz a sensação imediata. A generalização está no bojo das relações entre pensamento e linguagem. As formas superiores de comunicação psicológica só são possíveis porque o homem reflete a realidade no pensamento de modo generalizado. A generalização realizada no significado da palavra é o ato do pensamento. O significado é a condição sem a qual a palavra não existe. Isto mostra que na ontogênese as raízes genéticas do pensamento e da linguagem são distintas. Encontra-se no desenvolvimento da linguagem infantil uma fase pré-intelectual, uma etapa pré-lingüística do desenvolvimento do pensamento. Até determinado momento, pensamento e linguagem seguem linhas distintas, independentes. Quando pensamento e linguagem se encontram, o pensamento se faz verbal e a linguagem se faz intelectual. Diante disso, é preciso reconhecer a importância dos processos da linguagem interna no desenvolvimento do pensamento. A linguagem egocêntrica, que é o ato de a criança falar de si para si, resulta quase ininteligível para o meio mas, apesar disso, não é uma linguagem interna e sua origem é sempre social. A linguagem egocêntrica pode se tornar facilmente linguagem interna, mas isto não ocorre
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    79 porque alinguagem egocêntrica se converte em interna. O que ocorre é uma mudança de função da linguagem. Para Piaget (apud VIGOTSKI, 1993), o pensamento da criança é mais egocêntrico do que o do adulto e constitui uma fase de transição entre o autismo e o pensamento socializado. Na concepção de Piaget, o momento primeiro do desenvolvimento infantil é o autismo. O pensamento realista se desenvolve através da coação produzida pela meio social. Piaget vê as raízes do egocentrismo em duas circunstâncias: na a-sociabilidade da criança e na sua natureza original voltada para a atividade prática. Ao analisar as hipóteses e os fundamentos factuais que levaram Piaget a conceber o egocentrismo como fator indiscutível no desenvolvimento da criança, Vigotski (1993) lembra que, ao estudar a linguagem, Piaget conclui que as conversas das crianças podem ser divididas em dois grandes grupos: a linguagem egocêntrica e a linguagem socializada. A linguagem egocêntrica seria um monólogo caracterizado pelo fato de a criança falar de si para si, não se colocar no ponto de vista do interlocutor e não preocupar-se com a compreensão mútua. Simplesmente a criança ocupa seus atos com falas particulares durante suas atividades. A linguagem social, por sua vez, seria o ato de comunicação em si, através do qual a criança comunica, critica, pergunta, pede, ordena, etc. Com o objetivo de compreender a função da linguagem no comportamento da criança, Vigotski (1993) realizou, em colaboração com Luria e Leontiev, um estudo clínico para compreender o que suscita a linguagem egocêntrica da criança e qual sua função no comportamento. Neste experimento, Vigotski, Luria e Leontiev organizaram o comportamento da criança ao modo da psicologia experimental de Piaget, com a diferença de que incluíram uma série de complicadores do comportamento. Por exemplo: para a criança desenhar, a situação era dificultada através da falta de lápis de alguma cor. Através deste estudo, Vigotski observou que ao deparar-se com fatores que dificultam sua ação, a criança tenta assimilar a situação complicada falando de si para si. Na ausência de complicadores ocorre um decréscimo da linguagem egocêntrica. Enquanto as crianças mais novas usavam a linguagem egocêntrica para planejar uma ação imediata e assimilar a situação complicada, as crianças mais velhas escutavam, refletiam e, depois, encontravam uma saída. Ao serem incitadas a dizer o que estavam pensando, as crianças mais velhas davam respostas que se assemelhavam ao pensamento em voz alta dos pré-escolares. Através desta observação, Vigotski concluiu
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    80 que amesma operação que entre os pré-escolares se realiza em voz alta, realiza-se no aluno escolar em forma de linguagem silenciosa. A partir deste experimento, Vigotski concluiu que a linguagem egocêntrica, além de função de expressão, descarga e acompanhamento do desempenho da criança, torna-se facilmente meio de internalização. Na medida em que se desenvolve a atividade da criança, a linguagem verbal externa se internaliza, ajudando a criança a elaborar melhor seu pensamento. Na idade escolar ocorre uma rápida extinção da linguagem egocêntrica, o que, segundo Vigotski, permite supor que a linguagem egocêntrica é uma forma de pensamento verbalizado que ajuda a elaborar a linguagem interna. Sendo assim, a linguagem egocêntrica é um momento do processo de internalização da criança, pois a leva a elaborar o próprio pensamento. Assim, embora a linguagem egocêntrica seja caracterizada pelo ato de falar de si para si, ela não constitui um indicativo de que a fala ou o pensamento da criança é egocêntrico. Para Vigotski a função da linguagem é comunicar, relacionar socialmente e influenciar os circundantes. A linguagem primordial da criança é social. A linguagem egocêntrica surge mais tarde no desenvolvimento da criança e não deixa de ser social, pois não é dissociada da realidade e da atividade prática e adaptação real da criança, mas sim um momento composicional da atividade racional. A linguagem egocêntrica se intelectualiza e ocupa a mente nas ações primárias e racionais, servindo de modelo para formação da intenção em uma atividade mais complexa da criança. Por este motivo, a atividade e a prática são os momentos que desvelam a função da linguagem egocêntrica. Além da fala egocêntrica, a criança passa ainda por uma fase na qual opera de modo ingênuo com a linguagem. Neste aspecto, Vigotski (1993) considera que o desenvolvimento da linguagem não se difere do desenvolvimento de outros processos psíquicos. Em todas as operações intelectuais a criança passa por uma fase ingênua de emprego de signos e instrumentos. Assim, por exemplo, antes de internalizar as operações matemáticas, a criança passa em por uma fase em que precisa contar com os dedos. A linguagem egocêntrica nada mais é do que a operação externa, ou seja, um momento do desenvolvimento da linguagem. No desenvolvimento da linguagem, depois de sua fase pré-intelectual, ocorre a operação ingênua, seguida da linguagem egocêntrica e, por fim, a operação interna. Como exemplo de operação ingênua Vigotski cita o emprego pela criança das estruturas e formas gramaticais antes de compreender as estruturas e operações lógicas correspondentes a estas formas. A criança emprega palavras como “porque”, “quando”, “se”, antes de dominar as relações causais,
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    81 temporais eadversativas. O domínio da sintaxe da linguagem é anterior à sintaxe do pensamento. Apesar de haver o momento do desenvolvimento no qual pensamento e linguagem se unem, Vigotski não considera que obrigatoriamente o pensamento e a linguagem estão inter-relacionados no pensamento da pessoa adulta. Segundo Vigotski (1993), algumas zonas de pensamento, como o instrumental, o técnico e a inteligência prática, não guardam relação com o pensamento verbal. Além disso, o autor considera que a linguagem que tem uma função emocional-expressiva, não pode ser considerada uma atividade intelectual no sentido estrito do termo. Isto não significa que Vigotaki separa linguagem e pensamento de volição e afeto. Pra Vigotski, o afeto é um fator importante na relação entre pensamento e linguagem. Segundo o autor, a separação entre a parte intelectual e a parte afetiva e volitiva da consciência é um defeito que está contido na raiz da psicologia tradicional. Para o autor, quem separou o pensamento do afeto impossibilitou a explicação das causas do próprio pensamento, e inviabilizou o estudo da influência do pensamento sobre a parte afetiva da vida psíquica. Tanto o significado da palavra, quanto o desenvolvimento da linguagem, dependem sempre do contexto, da inserção da criança no meio histórico-cultural. A linguagem interna se desenvolve mediante transformações funcionais e estruturais. As estruturas da linguagem que a criança adquire na sua convivência com o meio convertem-se em estruturas fundamentais do seu pensamento. Por este motivo, é possível afirmar que o desenvolvimento da linguagem e do pensamento ocorre através da experiência sócio-cultural da criança. Embora o pensamento e a linguagem sejam dois processos distintos, no que se refere às suas raízes genéticas e, embora o desenvolvimento do pensamento seja anterior à linguagem, o pensamento da criança evolui em função do domínio dos meios sociais do pensamento, ou seja, em função da linguagem. Quanto à linguagem escrita, Vigotski considera que esta pressupõe, sempre, a existência da linguagem interior verbal. Por outro lado, a linguagem escrita provoca o aprimoramento da linguagem interior, assim como a fala egocêntrica provoca o aprimoramento do pensamento. Isto significa que, quando a criança fala sozinha em voz alta, ela melhora seu pensamento. É por este motivo que a fala egocêntrica ocorre mais frequentemente quando a criança está envolvida em um problema a ser resolvido. Quando sente necessidade de resolver um problema a criança recorre à fala egocêntrica porque esta a ajuda a organizar seu pensamento e chegar a uma solução. No entanto,
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    82 para haverlinguagem egocêntrica, é preciso já haver certa linguagem interior. A linguagem interior, como já vimos, evolui de uma fase pré-lingüística para uma fase lingüística na medida em que a criança se apropria dos elementos da cultura onde está inserida. Quase o mesmo ocorre com a escrita. Para que a criança possa escrever, precisa já ter desenvolvido certo pensamento verbal. Entretanto, na medida em que escreve, acaba por ampliar, por melhorar seu pensamento verbal. Nos seus primeiros escritos, a criança tende a transcrever o pensamento verbal, mas este não advém das formas de comunicação escrita, e sim das formas de comunicação oral. Ora, uma escrita que transcreve a oralidade pode tornar-se incompreensível para os interlocutores. Aos poucos a criança, seja por ler, seja por sentir-se impelida a comunicar-se através da escrita, sente necessidade de escrever de modo a ser compreendida pelo outro. Isto faz com que ela precise organizar sua escrita de modo a não reproduzir a oralidade. Afinal, o fato de a escrita referir-se a um interlocutor sempre ausente ou imaginário, - que não pode perguntar, intervir e de quem não se sabe quais os conhecimentos prévios sobre o que se quer comunicar -, exige uma organização minuciosa das idéias. Ou seja, a escrita exige muito mais organização das idéias do que a fala. Esta necessidade de organizar as idéias para poder escrever, leva a criança a organizar melhor o próprio pensamento. É neste sentido que Vigotski afirma: a sintaxe da linguagem interior é distinta da sintaxe da linguagem escrita, e o que sempre se encontra entre a escrita e a linguagem interior é a oralidade. Si el desarrollo del lenguaje exterior precede al interior, el lenguaje escrito aparece después del interior y presupone ya su existencia. El lenguaje escrito es, según Jackson y Head, la clave del lenguaje interior. Sin embargo, la transición del lenguaje interior al escrito exige lo que hemos denominado semántica voluntaria y que puede ser relacionada con la fonética voluntaria del lenguaje escrito. La gramática del pensamiento no coincide en en lenguaje interior y escrito, la sintaxis semántica del lenguaje interior es totalmente distinta de la lenguaje oral y escrito. En ella predominan unas leyes diferentes de estruturación del conjunto y de las unidades semánticas. En cierto sentido, cabe decir que la sintaxis del lenguaje interior es la contraposición directa de la sintaxis del lenguaje escrito. Entre estos dos polos se halla la sintaxis del lenguaje oral. (VIGOTSKI, 1993: 231)
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    83 Ao relacionara tese de Vigotski com o desenvolvimento da escrita, Smolka (1996) lembra que, na perspectiva de Vigotski, a fala egocêntrica tem o seu fim aproximado aos sete anos, período que coincide com o início da aprendizagem escolar da escrita. Como a escrita faz parte do discurso da sociedade letrada, acaba por se inter-relacionar com o discurso interior. Disto a autora infere a questão sobre como o contato com a escrita interfere na elaboração do discurso interior. Não poderíamos considerar que as primeiras tentativas infantis de produção da escrita, obscuras e desconhecidas dos adultos, vão se organizando, se explicitando se tornando textos para o outro, inclusive o “outro eu?”. E, nesse processo, não são inúmeras e variadas as possibilidades e os esquemas que as crianças desenvolvem para começar a ler e a escrever? Nesta perspectiva, além de dizermos que o discurso interior traz as marcas do discurso social, não poderíamos dizer que o discurso escrito, sobretudo na sua gênese, traz as marcas do discurso interior? (SMOLKA, 1996: 71) Smolka observou que, ao escreverem textos, as crianças, em início do processo de alfabetização, reproduzem a própria fala na escrita. Para fazer este estudo a autora criou, em salas de aula de alfabetização, situações pedagógicas nas quais era permitido que as crianças produzissem textos e interagissem verbalmente com colegas e professor durante o trabalho. Smolka observou que, quando a livre expressão é possibilitada às crianças, estas escrevem textos mais criativos, porém, organizados de modo a reproduzir as marcas da oralidade: aglutinações, omissões, elipses e abreviaturas. Smolka concluiu que a escola bloqueia a fala da criança justamente para evitar a reprodução da oralidade na escrita. Para a autora, a escola inibe a produção da escrita como processo discursivo e dialógico através da imposição um único modo de escrever. No entanto, embora a escola consiga bloquear a fala da criança, não consegue bloquear seu pensamento, seu discurso interior, o que se evidencia nas suas produções textuais. Ou seja, a criança não reproduz a fala na escrita porque a escola não permite a expressão oral, mas acaba por expressar o seu pensamento, que também tem marcas da oralidade. Por isso, os textos marcados pela interdiscursividade necessitam de uma avaliação que vá além da análise da ortografia ou gramática. É preciso analisar estes textos sob a ótica da circunstância da sua produção e dos aspectos da atividade mental e discursiva da criança.
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    84 De acordocom Smolka, a escola, com o intuito de evitar erros gramaticais, não permite que a criança expresse seus pensamentos através da escrita. A autora diz que há uma inter-relação entre escrita na fase inicial e discurso interior da criança. As crianças produzem textos marcados por abreviações, aglutinações e repetições, o que pode ser indicativo de que escrevem exatamente do jeito que pensam ou falam. Assim, quando escrevem o que pensam, as crianças acabam por produzir textos em desacordo com as normas gramaticais. Por medo deste tipo de produção, a escola evita que as crianças escrevam o que pensam, exigindo apenas a escrita de frases e palavras soltas. Que escrita é essa que a criança aprende na escola que faz com que ela “regrida” quando escreve o que pensa? Assim se comprova, mas uma vez, que a escola ensina as crianças a repetirem e reproduzirem palavras e frases feitas. A escola ensina palavras isoladas e frases sem sentido e não trabalha com as crianças, no ano escolar da alfabetização, o “fluir do significado”, a estruturação deliberada do discurso interior pela escritura. (SMOLKA, 1996: 69) O modo como a escola evita que as crianças escrevam em desacordo com as normas, acaba por frear a escrita significativa. A dialogia, presente no diálogo interno, se mostra na escrita da criança. Por este motivo, Smolka considera que as relações entre pensamento, oralidade e escrita devem ser mais trabalhadas no processo de alfabetização. 3.2. Relações entre fala e escrita nos três momentos do desenvolvimento da escrita Conforme já vimos, fala e pensamento são diferentes da escrita no seu modo de organização e estruturação. Se a escrita transcrever o pensamento e a fala, se apresentará repleta de lacunas, elipses e abreviaturas, tornando-se ininteligível para seu interlocutor. A criança, em início do processo de alfabetização, por não ter consciência das diferenças entre pensamento, fala e escrita, reproduz seu pensamento na escrita. Quando a criança entende as funções da escrita, percebe que não é possível escrever reproduzindo a fala e o pensamento. A partir desta interpretação da teoria sobre o desenvolvimento da escrita da psicologia histórico-cultural, revisitaremos os três momentos do processo de desenvolvimento da escrita, enfocando de que maneira, em cada um deles, a escrita se relaciona com a fala.
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    85 No capítuloanterior, foram apresentadas as quatro teses de Vigotski sobre o ensino da escrita: o ensino da escrita pode começar na educação infantil, com crianças de quatro anos, pois estas já têm potencial para compreender a função representativa; brincar, jogar e desenhar são atividades importantes para o processo de alfabetização; a escrita deve ser ensinada como uma função cultural complexa; a escrita deve ser ensinada como sendo algo necessário. Ao tratar das relações entre fala e escrita, estas teses serão revisitadas, com o sentido de compreender como se inserem nos três diferentes momentos de alfabetização observados na teoria de Vigotski. 3.2.1 Escrita como representação simbólica na pré-história da ontogênese A primeira tese de Vigotski acerca do desenvolvimento da escrita é que o seu ensino deve começar na educação infantil. Conquanto a criança saiba usar coisas para representar outras coisas, já tem condições para entender que pode desenhar a própria fala. Mas o autor não está querendo dizer com isto, que a criança deva ser iniciada na aprendizagem sistemática das relações entre letras e sons na tenra idade. Se afirmarmos isto, estaremos entrando em franca contradição com sua segunda tese, segundo a qual desenhar, jogar e representar são formas iniciais de escrita que colaboram para o processo de alfabetização. Mello (2005) defende uma concepção de educação infantil que vai ao encontro da afirmação acima. Segundo a autora, a educação infantil é base para a aquisição da escrita e para a aprendizagem de modo mais amplo quando valoriza atividades de criação e expressão, como a pintura, o faz-de-conta, a dança, a poesia e a fala. Mello critica as concepções de educação infantil que, ao invés de valorizarem as atividades significativas, o lúdico, o diálogo e a expressão artística, ocupam o tempo com atividades mecânicas de escolarização precoce. A autora mostra que a teoria de Vigotski não é uma defesa da escolarização precoce e aprendizagem mecânica da escrita, mas da educação infantil como espaço e tempo de atividades significativas. Vygotsky já fazia em seu tempo – década de 1920 – uma crítica que permanece atual aos processos de apresentação escolar da escrita para as crianças, inclusive aquelas em idade escolar. Ele dizia: “Ensinamos às crianças a traçar as letras e a formar palavras com elas, mas não ensinamos a linguagem escrita.” (VIGOTSY, 1995: 183).
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    86 Queria dizer,com isso, que, na forma como em geral apresentamos a escrita para a criança, o ensino do mecanismo prevalece sobre a utilização racional, funcional e social da escrita. Criticava o fato de que em seu tempo, e também ainda hoje, de maneira geral, o ensino da escrita se baseia em um conjunto de procedimentos artificiais (...) (MELLO, 2005: 25-6) Para Mello, a apropriação da escrita como linguagem requer mais tempo dedicado ao lúdico e à arte, meios de expressão que desenvolvem as formas superiores de comunicação humana. O desenho, a pintura e a arte são atividades que formam a base da alfabetização. Para formar crianças leitoras e produtoras de texto, é preciso levá-las a desenvolver o desejo de expressar-se por meio de todas estas linguagens. A necessidade de expressão surge da aprendizagem significativa e cooperativa. Na escola, isto requer uma interação entre professor e alunos que respeite as necessidades que a criança pequena tem de brincar, representar, imaginar, criar e conhecer o mundo. O ensino precoce e mecânico das letras faz com que a criança não compreenda a escrita como linguagem. Para Vigotski, os instrumentos culturais que o homem criou ao longo da história são assimilados pelas novas gerações, na medida em que se apresentam como úteis. Este é o caso da escrita, que deve ser apresentada à criança de modo a possibilitar realizar as atividades para as quais foi criada. (...) duas teses da teoria histórico-cultural contribuem para pensarmos sobre os procedimentos que levam à aquisição da escrita: a tese sobre como se dá o processo de conhecimento humano e a tese sobre os momentos mais adequados para a influência do professor no processo de desenvolvimento infantil. A primeira tese – acerca do processo de conhecimento humano-aponta que as novas gerações se apropriam dos instrumentos culturais criados pelos homens ao longo da história – como, por exemplo, a linguagem escrita – à medida que realizam com esses instrumentos as atividades para as quais esses foram criados. No caso da escrita, é necessário utilizá-la – considerando o fim social para o qual foi criada – para escrever ao registrar vivências, expressar sentimentos e emoções, comunicar-se. (MELLO, 2005: 29) Esta idéia da autora nos remete à filogênese da escrita. Nesta, as primeiras formas de escrita não representavam os sons da fala, mas os fatos e eventos, através de
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    87 desenhos. Asprimeiras escritas pictográficas foram criadas para servirem de registros mnemônicos. No entanto, a escrita evoluiu na filogênese até tornar-se o que é hoje: uma importante função cultural que permite a expressão de idéias, sentimentos e informações, através de um sistema de signos-símbolos. A escrita não é o único meio de expressão, o desenho, a arte e a fala também são formas de se expressar, mas o desenvolvimento da história da escrita a tornou um poderoso meio de interlocução, interação na cultura e expressão do pensamento. A escola precisa proporcionar oportunidades para a criança se expressar de maneiras diversas antes de se apropriar da escrita. No entanto, é preciso que estas atividades de expressão sejam significativas e estejam inseridas em contextos de interlocução. Como já vimos, algo só se torna um símbolo para a criança através da interação. As ações da criança tornam-se gestos representativos quando um outro lhes confere significado. A criança só passa a usar o jogo como meio de representação da realidade quando há um outro que lhe mostra esta realidade. O desenho só adquire significado de linguagem para a criança quando o outro lhe mostra que é possível usar o desenho para representar a fala. Tudo isso nos remete às relações entre pensamento, oralidade e escrita. A criança desenvolve o pensamento através da apropriação das significações produzidas na interação. As interações que levam a criança à compreensão da representação simbólica do gesto, do jogo e do desenho, constituem importante fator do desenvolvimento da escrita. No caso da escola, como esta é um lugar privilegiado para a aquisição da escrita, é preciso a intencionalidade pedagógica de levar à aquisição de diferentes formas de representação e expressão. No capítulo que tratará da análise do livro didático, será verificado se ele traz, em seus exercícios, atividades envolvendo gesto, desenho e jogo. Além disso, será observado se estas atividades são apresentadas pelo livro como formas de representação e como isso é feito. Quando ao gesto, será observado se o livro propõe atividades nas quais a criança o use como forma de representação e expressão. O desenho, conforme já nem sempre representa a linguagem. Para que isso ocorra é preciso uma mediação que mostre à criança que ela pode usar o desenho para comunicar algo. Por este motivo, será observado, no livro didático, se as atividades que envolvem desenho são apenas brincadeiras, ou se levam a criança a desenvolver um tipo de expressão da linguagem. Por sua vez, a análise do jogo recairá sobre os tipos de jogos propostos pelo livro (faz-de-conta, dramatizações, jogos com regras, jogos com propósito), tema desenvolvido no capítulo anterior. Além disso, será enfocado o modo como o livro
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    88 relaciona, nasatividades propostas e no texto para os professores, o jogo com o desenvolvimento da escrita. 3.2.2. Escrita como simbolismo de segunda ordem A terceira tese de Vigotski diz que mais importante que o ensino das letras é o ensino da escrita como linguagem. Uma importante questão para tratar quanto a este tópico é entender que, para ensinar a escrita como simbolismo de segunda ordem, é preciso, antes, levar a criança a significá-la como linguagem. A passagem da escrita de simbolismo de segunda ordem para simbolismo direto ocorre quando a criança deixa de se ater às relações entre letras e sons e passa a operar com a escrita como linguagem. Não encontramos na teoria de Vigotski uma sistematização sobre as implicações pedagógicas da teoria da psicologia histórico-cultural sobre o desenvolvimento da escrita. Smolka (1996) corrobora esta afirmação, ao objetar que Vigotski não explica bem como se dá a passagem da escrita como simbolismo de segunda ordem para simbolismo direto. Segundo Vigotski (1993), a estrutura da fala e da escrita são diferenciadas. Quando falamos, não decompomos a palavra em unidades menores como fazemos na escrita. A escrita exige um desmembramento da palavra em unidades menores, e a recriação de uma palavra sonora com letras isoladas. Disto decorre a fonética da linguagem escrita, que é arbitrária. Evidentemente, un lenguaje sin sonido real, que el niño se imagina y piensa, que exige la simbolización de los símbolos sonoros, es decir, una simbolización de segundo grado, deberá ser tan difícil con respcto al lenguaje oral como lo es para el niño el álgebra con respecto a la aritmética. (VIGOTSKI, 1993: 230) Ensinar a escrita como simbolismo de segunda ordem significa enfocar as relações entre unidades sonoras e unidades gráficas, ou seja, o traçado das letras, os seus sons e como elas se juntam para formar as palavras. Este ensino é necessário, o que está implícito na teoria de Vigotski, mas não deve anteceder e nem sobrepujar o ensino da escrita como linguagem, como meio de expressão. Para que a criança consiga desmembrar sua fala e reproduzi-la em forma de signos escritos, é preciso um esforço voluntário de sistematização da própria escrita levando em conta suas diferenças em relação à fala.
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    89 La investigacióndescubre además en qué consiste esa actitud diferente hacia la situación que se da en la lenguaje escrito. En éste, el niño ha de actuar voluntariamente, el lenguaje escrito es más voluntario que el oral. Ese es el leitmotiv de todo el lenguaje escrito. Ya la forma fónica de la palabra, que en el lenguaje oral se pronuncia automáticamente, sin desmembrarla en sonidos aislados, exige en la escritura una ordenación, una separación. El niño, al pronunciar cualquier palabra, no se da cuenta conscientemente de los sonidos que pronuncia y no realiza ninguna operación intencionada al pronunciar cada sonido aislado. En el lenguaje escrito, por el contrario, debe tomar conciencia de la estructura fónica de la palabra, desmembrarla y reproducirla voluntariamente en signos. (VIGOTSKI, 1993: 231) Assim, faz parte do processo de aquisição da escrita, no caso dos sistemas alfabéticos, este desmembramento das palavras em unidades mínimas de sons. Disto se infere que, para a psicologia histórico-cultural, o conhecimento do sistema gráfico é objeto de ensino da escrita. Em consonância com a psicologia histórico-cultural, Faraco (2003) mostra que o professor precisa, simultaneamente, conhecer o sistema gráfico e ensiná-lo, fazendo uso de elementos plenos de significação. Aqui vale refletir um pouco sobre o que significa conhecimento do sistema gráfico na perspectiva da psicologia histórico-cultural. A representação gráfica da língua portuguesa é alfabética. Significa que as unidades gráficas (letras) representam basicamente unidades sonoras (consoantes e vogais) e não palavras ou sílabas. Além disso, o sistema gráfico da língua portuguesa tem memória etimológica. Muitas palavras têm a origem, e não apenas as unidades sonoras, como critério de fixação de sua forma gráfica. Faraco cita como exemplo a palavra ‘homem’ grafada com ‘H’ inicial porque sua origem vem do latim. No passado, havia uma consoante antes do ‘o’ na palavra em latim ‘homo’, que originou ‘homem’. Outra característica do sistema gráfico é que ele não é uma representação fiel da fala. Uma palavra pode ser dita de muitas formas, variando conforme o dialeto do falante, mas a grafia é apenas uma. Dois fatores provocam relações arbitrárias na escrita: as mudanças que ocorreram na língua ao longo do tempo e as variações dialetais. Por exemplo, falamos /Ka.va.lu/ (cavalu), mas escrevemos ‘CAVALO’. Ninguém precisa mudar o jeito de falar para aprender a escrever. Ao invés disso, os
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    90 alunos precisamaprender que a relação direta entre unidade sonora e letra ajuda a escrever muitas palavras, mas certas escritas são arbitrárias, exigindo estratégias cognitivas ou memorização. Segundo Faraco, o sistema gráfico tem dois tipos de relações: as biunívocas e as cruzadas. As relações biunívocas ocorrem quando uma unidade sonora corresponde a apenas uma unidade gráfica que, por sua vez, só representa aquela unidade sonora. Por exemplo, a relação entre unidade sonora /p/ e a unidade gráfica ‘P’ é biunívoca. Algumas relações podem ser biunívocas para uns dialetos e não serem para outros. Por exemplo, o emprego do ‘L’ ou ‘R’ pode ser uma relação arbitrária em variações dialetais, nas quais o ‘L’ em final de palavra é suprimido ou substituído por ‘R’ retroflexo (o ‘R’ pronunciado igual às palavras em inglês, tipo ‘girl’). Ex: /ko.ro.nEȉ/ (coroner), ao invés de /ko.ro.nEw/. As relações cruzadas ocorrem quando uma unidade sonora pode ter mais de uma representação gráfica, ou quando uma unidade gráfica representa mais de uma unidade sonora. Como exemplo do primeiro caso, temos a unidade sonora /ã/, que pode ser representada pelas grafias ‘ã’, ‘am’ e ‘an’. Como exemplo do segundo caso, temos a letra ‘r’ que pode representar as unidades sonoras /R/ (rato) e /r/ (aranha). Várias relações cruzadas são previsíveis pelo contexto. Para o ensino destas relações, que podem ser chamadas de contextuais, é preciso conscientizar a criança quanto às regras usadas para grafar corretamente. Segundo Faraco, corrigir a fala do aluno nunca é uma estratégia adequada de alfabetização, pois leva à ilusão de que o sistema gráfico é uma representação fiel da fala e de que não existem relações arbitrárias entre unidades sonoras e grafias. A hipótese inicial do aluno é de que cada letra representa um som. Esta hipótese é parcialmente correta no que se refere ao sistema alfabético. No entanto, o aluno não pode permanecer nesta hipótese, de modo que precisa encontrar no professor um auxílio para superá-la. O professor precisa criar meios para que os alunos superem gradativamente os erros gráficos advindos da transferência das características da fala para a escrita. Para isso, é importante que trabalhe na alfabetização com elementos sempre repletos de significados. Em qualquer situação, o que o professor não deve esquecer é que ele é um construtor de andaimes que criam condições para que os alunos internalizem o novo saber. É preciso, portanto, trabalhar na alfabetização, sempre com elementos verbais plenos de
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    91 significados paraa criança e em meio a atividades significativas com a leitura e a escrita. Como nos mostra Vygotsky, a internalização de um saber qualquer é um processo ativo que emerge de formas de vida coletiva, de interação entre o aprendiz, seus pares e membros mais experientes de sua comunidade. (FARACO, 2003: 55) O autor nos remete aqui ao papel do professor na interação com o aluno. O professor precisa criar condições para que o ensino do sistema gráfico não seja mero treino mecânico, mas uma aprendizagem plena de construção de significados, desde o início. O aluno não precisa primeiro aprender o sistema gráfico para depois aprender o significado da escrita como função cultural. Não podemos esquecer que, para as crianças de educação infantil, o mais interessante são as atividades de expressão, que formam a base para a alfabetização. Apenas quando a criança já significou a escrita como algo importante, é viável o ensino mais sistemático das letras. Outra autora que problematiza esta relação entre oralidade e escrita é Lacerda (1993). Segundo a autora, a teoria de Vigotski ajuda a pensar importantes aspectos da relação entre oralidade e escritura. Para Lacerda, a concepção tradicional de alfabetização considera que um bom desempenho oral é pré-requisito para a alfabetização. Na prática que se desprende desta concepção, a criança é ensinada a articular as palavras de modo que a fala possa servir de apoio para a escrita. Crianças que não falam ou que têm dificuldade na oralidade são consideradas incapazes para a alfabetização. A autora lembra que, para Vigotski, a aprendizagem da escrita tem relação com o desenvolvimento das funções psíquicas superiores e dos signos na infância, de modo que não pode ser conquistada através de treino mecânico. Lacerda também corrobora a tese defendida no início deste capítulo. Para a autora, o desenvolvimento da escrita não pode ser descrito através de uma sucessão de eventos, pois é constituído de descontinuidades, evoluções e involuções. O desenvolvimento da escrita não ocorre de modo linear. Este é o motivo por que, durante o processo de aprendizagem da escrita, a criança suscita, às vezes, a impressão de atraso e retrocesso. Os retrocessos e atrasos ocorrem devido às características peculiares do processo de internalização6 do sistema de escrita. Lacerda significa a categoria ‘Internalização’, de Vigotski, como o momento no qual as estruturas da atividade que 6 Embora nesta dissertação se tenha optado pelo uso da palavra ‘apropriação’, dada sua significação mais próxima ao que se está aqui defendendo, Lacerda usa o termo ‘internalização’, o que justifica seu uso neste trecho.
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    92 são executadasem um plano externo, passam a ser executadas em um plano interno. Isto significa que os fenômenos sociais se transformam em fenômenos psicológicos, em um processo no qual os significados dos objetos e eventos são apreendidos pelo sujeito. Não são internalizadas as cópias dos objetos, mas sim as significações. A internalização ocorre através da linguagem e a significação é possível devido às operações com signos. O primeiro momento da internalização da escrita é a linguagem oral. Compreendida dessa forma, a linguagem oral é, num primeiro momento, o canal/elo de ligação entre a linguagem escrita e aquilo que ela pretende representar e, portanto, é pela própria linguagem oral que se dá a internalização de aspectos da aprendizagem da escrita. A linguagem oral serve como substrato para a construção da linguagem escrita, que mais tarde ganha autonomia como um sistema simbólico de primeira ordem, autônomo, podendo operar por si mesmo. A linguagem escrita, ao ser internalizada, bem como a linguagem oral, transforma-se para constituir o funcionamento interno. (LACERDA, 1993: 68) Para Lacerda, nem toda experiência de aprendizagem interfere de igual modo no desenvolvimento. As aprendizagens, os conhecimentos e as relações são incorporados em diferentes graus; o que se aprende através da oralidade pode interferir sobre a escrita e vice-versa. Embora o aspecto sonoro da escrita seja importante para seu processo de aprendizagem, a criança precisa superar a necessidade de recorrer às relações grafemas-fonemas para operar com a escrita como linguagem. Já vimos, no capítulo anterior, o quanto a leitura silenciosa ajuda neste processo, visto que faz com que a criança, gradativamente, pare de produzir sons a partir da escrita e passe a buscar o significado do texto. Assim, a análise do livro didático terá como objeto o modo como o livro trabalha as relações grafemas-fonemas nos exercícios e também a freqüência e qualidade das propostas de leitura silenciosa. Além disso, será enfocado o texto para os professores, com objetivo de avaliar a importância que o livro confere ao ensino do sistema gráfico da escrita. Entretanto, vamos antes enfocar o terceiro momento do desenvolvimento: a escrita como função cultural complexa.
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    93 3.2.3. Apropriaçãoda escrita como atividade cultural complexa Primeiro, cabe dizer que o tema analisado neste tópico é bastante delicado. Vigotski não desenvolveu uma teoria conclusiva sobre o que vem a ser escrita como atividade cultural complexa. Por este motivo, as conclusões deste tópico constituem uma interpretação possível da teoria de Vigotski. A terceira e a quarta tese de Vigotski sobre o processo de alfabetização são indícios que ajudam a compreender este momento. A terceira tese diz que a escrita deve ser ensinada como uma função cultural complexa. Por sua vez, a quarta tese diz que a escrita deve ser ensinada à criança como sendo algo necessário. Estas teses de Vigotski têm relação com a apropriação da escrita como atividade cultural complexa. A escrita é uma linguagem diferente, porém inter-relacionada com a fala. Apropriar-se da escrita como atividade cultural complexa é operar com suas funções sociais e usá-la como linguagem. Mas, antes de entender o que é operar com a escrita como linguagem, vamos traçar as diferenças e semelhanças entre escrita e fala, tanto no que se refere ao desenvolvimento de ambas, quanto às suas características. No que se refere ao desenvolvimento, Vigotski (1993) diz que a aprendizagem da escrita influi sobre o desenvolvimento da linguagem como um todo. No entanto, a fala e a escrita têm uma história diferente de desenvolvimento. Há uma defasagem entre desenvolvimento da fala e desenvolvimento da escrita. A criança adquire um bom desempenho verbal muito antes de apresentar um bom desempenho na escrita. O que explica esta defasagem não é a inferioridade da escrita em relação à fala, porque fala e escrita têm o mesmo vocabulário. Na verdade, a fala e o discurso interior são marcados por abreviaturas e omissões. A escrita, como se refere a um interlocutor ausente ou imaginário, precisa ser melhor explicada para ser compreendida pelo interlocutor7. A escrita não pode carregar as abreviaturas e omissões da fala. El lenguaje escrito es una función totalmente especial del lenguaje, que se diferencia del lenguaje oral no menos que el lenguaje 7 Smolka (1996) faz uma crítica a esta premissa de Vigotski. Para a autora, há circunstâncias nas quais a escrita não precisa ser explicativa. Embora as críticas à teoria de Vigotski não sejam objeto deste trabalho, vale lembrar que não parece ser preocupação de Vigotski o estudo das diversas circunstâncias da escrita, ou dos diversos tipos de textos. O que Vigotski estuda é o desenvolvimento da escrita pela criança, e não as circunstâncias de uso do texto. Neste enfoque faz sentido dizer que a escrita, por ser dirigida a um interlocutor ausente ou imaginário, exige maior elaboração intelectual que a fala. Por exemplo, uma lista de supermercado não é um texto que precisa ser explicativo. No entanto a preocupação de Vigotski é com o desenvolvimento da escrita como um todo, sendo que a capacidade de escrever com consciência sobre o interlocutor é o nível mais alto deste desenvolvimento.
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    94 interior sediferencia del exterior en cuanto a su estructura y a su modo de funcionamiento. Como muestra la investigación, el lenguaje escrito exige incluso para su desarrollo mínimo un alto grado de abstracción. Se trata de un lenguaje sin entonación, sin expresividad, sin nada de su aspecto sonoro. Es un lenguaje en el pensamiento, en las ideas, pero un lenguaje que carece del rasgo más importante del lenguaje oral: el del sonido material. (VIGOTSKI, 1993: 229) Ao explicar como a escrita organiza o pensamento, Vigotski afirma que esta exige mais consciência e intenção do que a fala. Além de ser formada por um sistema arbitrário de signos, a escrita é uma comunicação para um interlocutor ausente ou imaginário. Aprender a usar o sistema arbitrário de signos para comunicar-se com um interlocutor ausente ou imaginário, requer não só que a criança saiba como funciona o sistema de escrita, mas também que compreenda quais são suas funções sociais. Isto significa que, se o sistema de signos que forma a escrita é arbitrário, a criança precisa aprendê-lo tendo consciência das funções sociais da escrita. Para Vigotski, a escrita é uma operação mais intelectual do que a fala tanto porque exige maior esforço para expressar-se de modo a ser compreendido pelo outro, quanto porque obriga a tomar maior consciência quando à própria fala. De acordo com Vigotski (1993), se por um lado a aquisição da escrita é dificultada pela sua demanda de abstração e complexidade de composição, por outro lado seu uso constitui uma força que impulsiona o desenvolvimento da criança. O que orienta a linguagem escrita da criança é a consciência e a intenção. A criança precisa entender a escrita como uma função cultural complexa para saber com quais intenções usá-la. As funções psíquicas superiores de conscientização, abstração e intenção, exigidas pela escrita, acabam por fazer a criança agir de modo mais intelectual e, consequentemente, a ter mais consciência da fala. Estas funções psicológicas superiores, exigidas pela escrita, ainda não se desenvolveram quando a criança se inicia no processo de alfabetização, mas são desenvolvidas durante o processo. A escrita como linguagem se diferencia amplamente da fala e da fala interior. A escrita exige um acabamento superior ao acabamento da fala. Quando falamos, não precisamos detalhar como quando escrevemos. A fala interior é repleta de elipses e abreviaturas. A fala com o outro tem um interlocutor presente para ajudar na
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    95 composição dacomunicação. A escrita, sendo dirigida a um interlocutor ausente, exige construções mais elaboradas. Tratando das características que diferenciam a fala da escrita, Luria (1994) mostra que, enquanto na escrita, ou em uma palestra, é preciso partir da não compreensão do possível leitor ou ouvinte, a fala dialógica ocorre em uma situação na qual todos conhecem o conteúdo da linguagem. O falante não precisa retomar e explicar, pois seu ponto de partida é reconhecido previamente. As palavras proferidas em um diálogo são reconhecidas e compreendidas na medida em que os interlocutores participam a mesma situação. Por este motivo, um diálogo coloquial pode apresentar elipses e omissões sem prejuízo da compreensão dos interlocutores. Existem formas de linguagem falada que têm a peculiaridade de não poderem contar com o conhecimento prévio do interlocutor, não podendo conter elipses e abreviaturas, embora dispondo dos recursos extralingüísticos da fala. Este tipo de linguagem é a utilizada em palestras, dramatizações e narrativas. A linguagem escrita, na maioria de suas manifestações, requer mais rigor e precisão do que a fala. Quando a escrita é motivada pelos conhecimentos prévios do interlocutor, ou é uma resposta a outro enunciado, é preciso fazer uso da memória e colocar as idéias precedentes em uma relação lógica. A escrita de um enunciado pode assumir características bastante complexas quando o que se deseja comunicar é uma idéia nova. Neste caso, a idéia geral deve ser recodificada num complexo programa semântico de enunciado amplo. Os elementos desse programa precisam ser colocados em uma ordem estabelecida. Para escrever é preciso fazer uso de meios externos (anotações precedentes) e meios internos (recordação, seqüenciação do pensamento). A linguagem escrita não pode apoiar-se sobre meios extralingüísticos. A entonação é parcialmente substituída pela pontuação. Deste modo, a linguagem escrita vê-se forçada a apoiar-se em um sistema de códigos lógico-gramaticais. Para Luria, este exercício de codificação e decodificação de enunciados, acaba por organizar a atividade intelectual do sujeito. No entanto as linguagens falada e escrita têm outra importante função: são um meio de retoque do pensamento e desempenham importante papel no aprimoramento da atividade propriamente intelectual do sujeito. (LURIA, 1994: 72)
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    96 As consideraçõesde Luria sobre as diferenças entre fala e escrita, mostram o quanto a escrita não pode ser uma reprodução fiel da fala. A este respeito Eglê Franchi, no livro E as crianças eram difíceis... A redação na escola (1998) relata uma experiência pedagógica em uma turma de terceira série do ensino fundamental. A autora passou alguns meses trabalhando escrita de textos com crianças consideradas difíceis por terem uma história de fracasso escolar. Ao escreverem suas redações, as crianças reproduziam fielmente a própria fala, apresentando dificuldade na pontuação, que era substituída por repetição de palavras ou por emprego de conectivos, como ‘que’, ‘daí’, ‘então’. De acordo com Franchi (1998) este tipo de texto estereotipado pode ter sua origem no jeito que os adultos falam com as crianças, nas histórias que são produzidas para o público infantil e nos próprios livros didáticos. A autora cita Possenti, que analisou como o adulto usa uma linguagem estereotipada e infantilizada para se comunicar com a criança e garantir sua compreensão. O adulto repete palavras e evita o uso de anafóricos por acreditar que a criança não tem capacidade de compreender um texto ou uma idéia mais esquemática. Ao longo do seu trabalho, a autora mostrou que, para as crianças desenvolverem a linguagem escrita, precisam desenvolver a linguagem em um sentido mais amplo. A escola precisa ensinar as diferenças entre fala e escrita, não no sentido da criança falar corretamente para escrever corretamente, mas no sentido de refletir sobre as diferenças entre fala culta e fala coloquial e os diferentes tipos de registros escritos. Para isso, faz-se importante que o ensino e a aprendizagem ocorram em meio a interações colaborativas entre professores e alunos e atividades significativas. A autora fez uma crítica aos métodos que ensinam a escrita punindo os erros dos alunos, ao invés de fazer uma avaliação séria e aprofundada das suas razões. No entanto, se o professor não entender as diferenças entre fala e escrita e entre fala coloquial e culta, não terá como avaliar a aprendizagem dos alunos. O mais importante aspecto do livro de Franchi, e que vai ao encontro da psicologia histórico-cultural, é a relação estabelecida entre escrita e interação social em um sentido mais amplo. Para fazer as crianças refletirem sobre a própria escrita, a autora/professora também as ajudou a refletir sobre as interações estabelecidas com colegas, amigos, familiares e membros da escola. Para fazer as crianças abstraírem as características da escrita, é preciso fazê-las refletir sobre a linguagem de maneira mais ampla.
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    97 Mas háoutro aspecto importante da linguagem para o qual Vygotsky chama a atenção. A linguagem, os sistemas de referência que constitui para a possibilidade de comunicação, não são somente o resultado de um trabalho social, uma herança que se adquire passivamente; a aquisição da linguagem e seu desenvolvimento somente se conseguem em ambientes de rica interação social. (...) (FRANCHI, 1998: 49). Diante da complexidade da escrita em relação à fala, faz-se necessária a aprendizagem em um contexto que suscite não só a necessidade de escrever, mas também de adaptar os registros escritos aos diferentes contextos. Ou seja, para a criança entender como pode redigir ou compreender um determinado texto, é preciso que este seja significado como algo importante. Segundo Vigotski, é preciso que a necessidade de escrever esteja madura para que a criança se alfabetize. La investigación nos lleva seguidamente a la conclusión de que los motivos que impulsan a recurrir al lenguaje escrito no están todavía al alcance del niño que comienza a aprender a escribir. Sin embargo, la motivación del lenguaje, su necesidad, al igual que en cualquier nuevo aspecto de actividad, se halla siempre al comienzo del desarrollo de esa actividad. De la historia de la evolución del lenguaje oral nos resulta bien conocido que la necesidad de comunicación verbal se desarrolla en el transcurso de toda la edad infantil y constituye una de las premisas más importantes de la aparición de la primera palabra con sentido. Si esa necesidad no ha madurado, se observa un retraso en el desarrollo del lenguaje. Pero al principio de la instrucción escolar, la necesidad del lenguaje escrito está totalmente inmadura. Se puede decir incluso, basándose en los datos de la investigación, que el escolar que comienza a escribir no sólo no experimenta la necesidad de esa nueva función del lenguaje, sino que se representa de una manera muy confusa para qué necesita esa función. (VIGOTSKI, 1993: 230) Vigotski, por um lado, leva a entender que a escrita precisa ser ensinada como necessidade. Por outro lado, deixa claro que quando a criança começa a aprender a escrever na escola ainda não tem consciência da necessidade da escrita, o que pode gerar atraso no desenvolvimento desta forma de linguagem. Estas duas premissas do
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    98 autor levama deduzir que a escola, ao mesmo tempo em que ensina o sistema formal de escrita, pode ensinar as funções da escrita na nossa sociedade. Várias formas de abordar o texto podem ser usadas pela escola de modo a demonstrar a escrita como necessidade. Por exemplo, um texto científico pode ser trabalhado pela escola de modo a responder às curiosidades da criança sobre o mundo. Os textos artísticos podem ser apresentados para a criança com o objetivo de levá-la ao prazer estético. Demais registros escritos, como carta, bula de remédio, receitas culinárias, sinopses de filme etc, podem ser trabalhados pela escola de modo a fazer a criança vivenciar situações reais de uso da escrita. Ao investigar o momento da escrita como função cultural complexa no livro didático, haverá dois objetos de análise: a escrita como necessidade e as diferenças entre fala e escrita. Na escrita como necessidade, será observado se o livro apresenta a escrita em contextos nas quais ela é necessária para a realização de atividades culturais significativas para a criança. Nas diferenças entre fala e escrita, serão objetos de análise tanto o texto para os professores, quanto os exercícios. O enfoque recairá sobre as reflexões das diferenças entre fala e escrita que o livro propõe aos professores e aos alunos. Vejamos, agora, uma conclusão mais geral sobre os diferentes momentos do desenvolvimento da escrita. 3.3. Conclusões sobre as relações entre pensamento, fala e escrita Enfocar a oralidade como elo intermediário entre todas as formas de representação simbólica, pressupõe quatro tipos de relações no processo de ensino e aprendizagem da escrita. A primeira relação diz respeito à aprendizagem da escrita como simbolismo de segunda ordem. A criança precisa saber as relações entre letras e sons, precisa pensar nos sons das letras para poder escrever. A segunda relação refere-se às peculiaridades da escrita e suas diferenças em relação à fala. Não falamos do jeito que escrevemos apenas porque as relações entre letras e sons são cruzadas. Falamos de um jeito e escrevemos de outro porque na escrita o interlocutor é ausente e imaginário. Para que a escrita seja compreendida, é preciso maior preocupação do escritor com a compreensão do outro. Além disso, enquanto na fala podemos usar gestos, entonações e expressões para sermos compreendidos, na escrita a pontuação e a organização das idéias são os únicos recursos disponíveis.
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    99 Também asformas de comunicação da escrita e da fala são diferenciadas. Se a escrita for uma transcrição da fala, a conseqüência é o não entendimento do interlocutor. Em uma perspectiva histórico-cultural, é preciso que a escola proporcione informações para a criança acerca das principais diferenças entre fala e escrita. A terceira relação diz respeito ao significado dos símbolos. Se não há um outro que ajude a criança a produzir linguagem a partir do desenho e da escrita, dificilmente haverá compreensão de que existem outras formas de expressão além da fala. A criança precisa ser estimulada, desde a educação infantil, a expressar sua fala e pensamento através de vários meios de representação, pois isto a ajudará a entender a escrita como um meio necessário de expressão. É com o sentido de desenvolver várias formas de expressão que o ensino da escrita começa na educação infantil. A quarta relação refere-se aos elos entre pensamento, oralidade e escrita. Embora a criança precise já ter desenvolvido certo pensamento verbal para poder escrever, a escrita ajuda a aprimorar o pensamento verbal. Com isto, podemos concluir que a ontogênese da escrita é resultado de um grande esforço. Resumidamente, as dificuldades da aquisição da escrita são cinco. A primeira dificuldade é a compreensão de que coisas podem ser usadas para representar outras coisas. A segunda dificuldade é compreender o sistema arbitrário das relações grafemas-fonemas. Disto decorre a terceira dificuldade, que é a necessidade suscitada pela escrita de realizar a abstração do aspecto sensorial da fala, ou seja, fazer uma análise mais acurada e sistemática dos sons das palavras, ao invés de comunicá-las espontaneamente. A quarta dificuldade do desenvolvimento da escrita é o fato de ela ser dirigida a um interlocutor ausente ou imaginário. Nem sempre a criança, ao ser iniciada na aprendizagem da escrita, tem noção de que esta é uma espécie de linguagem necessária na nossa cultura. Disto decorre a quinta dificuldade: compreender a escrita como uma função cultural complexa. Em outras palavras, entender a necessidade da escrita. A alfabetização é um processo difícil porque a linguagem escrita se diferencia amplamente da fala e da fala interior. A escrita exige um acabamento superior ao acabamento da fala. Quando falamos, não precisamos detalhar como quando escrevemos. Disto decorre que a escrita exige análise sistemática e atenção voluntária. La transición del lenguaje interior, reducido al máximo, del lenguaje para uno mismo al lenguaje escrito, desarrollado al máximo, el lenguaje para otra persona exige del niño
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    100 complicadísimas operacionesde construcción voluntaria del tejido semántico. (VIGOTSKI, 1993: 232) Mas, se por um lado, a aquisição da escrita é dificultada pela sua demanda de abstração e complexidade de composição, por outro lado, seu uso constitui uma força que impulsiona o desenvolvimento da criança. O que orienta a linguagem escrita da criança é a consciência e a intenção. A criança precisa entender a escrita como uma função cultural complexa para saber com quais intenções usá-la. Além disso, precisa conscientizar-se quanto à estrutura complexa e diferenciada da escrita. Por este motivo, a maneira como os signos são empregados na escrita são assimilados pela criança de modo arbitrário e consciente. As funções psicológicas superiores exigidas pela escrita ainda não se desenvolveram quando a criança se inicia no processo de alfabetização, mas são desenvolvidas durante o processo. Resumiendo esta breve exposición de los resultados de las investigaciones sobre la psicología del lenguaje escrito, podemos decir que es un proceso totalmente diferente del lenguaje oral, desde el punto de vista de la naturaleza psíquica de las funciones que lo integran. Es el álgebra del lenguaje, la forma más difícil y complicada de la actividad verbal intencionada y consciente. Esta premisa nos permite llegar a dos conclusiones: 1) encontramos en ella la explicación de por qué se manifiesta en el escolar tan patente separación entre su lenguaje oral y su lenguaje escrito; esta separación está determinada y medida por la separación entre los niveles de desarrollo de la actividad espontánea, involuntaria y no consciente por un lado y la actividad abstracta, voluntaria y consciente, por otro; 2) al inicio del aprendizaje del lenguaje escrito, todas las funciones psíquicas que lo fundamentan no sólo no están completas, sino que ni siquiera han iniciado su verdadero proceso de desarrollo. El aprendizaje se apoya en procesos psíquicos inmaduros, que sólo se hallan al comienzo de su primer y principal ciclo de desarrollo. (VIGOTSKI, 1993: 232-3) Apesar de todas as dificuldades para o desenvolvimento da escrita, a escola não precisa esperar que a criança atinja certo nível de desenvolvimento para aprender a escrever. No entanto, também não se pode esperar que o ensino proporcione o desenvolvimento, acompanhando-o como uma sombra. Segundo Vigotski, o
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    101 desenvolvimento temuma lógica própria, não se subordina ao programa escolar, embora a aprendizagem sempre se adiante ao desenvolvimento. O que ocorre é uma interação entre as matérias escolares e o desenvolvimento da criança. Por um lado, existe um processo de ensino que tem sua lógica e sua seqüência. Por outro lado, temos, no interior da cabeça do aluno, uma lógica própria de desenvolvimento. A aprendizagem e o desenvolvimento na escola apresentam a mesma relação que a zona de desenvolvimento próximo e o nível de desenvolvimento real. Na aprendizagem infantil só é bom o que se adianta ao desenvolvimento da criança. Por outro lado, só se pode ensinar para a criança aquilo que está dentro de suas possibilidades. A partir da teoria da psicologia histórico-cultural sobre o desenvolvimento da escrita, é possível inferir implicações pedagógicas. Para desenvolver a escrita como simbolização, a escola precisa proporcionar atividades de expressão, desenho, jogo, dramatização e arte. Para desenvolver a escrita como simbolismo de segunda ordem, precisa ensinar o sistema gráfico e propor atividades de leitura silenciosa. Para desenvolver a escrita como simbolismo direto, precisa fazer atividades de reflexão sobre as diferenças entre fala e escrita. No bojo de todas estas atividades deve estar o ensino da escrita como uma linguagem necessária. Afinal, atividade, para a psicologia histórico-cultural, é quando há diferenciação entre objeto e motivo, ou seja, quando o homem faz algo sabendo por que faz, tendo consciência das necessidades que suscitam as ações humanas. Nisto cabe perguntar: será que o livro didático propõe atividades nos termos da psicologia histórico-cultural? Será que significa a escrita como algo importante na nossa cultura? Que finalidades o livro didático confere à escrita? Á luz das etapas do desenvolvimento da escrita e de suas possíveis implicações pedagógicas procederemos, no próximo capítulo, à análise do livro didático.
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    102 4. ESCOLHADO LIVRO DIDÁTICO E CRITÉRIOS DE ANÁLISE Para cumprir com os objetivos propostos neste trabalho, a escolha do livro didático precisou atender aos seguintes critérios: citar categorias de Vigotski acerca do desenvolvimento da escrita nos textos aos professores; constar no referencial teórico pelo menos dois livros importantes de Vigotski, além de livros de Smolka e Oliveira, autoras que escreveram sobre alfabetização e escrita segundo a perspectiva da psicologia histórico-cultural; apresentar atividades destinadas à alfabetização que indicassem alguma apropriação da teoria do autor; bom índice de aceitação pelas escolas; avaliação favorável no Guia do Programa Nacional do Livro Didático. As duas últimas condições se justificam porque investigar um livro didático que seja aceito pelo MEC e distribuído nas escolas torna os resultados desta pesquisa mais relevantes para a reflexão sobre a prática escolar. Para entender melhor como funciona a escolha dos livros didáticos pelas escolas, vejamos o que é e como funciona o PNLD. Este programa do Ministério da Educação foi implementado no ano de 1985 e passou a garantir a distribuição de livros didáticos nas escolas públicas para todos os estudantes dos anos iniciais do ensino fundamental. O PNLD é desenvolvido pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e pela Secretaria de Educação Fundamental (SEF), órgãos ligados ao Ministério da Educação. A finalidade do PNLD é avaliar, adquirir e distribuir gratuitamente livros didáticos para o ensino fundamental público brasileiro. Do primeiro ao quarto ano do ensino fundamental, são distribuídos livros de Alfabetização, Ciências, História, Geografia, Matemática e Português. De acordo com Batista e Val (2004), em 1996 os livros didáticos passaram a ser submetidos à avaliação prévia. Esta avaliação é de natureza conceitual (as obras não devem conter erros) e política (devem ser isentas de preconceito, discriminação, estereótipos e proselitismo político e religioso). Os livros devem apresentar qualidade metodológica, entendida como emprego de diferentes estratégias de ensino e aprendizagem e coerência entre a metodologia indicada no texto de assessoria aos professores e os exercícios e práticas propostos aos alunos. No que se refere às atividades aos alunos, estas devem ser diversificadas, possibilitando a observação, análise, elaboração de hipóteses e memorização. A avaliação vem sendo realizada com a coordenação de docentes universitários e com a supervisão da SEF. Os livros recebem distinção de acordo com a avaliação da qualidade. Com base nesta avaliação, a SEF
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    103 organiza o‘Guia de Livros Didáticos’. Este guia é distribuído para as escolas usarem como apoio na escolha de seus livros. 4.1. Metodologia empregada para escolha do livro didático Para cumprir com todos os critérios da pesquisa e escolher apenas um livro, foi preciso definir as prioridades da pesquisa e, a partir delas, fazer uma gradação de passos para escolha. Assim, os procedimentos foram os seguintes: 1º - Leitura do guia do PNLD de 2007 – Alfabetização. O guia mostra que, a partir da avaliação dos livros didáticos, estes foram classificados em três blocos: livros que abordam de forma desigual os diferentes componentes da alfabetização e do letramento; livros que abordam de forma equilibrada os diferentes componentes da alfabetização e do letramento8; e livros que privilegiam a abordagem da apropriação do sistema de escrita. A partir da leitura do guia, foi verificado que os livros classificados no segundo bloco foram melhor avaliados pelo MEC, preenchendo maior número de requisitos como: trabalho com projetos, produção de textos, ensino do sistema de escrita e proposta de leituras. 2º - Leitura das resenhas dos livros do segundo bloco do PNLD 2007. A partir desta leitura, foram selecionados os livros que apresentavam uma proposta interacionista, sociointeracionista ou histórico-cultural. Foram identificados sete livros neste enfoque. 3º - Leitura do Guia do PNLD de 2004 – Alfabetização, para identificar a presença de um dos sete livros pré-selecionados a partir do guia de 2007. Conforme já foi explicitado, foi priorizada a escolha de um livro que fizesse parte do PNLD de 2004 e 2007, pois a repetição em dois guias seguidos pode indicar que o livro teve boa aceitação nas escolas. Após esta terceira etapa, sobraram quatro livros dos sete pré-selecionados. 4º - Foi feita a análise do exemplar para o professor de cada um dos quatro livros didáticos selecionados da leitura dos Guias do PNLD de 2004 e 2007. Foram selecionados os livros que apresentaram, nos textos aos professores, referências explícitas às categorias da teoria de Vigotski acerca do desenvolvimento da escrita. 8 Para o Guia do PNLD, abordar de modo equilibrado os diferentes componentes da alfabetização e do letramento significa incorporar práticas de leitura, oralidade e produção de textos ao aprendizado das relações grafemas-fonemas. Embora o Guia do PNLD faça uma distinção entre alfabetização e letramento, esta não está explicitada em seu texto. Entretanto, a distinção entre alfabetização e letramento não é objeto deste estudo, e nem constitui uma análise importante para sua compreensão.
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    104 Após, foiverificado se constavam, na bibliografia do livro didático, pelo menos dois livros de Vigotski, além de livros de Smolka e Oliveira, autoras que estudaram a concepção histórico-cultural de alfabetização. Nesta etapa restaram dois livros didáticos. 5º - Foi feita a análise dos exercícios propostos nos dois livros didáticos. Foi priorizado o livro que apresentou mais atividades envolvendo gesto, desenho e jogo e situações reais de uso da escrita. Importa salientar que, tanto na leitura do Guias do PNLD, quando na análise dos livros didáticos, não foi encontrado um livro que apresentasse uma proposta unicamente pautada na psicologia histórico-cultural. A partir destes critérios, foi escolhido o livro de alfabetização da coleção ‘Trocando Idéias. Alfabetização e Projetos’, de Mércia Maria Silva Procópio e Jane Maria Araújo Passos. Este livro, segundo o Guia do PNLD 2007, é o único organizado por projetos de trabalho9. 4.2. Descrição do livro didático selecionado As autoras do livro didático escolhido são Mércia Maria Silva Procópio e Jane Maria Aparecida Passos. Procópio é pedagoga pela Universidade Estadual de Montes Claros, Minas Gerais, pós-graduada em Especialização do Pedagogo. A autora, que estuda alfabetização e aprendizagem desde 1987, atua como consultora em Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio e é organizadora de cursos para formação de professores da Educação Básica. Passos é pedagoga pela mesma universidade e pós-graduada em Psicopedagogia. Já atuou como professora, psicopedagoga e supervisora escolar. Atualmente é tutora do Projeto Veredas, da Secretaria do Estado de Educação de Minas Gerais, pela Universidade Federal de Juiz de Fora, e professora de Psicologia da Educação na Faculdade do Vale do Gorutuba de Nova Porteirinha. O livro ‘Trocando idéias’ é definido pelo Guia Nacional do Livro Didático de 2007 como o único que apresenta uma proposta por projetos de trabalho. São sete os projetos: “Todo mundo tem um nome”, “Histórias em quadrinhos, gibis e outros 9 De acordo com Hernández (1998), projeto de trabalho é uma metodologia pedagógica na qual o processo de ensino e aprendizagem decorre de uma situação-problema negociada com o aprendiz. Esta situação pode ser uma dúvida, um questionamento, uma curiosidade ou necessidade de confeccionar algo. A busca de solução ao problema proposto inicia com a investigação dos conhecimentos prévios do aluno para levantar questionamentos e planejar a busca conjunta de informações. Embora o livro didático analisado se proponha a apresentar uma organização por projetos de trabalho, este não constitui o tema desta dissertação.
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    105 “bichos””, “Quemconta um conto aumenta um ponto”, “É junho, pessoal!”, “Folclore”, “Plantas e bichos” e “Histórias de vida”. No texto para os professores são apresentados as justificativas e o desenvolvimento de cada projeto proposto. Dentro de cada projeto, são propostas oficinas para trabalhar a oralidade, a escrita, o jogo e a avaliação. As atividades propostas pelos projetos são divididas nas seguintes oficinas: oficina de idéias, oficina de linguagem oral, oficina de linguagem escrita, oficina divertida e roda de avaliação. Na “Oficina de idéias” são propostas questões iniciais para professor e alunos planejarem o projeto. Por exemplo, no projeto “Todo mundo tem um nome” o livro coloca a seguinte questão: “O que você gostaria de estudar no projeto todo mundo tem um nome?” (PROCÓPIO & PASSOS, 2006). Interessante observar que as questões colocadas pelo livro quase sempre se referem ao que o aluno gosta ou não gosta, não explorando de fato seus conhecimentos prévios ou trazendo questões instigantes que levem ao debate e formulação de hipóteses. Apenas no projeto “Histórias de vida”, há maior exploração dos conhecimentos prévios do aluno, quando o livro questiona o que os alunos pensam sobre preconceito e quais seus sonhos para o Brasil. Na “Oficina de linguagem oral” não constam sugestões de temas a serem debatidos entre alunos e professor, tampouco questões instigantes e polêmicas. Em poucas atividades os conhecimentos científicos são colocados como temas de debate, embora o livro proponha o estudo dos animais e das plantas. Neste capítulo, único sobre conhecimento científico, a oficina de linguagem oral limita-se à decisão em grupo sobre como será feito um relatório de observação de animais. As oficinas, em geral, referem-se mais à realização de atividades a partir da instrução do professor, ou brincadeiras e jogos nas quais a criança precisa representar ou ler em voz alta. São atividades que permitem a expressão oral. Na ‘Oficina de Escrita’ são propostas leituras e produções de texto. São poucas as propostas de produção de textos. Os tipos de textos que o livro apresenta são: convite, letra de música, história, história em quadrinhos, poemas, relato de opiniões, texto informativo, cartaz, receita culinária, instrução de jogo, biografia e autobiografia. São colocadas questões sobre as diferenças entre um tipo de texto e outro. A “Oficina divertida” apresenta sugestões de jogos, brincadeiras e atividades artísticas. Neste ponto, o livro propõe algumas brincadeiras interessantes, que serão analisadas mais adiante.
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    106 A oficina“Roda de Avaliação” é o momento no qual o livro propõe questões para o aluno avaliar sua participação no projeto. Desde as primeiras páginas, o livro apresenta textos grandes e, em algumas atividades, sugere que o professor leia em voz alta, demonstrando referir-se a um aluno que ainda não domina o código escrito. Nota-se, nos projetos propostos no livro didático, uma ausência de questionamentos iniciais para introduzir conceitos científicos a partir dos conhecimentos prévios do aluno. São feitas propostas para o estudo das plantas e dos animais através de textos retirados de enciclopédia e poesias. A extinção dos animais é referida através de um poema, que não trata nem das causas e nem das conseqüências deste problema ambiental. O livro traz muitas imagens, fotos, desenhos e espaços para o aluno escrever, desenhar e recortar. Propõe leitura de imagens, principalmente de obra de artistas famosos. Este aspecto será objeto da análise realizada no próximo capítulo. O livro não apresenta nenhum tipo de preconceito religioso, racial ou de gênero. Utiliza sempre o gênero masculino e feminino. Por exemplo, ao fazer alusão ao professor, refere-se “professor e professora”. Quanto à linguagem empregada, a interlocução do livro é com o aluno. Ao se dirigir ao aluno o livro diz o que o professor deve fazer, como fica exemplificado neste trecho: “Para iniciar o estudo sobre nomes, você, seus colegas e seu professor ou sua professora irão organizar uma roda para começar a conversa.” (PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 11). Neste modo de o livro comunicar-se com o professor, se evidencia uma concepção pedagógica centrada no aluno. No texto para o professor, intitulado pelo livro como ‘assessoria pedagógica’, a interlocução é com um leitor ausente. O texto de assessoria pedagógica não faz uma interlocução com o professor porque se dirige a este na terceira pessoa. Apenas no último tópico do texto, o livro se dirige ao professor, ao oferecer trinta e três sugestões complementares ao livro didático de alfabetização. Neste tópico, o livro utiliza o modo imperativo, como no seguinte trecho: “Desenvolva trabalhos em grupos cooperativos para possibilitar as trocas entre as crianças”. (PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 26) O livro traz um texto de assessoria pedagógica que orienta o professor quanto às concepções teóricas que fundamentam a proposta. A seqüência de atividades, sugerida pelo livro, demonstra certa concepção de desenvolvimento da escrita pela criança. Nas primeiras atividades, o livro apresenta
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    107 fotos decrianças em diferentes idades e, ao lado, suas escritas, sendo que algumas demonstram o não domínio do sistema gráfico. Após as fotos, o aluno é encorajado a escrever, do seu jeito, o que é para ele ler e escrever. A seguir é apresentada a foto de uma inscrição feita em rocha por um povo primitivo e um pequeno texto que fala que a escrita não foi sempre do jeito que é hoje. A atividade seguinte é o projeto “Todo mundo tem um nome”, que traz várias atividades envolvendo a escrita do nome próprio. O livro finaliza com três páginas pautadas em branco, lugar reservado para o professor fazer suas anotações. 4.3. As categorias de análise Para abordar o livro didático, foi enfocado tanto o texto para os professores, quanto as atividades propostas. Ambos foram analisados em conjunto e inter-relação, conforme ficará claro na explicitação da metodologia utilizada. Para analisar a apropriação da teoria de Vigotski pelo livro de alfabetização, foram enfocadas as categorias de Vigotski que se encontram presentes, tanto nos exercícios propostos, quanto no texto para os professores. Estas categorias são relacionadas com a teoria de Vigotski acerca do desenvolvimento da escrita. Por isso, o objeto da análise foram os três momentos do desenvolvimento da escrita na psicologia histórico-cultural: representação simbólica na pré-história da ontogênese, aprendizagem da escrita como simbolismo de segunda ordem, escrita como função cultural complexa. Além dos momentos do desenvolvimento da escrita, seus fatores também constituíram objeto da análise. Os fatores são os elementos que, segundo Luria e Vigotski, levam a criança ao desenvolvimento da escrita. 4.3. Metodologia empregada para análise do livro didático Para cada momento do desenvolvimento da escrita, a princípio, foram selecionados seus fatores enquanto possíveis categorias de análise. As categorias foram numeradas do seguinte modo: 1 - Conceito de desenvolvimento da escrita; 2 - Gesto; 3 - Desenho; 4 - Jogo; 5 - Oralidade; 6 - Diferenças entre linguagem formal e informal; 7 - Interação; 8 - Leitura silenciosa; 9 - Subordinação do ensino das letras à necessidade da escrita; 10 - Exploração do aspecto sonoro da escrita; 11 - Valorização dos conhecimentos prévios do aluno; 12 - diferenças entre fala e escrita; 13 - Ensino de conceitos científicos; 14 - Tipos de textos; 15 - Produção de textos; 16 – Apropriação; 17 – Mediação; 18 - Conceito de escrita.
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    108 Foi feitauma leitura detalhada do livro didático, tanto dos exercícios propostos aos alunos, quando do texto de assessoria pedagógica. Durante a leitura, foram assinalados, ao lado de cada exercício ou trecho do texto de assessoria pedagógica, os números correspondentes às categorias ali observadas. A escolha de algumas categorias foi feita antes da leitura do livro didático, enquanto outras foram criadas a partir da leitura. Interessante salientar que em uma passagem do livro podiam ser observadas, algumas vezes, mais de uma categoria. Assim, por exemplo, em um exercício do livro no qual era solicitado que os alunos produzissem uma história em quadrinhos, foram assinalados os números 3, 14 e 15, correspondentes, respectivamente, às categorias: desenho, tipos de textos e produção de textos. Por fim, foi feita uma interpretação de como as categorias do desenvolvimento da escrita aparecem no livro didático, analisando sua possibilidade de apropriação pelo mesmo, bem como a coerência com a teoria de Vigotski. As 18 categorias iniciais foram reagrupadas no momento da análise interpretativa do modo como o livro didático se apropria da teoria de Vigotski. Este reagrupamento foi necessário porque algumas categorias iniciais puderam ser consideradas em conjunto, caso, por exemplo, das categorias apropriação, mediação e interação. Eis, abaixo, como ficaram agrupados os fatores do desenvolvimento da escrita ao final da análise interpretativa do livro didático: Categorias transversais a todos os momentos Mediação e conceito de escrita. Representação simbólica na pré-história da ontogênese Gesto, desenho, jogo. Escrita como simbolismo de segunda ordem Exploração do aspecto sonoro da escrita e leitura silenciosa e oral. Escrita como função cultural complexa Escrita como necessidade, diferenças entre fala e escrita. Novamente foi feita a leitura do livro, porém numerando os fatores do desenvolvimento da escrita segundo as categorias de 01 a 09. Assim, houve um
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    109 reagrupamento dascategorias que já haviam sido selecionadas. Por exemplo, atividades onde, na primeira leitura, havia sido assinalado “diferença entre linguagem formal e informal”, foi, na segunda leitura, assinalado como “diferenças entre fala e escrita”. Durante a leitura do texto para os professores e das atividades propostas, quando um dos fatores do desenvolvimento da escrita se apresentou - ou sendo citado ou como concretização em exercício de alfabetização - o seu número correspondente foi assinalado. Na análise de cada um dos momentos do desenvolvimento da escrita, foram buscados os exercícios e partes do texto aos professores, correspondentes aos seus fatores. A partir disto se procedeu à análise interpretativa de como o livro didático se apropriou da concepção histórico-cultural do desenvolvimento da escrita. Partindo desta análise, foi possível compreender como o livro didático – texto para os professores e estrutura das atividades – concebeu o desenvolvimento da escrita. No capítulo seguinte, aprofundaremos a análise dos exercícios e textos do livro, enfocando suas inter-relações com a concepção de desenvolvimento da escrita da psicologia histórico-cultural.
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    110 5. AAPROPRIAÇÃO PELO LIVRO DIDÁTICO DA CONCEPÇÃO DE VIGOTSKI ACERCA DO DESENVOLVIMENTO DA ESCRITA Este capítulo tem o objetivo de mostrar os resultados da análise do livro didático. Conforme já foi apresentado no capítulo anterior, foram objetos da análise os fatores dos momentos de desenvolvimento da escrita, observados na psicologia histórico-cultural, além dos conceitos de escrita e de mediação. A análise foi realizada tanto nos exercícios do livro didático, quanto no texto aos professores. Cabe retomar que o livro didático analisado não apresenta uma concepção pedagógica exclusivamente histórico-cultural. O livro define sua concepção como ‘interacionista’ e nela inclui vários outros autores além de Vigotski. Entretanto, para cumprir o objetivo aqui colocado, este fator não constitui impeditivo da análise. Aqui foram investigadas as categorias do desenvolvimento da escrita da psicologia histórico-cultural, com o objetivo de compreender como elas, de algum modo, aparecem ou podem aparecer em um livro didático. O objetivo da investigação não foi julgar se o livro trabalha ou não na perspectiva da psicologia histórico-cultural, embora este análise tenha sido necessária em alguns momentos. O primeiro item deste capítulo trata, de modo inter-relacionado, de como as categorias ‘escrita’ e ‘mediação’ aparecem no texto de assessoria pedagógica do livro didático. O segundo item trata dos fatores gesto, jogo e desenho, referentes ao momento da pré-história do desenvolvimento da escrita na ontogênese. O terceiro item trata do momento da escrita como simbolismo de segunda ordem, enfocando, nos exercícios do livro didático, dois importantes fatores do desenvolvimento da escrita: o ensino das relações grafemas-fonemas e a leitura silenciosa. O quarto item traz o momento da escrita como função cultural complexa, através do enfoque da escrita como necessidade e as relações entre oralidade e escrita. 5.1. Os conceitos de ‘mediação’ e ‘escrita’ no texto de assessoria pedagógica do livro didático Vigotski trata do desenvolvimento da escrita na ontogênese e filogênese sem, em momento algum, propor uma conceituação precisa sobre o que é escrita. Apesar disso, a análise acurada da sua teoria permite inferir um conceito de escrita. Este conceito, embora tenha sido formulado no primeiro capítulo desta dissertação, deve aqui ser retomado para melhor compreensão da análise do livro didático.
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    111 A escritaé uma função psicológica superior que media a relação do homem com o mundo e consigo, sendo um sistema de signos e instrumentos. A escrita apresenta aspectos sensoriais diferentes da fala, pois representa uma linguagem desprovida de sons, além de ser, quase sempre, dirigida a um interlocutor ausente ou imaginário. Nos sistemas alfabéticos e silábicos, a oralidade constitui um meio de acesso à escrita. No sistema alfabético, a escrita reproduz os sons da fala para poder representar a linguagem. No entanto, quando se torna um simbolismo direto, as relações entre sons e sinais gráficos tornam-se secundárias, e a escrita passa a representar diretamente a linguagem. Nas culturas letradas, a escrita como simbolismo direto tornou-se uma necessidade. A relação de semelhança entre fala e escrita é que ambas são meios de interlocução e formam elos entre as pessoas. A aprendizagem da escrita requer consciência e intenção, pois exige a compreensão das suas diferenças em relação às outras formas de linguagem, bem como habilidade para adaptar o registro escrito à intencionalidade do enunciado. A categoria ‘escrita’ foi analisada no texto de assessoria pedagógica do livro didático, em interação com a outra categoria desta análise: a mediação. No texto do livro didático, as autoras, Procópio e Passos, citam Vigotski para mostrar sua concepção de escrita e mediação. O texto trata da mediação como importante fator para aprendizagem de língua portuguesa. A escrita é compreendida como sendo representação e mediação. Entretanto, as autoras apenas citam Vigotski na conceituação de mediação e escrita, não chegam a assumir que a proposta pedagógica do livro didático é histórico-cultural. A concepção de escrita expressa pelas autoras traz o conceito de mediação, mas não é uma concepção vigotskiana. Compreender a escrita como um sistema de representação que mediatiza a ação do homem no mundo e que, portanto, é produzido nas diferentes práticas sociais ao longo da história é de fundamental importância para o (a) educador (a) que assume a função de ensinar – promover a aprendizagem desse objeto de conhecimento. (PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 09) Vigotski só é citado quando as autoras concebem o conceito de linguagem. Ao conceber a linguagem como “um sistema de signos histórico e social que possibilita ao homem significar o mundo e a realidade” (Vigotski, 1989), o(a) educador(a) tem diante de si o desafio de
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    112 organizar diferentese significativos encontros da criança com este universo: a língua (...) (PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 05) Embora as autoras citem Vigotski para conceituar linguagem, tratam das relações entre fala e escrita, dois parágrafos abaixo, usando termos da lingüística textual. Importante ressaltar que, embora citem termos da lingüística textual, as autoras não explicitam as categorias desta concepção de linguagem, conforme demonstra a citação. (...) texto é manifestação lingüística do discurso, produto da atividade discursiva oral e escrita, constituindo uma teia de significados materializados no conjunto de relações entre os elementos da língua, os quais, ao se articularem, formam um todo coerente e coeso e configuram uma unidade significativa global, independentemente de sua extensão. Um texto se demarca pelo conjunto relacional de elementos da língua a partir da coesão e da coerência, o que se denomina textualidade. (PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 06). O aluno e o professor são concebidos pelas autoras do livro a partir da psicologia histórico-cultural. O aluno é concebido como um indivíduo historicamente constituído e como um construtor de conhecimentos. Para explicar como se dá a dialética entre história individual e história social na apropriação do conhecimento, Procópio e Passos citam um trecho do livro A formação social da mente, de Vigotski, que fala da construção de significados pela criança através da interação com uma pessoa mediadora do conhecimento. O papel da criança neste processo, segundo o livro didático, é modificar o objeto de conhecimento e a si mesmo nas relações de ensino e aprendizagem. Por sua vez, o papel do professor é ser aquele que organiza as propostas pedagógicas e é co-autor e parceiro no desenvolvimento do trabalho pedagógico. As autoras citam ainda a categoria ‘zona de desenvolvimento próximo’ para lembrar que o professor deve investigar as possibilidades de desenvolvimento da criança, para elaborar sua proposta pedagógica. As autoras consideram que a zona de desenvolvimento próximo é o lugar privilegiado de mediação entre a criança e a língua. Através da mediação do professor, o aluno ascende a patamares mais elevados de conhecimento da língua portuguesa. Estes patamares o levam ao conhecimento do sistema de linguagem em sua norma culta.
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    113 Vale lembraro conceito de zona de desenvolvimento proximal como espaço privilegiado de mediação entre a criança e a língua portuguesa, como objeto de conhecimento. Considerando a zona de desenvolvimento proximal como “a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução indiferente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes” (Vygotsky, 1984), a mediação do(a) professor(a) é de fundamental importância para a criança reconstruir suas teorias e reelaborar seus conceitos espontâneos, transformando-os em conceitos próprios do sistema de linguagem, considerada em sua norma culta. (PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 08) Percebe-se que Procópio e Passos citam a categoria ‘zona de desenvolvimento próximo’ deslocada do contexto geral no qual ela se situa na obra de Vigotski. As autoras deixam de fora a importante tese de Vigotski, já citada em capítulo anterior, de que o trabalho na zona de desenvolvimento próximo visa a autonomia do aluno. Além disso, as autoras colocam apenas o professor como mediador da aprendizagem, de modo que acabam por desconsiderar que outros elementos podem ser mediadores. Para a psicologia histórico-cultural, o elemento mediador entre o sujeito e o desenvolvimento das funções superiores pode ser a própria pessoa, através do sistema de signos. Também um instrumento, ou a cultura, podem ser elementos mediadores. Entretanto, o livro didático cita somente o professor como mediador, deixando de fora outros fatores do processo de ensino e aprendizagem. O livro até faz alusão à importância de haver um ambiente alfabetizador para que ocorra a aprendizagem da leitura e escrita. Entretanto, considera que o professor é o único responsável por organizar este ambiente. Interessante observar que Procópio e Passos utilizam ‘mediação’ que é um conceito da psicologia histórico-cultural, e o transformam em uma espécie de didática. Vigotski (2000), ao demonstrar sua concepção de mediação, utiliza a imagem de um triângulo, no qual em uma ponta está o sujeito, na outra o objeto e, na terceira, um elemento que media o acesso do sujeito até o objeto. Procópio e Passos também apresentam um triângulo para representar a mediação. Segue, abaixo, a reprodução do triângulo apresentado pelo livro:
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    114 Contexto socioistórico Contexto escolar Aluno(a) aprendiz relação dialética Língua portuguesa (PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 06) Professor(a) mediador (a) O livro assim explica o esquema do triângulo: Portanto, é preciso que o(a) professor(a), ao adotar o livro, compreenda as três variáveis componentes da relação e perceba que ela se insere em um contexto que extrapola o escolar, na medida em que concebe o discurso produzido em condições socioistóricas, materializado sob a forma de textos, reconhecendo a escola como um espaço privilegiado de aprendizado desse objeto. (PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 07) O conceito de mediação expresso pelo livro didático pode ser interpretado de modo indistinto de transmissão de conhecimento. O ensino transmissivo, proposto pelo livro no texto aos professores, entra em contradição com a sua própria linguagem. O processo de ensino proposto é centrado no professor, mas o livro se refere o tempo todo ao aluno, conforme já foi analisado no capítulo anterior. Se é o professor quem ensina, como pode ser o aluno quem conduz este processo? Das concepções de mediação e zona de desenvolvimento próximo, é possível inferir que estas se relacionam mais com um ensino pautado na cooperação dos envolvidos no processo de ensino e aprendizagem, do que na mera transmissão de
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    115 conhecimentos. Podemosaqui nos remeter à Beatón (2005), autor que explica os níveis de ajuda que podem ser prestados para trabalhar na zona de desenvolvimento próximo. Para fazer os alunos realizarem coisas que sozinhos não conseguem, é preciso que o professor tenha intencionalidade pedagógica, mas, mais do que isso, que preste ajuda ao aluno, sempre visando sua autonomia. Embora a escola seja o lugar privilegiado para a aquisição de conhecimentos científicos, esta deve ocorrer em atividades nas quais os mediadores da aprendizagem sejam o professor, os demais alunos, o objeto de conhecimento e o próprio indivíduo. No caso do ensino da escrita, o gesto, o desenho, o jogo, a interação e a oralidade, entre outros, são importantes mediadores do processo de apropriação do sistema de signos-simbólicos da escrita, bem como da escrita como linguagem e função cultural complexa. Sendo assim, como a mediação é uma categoria transversal a todos os fatores do desenvolvimento da escrita, sua concretização nos exercícios propostos pelo livro didático está de algum modo implícita aos fatores do desenvolvimento da escrita, a bem dizer: o gesto, o desenho, o jogo, o ensino das relações grafemas-fonemas, a leitura silenciosa, o ensino da escrita como algo necessário e a oralidade. Para analisar os fatores do desenvolvimento da escrita, passemos aos seus momentos e suas respectivas categorias relacionadas. 5.2. A representação simbólica na pré-história da ontogênese A representação simbólica é um momento presente em todas as fases do desenvolvimento da escrita. Na sua pré-história da escrita, a criança se apropria da função representativa do gesto, do jogo e do desenho. Ao desenhar e jogar, a criança descobre que pode usar coisas para representar outras coisas e que pode desenhar a própria fala. Esta descoberta abre caminho para a compreensão do sistema de signos simbólicos que formam a escrita, através dos sinais gráficos usados para representar os segmentos sonoros da fala. Na fase inicial da escrita, a criança se apropria das relações grafemas-fonemas, aprendendo que pode representar a linguagem através da escrita. Na escrita como função cultural complexa, a criança usa a escrita para representar a linguagem. Para tratar da representação simbólica na pré-história da escrita da criança, é preciso reportar-se aos seus principais fatores: o gesto, o jogo e o desenho. No texto de Assessoria pedagógica, as autoras, Procópio e Passos, não mencionam a concepção de Vigotski sobre a importância do gesto, do jogo e do
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    116 desenho parao processo de alfabetização. Também não propõem nenhum tipo de relação entre desenvolvimento da escrita e representação simbólica. No texto, o brinquedo é referido como algo importante no desenvolvimento da criança, mas não como fator do desenvolvimento da escrita. Também não aparece no texto a relação entre jogo e representação simbólica. O jogo, no texto de Procópio e Passos, é concebido como algo que leva a criança a ressignificar o mundo, suas ações, suas experiências em relação ao outro, além de vivenciar aspectos relacionados ao prazer. Embora fale da importância do brinquedo para a construção de regras, Procópio e Passos não citam a teoria da psicologia histórico-cultural sobre a relação entre jogo e zona de desenvolvimento próximo. Para Vigotski (2000), no faz-de-conta, a criança vivencia as regras inerentes às situações que representa no jogo. Por exemplo, quando brinca que é professora, a criança age de acordo com as regras inerentes à atividade da professora. Como imita situações adultas, a criança acaba por agir de modo mais evoluído, o que cria uma zona de desenvolvimento próximo. Para o livro didático, o brinquedo desenvolve a vivência de regras porque brincar implica em estar com o outro e partilhar objetos e espaços. Outra característica importante do brinquedo é a possibilidade de vivenciar regras significativas para a organização e o enfrentamento das situações de conflito, pois brincar implica estar com o outro, partilhando objetos e espaços comuns. (PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 19) No texto de assessoria pedagógica, a concepção de jogo não é relacionada com a teoria de Vigotski. O desenho e o gesto não são citados como fatores do desenvolvimento da escrita. Entretanto, se as atividades de jogo, desenho e gesto, propostos no livro didático, permitem que a criança use coisas para representar outras coisas, há aí uma correlação com a teoria da psicologia histórico-cultural sobre o desenvolvimento da escrita. Para saber como o livro didático trabalha a relação do desenvolvimento da escrita com o gesto, o desenho e o jogo, ou entre escrita e representação simbólica, foi preciso investigar os exercícios propostos ao aluno. Foi preciso observar as propostos, no livro didático, de exercícios envolvendo gesto, desenho e jogo, a fim de investigar se estes são relacionados com a representação simbólica, como sugere a psicologia histórico-cultural.
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    117 5.2.1. Ogesto Sabemos que o gesto é o mais antigo parente genético da escrita. A história do gesto, como já vimos, é de apropriação pela criança de um significado produzido na interação. Contanto que a criança tenha um mínimo de convivência com adultos, o gesto surge muito cedo no seu desenvolvimento, ainda nos primeiros meses de vida. O gesto não é uma atividade que se aprende na escola, mas sim uma ação da qual a criança se apropria na medida em que interage socialmente. No entanto, atividades com mímica podem ser bons meios para as crianças entenderem que podem expressar-se de diversas formas. Além disso, através da mímica ocorre a função representativa, pois gestos são usados como meio de linguagem para representar fatos, eventos e idéias. Procópio e Passos propõem uma atividade de mímica que consiste em transmitir as idéias de um texto informativo para os colegas adivinharem. O texto trata sobre os macacos, as regiões onde habitam e o modo como vivem em bandos e usam os gestos para se comunicarem uns com os outros. Esta proposta é uma espécie de jogo, no qual os alunos precisam usar gestos para representar a linguagem. Como o texto sobre os macacos é científico, o jogo é bastante desafiante, pois trata de idéias mais abstratas, mais difíceis de expressar através de gestos. A atividade de mímica proposta no livro é interessante porque leva a criança a abstrair as idéias de um texto para transmiti-las de outro modo que não a fala e nem a escrita. Para ganhar ponto no jogo é preciso que os colegas entendam o significado da mímica, o que faz a criança refletir sobre como pode se comunicar de modo que o outro entenda. Adaptar o modo de se comunicar aos diferentes registros e fazer-se entender é importante para o desenvolvimento da escrita como função cultural complexa. A mímica pode ser uma brincadeira interessante para crianças representarem a linguagem usando gestos. Pode-se desafiar as crianças a representarem ações diversas, através de mímica, para que seus colegas adivinhem. Também é possível classificar as ações na mímica, desafiando as crianças a representarem determinadas categorias de ações, por exemplo: profissões, animais, coisas que se faz em casa, coisas que se faz ao acordar, etc. A mímica é uma atividade alfabetizadora porque faz a criança usar gestos para representar a linguagem, do mesmo modo como se usa a escrita para representá-la. Se no livro é proposta apenas uma atividade envolvendo gesto, o jogo e o desenho estão muito mais presentes nos seus exercícios, conforme veremos no próximo tópico. Entretanto, à diferença da atividade com gesto, as demais pouco trazem o jogo e
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    118 o desenhocomo formas de representação. Ao invés disso, o objetivo da maioria das atividades é fazer a criança ler e escrever palavras, frases ou textos usando a escrita formal, estando o jogo e o desenho em função disso. Para melhor entender esta conclusão passemos à análise do jogo. 5.2.2. O jogo A análise dos jogos propostos no livro teve três enfoques: os tipos de jogos, o modo como eles trabalham o simbolismo e a relação com o desenvolvimento da escrita. Dentre os tipos de jogos apresentados no livro, apenas um foi do tipo dramatização. Os restantes foram jogos pedagógicos com regras. Embora mesmo os jogos com regras tenham atividade simbólica, apenas um jogo proporcionou o uso de coisas para representarem outras coisas. Em relação à escrita, todos os jogos demonstraram ter como finalidade pedagógica levar a criança a ler e escrever palavras, frases ou textos usando a escrita formal. Vamos aprofundar esta conclusão. Dentre os tipos de jogos propostos no livro, nenhum é de faz-de-conta generalizado. Ou seja, Procópio e Passos não sugerem que as crianças imitem uma situação ou personagem. No entanto, se considerarmos que a criança brinca de faz-de-conta para realizar atividades próprias do mundo adulto, como propõe Leontiev (2003), podemos inferir que o jogo de faz-de-conta só pode mesmo emergir da experiência de vida da criança. A atividade representativa do jogo se desenvolverá na medida em que a criança conviver com outras crianças e pessoas, ou seja, através da inserção na cultura. Claro que a escola também é lugar de brincar e representar, mas, para dispor deste espaço, ela não precisa do livro didático. Procópio e Passos apresentam uma proposta de jogo de dramatização. No projeto sobre contos de fadas, há uma página do livro onde aparece a sugestão para que a criança use meias, botões e tintas para confeccionar fantoches e representar uma história de conto de fadas. Há um texto trazendo dicas de como confeccionar o boneco, ensaiar e apresentar de modo que todos entendam. O fantoche é um jogo de dramatização e, ao mesmo tempo, uma atividade com gestos, pois é preciso manipular os bonecos com as mãos, representando com gestos seus movimentos e expressões. O interessante da proposta é a sugestão para que a criança planeje a ação de representar. Na perspectiva de Leontiev (s/d), planejar a própria ação em função de objetivos é o que caracteriza a atividade humana; na medida em que o homem planeja suas ações, desenvolve as funções psíquicas superiores. O objetivo colocado no livro para o
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    119 planejamento daação de representar é o de dramatizar de modo que os espectadores entendam o teatro. Assim, esta atividade, além de permitir a aprendizagem da linguagem dramática, também trabalha a escrita como função cultural complexa. O restante dos jogos apresentados no livro são de regras, ou pedagógicos. São jogos que levam a criança a ler e escrever nomes e listas de palavras, aparentando serem específicos para a fase inicial da escrita. Nos jogos que envolvem a escrita, são propostos no livro: a confecção de um jogo de memória com figuras e palavras, um bingo de letras, o amigo oculto, o alfabeto móvel para formar palavras e a pescaria de São João com brinde. Para fazer as crianças lerem, há no livro a proposta do jogo ‘Boca de Forno’, que se desenvolve a partir da seguinte música: O instrutor diz: A turma responde: - Boca-de-forno? -Forno! - Jacarandá? - Dá! - Se não fizer? - Apanha! - Seu rei mandou dizer que todos... (o instrutor dá uma tarefa.) (A turma executa a tarefa.) (PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 142) A partir deste jogo, o livro propõe que os alunos copiem o texto do jogo em letra cursiva. A seguir, traz algumas observações sobre sinais de pontuação. Quanto à letra cursiva, é importante salientar que seu exercício no início do processo de alfabetização é desnecessário, se formos considerar que, para Vigotski, o traçado das letras é menos importante do que o ensino da escrita como função cultural complexa. O espaço urbano é repleto de materiais escritos, e a criança tem acesso à leitura de diversos tipos de letras. Ao sentir necessidade de ler e escrever, a criança, provavelmente, se esforçará para entender todos os tipos de letras, inclusive a cursiva. Mais interessante que forçar a aprendizagem da letra cursiva, exigindo que a criança exercite seu traçado em atividades repetitivas, é ensiná-la na medida das suas necessidades e curiosidades. Se as autoras do livro didático compreendessem a concepção histórico-cultural de alfabetização, certamente não proporiam exercícios de traçado da letra cursiva, visto que o mesmo deve se apropriado pela criança de modo natural. Vigotski (2000) faz
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    120 diversas críticasaos métodos de alfabetização que levam a criança a desenvolver um belo traçado, sem, contudo, apropriar-se da escrita como função cultural complexa. O livro trabalha também a leitura de instruções, em um texto no qual ensina a criança a fazer pés de latas. Nesta atividade, o livro mostra a escrita como necessidade, tema do qual trataremos mais adiante. Seria interessante, entretanto, que propusesse alguma reflexão sobre textos de instrução. Ao invés disso, apenas propõe exercícios para a criança aprender a letra cursiva. Vigotski (2000) leva a entender que o jogo é uma etapa do desenvolvimento da escrita. A criança que usa objetos para simbolizar outros e que brinca de faz-de-conta desenvolve a representação simbólica, função de suma importância para compreender o sistema arbitrário da escrita. Os jogos pedagógicos que envolvem escrita, como bingo e memória, também têm símbolos. Como diz Vigotski, todo jogo com regras simboliza dada situação, além de que a criança precisa ter imaginação para entender o motivo pelo qual precisa executar certas ações no jogo e excluir outras. No caso dos jogos de bingo, pescaria e memória, eles são ainda importantes para a criança realizar atividade de leitura e escrita, exercitando a escrita como simbolismo de segunda ordem, ou seja, trabalhando as relações grafemas-fonemas. No entanto, os jogos de faz-de-conta também precisam estar presentes na atividade da criança em fase inicial da escrita. Diante disso, o que pode um livro didático? Ora, o livro didático pode propor jogos com regras e pedagógicos. Quando o livro traz as letras de um alfabeto móvel ou as cartelas de bingo, poupa o professor de um trabalho manual e proporciona momentos importantes de jogo na alfabetização. Entretanto, certas atividades de faz-de-conta só podem ser proporcionadas pelo ambiente. Crianças precisam de materiais não estruturados (bola, caixas, sucatas e outros materiais que permitem criações lúdicas variadas) para usar coisas para representar outras coisas e imitar o mundo dos adultos. Um livro didático até pode, por exemplo, propor que a criança use uma caixa para fazer de conta que é um fogão. Mas para que a criança use uma caixa para representar um fogão, é preciso que o ambiente lhe proporcione a caixa, o espaço e o tempo necessários para esta brincadeira. O limite do livro didático é seu suporte, é o fato de o livro se constituir como um material impresso, não permitindo à criança a execução de determinadas ações, dentre as quais se inclui o brincar. Boa parte do que é necessário para brincar encontra-se na esfera das relações que se estabelecem na escola entre professor e alunos, dependendo mais do ambiente do que da proposta de um livro didático.
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    121 Já vimosque os tipos de jogos propostos são pedagógicos e com regras, e que todos têm como objetivo levar a criança a ler e escrever textos, frases e palavras usando a escrita formal. Resta saber como o livro trabalha a simbolização em seus jogos. Leontiev (2003) diz que o símbolo, embora não seja inerente aos jogos, está de algum modo presente em todos eles, inclusive nos jogos com regras. Nesta perspectiva, os jogos propostos pelo livro didático desenvolvem o símbolo, ainda que não seja através do faz-de-conta. Entretanto, o livro não propõe atividades nas quais a criança usa coisas para representar outras coisas ou brinca de faz-de-conta. A maioria dos jogos propostos pelo livro tem o objetivo de levar a criança a escrever. Por este motivo, são jogos que trabalham principalmente a escrita como simbolismo de segunda ordem. Os jogos que trabalham o simbolismo de segunda ordem são o bingo e o alfabeto móvel, neste a criança precisa pensar nos sons das letras para formar certas palavras. No bingo, a variação proposta pelo livro didático é de palavras. Cada criança escreve em sua cartela uma palavra referente à festa de São João. O professor deve sortear letras. Cada criança cuja palavra tiver a letra sorteada pelo professor deve assinalá-la na sua cartela. Vence o jogo a criança que assinalar toda a cartela primeiro. Neste bingo, o professor pode trabalhar as relações biunívocas, arbitrárias e contextuais entre letras e sons. Assim por exemplo, ao sortear a letra ‘A’, pode refletir com os alunos porque seu som é de /ã/ na palavra ‘canjica’ e /a/ na palavra ‘pamonha’. No entanto, o livro não sugere ao professor que faça isso. Os jogos que trabalham o simbolismo direto são: fantoche, pé de lata e ‘boca de Forno’. No fantoche, a criança precisa escrever uma peça de teatro, o que a ensina a organizar as idéias em um texto dramático. Neste jogo, também seria interessante que o professor pedisse para as crianças transformarem um texto narrativo em um drama, o que o livro não sugere. No pé de lata, a criança precisa ler um texto informativo para aprender a confeccionar o brinquedo, de modo que a escrita é mostrada como algo necessário para obter informações. No ‘boca de forno’, a criança precisa memorizar o texto para poder brincar, ou seja, a escrita é mostrada como algo necessário para servir de recurso à memória. Além de jogos, o livro apresenta uma série de propostas de desenho. Vejamos, agora, de que modo estas trabalham a simbolização.
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    122 5.2.3. Odesenho Para investigar como o desenho aparece no desenvolvimento da escrita, é importante retomar brevemente sua gênese. Segundo Vigotski (2000), para a criança de até, aproximadamente, dois anos de idade, o desenho é apenas um gesto. Em torno de dois a quatro anos, a criança usa o desenho para relatar o que vê. Por isso, costuma falar enquanto desenha. Dos cinco anos em diante, assim como os povos primitivos representavam suas idéias através de pictogramas, a criança pode passar a usar o desenho para representar a linguagem. No entanto, antes de conferir significado ao próprio desenho, a criança precisa entender que o desenho do outro pode ter significado. Para Vigotski, quando a criança entende que pode representar a fala usando o desenho, pode aprender o sistema simbólico da escrita. A partir desta perspectiva, a análise do modo como o livro propõe atividades de desenho teve três enfoques: o desenho como representação da linguagem, o desenho como mnemotécnica e a relação estabelecida pelo livro entre desenho e escrita. O livro trabalha atividades de desenho como representação da linguagem de dois modos: expressão de idéias e desejos abstratos, e interpretação da pintura de um artista. Na expressão de idéias e desejos abstratos, as propostas do livro parecem solicitar que a criança desenhe porque ainda não sabe escrever, como se o desenho pudesse ser um substituto da escrita. Isto fica evidenciado nas ordens dos exercícios. O primeiro faz os seguintes questionamentos: “O que é ler? O que é escrever? Como é o seu jeito de escrever?” (PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 08). A instrução diz para a criança responder do seu jeito. Na página seguinte, o livro propõe que a criança responda de duas formas a uma mesma pergunta: com uso e sem uso da escrita. Este livro foi escrito para ensinar crianças como você e seus colegas a ler e escrever. Nos espaços abaixo, escreva, desenhe ou faça colagens que representam o que você gostaria de aprender durante o ano. (PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 09). Como ainda não saber escrever, a criança é solicitada a usar um outro jeito, que não a escrita, para dizer o que gostaria de aprender. A pergunta colocada no livro exige uma abstração por parte da criança. Como ela vai desenhar o que gostaria de aprender sem abstrair da sua resposta os elementos possíveis de serem desenhados? A criança pode desenhar um lápis e um livro, sinalizando que quer ler e escrever, ou lembrar dos diferentes registros escritos e desenhá-los, como uma carta, um livro, um cartaz, etc. Na
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    123 mesma páginadesta proposta, o exercício do livro solicita que a criança “Apresente suas idéias para seus colegas e professor ou professora” (PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 09). O interessante destas atividades é que desenvolvem a escrita como meio de linguagem, pois a criança é encorajada a expressar uma idéia usando desenho. No entanto, por exigirem elevada abstração, é possível que a criança não consiga fazer estas atividades propostas. Na página subseqüente, o livro traz a foto de uma escrita pictográfica que mostra uma série de traços, aparentando serem registro de quantidades, e o desenho de dois animais e duas pessoas. Abaixo da foto, a legenda diz que se trata de uma inscrição feita em rocha há cerca de 12.000 anos, encontrada no parque nacional da Serra do Capivari, no Piauí. O seguinte texto acompanha a foto: Você sabia que o homem levou muito tempo para inventar a escrita? E que ele inventou para representar seus sonhos, desejos e pela necessidade de se comunicar com os outros? E que nem sempre a escrita foi do mesmo jeito? (PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 10) Para Vigotski (2000), a primeira função da escrita na história da humanidade foi a mnemotécnica. Como podemos ver na proposta do livro, a função mnemotécnica sequer é citada. Além disso, Vigotski diz ser possível que uma das primeiras funções da escrita tenha sido registrar quantidades. A despeito de haver na inscrição da rocha ilustrada no livro uma série de traços, parecendo registrar certa quantidade, não há exercícios ou textos, no livro, que exploram esta variável. Para trabalhar a inscrição na rocha a partir da concepção de Vigotski, o livro poderia trazer algum texto sobre a função que a escrita teve para os povos primitivos de ajudar a memorizar fatos, quantidades e objetos. Poderia propor que as crianças se imaginassem como homens primitivos e tentassem transmitir aos colegas certas informações relevantes usando inscrições. O próprio teste realizado por Luria poderia ser usado como recurso pedagógico; o professor leria uma série de frases para que os alunos memorizassem usando o desenho. Nas demais atividades que solicitam o uso de desenhos para representar idéias, o livro segue demonstrando, em seus enunciados, que a criança deve desenhar porque ainda não sabe escrever. A maioria das propostas para que a criança desenhe tem como objetivo explorar os conhecimentos prévios sobre o tema do projeto. No projeto ‘É
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    124 junho, pessoal’,a criança deve desenhar ou escrever, em dupla, os conhecimentos prévios sobre festa junina. No projeto ‘Histórias em quadrinhos, gibis e outros “bichos”, a criança deve desenhar, em balões de diálogo, o que deseja aprender sobre o tema do projeto. A criança também é solicitada a registrar, do seu modo, onde podemos encontrar histórias em quadrinhos. Nas atividades propostas pelo livro, a criança registra com desenhos seus conhecimentos prévios sobre os temas dos projetos. Expressa idéias apenas na medida em que estas têm relação com o que gostaria de aprender ou já aprendeu sobre o tema do projeto. Quase não há propostas nas quais a criança usa o desenho com as mesmas funções culturais da escrita, ou seja, como meio de expressão, memorização, prazer estético, comunicação, etc. Em uma perspectiva histórico-cultural, o desenho poderia ser mais explorado como meio de expressão. Vigotski (2000) diz que quando a criança utiliza o desenho como linguagem, ou seja, representa com ele a própria fala, já tem capacidade de compreender o sistema de escrita. Como é possível registrar a própria fala usando desenho? Em atividades nas quais a criança queira e possa falar e comunicar idéias usando desenhos. Além das já citadas atividades nas quais a criança usa o desenho para memorizar, também pode desenhar para falar de si: o lugar e as pessoas com quem mora, seus sonhos, seus medos, do que gosta de brincar, o que gosta de assistir na televisão, fatos importantes que aconteceram na sua vida, etc. Também pode desenhar os conceitos científicos aprendidos na escola: os animais vertebrados e invertebrados, os dinossauros, a representação cartográfica de algum lugar, etc. Pode-se também explorar a função do desenho nas formas culturais de escrita: os logotipos, os sinais de trânsito, as legendas de mapas. E, por fim, a função estética do desenho e da pintura. Ao fazer atividades de expressão através do desenho, a criança poderá entender que o desenho é uma forma de comunicar idéias. Em uma reflexão mais aprofundada, poderá entender, ainda, que para vários homens poderem se comunicar uns com os outros através da escrita, é necessário um sistema de signos estáveis que permita comunicar idéias, fatos e eventos. Se cada um inventasse sua própria escrita, a compreensão seria muito difícil. O livro traz pinturas de artistas famosos e solicita que as crianças conversem sobre a imagem, mas pouco explora o significado da obra. Sem dizer quem é Picasso, e qual significação está contida na sua obra, o livro traz a pintura “Auto-retrato com palheta”. Depois solicita que a criança se olhe no espelho e faça seu auto-retrato. Esta
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    125 atividade estáinserida no projeto ‘Todo mundo tem um nome’. Seu objetivo provavelmente é trabalhar a identidade do aluno. No mesmo projeto, há também a pintura de Paul Klee e uma proposta de atividade a partir dela. Há um pequeno texto informando que Paul Klee foi um pintor suíço que viveu entre 1879 e 1940 e gostava de incluir letras do alfabeto e numerais na sua tela. A criança é solicitada a registrar as letras encontradas na foto da tela do pintor e, depois, a pintar sua própria tela, incluindo as vogais do próprio nome ou de outra pessoa. A clara intenção da atividade é trabalhar as vogais. O livro também usa pinturas para inserir temas trabalhados nos projetos. A primeira atividade do projeto “Plantas e bichos” é discutir qual lugar é representado pelo quadro “Jardim em flor”, de Claude Monet. O livro não traz informações sobre o pintor, e o objetivo da sua proposta provavelmente é fazer uma exploração inicial do tema ‘plantas’. No projeto “Histórias de vida”, o livro traz a história de vida do pintor espanhol Joan Miró. No texto para os professores, o livro explicita que o objetivo deste projeto é trabalhar duas modalidades textuais: biografia e autobiografia. A partir da leitura de algumas biografias (Miró, Villa-lobos e Daniel Munduruku) a criança é encorajada a escrever sua autobiografia. Após, o livro solicita que a criança reproduza a obra de Miró intitulada ‘Bailarina’. O livro pede que a criança observe a obra e crie um quadro a partir dela. Sugere que a criança planeje como fará a pintura e, depois, organize com a turma uma exposição para divulgar todos os trabalhos. As atividades de análise de obras não foram propostas em função de levar a criança a entender que uma pintura pode expressar idéias e sentimentos. As informações biográficas dos pintores sempre aparecem em função do projeto proposto, não para que a criança interprete melhor a obra. Assim, traz informações sobre Paul Klee para trabalhar as vogais e, sobre Miró, para mostrar a estrutura de uma biografia. Em uma perspectiva histórico-cultural, as obras de arte poderiam ser apresentadas às crianças acompanhadas de alguma informação sobre o pintor e sobre o lugar e época em que viveu. A partir destas informações, as crianças poderiam dizer o que pensam que o autor tentou expressar com a obra. Como crianças do primeiro ano do ensino fundamental ainda não dispõem de conhecimentos históricos e geográficos suficientes para compreender a influência do contexto sobre uma obra, poderiam ser analisadas obras de algum artista local, conhecido da turma ou convidado a ser entrevistado por ela. O modo como o livro apresenta as obras de arte e as coloca em função de projetos de ensino acaba por descontextualizá-las, esvaziá-las de significado.
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    126 Vigotski (2000)diz que para a criança atribuir significado aos seus próprios desenhos, precisa primeiro significar o desenho do outro. Para a criança entender que o desenho pode ser uma espécie de linguagem, é preciso que entenda qual mensagem é transmitida pelo desenho ou pintura do outro. Nas demais atividades, o livro solicita que a criança desenhe para ilustrar textos ou palavras. Nesta categoria, incluem-se as seguintes atividades: ilustrar e escrever o nome da profissão de alguém da família; ilustrar uma música do folclore; ilustrar uma poesia sobre a cobra; ilustrar uma estrofe do poema ‘Quantos bichos no Brasil’, de Pedro Bandeira; e ilustrar a floresta e a casa da bruxa do conto ‘João e Maria’. Não se pode considerar que nestas atividades, nas quais o desenho acompanha o texto, a criança usa o desenho como meio de expressão e linguagem. A partir da análise do modo como o livro apresenta atividades de desenho, foi possível extrair algumas considerações sobre a relação estabelecida entre desenho, linguagem e escrita. Em algumas atividades a criança foi encorajada a representar idéias bastante abstratas através do desenho, como é o caso da atividade no qual é solicitada a desenhar o que gostaria de aprender e o que é ler e escrever. Mas, na maioria das propostas, a relação estabelecida entre desenho e escrita não leva a criança a operar com a escrita com linguagem ou meio de representação. O livro, na maioria das atividades, traz o desenho como algo que simplesmente acompanha e ilustra a escrita formal. A função mnemônica da escrita não é desenvolvida pelo livro didático, a despeito da sua importância na teoria de Vigotski. 5.3. A escrita como simbolismo de segunda ordem Vigotski (2000) diz que, primeiro, a escrita representa os sons da fala para, depois, representar diretamente as idéias. A esta passagem da grafia dos sons das palavras para o uso da escrita como linguagem, Vigotski chama de passagem da escrita como simbolismo de segunda ordem para simbolismo direto. Diante disso, cabe perguntar o que vem antes, aprendizagem da relação grafemas-fonemas (simbolismo de segunda ordem) ou escrita como função cultural complexa (simbolismo direto)? Ora, ambos os momentos do desenvolvimento da escrita são simultâneos, embora o mais importante seja a escrita como simbolismo direto, visto que, para Vigotski (2000), mais importante que a decodificação e o traçado das letras, é operar com a escrita como linguagem.
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    127 Dentro destequadro de inferências a partir da teoria de Vigotski, fica bastante difícil entender como o autor concebe o ensino das relações grafemas-fonemas, que corresponde, no caso, ao ensino da escrita como simbolismo de segunda ordem. Conforme já foi dito nesta dissertação, Vigotski não explica como ocorre a passagem da escrita como simbolismo de segunda ordem para simbolismo direto. Entretanto, duas teses de Vigotski (2000) ajudam a inferir implicações sobre o ensino da escrita como simbolismo de segunda ordem: a tese de que a escrita deve ser ensinada de modo natural, fazendo parte dos jogos e brincadeiras da criança; e a tese de que a escrita deve ser ensinada de modo a levar a criança a sentir necessidade de escrever. Assim, podemos propor, de modo não conclusivo, dois fatores importantes para ensinar a escrita como simbolismo de segunda ordem: a compreensão da necessidade de memorizar o sistema arbitrário de signos-simbólicos que forma a escrita; e o jogo. Cabe retomar a afirmação de Vigotski para comprovar a adequação deste último fator com sua teoria: “La enseñanza natural de la lectura y escritura requiere una influencia adecuada en el medio circundante del niño; tanto leer como escribir deben ser elementos de sus juegos.” (VIGOTSKI, 2000: 203) A leitura silenciosa, por sua vez, é também uma das atividades que ajudam na passagem da escrita como simbolismo de segunda ordem para simbolismo direto. Sendo assim, compreender como o livro apresenta o momento do simbolismo de segunda ordem da escrita, significa investigar como ele apresenta, em seus textos e exercícios, o ensino das relações grafemas-fonemas. Compreender se ensina este aspecto formal da escrita em uma perspectiva que poderia ser considerada histórico-cultural, significa investigar se ensina as relações grafemas-fonemas levando a criança a refletir sobre sua importância, usando jogos e propondo leituras silenciosas. No texto de assessoria pedagógica do livro didático, as relações grafemas-fonemas são citadas como importantes aspectos da aprendizagem da escrita. O livro reconhece a importância de ensinar os aspectos formais da escrita, sem, entretanto, prescindir da sua função cultural, como demonstra o seguinte trecho: (...) o processo de alfabetização compreende a aquisição de um conjunto complexo de habilidades relativas ao sistema alfabético-ortográfico. Tal aquisição envolve desde a diferenciação entre escrita alfabética e outras escritas a habilidades próprias do nosso sistema de escrita, como
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    128 orientação ealinhamento da escrita, função de segmentação entre as palavras em uma frase, função da pontuação, unidades fonológicas, reconhecimento do alfabeto e sua representação em diversos tipos de letra, relação fonema-grafema, regularidades e irregularidades ortográficas. No entanto, a aprendizagem relativa ao sistema alfabético-ortográfico não pode prescindir da aprendizagem distinta, porém correlata, dos diversos usos sociais da escrita, da compreensão das condições de sua produção, da diversidade e amplitude dos gêneros que circulam na sociedade contemporânea. (PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 04) Neste trecho, Procópio &Passos demonstram conhecer os aspectos importantes para a aprendizagem do que Vigotski chama de simbolismo de segunda ordem. Embora as autoras não façam alusão à importância da leitura silenciosa para o desenvolvimento da escrita, propõem vários exercícios de leitura silenciosa, como veremos mais adiante. Para promover a aprendizagem das letras, a primeira atividade que o livro propõe é pedir para as crianças observarem um conjunto formado por numerais, letras e desenhos. Neste conjunto, devem circular os desenhos, marcar com um X os numerais e pintar de vermelho as letras. Este é um exercício que visa levar a criança a entender o que é e o que não é letra. Na página seguinte, há uma tabela com as letras de fôrma maiúsculas e minúsculas. Sobre a tabela há um pequeno texto, informando que com o alfabeto podemos escrever tudo o que desejamos. O exercício pede que a criança marque no alfabeto a primeira letra do nome do professor. Na página seguinte, o livro trabalha a letra ‘D’ a partir de uma rima de Ruth Rocha evolvendo palavras que começam com ‘D’. No exercício, o livro solicita que a criança reescreva um poema a partir de outra letra do alfabeto. Na mesma página, consta a já citada atividade sobre a pintura de Paul Klee, tendo o objetivo de ensinar as vogais. Após, os alunos devem recortar de jornais ou revistas a primeira letra dos nomes dos familiares e colar em um determinado espaço. Segue o já citado alfabeto móvel, as letras do alfabeto para os alunos recortarem, colarem em tampinhas e formarem palavras. Depois desta seqüência de atividades envolvendo as letras, ainda no projeto “Todos têm um nome”, o livro apresenta uma poesia rimada. O exercício propõe que o professor faça a leitura em voz alta para os alunos. Parece haver, por parte das autoras
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    129 do livro,uma tentativa de interlocucionar com a criança nas propostas de exercícios. Os exercícios são propostos sempre se referindo ao aluno. Ao professor é dito o que fazer através da interlocução com o aluno. Os exercícios sugerem sempre para que o aluno peça, pergunte e leia com o professor. O interessante é que há, no livro, uma interlocução com os alunos, mas, ao mesmo tempo, fica evidente que o aluno é considerado como alguém que não sabe ler. Podemos citar como exemplo este trecho: “No texto a seguir, você vai conhecer duas crianças e suas três tias. Acompanhe a leitura de seu professor ou professora” (PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 23) O texto é uma rima de Luís Camargo, intitulada ‘As três tias’. A partir da rima, os exercícios propõem algumas questões interpretativas, sugerindo que o professor escreva as respostas no quadro. Para trabalhar o sistema gráfico, os exercícios propostos exploram as diferenças e semelhanças entre as palavras rimadas do texto. O aluno deve pintar as letras que diferenciam os nomes ‘Célia’ e Zélia’, pronunciar devagar os nomes para perceber as diferenças entre eles, identificar e marcar as palavras do texto que rimam e refletir sobre o efeito da sonoridade das palavras rimadas ao longo do poema. Não há uma reflexão de Vigotski e Luria sobre a importância da rima para a compreensão da escrita como simbolismo de segunda ordem. Entretanto, atualmente há autores que defendem a importância da rima para a compreensão das relações fonemas-grafemas, dentre os quais é possível citar Emília Ferreiro (2004). Nas páginas subseqüentes às atividades sobre rima, o livro propõe vários exercícios a partir da escrita do nome próprio: recortar de jornais e revistas as letras do nome, pintar em um quadro de alfabeto as letras do nome, escrever o nome em um crachá, escrever os nomes dos colegas. Ainda para trabalhar a leitura inicial, o livro traz exercícios que consistem em sublinhar determinada palavra em um texto e identificar palavras que terminam com a mesma letra. Como exercício para explorar as relações contextuais dos sons das letras, o livro traz uma proposta que consiste em apresentar a seguinte lista de palavras escritas com a letra ‘R’ em destaque: “CERTO, PIRATA, COMEÇAR, REIS” (PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 47). Este exercício está inserido no projeto “Histórias em quadrinhos e outros “bichos””. As palavras são retiradas de uma história em quadrinhos, apresentada pelo livro, intitulada “Era uma vez”, de Ziraldo. O aluno é solicitado a ler as palavras com ajuda do professor. A partir da leitura destas palavras o livro traz os seguintes questionamentos:
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    130 “a) Vocêconhece a letra que está em destaque nas palavras acima? Você saberia dizer o nome dela? b) Ouça e acompanhe no livro a história em quadrinhos, lida pelo professor ou pela professora. c) Que personagens de histórias que começam por “Era uma vez...” apareceram nesta história em quadrinhos? Volte às páginas em que ela se encontra e circule-os lá. d) Nos quadros acima, há palavras em que o R possui o mesmo som. Quais são elas? e) Volte ao texto para procurar outras palavras em que o R tem esse mesmo som e escreva-as aqui.” (PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 47) Além do ‘R’ o livro também trabalha com os sons do ‘L’, mas várias páginas depois. Para trabalhar o som do L, os exercícios do livro trazem os seguintes questionamentos: b) Qual é o som da letra L na palavra CORAL? c) Escreva duas palavras que terminam com a letra L. (PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 135) Estes exercícios de reflexão sobre os sons das letras são interessantes para trabalhar as relações grafemas-fonemas. Conforme já vimos no capítulo anterior, é preciso ensinar para as crianças que as relações grafemas-fonemas não são biunívocas. Um meio interessante para isso, é fazer com que a criança reflita sobre os diferentes sons que as letras apresentam em diferentes palavras e sobre como uma mesma letra pode representar vários sons. Se as palavras trabalhadas tiverem significado para a criança, esta reflexão tornar-se-á mais efetiva, como mostra Faraco (2003). Assim, é possível concluir que as atividades do livro são interessantes para o ensino das relações grafemas-fonemas. Entretanto, são poucas; apenas a escrita do nome, as letras do alfabeto e os sons do ‘L’ e do ‘R’. Não é uma tarefa fácil trabalhar as relações grafemas-fonemas de modo significativo para a criança. Segundo Cagliari (2003), o ideal é que o professor faça algumas propostas mais sistemáticas de atividade para trabalhar estas relações, mas que, na maioria dos casos, ensine estas relações durante outras atividades, na medida em que as crianças apresentarem dúvidas ao ler e escrever. Assim, se a criança perguntar como escrever o som /KS/ na palavra ‘táxi’, o professor pode lembrar que este é um dos possíveis sons da letra ‘X’, e que geralmente, mas nem sempre, aparece em final de
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    131 palavras, como:tórax, Tiranossauro rex, xérox. Em meio de palavra, podemos encontrar a letra ‘X’ com este som em palavras como ‘axila’. Este tipo de ensino das relações grafemas-fonemas, que ocorre na medida das dúvidas e questionamentos da criança, pode ser considerado como atividade na qual entender os signos-simbólicos é uma necessidade. A criança precisa entender que escrevemos de um jeito, mas falamos de outro, e que, se cada um escrevesse do jeito que fala, seria muito difícil compreender a escrita alheia e se fazer entender pelo outro através da escrita. Se a criança ler a palavra ‘táxi’ aferindo o som de /ch/ à letra ‘x’, não compreenderá o enunciado. Ao escrever, a necessidade de ser compreendida pelo outro fará com que a criança queira escrever de modo correto. Quando compreender a importância de dominar as relações grafemas-fonemas para ler e escrever, a criança poderá questionar e buscar informações na medida em que forem surgindo dúvidas. No entanto, se não sentir necessidade de ler e escrever, não sentirá necessidade de saber as relações grafemas-fonemas. Por este motivo, o ensino do sistema formal da escrita precisa acompanhar situações reais de uso da escrita, na qual esta se torna, para a criança, uma linguagem. Também é possível trabalhar as relações grafemas-fonemas em meio a jogos. O já citado bingo é um exemplo. Outros jogos já conhecidos podem ser adaptados para trabalhar as relações grafemas-fonemas. Por exemplo, no ‘Jogo da Forca’, o professor pode pensar uma palavra para os alunos adivinharem e, a cada letra que estes acertarem, dar uma ‘pista’ dizendo o som que a letra representa na palavra. Assim, existem três formas de ensinar as relações grafemas-fonemas de modo significativo para a criança. Um meio é o ensino sistemático e reflexivo, a partir de questionamentos aos alunos e transmissão do conteúdo pelo professor, usando, para isso, palavras de um contexto significativo. Este é o único meio proposto pelo livro didático analisado, realizado no exercício que trabalha os sons do ‘R’ e do ‘L’. Outro meio é o professor ensinar as relações grafemas-fonemas na medida em que as crianças sentirem necessidade, durante atividades de leitura e escrita. Por fim, é possível aproveitar determinados jogos para promover a reflexão sobre as relações grafemas-fonemas. O limite do livro didático é o suporte, ele não pode ouvir a criança, nem responder às suas dúvidas no momento em que elas surgem. Pressupor que as relações grafemas-fonemas podem ser ensinadas na medida da curiosidade das crianças, implica em excluir a possibilidade de o livro didático trazer todas as respostas prontas. Em cada um destes três casos, é preciso que o professor tenha conhecimento do sistema gráfico. Talvez por isso fosse interessante o livro didático trazer, no texto aos
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    132 professores, umasistematização das características do sistema gráfico do português e os símbolos fonéticos que representam cada consoante, semivogal, vogal oral e vogal nasal do português brasileiro. Para o professor ensinar as relações grafemas-fonemas levando em conta que estas não são biunívocas, é preciso que tenha estas informações sempre à mão. É possível que o professor, muitas vezes, por não ter acesso a informações simples e corretas sobre o funcionamento do sistema gráfico, deixe de trazer informações relevantes acerca das relações grafemas-fonemas na medida em que surgem as dúvidas e dificuldades do aluno. Talvez por falta de conhecimento do sistema gráfico, o professor acabe optando pelo mais fácil, que é o ensino transmissivo das relações grafemas-fonemas por meio de exercícios repetitivos. Ora, para a criança querer aprender as relações grafemas-fonemas, é preciso que sinta necessidade deste conhecimento. Por isso, o modo mais adequado de proceder a este ensino é na medida das necessidades da criança e não em atividades descontextualizadas. Além das relações grafemas-fonemas, o livro traz exercícios para trabalhar outros aspectos do sistema gráfico do português. Há exercícios para ensinar a escrever deixando espaço em branco entre as palavras, tendo em vista que crianças em início de alfabetização costumam escrever sem separar as palavras. Também há exercícios para ensinar as sílabas e os sinais de pontuação. O livro traz várias propostas de leitura silenciosa. A cada texto, informa quem deverá ler. Os primeiros textos vêm acompanhados de sugestões para que o professor faça a leitura em voz alta, provavelmente porque os autores do livro supõem que a criança ainda não sabe ler: “Escute a leitura abaixo feita pelo professor ou pela professora. Você já o conhecia?” (PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 30) “Observe o texto ao lado e converse com os colegas sobre as questões que o professor ou a professora irá ler”. (PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 35) Na metade do livro, há uma sugestão para que a criança leia com ajuda do professor: “Agora você vai ler, com o auxílio do professor ou da professora, um conto por partes, tentando imaginar o que acontecerá em cada uma delas”. (PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 74) Aqui, é provável que o livro suponha que a criança já consegue ler, contanto que seja com ajuda do professor. Vale lembrar que quase todos os textos do livro são apresentados em letra de fôrma maiúscula, enquanto as ordens dos exercícios são escritas em letras minúsculas. Somente os três últimos textos, no projeto “Histórias de vida”, são escritos em letra minúscula, provavelmente porque o livro supõe que, ao final do livro, a criança deverá estar lendo fluentemente todos os tipos de letras.
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    133 Procópio ePassos parecem supor a gradativa autonomia do aluno na compreensão da leitura. Após vários textos que devem ser lidos pelo professor, há um que deve ser lido pelo professor e o aluno, um que deve ser lido pelos alunos reunidos em duplas e, por último, a proposta de que o próprio aluno leia, sozinho e em silêncio. O livro tem 209 páginas de exercícios; na página 164 há a primeira proposta para que a criança leia silenciosamente e sozinha. No livro, aparecem duas propostas para que a criança faça leitura silenciosa de um texto. Entretanto, aparecem 07 propostas de exercícios que obrigam a criança a fazer leitura silenciosa para cumprir com os objetivos: ordenar um texto cujas palavras estão fora do lugar, ilustrar parágrafos, completar textos com palavras que faltam, duas propostas de ordenar os parágrafos de um texto e duas de procurar palavras em um texto. Todos os textos destes exercícios são apresentados em letras de fôrma maiúsculas. Da análise da aprendizagem do simbolismo de segunda ordem foi possível concluir que a teoria de Vigotski leva a pensar alguns meios para o ensino da escrita como simbolismo de segunda ordem: ensino sistemático através da transmissão e de exercícios que levem a uma reflexão sobre as relações grafemas-fonemas; ensino destas relações na medida em que as crianças, envolvidas em atividades de leitura escrita, sentirem necessidade; e ensino através de jogos. Procópio e Passos trazem poucas propostas para trabalhar as relações grafemas-fonemas,, e nenhuma delas através de jogos. Entretanto, as atividades para o ensino dos sons de ‘R’ e do ‘L’ são interessantes, pois levam a criança a refletir e formulas hipóteses sobre o sistema gráfico. Outros aspectos da escrita como simbolismo de segunda ordem - pontuação, segmentação de palavras no texto e tipos de letras - ou não são trabalhadas, ou são de modo superficial. Por exemplo, no ensino da letra cursiva, o livro não propõe uma sistematização acerca do direcionamento do traçado das letras. Para trabalhar a pontuação, Procópio &Passos não chegam a propor uma reflexão sobre suas funções na língua portuguesa. Segundo Luria (1994), enquanto na fala usamos recursos diversos, como entonação e gesto, para nos fazermos entender na escrita só dispomos da pontuação. Nem os exercícios do livro, nem seus textos de assessoria pedagógica, fornecem aos professores subsídios para refletir sobre o uso de pontuação como recurso expressivo. Ao propor o trabalho sobre pontuação durante o processo de alfabetização, o livro se exime de trazer informações relevantes ao professor, limitando-se a questionário, única proposta do livro para trabalhar a pontuação.
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    134 a) Circuleno texto (boca-de-forno) tudo que não for palavra. b) Na sua opinião, para que serve no texto o que você circulou? c) Investigue, com o professor ou a professora, o que são os sinais usados e qual o uso deles na língua portuguesa. (PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 143) O interessante do livro são as atividades de leitura silenciosa, principalmente os exercícios cuja realização exige que a criança proceda à leitura silenciosa: colocar as frases de um texto em determinada ordem e procurar uma palavra em um texto, entre outras. Mas, apesar das atividades de leitura silenciosa do livro, é possível afirmar que ele não traz uma proposta que ajude o professor a trabalhar o sistema gráfico do português. Traz poucas atividades de ensino das irregularidades ortográficas e até mesmo do ensino das relações grafemas-fonemas em geral, e não o faz por meio de jogos. Conforme já foi tratado neste texto, parece que o interessante em uma proposta histórico-cultural seria trabalhar as relações grafemas-fonemas através de jogos e na medida da curiosidade e necessidade da criança envolvida em situações reais de escrita. No caso do ensino mais sistemático das irregularidades, seria interessante levar a criança a formular hipóteses, como o livro faz quando questiona sobre os sons do ‘R’. Partindo deste pressuposto, o que poderia um livro didático? Importante reiterar que poderia trazer, para o professor, uma sistematização das representações fonéticas do português brasileiro, bem como das regras das irregularidades ortográficas. Para os alunos, poderia trazer sugestões de jogos que trabalham as relações grafemas-fonemas e o alfabeto móvel. De posse de conhecimentos sobre o sistema gráfico do português e de instrumentos para seu ensino, o professor poderia trabalhar as relações grafemas-fonemas juntamente com atividades de uso real da escrita. Isto seria possível porque o professor poderia se sentir mais seguro para ensinar essas relações de modo mais espontâneo, na medida das curiosidades das crianças. As crianças, por sua vez, iriam conferir mais significado às complexas relações letras-sons, se este ensino ocorresse em função do uso da escrita como linguagem, ou seja, como função cultural complexa.
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    135 5.4. Apropriaçãoda escrita como atividade cultural complexa Vigotski pouco falou da escrita como atividade cultural complexa, o que dificulta a análise dos fatores do seu desenvolvimento. Entretanto, alguns indícios da teoria de Vigotski e seus colaboradores ajudaram a compreender importantes categorias referentes à apropriação da escrita como linguagem, como atividade cultural complexa. Para a compreensão deste momento, foram extraídas duas categorias de análise: as relações entre fala e escrita e a escrita como necessidade. 5.4.1. Relações entre fala e escrita Para avaliar como o livro didático trata das diferenças e inter-relações entre fala e escrita, três aspectos foram enfocados: interação professor-aluno no processo de aquisição da escrita, diferenças entre enunciados orais e enunciados escritos, diferenças entre linguagem culta e coloquial na escrita e na fala. O primeiro aspecto analisado foi a interação professor-aluno. No texto de assessoria pedagógica, há vários trechos que encorajam o professor a interagir oralmente com o aluno. Uma das sessões do livro, presente em cada um de seus capítulos é a “Oficina de idéias”, destinada à troca de idéias entre professor e alunos: As oficinas de idéias constituem um espaço de negociação, acordo e tomada de decisão para o encaminhamento de questões na perspectiva do grupo envolvido. Neste sentido, a habilidade de dialogar com os outros e com o(a) professor(a) constitui um aspecto a ser vivenciado pela criança. Outro aspecto importante a ser potencializado nesse momento é a capacidade de planejar coletivamente, o que faz o projeto se tornar propriedade dos sujeitos nele envolvidos. Nas oficinas de idéias, as crianças se tornam parceiras do(a) professor(a) no ato de planejar e organizar o projeto. Nessa perspectiva, as negociações feitas são fundamentais para o desenvolvimento do trabalho. (PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 17) Como fica implícito nesta afirmação e nos demais elementos do texto de assessoria pedagógica, as interações orais entre professor e alunos são tomadas como oportunidade para planejar e organizar as atividades em conjunto, bem como discutir regras e normas.
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    136 Nos exercíciospropostos no livro, há atividades de oralidade e trabalho em grupo. A cada início de projeto, há incentivo para que alunos e professores planejem juntos como o tema será estudado. Também são propostas rodas de conversa para discutir, em grupo, regras da turma, atividades a serem realizadas e avaliação dos projetos. Nas interações entre professor e aluno, o livro traz algumas sugestões para que o professor ajude o aluno. No entanto, a ajuda sugerida pelo livro pouco se refere ao incentivo à autonomia do aluno. Aqui cabe lembrar os níveis de ajuda sugeridos por Vigotski (apud BEATÓN, 2005), conforme Capítulo 2 dessa dissertação. Para o autor, o adulto pode incentivar a autonomia comunicando os objetivos da atividade para que a criança a execute sozinha. Não conseguindo êxito, pode fazer questionamentos que levem a criança a raciocinar sobre os passos necessários à execução da atividade. Transmitir diretamente o que deve ser feito é um recurso para o caso de o aluno não ter conseguido realizar as atividades autonomamente. No entanto, antes se deve tentar dar início à atividade junto à criança para que ela, depois, prossiga sozinha. Quase todos os exercícios do livro onde há proposta para o professor ajudar o aluno aludem mais à transmissão de um conteúdo ou idéia do que a questionamentos que poderiam ser realizados. O professor deve ler para o aluno em voz alta, escrever as respostas do aluno no quadro, apontar nos exercícios o que é para ser feito. Não há proposta de co-autoria de texto entre professor e aluno, apenas atividades nas quais o professor é o escriba do aluno. A atividade abaixo serve como exemplo: a) No poema, uma das tias conta uma história. Quem é ela? O professor ou professora vai registrar no quadro a resposta da turma. b) Qual o nome da história que essa tia conta? O professor ou professora também vai escrever no quadro o nome da história. (PROCÓPIO & PASSOS, 2004: 24) Quanto ao professor escrever o que a criança dita, Smolka (1996) tem uma importante colocação. Segundo a autora, quando o professor coordena em sala de aula uma produção de texto coletivo, ele não apenas registra a fala dos alunos, mas é também co-criador do texto. Este tipo de atividade ajuda a criança a expressar-se sem uma preocupação imobilizadora com as regras ortográficas e gramaticais, pois o professor, como co-autor, ajuda a refletir sobre estes aspectos. Para Smolka, existe uma diferença quando da criança é exigida uma escrita com correção ortográfica e gramatical, e
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    137 quando aescola permite que ela escreva para expressar suas idéias, pensamentos e sentimentos. Quando isto é feito, a criança pode tornar-se produtora de textos e significar a escrita como uma forma de expressão. Para isso é preciso permitir que a criança fale, se expresse. Embora Procópio e Passos, nas propostas de exercícios, tentem encorajar a interação entre professor e alunos, o fazem de modo estereotipado, artificial. A ordem dos exercícios interlocuciona com o aluno, mas é o professor quem é solicitado a ler. Além disso, conforme já foi dito no capítulo anterior, o texto de assessoria pedagógica interlocuciona com o professor no modo imperativo. Tratar com o outro no modo imperativo não seria uma comunicação opressora? Se o livro apresenta uma interlocução opressiva com o professor será que não o faz também com o aluno? Será que o tom imperativo, explícito na linguagem dirigida ao professor, não faz com que este se apropre de um ensino que evita a interação verbal e expressão do pensamento, tão necessários ao ensino da escrita como função cultural complexa? Além das interações professor-aluno, um importante aspecto do ensino das relações entre oralidade e escrita seria a reflexão sobre as diferenças entre fala e escrita e entre fala culta e fala coloquial, conforme já tratamos no capítulo quatro. Quanto às diferenças entre enunciados orais e escritos, vale retomar a concepção de Luria acerca deste tema. De acordo com Luria (1994), a fala durante um diálogo quase sempre pressupõe o conhecimento prévio do tema pelos participantes, motivo porque comporta elipses e omissões sem prejuízo da compreensão dos interlocutores. Luria chama este tipo de fala de ‘coloquial’. A escrita também é sempre formulada em função de um motivo. No entanto, pelo fato de a escrita ter um interlocutor ausente ou imaginário, precisa ser melhor explicitada e organizada. Se a escrita reproduzir as omissões, aglutinações e lacunas da fala, o resultado será a não compreensão do interlocutor. A escrita também pode pressupor o conhecimento prévio do interlocutor, assim como a fala. No entanto, isto não exime, nem aquele que escreve, e nem aquele que lê, de usar a memória para colocar as idéias em uma relação lógica que faça sentido e tenha relação com os conhecimentos prévios exigidos pelo texto. Podemos exemplificar esta tese de Luria do seguinte modo: um texto científico sobre as cobras pode já pressupor que o interlocutor saiba que esta espécie animal pertence à classe dos vertebrados e à família dos répteis. Isto, entretanto, não exime o leitor de organizar as idéias em um texto para estabelecer relações lógicas. Também não exime o leitor de retomar, na sua memória, seus conhecimentos prévios sobre a cobra a fim de
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    138 compreender melhoro texto. Mas, de acordo com Luria, mais complexo é o texto que trata de idéias novas. Neste caso, é ainda maior o esforço que o escritor precisa empreender para colocar as idéias em uma relação lógica. Embora existam tipos de escrita que não exigem explicação detalhada e comportem omissões e lacunas (por exemplo: escrita para si, seja para sistematizar um estudo ou expressar sentimentos) não foi este tipo de escrita que Luria e Vigotski investigaram. O estudo dos autores recaiu sobre a escrita como meio de interação social. Ora, quem sabe interlocucionar com o outro através da escrita, saberá interolocucionar consigo, mas o contrário não procede. O objetivo da escrita deve ser seu pleno desenvolvimento, que é a interlocução, a interação social e expressão do pensamento, para si e para o outro. A criança precisa se apropriar da escrita de modo a usá-la como outro meio de interlocução e ação sobre o mundo, além da fala. Sendo assim, na perspectiva da psicologia histórico-cultural não se pode pensar nas diferenças entre fala e escrita somente no aspecto formal. Não basta ensinar que a escrita funciona de um jeito e a fala de outro porque a escrita não é transcrição fonética da fala e porque na escrita só dispomos de pontuação para comunicar idéias. Se a escrita, para a psicologia histórico-cultural, é diferente da fala nos seus motivos e no nível de conscientização exigida, é preciso trabalhar as diferenças e inter-relações em análise que vá além das regras ortográficas, da pontuação e diferenças de estrutura e organização entre fala e escrita. Podemos primeiro questionar: Luria e Vigotski dão alguma pista ou indício de como ensinar as diferenças entre fala e escrita considerando que esta exige mais consciência e intenção? E, em segundo, podemos questionar se é possível trabalhar, com turmas de alfabetização, as diferenças entre fala e escrita em uma análise que vá além destes aspectos. A resposta à primeira questão é sim. Os indícios de Vigotski para trabalhar as diferenças entre fala e escrita são duas de suas quatro teses sobre o ensino da escrita: mais importante que o ensino das letras é o ensino da escrita como linguagem; e a escrita deve ser ensinada como algo necessário. Na medida em que a criança compreender os motivos que impulsionam a escrita e o quanto é preciso adaptar o registro escrito a estes motivos, poderá realizar uma reflexão mais sistemática sobre as diferenças entre fala e escrita. Como isso poderia ser feito com turmas de alfabetização? As teses de Vigotski nos levam a entender que isto poderia ser feito através de atividades que reproduzissem os usos sociais da escrita.
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    139 Aqui caberetomar a citação de Vigotski: “Eso significa que la escritura debe tener sentido para el niño, que debe ser provocada por necesidad natural, como una tarea vital que le es imprescindible”. (VIGOTSKI, 2000: 201) Se a escrita é uma linguagem, como afirma Vigotski - “(...) es preciso enseñar al niño el lenguaje escrito y no a escribir las letras” (VIGOTSKI, 2000: 203) -, então suas diferenças em relação à fala, em uma perspectiva histórico-cultural, só poderão ser trabalhadas em situações reais de uso. Durante as situações reais de uso da escrita poderá ser feita uma reflexão mais sistemática sobre como adaptar o registro escrito à intencionalidade. O livro didático analisado traz uma atividade que se relaciona com esta perspectiva. No projeto ‘Folclore’, o livro sugere que a turma chame um folclorista para entrevistar. Junto com esta proposta, o livro sugere que as crianças reflitam o melhor modo de entrevistar o folclorista e registrar a entrevista: Reúna-se com a turma e o professor ou a professora para selecionar as perguntas para a entrevista. Após a seleção das perguntas, organizem o roteiro da entrevista, pensando nas questões a seguir: a) Como as pessoas entrevistadas serão recebidas? b) Como serão feitas as perguntas e como serão registradas as respostas? c) Como vocês irão agradecer aos entrevistados? (PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 128) Esta atividade é interessante porque ajuda as crianças a refletirem sobre o modo de agir em uma situação de interlocução oral e escrita. Primeiro precisam refletir como fazer a entrevista para, por fim, refletir um modo de registrá-la por escrito. Procópio e Passos poderiam propor mais situações de uso real da escrita para promover a reflexão sobre as diferenças entre fala e escrita. Em uma perspectiva histórico-cultural, seria preciso promover meios para refletir mais sistematicamente sobre os modos de adaptar a escrita ao entendimento de um interlocutor ausente ou imaginário. Isto só pode ser feito em situações de uso real da escrita, o que será objeto de análise no tópico sobre escrita como necessidade. No que se refere às diferenças entre linguagem culta e coloquial na escrita e na fala, o texto de assessoria pedagógica do livro didático concebe que a escola deve evitar o mito de que é preciso corrigir a fala do aluno para que este possa se alfabetizar. Por
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    140 outro lado,considera que o ensino da língua portuguesa deve levar a criança à aprendizagem da fala culta. A língua portuguesa, na perspectiva que adotamos, constitui-se como produto de práticas comunicativas organizadas em atividades discursivas orais e escritas e marcadas pelas condições de produção e uso determinadas historicamente. Além disso, é preciso considerar que a “língua portuguesa, no Brasil, possui muitas variedades dialetais” (PCN – língua portuguesa) não se configurando, portanto, como um sistema homogêneo de discurso, mas como um sistema diversificado e heterogêneo. Nesse sentido, “para poder ensinar língua portuguesa a escola precisa livrar-se de alguns mitos: o de que existe uma única forma ‘certa’ de falar – a que se parece com a escrita – e o de que a escrita é o espelho da fala – e, sendo assim, seria preciso ‘consertar’ a fala do aluno para evitar que ele escreva errado” (PCN língua portuguesa). Assim, “a questão não é falar certo ou errado, mas saber qual forma de fala utilizar, considerando as características do contexto de comunicação, ou seja, saber adequar o registro às diferentes situações comunicativas” (PCN língua portuguesa). (PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 09). Nos exercícios do livro didático, são apresentadas algumas atividades nas quais o aluno é questionado se deve escrever ou falar usando linguagem formal ou informal. Por exemplo, ao escrever uma carta ao colega, a criança deverá, antes, decidir se escreverá em linguagem formal ou informal. Ao planejar uma entrevista a um folclorista, o livro questiona qual linguagem o aluno acha adequado usar na fala. O livro mostra que, tanto na fala, quanto na escrita, existe uma linguagem formal e outra informal. Também há questionamentos acerca das expressões presentes em músicas do folclore. Por exemplo, o livro questiona se as palavras ‘mulé’ e ‘namorá’, presentes em uma música, estão corretas, e questiona qual seria a palavra do dicionário adequada para substituí-las. No projeto “Histórias de Vida”, a criança deverá escrever a própria história ou a de alguém conhecido. O livro traz a seguinte sugestão: “Atenção: Se a pessoa for um amigo ou uma amiga, a linguagem poderá ser mais informal. Caso contrário, discuta com seu professor ou com sua professora a linguagem mais adequada”. (PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 206)
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    141 No projeto“Histórias em quadrinhos, gibis e outros “bichos””, há uma atividade na qual os personagens de uma história aparecem, com seus respectivos balões, reproduzindo o seguinte diálogo: “- Manhê! - Ainda acordado, filho? Tá sentindo alguma coisa? - Tô...” (PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 49). Ao lado dos personagens com seus balões há um quadro, no qual o mesmo diálogo é reproduzido em formato de texto, sem, entretanto, ser cópia fiel da fala: “- Mãe! - Ainda acordado filho? Está sentindo alguma coisa? - Estou...” (PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 49). A ordem do exercício pede que o aluno observe as diferenças entre o texto dos balões e o texto do quadro. Interessante observar que a ilustração do livro mostra os personagens de quadrinhos ao lado do texto que reproduz a fala, enquanto o texto correto do ponto de vista formal aparece em um quadro, sem personagens, mas apenas com os travessões. Aqui parece haver uma tentativa de associar a escrita reprodutora da fala com situações de diálogo entre pessoas e personagens. É possível concluir que o livro trata das diferenças entre linguagem formal e informal como se bastasse o aluno escolher qual forma de linguagem usar. Assim, se o interlocutor é um amigo, o aluno pode usar a escrita informal. Há ausência no livro didático de propostas que levem o aluno a refletir sobre como adaptar o registro escrito à compreensão do leitor. Ora, mesmo se o interlocutor do escrito for um amigo, isto não exime quem escreve de buscar se fazer entender através da escrita. Para tratar de variações dialetais, o livro traz um convite de festa de São João que reproduz a fala de um nativo do interior de São Paulo. O texto não apresenta erros decorrentes de trocas de letras em relações arbitrárias ou contextuais, e nem erros de concordância verbal. Ou seja, o texto não é uma transcrição fonética, e nem transcrição da fala, mas sim a reprodução de uma variação dialetal: A festa vai cumeçá bem cedo e ocê num vai pudê fartá. Venha vestido a caráter pra depois num se envergonhá. Fiquei sabendo que o(a) caipira mais bunito(a) até prêmio vai ganhá. O casamento vai ta muito animado, mas vê se não vai se atrasá. A quadrilha cumeça depois que o casamento acabá. A cumilança vai ta maravilhosa e ainda terá bingo, quentão, pipoca, camjica e muito mais... (PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 93) A partir deste texto, um exercício questiona se a criança sabe por que o autor usou esta linguagem, e se já ouviu alguém falando deste jeito. Quando o livro propõe que o aluno crie seu convite de festa de São João, questiona que linguagem irá usar.
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    142 Provavelmente olivro tenta mostrar que a transcrição da variação dialetal dos habitantes do interior de São Paulo é adequada para um convite de festa junina, mas não para a redação de outros registros escritos. Portanto, esta não pode ser considerada uma atividade de reflexão sobre o motivo porque não podemos escrever do jeito que falamos. A atividade apenas transmite a idéia de que a reprodução da fala dos ‘caipiras’ é adequada para um convite de festa de São João. Podemos inclusive nos questionar se a idéia aqui transmitida não acaba por propagar uma imagem estereotipada da população do interior de São Paulo. Na análise das diferenças entre linguagem culta e coloquial na fala e na escrita, podemos chegar à mesma conclusão a que chegamos na análise das diferenças de estruturação da escrita em relação à fala. O livro didático não produz um questionamento maior sobre as diferenças entre fala e escrita. Para isso, precisaria levar o aluno a entender que: a escrita não é transcrição fonética da fala; a escrita não pode conter as mesmas lacunas, abreviações e aglutinações que a fala; a escrita exige maior detalhamento por se destinar a um interlocutor ausente ou imaginário. Este tipo de reflexão, em uma perspectiva histórico-cultural, só pode ser realizado na medida em que a criança for levada a sentir necessidade de serer compreendida e se expressar através da escrita. Por este motivo, o trabalho das relações entre fala e escrita só podem ser relacionados ao ensino da escrita como necessidade, última categoria analisada no livro didático. 5.4.2. A escrita como necessidade Na análise da escrita como necessidade, o ponto de partida foi a seguinte questão: quais tipos de atividades poderiam ser realizadas para levar a criança a sentir necessidade da escrita? Quando Vigotski (2000) afirma que é preciso levar a criança a sentir necessidade da escrita, não qualifica esta necessidade. Embora o autor deixe claro que a escrita organiza o pensamento e desenvolve as funções superiores, não diz como a criança pode vir a sentir necessidade de escrever, nem diz por que a escrita é necessária. Como Vigotski não qualifica a necessidade, foi preciso defini-la a partir de indícios encontrados na psicologia histórico-cultural. Como já vimos, na perspectiva da psicologia histórico-cultural, ‘atividade’ é a ação que apresenta dois momentos distintos e inter-relacionados: planejamento e execução. A relação entre estes dois momentos é o objetivo. Toda atividade caracteriza-se por ter um objetivo. Por sua vez, os objetivos
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    143 diferem dasações executadas no decorrer da atividade, de modo que esta é caracterizada pela não coincidência entre objeto e motivo (LEONTIEV, s/d). A partir deste princípio, foi definido que os tipos de atividade que podem desenvolver a necessidade da escrita são todas aquelas cujo objetivo não é apenas a aprendizagem formal da escrita, mas sim o seu uso em situações reais. Ao dizer que o objetivo do ensino não deve ser o ensino das letras, mas sim da escrita como linguagem, Vigotski fornece uma ‘pista’ para qualificarmos o que vem a ser escrita como necessidade. Dizer que a escrita é uma linguagem, significa concebê-la como outro meio, além da fala, de interação e interlocução. Quando a criança compreende a escrita como linguagem, significa que se apropria dos seus usos sociais e a utiliza para interagir, comunicar e influenciar e compreender seu meio. Em uma primeira leitura do livro, já foi possível perceber que ele trata a escrita como algo necessário, tanto nos exercícios, quanto no texto de assessoria pedagógica. Ou seja, ele propõe atividades nas quais a criança escreve com outros objetivos além do desenvolvimento da escrita. Claro que o objetivo do livro didático, em todas as suas atividades, é levar ao desenvolvimento da escrita. No entanto, há uma diferença entre exercícios que só consistem em escrever para aprender a escrever, e atividades que envolvem a leitura e a escrita para chegar a outros objetivos. São exemplos de exercícios cujo único objetivo é desenvolver a escrita: juntar sílabas para formar palavras, copiar textos, ler frases soltas, copiar frases, completar palavras com letras que faltam, etc. Por sua vez, são exemplos de atividades que envolvem a leitura e escrita para chegar a outros objetivos: ler uma receita para fazer um bolo, ler jornal para informar-se, escrever para trocar correspondência. O livro traz atividades dos dois tipos. No texto do livro didático destinado aos professores, a escrita como necessidade é relacionada aos diferentes tipos de texto. O livro didático cita uma categorização de tipos de texto proposta por Curto, Murillo e Texido (apud PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 10). Nesta categorização, são relacionados os seguintes tipos de texto: enumerativos, informativos, literários, expositivos e prescritivos. Cada tipo de texto é relacionado com sua respectiva função. Por exemplo, os textos literários são colocados como tendo as funções de distrair, partilhar emoções e desenvolver a sensibilidade estética; os textos enumerativos as funções de recordar, registrar, ordenar dados concretos e informações pontuais e assim por diante. Nos exercícios do livro didático, foram encontradas as seguintes atividades que trabalham a escrita como necessidade: troca de correspondência com um colega; leitura
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    144 de umareceita de massinha de modelar para confeccionar bonecos; leitura de uma instrução para confeccionar fantoches e escrita de um roteiro para fazer o teatro de fantoches; gravação, em fita cassete, da leitura de uma lenda do folclore brasileiro com o objetivo, segundo o enunciado do livro, de mostrar às gerações futuras; leitura de uma instrução para montar um canteiro de plantas; redação de um relatório de observação de animais; escrita de cartazes para fazer manifestação em defesa do meio ambiente. Estas atividades trabalham a escrita como necessidade porque requerem que o aluno leia e escreva para atingir outros objetivos que não desenvolver os aspectos formais da escrita. Algumas atividades envolvendo a escrita como necessidade, inserem-se em determinado projeto temático. No projeto sobre festa de São João, intitulado “É junho, pessoal”, o livro propõe várias atividades envolvendo planejamento, organização e divulgação de uma festa de São João: primeiro sugere a escrita de um roteiro da organização da festa; depois a redação da lista de convidados da festa e a confecção do convite e do cartaz de divulgação. O livro traz impresso um exemplo de cartaz e outro de convite, provavelmente com o objetivo de servir de modelo aos alunos. O cartaz de divulgação vem acompanhado de instruções sobre regras para sua confecção: Durante a confecção lembre-se: I – O cartaz serve para ser lido de longe. II – O cartaz deve atrair o olhar das pessoas. III – As informações devem ser rápidas. (PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 96) Para a organização da festa, o livro traz uma receita de cajuzinho e outra de pé-de- moleque, doces típicos de festa de São João, e instruções para montar o jogo da pescaria e uma quadrilha. Sugere, ainda, que o aluno, em grupo, elabore uma notícia da festa para enviar a um jornal local ou da escola. O livro apresenta algumas omissões ao tratar a escrita como necessidade. A leitura e escrita de textos científicos praticamente não são contempladas. No projeto “Plantas e bichos”, o livro traz três textos retirados de uma enciclopédia. Embora o projeto tenha o objetivo de ensinar sobre as plantas e os bichos, não traz nenhum texto sobre as plantas, mas três sobre animais: a cobra, o macaco e o camaleão. Conforme já vimos, na perspectiva da psicologia histórico-cultural, os conceitos científicos são necessários para a evolução do pensamento. É possível afirmar que o livro didático traz poucas propostas para o desenvolvimento dos conceitos científicos. Os textos sobre os animais trazem apenas um apanhado de curiosidades sobre a cobra, o macaco e o
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    145 camaleão, enão uma sistematização científica. Há vários temas que podem ser desenvolvidos para ensinar sobre os animais de modo a sistematizar um conceito científico: famílias dos animais, modos de reprodução, hábitos alimentares, cadeia e teia alimentar, extinção e declaração universal dos direitos dos animais, dentre outros. Conforme já vimos, Vigotski considera que o ensino de conceitos científicos requer do professor conhecimentos acerca da história do desenvolvimento da criança. Além disso, o ensino precisa desenvolver a autonomia do aluno. O contrário disso, um ensino meramente transmissivo e sem preocupação com a compreensão do aluno, acaba por gerar apenas a substituição de um conceito desconhecido por outro igualmente estranho ao aluno. Assim, se o ensino precisa desenvolver a autonomia do aluno, mas, ao mesmo tempo, os conhecimentos científicos são necessários para o desenvolvimento das funções superiores, é preciso pensar em modos de ensinar conceitos. É possível que a mesma tese de Vigotski sobre o desenvolvimento da escrita se aplique ao desenvolvimento dos conceitos científicos. Neste caso, é preciso ensinar os conhecimentos científicos como algo necessário para a criança. Como fazer isso? Talvez um meio seja aguçar a curiosidade da criança sobre o mundo que a cerca. Para isso, é preciso um diálogo maior entre professor e alunos, no qual estes possam expor suas dúvidas, questionamentos e hipóteses sobre os fenômenos naturais, as próprias vivências e sobre o que é visto e ouvido nos meios de comunicação. A leitura de textos científicos, nesta perspectiva, teria como objetivo obter informações relevantes para maior compreensão da realidade e também a ampliação do conhecimento sobre o mundo. Por sua vez, a escrita teria o objetivo de sistematizar e divulgar os conceitos científicos, além de ajudar a criança a se apropriar de suas aprendizagens. A maior lacuna do livro são suas propostas de produção textual. Embora traga atividades envolvendo os usos sociais da escrita, não incentiva a criança a escrever. Há duas propostas para a criança produzir textos artísticos: a criação do teatro de fantoches e a criação da história em quadrinhos. Chama a atenção, em ambas propostas, o roteiro que o livro propõe para que a criança crie sua história. Para a criação da história em quadrinhos, traz um quadro para a criança preencher, tendo o objetivo de ajudá-la a planejar sua história. No quadro, a criança deve preencher qual será o tema, o cenário e os personagens da história em quadrinhos. A página seguinte é destinada à escrita da história. Para a criação do texto de teatro de fantoches, o livro não sugere que seja criado um texto específico para teatro. Ao invés disso, pede que a criança crie, em grupo, uma
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    146 história partindodo seguinte roteiro: título, autores (alunos), personagens, cenário, trama, desfecho e tipo de linguagem que será usada para escrever. Interessante observar que para cada item há três linhas para a criança preencher. O que se observa, tanto para a atividade de criação da história em quadrinhos, quanto para a atividade de criação da história para teatro de fantoches, é a delimitação imposta pelo livro. Na história em quadrinhos há seis espaços para a criança criar a história, todos do mesmo tamanho. Também há um espaço reservado para a criança preencher o autor e o título. Estes espaços delimitados entram em contradição com o modo como são organizadas as histórias em quadrinho em geral, sempre com quadrinhos em quantidades, tamanhos e formas variadas. Como exemplo de quadrinhos, o livro traz quatro histórias, com os seguintes personagens: Garfield, Calvin e Menino Maluquinho, dos quadrinistas Jin Davis, Bill Watterson e Ziraldo, respectivamente. Na criação do texto para teatro de fantoches, há um roteiro formatado com três linhas para a criança preencher em cada item. Não há nenhum exemplo de roteiro para teatro, pois a criança deve escrever um pequeno conto para representar, e não um teatro. Das observações acerca do modo como o livro propõe a criação nestas duas atividades fica um questionamento: será que se a criança entrasse em contato com vários exemplares de um tipo de texto e dispusesse de espaços e propostas mais livres para a criação, não desenvolveria mais a capacidade de escrita? Será que estas delimitações do livro nas atividades de escrita não emperram o desenvolvimento, produzindo um modo estereotipado e formatado de produzir textos? Nas demais atividades de produção de texto, também se percebe a tendência de reescrever seguindo um modelo ou roteiro pré-definido. No projeto “Histórias de Vida”, o livro propõe que o aluno escreva uma biografia ou autobiografia a partir do seguinte roteiro: “Sobre quem vou escrever? Como e onde vou obter informações sobre essa pessoa? Como vou registrar as informações obtidas? Como irei organizar as informações em um texto? O que farei com a história após escrevê-la? Para quem irei escrever? Para quem enviarei o texto depois de escrito?” (PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 185). A princípio parece que este é só o projeto para a escrita de uma biografia ou autobiografia. Entretanto, duas páginas depois o livro apresenta o seguinte quadro para a criança comparar sua vida com a de Miró:
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    147 Miró Você Data de nascimento Cidade onde nasceu Pessoas com quem viveu ou vive Interesses pessoais Outras coisas que quiser registrar (PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 188) Provavelmente, este tipo de formatação já é uma espécie de sugestão para que a criança escreva a biografia ou autobiografia seguindo o modelo pré-estabelecido. A partir da análise das atividades de produção de textos propostas no livro didático, fica a seguinte questão: o fato de todas as atividades de produção de textos consistirem em propostas para que as crianças formatem suas escritas em tabelas e quadros, não seria um meio de evitar seus erros? Cabe aqui lembrar a já citada crítica que Smolka (1996) faz ao fato de a escola não permitir que a criança escreva sobre o que pensa. Segundo a autora, isto ocorre porque a escola tem medo dos erros do aluno, uma vez que, quando a criança está em início do processo de alfabetização, revela seu pensamento na escrita, com todas suas lacunas, elipses e abreviaturas. Será que, ao evitar as situações de produção de texto que permitam a livre expressão, o livro não está revelando o medo dos erros presentes na escrita da criança em fase inicial de alfabetização? Podemos, aqui, fazer uma relação com a escrita como sistema de signos e instrumentos. Os exercícios do livro didático tomam a escrita mais como instrumento do que como signo. As atividades, embora levem a criança a interagir com o meio através da escrita, pouco possibilitam a apropriação da escrita como meio de compreensão de conhecimentos mais amplos e sistematizados sobre a escrita como linguagem e possibilidade de interlocução. Aqui cabe lembrar que, se falamos da escrita como necessidade como sendo um fator para o seu desenvolvimento, esta necessidade não constitui, necessariamente, um uso instrumental da escrita. Sabemos que, quando o homem usa a escrita em situações sociais, concretas, pode tanto estar usando-a como signo, quanto como instrumento. É bastante tênue o limite entre signo e instrumento. Assim, por exemplo, uma carta, embora possa ser um instrumento para que os homens
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    148 se comuniquemà distância, também pode se constituir como signo, ao transformar, ou pelo menos agir sobre, as funções psíquicas superiores. Sendo assim, pensar nos usos sociais da escrita, - escrita de carta, leitura de receita culinária, bula de remédio, jornal, erc. -, não significa tomar a escrita apenas como instrumento. Para Vigotski (2000), a escrita precisa tornar-se uma função cultural complexa. O autor não chega a aprofundar o que vem a ser escrita como função cultural complexa, no entanto, a leitura atenta de alguns escritos de Vigotski e Luria leva a entender que escrita como função cultural complexa é o mesmo que uso da escrita como uma linguagem, qualitativamente diferente da fala, embora com ela relacionada. Já vimos que Vigotski considera que a fala é o nexo intermediário inicial entre as formas de representação e seus significados, mas este nexo precisa desaparecer para a criança operar com a escrita como linguagem. Recapitulando, são três as aprendizagens que a criança precisa fazer para desenvolver a escrita como linguagem: apropriar-se das relações grafemas-fonemas a ponto de não precisar mais pensar nelas para escrever; entender que a escrita é diferente da fala porque se dirige a um interlocutor ausente ou imaginário, não podendo conter as mesmas lacunas, elipses e abreviaturas que a fala; e apropriar-se da escrita como uma necessidade. Agora, temos elementos para pensar se o livro didático analisado pode constituir-se como mediador do processo de ensino da escrita como função cultural complexa. Embora traga atividades envolvendo diversos tipos de textos e possibilidades variadas de usos da escrita, o livro não permite que a criança tenha uma compreensão mais complexa acerca da escrita. O suporte do livro didático já é, por si só, um limite para a mediação da aprendizagem da escrita. A aprendizagem da escrita, na perspectiva de Vigotski, exige interlocução ativa. Um livro não pode, de fato, dialogar com a criança. O livro de Procópio e Passos traz outra dificuldade, o excesso de exercícios que levam a criança a formatar sua escrita em quadros e tabelas. Estes exercícios, de algum modo, podem levar a criança a se apropriar de uma escrita formatada, limitada. Como a criança vai usar a escrita para se comunicar se não pode usá-la para se expressar? O livro propõe que a criança use a escrita em situações reais cotidianas, como ler uma receita, uma instrução, escrever um cartaz e um convite. Entretanto, tem muitos limites no que tange a apresentar, para a criança, a escrita como outro meio de interlocução, além da fala. Com isso, acaba sendo limitada a interlocução estabelecida entre criança, professor e livro didático, no que se refere às relações entre pensamento, oralidade e escrita. A criança não compreende como a escrita pode expressar idéias e pensamento
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    149 de modoqualitativamente diferente da fala. Também não aprende a recorrer à escrita para sanar curiosidades e dúvidas ou obter prazer estético. 5.5. Conclusões a partir da análise do livro didático Os fatores de desenvolvimento da pré-história da escrita na ontogênese apareceram no livro didático, que trouxe atividades envolvendo o gesto, o desenho e o jogo. Estes elementos só se constituem como nexos intermediários do desenvolvimento da escrita se atuam como meios de representação simbólica. Para isso, o gesto e o desenho precisam representar a linguagem e o jogo conter elementos de simbolismo, nos quais coisas sejam usadas para representar outras coisas. O gesto, como primeiro meio de simbolização desenvolvido pela criança, não é uma atividade escolar; qualquer criança que cresça em interação com um outro, que atribua significado aos seus movimentos, usará o gesto para simbolizar a linguagem, ou seja, como forma rudimentar de escrita. O desenho pode não ser, para a criança, uma linguagem; a criança pode desenhar bem e, no entanto, não saber usar o desenho para representar a fala. O desenho, enquanto representação, requer a mediação de um outro. A maioria dos exercícios do livro didático traz atividades nas quais o desenho é usado apenas como meio de ilustrar um texto, e não como linguagem. Os jogos que aparecem no livro são, em sua grande maioria, pedagógicos, tendo como objetivo levar a criança a ler e escrever. Embora o jogo de faz-de-conta seja importante para o desenvolvimento da escrita, pouco cabe ao livro propor este tipo de jogo, que emerge sempre das interações entre as crianças. Para que a criança brinque de faz-de-conta necessita de espaço e tempo, e não da proposta de um livro didático. O gesto, o desenho e o jogo são fatores do desenvolvimento da escrita que dependem de um outro que construa com a criança as significações de suas ações. Por este motivo, é possível afirmar que o professor e a escola têm um papel muito mais importante nas atividades de representação simbólica do que o livro didático. O livro pode até trazer propostas de gestos, jogos e desenhos, mas a significação destes como linguagem e interação só pode emergir das interações entre a criança e o adulto. Ora, o desenvolvimento da escrita ocorre a partir da representação simbólica mediada pela linguagem e pela interação com o outro. O ensino da escrita como simbolismo de segunda ordem poderia ser mais contemplado no livro. Na perspectiva da psicologia histórico-cultural, este ensino pode ser realizado através de jogos e de atividades nas quais a criança compreenda a necessidade de aprender os aspectos formais da escrita, para conseguir usá-la como
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    150 linguagem. Asrelações grafemas-fonemas, importante fator do desenvolvimento da escrita como simbolismo de segunda ordem, é um ensino complexo que exige do professor conhecimento sobre o sistema gráfico. Talvez seja pelo desconhecimento do sistema gráfico que o professor não consiga ensinar as irregularidades ortográficas na medida da curiosidade e necessidade da criança. É mais fácil sistematizar o ensino das irregularidades em forma de exercícios e instrução formal, do que trabalhá-las de modo mais espontâneo, respondendo aos questionamentos que os alunos fazem quando envolvidos em situações reais de uso da escrita. Também para elaborar jogos que trabalhem as irregularidades ortográficas, é preciso conhecimentos do sistema gráfico, pois, no jogo, as crianças ficam mais livres e espontâneas, pensam e perguntam mais. Nos exercícios repetitivos e transmissões pelo professor, é mais fácil controlar a curiosidade da criança. O livro didático poderia servir de suporte ao professor para o ensino do sistema gráfico, se trouxesse a sistematização das regularidades e irregularidades ortográficas, para servir de consulta ao professor sempre que ele, ou seus alunos, apresentassem dúvidas neste sentido. O ensino da escrita como linguagem requer interação professor-aluno em prol de atividades significativas envolvendo os usos reais da escrita. O livro analisado traz várias atividades neste sentido, como organização de entrevista, relatório de observação de animais, execução de receita culinária. Entretanto, não traz propostas de atividades nas quais a criança se expresse livremente através da escrita. Provavelmente, para evitar a escrita idiossincrática da criança que transcreve a fala, o livro traz propostas de produção de texto nas quais a criança precisa adaptar sua escrita a tabelas e formatos rígidos. Resta saber se o livro didático analisado apresenta ou não uma proposta hitórico-cultural de alfabetização. A partir da resposta a essa questão, podemos também pensar em qualquer livro didático. Poderia um livro didático desenvolver a escrita como função cultural complexa? Com quais instrumentos de ensino? Para buscar resposta a esta questão, passemos a uma análise conclusiva, englobando as possibilidades e os limites da apropriação pelo livro didático da totalidade da teoria sobre o desenvolvimento da escrita da psicologia histórico-cultural.
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    151 CONSIDERAÇÕES FINAIS Podemos começar esta conclusão buscando responder às questões: como o livro didático de alfabetização se apropria da teoria de Vigotski sobre o desenvolvimento da escrita? Pode um livro didático se apropriar desta teoria? Como? Em relação ao livro didático analisado, podemos dizer que ele não se apropria da teoria de Vigotski acerca do desenvolvimento da escrita. Se tomarmos ‘apropriação’ no sentido histórico-cultural de reconstrução subjetiva da palavra do outro, da cultura e do conhecimento histórico, não há apropriação pelo livro didático analisado da teoria de Vigotski. O livro cita a ‘mediação’ e a ‘zona de desenvolvimento próximo’, importantes categorias do autor, no seu texto de assessoria pedagógica. Entretanto, cita descuidadamente, sem tentar desvelar para o professor-interlocutor o significado destas categorias e suas implicações para o processo de alfabetização e de ensino-aprendizagem. Cita sem explicar, erradamente, levando a entender que mediação é o mesmo que transmissão do conhecimento. A teoria de Vigotski sobre o desenvolvimento da escrita traz importantes contribuições para a alfabetização. O autor remete à importância do jogo, do desenho, da leitura silenciosa, da passagem da escrita como simbolismo de segunda para primeira ordem, do ensino da escrita como sendo algo necessário para a criança, da importância das interações para a construção de qualquer forma de representação simbólica, dentre as quais se inclui a escrita. O livro didático analisado traz atividades de jogo, desenho, leitura silenciosa e uso da escrita em situações reais. Embora contenha algumas boas atividades, principalmente jogos, na sua grande maioria são propostas destituídas de simbolismo e de significação. Isto porque a criança não é levada a se expressar através da escrita. Os exercícios propostos no livro obrigam a criança a escrever segundo modelos rígidos, preenchendo tabelas e respondendo questões. Há alguns bons textos para a criança ler no livro didático: histórias em quadrinhos, poemas, lendas, contos, letras de música. Mas estes bons textos são acompanhados de uma espécie de cerceamento da compreensão, da expressão e da atividade criadora da criança. Logo após o texto vem uma questão objetiva, uma tabela para a criança preencher, um exercício para trabalhar as letras. São poucas as questões postas no livro que levam a criança a refletir sobre as idéias de um texto.
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    152 O impedimentode que a criança escreva livremente advém, provavelmente, do medo das escritas idiossincráticas, próprias do início do processo de alfabetização. Procópio e Passos, autoras do livro, podem ter revelado um medo das escritas idiossincráticas da criança. Claro que este medo não é das autoras, é, sim, um medo presente na cultura da escola, que foi apropriado pelas autoras e expresso no livro didático. Também o modo como aparecem, no livro didático analisado, as propostas de interpretação de textos, revelam o medo das interpretações idiossincráticas do texto pela criança. Para Vigotski (1993), a fala egocêntrica é um momento da apropriação subjetiva da cultura. O pensamento é anterior à fala egocêntrica, até mesmo porque existe, na ontogênese, uma etapa de pensamento pré-lingüístico, ou seja, não verbal. Mas a escrita é posterior ao pensamento verbal, pois, para escrever, a criança já precisa ter desenvolvido uma fala, uma verbalização interior. Pensamento e escrita são coisas distintas. O pensamento é repleto de lacunas, aglutinações, omissões. Se a escrita transcrever o pensamento, o resultado será a não compreensão pelo outro. Por este motivo, é preciso que, gradativamente, a criança aprenda a organizar sua escrita para que ela possa ser compreendida pelo outro. Mas, para isso, é preciso que sinta necessidade de ser compreendida pelo outro. A escrita para o outro se torna uma escrita para si na medida em que, ao ser organizada e sistematizada para a compreensão do outro, acaba por organizar o próprio pensamento. Entretanto, não se pode fugir do texto idiossincrático que reproduz fala e pensamento, ele faz parte do processo de apropriação da escrita. Como a criança sentirá necessidade de escrever se não for encorajada a escrever suas idéias e pensamentos? Como a criança poderá organizar escrita e pensamento sem poder escrever seu pensamento? E a escrita do próprio pensamento é, necessariamente, idiossincrática na sua fase inicial. Ora, a escrita não é somente necessária para atividades pragmáticas, como ler uma receita culinária ou fazer uma lista de supermercado. Mais do que isso, ela é uma linguagem, qualitativamente diferente da fala, que organiza o pensamento. O que são o gesto, o desenho e o jogo se não formas iniciais de representar o próprio pensamento? Não jogar e não desenhar, segundo Vigotski (1993), freia o processo de desenvolvimento da escrita. Podemos, hipoteticamente, afirmar que a ausência destas atividades freia o desenvolvimento da escrita porque impede a expressão.
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    153 Do mesmomodo, podemos afirmar, hipoteticamente, que impedir a criança de expressar seu pensamento através da escrita impede sua passagem às formas superiores de escrita. Em defesa do livro didático, podemos dizer que ele não se coloca como único tutor do processo de desenvolvimento da escrita, mas sim como apenas um dos elementos. Por este motivo, a ausência de possibilidades para que a criança desenvolva as formas superiores de escrita nos exercícios do livro didático não impede que o professor trabalhe nesta perspectiva. Contudo o livro promove, sim, uma apropriação pelo professor de certa concepção de ensino e aprendizagem da escrita. Concepção pragmática, que impede a passagem às etapas superiores de escrita porque não permite a escrita como outro meio de comunicação além da fala, e porque impede a interpretação livre de textos. Concepção que denota o medo das idiossincráticas interpretações de textos e produções escritas das crianças e, com isso, reduz as possibilidades para que a criança utilize a escrita como linguagem. Podemos passar à última questão: pode um livro didático se apropriar da teoria de Vigotski sobre o desenvolvimento da escrita? Como? Para se apropriar da teoria de Vigotski, o autor do livro didático precisa conferir à escrita o significado de linguagem e função cultural complexa. Mas os significados da escrita como linguagem emergem justamente das interações sociais. O livro só pode interagir em sentido unidirecional com professor e aluno, pois não pode ouvir e dialogar. A interação do livro com professor e alunos é limitada. Por este motivo, seria interessante que autores de livros didáticos não tentassem assumir, na escrita dos exercícios e de textos de assessoria pedagógica, a função de um outro que dialoga com professor e aluno. Esta tentativa resultará sempre fracassada, dado o limite da interação entre um livro e um interlocutor imaginário. A interação possível entre o livro e a pessoa é a interpretação subjetiva da pessoa e a preocupação, de quem escreve o livro, em se fazer entender. Ora, não há diálogo entre livro e aluno, ou entre livro e professor, de modo que é uma estereotipia, e um contra-senso, o livro ser escrito em modo de diálogo com aluno ou com professor. É preciso pensar nas necessidades dos professores e alunos envolvidos no processo de ensino e aprendizagem da escrita, segundo a psicologia histórico-cultural. Estas necessidades, como já vimos, são todas as formas de representação cuja
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    154 significação émediada pelo outro, além do ensino sistemático das arbitrariedades da escrita. Dentre estas necessidades, há alguma que o livro didático possa suprir? Quais? Penso que há várias. Para o professor, o livro pode trazer uma sistematização das regras do sistema gráfico da língua portuguesa e sugestões de atividades envolvendo gesto, desenho e jogo. Para o aluno pode trazer propostas de jogos que o levem a fazer leitura oral e silenciosa ou refletir sobre as relações grafemas-fonemas. Também pode trazer alfabeto móvel e passatempos. As propostas de interpretação e produção de texto devem emergir da interação entre professor e aluno, não do livro didático. Assim, um livro didático pode, sim, ser constituído na perspectiva da psicologia histórico-cultural. No entanto, apenas como coadjuvante, como um dos muitos elementos que mediam o desenvolvimento da escrita. Mas, para isso, é preciso que os autores de livro didático, em geral, assumam conscientemente seu papel de coadjuvante, ou seja, que entendam quais são as necessidades requeridas pela apropriação da escrita pelas crianças e, dentre estas, quais as que pertencem ao domínio da interação entre professor e aluno e quais as que podem ser objeto do livro didático.
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    155 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BATISTA, Antônio Augusto Gomes & VAL, Maria da Graça Costa. Livros didáticos, controle do currículo, professores: uma introdução. In: __________ (Orgs). Livros de alfabetização e de português: os professores e suas escolhas. Belo Horizonte: CEALE; Autêntica, 2004. BEATÓN, Guillermo Arías. Evaluación y diagnóstico en la educación y el desarrollo desde el enfoque historico cultural. São Paulo: Laura Marisa C. Calejón, 2001. __________. La persona en lo histórico cultural. São Paulo: Linear B, 2005. CAGLIARI, Luiz Carlos. Alfabetizando sem o ba-bé-bi-bó-bu. São Paulo: Scipione, 2003. DUARTE, Newton. Vigotski e o “aprender a aprender” – Crítica às apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana. Campinas: Autores Associados, 2004. FARACO, Carlos Alberto. Escrita e alfabetização. Dificuldades ortográficas. O domínio da linguagem escrita. Variedades dialetais e alfabetização. São Paulo: Contexto, 2003. FERREIRO, Emilia. Com todas as letras. São Paulo: Cortez, 1995. __________ (org). Relações de (in) dependência entre oralidade e escrita. Porto Alegre: ARTMED, 2004. FRANCHI, Eglê. E as crianças eram difíceis... A redação na escola. São Paulo: Martins Fontes, 1998. GASPARIN, João Luiz. Uma Didática para a Pedagogia Histórico-Crítica. Campinas, SP: Autores Associados, 2003.
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