MINISTÉRIO DA SAÚDE




                                               Mem ó ri a s d a Sa ú d e d a F a mí li a n o Bras il
                                                                                                       M e móri a s d a
                                                                                                       Saúde da Família


                                                                                                                            2010

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MINISTÉRIO DA SAÚDE
                                       Secretaria de Atenção à Saúde
                                      Departame nto de Atenção Básica




                                 MEMÓRIAS DA SAÚDE DA FAMÍLIA NO BRASIL




                                      Série I. História da Saúde no Brasil




                                                Brasília – DF
                                                   2010




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© 2010 Ministério da Saúde
                                 Todos os direitos reservados. É permitida a reprodução total ou parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte e que não seja
                                 para venda ou qualquer fim comercial.
                                 A responsabilidade pelos direitos autorais de textos e imagens desta obra é da área técnica.
                                 A coleção institucional do Ministério da Saúde pode ser acessada na íntegra na Biblioteca Virtual em Saúde, do Ministério da Saúde:
                                 http://www.saude.gov.br

                                 Tiragem: 1ª edição – 35.000 exemplares

                                 Elaboração, distribuição e informações:

                                 MINISTÉRIO DA SAÚDE
                                 Secretaria de Atenção à Saúde
                                 Departamento de Atenção Básica
                                 Setor de Administração Federal Sul – SAF/Sul, Quadra 2, Lotes 5 e 6, Bloco II – Subsolo
                                 CEP: 70.070-600 – Brasília – DF
                                 Fone: (61)3306.8090
                                 E-­mail: dab@saude.gov.br
                                 Home page: www.saude.gov.br/dab
                                                                                                Luis Odorico Monteiro de Andrade
                                 Supervisão geral:
                                                                                                Luis Pisco
                                 Claunara Schilling
                                                                                                Maria de Fátima de Sousa
                                 Coordenação Geral e Supervisão Técnica:                        Raphael Augusto Teixeira de Aguiar
                                 Elisabeth Susana Wartchow                                      Samuel Jorge Moysés
                                                                                                Vinícius de Araújo Oliveira
                                 Antonio Sérgio de Freitas Ferreira                                         Revisão:
                                 Renata Ribeiro Sampaio                                                     Ana Paula Reis
                                 Elaboração de texto:                                                       Colaboração:
                                 Adib Jatene                                                                Tiago Santos de Souza
                                 Ana Estela Haddad                                                          Iracema Benevides
                                 Andy Haines
                                                                                                            Colaboração técnica:
                                 Antônio Carlile Olanda Lavor
                                                                                                            Aline Azevedo da Silva
                                 Carlos Grossman
                                                                                                            Celina Marcia Passos de Cerqueira e Silva
                                 Claunara Schilling Mendonça
                                 Flávio Goulart
                                 Francisco Eduardo de Campos                                                Antonio Ferreira
                                 Halim Antonio Girade
                                 Heloísa Machado de Souza                                                   Adaptações:
                                 Ivana Cristina de Holanda Cunha Barreto                                    Stúdio de Criação Art Mix
                                 Luis Fernando Rolim Sampaio
                                                                                                            Radilson Carlos Gomes
                                 Impresso no Brasil / Printed in Brazil                                     Normalização:
                                                                                                            Aline Santos Jacob
                                                                                      Ficha Catalográfica
                                    Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica.
                                       Memórias da saúde da família no Brasil / Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de
                                    Atenção Básica. – Brasília: Ministério da Saúde, 2010.
                                      144 p. : il. – (Série I. História da Saúde no Brasil)

                                     Nota. As imagens utilizadas foram cedidas pela Coordenação do Pacto de Redução da Mortalidade Infantil do
                                   Ministério da Saúde.

                                       ISBN: 978-85-334-1755-7

                                      1. Saúde da Família. 2. Educação em Saúde. 3. História da Saúde. I. Título. II. Série

                                                                                                                                        CDU 613.9-055

                                                   Catalogação na fonte – Coordenação-Geral de Documentação e Informação – Editora MS – OS 0452/2010

                                 Títulos para indexação:
                                 Em inglês: Memories of Family Health in Brazil
                                 Em español: Memorias de la Salud de la Familia en Brasil




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Sumário
                                 APRESENTAÇÃO ................................................................................................................................................... 7



                                 MEMÓRIAS ............................................................................................................................................................ 9

                                 Desenvolvimento da saúde da família no Brasil ................................................................................................ 10

                                 O agente comunitário: um novo profissional da saúde ..................................................................................... 16

                                 Assim nasceu o programa de Saúde da Família no Brasil ................................................................................ 20

                                 Saúde da Família no Brasil: do programa a política ......................................................................................... 26

                                 Saúde da Família: uma proposta que conquistou o Brasil ................................................................................ 30

                                 Saúde é mudança! .............................................................................................................................................. 36

                                 A nova cara da saúde no Brasil – a medicina de família e comunidade ........................................................... 40

                                 Mais uma história de mineiro............................................................................................................................. 46

                                 Da reflexão crítica no movimento estudantil à participação na construção da estratégia saúde da família .......... 52

                                 Saúde da Família no Brasil: de movimento ideológico a ação política ............................................................. 58



                                 O BRASIL VISTO DE FORA! ............................................................................................................................... 111

                                 Programa Saúde da Família (PSF) do Brasil – uma perspectiva pessoal de um programa de marco ......... 112

                                 A Saúde da Família vista do outro lado do Atlântico........................................................................................ 116



                                 DESAFIOS.......................................................................................................................................................... 123

                                 O desafio dos processos e do mercado de trabalho na APS – o desafio da formação e da qualificação ....... 124

                                 Um olhar para o futuro – perspectivas e desafios ........................................................................................... 134




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Apresentação

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O Programa Saúde da Família nasce, em dezembro de 1993, fundamentado
                                 em algumas experiências municipais que já estavam em andamento no País.
                                 Surge como uma proposta ousada para a reestruturação do sistema de
                                 saúde, organizando a atenção primária e substituindo os modelos tradicionais
                                 existentes.
                                 Dezessete anos depois, a história nos mostra que a decisão do Ministério da
                                 Saúde de investir nesse caminho foi acertada. Inicialmente um programa
                                 financiado por transferências conveniais de recursos, temos hoje uma
                                 estratégia de abrangência nacional em todos os Estados da federação e
                                 quase 100% dos municípios. A Saúde da Família tornou-se uma política de
                                 Estado e um dos pilares de sustentação do Sistema Único de Saúde.
                                 O caminho até aqui não foi fácil e os desafios ainda são muitos, mas o trabalho
                                 desenvolvido por 238 mil agentes comunitários de saúde, 31 mil equipes
                                 de Saúde da Família e 19 mil equipes de Saúde Bucal, atuantes em todo
                                 o território nacional, com o apoio dos gestores locais, estaduais e federal,
                                 alcançou conquistas como a ampliação do acesso da população brasileira
                                 aos serviços de saúde, promoção da equidade e melhoria de indicadores de
                                 saúde.
                                 É com imenso prazer que apresento A Trajetória da Saúde da Família no
                                 Brasil, um trabalho de resgate da memória dessa estratégia que mudou
                                 definitivamente o panorama do sistema de saúde brasileiro. É também um
                                 presente a todos que participam desta caminhada e fazem dessa empreitada
                                 uma jornada vitoriosa.


                                                                                                      Boa leitura!
                                                                                                  Ministério da Saúde




                                                                                                                                     7

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Memórias

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Desenvolvimento da saúde da família no Brasil




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Adib D. Jatene 1

                                  Minha inclusão no capítulo da Atenção Básica de Saúde iniciou-se em 1979,
                                  quando, na condição de diretor do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia,
                                  órgão da administração centralizada da Secretaria Estadual da Saúde, fui
                                  indicado para exercer o cargo de Secretário Estadual da Saúde.
                                  No ano anterior, na Assembleia Geral da Organização Mundial da Saúde, tinha
                                  sido criado o slogan: “Saúde para todos no ano 2000”, dando ênfase à Atenção
                                  Primária à Saúde, que deveria prevalecer sobre o atendimento hospitalar.
                                  Havia na cidade de São Paulo, em suas áreas periféricas mais carentes, um
                                  forte movimento popular, coordenado pelas comunidades eclesiais de base,
                                  cujo objetivo era conseguir atendimento às reivindicações da população
                                  no tocante aos problemas de saúde mais elementares, como a existência
                                  de centros de saúde que garantissem a vacinação das crianças da área. A
                                  zona leste da cidade era a que exibia maior organização, com o chamado
                                  “Movimento de saúde da zona leste”. Tinha atuação marcante tanto dos
                                  médicos sanitaristas da Secretaria quanto das autoridades religiosas,
                                  comandadas por D. Angélico Sândalo, bispo auxiliar, encarregado dessa área
                                  da cidade.
                                  Compareci como Secretário a muitas assembleias populares nessa e em
                                  outras áreas da cidade, comprovando a ausência em extensas áreas do
                                  mínimo para o atendimento, pelo menos, básico da população.
                                  Esse contato, por vezes conflituoso, com a população, que, além das
                                  assembleias nos bairros, dirigia-se frequentemente, por ônibus fretados, à
                                  sede da Secretaria, onde eram invariavelmente recebidos pelo Secretário,
                                  ensinou-me a verdadeira situação de carência que verbalizei com algumas
                                  frases como: “O problema do pobre não é ele ser pobre, mas o de que seus
                                  amigos também são pobres”, ou “Só tem assistência quem puder chegar
                                  ao posto de atendimento com seu próprio meio de locomoção, o que para
                                  a maioria da população quer dizer ‘a pé’”, ou ainda “Política não á a arte do
                                  possível, mas a arte de tornar possível o necessário”.
                                  Levantar o necessário obrigou a Secretaria a realizar planejamento
                                  abrangente, que, só para a área metropolitana, resultou na proposta de 490
                                  centros de saúde e 40 hospitais.
                                  Na proposta dos centros de saúde, prevíamos a contratação do que na época
                                  se chamavam educadoras sanitárias, que deveriam ser recrutadas no seio da
                                  população abrangida pelo centro de saúde, cada uma controlando cerca de



                                                                                                                                                           11
                                     1 Diretor Geral do Hospital do Coração - São Paulo - Professor Emérito da Faculdade de Medicina de São
                                     Paulo - FMUSP - Coordenador da Comissão de Avaliação das Escolas Médicas -SESu/




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1.000 pessoas. Essa pauta específica não pôde ser cumprida, pois a política de pessoal
                        exigia concurso público, que resultaria em pessoal com credenciais muito superiores ao
                        que se pretendia, e com pessoas que não moravam na área, sendo, portanto, inadequada.
                        O programa chamado Plano Metropolitano de Saúde foi parcialmente financiado pelo
                        Banco Mundial, que, pela primeira vez em sua história, apoiava um projeto de saúde em
                        região metropolitana.
                        Em nossa gestão de 38 meses, conseguimos construir, associados à Prefeitura de São
                        Paulo, perto de 100 unidades básicas, mas que não contavam com visitadoras. Apenas
                        no Vale do Ribeira tivemos sucesso em implantar um programa de agentes de saúde,
                        que persiste até nossos dias.
                        Depois que deixei a Secretaria, continuei acompanhando as ações de saúde a distância.
                        Sobreveio a Constituição de 1988, considerando saúde como direito do cidadão e dever
                        do Estado, mas implantando um sistema misto, já que a atividade foi considerada livre
                        à iniciativa privada. Esta se organizou baseada no sistema de pré-pagamento, que vinha
                        dos anos 60.
                        O sistema público foi considerado como único, o SUS, com comando exclusivo em
                        cada esfera de governo e baseado na descentralização, com participação social. Ele se
                        organizou com fundo e conferências nacionais, estaduais e municipais, e com comissões
                        intergestoras bipartite e tripartite.
                        A partir de 1990, na gestão Alceni Guerra, começou a se estruturar o Programa de Agentes
                        Comunitários de Saúde, que herdei nos oito meses, em 1992, quando, pela primeira
                        vez, ocupei o Ministério. Nesse curto período, foi possível realizar a 9ª Conferência
                        Nacional de Saúde, que consagrou a descentralização que foi deflagrada na gestão de
                        Jamil Haddad por Gilson Carvalho, que ocupava a Secretaria de Assistência à Saúde,
                        que começou a implantar tipos de gestão municipal, desde a incipiente, o parcial, até a
                        semiplena.
                        O Ministro Haddad foi substituído pelo Ministro Henrique Santillo, iniciando a implantação
                        do médico de Família, que não tinha vínculo com os agentes comunitários, os quais
                        tiveram participação importante na contenção da epidemia de cólera.
                        Quando cheguei ao Ministério, em 1995, pela segunda vez, uma das primeiras audiências
                        foi com as enfermeiras Heloisa Machado e Maria de Fátima Souza. Elas me apresentaram
                        a proposta de criação do Programa de Saúde da Família, com a vinculação de cada cinco
                        ou seis agentes a um médico, uma enfermeira e um ou dois auxiliares de enfermagem,
                        que atuavam em um posto de saúde. Cada agente cuidava de 100 a 200 famílias, as
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quais participavam do processo de seleção do agente, que passava a cadastrar a
                                  população daquele núcleo e visitar mensalmente cada família, servindo de intermediário
                                  no atendimento do posto com os demais membros da equipe, restabelecendo duas
                                  características para o atendimento médico, que era o vínculo e a responsabilidade de
                                  quem atende para com quem é atendido.
                                  A proposta coincidia com o que eu pretendera implantar quando Secretário e não
                                  consegui por causa da exigência do concurso público. Tinha claro na minha mente que
                                  o agente comunitário não era um funcionário público, mas um funcionário da população
                                  e escolhido com a participação daquele núcleo de famílias em cuja casa ele penetraria
                                  todo mês.
                                  Acolhi prontamente a proposta que me fizeram e, mais que acolher, trouxe o programa
                                  para o gabinete, permitindo franco acesso dos gestores do programa ao Ministro.
                                  Talvez tenha sido esta a maior contribuição que pude dar quando Ministro. O programa,
                                  apesar das limitações, progrediu.
                                  Consegui conquistar o apoio da então primeira-dama, Ruth Cardoso, que acompanhou
                                  a inauguração de um pequeno posto para duas equipes na periferia de Camaragibe, o
                                  que nos valeu o apoio do próprio Presidente, que recebeu em Natal um grupo de agentes
                                  para um café da manhã, injetando no programa um estímulo que foi acolhido por todos
                                  com grande alegria.
                                  A implantação progressiva foi feita com todo o cuidado, para não descaracterizar o
                                  programa.
                                  Restava convencer as pessoas de que o programa era fundamental para a periferia das
                                  áreas metropolitanas. Em Porto Alegre, o Dr. Grossman já mantinha há vários anos um
                                  programa semelhante, com grande sucesso.
                                  Tentei implantá-lo em São Paulo, mas o prefeito da época estava envolvido com o projeto
                                  chamado PAS e não aceitou participar. Por isso procurei o Governador Mário Covas
                                  e o Secretário José da Silva Guedes, que concordaram em implantar um módulo em
                                  Itaquera, administrado pelas Irmãs do Hospital Santa Marcelina, que ele chamou de
                                  QUALIS. Contamos com a colaboração da Dra. Rosa, admitida na gestão Santillo como
                                  médica de Família e que atuava na área desde quando eu ocupara a Secretaria da Saúde.
                                  O módulo era composto por cerca de 40.000 pessoas. Após cadastramento e verificação
                                  das doenças preexistentes, descobriu-se que as gestantes conseguiam, na média,
                                  menos de duas consultas de pré-natal. A Secretaria tinha cadastrado sete tuberculosos
                                  e os agentes descobriram 62.



                                                                                                                                         13

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Depois que deixei o Ministério e utilizando a Fundação Zerbini, do InCor, administramos
                        dois módulos: um na Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte, com 19 equipes, e outro na
                        região de Sapopemba, com 33 equipes. Conseguimos a colaboração de Davi Capistrano
                        Filho, que coordenou a implantação desses módulos e trouxe pessoas experientes que
                        tinham trabalhado com ele quando Prefeito de Santos, permitindo introduzir acréscimos
                        no Programa. Em todas as unidades havia serviço odontológico. Em cada módulo,
                        criou-se um ambulatório de especialidade, com 12 especialistas em cada um, para
                        dar cobertura aos agentes comunitários. Foi criada uma Casa de Parto, para onde a
                        gestante ia a partir do sexto mês de gravidez, para ser preparada para o parto normal.
                        O pré-natal, com seis a sete consultas, selecionava os casos com gravidez de alto risco
                        que seriam encaminhados ao hospital. Infelizmente, o Conselho Regional de Medicina,
                        que era presidido por um obstetra, proibiu os médicos do programa de encaminhar
                        gestantes para a Casa de Parto. Em que pese a proibição, em mais de 3.000 partos feitos
                        apenas por obstetrizes, não houve nenhum óbito materno. Pouco mais de 300 casos
                        foram encaminhados para atendimento hospitalar.
                        Igualmente foi implantado, nesses dois módulos, atendimento para distúrbios mentais
                        e, em Sapopemba, implantou-se fisioterapia e fonoaudiologia.
                        Quando deixamos o Ministério, já estavam implantadas pouco mais de 2.000 equipes de
                        Saúde da Família e perto de 60 mil agentes.
                        Foi confortador verificar a aprovação dos que nos sucederam com forte ampliação do
                        programa, presente hoje em mais de 4.000 municípios brasileiros e conquistando áreas
                        metropolitanas em todo o País.
                        Infelizmente, as limitações financeiras não têm permitido dobrar o número de equipes,
                        que já ultrapassou 20.000, o que criaria a porta de acesso a cuidados de toda a população.
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O agente comunitário:
                                  um novo profissional da saúde




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Antônio Carlile Holanda Lavor 1



                                  Na Unidade Integrada de Saúde de Sobradinho (UISS), da Universidade
                                  de Brasília (UnB), tivemos a oportunidade de nos dedicar ao estudo
                                  da patologia da população pobre. As doenças e os óbitos das crianças
                                  chamavam a nossa atenção. No laboratório de microbiologia, na
                                  patologia e nas sessões clínicas, acompanhávamos os esforços para
                                  tratar os pequenos pacientes, que evoluíam da desnutrição, associada
                                  às parasitoses e às repetidas infecções, para a septicemia e o óbito. A
                                  prevenção daqueles casos exigia ação junto às famílias, que estava fora do
                                  alcance do trabalho do médico e do enfermeiro, concentrados na unidade.
                                  O Serviço Social mostrou-se hábil no trabalho com os pais e as mães ao
                                  promover a limpeza da cidade e, noutra ação importante, ao mobilizá-
                                  los para o acesso de todas as casas ao sistema de esgoto. A rede, que
                                  há tempos estava construída, atendia apenas uma pequena parcela da
                                  comunidade.
                                  Uma experiência bem estruturada foi desenvolvida na cidade satélite
                                  de Planaltina, que possuía a maior área rural do DF, a sua população
                                  apresentava condições sociossanitárias mais difíceis, e também era
                                  atendida na UISS. Essa cidade satélite dispunha de um centro de saúde,
                                  dirigido pelo Dr. Átila Carvalho, e um Centro de Desenvolvimento Social,
                                  coordenado pela assistente social Miria Lavor, que participara das
                                  atividades em Sobradinho.
                                  O trabalho foi coordenado pelo Prof. Frederico Simões Barbosa, da UnB,
                                  e contava com o apoio da Universidade, das Secretarias de Serviço Social
                                  e de Saúde do Distrito Federal, do FUNRURAL e das Fundações Kellog e
                                  Interamericana. Os auxiliares de saúde, embriões dos futuros agentes
                                  comunitários de saúde, foram capacitados pelo Serviço Social para as
                                  atividades junto às famílias. Com os médicos e enfermeiros, aprenderam
                                  os conhecimentos de saúde, dirigidos principalmente para as mães e
                                  as crianças, que passaram a frequentar regularmente os serviços de
                                  pré-natal e puericultura. O afluxo de crianças à emergência hospitalar
                                  diminuiu muito, e caiu a mortalidade infantil. Esse trabalho foi realizado
                                  de 1974 a 1978.
                                  De 1979 a 1986, Miria e eu, de volta ao Ceará, adaptamos o trabalho
                                  do auxiliar de saúde para as condições do sertão na região de Iguatu,
                                  especialmente em nossa cidade natal, Jucás. Em 1987, ao implantarmos
                                  o SUDS no Estado, contratamos, durante um ano, seis mil mulheres entre
                                  1   Nascido em 1940 em Jucás-Ce, médico, passou da microbiologia para a saúde pública, trabalhou no Instituto de



                                                                                                                                                                  17
                                      Medicina Preventiva da U. F. Ceará e na Universidade de Brasília - UnB, onde participou da criação do Agente
                                      Comunitário de Saúde, desenvolvido posteriormente na S. Saúde do Ceará e adotado pelo Ministério da Saúde.




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as mais pobres para trabalharem como agentes de saúde, novo nome para aquelas
                        auxiliares. O sucesso na redução da mortalidade infantil, que sempre se agravava
                        em anos de seca como aquele de 1987, tornou permanente o programa emergencial.
                        As avaliações coordenadas pelos professores Cecilia Minayo e César Victora e as
                        observações do próprio Ministério da Saúde levaram este a adotar o programa para os
                        demais Estados nordestinos em 1991 e, posteriormente, para todo o País. Os agentes
                        são novamente rebatizados e constituem o Programa de Agentes Comunitários de
                        Saúde (PACS).
                        Ao levar as mães para os serviços de pré-natal e de puericultura, vacinar as
                        crianças e estimular o aleitamento materno, a higiene e o uso do soro oral, o agente
                        comunitário de saúde (ACS) fez cair, em todo o Brasil, a mortalidade infantil após a
                        primeira semana de vida. Assim, cresceu o planejamento familiar, e muitos leitos
                        pediátricos dos hospitais foram transformados para o atendimento aos adultos.
                        Foram essenciais para esse sucesso o fortalecimento da democracia, a vitória
                        sobre a inflação, a previdência rural, a elevação do salário mínimo, o aumento da
                        escolarização e a própria Estratégia Saúde da Família.
                        Como observa a professora Judith Tendler, a criatividade do ACS na mobilização
                        das famílias para a promoção da saúde não está no cumprimento mecânico de suas
                        tarefas, mas no compromisso com o trabalho que o desafia. Este é facilitado pela
                        sua convivência com as famílias que acompanha, com as quais compartilha a mesma
                        cultura e as mesmas dificuldades.
                        A característica especial do ACS é sua facilidade de comunicação com as famílias
                        para que se mobilizem para a promoção da saúde. Por essa especificidade, foi
                        reconhecido por lei, em 2002, como nova categoria profissional da saúde. Em
                        2003/2004 seu curso técnico foi estabelecido para ser realizado em três etapas. Os
                        200 mil ACS realizaram a primeira etapa e estão à espera da conclusão.
                        As duas etapas restantes prepararão os agentes para a nova agenda da saúde do
                        Brasil: saúde bucal, doenças infecciosas emergentes, abuso do álcool e demais
                        drogas, a violência e as doenças provocadas por causas externas e as doenças
                        degenerativas da crescente população idosa.
                        À medida que se acumulam os conhecimentos das causas e da evolução das doenças,
                        crescem as possibilidades da promoção da saúde e aumenta a importância do ACS.
                        Ele leva aquelas informações às famílias e, mais do que isso, dialoga com elas,
                        aproximando-as do serviço de saúde.
                        Os agentes comunitários de saúde não seguem protocolos fixos, necessitam criar
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formas novas de ação para alcançar os seus objetivos. Enfrentam diferentes tipos de
                                  problemas: culturais, religiosos, educativos, econômicos, mas conseguem trabalhá-
                                  los pacientemente no dia a dia.
                                  O curso técnico dos ACS tem dois componentes essenciais: primeiro, o fortalecimento
                                  de suas características específicas (diálogo interpessoal, laços com a comunidade
                                  e com o serviço de saúde, autoestima e criatividade); e segundo, a ampliação dos
                                  conhecimentos sanitários direcionados à promoção da saúde.
                                  A formação dos ACS é tão importante para a Estratégia Saúde da Família quanto o é
                                  a especialização dos demais profissionais para o atendimento na unidade de saúde.
                                  Muitos estudos ainda serão necessários para que tenhamos uma equipe de Saúde da
                                  Família de melhor qualidade.
                                  Em 2007 e 2008, apoiamos com a Miria a implantação do Programa de Agentes
                                  Comunitários de Saúde de Luanda, em Angola.
                                  Referências
                                  PARANAGUÁ SANTANA, J. F. N. Estudo sobre a atenção à saúde infantil no Projeto Planaltina.
                                  1980. Dissertação (Mestrado em Medicina Tropical) – Universidade de Brasília, Brasília, 1980.
                                  SIMÕES BARBOSA, F. et al. Atenção à saú de e educação médica: uma experiência e uma
                                  proposição. Educacion Médica y Salud, United States, v. 2, n. 1, 1977.
                                  MINAYO, M. C. S.; DELIA, J. C.; SVITONE, E. Agentes de Saúde do Ceará. Fortaleza: Unicef, 1990.
                                  VICTORA, C. et al. Pesquisas de saúde materno-infantil do Ceará. Relatórios. Unicef/ Secretaria
                                  de Saúde do Ceará, 1987 / 1990.
                                  TENDLER, J. Good government in the tropics. United States: The John Hopkins University
                                  Press, 1997. Tradução: ENAP – Escola Nacional de Administração Pública. Brasília, 1998.




                                                                                                                                                 19

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Assim nasceu o programa de
                                  Saúde da Família no Brasil




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Halim Antonio Girade1

                                  Indignação pela falta de acesso da população ao sistema de saúde. Assim
                                  nasceu o Programa Saúde da Família (PSF). O Programa Saúde da Família
                                  nasceu da indignação pelo fato de que, no Brasil, o acesso aos serviços de saúde
                                  continuava precário ainda em 1993 e cerca de 1.000 municípios brasileiros
                                  não tinham nenhum profissional médico nessa época. Essa também foi a
                                  mesma razão da existência do Programa de Agentes Comunitários de Saúde
                                  (PACS) em 1991.
                                  Final de agosto de 1993. Eu já era Oficial de Programas do Unicef e
                                  trabalhava em Recife. Fui chamado pelo Dr. Henrique Santillo, que assumiria
                                  o Ministério da Saúde (MS) nas próximas semanas, para discutir o que fazer
                                  para o fortalecimento do SUS e ser seu assessor especial. Para o futuro
                                  Ministro, a minha presença poderia contribuir, já que era uma pessoa de
                                  sua confiança, por ter sido o seu Secretário de Saúde do Estado de Goiás e o
                                  primeiro coordenador do Programa de Agentes Comunitários de Saúde. Isto
                                  é, conhecia o funcionamento do Ministério da Saúde.
                                  As primeiras conversas sobre o que poderia vir a ser o Programa Saúde da
                                  Família aconteceram em agosto de 1993, algumas semanas antes de o Dr.
                                  Henrique Santillo assumir o Ministério da Saúde, em sua residência, em uma
                                  chácara no Bairro Jaiara, em Anápolis/GO. Sempre conversávamos sobre as
                                  políticas públicas existentes e as que possivelmente poderiam ser implantadas
                                  no Sistema de Saúde do Brasil. Entre elas, a Saúde da Família e o pioneiro
                                  repasse financeiro do fundo nacional aos fundos municipais de saúde.
                                  Articulação política e formulação dos princípios da Saúde da Família. Fiquei
                                  com a responsabilidade de formular a proposta técnica do que viria a ser o
                                  Programa Saúde da Família e a articulação política dentro e fora do Ministério
                                  da Saúde, para viabilizar a proposta de levar a atenção primária às famílias.
                                  Sabia que deveria aproveitar as experiências brasileiras que existiam e tentar
                                  elaborar uma estratégia totalmente nova e original que contemplasse os
                                  agentes comunitários de saúde e que levasse atenção à saúde de qualidade às
                                  comunidades. Eu mesmo sempre tinha sido médico de Família em comunidades
                                  carentes, tanto em Planaltina quanto em Mambaí, cidades de Goiás. Agora, era
                                  uma oportunidade única e um sonho antigo se realizando.
                                  A existência dos agentes comunitários de saúde foi fundamental para o
                                  PSF. Nenhum programa do mundo tinha o que considerávamos um enorme
                                  ganho já de saída, que era a existência do PACS, implantado em 1991 e que

                                  1 Médico formado pela Faculdade Regional de Medicina de São José do Rio Preto e coordenador do Escritório do



                                                                                                                                                              21
                                       Unicef em Manaus.




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se mostrou ser o maior programa de Atenção Primária à Saúde no Brasil, o de maior
                        capilaridade e o que, hoje, abrange mais de 220 mil ACS e cerca de 100 milhões de
                        pessoas. A existência do PACS facilitaria a implantação da Saúde da Família como um
                        modelo totalmente brasileiro.
                        Porto Alegre, São Paulo, Niterói, Recife, Cotia/SP, Planaltina/GO e Mambaí/GO me
                        inspiraram a construir os princípios do PSF. O médico de Família e comunidades Carlos
                        Grossman tinha um serviço de atenção às famílias, na periferia de Porto Alegre, por meio
                        do Grupo Hospitalar Conceição, que também me inspirou. Visitei o projeto. O impacto
                        social era muito bom. Essa experiência, juntamente com o que me informei do Hospital
                        Santa Marcelina, na Zona Leste de São Paulo, de Niterói, de Gilson Cantarino, que visitei,
                        do Instituto Materno Infantil de Pernambuco (IMIP), que conhecia in loco, da experiência de
                        Cotia em São Paulo, além de minha própria experiência em Planaltina e Mambaí, em Goiás,
                        me inspirou e ajudou a acreditar que era sim possível avançar na proposta de levar saúde
                        às casas dos brasileiros. Teria apenas que ter a decisão política e orçamento. O Brasil, com
                        suas experiências, mostrava os caminhos. Não era mais uma proposta de cima para baixo,
                        mas aproveitar o que existia no País.
                        Decisão política pela Saúde da Família durante o voo Varig de Nova Iorque ao Rio de
                        Janeiro. Um voo da Varig de Nova Iorque ao Rio de Janeiro foi o momento em que o
                        Ministro Henrique Santillo decidiu politicamente pela existência da Saúde da Família.
                        Em final de setembro de 1993, fomos a uma reunião da Assembleia da Organização
                        Pan-Americana da Saúde em Washington/USA. Na viagem, durante o nosso retorno ao
                        Brasil, expliquei ao Ministro Henrique Santillo aqueles que poderiam ser os possíveis
                        princípios da Saúde da Família. Depois de mais de seis horas de trabalho a bordo do
                        avião, o Dr. Henrique Santillo, em função das discussões técnicas, decidiu dar o apoio
                        político decisivo para a implantação do PSF.
                        Compilação da proposta no Lago Sul, Brasília, em discussão com Oscar Castillo. Tudo o
                        que foi discutido no voo da Varig de Nova Iorque ao Rio de Janeiro foi compilado em uma
                        casa no Lago Sul, em Brasília, onde morava Oscar Castillo, oficial de saúde do Unicef no
                        Brasil. Oscar Castillo recebeu os papéis que trabalhei com o Ministro Santillo durante o
                        voo e compilou em um documento a proposta de princípios da Saúde da Família para a
                        reunião dos dias 27 e 28 de dezembro de 1993, no Ministério da Saúde.
                        Dezembro de 1993, aprovação técnica do PSF. Os princípios do Programa Saúde da
                        Família discutidos por mim e o Ministro Henrique Santillo, durante o voo de Nova Iorque
                        ao Rio de Janeiro e compilados por Oscar Castillo em Brasília, precisavam ser aprovados
                        tecnicamente e o foram completamente, na reunião de 27 e 28 de dezembro de 1993,
                        no Ministério da Saúde. Essa reunião, composta por 18 profissionais, era importante
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porque participariam grandes expressões da saúde pública brasileira, preocupadas em
                                  levar Atenção Primária à Saúde para as famílias e comunidades.
                                  Luis Odorico Monteiro de Andrade deu o nome de Saúde da Família. A proposta no
                                  início tinha o nome de Medicina ou Médico de Família. Foi a partir de um documento
                                  apresentado ao MS para financiamento, de uma Residência Universitária em Saúde da
                                  Família, de Quixadá, no Ceará, de novembro de 1993, onde Dr. Odorico trabalhava como
                                  Secretário Municipal de Saúde, que se aproveitou o nome do programa. Portanto, posso
                                  considerar que o nome de Programa Saúde da Família foi de autoria do Dr. Luis Odorico
                                  Monteiro de Andrade.
                                  Saúde da Família inicialmente na Fundação Nacional de Saúde (Funasa). Em 1994, era
                                  necessário abrigar o PSF em alguma estrutura no organograma do Ministério da Saúde,
                                  que fosse um lugar onde tivesse apoio inquestionável. Em uma reunião no Gabinete
                                  do Ministro Henrique Santillo, Álvaro Machado, Presidente da Funasa, informou que o
                                  abrigaria nessa fundação, que foi a sua moradia inicial.
                                  Financiamento da proposta da Saúde da Família. Somente com orçamento e com
                                  recursos financeiros é possível fazer políticas públicas. Portanto era preciso financiar
                                  a nova proposta de Saúde da Família. Em 1994, Gilson Carvalho, Secretário Nacional
                                  de Assistência à Saúde do MS, em 1994, e Gilson Caleman, Secretário Adjunto da
                                  Secretaria de Assistência à Saúde (SAS/MS), 1993 a 1994, do MS, viabilizaram a forma
                                  de financiamento do Programa Saúde da Família, pela SAS/MS.
                                  Homenagem e emoção. Um momento que me emocionou em especial foi ter sido
                                  convidado, pela Diretoria do Departamento de Atenção Básica do Ministério da Saúde,
                                  a receber uma homenagem especial pelos 15 anos de Saúde da Família no Brasil, em
                                  agosto de 2008, durante a 3ª Mostra Nacional de Produção em Saúde da Família. O
                                  convite me informava que “a sua presença, na qualidade de fundador deste modelo de
                                  atenção que conquistou o Brasil, é de fundamental importância”. Recebi um belíssimo
                                  troféu com a logomarca da Saúde da Família e uma silhueta vazada do mapa do Brasil
                                  gravado em aço inox.
                                  Dividindo a homenagem. Ao escrever este texto, aproveito a oportunidade para dividir a
                                  homenagem recebida com aqueles que citei nestas páginas, pois tiveram papel especial
                                  na implantação e consolidação da Saúde da Família, e a todos os técnicos do Ministério
                                  da Saúde, que, na época, contribuíram efetivamente para fazer esse programa,
                                  especialmente Maria Fátima de Sousa, que foi quem acompanhou e contribuiu muito
                                  para o fortalecimento da Saúde da Família, Eliana Maria Dourado Mattos, que foi a
                                  sua primeira coordenadora, e Heloíza Machado de Souza, que acolheu o programa



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em seu Departamento, além dos Coordenadores Estaduais do Programa de Agentes
                        Comunitários de Saúde. O PACS foi precursor da hoje conhecida Estratégia Saúde da
                        Família.
                        A Estratégia Saúde da Família precisa se atualizar. Os princípios formulados em 1993
                        precisam ser atualizados, pois foi para serem modificados que inicialmente existiram. Já
                        não é possível um médico para 800 a 1.000 famílias, mas tentar chegar a um médico para
                        1.000 pessoas. A hoje chamada Estratégia Saúde da Família precisa garantir qualidade e
                        humanização de suas equipes. A atual gestão do MS tem todas as condições para fazer
                        isso acontecer, porque tem compromisso e é de qualidade. A atual gestão está fazendo
                        o que é preciso fazer.
                                                                                  Manaus, 6 de janeiro de 2010
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Saúde da Família no Brasil:
                                  do programa a política




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Maria de Fátima Sousa 1

                                       Eu poderia escrever outros livros somente sobre o Programa Saúde da
                                       Família (PSF) no Brasil. Escolhi, porém, no limite das páginas, alguns fatos
                                       que julgo ser importantes neste reencontro com a história.1
                                       O primeiro diz respeito à entrada em cena dos agentes comunitários de
                                       saúde. O Estado da Paraíba foi a unidade federada no Brasil que abriu as
            “[...] Há uma tremenda     portas para que, no Nordeste, em 1991, pudéssemos ser o “piloto” para a
            força de mudança no        implantação do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Com
                                       o apoio incalculável de Inez Vasconcelos do Amaral e sua equipe do Estado
            ar. Há um movimento        do Ceará, aprendemos a sonhar fazendo outro jeito de cuidar da saúde das
            poderoso, tecendo a        famílias. Choque de povo! Essa foi a tradução associada em um dos meus
                                       livros à chegada dos ACS no portal de entrada para uma longa viagem nos
            novidade através de        sistemas locais de saúde.
            milhares de gestos de      Segundo, o encontro de sujeitos com fome de solidariedade e humanidade.
                                       Halim Antonio Girade2, à época Oficial de Programas do Unicef, escritório
            encontro. Há fome de
                                       Recife/PE, e o Ministro Henrique Santillo foram, literalmente, os “oficiais” de
            humanidade entre nós,      uma tripulação em alto voo rumo à implantação do PSF no País. Não é apenas
                                       metáfora. O primeiro usou argumentos técnicos, políticos e humanitários
            por sorte ou por virtude   durante o retorno de uma viagem de trabalho (reunião da Assembleia da
            de um povo que ainda       Organização Pan-Americana da Saúde em Washington/USA) que fizeram
                                       com que o segundo convencesse um terceiro sujeito, o Presidente Itamar
            é capaz de sentir e de     Franco, a compor uma trama saudável na decisão política de incorporação
            mudar.”                    do PSF em sua agenda de governo.
                                       De setembro a dezembro de 1993, muitos foram os sujeitos estratégicos
            Betinho
                                       que deram consistência ao tecido do PSF. Entre nós estava o peruano Oscar
                                       Castillo, naquele momento Oficial de Saúde do Unicef no Brasil, Luis Odorico
                                       Monteiro de Andrade, Eliana Maria Dourado Mattos3, Heloíza Machado
                                       de Souza, Gilson Carvalho4 e Gilson Caleman. Os dois últimos foram
                                       fundamentais para a definição de busca de recursos para a implantação
                                       do PSF e da sustentação do PACS, uma vez que a lógica vigente do
                                       financiamento nesse setor não contemplava proposta dessa natureza. Até
                                       então se pagava pelos doentes, melhor, pelo pragmatismo da dita vigilância


                                       1   Enfermeira sanitarista, professora da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisadora do Núcleo de Estudos
                                           de Saúde Pública (NESP/UnB). Foi Gerente Nacional do PACS (1994) e Assessora Técnica do PSF no Ministé-
                                           rio da Saúde (1994-2001) e Município de São Paulo (2001-2003)
                                       2    Atualmente Coordenador do Escritório do Unicef em Manaus.
                                       3    Primeira Coordenadora Nacional do PSF.
                                       4    Secretário Nacional de Assistência à Saúde do MS, em 1994.




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à doença. Inverter essa ordem nos colocava diante da necessidade de repensar e trazer
                        à mesa outra agenda. Aquela que tomasse para si o diálogo com Estados, municípios e
                        técnicos do Ministério da Saúde no entorno de estratégias capazes de contribuir para a
                        reorganização e o fortalecimento da atenção básica como o primeiro nível de atenção à
                        saúde no Sistema Único de Saúde (SUS), mediante a ampliação do acesso, a qualificação
                        e a reorientação das práticas das ações e serviços nos territórios o mais perto possível
                        de cada família brasileira.
                        Terceiro, uma agenda a ser tecida em redes em plena transição de governo. Essa tarefa
                        nos colocava no exercício diário e permanente, ao convívio de tempo de crises, rupturas
                        e realinhamentos. A paciência histórica, motivada pela corresponsabilidade da execução
                        dessa agenda, nos fez vigilantes dos valores e princípios que orientavam o PACS e o
                        PSF. Na crise, o que parecia estável e eterno tremia-se de forma quase silenciosa. E,
                        aproveitando contraditoriamente essas oportunidades, sobretudo no momento dos
                        debates calorosos entre as políticas de Estado mínimo e a garantia dos direito sociais,
                        ficamos reafirmando a ética da urgência de um Estado articulador e promotor da saúde
                        de todos os seus cidadãos e cidadãs. Internamente ao Ministério da Saúde, tecíamos
                        firmemente nossas relações com todas as áreas programáticas. Daí o nome Programa.
                        Tínhamos que, naquele momento, não só falarmos a mesma língua, mas também
                        concorrer aos recursos que eram “carimbados” para as áreas programáticas. Assim
                        a estratégia deveria ser nomeada de Programa. Nasce o PSF com essa marca. O que
                        nos custou longas explicações para os “sanitaristas” que assistiam a distância, ora
                        discordando completamente, ora nos provocando a desistir. Sem nos contaminar com
                        agendas negativas, associávamo-nos a mulheres fortes e homens audazes em cada
                        unidade federada do País. A rede de coordenadores estaduais nos afiançava a continuar
                        evitando que os sinos dobrassem nos municípios brasileiros, principalmente os do
                        Nordeste, na “celebração” das mortes infantis.
                        Os primeiros resultados da redução na mortalidade infantil, no aumento do percentual
                        das mulheres que fazem o pré-natal nos três primeiros meses, na diminuição das
                        internações hospitalares por diarreias e infecções respiratórias agudas, no cuidado com
                        os hipertensos, diabéticos, e na ampliação de redes de atenção à saúde em territórios
                        historicamente vazios, sem nenhum acesso, nos sinalizam que as linhas do nosso
                        tecido se fortaleciam. Linhas essas expressas nas Normas Operativas Básicas e de
                        Assistências, edições 96, 2001/2, na criação do Piso da Atenção Básica (PAB), nos pactos
                        governamentais e institucionais a concepção da rede de Polos de Formação, capacitação
                        e educação permanente, envolvendo as escolas formadoras de recursos humanos para o
                        SUS, da criação e reformulação do Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB), das
                        edições anuais dos indicadores do Pacto da Atenção Básica e a realização de pesquisas
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oficiais de âmbito nacional e da elaboração e negociação, junto ao Banco Mundial (BIRD),
                                  do Projeto de Expansão e Consolidação do Programa Saúde da Família (PROESF).
                                  E, por fim, a hora de continuar fortalecendo os fios que entrelaçam o PSF. As
                                  estratégias adotadas ao longo desses 16 anos foram capazes de dinamizar as redes
                                  internas e externas ao Ministério da Saúde, na indução e mobilização dessas estratégias.
                                  Entretanto, é chegada a hora de continuarmos olhando em frente com as lentes focadas
                                  em seus dilemas e desafios contemporâneos. Ao mesmo tempo em que reconhecemos
                                  as condições criadas à época para a governança e governabilidade à expansão do PSF,
                                  não podemos ficar míopes, nem andarmos para trás na história. Uma história que vem
                                  escrevendo sua passagem de programa a política... Na consolidação dessa agenda,
                                  parafraseando Mário Lago, “o tempo não comprou passagem de volta”. Seguiremos, de
                                  cada lugar onde estivermos, voando mais alto na efetiva busca de saúde para todas as
                                  famílias brasileiras.




                                                                                                                                          29

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Saúde da Família: uma proposta
                                  que conquistou o Brasil




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Heloísa Machado de Souza 1


                                  O pedido chegou assim: “Fale de algo marcante, pessoal, nessa trajetória da
                                  Saúde da Família...”
                                  Imagino que a escolha das vozes que configuram os depoimentos deste
                                  capítulo não tenha sido tarefa fácil para a equipe de coordenação, porque,
                                  afinal, são tantos atores que participaram ou que participam dessa história
                                  que, por mais que pareçam representativos, sempre haverá casos e vivências
                                  interessantes que muitos poderiam ou gostariam de contar.
                                  O Saúde da Família apresenta trajetória exemplar de um programa que
                                  nasceu focalizado e se tornou uma estratégia estruturante de uma Política
                                  Nacional de Atenção Básica que tem contribuído significativamente para a
                                  consolidação do nosso Sistema Único de Saúde.
                                  O Programa Saúde da Família (PSF) nasceu focalizado porque essa era a
                                  possibilidade que a conjuntura de 1994 permitia. Para sua implantação, os
                                  recursos financeiros eram escassos e transferidos aos Estados e municípios
                                  por meio de convênios. Não havia nenhuma estratégia para preparação dos
                                  profissionais requeridos. Na verdade, não havia muita crença de que essa
                                  proposta que nascia do berço do Programa de Agentes Comunitários de
                                  Saúde (PACS) pudesse um dia vingar.
                                  No entanto, havia um grupo de pessoas, de origens diversas – secretários
                                  municipais de saúde, coordenadores estaduais do PACS, membros de
                                  programas de médicos de Família que já existiam em determinados
                                  municípios, alguns professores universitários que atuavam com projetos
                                  de extensão acadêmica – que, junto com o grupo do Ministério da Saúde,
                                  acreditava que urgia colocar em campo uma proposta objetiva para mudar
                                  o jeito de se organizar os serviços de saúde, começando por reestruturar
                                  a forma de funcionamento dos centros, postos ou Unidades Básicas de
                                  Saúde, no efervescente contexto de descentralização e municipalização dos
                                  serviços de saúde. Tinha que ser uma proposta em que princípios e “jeito
                                  de fazer” pudessem ser compreendidos por qualquer prefeito ou gestor
                                  municipal, em qualquer região do País. Em minha opinião, todos nós que
                                  estávamos à frente da coordenação do processo naquele período, seja no
                                  MS, nas SES ou SMS, não tínhamos muita clareza de como construir essa
                                  proposta, mas tínhamos absoluta certeza de onde queríamos chegar. Havia
                                  uma sede imensa de ver os serviços de saúde se organizando em uma lógica
                                  diferente, com responsabilidade territorial, com profissionais de saúde
                                  1 Enfermeira, mestre em Saúde Coletiva – ex-diretora do Departamento de Atenção Básica do Ministério da Saúde.



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rompendo barreiras coorporativas e construindo equipes, com essas equipes focando
                        a atenção nas pessoas, nas famílias e nas suas comunidades, e construindo vínculos de
                        compromisso e de corresponsabilidade.
                        Talvez esta tenha sido um dos aspectos mais importantes para o avanço do PSF: uma
                        proposta que começa de forma bastante inacabada, permitindo que muitos fossem
                        contribuindo na reorientação de sua trajetória. E acredito que a ESF continua assim,
                        como um cristal precioso, em constante lapidação.
                        Com pouco mais de 15 anos de existência, é possível afirmar que a ESF configura-se
                        como uma política de Estado, e não mais de governo. A alternância na gestão federal,
                        característica própria e desejável dos processos democráticos, não produziu rupturas
                        na sua condução. É certo que em alguns momentos os passos possuíram velocidades
                        diferentes, mas em todo o tempo houve agregação de valores para qualificar a
                        implementação da ESF em âmbito nacional. Lamentavelmente não podemos fazer a
                        mesma afirmação para o universo total de Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde.
                        Mesmo comprovando êxito, algumas experiências sofrem rupturas ou são estagnadas
                        pelo simples motivo de se constituírem como iniciativas de governos concorrentes. Essa
                        é uma postura que logicamente não atinge somente a ESF, mas áreas e iniciativas de
                        diferentes políticas públicas, demonstrando imaturidade e ausência de compromisso na
                        gestão pública.
                        Voltando ao passado, reporto-me à importância das características que configuravam
                        os 13 primeiros municípios convidados à implantação do PSF. Havia, necessariamente, a
                        representatividade de diferentes partidos políticos nos governos das cidades selecionadas.
                        Era uma sinalização importante para que o Programa não fosse reconhecido como iniciativa
                        de “tal” partido, mas poderia um dia tornar-se consenso do “partido da saúde”. Outras
                        características referiam-se à representatividade de todas as regiões do País e apresentação
                        de diferentes portes econômicos e populacionais. Era importante não caracterizar o PSF
                        como “uma proposta de pobre para pobre”, restrita às áreas mais carentes e como uma
                        proposta viável somente para pequenos municípios.
                        Lamentavelmente a conjuntura do período condicionou os escassos recursos disponíveis
                        à implantação prioritária do PSF nos municípios inseridos no então Mapa da Fome (IPEA,
                        2003).
                        O financiamento do PSF, que inicialmente ocorria por meio de convênios celebrados
                        entre a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) e Secretarias Estaduais e Municipais de
                        Saúde, passou também pela modalidade de produção, inserido na tabela SIA-SUS –
                        situação que mantinha absoluta contradição com um processo de trabalho que deveria
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estar centrado na produção da saúde. Só mais tarde, quando a gestão do PSF já estava
                                  vinculada à Secretaria de Atenção à Saúde, iniciou-se a revisão da modalidade de
                                  financiamento. Travava-se junto com a equipe dirigente da SAS debate fervoroso sobre
                                  o futuro do PSF: como deixar de ser um programa focalizado e partir para o destino de
                                  ser estruturante na organização dos serviços de saúde?
                                  O momento de elaboração da Norma Operacional Básica de 1996 (NOB-SUS/96) foi
                                  compreendido como oportunidade ímpar para criar condições que impulsionassem
                                  o PSF para esse novo caminho. Em seu texto legal, essa Norma inseriu um capítulo
                                  que trazia as bases para um novo modelo de atenção e instituiu o Piso de Atenção
                                  Básica (PAB), introduzindo a modalidade de financiamento per capita e os incentivos
                                  financeiros aos Programas Saúde da Família e de Agentes Comunitários de Saúde. Mais
                                  tarde, percebendo a dificuldade de expansão da Saúde da Família nas grandes cidades,
                                  introduziram-se incentivos diferenciados por porte populacional. Como ainda não era
                                  suficiente para fazer frente às dificuldades das grandes cidades, buscou-se o aporte de
                                  recursos adicionais por meio de acordo de empréstimo. Assim foi formulado, negociado
                                  e aprovado o Projeto de Expansão e Consolidação da Saúde da Família (PROESF), acordo
                                  celebrado com o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) para
                                  apoiar a expansão da cobertura do Programa nos grandes municípios. O projeto deveria
                                  apoiar não somente a ampliação do número de equipes, mas também a qualificação,
                                  apoiando a estruturação dos serviços de referência, a adoção de tecnologias de
                                  informação, o suporte em educação permanente, bem como a adoção de mecanismos
                                  de monitoramento e avaliação.
                                  Na origem do PAB, foi gerada uma polêmica semântica que ainda ressurge em debates
                                  ou em documentos acadêmicos, e que diz respeito ao uso do termo “atenção básica”
                                  em lugar de “atenção primária”. Para alguns, a discussão não é semântica, mas de
                                  cunho ideológico, pois se explica a escolha do termo “atenção básica” como condição
                                  imposta pelas agências internacionais de fomento para cooperar na implantação do
                                  Programa no Brasil. Ora, naquele tempo, não havia nenhuma organização internacional
                                  que acreditasse no PSF a ponto de acatar acordos de cooperação! Há uma explicação
                                  quase inversa: quando a proposta do per capita foi elaborada, ela precisava de um
                                  nome. A equipe da SAS, com alguns colaboradores externos, ouviu muitas opiniões
                                  de gestores e formuladores do setor saúde. Havia uma advertência clara de que o
                                  termo “atenção primária” fazia relação com os pacotes assistenciais reducionistas
                                  impostos pelas agências internacionais às regiões em desenvolvimento e que, portanto,
                                  qualquer proposta de “piso de atenção primária” poderia ser imediatamente rejeitada
                                  pela nomenclatura. Havia, naquele momento, necessidade premente de mudança na
                                  modalidade de financiamento – situação que não poderia se subordinar a um provável


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longo período de debate para escolha de uma denominação adequada. Assim surgiu o
                        termo “atenção básica”, como alternativa para evitar a resistência que era anunciada.
                        Somente isso. Muitos podem testemunhar a inexistência de qualquer mão poderosa
                        invisível norteando a escolha dos termos. Apenas a decisão de fazer acontecer no
                        menor tempo possível. O uso da expressão “atenção primária” já está sendo resgatado
                        no Brasil, o que é absolutamente pertinente, uma vez que encontra alinhamento com
                        outros idiomas e facilita o diálogo com experiências de outros países.
                        Hoje, a estratégia utilizada pelos gestores brasileiros para organizar a Atenção Primária
                        à Saúde é não somente observada, mas reconhecida no cenário internacional. Isso
                        representa um valor conquistado ao longo dos últimos 15 anos! Na verdade, mesmo
                        com dificuldades e desafios que ainda ameaçam a sustentabilidade da ESF, é preciso
                        reconhecer o quanto avançamos, principalmente porque no SUS nunca trabalhamos
                        em conjunturas favoráveis. Falar de uma cobertura próxima de 50% da população é
                        falar de mais de 90 milhões de pessoas inseridas em um modelo de atenção que tem
                        potencial para mais e melhores resultados. São 70 milhões de pessoas que passaram
                        a ter atenção odontológica. A ESF está presente em grandes cidades, com cobertura
                        expressiva em Belo Horizonte e com ritmo intenso de expansão da cidade do Rio de
                        Janeiro, apenas para exemplificar. A implantação dos Núcleos de Apoio à Saúde da
                        Família (NASF) já se consolida como proposta inovadora na organização do processo
                        de trabalho e fortalece as ações de promoção da saúde. Diferentes metodologias,
                        com destaque para a Avaliação para a Melhoria da Qualidade (AMQ) ou para estudos e
                        pesquisas desenvolvidos em parceria com instituições acadêmicas, configuram-se como
                        indutores à institucionalização do monitoramento e avaliação nos serviços de saúde. Está
                        em campo um conjunto de ações, formuladas e implementadas em parceria estreita
                        com o Ministério da Educação, para incentivar mudanças na formação profissional.
                        Mais recente, um rico processo de elaboração compartilhada e pactuada com gestores
                        estaduais e municipais permitiu a produção de uma série de dispositivos indutores para
                        a integração entre atenção primária e vigilância em saúde, processo indispensável para
                        a construção da integralidade da atenção.
                        Mais importantes que todos esses avanços são as constatações que impactam
                        positivamente na saúde da população que está sob responsabilidade das equipes. Não se
                        fala mais de hipóteses ou de desejos. As pesquisas e os estudos acadêmicos comprovam
                        a potencialidade da ESF na melhoria de indicadores de saúde, especialmente nos grupos
                        populacionais mais expostos às condições de pobreza.
                        Devemos nos orgulhar dos avanços obtidos, mas devemos reconhecer que tudo o que
                        já foi feito é insuficiente para alcançar a sustentabilidade dessa proposta. É insuficiente
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para atingir mais e melhores resultados e provocar mudanças verdadeiras no processo
                                  de trabalho. Como alguns dizem, “parece que estamos em uma encruzilhada”, onde um
                                  caminho nos leva a fazer mais dele e o outro aponta para a qualificação do processo.
                                  Isso requer a revisão de estratégias e de prioridades para alocação de recursos e a
                                  inserção da ESF em um processo radical de implantação das redes de atenção à saúde,
                                  onde a APS deve estar qualificada para exercer o papel de coordenação e regulação.
                                  Para finalizar, retorno ao passado e recupero a voz de Eliana Caminha, uma enfermeira
                                  que ajudou a construir a ESF no município de Olinda/PE. Ela dizia: “Nós não estamos
                                  mudando tudo, mas estamos fazendo tudo para mudar”.
                                  Talvez a fala de nossa colega possa se tornar um mantra para todos que possuem
                                  qualquer poder decisório nas mãos.




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Saúde é mudança!




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Samuel Jorge Moysés 1


                                                 Em maio de 1992, a Secretaria de Saúde de
                                  Curitiba publicou um número temático especial, dentro
                                  da linha editorial “Divulgação em Saúde para Debate”, do
                                  Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES). Nessa
                                  edição, de nº 8, o título central era exatamente “Saúde é
                                  mudança”. No editorial, redigido pelo então presidente
                                  do CEBES Eleutério Rodrigues Neto (sanitarista de
                                  saudosa memória e que emprestou seu nome para o
                                  prêmio de Vivências Inovadoras de Gestão no SUS), pode-
                                  se ler: “...A municipalização é uma diretriz inexorável, mas
                                  principalmente pela busca que só o município pode realizar
                                  de fato, de uma real transformação do modelo assistencial.”5
                                                                                                                         Publicação da Revista Divulgação
                                  Eleutério tinha razão: uma busca que só o município                                    em Saúde para Debate, nº 8, do
                                                                                                                         CEBES – Saúde é mudança.
                                  pode realizar de fato. O resgate da memória dessa busca
                                  e da progressiva implantação da Saúde da Família, no
                                  município de Curitiba, não poderia ser feito sem o registro
                                  de um episódio associado à publicação acima: trata-se
                                  de um fato incidental e, hoje, quase anedótico em face
                                  das reminiscências que compõem o repertório curitibano
                                  de vivências dos trabalhadores da saúde. Sob outro
                                  olhar, revela a riqueza e a beleza do trabalho humano,
                                  compondo mosaicos de evidências narrativas, erigidas
                                  com os conhecimentos e práticas sociais acionados em
                                  experiências singulares. Isso, de fato, faz o SUS ser
                                  reinventado todos os dias, com as virtudes e dificuldades
                                  de cada município.
                                  O episódio: estávamos então ainda em meio à celebração                                Reunião de gestores com a equipe
                                  de nossa publicação junto ao CEBES, recém-ocorrida, e já                              pioneira de saúde da família, US
                                                                                                                        Pompéia, 1992.
                                  nos aventurávamos na busca concreta de uma mudança
                                  fundamental no modo de construirmos as ações e serviços
                                  de saúde em aliança orgânica com as populações locais.
                                  Em reunião com a comunidade local, no Centro de Saúde
                                  Pompeia, situado em um dos bairros mais distantes do


                                  1   Ph.D. em Epidemiologia e Saúde Pública, Universidade de Londres, UK; Professor Titular da PUCPR; Professor
                                      Adjunto da UFPR; Coordenador do Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal da Saúde de Curitiba.




                                                                                                                                                                         37

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sul de Curitiba, decidimos implantar a primeira equipe multiprofissional, designada
                        como “equipe de Saúde da Família”.
                        Ocorre que, no dia da implantação, chovia torrencialmente na cidade e ainda tínhamos
                        os móveis e equipamentos que iriam aprestar a unidade de saúde na carroceria do
                        caminhão de mudanças. Um dos trabalhadores da nova equipe de saúde, que então se
                        constituía, comentou:
                        - Tudo bem que “Saúde é mudança”, mas precisava ser em baixo de um dilúvio?!
                        Saúde é mudança, sem dúvida! E aquele foi nosso “rito das águas”. O que veio a seguir
                                          já é história, muito bem documentada ao longo dos últimos anos...
                                                        Assim é a história, por exemplo, da colaboração estreita que tivemos
                                                        com o Grupo Hospitalar Conceição de Porto Alegre (GHC), então
                                                        operando em áreas pobres da referida cidade. Os trabalhadores
                                                        curitibanos eram então assessorados pelo inspirado e saudoso
                                                        “professor” Dante Romanó; as equipes gaúchas, sob a gestão de Carlos
                                                        Grossman, à época diretor do GHC, incansavelmente passaram a
                                                        intercambiar generosamente suas experiências frente a um cotidiano     Dante Romanó e Carlos Grossman celebrando a parceria das
                                                                                                                               cidades “co-irmãs”, Curitiba e Porto Alegre, na implantação da
                        Publicação comemorativa dos 10
                        anos de implantação da Saúde da sanitário de enormes desafios. Tanto foi assim que até mesmo um        Saúde da Família, 1992.

                        Família em Curitiba, 2002.
                                                        médico de Família e Comunidade do GHC foi cedido por um ano para
                        trabalhar na implantação da unidade de saúde São José, no noroeste de Curitiba.
                        Ou, ainda, a história da colaboração com o Department of Family and Community Medicine,
                        University of Toronto, do Canadá, iniciada com a visita do professor Walter Rosser,
                        chefe do referido Departamento canadense, a Curitiba. Ele imediatamente nos apoiou
                        na constituição e formação da primeira turma capacitada dentro do programa para
                        a formação de profissionais em Saúde da Família, realizado na PUCPR. Juntamente
                        com seu colega Yves Talbot, os dois professores canadenses formaram inicialmente 17
                        “profissionais multiplicadores”, sendo 11 médicos, duas enfermeiras e quatro dentistas.
                        Paulatinamente, com fortalezas e fragilidades, mas com a redução das incertezas que
                        só a experiência concreta pode trazer, essa história seguiu seu curso. Atualmente, com
                        a maturidade que uma política já informada pela evidência (não somente anedótica
                        ou narrativa, mas sustentada em informações robustas) pode alcançar, já somos




                                                                                                                               Mario Tavares, médico de família e comunidade do GHC de Porto
                                                                                                                               Alegre,que permaneceu em Curitiba por aproximadamente 1 ano, na
                                                                                                                               implantação da Saúde da Família, 1992-1993.
 38




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dezenas de equipes em Curitiba e, concomitantemente, milhares de equipes implantadas
                                                  por todo o Brasil. Essa implantação acelerada traz problemas, mas haveria carência de tempo
                                                  para a sociedade brasileira, com seus milhões de alijados da condição de dignidade sanitária,
                                                  continuar esperando por mudanças?
                                                  A despeito de antagonistas poderosos e críticos inconsequentes que não gostariam de
                                                  ver a ESF e o SUS darem certo no Brasil, essa é uma história de êxito internacionalmente
                                                  reconhecido. Então, escrever sobre ela é tarefa simples, embora pareça complexa; talvez
                                                  porque, para alcançar essa simplicidade, muitas complexidades já foram ou estão sendo
                                                  vencidas. Contudo, desse modo, pode parecer uma interpretação naïve sobre o processo denso
                                                  que cerca toda a implantação histórica (e anti-hegemônica) da ESF. Portanto, para finalizar, é
                                                  preciso lembrar Michel Foucault (e Giorgio Agamben), ambos metodologicamente unidos pela
                                                  ideia de que a “arqueologia” é a única via de acesso ao presente. Esse breve depoimento, que
                                                  visa acessar com um olhar autoral o presente da ESF, deve ser visto como uma “interpretação
                                                  arqueológica”. No pequeno sítio de escavação de poucas linhas, vasculhou pequenos fatos
                                                  históricos, “migalhas” de cotidiano, “restos” de realidades vividas por milhares de trabalhadores
                                                  e cidadãos brasileiros, que estão construindo revoluções moleculares em cada município, as
                                                  quais, quando potencializadas, produzirão impacto sobre milhões de vidas, no presente e no
                                                  futuro. Essa revolução se expressa, em menor ou maior grau, em mudanças no plano político-
                                                  gerencial, no plano organizativo das práticas de saúde, no plano da formação e do mundo do
                                                  trabalho, no plano ideológico e cultural da “civilização morena” dos brasileiros.
                                                  Saúde é mudança!
                                                  Referências
                                                  CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE (CEBES). Saúde é Mudança. Revista
                                                  Divulgação em Saúde para Debate, Curitiba, nº 8, maio 1992.
                                                  CURITIBA. Secretaria Municipal de Saúde. 10 anos de PSF em Curitiba: a história contada
                                                  por quem faz a história. Edição comemorativa. Curitiba: SMS, 2002.




                                                                                                                                                                                                                                                          39
                                  Visita do Prof. Walter Rosser, chefe do Department of Family and Community Medicine, University of   Grupo de profissionais da Secretaria de Saúde de Curitiba que participaram do curso de 5 finais de semana, com
                                  Toronto, Canadá, a Curitiba em 1994.                                                                 professores da Universidade de Toronto, Canadá, realizado na PUCPR, 1995.




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A nova cara da saúde no Brasil –
                                  a medicina de família e comunidade




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Carlos Grossman 1

                                  A especialidade de Medicina de Família e Comunidade foi formalmente
                                  definida em meados do século XX. No Brasil, passou a existir com clara
                                  definição a partir da segunda metade do século passado, quando foram
                                  criadas 12 residências médicas nessa especialidade, sendo quatro no Rio
                                  Grande do Sul (duas em Porto Alegre – no Murialdo e no Grupo Hospitalar
                                  Conceição – uma em Pelotas e uma em Caxias) e oito em outros Estados.
                                   Um aspecto interessante para o entendimento do que é Medicina de
                                  Família e Comunidade (MFC) é lembrar as denominações anteriores dessa
                                  área da Medicina: General Practice, nos Estados Unidos, Grã-Bretanha e
                                  outros países; Clínico Geral, médico de família, médico de zona, médico
                                  do bairro, médico-geral, entre outras, em nosso meio.
                                  A palavra “comunidade” foi acrescentada mais recentemente pela
                                  compreensão de que há aspectos que transcendem a pessoa e a família,
                                  que exercem grande influência na saúde e na doença.
                                  O surgimento das numerosas especialidades médicas acarretou uma
                                  redução do interesse na Medicina Geral, levando inclusive ao seu
                                  desaparecimento nos Estados Unidos na década de 50. Mas já na década
                                  seguinte ficou evidente a sua necessidade e, em 1969, nos Estados Unidos,
                                  a General Practice foi recriada com o nome de Medicina de Família.
                                  Foi nessa mesma época em que começaram a surgir, de forma independente
                                  em diferentes regiões do Brasil, as primeiras residências médicas em
                                  Medicina de Família e Comunidade, ligadas ou não a instituições oficiais
                                  ou de ensino.
                                  Apesar da recente experiência americana, esse movimento na direção de
                                  formalizar a Medicina de Família e Comunidade como uma especialidade
                                  desencadeou reações contrárias e até mesmo “violentas” vindas de vários
                                  setores, mas especialmente dos médicos, do Ministério da Saúde e de
                                  muitas personalidades médicas de reconhecido saber e, incrivelmente,
                                  da quase totalidade das Faculdades de Medicina do País. Com raríssimas
                                  exceções, as Faculdades de Medicina nunca manifestaram – até muito
                                  recentemente – o menor interesse nessa área da formação médica.
                                  Naturalmente houve algumas exceções e, para ilustrar e destacar, cabe
                                  mencionar o Dr. Adib Jatene, que, desde logo, apoiou e trabalhou extensa
                                  e intensivamente em todo o País, especialmente em São Paulo, pelo
                                  desenvolvimento da Medicina de Família.
                                  1 Médico e internista geral, fundador do serviço de Medicina de Família do Grupo Hospitalar Conceição - Participante do



                                                                                                                                                                         41
                                  Grupo de Trabalho que criou o Programa de Saúde da Família do Ministério da Saúde em 1993 - Membro da Academia Sul
                                  Riograndense de Medicina, atualmente preceptor da Residência de Medicina de Família do Grupo Hospitalar Conceição.




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Além dos numerosos focos esparsos que já existiam pelo Brasil, o que deu o
                        maior impulso que desencadeou a maior e mais verdadeira mudança na atenção
                        à saúde no Brasil foi a decisão do Ministro da Saúde Henrique Santillo, no governo
                        do Presidente Itamar Franco, de criar, iniciar o desenvolvimento da Medicina de
                        Família no Brasil inteiro, por meio do Ministério da Saúde, para isso convocando
                        para uma reunião em Brasília, em dezembro de 1993, representantes dos principais
                        núcleos que já trabalhavam com Medicina de Família no País.
                        Esse primeiro e decisivo movimento foi ideia e obra do médico Halim Girade,
                        assessor importante na equipe do Ministro. Com rara sabedoria e um mínimo de
                        interferência pessoal ou do Ministro, ele reuniu as pessoas, propôs a tarefa e não
                        mais interveio, exceto quando solicitado pelo grupo. Creio que se deve a ele o mérito
                        maior da ideia e do modo de transformá-la em realidade em todo o Brasil – apesar
                        das grandes resistências, inclusive dentro do próprio Ministério da Saúde.
                        Apesar de alguns equívocos, como pretender que as Faculdades de Medicina
                        ajudassem, a Medicina de Família avançou quantitativamente, e só não avançou
                        mais qualitativamente por não buscar intensamente a experiência de outros
                        países, como Grã-Bretanha e Cuba, além do Canadá, por exemplo, onde o sucesso
                        da MFC tem sido destacado, muito conhecido e reconhecido mundialmente. Uma
                        exceção notável tem sido a colaboração extremamente positiva com profissionais e
                        instituições do Canadá, especialmente de Toronto. Vale notar que essa colaboração
                        foi um caso notável de Serendipity, isto é, a descoberta inesperada e afortunada
                        de coisas boas, como foi, por exemplo, a descoberta da penicilina. Serendipity foi a
                        palavra cunhada por Horace Walpole para descrever o que aconteceu numa história
                        de fadas do Ceilão chamada “Os três príncipes de Serendipi”. Aconteceu que a
                        Faculdade de Medicina da PUC de Curitiba, desejando ampliar, melhorar o ensino
                        de traumatologia, enviou um grupo de seus professores e dirigentes para visitar
                        no exterior centros destacados nessa área. Em uma das faculdades visitadas em
                        Toronto, o grupo ficou muito impressionado pelo desenvolvimento do Departamento
                        de Medicina de Família – um dos maiores e mais qualificados do mundo. Voltando
                        a Curitiba, propuseram a ampliação do setor de Medicina de Família da PUC, com
                        auxílio de Toronto – o que foi feito de imediato, com benefícios grandes não só para
                        o Paraná e outros Estados brasileiros –, em colaboração que ainda continua em
                        vários pontos do Brasil vários anos após o seu início, impulsionada principalmente
                        pela grande e muito querida figura médica e liderança decisiva no desenvolvimento
                        da MFC no Paraná e no Brasil, que foi o Dr. Dante Romano Jr., prematuramente
                        falecido. Pelo lado canadense, o grande motor dessa colaboração foi o Dr. Ives
                        Talbot, que já fala português fluente.
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Tive a ventura de participar de vários desses momentos iniciais no Murialdo, no Grupo
                                  Hospitalar Conceição, e colaborando durante algum tempo com o Ministério da Saúde
                                  após 1993.
                                  Nos últimos vários anos, têm-se observado o ingresso mediante concurso de muitos
                                  médicos de Família e Comunidade como docentes nas faculdades de Medicina estatais
                                  e privadas, principalmente nos Departamentos de Medicina Preventiva e Social, o que
                                  pode representar outro fator de transformação progressiva da formação médica no
                                  nível de graduação.
                                  O médico de Família é a materialização de um desejo e necessidade da maior parte das
                                  pessoas e famílias: ter o SEU médico, aquele que conhece e é conhecido do paciente
                                  e da família de longa data, que é facilmente acessível e que geralmente acerta no seu
                                  atendimento.
                                  Numerosos estudos em várias regiões do mundo têm mostrado que essa combinação
                                  – médico-geral SEMPRE e especialistas em órgãos e técnicas QUANDO NECESSÁRIO
                                  – tem produzido os melhores resultados em termos de satisfação e custo/benefício.
                                  A realidade é que o MFC, muito mais que “a porta de entrada” no sistema de saúde, é
                                  onde o paciente permanece, “não sai”, e aí resolve mais de 90% dos seus problemas
                                  de saúde, incluindo a prevenção e a promoção da saúde.
                                  O MFC bem formado tem a virtude de simplificar o atendimento, inclusive pelos
                                  demais especialistas, que recebem encaminhamentos já mais bem selecionados,
                                  mais apropriados. A ênfase na prevenção e na promoção da saúde não só individual,
                                  mas no contexto da comunidade onde a pessoa vive, tem a possibilidade de diminuir
                                  progressivamente o volume de doenças.
                                  Os gastos com saúde são estratosféricos. A ação do MSF faz com que sejam
                                  significativamente reduzidos por meio não só da prevenção, mas também porque nessa
                                  modalidade de atendimento tem sido possível reduzir a quantidade de medicamentos
                                  usados, o número de exames complementares utilizados e o número e a duração das
                                  internações hospitalares.
                                  Para a criação e ampliação das Residências, como para a reciclagem dos médicos
                                  que não fizeram Residência, é necessário GRANDE INVESTIMENTO de recursos – mas
                                  um investimento assim poderia, num futuro não distante, elevar significativamente a
                                  extensão e a qualidade dos serviços prestados, como ocorreu em Cuba, a partir de 1984.
                                  É importante ressaltar que, apesar de estarmos começando, foram capacitados
                                  nesse curto período, desde 1993, numerosos profissionais – médicos, enfermeiros,



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agentes de saúde e outros – que têm se revelado como pessoas de extraordinário valor
                        e saber na especialidade. Os evidentes resultados de seu trabalho, com a consequente
                        valorização de seus méritos por colegas de outras especialidades, enfraquecem os que
                        ainda teimam em questionar sua qualificação.
                        A MFC no Brasil cresceu e evoluiu, tornando-se exemplo gigantesco do que pode ser
                        feito para aumentar significativamente a saúde de milhões de pessoas em um curto
                        período de tempo. Parabéns ao Brasil e a todos que ajudaram e fizeram acontecer, e
                        aos que atualmente batalham e se esforçam para dar qualidade e adequação cada vez
                        maiores aos serviços de saúde que são prestados à população brasileira.
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Mais uma história de mineiro




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Luis Fernando Rolim Sampaio1

                                  De tantas e tantos que são, contar uma história ou um fato marcante
                                  sobre a Saúde da Família é uma tarefa difícil. Muitas emoções como ver
                                  aprovada a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) na tripartite,
                                  receber quase que unanimemente o apoio do Conselho Nacional de
                                  Saúde à proposta dos NASF e ouvir de personalidades como o Dr. Malehr
                                  e a professora Barbara Starfield, em nossos seminários internacionais,
                                  que estamos fazendo um trabalho que é uma grande contribuição
                                  reconhecida em todo o mundo. Escolhi, entretanto, contar um pouco do
                                  que ouvi nesses anos, desde 93, quando assumi a gestão de um pequeno
                                  município de Minas Gerais, na região metropolitana de Belo Horizonte.
                                  Naquele tempo, a Saúde da Família era um programa que recebia
                                  recursos por meio de convênio com o Ministério da Saúde. Como
                                  Secretário Municipal de Brumadinho, à época, assumimos o compromisso
                                  de implantar cinco equipes cobrindo toda a área rural do município. Foi
                                  uma experiência de sucesso, com grande aprovação da população e dos
                                  profissionais que lá trabalhavam. Alguns deles, médicos e enfermeiros,
                                  continuam na Saúde da Família até hoje. Peregrinaram por vários
                                  municípios na região e a cada eleição municipal estavam sujeitos a
                                  terem que mudar. Mas persistiram. Naquela época o que ouvia de outros
                                  secretários municipais era que “o programa é uma boa ideia”... para
                                  áreas rurais e de difícil acesso.
                                  Em 97, com a mudança dos prefeitos, mudaram-se os médicos de
                                  Brumadinho e eu era um deles. Nova empreitada começava em Ibiá, Minas
                                  Gerais, dessa vez não só na zona rural. Implantamos uma cobertura de
                                  100% do município já no primeiro ano do novo governo. Também foi um
                                  sucesso. E, novamente convidado a apresentar a experiência em fóruns
                                  estaduais e nacionais, passei a ouvir que podia mesmo ser uma boa ideia
                                  “para pequenos municípios, longe da capital”.
                                  As surpresas que a vida nos traz me levaram a Contagem, onde assumi
                                  a Secretaria de Saúde em janeiro de 1999. Em um ano de trabalho,
                                  implantamos 85 equipes com 50% de cobertura. A expansão foi monitorada




                                  1   Médico formado na UFMG, especialista em gestão hospitalar pela ENSP e mestre em Saúde Coletiva pelo
                                      ISC/UFBA. Na década de 90 participou do processo de descentralização da saúde em Minas Gerais sendo
                                      Secretario Municipal de Saúde em Brumadinho, Ibia e Contagem. Participou da direção do COSEMS MG e foi
                                      assessor do CONASS , em Brasília. Trabalhou no Ministério da Saúde por vários anos sendo Diretor do DAB



                                                                                                                                                             47
                                      de 2005 a 2008. Nos últimos anos tem trabalhado como consultor em atenção primaria e serviços de saúde
                                      para diversas instituições internacionais, estando vinculado a Universidade de Toronto, no Canadá.




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por pesquisas de opinião pública, e o sucesso também comprovado pela satisfação
                        dos usuários. A saúde, um peso negativo para o governo até então, passou a ser um
                        dos sucessos da administração. Nesse momento já não eram só equipes e pequenos
                        hospitais. Estávamos na segunda maior cidade de Minas e uma das 30 maiores
                        cidades do Brasil. Naquele momento do ano 2000, Contagem era a única cidade
                        acima de 500 mil habitantes com mais de 50% de cobertura em todo o País. Deu
                        certo e aí não era mais a zona rural, nem a cidade do interior distante.
                        Mas ainda existia uma última barreira discursiva: “Não dá certo nas capitais”. Na
                        capital tudo é diferente! Como disse David Capistrano, nos anos 90, a prova de fogo
                        do PSF será chegar às metrópoles, como Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte.
                        Chegou a hora. Na vanguarda, Belo Horizonte tomou a arrojada decisão de cobrir
                        70% de sua população com a Saúde da Família, com mais de 500 equipes. São Paulo
                        já conta com mais de 1.200 equipes e o Rio de Janeiro, finalmente, se move nessa
                        direção.
                        Trouxe esse exemplo para ilustrar a tese que vou defender: a Saúde da Família,
                        baseada em princípios de uma Atenção Primária à Saúde integral, não é uma
                        política pobre para pobres. Ela pode e deve ser o ponto de contato principal
                        entre a população e o sistema de saúde, deve ser coordenadora do cuidado, deve
                        promover a longitudinalidade e a continuidade da atenção à saúde das pessoas
                        e, essencialmente, deve ser capaz de responder às demandas de quem chega ao
                        serviço, independentemente de estarmos falando das áreas rurais no interior do
                        Nordeste ou de Copacabana, no Rio de Janeiro. Serve sim para todos, incluindo
                        Londres, Barcelona, Estocolmo, Toronto e tantas outras que não são o que
                        poderíamos chamar de cidades pobres.
                        Infelizmente, a sociedade brasileira ainda não tomou essa decisão, ao contrário
                        de sociedades de países como a Suécia, Inglaterra, Espanha, Canadá. Quem tem
                        Atenção Primária à Saúde de verdade são os países ricos, com compromisso com suas
                        políticas sociais e com a equidade. Continuamos nos espelhando, enquanto desejo
                        de consumo, no modelo americano, o mais caro e ineficiente do mundo. Queremos
                        ter acesso direto aos médicos especialistas focais, queremos fazer tomografia para
                        nossa dor de cabeça, mesmo sabendo que a maioria absoluta dessas tomografias
                        é normal e, provavelmente, sequer deveria ter sido indicada. Enfim, praticamos a
                        lei do cuidado inverso: quem tem maiores necessidades tem menos acesso e pior
                        qualidade. Por outro lado, quem menos precisa tem, teoricamente, mais acesso com
                        maior qualidade. Mais acesso com certeza, mais qualidade, nem sempre. Devemos
                        questionar a qualidade e excelência da indicação do uso de tecnologias médicas
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desnecessárias, quase nunca inócuas. Veja, de novo, o exemplo dos Estados Unidos,
                                  onde a iatrogenia está entre as maiores causas de morte.
                                  Nenhum sistema de atenção à saúde é sustentável, em longo prazo, com a escalada
                                  de custos e a incorporação desordenada de tecnologia que vivemos no setor nos dias
                                  de hoje. Isso disse o Ministro Temporão, no Buenos Aires 30/15, há alguns anos. E o
                                  maior risco está exatamente nos chamados países de renda média, como o Brasil,
                                  pois nesses, na maioria das vezes, não se regula a incorporação de tecnologia.
                                  Outras contradições que vivemos no SUS reforçam as dificuldades de avanços no
                                  sentido de um sistema único de saúde liderado pela APS.
                                  Uma delas é que ter um médico de Família, e não uma série de especialistas focais
                                  como referência para o cuidado cotidiano, é interpretado como coisa para pobre.
                                  Pobres canadenses, ingleses, espanhóis, suecos, australianos. Será que a qualidade
                                  dos serviços de saúde nesses países é pior que no Brasil? Mesmo se considerarmos
                                  somente o sistema privado, nossos indicadores não demonstram isso. Os ricos no
                                  Brasil não têm indicadores melhores que a média dos ingleses ou suecos.
                                  Segue-se que a Saúde da Família, mesmo sendo prioridade da política pública de
                                  saúde no País, não tem conseguido mover as universidades para uma mudança
                                  real na formação de recursos humanos na velocidade necessária. O famoso Ecology
                                  of the Medical Care já demonstrava, há 40 anos, que quem vai para hospitais de
                                  ensino é somente uma ínfima parte da população que necessita de cuidados muito
                                  especializados. Entretanto, é aí que nossos médicos e enfermeiros são formados, em
                                  hospitais que têm como objeto do ensino as doenças raras. Também continuamos
                                  formando médicos para trabalhar com os 25% de usuários de planos de saúde, e
                                  enfermeiros para os hospitais. O exemplo começa quando vemos os professores
                                  disputando os andares especiais das enfermarias privadas, dentro dos hospitais
                                  universitários públicos.
                                  Se quisermos mesmo serviços públicos de qualidade para todos, com porta de entrada
                                  única, temos que rediscutir como manter profissionais competentes e comprometidos
                                  dentro do sistema, defendendo-os e valorizando-os, e não os tendo como mais um
                                  dos inúmeros vínculos de trabalho. Dedicação exclusiva ao SUS não deveria ser uma
                                  exceção. Ilhas de excelência existem, mas APS na perspectiva da integralidade de um
                                  sistema nacional de saúde com a proposta do SUS não se constrói em ilhas. Também
                                  temos que discutir que “postinho de saúde” sem janela, com mesas e cadeiras
                                  enferrujadas e com mofo nas paredes não vai conseguir atrair e virar referência para
                                  qualquer cidadão que tenha outra opção. Se for assim, fica claro que a opção é exclusiva



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para os que não têm nenhuma outra opção: uma opção pobre para os pobres.
                        Finalizando, para fazermos as mudanças, precisamos de dinheiro. Não vamos cumprir
                        a promessa do SUS com um gasto público em saúde abaixo de 4% do PIB. Para os que
                        acham o sistema privado brasileiro eficiente, teremos que gastar pelo menos 16% do
                        PIB só para a assistência médica, se seguirmos um modelo semelhante de planos de
                        saúde em um mercado competitivo. Por outro lado, como esperamos não ter outro Big
                        Bang legislativo tão cedo, o que significaria outro desenho para o sistema de saúde
                        brasileiro, não podemos perder a oportunidade de incrementalmente, aumentar os
                        percentuais destinados à APS. Retirar recursos de serviços de alto custo e hospitalares
                        é inviável, mas destinar recursos novos preferencialmente aos serviços de atenção
                        primária e à Saúde da Família não. A viabilidade se chama vontade política.
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Da reflexão crítica no movimento estudantil
                                  à participação na construção da estratégia
                                  saúde da família




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                                                                                            2
                                                                                                Ivana Cristina de Holanda Cunha Barreto

                                  Somos da geração de médicos que se formou ao final na década de 80. Assim
                                  como todos os nossos colegas, deparamo-nos com um currículo médico
                                  dividido em ciclo básico e ciclo clínico. O primeiro concentrava-se em
                                  aulas teóricas e de laboratório; o segundo, aulas teóricas e visitas de
                                  enfermaria ao hospital universitário. É preciso mencionar ainda a grande
                                  quantidade de disciplinas de especialidades médicas, uma ou duas de
                                  saúde pública e o internato de apenas um ano.
                                  Tivemos também uma ou duas disciplinas de saúde pública. O contato com
                                  o movimento estudantil e com professores que faziam crítica à formação
                                  médica com uma visão fragmentada e descontextualizada do paciente e
                                  de sua família nos estimulou a fazer uma reflexão sobre a nossa formação
                                  e sobre o sistema de saúde excludente que vigorava no Brasil. Como
                                  resultado desse processo, aderimos, junto com outros companheiros, ao
                                  trabalho de organização, participação e reflexão crítica dos estudantes
                                  sobre o curso de Medicina e o papel do médico na sociedade.
                                  Vivenciamos como estudantes a luta pelo restabelecimento da democracia
                                  no País e o fortalecimento do Movimento de Reforma Sanitária. Fomos
                                  membros do grupo de cinco delegados da União Nacional dos Estudantes
                                  na 8ª Conferência Nacional de Saúde. Participamos da equipe que liderou
                                  o XVI Encontro Científico dos Estudantes de Medicina (ECEM) e a criação
                                  da Direção Nacional dos Estudantes de Medicina (DENEM), em 1986. Essa
                                  geração do movimento estudantil optou por enfrentar um desafio: “Pensar
                                  politicamente a ciência e cientificamente a política”.
                                  Na 8ª Conferência Nacional de Saúde, a discussão da saúde como qualidade
                                  de vida e dos princípios para nosso futuro Sistema Único de Saúde tocou
                                  profundamente nossa sensibilidade e acendeu nossa esperança num
                                  futuro melhor para o Brasil. Universalidade, integralidade, equidade,
                                  descentralização e participação popular, nossos sonhos para construção
                                  de um país onde todos fossem sujeitos de direito.
                                  Discutíamos a necessidade de ser o estudante de Medicina preparado
                                  para atuar na Atenção Primária, Secundária e Terciária à Saúde, tendo

                                  1 Médico, Doutor em Saúde Coletiva com Pós-Doutorado na Universidade de Montreal – Canadá. Professor da Universidade
                                       Federal do Ceará (UFC) e do Doutorado em Saúde Coletiva (UECE-UFC). Diretor Presidente do Instituto CENTEC.
                                       Recebeu 47 prêmios e homenagens, entre eles em 2009 o Prêmio Sérgio Arouca de Gestão Participativa no SUS e em
                                       2010 recebeu pelo Ministro da Saúde, José Gomes Temporão, a Medalha da Ordem do Mérito do Médico na qualidade
                                       de Comendador.
                                  2 Médica, Doutora em Medicina na Área de Pediatria pela USP com estágio Pós-Doctor no Departamento de Ciências da
                                       Educação na Universidade de Montreal no Canadá. Atualmente é professora adjunta da Universidade Federal do Ceará,



                                                                                                                                                                        53
                                       exercendo suas atividades na Faculdade de Medicina de Sobral, como docente no Mestrado Acadêmico em Saúde da
                                       Família da UFC e do módulo de Atenção Básica à Saúde.




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contato com a rede de serviços, desde o início do curso. Defendíamos ainda que
                        o estudante tivesse formação humanista e construísse o aprendizado a partir da
                        reflexão e pesquisa sobre os problemas identificados nos serviços.
                        Algumas lideranças do movimento sanitário brasileiro foram determinantes na
                        formação do nosso pensamento e da nossa prática: Ibrahim Mourad Belaciano, Ana Rita
                        Pederneiras, Carlile Lavor, o atual Ministro, José Temporão, David Capistrano, Eduardo
                        Jorge, Sergio Arouca, Sonia Fleury, Gastão Wagner de Sousa Campos e Madel Terezinha
                        Luz.
                        Em 1986, iniciamos nosso primeiro trabalho no campo participando da construção do
                        Sistema Local de Saúde de Icapuí, município de 13.000 habitantes do litoral do Ceará,
                        onde ficamos até 1992. Foi a partir dessa experiência que aprofundamos nosso contato
                        com os problemas de saúde do povo, aprendendo como a luta pela sobrevivência numa
                        região litorânea do Nordeste determina a saúde. Foi em Icapuí onde trabalhamos na
                        formação dos agentes comunitários de saúde (ACS) e nas primeiras versões do Sistema
                        de Informação da Atenção Básica (SIAB). Lá investigamos as causas de óbitos infantis
                        não registrados. Crianças que morriam por desidratação, quando os sais de reidratação
                        oral já eram recomendados desde a década de 70 pela OMS (SACK, et al., 1970; RAMLAL,
                        1980). E aqui aproveitamos para render nossas homenagens a Dra. Zilda Arns, que, com
                        a Pastoral da Criança, foi parceira importante nessa caminhada.
                        Em Icapuí, tivemos a oportunidade de formar equipes interprofissionais, com enfermeiras,
                        auxiliares de enfermagem, agentes de saúde e médicos. Equipes que dialogavam e
                        planejavam um trabalho conjunto na comunidade. Cadastramos as famílias, implantamos
                        os prontuários familiares. Nessa cidade aconteceram nossas primeiras experiências de
                        trabalho intersetorial: a equipe de saúde articulando-se com a educação, urbanismo,
                        cultura, esportes, desenvolvimento econômico.
                        A partir de 1993, aceitamos o desafio de organizar o Sistema Municipal de Saúde de
                        Quixadá, sertão central do Ceará, 70.000 habitantes. Tempo de amadurecer. O povo
                        precisava de assistência à saúde. Mas como aumentar a cobertura de atenção primária
                        sem reproduzir o modelo biomédico? Como ampliar as equipes de atenção básica do
                        município com os escassos recursos existentes? Dessas contradições nasceu a ideia
                        de elaborar o Projeto Saúde da Família, em que Quixadá solicitava o apoio do Ministério
                        da Saúde para organizar equipes multiprofissionais, formadas por médico, enfermeiro,
                        auxiliar de enfermagem e agente de saúde, para cada uma das 13 áreas descentralizadas
                        de saúde do município.
                        As equipes multiprofissionais de saúde deveriam realizar um diagnóstico de saúde
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da população pela qual era responsável (entre 500 e 1.000 famílias); realizar o
                                  reconhecimento do território, mapeando os recursos sociais existentes; cadastrar
                                  as famílias, priorizando as de maior risco no processo de atenção; garantir o
                                  acompanhamento longitudinal dos indivíduos e famílias; realizar ações de promoção
                                  da saúde e prevenção de doenças; prestar assistência aos agravos mais prevalentes;
                                  encaminhar casos para atenção especializada se necessário; construir vínculos com
                                  as lideranças comunitárias e organizar o conselho local de saúde. A primeira equipe
                                  de Saúde da Família de Quixadá foi implantada na comunidade Serra do Estevão nos
                                  primeiros meses de 1994. Esse projeto foi discutido com o Ministro Henrique Santillo
                                  e o seu assessor especial, na época, Halin Girade, tendo sido referência na tomada de
                                  decisão para implantação do Programa Saúde da Família (PSF) no Brasil. A primeira
                                  reunião com o assessor Halim foi em agosto de 1993; uma segunda com Halim, Oscar
                                  Castillo, do Unicef, e Eugenio Vilaça, da OPAS, em outubro de 1993, momento em que
                                  foi agendada a reunião que decidiu pela implantação do PSF em 27 de dezembro de
                                  1993 (POZ; VIANA, 1998).
                                  Concretizar esse projeto de mudança no modelo assistencial exigia profissionais de
                                  mente aberta, dispostos a construir uma experiência nova e inusitada para os padrões da
                                  época. Para formar as equipes do PSF de Quixadá, outros companheiros do movimento
                                  estudantil entraram de “corpo e alma” no projeto: Alcides Miranda, Gabriela Godoy,
                                  Aldenildo Costeira, Janine, Ernani Vieira, Vera Dantas, Francineide Maciel, Francimeire
                                  Amorim, Lucineide, entre outros. Foram constituídas 13 equipes do PSF para o mesmo
                                  número de “áreas descentralizadas de saúde”. Fazíamos reuniões semanais, era
                                  preciso um processo de gestão participativa. Os resultados foram rápidos: redução dos
                                  atendimentos hospitalares, redução da mortalidade infantil, controle da epidemia de
                                  cólera.
                                  A partir de 1997, continuamos o trabalho agora em Sobral, 170.000 habitantes, um
                                  sistema de saúde muito centralizado no hospital e concentrado na sede do município.
                                  Eram necessárias mais de 40 equipes de Saúde da Família. Ficou mais evidente a
                                  premência da educação permanente para os profissionais, que necessitavam tanto de
                                  capacitação para o trabalho na Atenção Primária à Saúde como de acompanhar a rápida
                                  produção de conhecimentos na saúde. Em 1999, foi criada a primeira turma do programa
                                  de Residência Multiprofissional em Saúde da Família de Sobral (ANDRADE, et al., 2004),
                                  que hoje está na oitava turma e já formou 165 especialistas. Em 2001, foi criada a Escola
                                  de Formação em Saúde da Família Visconde de Saboia (http://www.sobral.ce.gov.br/
                                  saudedafamilia).
                                  Em 2005, mais uma vez mudamos de contexto: Fortaleza, capital de 2.300.000 habitantes,



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cidade marcada por grande desigualdade social. Nela, organizar o sistema de saúde,
                        considerando a equidade, era e é fundamental. O estudo que mapeou as microáreas dos
                        agentes comunitários de saúde revelou os quarteirões desprovidos de serviços públicos,
                        com casas insalubres e comunidade à margem do sistema econômico.
                        Foram realizados concursos públicos para 2.626 ACS e 750 profissionais de nível superior
                        na saúde. Em Fortaleza aprofundamos o conceito de Sistema de Saúde Escola, que havia
                        sido criado em Sobral (BARRETO et al., 2006). Os resultados, apesar do curto tempo de
                        implantação da ESF na grande metrópole, já se evidenciam. A mortalidade materna em
                        Fortaleza caiu de 70,83 por 100.000 nascidos vivos, em 2004, para 23,67 em 2007. Foi
                        possível controlar a epidemia de dengue no município, nos anos de 2007 e 2008, com
                        uma taxa de letalidade por dengue de 0,8 por 100.000 habitantes em 2007, abaixo da
                        observada em outras capitais brasileiras (FORTALEZA, 2007).
                        Para concluir, podemos afirmar que nossa história na PSF, hoje, Estratégia Saúde da
                        Família, envolve razão e emoção. A razão demonstrando que essa estratégia é capaz
                        de impactar indicadores de saúde; e a emoção de ser ator de um processo que vem
                        melhorando a vida de milhões de brasileiros.


                        Referências
                        ANDRADE, L. et al. Escola de Formação em Saúde da Família Visconde de Saboia –
                        Sobral (CE): uma resposta municipal para a Educação permanente no SUS. Divulg.
                        Saúde Debate, Rio de Janeiro, v. 30, p. 15-25, 2004.
                        BARRETO, I. et al. A educação permanente e a construção de Sistemas Municipais de
                        Saúde Escola: o caso Fortaleza (CE). Divulg. Saúde Debate, Rio de Janeiro, v. 34, p. 15,
                        2006.
                        FORTALEZA, S. S. Relatório de Gestão da Saúde 2007. Fortaleza: Secretaria de Saúde de
                        Fortaleza, 2007. v. 1.
                        POZ, M.; VIANA, A. A reforma no sistema de saúde no Brasil e o Programa Saúde da
                        Família. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 8, n. 2, p. 11-48,1998.
                        RAMLAL, A. M. Administration of oral rehydration therapy. Bulletin of the Pan American
                        Health Organization (PAHO), United States, v. 14, n. 2, p. 204-206, 1980.
                        SACK, R. et al. The use of oral replacement solutions in the treatment of cholera and
                        other severe diarrhoeal disorders. Bulletin of World Health Organization, Switzerland,
                        v. 43, p. 351-360, 1970.
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Saúde da Família no Brasil:
                                  de movimento ideológico a ação política




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Flávio A. de Andrade Goulart 1

                                  1. Atenção Primária à Saúde: conteúdos e trajetórias
                                  Recuperar a história da Estratégia Saúde da Família requer, antes de tudo,
                                  regressão histórica longa e aprofundada, percorrendo pelo menos duas
                                  sendas significativas: a trajetória das ideias correspondentes no mundo e a
                                  chegada e o desenvolvimento, no Brasil, de programas de Atenção Primária
                                  à Saúde – bem como seus correlatos.
                                  Em termos mundiais, uma longa história pode ser percorrida com raízes
                                  seculares e até mesmo milenares. A fase mais significativa ocorre ao longo
                                  do século XIX e na primeira metade do século XX, primeiro com as políticas
                                  de saúde pública e Medicina Social e, depois, com o advento dos estados de
                                  bem-estar social na Europa. Contextos políticos e ideológicos diversos se
                                  fizeram presentes, desde a afirmação de razões de Estado para o controle
                                  da sociedade, passando por ideais filosóficos e religiosos de igualdade e
                                  fraternidade, até as lutas operárias e a conquista da cidadania social.
                                  No caso brasileiro, é preciso recuperar alguns movimentos iniciados ainda nos
                                  anos 20 do século XX, com a importação de propostas originárias dos Estados
                                  Unidos, traduzidas na atuação da fundação Rockfeller e que convergiram na
                                  criação da Fundação Serviços Especiais de Saúde Pública, além de outros
                                  programas públicos, depois evoluindo para processos mais abrangentes e
                                  complexos, nas décadas posteriores. Os contextos também variaram desde
                                  a necessidade de reprodução do capital no processo de industrialização
                                  nascente no País até as pressões derivadas de lutas políticas diversas no
                                  âmbito de diferentes movimentos sociais.
                                  O fato é que as práticas de saúde sempre tiveram, em sua origem e determinação,
                                  a influência dos modos de conceber e agir da sociedade face ao corpo humano
                                  e a respectiva valorização concedida à saúde e à doença. Os diversos modelos
                                  de práticas (ou mesmo de políticas de saúde) daí advindos, ao variarem
                                  intensamente ao longo da história, mantiveram, entretanto, correlação com a
                                  estrutura da sociedade, em cada período, em face da visão de mundo dominante
                                  (SIGERIST, 1974). Por outro lado, como lembra Rosen (1994), em toda a história
                                  das sociedades humanas, os problemas de saúde enfrentados tiveram, em sua
                                  origem, relação com a vida em comunidade e, embora com ênfases diferentes,
                                  com as variadas maneiras com que tais sociedades procuraram resolvê-los,
                                  por exemplo, controlando as doenças e melhorando as condições ambientais.
                                  Modelos e até mesmo sistemas completos de atenção à saúde existiram

                                  1 Doutor em Saúde Pública pela ENSP/FIOCRUZ; Professor (titular) aposentado -Universidade de Brasília; Secretário



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                                       Municipal de Saúde - Uberlândia-MG (1983/88 e 2003/04)




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mesmo em sociedades antigas, com características que até os dias atuais se encontram presentes, inclusive
                        no que diz respeito a componentes que, por aproximação, estão presentes no que hoje se denomina Atenção
                        Primária à Saúde (APS). O quadro abaixo, inspirado em Thorwald (1985), Sigerist (1974) e Rosen (1994), resume
                        algumas informações sobre a evolução de alguns desses modelos.
                        Quadro 1 - Evolução histórica dos modelos de atenção à saúde

                         BABILÔNIA
                         Século VI a.C: Código de Hamurabi: cuidado da saúde da coletividade; controle das condutas dos médicos.
                         EGITO
                         IV Dinastia (cerca de 2.500 a. C.): grande prestígio de médicos generalistas; Iry, médico da corte do faraó e uma espécie de autoridade
                         sanitária da época; médicos contratados para prestar assistência integral aos trabalhadores das pirâmides.
                         GRÉCIA
                         Século IV a.C: Platão justificava a presença dos médicos na Polis, para que os cidadãos fossem sadios; termos associados com saúde:
                         higiene, harmonia, bem, equilíbrio, organização, com os médicos praticantes imbuídos deles; serviços públicos rudimentares de
                         drenagem e suprimento de água nas cidades; médicos com salário fixado por um imposto especial e com base territorial de ação,
                         concentrando-se nas cidades maiores, onde estabeleciam o iatréion (consultório); médicos itinerantes nos vilarejos que batiam à porta
                         das famílias, oferecendo seus trabalhos; cerca de 600 a.C., passou a ser comum a nomeação pública de médicos para atuarem nas
                         cidades, garantindo-se-lhes proventos anuais, mesmo que não houvesse enfermos para tratar (capitação); influência de Hipócrates
                         (450 a.C.), prática generalista dos médicos.
                         ROMA
                         Migração de médicos gregos para Roma, em torno do ano I, adquirindo cidadania romana – uma notável distinção para a época; forte
                         influência da medicina grega; médicos atuando em bases territorializadas, com populações adscritas; decreto do numerus clausus
                         limitando o número de médicos em cada cidade; as famílias são vinculadas a uma espécie de médico de Família, com atuação integral
                         referente a todos os membros da mesma, com salário mediante cotização de seus assistidos; século II: aparece um serviço público de
                         atenção à saúde, com a nomeação de funcionários médicos, os archiatri, com responsabilidades de atenção à pobreza.
                         IDADE MÉDIA
                         Inflexão da tendência de cuidados por médicos; enfoque do cuidado à pobreza, com forte influência religiosa, doença concebida como
                         purificação e graça divina; prática médica recolhida aos mosteiros; em torno do ano, médicos leigos aumentaram de número e tiveram
                         atuação tolerada e até mesmo estimulada pela Igreja, que considera agora o corpo como “morada da alma”; século XIII, Salerno
                         (atual Itália) primórdios de intervenção estatal em saúde e sobre a prática e a formação médica; Regimen Sanitatis Salernitanum,
                         obra do século XII que teve notoriedade e divulgação na Europa até o século XIX. Um trecho: “A mente mantenha livre de cuidados,
                         e de ira o coração / Não beba muito vinho, ceie pouco, levante cedo, / Depois de comer ficar sentado causa danos / quando sentir as
                         necessidades da natureza, / não as retenha, pois isto é muito perigoso. / e use ainda três médicos, primeiro o Doutor Descanso, /
                         Depois o Doutor Alegria, e o doutor Dieta”; na Suíça: advento de uma espécie de médico de Família, com atendimento à nobreza e à
                         aristocracia eclesiástica – o médico de Câmara; saúde pública nas cidades exercida por um conselho seleto, com mandato temporário
                         e geralmente formado por não médicos. Apesar de todo o atraso científico e social da época, havia certa ênfase na educação e na
                         promoção de hábitos higiênicos e de saúde, conforme se aprecia no Regimen de Salerno.
                        Fonte: Autoria própria
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Como se vê, quando se fala de Atenção Primária à Saúde ou mesmo de Atenção Básica
                                  ou Saúde da Família, não se está lidando com conceitos e práticas rigorosamente novos,
                                  pois já tinham sido pensados e experimentados em variadas sociedades, durante um
                                  longo período de tempo. Isso faz do objeto deste capítulo um tema ao mesmo tempo novo
                                  e antigo, o que significa que o passado, por mais remoto que seja, oferece contribuições
                                  para a completa apreensão desses conceitos, da maneira como são entendidos e
                                  praticados nos dias atuais.
                                  Mas qual seria o significado da proteção à saúde que se instaura no contexto da
                                  modernidade? Mais uma vez, na história, tudo começa antes do que parece. Rosen (1994)
                                  destaca a existência de uma verdadeira façanha sanitária medieval, em que pesem as
                                  limitações políticas e científicas inerentes a tal período histórico, e que se traduz, por
                                  exemplo, pelos esforços em lidar com os problemas sanitários urbanos, com a criação
                                  de medidas de saúde pública mais tarde consagradas, tais como a quarentena e ainda
                                  pela atuação da Igreja Católica e das organizações comunitárias, na criação dos hospitais
                                  e outras instituições voltadas para o cuidado médico e a assistência social, entre outros.
                                  Assim, mesmo que algumas das bases das práticas de saúde modernas calcadas na
                                  proteção social coletiva já estivessem lançadas desde a Antiguidade e a Idade Média,
                                  as transformações que ocorrem a partir do século XVI é que se tornam cada vez mais
                                  expressivas. Nesse período, as políticas sociais e de saúde que nascem na Inglaterra
                                  passam a ter especial relevância, dado o fato que, neste país, ocorre de forma precoce,
                                  em relação a outras nações, a ascensão da burguesia ao poder e suas decorrências
                                  políticas econômicas e sociais, entre as quais podem ser destacadas: (a) A revolução
                                  tecnológica (Primeira Revolução Industrial); (b) A urbanização acelerada; (c) A formação
                                  gradual de uma nova classe, o proletariado urbano; (d) O advento de legislação de
                                  proteção social, tendo como parâmetro a Lei dos Pobres de 1601; (e) O aparecimento de
                                  um pensamento social em saúde (POLANYI, 1980).
                                  Mudanças políticas posteriores, como aquelas ocorridas na Europa na primeira metade
                                  do século XIX – a Age of Revolution de Hobsbawn (1994) –, acabam por favorecer uma
                                  mudança qualitativa do caráter da ação pública em saúde, transformando as noções de
                                  concessão e repressão, anteriormente vigentes, em noções de direito e justiça social.
                                  Neste particular, os anos transcorridos entre 1840 e 1854 são bastante expressivos com
                                  relação a tais mudanças, configurando o que Krieger e Birn (1998) denominaram de “o
                                  surgimento de um movimento social e de uma profissão”, correspondendo a grandes
                                  mudanças políticas e culturais em todo o mundo ocidental, dentro do conjunto de
                                  fenômenos que se convencionou chamar de “Primavera dos Povos”. Foi assim que a
                                  saúde se transformou em assunto público e o estado de saúde, doença e bem-estar



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da população a ser considerado reflexo da ação política. É construída, assim, a Saúde
                        Pública moderna sob a égide da justiça social, na qual a assistência à saúde voltada para
                        todos os cidadãos passa a fazer parte do cardápio social dos Estados modernos, no qual
                        se inclui o que se chamaria mais tarde de APS.
                        Foi na Inglaterra que ocorreu, ainda, de forma coerente com seu processo de
                        desenvolvimento político, o grande marco da proteção social, a Lei dos Pobres,
                        promulgada pela Rainha Elizabeth I em 1601 e em vigência ao longo dos dois séculos
                        seguintes. Teve como característica principal a atribuição de responsabilidades às
                        freguesias (parishes) pelo cuidado de seus pobres, antecipando, curiosamente, uma
                        tendência contemporânea das políticas sociais que é a descentralização. A proteção,
                        no caso, era marcada por forte ênfase no trabalho, refletindo a máxima protestante de
                        que “mentes vazias são oficinas do demônio”. Com isso, criou-se oferta de mão de obra
                        para as manufaturas nascentes, por meio das instituições de formação e adaptação ao
                        trabalho, as work houses.
                        As primeiras décadas do século XIX marcaram, profundamente, não só os rumos do
                        capitalismo inglês, como a formação das políticas de proteção social, pois se tornou
                        necessário recuperar as precárias condições de vida e saúde da população, como
                        aumento alarmante das tensões e agitações nas ruas. Afinal, a industrialização, que
                        já datava de um século, buscava agora novos e mais amplos mercados e incorporava
                        tecnologias e recursos cada vez mais diferenciados. Nesse aspecto, o ano de 1834
                        representa um marco, pois corresponde ao momento em que a Lei dos Pobres, que
                        vigorara por mais de 200 anos, é revogada, correspondendo à formação definitiva de um
                        verdadeiro mercado de trabalho competitivo na Inglaterra (POLANYI, 1980).
                        A lógica de mercado via-se, assim, tolhida pelas péssimas condições de vida da
                        população. Nesse aspecto, a literatura clássica inglesa, seja em Swift, Dickens, Austen
                        e outros autores do período, fornece descrições de grande impacto, até os dias de hoje.
                        Rosen (1994) expõe tal situação em tintas quase surrealistas, mesmo para a atualidade:
                        as cidades eram extremamente insalubres; as epidemias e as doenças de massa
                        grassavam sem qualquer controle e matavam milhares de pessoas em cada surto; havia
                        um número inacreditavelmente alto de botequins e estabelecimentos congêneres, e o
                        alcoolismo já era um flagelo social; as condições de saneamento básico eram sofríveis
                        (em certos setores de Manchester não havia mais do que uma privada disponível para
                        mais de 100 pessoas!), e assim por diante.
                        Ainda dentro dos marcos das mudanças sanitárias ocorridas na Grã-Bretanha, merece
                        destaque a criação de um tipo de instituição alternativo ao secular hospital, ou seja,
                        o dispensário. Já no século XVII, há notícias desse tipo de serviço público, mas sua
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oficialização começa a se dar no último quartel do século XVIII, quando o médico
                                  londrino Armstrong cria uma unidade para atendimento a crianças pobres em um bairro
                                  popular, seguidas de outras em diversas cidades do país. Os dispensários ofereciam
                                  também cuidados em domicílio, inclusive atendimento obstétrico e, de modo geral,
                                  destinavam suas atividades às parcelas mais pobres da população (ROSEN, 1994).
                                  Cabe aqui breve digressão sobre uma situação peculiar do Reino Unido, qual seja
                                  a prática médica generalista, realizada sob auspícios estatais, cujos profissionais,
                                  conhecidos como GP (General Practitioners) têm presença marcante no sistema
                                  de cuidados à saúde daquele país desde o século XIX. Segundo Brotherston (1971),
                                  a emergência desse tipo de prática se dá no início do século XIX, associada às
                                  mudanças rápidas de natureza comercial e industrial ocorridas na sociedade inglesa
                                  da época. Havia, anteriormente, cerca de três categorias de praticantes de saúde, os
                                  physicians (médicos clínicos), os surgeons (cirurgiões) e os apothecaries (espécie de
                                  farmacêuticos), frutos de um sistema que remontava há cerca de 300 anos, mas cujo
                                  estatuto foi modificado, por meio de unificação, ao longo das primeiras décadas do
                                  século XIX, mediante intervenção estatal, em processo extremamente conflituoso,
                                  tanto na sociedade como nas corporações.
                                  A unificação da profissão médica no Reino Unido ocorreu finalmente por meio de
                                  um Medical Ac entre 1830 e 1858, período em que também se registram grandes
                                  transformações na formação médica. Faz parte do cenário da época, também, a
                                  proposta de se criar uma lower order of practitioner, para atendimento às populações
                                  rurais pobres, prontamente rebatida pela British Medical Association, por razões que
                                  ainda hoje soariam corretas, por denunciarem uma medicina pobre para pobres. Nos
                                  últimos anos do século XIX, ocorreram restrições à prática dos GP, correspondendo
                                  ao que o mesmo Brotherston (1971) denomina de the rise and the fall of the GP, devido
                                  à tendência ao crescimento das especialidades médicas cirúrgicas e dependentes de
                                  tecnologia, efeito que persistiu mesmo pelo século XX afora e que só foi posto sob
                                  controle com o advento do NHS, a partir de 1948. Uma frase de Bernard Shaw, citada
                                  pelo mesmo autor, reflete bem algumas das contradições a que estavam submetidos
                                  os GP ao final do século XIX: To make matters worse doctors are hideously poor... Better
                                  be a railway porter than an ordinary English GP.
                                  É na Inglaterra, também, onde surgem mudanças importantes na forma de organização
                                  dos sistemas de saúde, com ênfase nos cuidados básicos, ainda nos primórdios do século
                                  XX. Isso provoca influências em todo o mundo ocidental, configuradas, por exemplo,
                                  na concepção de assistência à saúde dos welfare states. Assim, aproximadamente em
                                  1920, um white paper, subscrito por Lord Dawson of Penn, uma autoridade médica



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do sistema público da época, propunha a diferenciação dos serviços de saúde em três níveis de atenção, primário,
                        secundário e de hospitais docentes, o que veio a fornecer as bases para todos os sistemas contemporâneos de
                        Atenção Primária à Saúde, regionalizados e hierarquizados. Da mesma forma, foi por meio dessa diferenciação de
                        níveis que ganharam substâncias as propostas de Atenção Primária à Saúde que se implantaram em muitos países
                        do mundo, na segunda metade do século (STARFIELD, 2001).
                        Um breve percurso relativo ao processo de formação das políticas de saúde convergentes para a Atenção Primária
                        à Saúde em outros países europeus é mostrado no quadro seguinte:
                        Quadro 2 - Formação histórica da atenção primária à saúde

                         FRANÇA
                         Berço do iluminismo, do racionalismo e do reconhecimento dos direitos do homem; liderança europeia das ações públicas na área social
                         e na saúde já nas primeiras décadas do século XIX; 1790: Comité de Salubrité responsável por educação médica, saneamento das cidades,
                         medicina forense, saúde animal e controle das epidemias, além de higiene do comércio de alimentos, banheiros públicos, presídios,
                         atendimento a emergências, ambientes de trabalho, as estatísticas de morbimortalidade; médicos com funções de autoridade sanitária
                         em cada departamento, com atribuições de cuidar dos indigentes, proteger a saúde das crianças, promover inoculações contra a varíola,
                         notificar as epidemias, produzir relatórios sobre a situação de saúde local; ideia consensual de que ao Estado competia proteger a saúde
                         dos cidadãos e de que a doença estava relacionada à indigência; além das influências ideológicas iluministas da Revolução Francesa,
                         a proteção social era inspirada também na caridade cristã, desde o século XVII, com o trabalho social desenvolvido por São Vicente de
                         Paula, fundador da SSVP, instituição ainda hoje responsável por dispensários, asilos, creches e outras formas de abrigos para inválidos
                         e deserdados, erigidos sob o princípio da dignidade e do direito à vida; Revolução Francesa: substitui a noção cristã de caridade por uma
                         noção laica de justiça; século XIX, a assistência à saúde, predominantemente hospitalar, incorpora o princípio da assistance à domicile,
                         dentro do qual se inserem a livre escolha do médico por parte dos pacientes, o reembolso de despesas, a garantia de atendimento
                         especializado e hospitalar.
                         ALEMANHA
                         País tardiamente integrado ao conjunto dos estados-nações europeus graças ao Chanceler Bismarck (cerca de 1870); pensamento social
                         em saúde intervencionista e autoritário desde o século XVI, coerente com o absolutismo e o mercantilismo; conceito alemão de polícia
                         médica (Medizinalpolizei); preocupação alemã com a saúde é anterior à inglesa e francesa, só não tendo se concretizado como política
                         nacional efetiva por causa da tardia unificação alemã; 1665, Seckendorff define as finalidades da ação governamental em saúde: bem-estar
                         e a proteção da saúde, crescimento da população, supervisão do trabalho das parteiras, amparo aos órfãos, designação de autoridades
                         sanitárias, inspeção de alimentos, prevenção de hábitos nocivos, saneamento básico e assistência à pobreza; Leibnitz, cientista, filósofo
                         e político do século XVII: responsabilização dos governos pela saúde da população, com ênfase à investigação quantitativa dos fenômenos
                         de saúde e de doença; Frank, final do século XVII: monumental obra sobre a Medizinalpolizei – médico, educador e administrador e um
                         erudito pensador, defendia a tese de que a saúde do povo é uma responsabilidade do Estado, com ideias humanistas e iluministas, uma
                         minuciosa descrição de um sistema de proteção à saúde, tanto no campo público como no privado, além de temas tais como a prevenção
                         de acidentes, as estatísticas vitais, a medicina militar, a administração hospitalar, as doenças venéreas, epidêmicas e transmissíveis;
                         século XIX: Virchow, Neumann e Leubuscher: inclusão de novas questões, como a saúde do trabalhador industrial, o licenciamento
                         médico, as medidas de proteção específica contra as doenças transmissíveis, recém-preconizadas pela Revolução Científica; influências
                         da polícia médica alemã se estendem ao longo do século XX com a criação dos sistemas de previdência social modernos.
                                                                                                                                                         continua
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                           ESTADOS UNIDOS

                           Ideias sanitaristas de proteção coletiva e intervenção urbana, ao feitio inglês e francês, já haviam sido empregadas em Nova Iorque
                           desde o ano de 1795, por ocasião de uma epidemia de febre amarela; século XIX, primórdios de uma organização sanitária, inicialmente
                           incorporada ao aparato policial; Nova Iorque, cidade sujeita a frequentes epidemias, foi pioneira, criando, a partir da primeira década do
                           século, uma administração permanente para a saúde; figura da autoridade sanitária (inspetor sanitário da cidade), com mandato estatal,
                           com funções que incluíam a administração da saúde, o saneamento ambiental, o controle das epidemias e outras doenças e a estatística
                           vital; condições de saúde tão ou mais precárias do que as da Europa (urbanização descontrolada, imigrações); práticas de saúde pública
                           traduzidas por frequentes e extensivos inquéritos; problemática urbana, fator dominante; cerca de 1845: movimento por uma reforma
                           sanitária nacional, com ênfase nas responsabilidades locais; participação social: inúmeras e influentes entidades civis voluntárias de
                           luta pela saúde; administração nacional de saúde (National Health Department) criada por volta de 1879.

                         Fontes: (THÉVENET, 1973; SINGER, 1979; ROSEN, 1994)



                         Assim, ao longo do século XX, dá-se a construção dos sistemas clássicos de bem-estar social, em sua feição
                         europeia contemporânea, como é o caso da Inglaterra, dos países nórdicos, bem como de outras nações se deu no
                         pós-guerra e em toda a década de 50 e 60. Nesses sistemas, a Atenção Primária à Saúde ganha maior relevância, ao
                         ponto de se transformar em verdadeiro marco de alguns deles. São países nos quais o welfare-­state, associado na
                         origem aos nomes de Keynes e Beveridge, encontra-se mais bem desenvolvido, tendo como característica principal
                         a proteção governamental compulsória, seja em termos de renda, de alimentação, de saúde, de educação e também
                         de habitação, assegurada a cada cidadão, não mais como caridade ou concessão do Estado, mas como um direito.
                         Em resumo, a origem histórica de tais sistemas de proteção coincide com a formação dos Estados nacionais e os
                         processos de industrialização e urbanização, na medida em que as nações começam a se distanciar do liberalismo,
                         em direção a um modo mais social de gestão dos negócios estatais, que promovem o que Viana (1997) denomina
                         de um “tipo particular de arranjo entre o Estado, o mercado e a sociedade”, simbolizando dessa forma um “duplo
                         compromisso”: entre o Estado e o mercado e entre a democracia e o capitalismo.


                         2. A APS e a crise no setor saúde
                         Se o século XX teve sua trajetória marcada pelas mudanças e, ainda mais, pela sua rapidez e pela sua universalidade,
                         as políticas sociais, sem dúvida, foram caudatárias diretas dessas características. Como aponta Hobsbawn (1994),
                         sucedem-se anos do otimismo, nos quais teria havido uma verdadeira revolução social, entre o final da década de
                         40 e os anos 90. Em tal período a urbanização foi progressiva e também houve redução numérica acentuada do
                         campesinato na maioria dos países, com necessidade cada vez maior do acesso à educação mais sofisticada e mais
                         tecnológica em toda parte, acompanhada também do declínio numérico e de perda de prestígio e poder política da
                         classe operária industrial – o proletariado histórico. Um novo ator social aparece então: as mulheres, cada vez mais
                         escolarizadas e inseridas no mercado de trabalho, inclusive quanto aos seus segmentos anteriormente excluídos
                         de mães e esposas. Esses fatos, certamente, compõem um pano de fundo abrangente para as transformações da



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política social ocorridas ao longo do século e, particularmente, em sua segunda metade,
                        e influenciaram, sem dúvida, o advento de políticas de APS em todo o mundo.
                        Como resultado dos já referidos arranjos entre Estado, mercado e sociedade, típicos
                        do período histórico de diferenciação, crise e expansão do capitalismo, originam-se
                        padrões distintos de intervenções do Estado sobre a vida social, organizadas em torno
                        de dois eixos, o primeiro, universal/seguridade, típico da Escandinávia e do Reino Unido,
                        e o segundo, ocupacional/seguro, vigente nos EUA, Japão e alguns países da Europa
                        ocidental (VIANA, 1997). Na primeira modalidade, naturalmente, as propostas de APS
                        ganharam mais força.
                        Em relação aos sistemas da saúde, já no final do século XIX, detecta-se, na Europa
                        principalmente, uma “primeira onda” de reformas, caracterizada por financiamento
                        subsidiado estatal e programas específicos para os mais pobres e trabalhadores de
                        baixa renda, tendo como paradigma o caso inglês (sanitarismo), com desdobramentos
                        inclusive no século XX. Uma segunda onda seria aquela advinda da crise do pós-
                        guerra, cujo exemplo típico é a formação do National Health System britânico, com
                        extensão da atenção e inclusão do acesso aos cuidados de saúde entre os direitos
                        de cidadania, com marcante influência na formação dos sistemas contemporâneos
                        fundamentados na APS.
                        Ocorreu, todavia, um terceiro momento de reformas na saúde, este mais complexo,
                        iniciando ainda nos anos 60, com a expansão pura e simples da assistência, seguido, em
                        anos mais recentes, de uma crise desse modelo e a necessidade de formulação de uma
                        agenda pós-welfare (ALMEIDA, 1996), o que veio a colocar em risco e sob forte crítica os
                        sistemas de proteção social.
                        O caso da saúde tem, entretanto, particularidades importantes, quando analisado do
                        ponto de vista das reformas e crises. A estruturação de sistemas nacionais de saúde
                        pode fazê-los voltados para Atenção Primária à Saúde ou, com a distinta orientação
                        para o mercado e as práticas especializadas e tecnológicas. Na verdade, a “primeira
                        onda” de reformas corresponde ao período em que as opções se diversificaram,
                        particularmente no contexto europeu, em que os avanços sociais obtiveram maior
                        primazia quando comparados mesmo aos países avançados da América do Norte ou do
                        Oriente. O problema é que, além das alternativas clássicas baseadas no financiamento
                        por fundos públicos fiscais, com garantia de acesso, gratuidade e integralidade ou então
                        naquelas baseadas em seguro e pagamento compartilhado, com acesso condicionado
                        pela condição de emprego e mérito, um terceiro modelo, dito de mercado, se impõe,
                        tendo como características principais a organização a partir das capacidades de compra
                        e consumo de seus usuários (cidadãos-consumidores) ou das empresas às quais estes
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estão vinculados, sendo este é o padrão que vigora nos EUA e no Japão, por exemplo, que
                        constituem justamente países em que a APS como política pública é menos expressiva.
                        A crise dos sistemas de bem-estar social, traduzida pela intromissão da alternativa
                        de mercado, afetaria assim diretamente a dinâmica da APS. Uma abordagem de fundo
                        político – e não apenas de viés econômico ou tecnológico – certamente torna-se relevante
                        para a compreensão de algumas contradições que afetam o modelo de APS, como aquele
                        adotado no Brasil, por exemplo, construído com fortes embates entre as tendências
                        economicistas, racionalizadoras e regulatórias, de um lado, versus as arenas onde se
                        defrontam atores sociais diversos, em permanente disputa por assistência, recursos,
                        poder e direitos.
                        São várias as possibilidades de interpretação quanto às implicações da reforma dos
                        sistemas de proteção social não só em relação à APS, como também com foco em outros
                        avanços obtidos ao longo das décadas em que tais sistemas foram construídos. A seguir
                        são apresentadas as posições de dois autores de nacionalidades, filiação institucional e
                        (provável) inserção ideológica diferentes, que, sem dúvida, abrem caminhos para novos
                        padrões de análise da questão em pauta: Berlinguer e Saltman.
                        Berlinguer (1999), legítimo representante da esquerda europeia, acredita que o
                        impulso humanitário ainda é uma força poderosa, o que não impede que se considere a
                        presença no cenário de outras forças, igualmente poderosas, mas não necessariamente
                        antagônicas à primeira, representando a convergência entre o self-­interest e o
                        altruísmo. Da mesma forma, visões mais utilitaristas, ou mais contratualistas, podem
                        mostrar-se capazes de inclinar-se diante de tal convergência. Na verdade, aponta o
                        autor, a saúde não se constitui apenas num bem individual, mas sim em algo indivisível,
                        o que é corroborado pelo fato de que as pessoas mais saudáveis são aquelas que vivem
                        em ambientes mais equitativos e plenos de coesão social. A saúde não seria, apenas,
                        o resultado de um jogo de soma zero, ou um bem que apenas necessitaria de ser mais
                        bem distribuído – a equidade na saúde, lembra o autor, equivaleria a um importante
                        fator multiplicador.
                        Ainda segundo esse autor, a questão da saúde não se reduziria a seus termos científicos
                        de mensuração, pois ela não pode ser alcançada plenamente a não ser por meio de
                        progresso cultural e moral. Nesse aspecto, as décadas recentes mostraram forte
                        progresso do pensamento bioético, em termos universais, com consequências palpáveis
                        na vida das pessoas, seja em termos individuais ou coletivos, por exemplo, na promoção
                        de discussões sobre a comercialização de órgãos humanos e também na “racionalização”
                        do cuidado à saúde.
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O outro autor aqui considerado, Saltman (1997), representaria um pensamento liberal
                                  (no sentido que se dá a esse termo nos EUA), de feição anglo-saxônica. Para ele, a
                                  questão das reformas em saúde é um tema a ser conduzido diante de determinados
                                  balizamentos, por exemplo, buscando um equilíbrio entre damage to existing levels
                                  of equity, de um lado, e as mudanças na organização do provimento de cuidados e do
                                  próprio papel do Estado, de outro. Almeja-se, assim, o que o autor chama de effectively
                                  redressed all or cost off the current inequities, defendendo ainda que são as questões
                                  intersetoriais, como o financiamento, e não exatamente as questões internas do
                                  setor saúde, que definem de fato a iniquidade que se verifica nos sistemas atuais de
                                  prestação de cuidados. Sendo assim, adverte esse autor, os esforços de solução da
                                  crise devem ser focalizados em outro lugar (the central effort must be placed elsewhere).
                                  Isso não autorizaria, por certo, uma troca de prioridades na ação, com o abandono da
                                  luta intrassetorial de melhoria do sistema de cuidados e nem mesmo a abstenção da
                                  responsabilidade pública na questão. Da mesma forma, a busca da equidade não pode
                                  estar separada da eficiência e da efetividade dos sistemas de saúde. Aliás, adverte
                                  o referido autor, os cidadãos em geral e, particularmente os pacientes, sabem que
                                  programas intersetoriais, isoladamente, não substituem os serviços de saúde em
                                  sua ação típica. Em termos práticos, reformas setoriais que têm seu processo de
                                  condução demasiadamente agressivo, ao requererem mudanças substantivas nos
                                  comportamentos lucrativos e ao afetar interesses poderosos, resultam frequentemente
                                  em fracassos retumbantes.
                                  Conclui o autor que uma política de saúde apropriada deve levar em conta tanto os
                                  aspectos externos ao setor saúde como os internos e, de forma simultânea e não menos
                                  vigorosa, transformando-se em instrumentos mutuamente complementares, mais do
                                  que meras estratégias de aprimorar a equidade, tout court.
                                  Assim se vê que ambos os autores convidam a pensar para além dos paradigmas de
                                  mercado, deixando de lado alguns preconceitos, inclusive ideológicos, ao levantar
                                  questões tais como o fundamento ético e moral das reformas, a multiplicidade das
                                  questões que acarretam a saúde e a doença na sociedade humana, a responsabilidade
                                  dos dirigentes, dos cientistas e dos técnicos, a questão da equidade, as escolhas
                                  sempre imperativas, e assim por diante. Berlinguer coloca ingredientes filosóficos,
                                  bem como fundamentos éticos e morais na discussão. Saltman lembra que as
                                  reformas são realmente necessárias, e até indispensáveis, para a sobrevivência do
                                  que se construiu ao século XX como bem-estar social. Ambos, porém, alertam que é
                                  preciso estar atentos não estritamente ao equilíbrio econômico dos sistemas, mas a
                                  questões igualmente tangíveis, e de repercussão não menos deletéria, como é o caso
                                  da ética e da equidade.


                                                                                                                                           71

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Enfim, permanecem questionamentos a respeito daquelas polaridades das políticas de
                        saúde, bem expressas no caso dos programas voltados para a APS? Como, afinal, se
                        resolveria o embate entre o caráter racionalizador e focal nos moldes preconizados pelos
                        organismos internacionais financiadores de programas sociais no terceiro mundo e uma
                        política social pautada pelos princípios de equidade, integralidade e universalidade? E
                        ainda: tal política se veria sustentada por marcos ideológicos e conceituais gerados em
                        contextos estranhos à realidade brasileira, ou representaria um processo legítimo de
                        construção social de forma adequada ao momento político da sociedade brasileira?
                        É fato notório, todavia, que a APS não soçobrou nas crises da saúde, embora se veja
                        ameaçada aqui e ali. Na verdade, ela tem sido até incorporada, mediante alguns de seus
                        componentes, em algumas propostas de sistemas de atenção que primam pela orientação
                        ao mercado, como aquele vigente nos EUA. Com efeito, novas modalidades de managed care
                        têm se apoiado em princípios e práticas sintonizadas com a hierarquização dos cuidados,
                        integração entre prevenção, assistência e cura; introdução de conteúdos de promoção
                        da saúde; atenção continuada e integral como base organizacional; atuação de médicos
                        generalistas integrados a outros profissionais de saúde como uma equipe; colaboração
                        intersetorial, autorresponsabilização, entre outras características que originalmente
                        pertenciam à APS. Além disso, relatam-se evidências que os sistemas de saúde centrados
                        na APS vêm se tornando mais numerosos no mundo (STARFIELD, 2001).


                        3. A APS no Brasil e os organismos internacionais
                        Os organismos internacionais de fomento financeiro e cooperação técnica têm sido também
                        atores influentes na formulação das políticas próprias dos países assistidos, entre elas as
                        relativas à APS. Que essas influências obedecem, ou tendem a obedecer, a prescrições
                        voltadas para os interesses hegemônicos e estratégicos dos países centrais pode ser
                        apenas uma consequência da lógica maximizadora que organiza o mundo capitalista
                        contemporâneo. Independentemente disso, porém, é preciso qualificar e determinar
                        qual a natureza dessa influência e sua dinâmica no que diz respeito às políticas internas
                        dos países assistidos. Considerar-se-á, aqui, a atuação do sistema OPAS/OMS, deixando
                        claro, entretanto, que ele, pelo menos no contexto da última década, vem perdendo
                        substancialmente sua importância e influência na formulação das políticas dos países
                        membros, em favor do Banco Mundial e de outros organismos de fomento financeiro, mais
                        recentemente autoassumidos como “bancos de ideias”, além de bancos de recursos.
                        Caberiam também algumas palavras sobre o processo de difusão das propostas externas
                        aos países dependentes. Segundo Testa (1992), ao analisar justamente o conceito de
                        Atenção Primária à Saúde, nos moldes preconizados pelos organismos internacionais,
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propostas como estas costumam ser geradas em contextos radicalmente diferentes
                                  daqueles aos quais se destina sua aplicação. Com efeito, nas realidades de origem
                                  dos programas, o que se tem é uma relativa abundância de recursos, com organização
                                  definida dos sistemas de saúde, além de certa “disciplina social”. No lado oposto, o
                                  dos receptores, o que prevalece é um tripé caracterizado pela escassez de recursos,
                                  “indisciplina social” e uma “incoerência entre as formas organizativas e os propósitos
                                  que se pretende alcançar”, além de um quadro de ineficiência e ineficácia, articulado
                                  com a multiplicidade institucional. Destarte, tal situação de desigualdade entre os
                                  países acaba por resultar na acentuação da dependência mediante o que poderia se
                                  transformar em “cópia ineficaz” daquilo que é funcional em outras realidades.
                                  Assim, segundo o mesmo autor, uma ressignificação das propostas geradas externamente
                                  deve ser promovida, quanto ao que o autor citado acima não é otimista, partindo-se
                                  de uma reconceituação totalizante das propostas importadas, de forma a apreender
                                  categorias autóctones, tais como contexto político, participação e ideologia dos grupos
                                  sociais, tecnologia disponível no setor, além das relações que tais elementos possuem
                                  com a sociedade global e seus conflitos. Nesse aspecto, o esforço despendido no Brasil
                                  com a formulação e a implantação do PSF parece ter sido especialmente bem sucedido,
                                  na medida em que o programa guarda coerência intensiva com a realidade nacional.
                                  A atuação dos organismos internacionais do sistema das Nações Unidas, particularmente
                                  da OPAS, que tem grande influência em países como o Brasil, longe, entretanto, de se
                                  constituir em fonte exclusiva de expertise e cooperação técnica, teria como elementos
                                  conceituais: (a) A “compreensão do contexto”, incluindo aspectos econômicos, força dos
                                  grupos de pressão, estilo de vida e fatores do “entorno”; (b) Uma nova maneira de pensar
                                  a saúde, não como medição de resultados, mas como processo e recurso, de forma
                                  dinâmica e envolvendo a sociedade e os indivíduos; (c) A recolocação de problemas e
                                  prioridades, mediante o reconhecimento da complexidade das circunstâncias que
                                  envolvem a saúde e a doença e o aprofundamento da visão social; (d) A integração de
                                  novos atores sociais, de forma a incluir a população no processo decisório; (e) Integração
                                  do pensamento político, os “laços com a ação política” (KICKBUSH, 1996).
                                  Algumas das tônicas das propostas dos organismos do sistema OPAS/OMS têm sido,
                                  nas últimas duas décadas, a Extensão de Cobertura, a Atenção Primária à Saúde, a
                                  Saúde para Todos, as quais têm contribuído para o aparecimento de propostas políticas
                                  de reformas dos sistemas de saúde, capitaneadas por esses organismos. Entre tais
                                  propostas, merecem ser consideradas: (a) Os Sistemas Locais de Saúde (SILOS); (b) A
                                  estratégia de Promoção da Saúde e; (c) O enfoque na pobreza, apresentadas de forma
                                  sintética no quadro seguinte.



                                                                                                                                            73

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Quadro 3 - Propostas internacionais convergentes com a APS

                         SILOS – SISTEMAS LOCAIS DE SAÚDE
                         - Proposta decorrente de demandas oriundas dos países membros, formuladas durante a década de
                         80, a partir de um consenso em torno de se promover mudanças nos sistemas e serviços de saúde da
                         região, para torná-los mais capacitados ao atendimento das necessidades da população, especialmente
                         dos grupos sociais considerados mais vulneráveis e desprotegidos. “Uma estratégia social adotada
                         pelos países para prosseguir nos esforços de alcançar a equidade social necessária aos processos de
                         democratização e desenvolvimento”.

                         - Articulação com palavras de ordem gerais da organização: fomento da APS e o alcance da meta de
                         “saúde para todos no ano 2000”.

                         - Respostas às necessidades e às demandas dos diferentes grupos sociais, em função dos riscos a que
                         estejam submetidos.

                         - Bases: participação social e desenvolvimento das “comunidades saudáveis”.

                         - Coerência de tais sistemas com as características políticas, administrativas, socioeconômicas e
                         culturais da realidade onde se inserem, além da integração e articulação com os diversos níveis políticos
                         e organizativos (OPAS, 1993).
                         PROMOÇÃO DA SAÚDE
                         - Deriva das formulações de Lalonde, Ministro da Saúde do Canadá no início dos anos 70 e condutor
                         político da reforma do sistema de saúde desse país.

                         - Fundamenta-se nos fatores responsáveis pela saúde das pessoas e das populações (campo da saúde):
                         (a) A biologia humana; (b) O meio externo; (c) O estilo de vida e; (d) A organização da atenção à saúde.

                         - A partir desse conceito, são estabelecidos os objetivos da promoção da saúde, igualmente distantes
                         do preventivismo e do enfoque curativo também restrito; verdadeiro “mapa do território da saúde”, um
                         potente instrumento de análise da saúde e das condições de vida capaz de abarcar a totalidade dos
                         fatores determinantes, em uma visão unificadora do processo saúde-doença, por meio da facilitação da
                         mediatização entre os problemas e as causas, além do esmiuçamento de cada componente.

                         - Papel menos relevante exercido pelo fator organização da atenção em relação aos demais componentes.

                         - Documento básico: Carta de Ottawa, resultado de uma reunião internacional sobre o tema realizada
                         no ano de 1986. É uma “carta de princípios” que tem como enfoques centrais os aspectos conceituais e
                         operacionais da promoção da saúde, bem como a ênfase na participação ativa no processo de promoção
                         da saúde, propondo as estratégias das “políticas públicas saudáveis” e dos “ambientes favoráveis à
                         saúde” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 199_).
                                                                                                                     continua
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continuação

                                   ENFOQUE NA POBREZA
                                   - Não é uma política explicitamente preconizada pelo sistema OPAS/OMS, mas uma preocupação que
                                   permeia seus documentos, acentuada em anos mais recentes.

                                   - Especial destaque no momento presente, em que outros organismos internacionais, como o Banco
                                   Mundial, parecem estar assumindo progressiva e alternativamente o papel de formulador de propostas
                                   de saúde para os países periféricos.

                                   - Pobreza caracterizada como: habitação em área geográficas mais ou menos definidas, existência
                                   peculiar de segmentos vulneráveis, geralmente nos grupos maternos e infantis, necessidade de ênfase
                                   preventiva na abordagem de seus problemas e, finalmente, atuação do sistema de saúde por meio de
                                   focalização de cuidados.

                                   - Combate à pobreza pressupõe não só a implementação de medidas de natureza econômica (geração
                                   de renda e emprego, por exemplo), como também provisão adequada de serviços assistenciais sociais
                                   básicos à população mais pobre, como os de saúde – matriz fundamental das recomendações sob o
                                   título genérico de “políticas contra a pobreza”, aí incluindo a Atenção Primária à Saúde, o saneamento
                                   básico, o planejamento familiar, os programas nutricionais, a educação para a saúde e a melhoria das
                                   condições de habitação (MESA LARGO, 1992).
                                  Fonte: Autoria própria




                                  4. O caso brasileiro: ideologia e ação política
                                  Como se verá a seguir, a história das propostas de APS no Brasil remonta há 80 anos,
                                  porém é na década de 60 que se situam alguns dos eventos-chave para o entendimento
                                  da formação das ideias que acabaram desembocando no caudal que deu origem ao
                                  Programa de Saúde da Família no Brasil.
                                  Paim (1997) resgata um pouco da história de tais ideias, a partir dos movimentos do
                                  preventivismo e da saúde comunitária e também de uma produção teórica e crítica
                                  da saúde coletiva no Brasil, chamando a atenção para uma “luta contra-hegemônica”
                                  que envolveu a construção de novos modelos de atenção à saúde. Assim, mediante
                                  seus componentes de saber, ideologia e ação política, teria ocorrido o deslocamento
                                  de uma ênfase centrada meramente nos serviços para as condições de saúde e
                                  seus determinantes, com práticas de saúde imbuídas de caráter social e dimensões
                                  simultaneamente técnicas, políticas e ideológicas.
                                  Esse mesmo autor percorre a trajetória de alguns dos paradigmas de saúde-doença,
                                  entre eles o PSF, destacando que uns foram elaborados em contextos externos ao País,
                                  sendo apenas atualizados no Brasil. É assim que certo movimento ideológico passaria


                                                                                                                                                         75

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a possuir um caráter de ação política, conduzida por atores dos serviços de saúde, da
                        academia e da sociedade como um todo.
                        Um dos paradigmas que fazem parte de tal percurso é o da Medicina Comunitária, com
                        raízes vinculadas tanto à crise do capitalismo como ao impacto dos resultados dos
                        welfare states na Europa ou ainda à formação do National Health System no Reino Unido.
                        Essa vertente estaria também associada à política externa norte-americana dos anos
                        60, voltada para os países pobres da América Latina, também conhecida como Aliança
                        para o Progresso, que difundiu nos países-alvo sua proposta de saúde, com o apoio
                        das agências internacionais. É dessa forma que surgem programas experimentais,
                        geralmente abrigados em universidades, em diversos países, inclusive no Brasil, que
                        propõem modelos de assistência com extensão de cuidados à saúde às populações
                        pobres.
                        A medicina comunitária viria a ter seu substrato teórico, político e ideológico consagrado
                        e expandido na Conferência Internacional de Alma Ata, em 1978 (WHO, 1978), a partir
                        da qual ela praticamente se confunde com a grande palavra de ordem gerada no
                        evento: Atenção Primária à Saúde (APS). Suas propostas se organizam em torno de
                        alguns elementos estruturais, os quais, segundo Silva Jr. (1998), são: (a) Coletivismo
                        (embora criticado como “restrito”); (b) Integração da promoção, prevenção e cura; (c)
                        Desconcentração de recursos; (d) Adequação das tecnologias; (e) Aceitação e inclusão
                        de práticas não oficiais; (f) Novas práticas interdisciplinares e multiprofissionais e;
                        finalmente, (g) Participação da comunidade.
                        Tais diretrizes sempre estiveram no foco de intensas polêmicas não só no Brasil como
                        em toda a América Latina, com denúncias dirigidas contra as possibilidades de controle
                        sobre a sociedade, imposição de mecanismos de participação social, favorecimento
                        da acumulação de capital aos produtores, manutenção e aprofundamento das
                        desigualdades de acesso, entre outras. Curioso constatar, entretanto, que, em outro
                        momento, particularmente na década de 90, essa crítica se atenua bastante e energias
                        intelectuais vão se concentrar em encontrar soluções, não mais apenas em demolir as
                        propostas colocadas em campo, vistas como eram sob uma ótica fortemente ideológica
                        e até certo ponto “conspiratória” – a ação política de que fala Paim.
                        Tal superação crítica é comentada por Paim (1997), que aponta certo “renascimento” da
                        Medicina Social nas décadas de 70 e 80, como um paradigma alternativo ancorado nas
                        concepções fundamentais relativas à determinação social do processo saúde-doença,
                        bem como na dinâmica do processo de trabalho em saúde e, dessa forma, passaria a
                        orientar as propostas democratizadoras e de reforma do sistema vigentes na década de
                        80, aliás, incorporadas na Constituição Brasileira de 1988.
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Do ponto de vista do histórico da APS, adquire especial importância uma publicação
                                  da Organização Mundial da Saúde, resultante de uma reunião de um “comitê de
                                  experts”, intitulada Training of the physician for family practice (WHO, 1963), na qual
                                  aparecem o escopo e os objetivos da Medicina de Família, referidos como acesso
                                  direto da clientela; continuidade da atenção; cuidado ao grupo familiar; ênfase na
                                  prevenção e promoção da saúde; responsabilização profissional; além de provimento
                                  de capacitação e atividades de pesquisa. Entre outros desdobramentos, a partir de
                                  1966, tal movimento se dissemina nos Estados Unidos, favorecido pela poderosa
                                  American Medical Association (AMA), e até mesmo sua incorporação oficial, como uma
                                  política nacional para a formação profissional, também alcançando outros países,
                                  particularmente Canadá e México, já na década de 70. Paim (1986) aponta o fundamento
                                  ideológico de tal movimento, com um conjunto de práticas que busca substituir a
                                  formação especializada e técnica dos médicos pela atenção integrada e completa.
                                  Registram-se, a partir daí, vertentes de interpretação mais “saudosistas”, de resgate
                                  histórico de antigas práticas sepultadas pela tecnificação e pela mercantilização, em
                                  contraposição a concepções “racionalizadoras”, preocupadas com a redução de custos
                                  e a contenção de tecnologias.
                                  No caso brasileiro, os desdobramentos ideológicos conflituosos se acentuam a partir
                                  da década de 70, com os fortes embates existentes entre a Medicina Geral Comunitária
                                  (MGC), inspirada no modelo americano de Medicina de Família, com valorização dos
                                  conteúdos clínicos na formação versus a Medicina Social e suas congêneres, com
                                  pressupostos metodológicos inspirados na utilização das ciências sociais em saúde
                                  e voltados para uma ação racionalizadora na organização dos cuidados de saúde. A
                                  própria expressão médico de Família, característica da primeira vertente, experimentou
                                  percalços significativos em sua trajetória, sendo frequentemente rejeitada ou substituída
                                  por outras como “clínico-geral”, “médico-geral” ou simplesmente “médico”.
                                  Aqui cabe a pergunta: que fatores influenciaram as transformações ocorridas
                                  nesses conceitos e práticas, permitindo, entre outras coisas, a passagem de um
                                  movimento ideológico a uma ação política, conforme a expressão de Paim? Com efeito,
                                  a redemocratização do País abriu possibilidades para a ação política, à luz do dia,
                                  exercida mediante parcerias institucionais ampliadas, envolvendo novos e diferentes
                                  atores sociais. De maneira diferente das décadas anteriores, quem agora estava com
                                  a palavra e a vez não eram apenas as academias, nem os organismos internacionais,
                                  nem mesmo os órgãos centrais de governo. Havia simplesmente novos atores no jogo,
                                  os quais passaram também a formular e colocar em prática novas propostas no cenário
                                  – os municípios – como de resto o fizeram em relação a todo um conjunto de políticas
                                  públicas a partir dos anos 90 (MENDES, 1991; ESCOREL, 1987; GOULART, 1996).


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As transformações citadas tiveram o condão de retirar as propostas de mudança na saúde
                                  de um limbo de forte polarização ideológica e fraca operacionalização concreta, para um
                                  estatuto diferenciado, de programas oficiais, respaldados não só normativamente, mas
                                  também tecnicamente, pelos próprios serviços de saúde, pelas universidades e centros
                                  de pesquisa e, ainda, socialmente, por parte de segmentos organizados de usuários. A
                                  implantação das reformas do sistema de saúde no Brasil, na década de 80, preliminarmente
                                  com as AIS e os Suds e depois com o SUS, com a consequente municipalização das
                                  responsabilidades, por certo representou um estímulo fundamental para que os fenômenos
                                  de oficialização e ampliação de tais programas acontecessem. Nesse quadro, certamente
                                  se inserem outros determinantes, como: o incremento de intercâmbio de modelos com
                                  outros países; o desenvolvimento da capacidade formuladora dos organismos gestores;
                                  a qualificação da participação social; a ruptura com o caráter meramente demonstrativo
                                  e experimental das experiências realizadas nas décadas anteriores, além de outros.
                                  Independentemente das causas, o certo é que, na década de 90, políticas de governo como
                                  a de Saúde da Família reingressam com novo ímpeto e vigor no cenário da saúde, com
                                  evidente capacidade de permanência e enraizamento.


                                  5. Uma pré-história que também é história
                                  Voltando às primeiras décadas do século XX, é aí que estabelece, pela primeira vez
                                  na história brasileira, uma política de saúde pública que fizesse jus a tal nome. O que
                                  havia, até então, era apenas a proteção a grupos populacionais restritos, por meio das
                                  chamadas Caixas de Pecúlio, da medicina para os militares e alguns outros funcionários
                                  governamentais, além daquela de origem religiosa ou filantrópica, destinada ao conjunto
                                  da população. A situação sanitária do País não podia ser pior: somente a epidemia da
                                  chamada gripe espanhola, em 1918, provocou milhares de mortes pelo País afora e havia
                                  também muitas outras ameaças permanentes, por exemplo, de varíola, febre amarela,
                                  malária, peste, tuberculose e de outras moléstias, mesmo em áreas urbanas, inclusive
                                  na capital do País. Nessa época é que surgem e se destacam figuras exponenciais da
                                  saúde pública brasileira nascente: Oswaldo Cruz, Emílio Ribas, Carlos Chagas. Do lado
                                  da população muita resistência e mesmo revolta com as medidas públicas saneadoras
                                  do governo federal, de cunho quase sempre autoritário e unilateral, com frequentes
                                  repercussões na imprensa da época, de maneira geral de oposição a elas, principalmente
                                  na capital da República (SINGER, CAMPOS, OLIVEIRA, 1979).
                                  Surge, nesse contexto, um novo ator internacional, a Fundação Rockfeller, ligada,
                                  como seu nome indica, aos interesses comerciais americanos, que já vislumbravam
                                  no Brasil um mercado promissor. A entidade teve atuação destacada no País desde



                                                                                                                                          79

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1909, com ações voltadas inicialmente para doenças específicas, como a febre amarela
                        e a ancilostomíase, deixando outras, curiosamente, como uma espécie de “reserva de
                        mercado” do Poder Público, por meio do antigo Departamento Nacional de Saúde Pública
                        (DNSP) – antecessor remoto do atual Ministério da Saúde (COSTA,1985)
                        A atuação da Fundação Rockfeller foi objeto, naturalmente, de forte controvérsia.
                        Ligas voltadas para a saúde e o saneamento básico, reunindo parte da intelectualidade
                        sanitária nacional, foram criadas e tiveram muito impacto na época, pelo seu ideário
                        nacionalista e de oposição à ação dos americanos. A influência dessas associações
                        civis, todavia, foi eclipsada à época pela ascensão da liderança de Carlos Chagas,
                        um autêntico prócer da República Velha, que, ao assumir a direção do DNSP, não
                        só favoreceu a ampliação da atuação da Fundação Rockfeller, como consagrou, de
                        fato e de direito, uma divisão relativamente estanque de tarefas sanitárias, entre tal
                        entidade e a DNSP (COSTA, 1985).
                        Entretanto, nem tudo era reprodução do capital, interesses estratégicos e comerciais,
                        imperialismo – conforme a grita dos críticos. Ou, mesmo que isso tenha existido de fato,
                        a atuação da Fundação Rockfeller trouxe também influências modernizadoras que irão
                        marcar positivamente a política nacional de saúde, de forma inédita até então. Destaque
                        especial para a criação de uma rede de centros de saúde, em fins dos anos 20 e início
                        dos anos 30, principalmente nos grandes centros urbanos do País, em que já mostravam,
                        entre outras características de atuação, vinculação efetivamente estatal; base territorial
                        regional de atuação; desenvolvimento de serviços permanentes (em oposição ao
                        campanhismo emergencial até então vigente); vinculação municipal, e não mais apenas
                        federal das unidades, agora descentralizadas, portanto; ênfase na educação sanitária;
                        inclusão de práticas de saneamento, ou, pelo menos na consideração de tal fator nas
                        condições de saúde-doença; atuação urbana e depois também rural; valorização da
                        epidemiologia e das estatísticas vitais em geral no planejamento, mesmo que ainda
                        precário, das ações de saúde. Bem ou mal, como pode ser visto, as bases para novos
                        modos de atuação dos órgãos de saúde pública no Brasil estava lançada.
                        A influência norte-americana também se fez notar na formação de sanitaristas brasileiros
                        em universidades americanas, já na década de 20, em particular na conceituada Johns
                        Hopkins University, na Filadélfia, considerando ser esta a primeira instituição, nesse
                        gênero do Novo Mundo, profundamente influente, historicamente, nos Estados Unidos e
                        nos demais países das Américas.
                        Outra consequência da influência americana na saúde pública nacional foi a criação
                        dos Serviços Especiais de Saúde Pública (SESP), como desdobramento de uma série de
                        acordos estratégicos e comerciais entre os EUA e o Brasil, a partir de 1942. Isso fez parte
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do esforço aliado de guerra, mediado pela organização governamental norte-americana
                                  conhecida pelo nome de Instituto de Assuntos Interamericanos (IAIA), em cujas origens
                                  estava presente o já conhecido empreendedor capitalista Nelson Rockfeller, patrono da
                                  fundação que lhe levava o sobrenome (BASTOS, 1991).
                                  O SESP (depois de 1960, FSESP, convertido que foi em fundação pública vinculada
                                  ao Ministério da Saúde) foi criado para atuar, inicialmente, nas áreas produtoras de
                                  borracha da Bacia Amazônica e de extração de minério de ferro, no Vale do Rio Doce,
                                  em Minas Gerais, aspectos associados diretamente ao esforço de guerra de então. Logo,
                                  entretanto, expandiu-se para outras regiões do País, marcadas pela pobreza e pelas
                                  más condições sanitárias e sociais, como era o caso do Vale do Rio São Francisco e da
                                  Região Nordeste, além de outras. Nos anos do regime militar teve sua ação estendida
                                  também para as áreas limítrofes às grandes rodovias de integração nacional, como a
                                  Transamazônica, Cuiabá-Santarém, Cuiabá-Porto Velho e Perimetral Norte, bem como
                                  aos projetos Carajás, Jarí e ao garimpo de Serra Pelada. Seu foco de ação compreendia
                                  a assistência individual, as ações preventivas e educativas em saúde, bem como o
                                  saneamento básico (BASTOS, 1991).
                                  Uma visão mais crítica por certo enxergaria as origens de tal organismo como mais
                                  um resultado dos interesses do capitalismo internacional, ou de sua pátria central,
                                  os Estados Unidos da América. O que estaria em jogo não seria apenas um pretenso
                                  esforço de guerra, fator imediato da iniciativa, a ser substituído no longo prazo pela
                                  cobiça pelas matérias-primas e pelo mercado brasileiro, então em expansão, além
                                  da afirmação estratégica da potência mundial em vias de consolidação. Isso não deixa
                                  de ser verdade, mas aqui também a presente análise buscará algo mais: a relevante
                                  contribuição que a fundação SESP trouxe às práticas de saúde no Brasil, da mesma
                                  forma que já havia acontecido com a criação da rede de centros de saúde nas décadas
                                  anteriores, capitaneada também por norte-americanos, no caso, baseados na Fundação
                                  Rockfeller.
                                  Mas o que trouxe a FSESP efetivamente de novo à política de saúde no Brasil? Aqui a
                                  análise precisa se destituir de preconceitos de natureza conspiratória ou estruturalista6.


                                  6      A referência ao estruturalismo sociológico não será aqui objeto de aprofundamento, dado a natureza do presente texto.
                                  Refere-se a uma corrente de análise capitaneada geralmente por autores franceses (Althusser e Foucault, entre outros), aplicada
                                  amplamente à área da saúde, que teve grande expressão no Brasil nos anos 80, e que tendia a perceber de forma exacerbadamente
                                  crítica os serviços de saúde como mera instância de controle (sobre) a sociedade e instrumentos de reprodução ideológica e de
                                  capital, dentro de estruturas cuja mudança estava longe ou fora do alcance dos agentes atuantes nos organismos. Isso talvez
                                  faça parte do que Paim (1985), autor já citado aqui, intitulou do movimento ideológico dos anos 80, transformado no período
                                  pós-democratização em ação política, da qual resultou, em sentido amplo, a própria criação do SUS e, entre outros aspectos, a
                                  formulação da estratégia de Saúde da Família no Brasil.




                                                                                                                                                                                 81

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Instituição profundamente hierarquizada e centralizada, a FSESP realizou, entretanto,
                        notáveis feitos, na saúde pública brasileira, tendo sido o primeiro órgão público
                        a prestar serviços de atenção integral à saúde, de forma contínua, associando
                        prevenção, promoção da saúde e assistência curativa. Desenvolveu, além do mais,
                        técnicas e procedimentos inovadores relativas ao processo de trabalho em suas
                        unidades de saúde, que possibilitaram a expansão de cobertura de programas de
                        controle de doenças endêmicas, crônicas e degenerativas, além de outras. De forma
                        também inédita no Brasil, promoveu a incorporação e a capacitação de pessoal de
                        nível médio no trabalho em saúde. No elenco de atividades de seus serviços, estavam
                        presentes ações de reidratação oral, alojamento conjunto para recém-nascidos, visita
                        domiciliar, capacitação de parceiras leigas, prevenção do câncer, captação e registro
                        de nascimentos, óbitos e outras informações vitais; odontologia sanitária, além de
                        outras que, somente décadas mais tarde, com o advento do PSF, foram incorporadas
                        aos serviços de saúde no Brasil. Do ponto de vista gerencial, sistematizou os processos
                        de programação e avaliação em todos os níveis do sistema de saúde, com quantificação
                        de objetivos e metas, criou centros regionais de estatísticas vitais e de mortalidade,
                        organizando também o primeiro centro nacional de processamento de dados em saúde,
                        em 1976. Atuou também no campo do saneamento básico, por meio dos chamados
                        serviços autônomos de água e esgoto (SAAE), que ainda hoje têm presença marcante,
                        seja diretamente ou por meio de seus sucedâneos municipalizados, em muitas cidades
                        brasileiras (RISI, 2008).
                        A FSESP chegou a atuar em cerca de seis centenas de municípios, operando mais de 800
                        Unidades Básicas de Saúde e mais de 1.300 SAAE, dando cobertura a nada mais do que
                        dez milhões de cidadãos brasileiros. A partir de 1991, sua estrutura foi incorporada pela
                        recém-criada Fundação Nacional de Saúde (Funasa), juntamente com outros órgãos da
                        estrutura federal de saúde, entre eles a SUCAM, a Secretaria Nacional de Ações Básicas
                        de Saúde (SNABS) e o Datasus (desmembrado do Dataprev/MPAS).
                        Como se vê, a história da atenção básica no Brasil não pode ser contada sem incluir a
                        participação pioneira e qualificada de tal entidade.


                        6. Pioneirismo e resistência
                        Mas há mais coisas a relatar... Entre elas os diversos movimentos de resistência
                        democrática na área da saúde, que incluíram em seu bojo a rediscussão do modelo de
                        atenção até então vigente no País e, dessa forma, a proposição de novos processos de
                        trabalho e de reorganização das práticas sanitárias no Brasil.
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Assim é que, já nos anos 70, particularmente no eixo Rio de Janeiro–São Paulo, começam
                        a aparecer movimentos organizados envolvendo intelectuais, profissionais de saúde,
                        docentes universitários e outros interessados, tendo como pano de fundo a denúncia
                        da crise do sistema de saúde, das más condições sanitárias e nosológicas do País e da
                        precariedade do exercício profissional (ESCOREL, 1987).
                        Entre outros eventos produzidos no âmbito de tais movimentos, todos ocorridos
                        na segunda metade da década de 70, podem ser citados: a formação de um grupo
                        médico de oposição sindical, denominado Renovação Médica; a fundação do CEBES e
                        da revista Saúde em Debate; a realização do I Congresso Paulista de Saúde Pública;
                        a realização do I Simpósio de Política Nacional de Saúde na Câmara dos Deputados;
                        a fundação da ABRASCO; a realização das Semanas de Saúde Comunitária e dos
                        Encontros Nacionais de Estudantes de Medicina, entre outros. Além deles, deve
                        ser lembrada a existência de grupos mais informais de resistência e convergência
                        de pensamento progressista em saúde, como é o caso do Grupo Novo Mundo, esse
                        último numa alusão ao tradicional hotel da Praia do Flamengo, no Rio de Janeiro,
                        onde se reuniam os membros (GOULART, 1996).
                        Com efeito, foi uma época movimentada na saúde brasileira. Em 1980, o governo federal,
                        na tentativa de colocar luz e ordem sobre a situação caótica do sistema de saúde e também
                        para refazer os equívocos de famigerada lei “do sistema nacional de saúde” de 1976, que
                        não “pegou” por absoluta insuficiência de coerência com a realidade brasileira, lança um
                        programa de integração entre os Ministérios da Saúde e da Previdência intitulado muito
                        a propósito de Prev-Saúde. Em 1983, reformas dentro da máquina do INAMPS dão à luz
                        o programa intitulado Ações Integradas de Saúde (AIS), com expectativas ambiciosas
                        de integrar mais uma vez as máquinas públicas na área de saúde, mas com expressivo
                        sucesso em incorporar na gestão dos Estados e municípios as ações de saúde antes
                        exclusivas do INAMPS. Em 1986, ocorre a VIII Conferência Nacional de Saúde, a primeira
                        em toda a história desse tipo de evento a contar com participação política e social ampla,
                        muito além da representação exclusiva da burocracia federal de saúde, como acontecera
                        nas sete conferências anteriores. 1987 é o ano em que governo federal, já como resposta
                        às proposições da VIII CNS, emite o decreto que cria o SUDS, institucionalizando de forma
                        mais intensiva e formalizada a participação dos Estados e municípios no sistema de saúde.
                        Em 1988, é promulgada a nova Constituição Federal, fruto da redemocratização do País, e
                        dentro dela é criado o Sistema Único de Saúde (SUS).
                        Em todos esses momentos, estiveram presentes ideias relativas ao temário de Alma
                        Ata, por um lado, mas, por outro lado, as propostas e as experiências que vinham sendo
                        desenvolvidas em todo o País já havia alguns anos, seja no âmbito de universidades,
                        de governos municipais e estaduais, de entidades civis diversas. Em suma, algumas
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palavras de ordem estavam dadas, entre elas, sem dúvidas e de forma enfática Atenção
                                  Primária à Saúde (GOULART, 2007).
                                  Ao se falar dos movimentos em saúde no Brasil, é preciso lembrar algo que surge, nos
                                  anos 70 e, talvez, até um pouco antes, em alguns municípios brasileiros, traduzido por
                                  propostas inovadoras no campo da atenção à saúde. Sua importância deriva não só de
                                  seu pioneirismo, considerando que, à época, aos municípios era conferido pouco ou
                                  nenhum poder em matéria de saúde, mas também de sua capacidade de resistência e de
                                  proposição de novas alternativas em política de saúde, em oposição ao modelo médico-
                                  privativista dominante, apoiado pela instância máxima da política de saúde no País, qual
                                  seja o antigo INAMPS. Foram numerosos esses municípios e nem todos tiveram suas
                                  experiências e propostas de saúde documentadas, mas, certamente, alguns podem ser
                                  destacados: Lajes/SC; Boa Esperança/ES; Londrina/PR; Piracicaba/SP; Belo Horizonte/
                                  MG; Campinas/SP; São José dos Campos/SP; Montes Claros/MG7; Niterói/RJ, Vitória da
                                  Conquista/BA, entre outros (GOULART, 1996).
                                  O que unia essas experiências municipais não era tanto o fato de terem administrações
                                  “progressistas” ou mesmo de oposição ao regime militar – algumas talvez não se
                                  enquadrassem em nenhuma dessas duas categorias – mas sim por suas propostas de
                                  políticas inovadoras na saúde, nas quais se incorporavam elementos que até então faziam
                                  parte de um ideário ainda remoto no Brasil, trazido pelos ecos da famosa Reunião de
                                  Alma Ata. Mas aqui e ali começam a despontar novos ingredientes que contemplavam,
                                  entre outros aspectos, o foco na Atenção Primária à Saúde; o ideal da saúde para todos,
                                  sem distinções; a participação comunitária; a organização de distritos sanitários; a
                                  utilização da epidemiologia no planejamento das ações de saúde; o foco nos territórios;
                                  a utilização das terapias não convencionais e, principalmente, a incorporação de novos
                                  agentes de práticas de saúde, com diversas denominações locais e regionais, mas que
                                  convergiram, com certeza, para o que hoje se conhece em toda parte como agentes
                                  comunitários de saúde.
                                  Assim é que, na década de 80, vão se tornando cada vez mais frequentes experiências
                                  que vieram a ter repercussão importante nos programas atualmente desenvolvidos não
                                  só no PACS como em outros, na Região Nordeste (CARVALHO; RIBEIRO, 1998), onde



                                  7     A experiência ocorrida em Montes Claros não tinha, rigorosamente, origem municipal. Antes fazia parte de um acordo
                                  internacional do governo de Minas Gerais, no início dos anos 70, para desenvolvimento de um sistema de saúde regionalizado e
                                  hierarquizado, que servisse de modelo para o processo de descentralização de saúde que iniciava a ser implantado no Estado.
                                  Entre suas características, estava a prestação de serviços médicos simplificados e utilização de pessoal de nível médio nos moldes
                                  aproximados do Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento (PIASS) do Ministério da Saúde, a ser comentado
                                  adiante. Para mais detalhes, ver FLEURY (1995).




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ele se originou e também em outras partes do País. São programas que podem ser
                        considerados herdeiros das propostas ditadas pelo figurino da reunião de Alma Ata,
                        realizada no final na década anterior. Eles desenvolveram, como característica principal,
                        o enfoque nas clientelas de alto risco, tanto em regiões rurais como nas periferias das
                        grandes cidades, primando, ainda, pela recusa à densidade tecnológica de suas ações.
                        Uma parte apreciável dessa história está contada na verdadeira epopeia que foi a
                        criação e o desenvolvimento, ainda nos anos 70, mediante iniciativa do Ministério da
                        Saúde em associação com o INAMPS, do Programa de Interiorização das Ações de
                        Saúde e Saneamento (BRASIL, 2008) e, em torno de uma década depois, do Programa de
                        Agentes Comunitários de Saúde (PACS), inicialmente no Estado do Ceará. Ambos tinham
                        como características principais o enfrentamento da enorme escassez de médicos e
                        enfermeiros, além de infraestrutura física em saúde, se não rudimentar, prevalente em
                        regiões pobres do País, com a retomada das propostas já vigentes desde os anos 40 na
                        FSESP de utilização de pessoal de nível médio para assumir um papel central, muitas
                        vezes único, nos cuidados de saúde, mediante treinamento ad-­hoc.
                        Entre as inúmeras experiências pioneiras que convergem de forma mais aproximada
                        da Estratégia Saúde da Família tal qual é conhecida hoje, vale a pena destacar aquelas
                        realizadas em Porto Alegre (Vila de São José do Murialdo), ainda na década de 70; em
                        São Paulo, nos anos 80; e em Niterói, já nos 90 (GOULART, 2007). Trata-se de uma lista
                        não exaustiva, naturalmente.
                        As experiências desenvolvidas nos anos 70 e 80 na cidade de Porto Alegre, dentro
                        do enfoque da então denominada Medicina Geral Comunitária, possuem uma história
                        comum em muitos aspectos essenciais, por exemplo: terem os mesmos atores
                        fundadores e apoiadores; possuírem vínculos institucionais públicos; associarem-
                        se a práticas de formação e capacitação de pessoal; exercerem certo efeito
                        demonstrativo (pelo menos em seu início); apresentarem sucessão de movimentos
                        de expansão e retração (sístoles e diástoles) em sua trajetória, entre outros. Além
                        disso, apresentaram expressiva articulação externa, com a formação gradual de uma
                        rede importante de contatos e apoios externos técnicos e políticos, além de busca
                        crescente de institucionalização.
                        Os dois casos de Porto Alegre, originados no Grupo Hospitalar Conceição (GHC) e na
                        Unidade Básica de Saúde de Murialdo, tiveram, ainda, tendência de gradual inserção nos
                        sistemas de saúde locais, mediante ajustamento e sintonia política com seus gestores,
                        com a incorporação, por partes desses, de uma gramática típica dos programas,
                        com palavras de ordem e diretrizes tais como responsabilização, territorialização,
                        hierarquização, regionalização e participação. Nessa condição, primaram também por
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buscar a superação da condição de serem meros exercícios de efeito demonstrativo
                                  ou de visibilidade acadêmica, sendo notório que em sua evolução obtiveram amplo
                                  reconhecimento externo e de transformação em centros de referência regionais e
                                  nacionais na capacitação para o PSF e a atenção básica em geral. Além disso, da mesma
                                  forma que outros programas, penaram com as dificuldades derivadas da insuficiência
                                  histórica da política de financiamento da atenção básica no País, bem como dos fatores
                                  culturais que fazem da prática generalista em saúde uma atividade até certo ponto
                                  marginal, pelo menos no meio médico.
                                  De forma sintética, as duas experiências mostraram ao longo de sua existência marcante
                                  diferenciação da natureza das práticas desenvolvidas em cada instituição: hospitalar,
                                  clínica, de resolução individualizada no GHC, enquanto em Murialdo o caráter sempre
                                  foi comunitário, social, com ênfase na vigilância à saúde.
                                  As experiências pioneiras desenvolvidas em Porto Alegre se aproximam também se
                                  distanciam das experiências municipais de APS desenvolvidas no Brasil. Uma comparação
                                  aprofundada entre as duas categorias não seria cabível, dada a inserção e o processo
                                  de desenvolvimento radicalmente diferentes entre elas. Mas, mesmo diante de tais
                                  diferenças, alguns pontos comparativos podem se estabelecer. Em primeiro lugar, as
                                  experiências se aproximam, dada a participação de atores “fortes” em seus processos
                                  de formação e desenvolvimento, tanto do ponto de vista de suas características pessoais
                                  de carisma e liderança, como na sua inserção conspícua na política institucional e nas
                                  articulações externas que possuíam.
                                  Em ambos os grupos, houve também a concorrência de um ambiente político-institucional
                                  adverso, daí resultando o exercício permanente de processos de conflito sucedidos por
                                  negociação e superação. O isolamento e o posicionamento na “contracorrente” foram
                                  algo visível em algumas das experiências de municípios também.
                                  As articulações externas das instituições mantenedoras foram essenciais para a
                                  sobrevivência em todo o conjunto, havendo momentos em que a sustentabilidade
                                  das ações se apoiou essencialmente nesse fator. Da mesma forma, o processo antes
                                  denominado de sístoles e diástoles esteve presente em uns e outros casos.
                                  Como grandes linhas diferenciais, podem ser citadas: as diferentes inserções
                                  institucionais; a abrangência geográfica; o modo de vinculação ao sistema de saúde; as
                                  preocupações com qualificação e formação profissional versus a mudança do modelo
                                  assistencial em saúde; a natureza dos projetos, mais “médicos” e “técnicos” de um lado
                                  e “políticos” de outro.




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Em suma, a importância das experiências pioneiras do Sul do País, seja a do CS Murialdo,
                        seja a do Grupo Conceição, é patente, devendo ser apreciada pela influência que exercem
                        sobre as práticas profissionais e os próprios sistemas de saúde, não só da região como
                        de outras partes do Brasil; o impacto que proporcionam ao sistema de saúde local e
                        regional; sua vocação de se constituírem aparelhos formadores de peso em Saúde da
                        Família; sua influência na própria formulação do PSF nacional; entre outras.
                        O Programa Médico de Família da SES de São Paulo foi, na verdade, uma experiência
                        de curta duração, que aparentemente deixou poucas marcas locais, mas que teve a
                        importância, segundo Santos (2002), um ator participante dela, de ter aberto as portas
                        para a ampliação da discussão sobre a Medicina de Família e a Atenção Primária à Saúde
                        no Brasil. Seu início se deu na segunda metade dos anos 80, quando Orestes Quércia
                        assume o governo de São Paulo e nomeia Secretário de Saúde do Estado José Aristodemo
                        Pinotti, um médico ginecologista de Campinas e professor titular da Unicamp de grande
                        renome na área de saúde da mulher e que, naquele momento, parecia inclinado em dar
                        uma “virada” em uma carreira docente e científica bem-sucedida, em direção à política
                        partidária e eleitoral.
                        O movimento mais imediato foi o contato com consultores cubanos, dadas as ligações
                        que intelectuais paulistas ligados ao PMDB, na ocasião, capitaneados pelo escritor
                        Fernando de Moraes, tinham desenvolvido com o governo de Cuba. Assim, a experiência
                        de médico de Família, naquele momento ainda incipiente na ilha, foi trazida ao Brasil. A
                        condução do projeto Médico de Família foi entregue à médica Eliane Dourado, que tinha
                        experiência em projetos inovadores de natureza semelhante em município da Região
                        Metropolitana da capital paulista e que também contribuiria, alguns anos depois, para a
                        implantação do PSF nacional. A concepção era eminentemente cubana, ou seja, centrada
                        em médicos generalistas residindo na própria comunidade, em prédios especialmente
                        projetados, englobando moradia e consultório. Pouco mais de uma dezena dessas
                        unidades foi construída, por volta de 1988, todas na periferia do município de São Paulo.
                        O projeto teve vida curta, dado que Pinotti se afastou do cargo para candidatar-se ao
                        governo de São Paulo. Nesse interregno, o programa teve solução de continuidade,
                        não se tendo notícia de como foram aproveitados seus quadros (se é que o foram) e
                        do destino dado às unidades construídas. Foi um programa bastante criticado, seja à
                        direita, seja à esquerda, segundo o mesmo interlocutor (SANTOS, 2002). De um lado,
                        a poderosa Associação Paulista de Medicina, suspeitando da “esquerdização” que
                        poderia ser propiciada por uma ideia gerada em Cuba; de outro, o Sindicato dos Médicos,
                        denunciando o caráter paliativo ou de cesta básica dele. No próprio movimento sanitário
                        da época, ou seja, nas entidades nacionais como o CEBES e a ABRASCO, ou entre os
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secretários municipais de saúde, o projeto não obteve aprovação ou maior
                                  penetração, ficando como uma ação até certo ponto marginal.
                                  O Programa do Médico de Família de São Paulo teria passado em brancas
                                  nuvens não fossem alguns de seus desdobramentos, de natureza ideológica
                                  e intelectual, conforme ainda a visão de Santos (2002). Repercussão não
                                  negligenciável, segundo esse interlocutor, teria sido a de contribuir para a
                                  dissolução de algumas resistências que a esquerda ou os setores progressistas
                                  em geral tinham em relação ao tema da Medicina de Família ou mesmo da
                                  Atenção Primária à Saúde.
                                  Outro desdobramento desse programa pioneiro teria sido de gerar um mote
                                  captado por muitos secretários municipais de saúde, que passaram a incluir o
                                  tema da APS em suas agendas. Um possível e paradigmático exemplo é o de
                                  Niterói, descrito a seguir.
                                  Nos anos 70, surge o chamado Projeto Niterói, um espaço autônomo de organização
                                  e resistência em saúde, formado por técnicos de múltiplas instituições, com
                                  articulações externas importantes, que não contavam com endosso do poder
                                  municipal, com o qual haviam rompido e sido expulsos. O Projeto Niterói organiza-
                                  se como uma instância de reflexão política e técnica, tendo como pano de fundo o
                                  ideário da reforma sanitária, ainda incipiente na ocasião.
                                  Na década de 80, o Projeto Niterói se institucionaliza e se aproxima novamente
                                  da Secretaria Municipal de Saúde, com a presença de alguns atores externos,
                                  por meio da OPAS, destacando-se o médico cubano Carlos Petres, que abriria
                                  mais adiante caminho para um profícuo intercâmbio com Cuba. Na sequência, já
                                  com a SMS dirigida por um grupo de técnicos ligados ao Projeto Niterói, foram
                                  desencadeadas mudanças na política de saúde local, entre elas a municipalização
                                  geral dos serviços de saúde; a distritalização sanitária; a constituição de uma rede
                                  hierarquizada e regionalizada de serviços e a implantação do Programa Médico de
                                  Família (PMF), em 1991, o qual, como se verá, influenciará de forma marcante a
                                  criação do PSF nacional, três anos depois (TOMASINI, 1996; GOULART, 2007).
                                  A cooperação técnica com Cuba se amplia a partir de 1991, com a vinda de
                                  consultores e estágios de técnicos locais naquele país, além de cursos para a
                                  formação de equipes do PMF. Um fator favorável ao processo de implementação
                                  da política de saúde na década de 90 foi a continuidade política no município,
                                  com a permanência de um único secretário, Gilson Cantarino O’Dwyer, no
                                  cargo por praticamente 10 anos, acompanhado de uma mesma equipe.



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O PMF começou se estruturando de forma consequente, contemplando áreas de atuação
                        em função de seu grau de exclusão social, do baixo acesso a serviços, bem como da
                        existência de um movimento de moradores organizado. Um aspecto diferencial do PMF
                        foi a composição e o processo de trabalho de suas equipes técnicas, constituídas apenas
                        por médico e auxiliares de saúde, semelhante ao modelo cubano. Estava previsto que
                        o médico tivesse 50% de seu tempo destinado formalmente a visitas domiciliares e a
                        outros trabalhos de campo. Outro aspecto distintivo era a realização de reuniões entre a
                        equipe do PMF, supervisores da SMS e representantes das associações de moradores,
                        que, em etapa seguinte do programa, passaram a contratar, com recursos públicos, o
                        pessoal lotado nas unidades do PMF, constituindo assim mais um aspecto inédito no
                        programa de Niterói.
                        As chamadas equipes de supervisão, ou seja, a retaguarda técnica das equipes locais, com
                        seu caráter multidisciplinar e capacitação inicial realizada diretamente pela cooperação
                        técnica cubana, tinham, ademais, como aspecto destacado de seu trabalho, o exercício
                        de consultance perante as equipes, à maneira inglesa, o que sem dúvida também veio a
                        influenciar alguns desdobramentos do PSF, por exemplo, a criação recente dos Núcleos
                        de Apoio de Saúde da Família (NASF).


                        7. A ação política: formulação da política de Saúde da Família nos anos 90
                        O quadro da saúde no momento imediatamente anterior à formulação do PSF não parecia
                        ser muito favorável ao desenvolvimento de propostas novas ou inovadoras no setor. Com
                        efeito, o governo de Fernando Collor havia retrocedido nos avanços obtidos durante a Nova
                        República, particularmente na questão do financiamento. Em 1993, já no governo de Itamar
                        Franco, o Ministério da Previdência Social determinou unilateralmente as transferências do
                        MPAS para a saúde, resultando em perdas da ordem de US$ 2 bilhões (CARVALHO, 2002).
                        É bem verdade que os indicadores de saúde vinham em melhora progressiva já no
                        início da década, por exemplo, na mortalidade materna e infantil, porém, nesse período,
                        observou-se certa mudança de ritmo de queda e, no caso da mortalidade materna, chegou
                        a haver mesmo um ligeiro aumento da taxa entre 1993 e 1995, embora tal mudança não
                        pudesse ser imputada diretamente a alguma piora, mesmo momentânea, das condições
                        de vida e saúde da população.
                        Os anos 90, particularmente seu início, albergariam, assim, uma autêntica crise da saúde
                        ou, para ser mais preciso, a continuidade e o agravamento de uma crise precedente. Vários
                        fatores encontravam-se presentes, entre eles, queda do financiamento, irracionalidade,
                        exclusão social, problemas de imagem do sistema perante seus usuários etc. Na
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ocasião, Faveret e Oliveira (1989) cunharam a expressão “universalização excludente”8
                        para qualificar a associação entre uma “expansão por baixo”, pela inclusão de milhões
                        de indigentes, e uma “exclusão por cima”, mediante a qual segmentos de trabalhadores
                        mais qualificados e a classe média em geral renunciam à assistência pública pelo SUS,
                        em busca de atendimento mais qualificado nos planos de saúde. Vianna (1997) deplora
                        que, apesar da concepção “europeia” cogitada pelos legisladores constituintes de 1988,
                        a proteção social e à saúde no Brasil vinha acumulando evidências de uma verdadeira
                        “americanização”, especializando-se em parcos benefícios para os mais pobres,
                        enquanto ao mercado ficava reservada a atenção aos mais aquinhoados e capazes de
                        remunerar serviços diretamente ou mediante seguro.
                        Esses são alguns elementos do contexto em que o PSF foi formulado no País. O programa,
                        além disso, nasceu em um momento em que a questão da pobreza estava bastante em
                        evidência no País, traduzida, por exemplo, pela utilização do “Mapa da Fome” na alocação
                        dos recursos previstos (VIANA, 2000). Havia, de um lado, um movimento civil coordenado
                        pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, e, de outro, a atuação do governo de Itamar
                        Franco, buscando sintonia com as propostas oriundas da sociedade.
                        O contexto social e econômico do início dos anos 90 era, em resumo, o seguinte: (a) O
                        número de pobres era estimado em cerca de 59,4 milhões em 1993 e o de miseráveis,
                        no mesmo período, em 27,8 milhões e a desigualdade na distribuição da renda nacional
                        era – como continua sendo – marcante, com o chamado Índice de Gini de 0,605, em
                        1993 (LAHÓZ, 2002); (b) A taxa de desemprego aberto era de 5,32, em 1994, considerada
                        emblemática da mais grave crise de emprego na história do Brasil e aprofundada nos
                        anos seguintes (OLIVEIRA, 2002); (c) Embora aquém de metas desejáveis, a partir de
                        1995, as aplicações em saneamento e infraestrutura urbana, da ordem de US$ 5,29
                        bilhões, foram cerca de 35% superiores à média anual registrada entre 1980-1993; (d) O
                        processo de urbanização do País prosseguia de forma acelerada e, no início da década,
                        apenas cerca de 20% da população vivia nas chamadas cidades pequenas, com menos
                        de 20 mil habitantes e o déficit habitacional brasileiro, em 1995, era quatro milhões de
                        unidades nas zonas urbanas e 1,6 milhão nas rurais, além de 10,6 milhões de unidades
                        sem infraestrutura adequada; (e) Além disso, entre 1991 e 2000, o número de favelas
                        cresceu cerca de 22,5% (PAULA, 2002).



                        8    O fenômeno da universalização excludente poderia ser interpretado por alguns com uma «vantagem» para o sistema e
                        como um reforço do princípio da equidade, considerando que se retiram dele pessoas contribuintes, deixando ao mesmo tempo
                        de receber benefícios. Isso não leva em conta, todavia, o fato de que muitos desses «excluídos» de que falam Faveret e Oliveira
                        na verdade voltam a se «incluir» no sistema quando demandam procedimentos de mais alta complexidade – também os mais
                        dispendiosos.
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A formulação e início da implementação do PSF praticamente coincidiu com o advento
                                  do Plano Real, um conjunto de políticas que, nos anos seguintes, produziu marcantes
                                  transformações sociais e econômicas na vida dos brasileiros, tendo sido até mesmo
                                  considerado como a principal ação social de governo em toda a década, pois, na vigência,
                                  mais de nove milhões de pessoas deixaram de ser tecnicamente pobres e cerca de 80%
                                  das famílias tiveram aumento efetivo de renda – a renda real dos 10% mais pobres
                                  simplesmente dobrou entre 1993 e 19959 (LAHÓZ, 2002).
                                  Outra característica da era que se sucede à formulação do PSF, e que corresponde ao
                                  período inicial de implementação dele, refere-se ao padrão de relacionamento político
                                  entre o Executivo e o Legislativo, caracterizado, segundo Chagas (2002), pela existência
                                  de um autêntico “rolo compressor”, formado por uma poderosa base parlamentar –
                                  politicamente de alto custo –, que, entre outras mudanças institucionais, viabilizou a
                                  manutenção, por períodos sucessivos, da CPMF, bem como alterou a Constituição em
                                  busca de novas fontes e vinculação do financiamento setorial, com a promulgação da
                                  Emenda Constitucional 29.
                                  Retomando o curso histórico da narrativa, o impeachment de Fernando Collor, em 1992, e
                                  sua sucessão por Itamar Franco levaram à nomeação para o Ministério da Saúde de um
                                  Ministro – Jamil Hadad – e de uma equipe de assessores não só vinculados a um ideário
                                  dito progressista em saúde, como muitos deles de incontestável militância na Reforma
                                  Sanitária e, inclusive, alguns ex-secretários municipais de saúde10. Formou-se, assim,
                                  um clima de mudança, pois a nova gestão havia encontrado uma marcante paralisia
                                  decisória no Ministério da Saúde, como de resto em outros setores da administração
                                  federal, agravada nos estertores do Governo Collor. Um pouco antes fora realizada
                                  a IX Conferência Nacional de Saúde, a qual, embora defendida e conduzida de forma
                                  destemida pelo Ministro anterior, Adib Jatene, foi mais um evento político a demonstrar
                                  a insatisfação no País. Não havia, na ocasião, grandes propostas de avanço e, mesmo
                                  que as houvesse, a conjuntura era francamente desfavorável a qualquer implementação
                                  de inovações.


                                  9     Embora os efeitos das políticas sociais do período do Plano Real, entre elas o PSF, possam ter sido potencializados pelos
                                  benefícios gerados pelo melhor desempenho da economia, é preciso ter cautela quando a uma interpretação estreita de tal
                                  correlação, do tipo causa-efeito¸considerando que as políticas sociais também podem gerar, de per se, efeitos positivos nas
                                  condições de vida e saúde da população. Esse tema, naturalmente, é objeto de um debate acalorado entre os especialistas em
                                  economia e políticas públicas.
                                  10 Alguns nomes que fizeram parte da equipe de Jamil Hadad no Ministério da Saúde, entre 1993 e 1994, portadores do perfil
                                  citado: Carlos Mosconi (Deputado Federal e Presidente da Comissão de Seguridade Social na Assembleia Constituinte); Gilson de
                                  Cássia Marques de Carvalho (ex-Secretário Municipal de Saúde de São José dos Campos/SP; Jorge Bermudez (Pesquisador da
                                  ENSP/FIOCRUZ); José Alberto Hermógenes (ex-Secretário de Saúde da Bahia); Adnei de Moraes (ex-Prefeito de Poços de Caldas/
                                  MG), além do autor deste trabalho (ex-Secretário Municipal de Saúde de Uberlândia/MG e ex-Vice Presidente do CONASEMS).




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Contavam os novos gestores do Ministério da Saúde com um respeitável arco de forças
                        políticas favoráveis à mudança na saúde, tendo também como fator positivo o fato de
                        estar o presidente Itamar Franco mais preocupado com a economia como um todo do
                        que com os detalhes da gestão em saúde. Assim, mesmo em conjuntura econômica e
                        institucional desfavorável, os ventos corriam a favor das propostas de transformação.
                        O período de gestão da saúde iniciado nesse momento, que correspondeu à formulação
                        e implementação da Norma Operacional Básica de 1993, foi marcado por fortes conflitos
                        e antagonismos, autênticas disputas intraburocráticas, fora e dentro do Ministério
                        da Saúde. Setores ligados à estrutura tradicional, tais como Procuradoria Jurídica,
                        Auditoria, Finanças, Convênios e outros, geralmente ocupados por funcionários de
                        carreira egressos das antigas Secretarias Nacionais, bem como do INAMPS e da Funasa,
                        tinham sua atuação marcada pelo levantamento de reiterados obstáculos normativos,
                        de forma a obstaculizar o processo de descentralização, principalmente dos repasses
                        entre fundos de saúde e nos pagamentos dos fatores de incentivo (GOULART, 2007).
                        Também em outros setores do governo (Planejamento, Previdência Social e Secretaria
                        de Orçamento e Finanças), o jogo não era menos pesado11. Em reuniões interministeriais
                        para discutir a questão orçamentária da saúde, frequentemente, a argumentação por
                        parte dos técnicos desses setores, devidamente apoiados pelos titulares, era de que a
                        solução para os problemas da saúde estaria na criação de barreiras financeiras para o
                        usuário, distribuição de vauchers etc. (GOULART, 2007).
                        Nesse período, ocorreria ainda a substituição intempestiva de Jamil Hadad por Henrique
                        Santilo, portador de um perfil mais conservador, além de mais disposto a realizações de
                        efeito político, ou de ações localistas para seu Estado (Goiás) ou de repercussão mais
                        imediata. Não foram fora desse espírito que ocorreram algumas das grandes realizações
                        de Santilo à frente do Ministério da Saúde, quais sejam a criação do Programa de Saúde
                        da Família e a constituição do Programa de Interiorização do SUS (PISUS), deixando
                        quase intocadas as questões mais estruturais, como descentralização e financiamento.
                        Em outros aspectos, porém, Haddad e Santilo se equivaliam: eram ambos muito frágeis
                        nos seus embates com a área econômica do governo (GOULART, 2007).
                        Henrique Santilo havia sido governador de Goiás na década de 80, ocasião em que já
                        havia lançado proposta semelhante à dos agentes comunitários de saúde. Um de seus



                        11 Para o devido registro histórico, alguns dos poderosos membros de uma espécie de «tropa de choque» antissaúde
                        espalhados pela administração pública federal foram: Murilo Portugal, da Secretaria de Orçamento e Finanças do Ministério da
                        Fazenda; Ministro Fernando Henrique Cardoso; Francisco Oliveira – o Chico Previdência – técnico de carreira do IPEA, lotado no
                        MPAS na ocasião (já falecido) e Raul Jungmann, Secretário Executivo do Planejamento).
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assessores era um técnico brasileiro do Unicef, Halim Girade, que acumulara marcante
                                  experiência em trabalhos comunitários em Goiás e outros Estados do Brasil. Girade foi
                                  incumbido pelo Ministro Santilo de desenvolver ideias relativas a um novo modelo de
                                  atenção para comunidades pobres e sem médico, tendo como referência a experiência
                                  desenvolvida em Goiás na década anterior (GIRADE, 2000). Aquilo parecia ser, além do
                                  mais, a “única possibilidade de avanço possível”, na visão de um dos protagonistas dos
                                  acontecimentos daquele momento (SOUZA, 2000).
                                  Sousa (2001) relata a entrega a Santilo de um documento produzido em um encontro
                                  nacional de enfermeiros coordenadores de PACS, em Brasília, com destaque para
                                  uma agenda de prioridades a serem assumidas nacionalmente. Seus formuladores
                                  imaginavam que ele traria consequências importantes para o PACS, mas não tinham
                                  maiores expectativas em que tivesse também influências na criação de um novo
                                  programa, o PSF, como veio a acontecer.
                                  As ideias pensadas e formuladas no âmbito do Ministério da Saúde de Santilo nos idos de
                                  1993 tinham, segundo Girade, forte influência de algumas experiências em andamento no
                                  País, como as de Niterói, do Grupo Hospitalar Conceição, ligado ao Ministério da Saúde, da
                                  SES de São Paulo e de Quixadá, no Ceará. Havia demandas intempestivas do Ministro para
                                  que tudo fosse pensado e formalizado no curto prazo. O fato é que, no dia 27 de dezembro de
                                  1993, se reuniram no Ministério da Saúde representantes12 das experiências citadas, alguns
                                  consultores, e, então, foram definidas as bases do que viria a ser o Programa Saúde da
                                  Família, mediante uma proposta que “não era nenhuma das presentes, mas que procurava
                                  ser uma síntese de todas – o melhor para as condições do País”, segundo Girade.
                                  Nos termos colocados no pensamento de Maquiavel, se Santilo não era detentor de grande
                                  virtude (em termos técnicos e políticos), certamente teve a seu lado o enorme impulso da
                                  fortuna... Com efeito, esse político goiano estava no lugar certo e teve a sorte ou se fez
                                  rodear das pessoas certas, daí nascendo o Programa (hoje Estratégia) Saúde da Família.
                                  O Unicef, que já vinha apoiando também o PACS, teve grande destaque nessa etapa inicial,
                                  proporcionando apoio político, técnico e mesmo financeiro, com a presença de dois de seus
                                  oficiais de projeto, Halim Girade e Oscar Castillo, que atuaram diretamente na produção dos
                                  primeiros documentos referentes ao programa.



                                  12 Os participantes dessa histórica reunião de 1993 foram, além de Henrique Santilo e Halim Girade, Gilson Cantarino, então
                                  Secretário Municipal de Saúde de Niterói; as enfermeiras Heloiza Machado de Souza, do Paraná, e Fátima Souza, da Paraíba; Carlos
                                  Grossman e Airton Stein, médicos do GHC de Porto Alegre; Luis Odorico Andrade, Secretário Municipal de Saúde de Quixadá/CE;
                                  Oscar Castillo, técnico do Unicef; Álvaro Machado, da Fundação Nacional de Saúde; Eugênio Villaça Mendes, da OPAS, além de
                                  representantes da SES-Ceará e SES-Goiás.




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Naquele momento, começam a tomar parte não só nas discussões para a formulação,
                        como também nas primeiras gestões para a implementação do PSF, alguns técnicos que
                        viriam a conferir a ele uma marca nos anos seguintes. Tal grupo técnico, formado mais
                        por enfermeiras do que por médicos, tinha como componentes pessoas com passagem
                        por serviços de saúde, geralmente no interior do País, e além do mais envolvidos com
                        programas de atenção primária. Além disso, não eram pertencentes a uma burocracia
                        pública de carreira federal; antes, vieram para o Ministério da Saúde como autênticos
                        “executivos da saúde” de extração técnica, com atribuição específica de trabalhar no
                        programa recém-criado13.
                        Sobre o que resultou dessa série de eventos significativos, Paim considera que o PSF
                        passa a pertencer, de fato, à categoria das políticas democratizadoras da saúde na década
                        de 90, em contraposição ao caráter meramente racionalizador das políticas de momentos
                        anteriores. Além do mais, credita ao programa em pauta o caráter de verdadeiro “modelo
                        tecnoassistencial de base epidemiológica”, configurando-se como legitimamente ancorado
                        em dois dos conceitos fundamentais da Medicina Social contemporânea, quais sejam a
                        determinação social do processo saúde-doença e o enfoque nos processos de trabalho
                        em saúde (PAIM, 1997).
                        Havia outros ingredientes propícios a mudanças desse tipo no ambiente político, todavia.
                        Carvalho (1994), por exemplo, discute a “introdução da família” nas políticas sociais
                        brasileiras, situando-a dentro de três modalidades de ação, a saber: programas de
                        geração de renda e emprego, programas de complementação da renda familiar e rede
                        de serviços de apoio. Nessa última categoria é que se inserem os programas do tipo
                        PSF, que podem variar quanto a seu foco de ação, desde abordagem aos problemas de
                        cada indivíduo até o apoio intensivo a famílias em situações críticas.
                        Vasconcelos (1999) descreve essa “valorização da família nas políticas sociais” como
                        algo instituído, na verdade, ao longo de toda a história da construção do sistema de
                        saúde brasileiro, relatando os diversos componentes dessa natureza encontrados na
                        legislação previdenciária, desde seus primórdios na década de 20, embora a vigência
                        das contradições dadas pelo medicocentrismo e pela dependência tecnológica e de
                        capital de tal sistema. Entretanto, foi na sociedade civil que esse aspecto obteve maior
                        visibilidade, citando os casos da Sociedade São Vicente de Paulo e Pastoral da Criança,
                        entre outros.



                        13 Entre as pessoas do grupo técnico primordial estavam Heloiza Machado de Souza, Fátima de Sousa, Eliane Dourado,
                        Marilena Gentile, Danuza Fernandes, Arindelita Arruda e também Halim Girade, além de outros que permaneceram na condução
                        do PSF por vários anos (alguns ainda permanecem).
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A escolha de 1994, pela ONU, como o Ano Internacional da Família também teria tido
                                  impacto indutor sobre a política brasileira e de outros países do mundo, ao valorizar os
                                  conceitos de família e de comunidade, ainda segundo Vasconcelos (1999), criando-se
                                  assim um “clima cultural” propício para determinadas inovações das políticas sociais,
                                  com elas os próprios programas PACS e PSF.
                                  Houve, portanto, muitas mudanças na saúde, desde meados da década de 80, dadas
                                  pela intensa movimentação política e social pela reforma da saúde no País (ESCOREL,
                                  1987; GOULART, 1996) e pela “construção local” do sistema de saúde, que resultou
                                  da ampliação da atuação municipal na saúde. Concorreu também para tal quadro de
                                  transformações a consolidação de um novo e efetivo arcabouço legal para o sistema,
                                  com as Normas Operacionais Básicas de 1993 e 1996, que, sem dúvida, forneceram
                                  inédito substrato para que experiências como a Saúde da Família pudessem florescer. E
                                  floresceram, sem dúvida, libertos das amarras de um debate profundamente ideológico
                                  e marcado pelo (legítimo) sentimento de resistência ao arbítrio, que se viu superado
                                  após a passagem dos “anos de chumbo”.
                                  A vinculação e a coerência do PSF com os princípios do SUS foram amplamente afirmadas
                                  desde os documentos originais do programa, que ressaltam sua contribuição para a
                                  reorientação do modelo assistencial a partir da atenção básica e buscando outra dinâmica
                                  de atuação nas unidades de saúde, com maiores responsabilidades e vínculos entre os
                                  serviços de saúde e a população. Diretrizes operacionais são então oferecidas, a saber:
                                  (a) Caráter substitutivo, complementaridade e hierarquização; (b) Adscrição de clientela;
                                  (c) Cadastramento; (d) Instalação das unidades do PSF; (e) Composição e atribuições
                                  das equipes; (f) Atribuições dos membros da equipe (médico, enfermeiro, auxiliar de
                                  enfermagem e agente comunitário). Sobre a reorganização das práticas de trabalho,
                                  enumeram-se, entre outros aspectos, o processo de diagnóstico da saúde da comunidade;
                                  a abordagem multiprofissional; o desenvolvimento de mecanismos de referência; a
                                  educação continuada; além do estímulo à ação intersetorial e ao controle social.
                                  O PSF, assim, apresenta-se como uma possível “mudança de paradigma” nas práticas
                                  assistenciais, tendo como aspectos centrais, entre outros, a superação do curativo para
                                  o preventivo; do eixo de ação monossetorial para o intersetorial; da exclusão para a
                                  universalização. Seu caráter inovador e potencialmente transformador de um modelo
                                  de práticas de saúde parece também evidenciado não só nas análises dos documentos
                                  oficiais, como na visão dos muitos autores que se debruçaram sobre ele nos anos 90.
                                  Fora da corrente principal das análises sobre o PSF, entretanto, Merhy e Franco (2000)
                                  consideram que a proposta originada do Ministério da Saúde careceria de instrumentos
                                  de atuação clínica, o que faria suas ações se desenvolverem como mera “linha auxiliar do


                                                                                                                                           97

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modelo médico hegemônico”, balizando de forma limitada e limitante as possibilidades
                        de competição entre as suas práticas e aquelas desejadas pela corporação médica. Além
                        do mais, afirmaram que o PSF falhava em fazer com que os processos de trabalho nele
                        verificados operassem mediante “tecnologias leves” e que, devido a isso, sua implantação,
                        por si só, não garantiria mudanças substantivas do modelo assistencial vigente, o que seria
                        forte obstáculo a que o PSF viesse a se tornar de fato uma alavanca de transformações e
                        que ele careceria de se reciclar, para incorporar “potência transformadora”.
                        Tal linha mais crítica ao PSF que seus autores denominaram na ocasião como “defesa
                        da vida” permitiu, todavia, o desenvolvimento de programas alternativos ao PSF em
                        algumas cidades, geralmente governadas pelo Partido dos Trabalhadores em meados
                        dos anos 90, como foi o caso de Betim/MG, Caxias do Sul/RS, Campinas/SP e outras.
                        Embora tenha sido formulado no governo de Itamar Franco, sob a gestão de Henrique
                        Santilo no Ministério da Saúde, o PSF, na verdade, encontrou condições de crescimento
                        qualitativo e quantitativo nos anos seguintes, já no governo de Fernando Henrique
                        Cardoso, mais precisamente a partir de 1998, quando o economista José Serra
                        assumiu o Ministério da Saúde. Os dois ministros que sucederam a Santilo, Jatene
                        e Albuquerque, embora não tivessem explicitado em nenhum momento oposição do
                        PSF, não demonstraram vontade ou não obtiveram acumulações políticas para fazer
                        acelerar sua implementação. Jatene, particularmente, fazia uma defesa competente
                        do PSF e tinha uma história profissional compatível com isso, mas se ocupou em
                        sua breve segunda passagem pelo MS, entre 1995 e 1996, mais com os aspectos
                        estruturais e de financiamento, voltando-se para o ato de “arrumar a casa”, conforme
                        expressão que frequentemente utilizava.
                        Sobre a implementação da Estratégia Saúde da Família, Viana e Dal Poz (199_)
                        situam-na como autêntica “reforma da reforma” ou “reforma incremental” em saúde.
                        Esses termos aplicam-se a um conjunto de transformações, tanto no desenho como
                        na operação das políticas, que ocorre de forma separada ou simultânea em relação
                        aos sistemas e aos serviços de saúde, nas modalidades de alocação de recursos,
                        nas formas de remuneração a prestadores e, fundamentalmente, na configuração da
                        prestação de serviços, resultando em mudanças do modelo assistencial em saúde.
                        A implantação do PSF se deu no âmbito da vigência da Norma Operacional Básica de
                        1993, mas sua expansão é especialmente caudatária da NOB de 1996. Essa norma
                        apresentou, com relação às NOB anteriores, a perspectiva de mudança do modelo
                        assistencial, mediante alguns incentivos à organização dos programas PACS e PSF.
                        Para tanto, por meio de portarias e instruções normativas complementares, tais
                        incentivos foram implantados, atribuindo determinado valor financeiro por equipe
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de ACS ou PSF, diretamente proporcional à cobertura populacional alcançada. O
                                   resultado parece ter sido apreciável, pois, correspondendo ao período imediatamente
                                   seguinte à implantação efetiva da NOB 96, foi observada expansão marcante da
                                   implantação de equipes de PACS e de PSF em todo o País. Observa-se, por exemplo,
                                   na NOB 96, uma definição de atenção à saúde que compreende todo um conjunto de
                                   ações realizadas no SUS, em todos os níveis de governo, seja para o atendimento
                                   das demandas pessoais ou ambientais, abrangendo também ações assistenciais
                                   voltadas às pessoas, de forma individual ou coletiva, nos âmbitos ambulatorial e
                                   hospitalar, e ainda no espaço domiciliar. São enfatizados também alguns aspectos
                                   relacionados à mudança do modelo assistencial em saúde, bastante coerentes com
                                   as diretrizes dos PSF, por exemplo: (a) A busca da integralidade; (b) A incorporação
                                   ao modelo dominante do modelo epidemiológico; (c) A associação dos processos
                                   individualizados e de intervenção terapêutica vigentes com “um modelo de atenção
                                   centrado na qualidade de vida das pessoas e em seu meio ambiente, bem como na
                                   relação da equipe de saúde com a comunidade, especialmente com seus núcleos
                                   sociais primários – as famílias”; (d) A incorporação, como objeto das ações, das
                                   pessoas, do meio ambiente e dos hábitos de vida (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1996b).
                                   Em relação ao financiamento, foram várias as transformações que experimentou o
                                   PSF, podendo-se mesmo dizer que a análise desse programa fornece, por si só, uma
                                   ilustração bastante completa a respeito das diferentes formas de transferência de
                                   recursos que já vigoraram ou ainda estão em vigor na saúde14. Assim, entre 1994 e
                                   1995, o financiamento se dava por meio de convênio firmado entre o MS, Estados e
                                   municípios, com critérios de escolha de municípios e cumprimento das exigências
                                   formais de praxe. Isso fazia que fosse garantido um aporte ao gestor nos três primeiros
                                   meses de funcionamento do programa. A partir de janeiro de 1996, ocorre mudança
                                   na sistemática, passando o PSF a ser remunerado pela tabela de procedimentos do
                                   SIA SUS, com valor agora diferenciado para a consulta médica, equivalente ao valor
                                   de duas consultas “normais” (VIANA, 2000). Após fevereiro de 1998, passaram a valer
                                   as novas regras de financiamento ditadas pela nova NOB, iniciando-se assim a era
                                   do Piso da Atenção Básica (PAB), medida responsável por forte indução de mudanças
                                   no modelo assistencial, conforme explicitado por LEVCOVITZ et al (2000). Na NOB



                                   14 Entre as diversas modalidades de transferência de recursos entre esferas de governo, no Brasil, podem ser citadas, (a)
                                   A transferência por convênio, ou seja, ligada a um objetivo específico e submetida a uma prestação de contas especial; (b) A
                                   transferência mediante serviços prestados, efetivada mediante apresentação de uma fatura desses serviços (por exemplo, as
                                   Autorizações para Internação Hospitalar – AIH); (c) A transferência direta e automática, realizada entre fundos de saúde de forma
                                   independente de convênio ou de prestação de algum serviço específico – no caso presente, tal modalidade é realizada per capita,
                                   mediante valor previamente ajustado.




                                                                                                                                                                                    101

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96, a transferência, de acordo com a nova sistemática, partia da exigência de que as
                        equipes de PSF e PACS estivessem atuando integradas à rede municipal, ou que se
                        desenvolvessem estratégias similares de garantia de integralidade da assistência. No
                        que se refere aos mecanismos de transferência de recursos, foram de forte impacto
                        as mudanças estabelecidas com a implantação do PAB, como era o caso da vigência
                        do PAB fixo e variável e também de outros incentivos financeiros, o que acarretou
                        ampliação marcante da transferência de recursos federais.
                        O aspecto mais relevante da implantação do PSF no Brasil, cuja importância merece
                        ser destacada, talvez seja o grau de “centralidade” assumida pela questão da
                        atenção básica dentro da política de saúde, com perda definitiva de seu antigo caráter
                        marginal. Contribuíram para tanto eventos diversos, ocorridos ainda nos anos 90, de
                        natureza política ou simplesmente normativa, como o estabelecimento do Pacto da
                        Atenção Básica entre os gestores dos três níveis de governo; o desenvolvimento de
                        um sistema de informações específico, o SIAB; a edição do Manual da Atenção Básica.
                        Mais recentemente, há de se ressaltar a importância conferida ao programa, agora
                        estratégia, tanto dentro da NOAS de 2001/2002 como do Pacto pela Saúde (2006). Com
                        efeito, a Estratégia Saúde da Família parece ter provocado verdadeiro amálgama das
                        ações de saúde coletiva no País, horizontalizando, de vez, a execução dos programas
                        de saúde, de caráter inédito historicamente. Trata-se de uma nova situação, de fato,
                        dada pela ruptura de velhas barreiras técnicas, ideológicas e institucionais, cedendo
                        lugar a práticas potencialmente unificadas de saúde.


                        8. Síntese e conclusões
                        O Programa Saúde da Família no Brasil (PSF), como toda política social, situa-se
                        em um movimentado cruzamento de princípios e estratégias operacionais, em que
                        são frequentes as contradições, de natureza político-ideológica ou conceitual. Sua
                        implementação no País revela relações complexas entre os aspectos normativos,
                        explicitados no processo de formulação pelo Ministério da Saúde, de um lado e,
                        de outro, as inovações locais decorrentes de sua (re)formulação e implementação
                        descentralizada. Pode-se dizer que o PSF surge no âmbito de um conflito entre a
                        normatização dura, realizada pelo governo federal, e as iniciativas dos governos
                        municipais, nas quais prevalecem a flexibilidade e as inovações de caráter local.
                        Alguns componentes essenciais que unem os conceitos de Atenção Primária à Saúde
                        aos de Saúde da Família podem ser destacados quais sejam: (a) Práticas de saúde
                        como objeto da intervenção do Estado; (b) Processos de trabalho caracterizados
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pela intervenção de uma equipe de saúde dentro de um âmbito generalista; (c)
                                   Atenção voltada não apenas para indivíduos-singulares, mas para coletivos; (d)
                                   Desenvolvimento de vínculos administrativos, geográficos, culturais ou mesmo éticos
                                   entre a clientela e os prestadores de serviços.
                                   Os processos de formulação e de implementação da vertente brasileira de Atenção
                                   Primária à Saúde devem ser compreendidos à luz de certas mediações, ou seja, de
                                   “fios condutores” que perpassariam os variados modos de implantação verificados
                                   no País, tais como: as características geopolíticas; o modo de inserção no sistema
                                   de saúde; o contexto político; os conteúdos técnicos e ideológicos; os atores sociais
                                   influenciadores; a dinâmica dos processos de implantação; a cultura institucional,
                                   dentro de uma ótica de fatores facilitadores, obstáculos e lições.
                                   Algumas boas práticas de implementação de PSF podem, assim, ser inferidas, entre
                                   elas: (a) Capacidade de tomada de decisões, dada por liderança, carisma, espírito
                                   empreendedor, embasamento ideológico, qualificação técnica e continuidade; (b)
                                   Qualificação das equipes técnicas, traduzida por acesso a conhecimentos, tradição
                                   de discussões, base ideológica, empreendedorismo associado à militância; (c)
                                   Boas práticas sociais que se traduzem por práticas políticas e administrativas
                                   transparentes, efetivas e socialmente aceitáveis, que se estendem bem além do campo
                                   da saúde, tendo como substrato ideológico as noções de cidadania, direitos coletivos e
                                   responsabilidade pública; (d) Articulação externa, ou a prática de um cosmopolitismo
                                   político e sanitário; (e) Investimento em padrões efetivamente substitutivos dos
                                   modelos de atenção, buscando a neutralização da competição e do antagonismo
                                   com os elementos estruturais e ideológicos dos velhos regimes de práticas; (f)
                                   Desenvolvimento de inovações gerenciais ou assistenciais; (g) Sustentabilidade em
                                   termos financeiros, de estrutura e de processos, mas também nos planos culturais,
                                   simbólicos e políticos; (h) Efeito espelho: difusão entre pares e outros interlocutores
                                   externos, mediante uma pedagogia do exemplo (GOULART, 2002)


                                   Referências
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                                                                                                                                               103

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                                                                                                                                            107

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LINHA DO TEMPO DA SAÚDE DA FAMÍLIA
                                                                                                                                                                                                      II Mostra Nacional de Produção em Saúde da Família
                                                                                                                                                                                                      Criação dos Centros de Especialidades Odontológicas – CEO
                                                                                                                                                                                                      A Coordenação Nacional de Alimentação e Nutrição passa a
                                                                                                                                                                                                          acompanhar as condicionalidades da saúde das famílias


                                                                                                                                                                                     Início do repasse de recursos às equipes de Saúde Bucal, cada uma
                                                                                                                                                                                         delas vinculada a apenas uma equipe de Saúde da Família
                                                                                                                                                                                     Início da primeira fase do Projeto de Expansão e Consolidação da
                                                                                                                                                                                         Saúde da Família – Proesf
                                                                                                                                                                                     19.100 equipes de Saúde da Família, 176.800 agentes comunitários
                                                                                                                                                                                         de saúde e 6.170 equipes de Saúde Bucal atendem mais de 59
                                                                                                                                                                                         milhões de pessoas
                                                                                                                                                                                     12ª Conferência Nacional de Saúde

                                                                                                                                               Inserção da Saúde Bucal na Saúde da Família: início do incentivo
                                                                                                                                                  às equipes de Saúde Bucal, cada qual delas, obrigatoriamente,
                                                                                                                                                  dever-se-á vincular a duas equipes de Saúde da Família
                                                                                                                                               Avaliação Normativa do Programa Saúde da Família no Brasil
                                                                                                                                               Lançamento do Plano de Reorganização da Atenção à Hipertensão
                                                                                                                                                  Arterial e ao Diabetes Mellitus
                                                                                                                                               Regulamentação da Norma Operacional de Assistência à Saúde do
                                                                                                                                                  Sistema Único de Saúde – NOAS-SUS 01/02 2001
                                                                                                                                                                                                                                                                69,1
                                                                                                                          Publicação da Política Nacional de Alimentação e
                                                                                                                              Nutrição – PNAN
                                                                                                                          I Mostra Nacional de Produção em Saúde da Família
                                                                                                                          Publicação do “Manual de Organização da Atenção
                                                                                                                                                                                                                                     59,7
                                                                  Criação do Piso da Atenção Básica – PAB – pela              Básica”
                                                                      publicação da Portaria GM/MS N 1.882                Criação do Pacto de Indicadores da Atenção Básica                                       54,9
                                                                      Publicação da Portaria GM/MS N 886, que aprova
                                                                      as normas e diretrizes do Programa de Agentes
                                                                      Comunitários de Saúde – PACS – e do Programa                                        11ª Conferência Nacional
                                                                      Saúde da Família – PSF                                                                 de Saúde                     45,4
                                                                                                           Criação do Sistema de Informação
                                                                                                               da Atenção Básica – Siab
                                                    Regulamentação da Norma Operacional Básica do          3.100 equipes de Saúde da Família
                                                       Sistema Único de Saúde – NOB-SUS 1996                   e 79.700 agentes comunitários
                                                    10ª Conferência Nacional de Saúde                          de saúde atendem 10,6
                                                                                                               milhões de pessoas                                 29,7
                              328 equipes de Saúde da Família e
                                 29.098 agentes comunitários de
                                 saúde atendem 1,1 milhão de
                                 pessoas no Brasil

                                                                                                                                               14,7
                                                                                                                       10,6
                                                                                                      5,6
                                         1,1                2,5                 2,9

                                       1994                1995                1996                 1997                1998                   1999                2000                   2001                 2002                  2003                     2004
 108




Miolo_15anos_FINAL.indd      108                                                                                                                                                                                                                         8/12/2010      12:16:39
Criação dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família - Portaria nº 154/SAS/MS, de 24 de janeiro de 2008.
                                                                                            III Mostra Nacional de Produção em Saúde da Família/ IV Seminário Internacional da Atenção Básica - Saúde da Família: “30 anos de Alma
                  saúde pela Lei No 11.350                                                        Ata 20 anos de SUS e 15 anos de Saúde da Família”/III Concurso Nacional de Experiências em Saúde da Família.
               Publicação da Política Nacional de Atenção Básica – PNAB                     Criação do Programa Saúde na Escola (PSE) - Portaria nº 1.861 GM/MS, de 04 de setembro de 2008.
               Publicação da Política Nacional de Práticas Integrativas e                   Inclusão do microscopista na equipe de Saúde da Família - Portaria nº 2.143/GM/MS, de 09 de outubro de 2008.
                                                                                            Incentivos diferenciados para as equipes que atuam no Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI) -
               II Seminário Internacional de Atenção Primária – Saúde da                          Portaria nº 2.920/GM/MS, de 02 de dezembro de 2008.
                   Família: “Construindo a Integralidade do Cuidado”                        29.300 equipes de Saúde da Família, 230.244 agentes comunitários de saúde e 17.807 equipes de Saúde Bucal atendem
               Lançamento do Pacto pela Saúde                                                     mais de 93 milhões de pessoas.
                                                     III Seminário Internacional da Atenção
                                                          Básica – Saúde da Família:                                                                  99,1
        I Seminário Internacional de
            Atenção Primária em Grandes
                                                          “Expansão com Qualidade &
                                                          Valorização dos Resultados”
                                                                                                                        96,1
            Centros Urbanos                          13ª Conferência Nacional de Saúde
        Lançamento do projeto de
            Avaliação para Melhoria de
            Qualidade da Estratégia Saúde
            da Família – AMQ
                                                                                                                                                       V Seminário Internacional da Atenção Básica - Saúde da Família: “Saúde da Família,
                                                                                               93,1                                                         agora mais que nunca”.
                                                                                                                                                       Indução de integração do Agente de Combate às Endemias à equipe de SF, convergindo os
                                                               87,7                                                                                         processos de trabalho entre pro ssionais da APS e Vigilância em Saúde.
                                         85,7                                                                                                          Saúde da Família para Populações Ribeirinhas - exibilização no processo de trabalho das
                                                                                                                                                            equipes e nanciamento de custeio para unidades de saúde uviais.
                                                                                                                                                        Construção de 8.964 novas unidades de Saúde da Família no PAC2.
                      78,6                                                                                                                              Alcance da meta de ACS do “Mais Saúde” (240.000 ACS) de 2011 em agosto de 2010,
                                                                                                                                                            com o expressivo número de 241.988 agentes comunitários de saúde, em
                                                                                                                                                            30.328 equipes de Saúde da Família e 18.982 equipes de Saúde Bucal,
                                                                                                                                                            atendendo mais de 99 milhões de pessoas.
                                                                            Repasse fundo a fundo de recursos federais a Estados,
                                                                                  Distrito Federal e Municípios para aquisição de
                                                                                  equipamentos e material permanente - Portaria nº 2.198
                                                                                  GM/MS, de 17 de setembro de 2009.
                                                                            Instituição do Plano Nacional de Implantação de Unidades Básicas
                                                                                  de saúde para as equipes de saúde da Família - Portaria nº 2.226
                                                                                  GM/MS, de 17 de setembro de 2009, com repasse aos
                                                                                  municípios para a construção de 1289 novas Unidades de
                                                                                  Saúde para as equipes da Saúde da Família.
                                                                            30.328 equipes de Saúde da Família, 234.767 agentes comunitários
                                                                                  de saúde e 18.982 equipes de Saúde Bucal atendem mais de 96
                                                                                  milhões de pessoas.




                                                                                                                                                                                 População coberta
                                                                                                                                                                                pela Saúde da Família
                                                                                                                                                                                     EM MILHÕES

                        2005                  2006                  2007                     2008                      2009                          Agosto de
                                                                                                                                                       2010

                                                                                                                                                                                                                                                              109

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O Brasil visto de fora!

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Programa Saúde da Família (PSF) do Brasil –
                                   uma perspectiva pessoal sobre um programa nacional




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Andy Haines 1

                                   O crescimento e desenvolvimento do programa PSF tem tido impactos
                                   profundos no Brasil, possivelmente sendo o exemplo mais importante da
                                   rápida expansão de um programa de cuidados primários em todo o mundo
                                   nos últimos 20 anos. Tive o privilégio de participar nas primeiras etapas de
                                   sua implantação no final da década de 1980, o que levou à formação do PSF
                                   e é um prazer especial para mim, ver como o programa se expandiu até hoje
                                   alcançando uma ampla cobertura populacional.
                                   No final da década de 1980 houve uma série de características marcantes da
                                         saúde pública e de condições em que se encontravam os cuidados de
                                         saúde no Brasil:


                                           muitas vezes sem atender às necessidades de saúde da população e
                                           levando a uma utilização ineficiente dos recursos.


                                           alunos para os desafios de saúde e sociais mais prevalentes,


                                           dos estados;


                                           de um lado, entre o tratamento curativo e o cuidado médico, e por outro
                                           lado, das atividades preventivas, especialmente dirigidas às doenças
                                           transmissíveis,


                                           municípios
                                   Neste contexto, a incorporação de um Sistema Único de Saúde brasileiro
                                   (SUS) na Constituição de 1988 foi uma evolução bem-vinda e muito necessária.
                                   No entanto, havia muitos problemas políticos, técnicos e organizacionais
                                   que precisavam ser superados para que a visão de um sistema de saúde
                                   moderno, mais equitativo e eficiente, baseado na atenção primária fosse se
                                   tornar uma realidade.
                                   Em primeira mão, pude experimentar algumas dessas importantes
                                   mudanças através de um programa de intercâmbio, apoiado pelo
                                   Conselho Britânico, entre o departamento de minha universidade na época
                                   (Departamento de Atenção Primária da Universidade College London School
                                   of Medicine, UCL) e um programa de formação de médicos de família do



                                                                                                                                                                           113
                                   1. Diretor da London School of Hygiene and Tropical Medicine e professor de Saúde Pública e de Atenção Primária em Saúde




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Serviço de Saúde Comunitária do Grupo Hospitalar Conceição, em Porto Alegre, em
                        conjunto com a Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
                        UFRGS. Este programa, juntamente com o programa do Centro de Saúde São José do
                        Murialdo, eram dois dos poucos programas de formação de cuidados primários em
                        todo o Brasil na época. Graças à liderança de Carlos Grossman e ao excelente trabalho
                        de muitos desses profissionais formados por estes dois programas, um núcleo de
                        excelência foi criado e mantido em um ambiente que nem sempre foi solidário com os
                        objetivos da atenção primária em saúde.
                        Muitos médicos de família brasileiros, incluindo Airton Stein, Magda Costa e Henrique
                        Fontana passaram um tempo no Reino Unido na UCL ou na London School of Hygiene
                        and Tropical Medicine, onde tiveram a oportunidade de conhecer em primeira mão, o
                        papel do médico de família no Reino Unido e a realizar uma pós-graduação. Embora
                        houvesse uma série de influências internacionais no desenvolvimento do PSF, incluindo
                        experiências do Canadá e Cuba, a experiência do Reino Unido, sem dúvida, teve um
                        impacto considerável. O Curso Internacional de Atenção Primária, que ocorreu durante
                        muitos anos na UCL, constituiu uma oportunidade para os médicos de família em todo
                        o mundo, incluindo muitos do Brasil, para aprender sobre metodologia de ensino e a
                        organização da atenção primária no Reino Unido. A importância do médico de família
                        no sistema de saúde inglês, a cobertura populacional, o desenvolvimento de equipes
                        de cuidados primários, a formação de graduação e pós-graduação e o crescimento
                        da gestão do cuidado de doenças crônicas na atenção primária foram relevantes para
                        enfrentar os desafios encontrados no Brasil.
                        Foi oportuno que estas atividades tenham ocorrido num momento em que o ambiente
                        político no Brasil estava cada vez mais receptivo à necessidade de prestar cuidados de
                        saúde acessíveis a toda à população, particularmente a grupos mais desfavorecidos. A
                        alteração do cenário político e o fortalecimento dos processos democráticos, claramente,
                        teve um papel importante em apoiar e facilitar o desenvolvimento da atenção primária
                        no Brasil. Uma série de reuniões com políticos como o Governador do Estado do Rio
                        Grande do Sul e de altos funcionários do Ministério da Previdência Social e do Ministério
                        da Saúde, demonstrou que houve de apoio político para a ampliação da atenção primária.
                        Também, participei de conferências que auxiliaram ampliar o caminho da atenção
                        primária, como em Porto Alegre, em 1993, sobre a descentralização da saúde, e em
                        Santarém, onde participaram muitos dos responsáveis no desenvolvimento da atenção
                        primária na região Amazônica e de países vizinhos.
                        Foi particularmente feliz que essas atividades ocorreram num momento em que o
                        ambiente político no Brasil era cada vez mais receptivo à necessidade de prestar cuidados
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de saúde acessíveis a toda a população, particularmente grupos desfavorecidos. A
                                   alteração do cenário político e o fortalecimento dos processos democráticos claramente
                                   tiveram papel importante no apoio e na facilitação do desenvolvimento da atenção
                                   primária no Brasil. Uma série de reuniões com políticos, como o governador do Estado
                                   do Rio Grande do Sul e de altos funcionários do Ministério da Segurança Social e do
                                   Ministério da Saúde, demonstrou a mim que houve recolhimento de apoio político para
                                   a ampliação da atenção primária. Eu também estava envolvido em conferências que
                                   ajudaram a articular o caminho para a APS, como uma em Porto Alegre, em 1993, sobre
                                   a descentralização dos cuidados de saúde, e outra, em Santarém, que reuniu muitos dos
                                   envolvidos no desenvolvimento dos cuidados primários na Região Amazônica e de um
                                   número de países vizinhos.
                                   Logo após o lançamento do programa, escrevemos um editorial cauteloso e otimista
                                   acolhendo o PSF, mas também reconhecendo os muitos obstáculos a serem superados
                                   para torná-lo bem sucedido e satisfazer as necessidades da população, como a formação
                                   inadequada dos médicos e a necessidade de qualificar o desenvolvimento profissional.
                                   Desde então, é gratificante ver o progresso realizado para enfrentar estes desafios. Um
                                   número crescente de faculdades de medicina já oferece formação em atenção primária
                                   em saúde e há um quadro crescente de residentes nessa área. Sem dúvida, uma série
                                   de desafios ainda permanecem, incluindo as diferenças na qualidade do atendimento, a
                                   necessidade de ampliar a cobertura à toda a população, a expansão dos programas de
                                   formação e a garantia do crescimento continuado e apoio financeiro à atenção primária em
                                   saúde. No entanto, as importantes conquistas alcançadas não podem ser subestimadas,
                                   não só para o povo do Brasil, mas também globalmente. A rápida expansão tem muitas
                                   lições importantes para os países em diferentes níveis de desenvolvimento. Agora é
                                   um bom momento não só de olhar para trás e compreender como o PSF foi capaz de
                                   prosperar e crescer, mas também de olhar para frente procurando desenvolver o seu
                                   pleno potencial.




                                   Referências
                                   1. Haines A. Health care in Brazil. BMJ 1993; 306: 503-506
                                   2. Haines A. Warchow E, Stein A, Mattos Dourado E, Pollock J, Stilwell B. Primary Care at
                                   last for Brazil? BMJ 1995; 310:1346-1347.




                                                                                                                                            115

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A Saúde da Família vista do outro lado do Atlântico




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Luís Pisco   1



                                   Em 1995, o então Presidente da República Portuguesa, Doutor Mário Soares,
                                   discorrendo sobre a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP),
                                   apontou o relacionamento entre Portugal e o Brasil, como o de uma família
                                   com quase 200 milhões de seres humanos, unida pela língua, pela história e
                                   pelo afeto.15
                                   Decorridos mais de 15 anos da alocução presidencial, feita no contexto da criação da
                                   CPLP – e com a família aumentada em alguns milhões de elementos –, não posso
                                   deixar de testemunhar que tem sido esses laços e esse afeto que tenho sentido ao
                                   trabalhar com colegas e instituições brasileiras. Em conjunto, afirmando a nossa
                                   efetiva solidariedade, capacidade de realização e respeito mútuo.
                                   Tem valido a pena, pese o caminho percorrido ser ainda curto e reconhecer-
                                   se que os próximos anos serão importantíssimos para a consolidação desse
                                   relacionamento.
                                   O Brasil, no qual Portugal se revê com tanto orgulho, é o maior país de
                                   língua portuguesa e uma nação com enorme peso e prestígio mundiais, que
                                   seguramente se irá afirmar cada vez mais no palco internacional, assumindo
                                   o protagonismo que lhe é devido.
                                   Tal como entre as duas pátrias, é também de solidariedade o vínculo que
                                   une os médicos de Família de todo o mundo: partilhamos as mesmas
                                   necessidades e expectativas, um mesmo perfil, educação, cultura e ética.
                                   A Medicina de Família e a Saúde da Família não conhecem fronteiras.
                                   Num mundo assim unido, é sempre estimulante partilhar conhecimentos e
                                   trocar experiências com colegas oriundos de diferentes sistemas de saúde,
                                   influenciados por fatores culturais, históricos, políticos e económicos,
                                   também distintos entre si.
                                   Estimulante, principalmente, porque, apesar de todas as diferenças e
                                   semelhanças que marcam o mundo onde exercemos, para todos nós
                                   médicos de Família e também para os outros profissionais da área da Saúde
                                   da Família, o futuro passará, estou certo, pela formação, pela investigação e
                                   pela qualidade do nosso desempenho.
                                   Na área da saúde e mais especificamente na da atenção primária, temos que
                                   passar da proclamação de bons sentimentos e intenções à efetiva cooperação


                                   1   Médico de Família - Coordenador da Missão para os Cuidados Primários. Portugal




                                                                                                                                                      117

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nas mais diversas áreas que integram o exercício da Medicina Familiar. Para tanto,
                        impõe-se dar continuidade e aprofundar muitas das iniciativas realizadas em conjunto,
                        na última década, pelos médicos de Família de Portugal e do Brasil.
                        A primeira experiência relevante conjunta, internacional, de que me recordo foi a
                        organização de um Workshop no 15º Congresso Mundial da Associação Mundial de
                        Médicos de Família (WONCA, junho de 1998, Dublin/Irlanda).
                        Foi um momento de afirmação: apesar de a língua oficial ser a inglesa, conseguiu-se
                        autorização para realizar um workshop luso-brasileiro, em português, o que ocorreu
                        pela primeira vez e onde profissionais de saúde de Portugal e do Brasil puderam falar
                        de tudo um pouco (como habitualmente acontece quando nos encontramos), embora o
                        tema oficial fosse a análise comparativa dos modelos de ensino, qualidade e investigação
                        em atenção primária nos nossos dois países.
                        A segunda iniciativa conjunta, com grande impacto para todos nós, foi a organização
                        do I Encontro Luso-Brasileiro de Medicina Geral, Familiar e Comunitária, realizado no
                        Rio de Janeiro, entre os dias 24 e 27 de outubro de 2000, com seminários envolventes
                        em Fortaleza, Salvador e Porto Alegre. Do lado português, a organização esteve a
                        cargo da Associação Portuguesa dos Médicos de Clínica Geral e da Associação Saúde
                        em Português. No Brasil, coube ao governo do Estado do Rio de Janeiro e à Sociedade
                        Gaúcha de Medicina Geral Comunitária a partilha dessa responsabilidade.
                        Foi, a todos os títulos, um grande acontecimento.
                        O objetivo era claro: incentivar a troca de experiências e informação técnico/científica
                        entre profissionais da área da Medicina Geral, Familiar e Comunitária portugueses e
                        brasileiros, estendendo as sinergias a alguns membros da Comunidade de Países de
                        Língua Portuguesa (CPLP).
                        A adesão dos profissionais foi impressionante: cerca de mil participantes médicos,
                        enfermeiros e outros profissionais de saúde portugueses, brasileiros e alguns, poucos,
                        africanos.
                        Foi, como é uso dizer-se, “sala cheia” do primeiro ao último minuto, no que constituiu uma
                        manifestação do enorme interesse de todos não só pelo intercâmbio das experiências das duas
                        nações, mas também pela qualidade das mesas que preencheram o extenso programa científico.
                        O simples fato de colegas de regiões do globo, tão distantes entre si, terem pensado,
                        juntos, a Medicina Familiar e a Saúde da Família, trabalhando e aprendendo uns com os
                        outros, constituiu uma vitória para as instituições responsáveis pela iniciativa.
                        No quadro da partilha de experiências relativas ao Programa Saúde da Família brasileiro
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e à Medicina Familiar portuguesa, o encontro contribuiu para o reforço do associativismo
                                   e para a revitalização da Associação Brasileira de Medicina de Família e Comunidade,
                                   um passo importante para a integração do Brasil na Confederação Ibero-Americana de
                                   Medicina Familiar, de que hoje é vice-presidente e da qual a APMCG e a ASP eram,
                                   respectivamente, membro titular e membro associado.
                                   O Encontro teve por objetivo facultar a troca de saberes relativos ao Programa Saúde da
                                   Família no Brasil e à Medicina Familiar em Portugal, destacar o contributo da saúde para
                                   o desenvolvimento dos povos e, por fim, centrar a Medicina Familiar como a Medicina do
                                   século XXI. Cumpriram-se todos os objetivos.
                                   A realidade brasileira é bem diferente da portuguesa, até pela imensidade do país irmão,
                                   pelas disparidades sociais, pelas diferenças entre cada Estado com a sua organização
                                   própria no campo da saúde, pela sociedade multiétnica, mas também pelas diferenças
                                   de conceitos e práticas no campo da saúde.
                                   Muito provavelmente, terão sido essas diferenças que suscitaram tão grande curiosidade,
                                   interesse e até entusiasmo em conhecer melhor as experiências, os problemas e os
                                   conceitos.
                                   Nunca mais deixei de ir regularmente ao Brasil… Aos Congressos da Sociedade Brasileira
                                   de Medicina de Família e Comunidade, a cada ano mais participados, mais bem organizados
                                   e com um nível científico mais elevado… E também a muitos Seminários Internacionais
                                   de Atenção Primária/Saúde da Família, organizados pelo DAB do Ministério da Saúde,
                                   onde podemos encontrar personalidades relevantes da Atenção Primária Mundial, a
                                   debater temas cruciais ao desenvolvimento da Saúde da Família… Também, por força
                                   da minha colaboração no Projeto AMQ. Tenho sido, pois, um observador privilegiado da
                                   enorme evolução que na última década a Saúde da Família tem registrado no Brasil,
                                   com os indicadores de saúde a melhorar significativamente, o número de equipes e
                                   de profissionais de saúde da família a crescer, um esforço enorme pela melhoria da
                                   qualidade, pela formação dos profissionais… A demonstrar que valeu a pena a corajosa
                                   aposta política no Programa Saúde da Família.
                                   É sempre com emoção que vejo os gráficos com o mapa do Brasil cada ano mais
                                   preenchido com mais equipes de Saúde da Família e todos os Estados cada vez com
                                   maior densidade de recursos assistenciais, que se traduz, habitualmente, por um azul
                                   mais carregado. Tem sido uma constante nos últimos anos.
                                   Mas o inverso também é verdadeiro, e a curiosidade e o interesse pelo que se passa
                                   em Portugal crescem no Brasil e se traduzem, todos os anos, em visitas a Lisboa de
                                   profissionais de saúde, acadêmicos, gestores, políticos ou simplesmente amigos, que



                                                                                                                                           119

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nos contatam e visitam, procurando se manterem a par das “últimas” sobre a Reforma
                        da Atenção Primária, fazer investigação ou participar de algum estágio profissional.
                        Salientaria, pela sua relevância, a organização do 1º Encontro Luso-Brasileiro de Jovens
                        Médicos de Família em simultâneo com o 3º Encontro Luso-Brasileiro de Medicina Geral,
                        Familiar e Comunitária, que teve lugar no Estoril, de 27 a 30 de setembro de 2008.
                        Com o apoio do DAB e do Ministério da Saúde, foi possível a participação de mais de
                        50 profissionais de saúde do Brasil, que muito enriqueceram o conteúdo científico do
                        Congresso, oferecendo-nos excelente imagem do muito e bom trabalho que atualmente
                        se faz na atenção primária.


                                                            Portugal recebeu, de 2 a 9 de maio de 2009, uma
                                                            missão brasileira de visita às nossas Unidades
                                                            de Saúde Familiar, integrada pelos vencedores
                                                            do III Concurso Nacional de experiência em
                                                            Saúde da Família. Com o objetivo de conhecer o
                                                            funcionamento dos Centros de Saúde e as Unidades
                                                            de Saúde Familiar e estreitar parcerias no campo
                                                            teórico-prático, entre os sistemas de saúde do
                                                            Brasil e de Portugal, os participantes tiveram dias
                        de intensa programação. Foi para nós uma honra que o DAB tenha escolhido Portugal e
                        aguardamos com expectativa uma nova visita de estudo, prevista para este ano.
                        Não posso deixar de referir as cordiais relações pessoais e profissionais que estabeleci,
                        ao longo destes anos, com um enorme conjunto de colegas e amigos brasileiros.
                        Mesmo correndo o risco de cometer a injustiça de omitir muitos, gostaria de destacar
                        os Presidentes da SBMFC, João Falk, Inez Anderson e Gustavo Gusso; Ricardo Donato,
                        Carlos Eduardo (Cadu) e Marcelo Demarzo, assim como alguns parceiros do DAB, como
                        Luis Fernando, Claunara, Núlvio, Eronildo e Iracema. E também o meu mais recente
                        amigo: Oscarino dos Santos Barreto Júnior, grande figura e grande médico de Família.
                        Relembrando quão efêmeras, por vezes, podem ser as boas ideias, as grandes intenções e
                        os projetos de circunstância, termino apontando estes mais de dez anos de trabalho conjunto
                        como fonte generosa de orgulho para todos os que nele tivemos o privilégio de participar.
                        Como disse o escritor José Antunes Ribeiro, “Já que o passado está morto. VIVA O FUTURO”.
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Desafios

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O desafio dos processos e do mercado de trabalho
                                   na APS – o desafio da formação e da qualificação




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Francisco Eduardo de Campos1
                                                                                                                     Ana Estela Haddad2
                                                                                                              Vinícius de Araújo Oliveira3
                                                                                                     Raphael Augusto Teixeira de Aguiar4


                                   1. Introdução
                                   Desde o início de sua implantação, em 1994, a Estratégia Saúde da Família
                                   (ESF) teve crescimento exponencial, tanto em termos de cobertura quanto em
                                   número de profissionais envolvidos. Tal fato trouxe, aliado à melhoria do acesso
                                   dos brasileiros à saúde, uma questão central: como capacitar os trabalhadores
                                   dessas equipes para a prática novoparadigmática da estratégia?
                                   Iniciativas na área de Educação Permanente têm sido implementadas
                                   em todo o território nacional, servindo como modelo e oportunizando
                                   profícua reflexão acerca desse processo, porém sem conseguir reverter
                                   numericamente o déficit de profissionais capacitados nas equipes da ESF. O
                                   primeiro grande esforço nacional para lidar com esse desafio foi a criação
                                   dos Polos de Formação, Capacitação e Educação Permanente em Saúde da
                                   Família, em 1997, que tinham, por objetivo, apoiar a expansão e consolidação
                                   dessa estratégia por meio da qualificação da então incipiente força de
                                   trabalho vinculada à atenção básica. Além disso, esses consistiram nas
                                   primeiras iniciativas a refletir sobre os cursos de graduação e as mudanças
                                   necessárias ao melhor preparo de seus egressos para o exercício adequado
                                   da Saúde da Família (VIANA; FARIA, 2002; GIL et al., 2002).16,17,18,19
                                   A priorização da integração ensino-serviço em todas as suas áreas de atuação,
                                   bem como a oferta de diversas modalidades de capacitação profissional –
                                   como cursos introdutórios, de atualização ou aperfeiçoamento para agentes
                                   comunitários de saúde, supervisores do Programa de Agentes Comunitários de
                                   Saúde (PACS) e instrutores de PSF e PACS, além de cursos de especializações,
                                   residências e programas de educação permanente a distância para profissionais
                                   de nível universitário – foram as estratégias executadas pelos polos para o


                                   1   Médico, Doutor em Saúde Pública. Professor Titular do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Universidade
                                       Federal de Minas Gerais. Secretário de Gestão do Trabalho e da Educação em Saúde do Ministério da Saúde.

                                   2   Cirurgiã-Dentista, Doutora em Ciências Odontológicas. Professora Doutora do Departamento de Ortodontia e
                                       Odontopediatria da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo. Diretora de Gestão da Educação
                                       na Saúde do Ministério da Saúde.

                                   3   Médico, Mestre em Saúde Pública. Profissional Nacional da Organização Pan-Americana da Saúde, descen-
                                       tralizado para o Ministério da Saúde. Coordenador da Rede Universidade Aberta do SUS.

                                   4   Médico, Mestre em Saúde Pública, Doutor em Educação. Pesquisador Associado do Núcleo de Estudos em
                                       Saúde Coletiva da Universidade Federal de Minas Gerais.




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cumprimento de seus objetivos. Entre 1998 e 2001, essas instâncias realizaram 9.647
                        cursos e eventos para um total de 173.233 egressos (GIL et al., 2002).
                        A maior parte desses cursos foi introdutória ou temática de curta duração, mas nesse
                        período foram induzidos os primeiros cursos de especialização em formato de residências
                        multiprofissionais em Saúde da Família e estimulou-se a revisão da especialidade
                        Medicina Geral e Comunitária, que, em 2002, passou a se chamar Medicina de Família e
                        Comunidade (OLIVEIRA; BELISÁRIO, 2005).
                        Os Polos de Saúde da Família, como ficaram conhecidos, foram extintos no início de
                        2003. Uma nova política de educação permanente para os profissionais do SUS começou
                        a ser concebida após a mudança de governo no âmbito federal, tendo sido oficializada
                        posteriormente pela Portaria Ministerial nº 198, de 13 de fevereiro de 2004. Essa política
                        se fundamentava, basicamente, em dois pilares: o conceito de Educação Permanente
                        em Saúde (EPS), da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), que preconiza uma
                        reflexão cotidiana e multiprofissional sobre o processo de trabalho por parte das próprias
                        equipes de saúde; e a participação multissetorial na priorização das iniciativas de
                        qualificação profissional, com a participação de estudantes de graduação, trabalhadores,
                        gestores e representantes do controle social. Para a promoção do primeiro pilar, foi
                        concebido, pela Escola Nacional de Saúde Pública, o Curso de Facilitadores da Educação
                        Permanente em Saúde, na modalidade a distância. Já o segundo pilar se expressou,
                        sobretudo, na criação dos Polos de Educação Permanente, instâncias regionais que
                        diferiam dos polos anteriores por não priorizarem especificamente a Atenção Básica
                        e por não mais serem diretamente coordenadas por instituições acadêmicas, atuando
                        como “dispositivos do SUS para a discussão da Educação Permanente” (BRASIL, 2004).
                        Essa política também não conseguiu reverter o déficit de qualificação no qual se
                        encontravam os profissionais de Saúde da Família. A própria natureza desse mercado de
                        trabalho é responsável por algumas dificuldades: a sua expansão contínua assim como
                        a significativa rotatividade de profissionais observada nessa estratégia são fatores que
                        contribuem para a manutenção desse déficit, uma vez que há sempre profissionais recém-
                        formados ou sem qualificação específica para a Saúde da Família ingressando nela. Além
                        disso, a inexistência de uma direcionalidade específica para a atenção básica agravou o
                        déficit: entre janeiro de 2003 e junho de 2005, durante a vigência dos Polos de Educação
                        Permanente, apenas 47,72% do recurso empenhado pelo tesouro nacional para esse fim
                        até dezembro de 2005 havia sido executado, o que corresponde a menos da metade do total
                        destinado à qualificação daquela força de trabalho específica (CAMPOS; AGUIAR, 2005).
                        Por esse motivo, e também devido à eminência do início da segunda fase do Projeto
                        de Expansão e Consolidação da Saúde da Família (PROESF) – programa financiado
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pelo Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) e que visava
                                   principalmente à expansão daquela estratégia nos municípios com mais de 100
                                   mil habitantes –, o Ministério da Saúde começou a estabelecer estratégias para a
                                   especialização em Saúde da Família em larga escala, buscando superar o gap existente
                                   entre o número de profissionais inseridos na Estratégia e a quantidade de vagas de
                                   especialização disponíveis para a sua qualificação. Inicialmente, o Ministério planejou,
                                   em parceria com a Organização Pan-Americana da Saúde, uma rede colaborativa com
                                   o propósito de apoiar a cooperação entre instituições acadêmicas que ministravam,
                                   ou pretendiam ministrar, cursos de especialização em Saúde da Família. A Rede
                                   Multicêntrica de Apoio à especialização em Saúde da Família nas Grandes Cidades
                                   (Rede MAES), embora não tenha se constituído a priori em uma política estruturada para
                                   proporcionar a colaboração desejada, possibilitou uma primeira aproximação daquelas
                                   instituições e o início de discussões sobre o assunto. Visando aprofundar os mecanismos
                                   de cooperação e a participação das instituições acadêmicas envolvidas, a Rede MAES
                                   foi posteriormente convertida em uma ação do Programa Mais Saúde, a Universidade
                                   Aberta do SUS (UNA-SUS), do qual se falará mais adiante.


                                   2. Estratégias articuladas para formação e qualificação
                                   Apesar de terem exercido um importante papel na formação de uma massa crítica para
                                   a APS nacional, as estratégias tradicionais de descentralização de recursos para o nível
                                   local, financiamento de especializações presenciais e residências não foram suficientes
                                   para reverter um quadro de formação profissional com determinantes complexos e
                                   multifatoriais. Nos Documentos de Referência 1 da UNA-SUS, Oliveira, Aguiar e Campos
                                   (2008) previam déficit crescente de recursos humanos qualificados para a Estratégia
                                   Saúde da Família caso se mantivesse a corrente estratégia.
                                   A reversão desse quadro requereu uma política de formação de recursos humanos
                                   estruturada como uma rede de ações voltada para as diversas etapas da educação desses
                                   profissionais. Assim, foram pensadas ações para reorientar a formação da graduação,
                                   acertando o rumo para o futuro; formar lideranças na educação em saúde por meio de
                                   residências em atenção primária e cursos para docentes; e qualificar os trabalhadores
                                   em serviço nas equipes de Saúde da Família.
                                   Para colocar essas ações em marcha, foi necessário criar um conjunto de mecanismos
                                   administrativos e institucionais, de forma a garantir a boa execução física e financeira
                                   dos projetos, obedecendo aos princípios da administração pública, seguindo as
                                   recomendações dos órgãos de fiscalização e controle, em harmonia com o Ministério da



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Educação e guiados pelos princípios do SUS. Assim, foi criada a Comissão Interministerial
                        de Gestão da Educação em Saúde, regulamentando o inciso terceiro do artigo 200 da
                        Constituição; retomou-se o mecanismo de repasse fundo a fundo para o financiamento
                        da política de educação permanente em saúde, reinstaurando o papel de condução e
                        execução das gestões estaduais e municipais do SUS; foram criados mecanismos de
                        pagamento direto de bolsas de estudo pelo Fundo Nacional de Saúde e mobilizado o
                        potencial de educação a distância das universidades públicas brasileiras. Algumas
                        dessas ações são apresentadas a seguir, divididas em iniciativas para reorientar a
                        formação de profissionais e ações para qualificar os profissionais em serviço. Os dados
                        foram obtidos do relatório de gestão da SGTES/MS de 2009 (BRASIL, 2009).


                        3. Ações de reorientação da formação de profissionais para atuar em APS
                        As ações que têm como foco apoiar diretamente as mudanças na graduação em saúde
                        estão organizadas no Programa de Reorientação da Formação Profissional em Saúde
                        (Pró-Saúde), lançado em 2005. As primeiras ações desse programa consistiram na
                        seleção de projetos de reorientação de cursos de graduação, inicialmente apenas para
                        Medicina, Enfermagem e Odontologia e, em 2007, para os demais cursos da saúde.
                        Atualmente, 354 cursos são apoiados técnica e financeiramente, com impacto sobre
                        mais de 100 mil estudantes.
                        Outras ações foram desencadeadas em duas frentes: formação de lideranças e
                        valorização das iniciativas de integração das instituições educacionais com as equipes
                        de Saúde da Família. Para apoiar a formação de lideranças, novas oportunidades foram
                        abertas, como o programa internacional de fellowship em educação na saúde, parceria
                        com o Instituto FAIMER e, mais recentemente, o lançamento do Pró-Ensino na Saúde,
                        programa da CAPES para expansão das pós-graduações stricto sensu nessa área.
                        Para valorizar a integração ensino-serviço, na ESF foi implementado o Programa
                        de Educação pelo Trabalho em Saúde, o PET-Saúde, um instrumento para viabilizar
                        programas de aperfeiçoamento e especialização em serviço dos profissionais da saúde,
                        bem como de iniciação ao trabalho, estágios e vivências, dirigidos aos estudantes da área,
                        de acordo com as necessidades do Sistema Único de Saúde (SUS). O PET-Saúde consistiu
                        em um marco, pois, ao regulamentar o pagamento direto de bolsas de estudos pelo Fundo
                        Nacional de Saúde, vem permitindo a realização de ações educacionais de modo mais
                        eficaz do que o mecanismo anterior, de celebração de convênios e termos de cooperação.
                        Cada grupo PET-Saúde é formado por um tutor acadêmico, 30 estudantes – dos quais
                        12 são bolsistas – e seis preceptores. Foram formados 306 Grupos PET-Saúde, os quais
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desenvolveram atividades no ano letivo de 2009. A formação completa desses grupos
                                   selecionados, ou seja, 37 integrantes em cada grupo, gera o pagamento de 5.814 bolsas
                                   mensais, além da participação de 5.508 estudantes não bolsistas, totalizando 11.322
                                   participantes.
                                   Para apoiar a expansão de residências médicas em áreas estratégicas para o SUS, foi
                                   lançado o Programa Pró-Residência Médica. Duzentos e trinta programas de residência
                                   médica estão sendo apoiados com concessão de 785 bolsas, sendo 23 destes em Medicina
                                   de Família e Comunidade (MFC), totalizando 272 bolsas. Isso significa que 46,5% das 584
                                   vagas em MFC no País são hoje financiadas diretamente pelo Ministério da Saúde.


                                   4. Ações para apoiar a qualificação dos profissionais em serviço
                                   O Programa Telessaúde Brasil utiliza modernas tecnologias de informação e
                                   comunicação para apoiar os profissionais das equipes de Saúde da Família. Centros de
                                   saúde são conectados via internet a equipes universitárias que dão apoio ao processo
                                   de tomada de decisão local por meio da Segunda Opinião Formativa. A distinção
                                   em relação à segunda opinião tradicional reside no seu potencial educacional, pois
                                   o profissional aprende em serviço e suas dúvidas embasam a elaboração de listas
                                   de perguntas e respostas frequentes baseadas em evidências. No final de 2009, 789
                                   municípios já contavam com um total de 1.011 pontos de telessaúde conectados a
                                   dez núcleos, beneficiando 2.796 equipes de Saúde da Família. Certamente a iniciativa
                                   de maior impacto é a oferta de 26.500 vagas em cursos de especialização em SF por
                                   universidades integrantes da Rede Universidade Aberta do SUS (UNA-SUS). A UNA-
                                   SUS permite que os trabalhadores da saúde tenham acesso a ações educacionais
                                   de qualidade certificada, em todo o território nacional, que reconhecem e valorizam
                                   seus conhecimentos prévios, e de forma compatível com seus horários e estilos de
                                   aprendizagem.
                                   Essas vagas são frutos de convênios e termos de cooperação do Ministério da Saúde com
                                   universidades públicas de renome nacional, ou com Secretarias Estaduais de Saúde com
                                   projetos de formação em larga escala em andamento. 4.380 profissionais já iniciaram
                                   os cursos, e as demais vagas serão preenchidas por editais até 2011. Essas instituições
                                   assumiram o compromisso de formar profissionais que estarão capacitados a cumprir
                                   seus papéis na equipe, coordenando seu trabalho com os dos demais, proporcionando
                                   atenção primária resolutiva e de qualidade para as comunidades onde atuam.
                                   Essa ação em andamento formará, em quatro anos, mais especialistas em Saúde da
                                   Família do que o número de profissionais com essa titulação hoje disponíveis. Mesmo



                                                                                                                                          129

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considerando que só 20% das vagas sejam ocupadas por médicos, formará mais do que
                        todo o estoque de especialistas em MFC.
                        UNA-SUS e Telessaúde são estratégias sinérgicas. Os pontos de telessaúde são
                        potenciais locais de realização de atividades educacionais, e os núcleos de telessaúde
                        têm apoiado os cursos, provendo conteúdo educacional digital e tecnologias de
                        informação e comunicação. Ao mesmo tempo, as estratégias de gestão de recursos
                        educacionais da UNA-SUS têm dado maior visibilidade e sustentabilidade à produção de
                        conteúdos pelos Núcleos de Telessaúde, bem como servido de plataforma educacional
                        para reconhecimento das atividades realizadas pelos núcleos.


                        5. Conclusão
                        O Quadro 1, a seguir, sintetiza quantitativamente os avanços obtidos na formação e
                        educação permanente de profissionais para a ESF. Os dados sobre equipes de Saúde da
                        Família implantadas foram obtidos do site do DAB e os relativos a vagas em residências
                        em MFC, do site da Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM). Quanto às vagas
                        garantidas em cursos de especialização em SF e em residências multiprofissionais em
                        saúde, elas foram estimadas até 2006 a partir do trabalho de Pierantoni (2008) e, de 2007
                        em diante, obtidas dos sistemas gerenciais do DEGES.
                        Quadro 1 – Número de equipes de Saúde da Família implantadas e oferta de vagas em residências
                        multiprofissionais, em MFC, e em cursos de especialização em Saúde da Família, Brasil 1998 a 2009

                                                     Nº de ESF                                             Residência
                         Ano                                        Residências MFC    Especialização
                                                    implantadas                                          multiprofissional
                         1.998                          3.062
                         1.999                          4.114
                         2.000                          8.503
                         2.001                          13.155
                         2.002                          16.698           193                860
                         2.003                          19.068           224                860
                         2.004                          21.232           249                680
                         2.005                          24.564           345                680
                         2.006                          26.729           547                920
                         2.007                          27.324           585               1.040                241
                         2.008                          29.300           558               5.200                582
                         2.009                          30.300           584              17.200                710
                        Fonte: DAB, 2010; CNRM, 2010; DEGES, 2010
 130




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A Figura 1 sintetiza esses dados, tornando mais clara a inflexão realizada nos
                                   últimos anos. Até 2005, o número de vagas em cursos de especialização (incluindo
                                   residências) não passava de 7%, tendência que foi revertida pelo apoio às residências
                                   multiprofissionais em saúde, triplicação das vagas de residência em MFC e expansão
                                   maciça de vagas em cursos de especialização em Saúde da Família, por meio da
                                   Universidade Aberta do SUS.
                                   Tudo indica, portanto, que as estratégias atualmente em curso estão sendo eficazes no
                                   sentido de reverter o desalinhamento entre a Estratégia Saúde da Família e o sistema
                                   educacional. Em 2014, no lançamento do livro comemorativo dos 20 anos da ESF,
                                   certamente estaremos em posição muito mais confortável em relação à qualificação
                                   dos profissionais para atuar na atenção primária.
                                      Figura 1 - número de equipes de saúde da família implantadas e oferta de vagas em residências
                                    multiprofissionais, em MFC, e em cursos de especialização em Saúde da Família, Brasil 1998 a 2009

                                             35.000

                                             30.000

                                             25.000

                                             20.000
                                                                                                                                                      Nº de ESF
                                                                                                                                                      implantadas
                                             15.000
                                                                                                                                                      Residências MFC
                                             10.000
                                                                                                                                                      Especialização
                                              5.000
                                                                                                                                                      Residência
                                                                                                                                                      multipro ssional
                                                      1.998




                                                                              2.001




                                                                                                              2.005




                                                                                                                                      2.008
                                                              1.999




                                                                                                                              2.007



                                                                                                                                              2.009
                                                                      2.000



                                                                                      2.002

                                                                                              2.003

                                                                                                      2.004



                                                                                                                      2.006




                                   Referências
                                   BRASIL. Ministério da Educação. Comissão Nacional de Residência Médica. Consulta
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                                                                                                                                                                                      131

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______. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação em Saúde.
                        Departamento de Gestão da Educação na Saúde. Política de educação e desenvolvimento
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Um olhar para o futuro – perspectivas e desafios




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Claunara Schilling Mendonça 1

                                   Desde a segunda metade do século passado, a Atenção Primária à Saúde
                                   (APS) vem se desenvolvendo como orientadora dos sistemas de saúde de
                                   caráter universal em países como Inglaterra, Espanha, Portugal, Suécia,
                                   Holanda, Canadá, Nova Zelândia, entre outros. 20
                                   A APS brasileira está implementada como política de Estado e definida em
                                   um formato abrangente, compreendendo a promoção e proteção de saúde,
                                   prevenção de agravos, diagnóstico, tratamento, reabilitação e manutenção
                                   da saúde. Sendo o contato preferencial dos usuários com o sistema
                                   de saúde, se orienta pelos princípios da universalidade, acessibilidade
                                   e coordenação, vínculo e continuidade, integração, responsabilidade,
                                   humanização, eqüidade e participação social (Brasil, 2004).
                                   Esse conceito evidencia que estamos construindo, no sistema de saúde
                                   brasileiro, uma atenção primária à saúde integral, ampla e abrangente e
                                   não a APS seletiva dos pacotes básicos para “pobres”.
                                   Os sistemas municipais de saúde estruturados a partir da Estratégia Saúde
                                   da Família tem provocado um importante movimento de reordenamento
                                   do modelo de atenção no SUS, que parte do primeiro contato com a
                                   população e das suas necessidades, com cuidado integral e longitudinal
                                   e coordena os usuários na rede de serviços (STARFIELD, 2002). E dessa
                                   forma propicia maior racionalidade na utilização dos demais pontos da
                                   rede de cuidado.
                                   A Saúde da Família, em um esforço tripartite que superou as divergências
                                   político partidárias para avançar na implantação dos preceitos
                                   constitucionais, tem se mostrado capaz de responder às demandas
                                   crescentes e complexas dos problemas de saúde da população brasileira,
                                   como é de se esperar num sistema orientado pela APS. A decisão brasileira
                                   da Saúde da Família ser formada por uma equipe multiprofissional e
                                   orientada para um território de responsabilidade tem permitido aumento
                                   na oferta de ações de promoção da saúde e prevenção de adoecimento e
                                   morte, principalmente por motivos preveníveis por ações dos serviços de
                                   saúde.
                                   São 90 milhões de brasileiros que acessam o Sistema de Saúde por meio
                                   da Saúde da Família, 70 milhões com Saúde Bucal, e a presença dos


                                   1   Médica de Família e Comunidade. Diretora do Departamento de Atenção Básica - Secretaria de Atenção à Saúde -




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                                       Ministério da Saúde




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Agentes Comunitários de Saúde aumenta a oferta da atenção à saúde centrada na
                        família, a orientação comunitária e a competência cultural dessas equipes.
                        Em 2008, com a inclusão dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família – NASF –, reforçamos
                        o desafio da multiprofissionalidade, uma premissa da Saúde da Família no Brasil, que
                        passa a incluir outros profissionais de saúde, de diferentes áreas de conhecimento,
                        aumentando a possibilidade de qualificar o processo de trabalho dos profissionais
                        pela busca permanente de comunicação e troca de experiências e conhecimentos,
                        compartilhando as melhores práticas em saúde nos territórios sob responsabilidade
                        dessas equipes.
                        Os resultados positivos apontados em vários estudos abordando a Saúde da Família
                        abrangem diferentes fatores, como a avaliação dos usuários, dos gestores e dos
                        profissionais de saúde (ELIAS, et al, 2006), à oferta de ações de saúde e ao acesso e
                        uso de serviços (FACCHINI, et al, 2006; PICCINI, et al, 2006), à redução da mortalidade
                        infantil (MACINKO; GUANAIS; SOUZA, 2006), à redução de internações por condições
                        sensíveis à Atenção Primária (MACINKO; GUANAIS, 2009) e à melhoria de indicadores
                        sócio-econômicos da população (ROCHA; SOARES, 2009).
                        Mais especificamente sobre a redução da mortalidade infantil, um indicador clássico,
                        mas permeado por vários dos determinantes sociais da saúde, um estudo demonstrou
                        que isoladamente o aumento na cobertura de Saúde da Família foi capaz de reduzir
                        em 4,6% a mortalidade infantil (MACINKO; GUANAIS; SOUZA, 2006), controlado para
                        vários aspectos relacionados, sendo seu impacto menor somente que a escolaridade
                        materna. Já sobre alguns indicadores sócio-econômicos, outro estudo recente aponta
                        que nas regiões mais pobres do país a implementação da ESF está robustamente
                        associada com o crescimento do emprego em adultos, redução da fecundidade e
                        aumento da escolaridade em, jovens (ROCHA; SOARES, 2009).
                        O relatório anual da OMS de 2008 – “Primary Health Care, now more than ever”,
                        traduzido para o português (HTTP://...)reforça a APS como uma idéia-força após
                        30 anos de Alma-Ata, e faz referência à experiência brasileira (WORLD HEALTH
                        ORGANIZATION, 2008). Ou seja, o desafio da próxima década, para a experiência
                        brasileira de Atenção Primária à Saúde é que a Saúde da Família exerça a função de
                        centro de comunicação nas redes de atenção à saúde.
                        Quais são os desafios para uma atenção primária coordenadora da rede de atenção?
                        Utilizando as diferentes dimensões propostas no relatório anual da OMS de 2008 e os
                        desafios apontados pelo Ministério da Saúde, apresentamos o que foi realizado e os
                        desafios da próxima década:
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1. O desafio do Financiamento:
                                   “Crescimento dos recursos de saúde rumo à cobertura universal”
                                   “Atenção Primária à Saúde não é barata e requer investimentos consideráveis, mas
                                   gera maior valor para o recurso investido do que todas as outras alternativas”
                                   “Sistema pluralístico de atenção à saúde operado num contexto globalizado”. (OMS,
                                   2008)
                                   O Piso de Atenção Básica aumentou 80%, era 10 reais em 2002 e aumentou para 18 reais
                                   em 2009 (R$ 3,4 bilhões, Resolução nº 8, de 27/08/2008 do IBGE, estimativa populacional
                                   de referência de 01/07/08). Se utilizássemos uma atualização monetária, como o INPC
                                   do IBGE, o valor do PAB corrigido em relação a 2002, seria cerca de R$29,00 reais, um
                                   impacto de mais 1,8 bilhão de reais em 2010. O orçamento previsto para 2011, que faz o
                                   PAB fixo chegar a R$ 19,00 reais, impacta o orçamento federal em R$ 3.57 bilhões.
                                   Os incentivos variáveis da Atenção Básica, que refletem os valores federais para a
                                   Estratégia de Saúde da Família, Saúde Bucal e dos Agentes Comunitários de saúde,
                                   passaram de 682 milhões em 2000 para 5.6 bilhões em 2009. Os valores orçamentários
                                   previstos para custear 247.000 Agentes Comunitários de Saúde, 32.500 Equipes de
                                   Saúde da Família, 21.500 Equipes de Saúde Bucal e 1.500 NASFs acumulativamente
                                   até dezembro de 2011, somam 6,57 bilhões de reais.
                                   O investimento para o Plano Nacional de Implantação de Unidades Básicas de Saúde
                                   para as equipes de Saúde da Família, previstos no Programa de Aceleração de
                                   Crescimento – PAC II, soma 1,7 bilhão de reais para a construção de 8.694 UBS nos
                                   próximos quatro anos.
                                   O desafio futuro em relação ao financiamento da APS diz respeito à eficiência alocativa do
                                   SUS, ou seja, a regulamentação da EC 29, com novos recursos para o sistema, devendo
                                   vincular recursos federais e estaduais na atenção primária, permitindo que a Saúde da
                                   Família seja o projeto estruturante do SUS. Nos municípios, recursos adicionais permitirão
                                   inovação na forma de contratação e de pagamento aos profissionais das equipes – o que é
                                   caro na atenção primária são recursos humanos – com modalidades que levem em conta
                                   o bom resultado na saúde das pessoas sob responsabilidade das equipes.


                                   2. O desafio da Saúde da Família orientada às necessidades da população
                                   “Atenção à saúde para toda a comunidade”
                                   “Equipes de Saúde facilitando o acesso e o uso apropriado de tecnologias e medicamentos”


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“Resposta às necessidades e expectativas das pessoas em relação a um conjunto amplo
                        de riscos e doenças”
                        “Promoção de comportamentos e estilos de vida saudáveis e mitigação dos danos sociais
                        e ambientais sobre a saúde” (OMS, 2008)
                        O Brasil tem três importantes características no seu modelo de APS, que nos diferenciam
                        dos outros países: a decisão das equipes multidisciplinares serem responsáveis por
                        territórios geográficos, a presença singular dos agentes comunitários de saúde –
                        competência cultural e a inclusão da saúde bucal no sistema público de saúde.
                        A situação de saúde no Brasil, provocada pela transição demográfica e pela urbanização
                        faz com que o sistema de saúde brasileiro deva responder pela “TRIPLA CARGA de
                        DOENÇAS.” (MENDES, 2009)
                        1. Ainda as doenças infecciosas e parasitárias: dengue, H1N1, malária, hanseníase,
                        tuberculose (etc)
                        2. O aumento das condições crônicas (com o envelhecimento das pessoas) e seus fatores
                        de risco (fumo, sedentarismo, má alimentação) e a
                        3. Violência e as causas externas de morbi-mortalidade
                        Para dar respostas ao aumento das condições crônicas, pelo aumento da sobrevida
                        da população, e consequentemente, ao acúmulo das co-morbidades, os processos de
                        trabalho das equipes devem responder às novas necessidades da população, que não
                        vai obter “cura” para as suas condições crônicas, mas sim o cuidado compartilhado,
                        com autonomia dos sujeitos, que receberão mais informações sobre seus problemas de
                        saúde, melhor seguimento de suas condições crônicas e maior qualidade nos cuidados
                        preventivos, inclusive na prevenção de uso desnecessário de tecnologias.
                        O trabalho em equipe se faz necessário para responder à complexidade dos problemas
                        em atenção primária, exigindo-se conhecimento dos condicionantes da saúde, do risco
                        e vulnerabilidade de famílias ou indivíduos a fim de desenvolver projetos de intervenção
                        específicos. Deve-se reformular saberes e práticas oriundos da formação – realizada nos
                        hospitais e ambulatórios de especialidades médicas – incorporando conceitos das ciências
                        sociais e outros campos – em programas de educação permanente, cursos, discussão
                        de casos e de famílias, consensos e aprendizagem entre pares. A esse processo temos
                        chamado no Brasil de Apoio Matricial – e o temos experimentado na relação das equipes
                        de Saúde da Família com os Núcleos de Apoio a Saúde da Família – NASF. (BRASIL, 2010)
                        Vale destacar que o nó crítico mais citado pelos gestores é a falta de médicos de família
                        e comunidade com perfil e capacidade técnica, e em quantidade suficiente para atender
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ao processo de qualificação da Saúde da família em curso. Mesmo com o esforço do
                                   aumento de vagas de residência em MFC, com os editais I e II do Pró-Residência (PT
                                   Interministerial nº 1.001, de 22 de outubro de 2009), a maior parte delas nem mesmo
                                   são preenchidas. Por essa razão, experiências de ensino-serviço devem ser ampliadas
                                   no Brasil, especialmente nos municípios onde estão localizadas as residências
                                   médicas, , colocando os médicos residentes em MFC vinculados à gestão municipal,
                                   ampliando sua remuneração, mas com a garantia de tempo para sua formação em
                                   serviço, utilizando todos os recursos disponíveis para educação, como o das tecnologias
                                   não presenciais. Faz-se necessário valorizar essa especialidade médica, e que os
                                   estudantes de medicina tenham professores na sua graduação, como referências, por
                                   isso, experiências internacionais, como no Canadá e Espanha passaram pela criação de
                                   departamentos de medicina de família nas faculdades de medicina como um importante
                                   definidor da decisão política de se avançar na consolidação e reconhecimento desses
                                   especialistas. Avançamos com projetos que utilizam as Unidades Básicas de Saúde e
                                   as Equipes de Saúde da Família como espaço de formação dos graduandos nas áreas
                                   da saúde, como é o Pró-Saúde e o PET Saúde, porém, são : o reconhecimento social
                                   desses profissionais, com modelos em quem possam se espelhar, a possibilidade de
                                   educação permanente, a melhoria da infra-estrutura das unidades, a possibilidade de
                                   participação em congressos e eventos científicos e o estímulo à produção intelectual,
                                   cruciais na escolha da atenção primária pelos profissionais como um espaço de
                                   realização do trabalho em saúde.
                                   O papel da enfermagem nessa transição, de uma atenção primária orientadora
                                   do cuidado, que substitui a cura pelo cuidado, a tecnologia densa, pela cognição e
                                   subjetividade, o espaço hospitalar pelo ambulatorial, domiciliar e espaços coletivos, o
                                   da super-especialização médica, pelo generalista e os procedimentos médicos pelos
                                   cuidados da enfermagem , é uma peça chave na oferta da atenção primária à saúde. Faz-
                                   se necessário colocar em prática, na atenção primária, intervenções que contemplem
                                   “valores” e “crenças” das pessoas e isso faz parte da formação e das bases teóricas
                                   da formação da enfermagem, propiciando que nos processos educativos em saúde,
                                   possam facilitar a comunicação, o entendimento, a aprendizagem e dar suporte frente
                                   às situações difíceis, etc (BAUMANN; VALAITIS; KABA, 2009). Do ponto de vista global, e
                                   muito no Brasil, as (os) enfermeiras (os) constituem a maior força de trabalho e fazem a
                                   diferença em relação à oferta de serviços em atenção primária à saúde.
                                   A saúde bucal, ao fazer parte da saúde da família, visa superar a “Odontologia de
                                   Mercado” (NARVAI, 1994), e o trabalho das equipes de saúde bucal estará voltado para
                                   a reorganização de acesso às ações de saúde, garantindo-se a atenção integral aos
                                   indivíduos e às famílias, mediante o estabelecimento do vínculo territorial.


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Em pesquisa recente sobre trabalhadores comunitários em saúde e impactos positivos
                        desses sobre os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), a experiência brasileira
                        de Agentes Comunitários de Saúde (PACS/ESF) alcançou o melhor resultado, obtendo
                        34 pontos de um total de 36, entre 8 países de três regiões (BHUTTA, 2010),. Os anos
                        recentes foram marcados por avanços na regulamentação da profissão dos agentes
                        comunitários de saúde, na sua formação de nível médio e na desprecarização das suas
                        relações de trabalho. Em 2001, 72,4% dos ACS tinham vínculos precários e em 2008,
                        31,8%, sendo que, nesse período, houve um crescimento de 34,7% no nº de ACS, havendo
                        uma distribuição muito heterogênea dessa situação nas diferentes Unidades Federadas,
                        onde não mais que cinco estados puxam essa média para cima.
                        O desafio da próxima década é de reforçar o papel deste trabalhador em “estreitar
                        relações de solidariedade e confiança, construir redes de apoio e fortalecer a organização
                        e participação das pessoas e das comunidades em ações coletivas para melhoria de suas
                        condições de saúde e bem-estar, especialmente dos grupos sociais vulneráveis, uma
                        das recomendações da Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde16.,
                        além de dar sustentabilidade ao piso salarial para esta categoria, em discussão neste
                        momento, sem inviabilizar seu crescimento e a remuneração dos demais trabalhadores
                        do SF.


                        3. O desafio da Gestão
                        “APS como coordenadora de uma resposta ampla em todos os níveis de atenção”
                        “ Regulação do Sistema de Atenção à Saúde buscando o acesso universal e a proteção
                        social em saúde”
                        “Participação institucionalizada da sociedade civil no diálogo político e nos mecanismos
                        de “accountability” (Relatório OMS, 2008)
                        O processo mais complexo na construção dos sistemas de saúde é a articulação
                        dos pontos de atenção. A integração e a coordenação da rede a partir da APS requer
                        mecanismos de gestão ainda incipientes se pretendemos que a Saúde da Família seja
                        capaz de coordenar o cuidado na rede de atenção.
                        Apesar de robustas evidências que maiores coberturas de Saúde da Família
                        apresentam melhores resultados em indicadores de saúde, as unidades básicas de
                        saúde, exclusivamente públicas no Brasil, ainda somam 40,5% no modelo tradicional
                        de atenção primária, ou seja, há uma duplicação de modelos de atenção primária com
                        unidades tradicionais e unidades de saúde da família que gera, no território, competição
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pela clientela, dificuldade de vinculação da população, competição pela inserção da
                                   força de trabalho e gastos adicionais desnecessários. Há, portanto, uma necessidade de
                                   profissionalizar a gestão municipal para organizar sistemas de saúde orientados pela
                                   saúde da família, bem como introduzir gerentes de unidades básicas de saúde capazes
                                   de implementar os mecanismos necessários para que a população adscrita às equipes
                                   usufrua dos quatro atributos exclusivos da APS que são: acesso e utilização (primeiro
                                   contato), de forma integral, ao longo do tempo e com coordenação na rede de atenção.
                                   A gestão orientada pela atenção primária deve partir de um planejamento com base na
                                   população:
                                   1. o registro da população por meio de sistemas informatizados; sobre essa população,
                                   2. a infra-estrutura física e de equipamentos adequada, inclusive de recursos humanos;
                                   3. a implantação de diretrizes clínicas que levem em conta classificação de risco e
                                   vulnerabilidade, e conseqüentemente
                                   4. a definição da programação de exames diagnósticos e de consultas especializadas,
                                   inclusive para a necessidade de atenção compartilhada, adscrevendo também a
                                   população para cada especialista focal;
                                   5. a regulação de acesso do que não é urgência e emergência nem alto custo (regulados
                                   por mecanismos específicos), ou seja, do que é eletivo, e conhecido pelo planejamento e
                                   programação a partir da população, fica à cargo da atenção primária;
                                   6. mecanismo de comunicação da atenção primária como centro de comunicação da
                                   rede – sistemas eletrônicos de comunicação, prontuário eletrônico, listas de espera
                                   inteligentes (que incorporem a classificação de risco/vulnerabilidade). Na própria APS,
                                   quando os pacientes são vistos por vários membros da equipe e informações são geradas
                                   em diferentes lugares (diagnóstico) ou com outros especialistas, para aconselhamento
                                   ou intervenções curtas ou para pacientes específicos, por longos períodos.
                                   7. a capacidade dos profissionais de APS “fazerem a coisa certa” – introdução de
                                   tecnologias de gestão da clínica, na perspectiva de segurança dos pacientes.
                                   Ainda em relação à gestão descentralizada do SUS, 80% dos municípios brasileiros tem
                                   uma população menor de 20 mil habitantes. Para esses municípios, faz-se necessário o
                                   apoio técnico das Secretarias Estaduais de Saúde e de suas estruturas regionais, bem
                                   como a valorização dos Colegiados de Gestão Regionais, responsáveis pela pactuação do
                                   fluxo dos usuários na rede de serviços intermunicipais. Nos municípios maiores, onde se
                                   concentram a duplicidade dos modelos de atenção básica, deve-se superar o enfoque da
                                   atenção primária seletiva, para pobres, expandindo-a para populações economicamente


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integradas. A “nova classe média” brasileira deve receber também a oferta de serviços
                        excelentes de atenção primária, de forma a que não fique sujeita a gastos do próprio
                        bolso em seguros privados de saúde, que não geram confiança, tampouco tem bons
                        indicadores de saúde, e que seja possível, com recursos públicos na atenção primária,
                        reverter os somente 41,6% dos gastos públicos com saúde no Brasil dos 8,45 do Produto
                        Interno Bruto.( http://apps.who.int/ghodata/)
                        A atenção primária resolutiva é capaz de conduzir à sociedade na definição das
                        necessidades e direitos, incorporando o conceito de empoderamento e capital social.
                        Os cidadãos satisfeitos com os serviços que recebem defenderão o modelo público e
                        aprovarão o financiamento necessário para a manutenção da maior política de inclusão
                        social, que é o Sistema Único de Saúde, agora mais do que nunca, orientado pela Saúde
                        da Família.


                        Referências
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 142




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Informações da gráfica
                                          (colofão)




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Memorias da saude no brasil livro

  • 1.
    MINISTÉRIO DA SAÚDE Mem ó ri a s d a Sa ú d e d a F a mí li a n o Bras il M e móri a s d a Saúde da Família 2010 Capa_Livro15(Radilson)  ALTERADA.indd      1 7/12/2010      11:38:59
  • 2.
    MINISTÉRIO DA SAÚDE Secretaria de Atenção à Saúde Departame nto de Atenção Básica MEMÓRIAS DA SAÚDE DA FAMÍLIA NO BRASIL Série I. História da Saúde no Brasil Brasília – DF 2010 Miolo_15anos_FINAL.indd      1 8/12/2010      12:15:32
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    © 2010 Ministérioda Saúde Todos os direitos reservados. É permitida a reprodução total ou parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte e que não seja para venda ou qualquer fim comercial. A responsabilidade pelos direitos autorais de textos e imagens desta obra é da área técnica. A coleção institucional do Ministério da Saúde pode ser acessada na íntegra na Biblioteca Virtual em Saúde, do Ministério da Saúde: http://www.saude.gov.br Tiragem: 1ª edição – 35.000 exemplares Elaboração, distribuição e informações: MINISTÉRIO DA SAÚDE Secretaria de Atenção à Saúde Departamento de Atenção Básica Setor de Administração Federal Sul – SAF/Sul, Quadra 2, Lotes 5 e 6, Bloco II – Subsolo CEP: 70.070-600 – Brasília – DF Fone: (61)3306.8090 E-­mail: [email protected] Home page: www.saude.gov.br/dab Luis Odorico Monteiro de Andrade Supervisão geral: Luis Pisco Claunara Schilling Maria de Fátima de Sousa Coordenação Geral e Supervisão Técnica: Raphael Augusto Teixeira de Aguiar Elisabeth Susana Wartchow Samuel Jorge Moysés Vinícius de Araújo Oliveira Antonio Sérgio de Freitas Ferreira Revisão: Renata Ribeiro Sampaio Ana Paula Reis Elaboração de texto: Colaboração: Adib Jatene Tiago Santos de Souza Ana Estela Haddad Iracema Benevides Andy Haines Colaboração técnica: Antônio Carlile Olanda Lavor Aline Azevedo da Silva Carlos Grossman Celina Marcia Passos de Cerqueira e Silva Claunara Schilling Mendonça Flávio Goulart Francisco Eduardo de Campos Antonio Ferreira Halim Antonio Girade Heloísa Machado de Souza Adaptações: Ivana Cristina de Holanda Cunha Barreto Stúdio de Criação Art Mix Luis Fernando Rolim Sampaio Radilson Carlos Gomes Impresso no Brasil / Printed in Brazil Normalização: Aline Santos Jacob Ficha Catalográfica Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Memórias da saúde da família no Brasil / Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica. – Brasília: Ministério da Saúde, 2010. 144 p. : il. – (Série I. História da Saúde no Brasil) Nota. As imagens utilizadas foram cedidas pela Coordenação do Pacto de Redução da Mortalidade Infantil do Ministério da Saúde. ISBN: 978-85-334-1755-7 1. Saúde da Família. 2. Educação em Saúde. 3. História da Saúde. I. Título. II. Série CDU 613.9-055 Catalogação na fonte – Coordenação-Geral de Documentação e Informação – Editora MS – OS 0452/2010 Títulos para indexação: Em inglês: Memories of Family Health in Brazil Em español: Memorias de la Salud de la Familia en Brasil Miolo_15anos_FINAL.indd      2 8/12/2010      12:15:32
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    Sumário APRESENTAÇÃO ................................................................................................................................................... 7 MEMÓRIAS ............................................................................................................................................................ 9 Desenvolvimento da saúde da família no Brasil ................................................................................................ 10 O agente comunitário: um novo profissional da saúde ..................................................................................... 16 Assim nasceu o programa de Saúde da Família no Brasil ................................................................................ 20 Saúde da Família no Brasil: do programa a política ......................................................................................... 26 Saúde da Família: uma proposta que conquistou o Brasil ................................................................................ 30 Saúde é mudança! .............................................................................................................................................. 36 A nova cara da saúde no Brasil – a medicina de família e comunidade ........................................................... 40 Mais uma história de mineiro............................................................................................................................. 46 Da reflexão crítica no movimento estudantil à participação na construção da estratégia saúde da família .......... 52 Saúde da Família no Brasil: de movimento ideológico a ação política ............................................................. 58 O BRASIL VISTO DE FORA! ............................................................................................................................... 111 Programa Saúde da Família (PSF) do Brasil – uma perspectiva pessoal de um programa de marco ......... 112 A Saúde da Família vista do outro lado do Atlântico........................................................................................ 116 DESAFIOS.......................................................................................................................................................... 123 O desafio dos processos e do mercado de trabalho na APS – o desafio da formação e da qualificação ....... 124 Um olhar para o futuro – perspectivas e desafios ........................................................................................... 134 Miolo_15anos_FINAL.indd      3 8/12/2010      12:15:33
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    Apresentação Miolo_15anos_FINAL.indd     5 8/12/2010      12:15:35
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    O Programa Saúdeda Família nasce, em dezembro de 1993, fundamentado em algumas experiências municipais que já estavam em andamento no País. Surge como uma proposta ousada para a reestruturação do sistema de saúde, organizando a atenção primária e substituindo os modelos tradicionais existentes. Dezessete anos depois, a história nos mostra que a decisão do Ministério da Saúde de investir nesse caminho foi acertada. Inicialmente um programa financiado por transferências conveniais de recursos, temos hoje uma estratégia de abrangência nacional em todos os Estados da federação e quase 100% dos municípios. A Saúde da Família tornou-se uma política de Estado e um dos pilares de sustentação do Sistema Único de Saúde. O caminho até aqui não foi fácil e os desafios ainda são muitos, mas o trabalho desenvolvido por 238 mil agentes comunitários de saúde, 31 mil equipes de Saúde da Família e 19 mil equipes de Saúde Bucal, atuantes em todo o território nacional, com o apoio dos gestores locais, estaduais e federal, alcançou conquistas como a ampliação do acesso da população brasileira aos serviços de saúde, promoção da equidade e melhoria de indicadores de saúde. É com imenso prazer que apresento A Trajetória da Saúde da Família no Brasil, um trabalho de resgate da memória dessa estratégia que mudou definitivamente o panorama do sistema de saúde brasileiro. É também um presente a todos que participam desta caminhada e fazem dessa empreitada uma jornada vitoriosa. Boa leitura! Ministério da Saúde 7 Miolo_15anos_FINAL.indd      7 8/12/2010      12:15:37
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    Adib D. Jatene1 Minha inclusão no capítulo da Atenção Básica de Saúde iniciou-se em 1979, quando, na condição de diretor do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, órgão da administração centralizada da Secretaria Estadual da Saúde, fui indicado para exercer o cargo de Secretário Estadual da Saúde. No ano anterior, na Assembleia Geral da Organização Mundial da Saúde, tinha sido criado o slogan: “Saúde para todos no ano 2000”, dando ênfase à Atenção Primária à Saúde, que deveria prevalecer sobre o atendimento hospitalar. Havia na cidade de São Paulo, em suas áreas periféricas mais carentes, um forte movimento popular, coordenado pelas comunidades eclesiais de base, cujo objetivo era conseguir atendimento às reivindicações da população no tocante aos problemas de saúde mais elementares, como a existência de centros de saúde que garantissem a vacinação das crianças da área. A zona leste da cidade era a que exibia maior organização, com o chamado “Movimento de saúde da zona leste”. Tinha atuação marcante tanto dos médicos sanitaristas da Secretaria quanto das autoridades religiosas, comandadas por D. Angélico Sândalo, bispo auxiliar, encarregado dessa área da cidade. Compareci como Secretário a muitas assembleias populares nessa e em outras áreas da cidade, comprovando a ausência em extensas áreas do mínimo para o atendimento, pelo menos, básico da população. Esse contato, por vezes conflituoso, com a população, que, além das assembleias nos bairros, dirigia-se frequentemente, por ônibus fretados, à sede da Secretaria, onde eram invariavelmente recebidos pelo Secretário, ensinou-me a verdadeira situação de carência que verbalizei com algumas frases como: “O problema do pobre não é ele ser pobre, mas o de que seus amigos também são pobres”, ou “Só tem assistência quem puder chegar ao posto de atendimento com seu próprio meio de locomoção, o que para a maioria da população quer dizer ‘a pé’”, ou ainda “Política não á a arte do possível, mas a arte de tornar possível o necessário”. Levantar o necessário obrigou a Secretaria a realizar planejamento abrangente, que, só para a área metropolitana, resultou na proposta de 490 centros de saúde e 40 hospitais. Na proposta dos centros de saúde, prevíamos a contratação do que na época se chamavam educadoras sanitárias, que deveriam ser recrutadas no seio da população abrangida pelo centro de saúde, cada uma controlando cerca de 11 1 Diretor Geral do Hospital do Coração - São Paulo - Professor Emérito da Faculdade de Medicina de São Paulo - FMUSP - Coordenador da Comissão de Avaliação das Escolas Médicas -SESu/ Miolo_15anos_FINAL.indd      11 8/12/2010      12:15:42
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    1.000 pessoas. Essapauta específica não pôde ser cumprida, pois a política de pessoal exigia concurso público, que resultaria em pessoal com credenciais muito superiores ao que se pretendia, e com pessoas que não moravam na área, sendo, portanto, inadequada. O programa chamado Plano Metropolitano de Saúde foi parcialmente financiado pelo Banco Mundial, que, pela primeira vez em sua história, apoiava um projeto de saúde em região metropolitana. Em nossa gestão de 38 meses, conseguimos construir, associados à Prefeitura de São Paulo, perto de 100 unidades básicas, mas que não contavam com visitadoras. Apenas no Vale do Ribeira tivemos sucesso em implantar um programa de agentes de saúde, que persiste até nossos dias. Depois que deixei a Secretaria, continuei acompanhando as ações de saúde a distância. Sobreveio a Constituição de 1988, considerando saúde como direito do cidadão e dever do Estado, mas implantando um sistema misto, já que a atividade foi considerada livre à iniciativa privada. Esta se organizou baseada no sistema de pré-pagamento, que vinha dos anos 60. O sistema público foi considerado como único, o SUS, com comando exclusivo em cada esfera de governo e baseado na descentralização, com participação social. Ele se organizou com fundo e conferências nacionais, estaduais e municipais, e com comissões intergestoras bipartite e tripartite. A partir de 1990, na gestão Alceni Guerra, começou a se estruturar o Programa de Agentes Comunitários de Saúde, que herdei nos oito meses, em 1992, quando, pela primeira vez, ocupei o Ministério. Nesse curto período, foi possível realizar a 9ª Conferência Nacional de Saúde, que consagrou a descentralização que foi deflagrada na gestão de Jamil Haddad por Gilson Carvalho, que ocupava a Secretaria de Assistência à Saúde, que começou a implantar tipos de gestão municipal, desde a incipiente, o parcial, até a semiplena. O Ministro Haddad foi substituído pelo Ministro Henrique Santillo, iniciando a implantação do médico de Família, que não tinha vínculo com os agentes comunitários, os quais tiveram participação importante na contenção da epidemia de cólera. Quando cheguei ao Ministério, em 1995, pela segunda vez, uma das primeiras audiências foi com as enfermeiras Heloisa Machado e Maria de Fátima Souza. Elas me apresentaram a proposta de criação do Programa de Saúde da Família, com a vinculação de cada cinco ou seis agentes a um médico, uma enfermeira e um ou dois auxiliares de enfermagem, que atuavam em um posto de saúde. Cada agente cuidava de 100 a 200 famílias, as 12 Miolo_15anos_FINAL.indd      12 8/12/2010      12:15:42
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    quais participavam doprocesso de seleção do agente, que passava a cadastrar a população daquele núcleo e visitar mensalmente cada família, servindo de intermediário no atendimento do posto com os demais membros da equipe, restabelecendo duas características para o atendimento médico, que era o vínculo e a responsabilidade de quem atende para com quem é atendido. A proposta coincidia com o que eu pretendera implantar quando Secretário e não consegui por causa da exigência do concurso público. Tinha claro na minha mente que o agente comunitário não era um funcionário público, mas um funcionário da população e escolhido com a participação daquele núcleo de famílias em cuja casa ele penetraria todo mês. Acolhi prontamente a proposta que me fizeram e, mais que acolher, trouxe o programa para o gabinete, permitindo franco acesso dos gestores do programa ao Ministro. Talvez tenha sido esta a maior contribuição que pude dar quando Ministro. O programa, apesar das limitações, progrediu. Consegui conquistar o apoio da então primeira-dama, Ruth Cardoso, que acompanhou a inauguração de um pequeno posto para duas equipes na periferia de Camaragibe, o que nos valeu o apoio do próprio Presidente, que recebeu em Natal um grupo de agentes para um café da manhã, injetando no programa um estímulo que foi acolhido por todos com grande alegria. A implantação progressiva foi feita com todo o cuidado, para não descaracterizar o programa. Restava convencer as pessoas de que o programa era fundamental para a periferia das áreas metropolitanas. Em Porto Alegre, o Dr. Grossman já mantinha há vários anos um programa semelhante, com grande sucesso. Tentei implantá-lo em São Paulo, mas o prefeito da época estava envolvido com o projeto chamado PAS e não aceitou participar. Por isso procurei o Governador Mário Covas e o Secretário José da Silva Guedes, que concordaram em implantar um módulo em Itaquera, administrado pelas Irmãs do Hospital Santa Marcelina, que ele chamou de QUALIS. Contamos com a colaboração da Dra. Rosa, admitida na gestão Santillo como médica de Família e que atuava na área desde quando eu ocupara a Secretaria da Saúde. O módulo era composto por cerca de 40.000 pessoas. Após cadastramento e verificação das doenças preexistentes, descobriu-se que as gestantes conseguiam, na média, menos de duas consultas de pré-natal. A Secretaria tinha cadastrado sete tuberculosos e os agentes descobriram 62. 13 Miolo_15anos_FINAL.indd      13 8/12/2010      12:15:42
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    Depois que deixeio Ministério e utilizando a Fundação Zerbini, do InCor, administramos dois módulos: um na Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte, com 19 equipes, e outro na região de Sapopemba, com 33 equipes. Conseguimos a colaboração de Davi Capistrano Filho, que coordenou a implantação desses módulos e trouxe pessoas experientes que tinham trabalhado com ele quando Prefeito de Santos, permitindo introduzir acréscimos no Programa. Em todas as unidades havia serviço odontológico. Em cada módulo, criou-se um ambulatório de especialidade, com 12 especialistas em cada um, para dar cobertura aos agentes comunitários. Foi criada uma Casa de Parto, para onde a gestante ia a partir do sexto mês de gravidez, para ser preparada para o parto normal. O pré-natal, com seis a sete consultas, selecionava os casos com gravidez de alto risco que seriam encaminhados ao hospital. Infelizmente, o Conselho Regional de Medicina, que era presidido por um obstetra, proibiu os médicos do programa de encaminhar gestantes para a Casa de Parto. Em que pese a proibição, em mais de 3.000 partos feitos apenas por obstetrizes, não houve nenhum óbito materno. Pouco mais de 300 casos foram encaminhados para atendimento hospitalar. Igualmente foi implantado, nesses dois módulos, atendimento para distúrbios mentais e, em Sapopemba, implantou-se fisioterapia e fonoaudiologia. Quando deixamos o Ministério, já estavam implantadas pouco mais de 2.000 equipes de Saúde da Família e perto de 60 mil agentes. Foi confortador verificar a aprovação dos que nos sucederam com forte ampliação do programa, presente hoje em mais de 4.000 municípios brasileiros e conquistando áreas metropolitanas em todo o País. Infelizmente, as limitações financeiras não têm permitido dobrar o número de equipes, que já ultrapassou 20.000, o que criaria a porta de acesso a cuidados de toda a população. 14 Miolo_15anos_FINAL.indd      14 8/12/2010      12:15:42
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    O agente comunitário: um novo profissional da saúde Miolo_15anos_FINAL.indd      16 8/12/2010      12:15:46
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    Antônio Carlile HolandaLavor 1 Na Unidade Integrada de Saúde de Sobradinho (UISS), da Universidade de Brasília (UnB), tivemos a oportunidade de nos dedicar ao estudo da patologia da população pobre. As doenças e os óbitos das crianças chamavam a nossa atenção. No laboratório de microbiologia, na patologia e nas sessões clínicas, acompanhávamos os esforços para tratar os pequenos pacientes, que evoluíam da desnutrição, associada às parasitoses e às repetidas infecções, para a septicemia e o óbito. A prevenção daqueles casos exigia ação junto às famílias, que estava fora do alcance do trabalho do médico e do enfermeiro, concentrados na unidade. O Serviço Social mostrou-se hábil no trabalho com os pais e as mães ao promover a limpeza da cidade e, noutra ação importante, ao mobilizá- los para o acesso de todas as casas ao sistema de esgoto. A rede, que há tempos estava construída, atendia apenas uma pequena parcela da comunidade. Uma experiência bem estruturada foi desenvolvida na cidade satélite de Planaltina, que possuía a maior área rural do DF, a sua população apresentava condições sociossanitárias mais difíceis, e também era atendida na UISS. Essa cidade satélite dispunha de um centro de saúde, dirigido pelo Dr. Átila Carvalho, e um Centro de Desenvolvimento Social, coordenado pela assistente social Miria Lavor, que participara das atividades em Sobradinho. O trabalho foi coordenado pelo Prof. Frederico Simões Barbosa, da UnB, e contava com o apoio da Universidade, das Secretarias de Serviço Social e de Saúde do Distrito Federal, do FUNRURAL e das Fundações Kellog e Interamericana. Os auxiliares de saúde, embriões dos futuros agentes comunitários de saúde, foram capacitados pelo Serviço Social para as atividades junto às famílias. Com os médicos e enfermeiros, aprenderam os conhecimentos de saúde, dirigidos principalmente para as mães e as crianças, que passaram a frequentar regularmente os serviços de pré-natal e puericultura. O afluxo de crianças à emergência hospitalar diminuiu muito, e caiu a mortalidade infantil. Esse trabalho foi realizado de 1974 a 1978. De 1979 a 1986, Miria e eu, de volta ao Ceará, adaptamos o trabalho do auxiliar de saúde para as condições do sertão na região de Iguatu, especialmente em nossa cidade natal, Jucás. Em 1987, ao implantarmos o SUDS no Estado, contratamos, durante um ano, seis mil mulheres entre 1 Nascido em 1940 em Jucás-Ce, médico, passou da microbiologia para a saúde pública, trabalhou no Instituto de 17 Medicina Preventiva da U. F. Ceará e na Universidade de Brasília - UnB, onde participou da criação do Agente Comunitário de Saúde, desenvolvido posteriormente na S. Saúde do Ceará e adotado pelo Ministério da Saúde. Miolo_15anos_FINAL.indd      17 8/12/2010      12:15:47
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    as mais pobrespara trabalharem como agentes de saúde, novo nome para aquelas auxiliares. O sucesso na redução da mortalidade infantil, que sempre se agravava em anos de seca como aquele de 1987, tornou permanente o programa emergencial. As avaliações coordenadas pelos professores Cecilia Minayo e César Victora e as observações do próprio Ministério da Saúde levaram este a adotar o programa para os demais Estados nordestinos em 1991 e, posteriormente, para todo o País. Os agentes são novamente rebatizados e constituem o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Ao levar as mães para os serviços de pré-natal e de puericultura, vacinar as crianças e estimular o aleitamento materno, a higiene e o uso do soro oral, o agente comunitário de saúde (ACS) fez cair, em todo o Brasil, a mortalidade infantil após a primeira semana de vida. Assim, cresceu o planejamento familiar, e muitos leitos pediátricos dos hospitais foram transformados para o atendimento aos adultos. Foram essenciais para esse sucesso o fortalecimento da democracia, a vitória sobre a inflação, a previdência rural, a elevação do salário mínimo, o aumento da escolarização e a própria Estratégia Saúde da Família. Como observa a professora Judith Tendler, a criatividade do ACS na mobilização das famílias para a promoção da saúde não está no cumprimento mecânico de suas tarefas, mas no compromisso com o trabalho que o desafia. Este é facilitado pela sua convivência com as famílias que acompanha, com as quais compartilha a mesma cultura e as mesmas dificuldades. A característica especial do ACS é sua facilidade de comunicação com as famílias para que se mobilizem para a promoção da saúde. Por essa especificidade, foi reconhecido por lei, em 2002, como nova categoria profissional da saúde. Em 2003/2004 seu curso técnico foi estabelecido para ser realizado em três etapas. Os 200 mil ACS realizaram a primeira etapa e estão à espera da conclusão. As duas etapas restantes prepararão os agentes para a nova agenda da saúde do Brasil: saúde bucal, doenças infecciosas emergentes, abuso do álcool e demais drogas, a violência e as doenças provocadas por causas externas e as doenças degenerativas da crescente população idosa. À medida que se acumulam os conhecimentos das causas e da evolução das doenças, crescem as possibilidades da promoção da saúde e aumenta a importância do ACS. Ele leva aquelas informações às famílias e, mais do que isso, dialoga com elas, aproximando-as do serviço de saúde. Os agentes comunitários de saúde não seguem protocolos fixos, necessitam criar 18 Miolo_15anos_FINAL.indd      18 8/12/2010      12:15:47
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    formas novas deação para alcançar os seus objetivos. Enfrentam diferentes tipos de problemas: culturais, religiosos, educativos, econômicos, mas conseguem trabalhá- los pacientemente no dia a dia. O curso técnico dos ACS tem dois componentes essenciais: primeiro, o fortalecimento de suas características específicas (diálogo interpessoal, laços com a comunidade e com o serviço de saúde, autoestima e criatividade); e segundo, a ampliação dos conhecimentos sanitários direcionados à promoção da saúde. A formação dos ACS é tão importante para a Estratégia Saúde da Família quanto o é a especialização dos demais profissionais para o atendimento na unidade de saúde. Muitos estudos ainda serão necessários para que tenhamos uma equipe de Saúde da Família de melhor qualidade. Em 2007 e 2008, apoiamos com a Miria a implantação do Programa de Agentes Comunitários de Saúde de Luanda, em Angola. Referências PARANAGUÁ SANTANA, J. F. N. Estudo sobre a atenção à saúde infantil no Projeto Planaltina. 1980. Dissertação (Mestrado em Medicina Tropical) – Universidade de Brasília, Brasília, 1980. SIMÕES BARBOSA, F. et al. Atenção à saú de e educação médica: uma experiência e uma proposição. Educacion Médica y Salud, United States, v. 2, n. 1, 1977. MINAYO, M. C. S.; DELIA, J. C.; SVITONE, E. Agentes de Saúde do Ceará. Fortaleza: Unicef, 1990. VICTORA, C. et al. Pesquisas de saúde materno-infantil do Ceará. Relatórios. Unicef/ Secretaria de Saúde do Ceará, 1987 / 1990. TENDLER, J. Good government in the tropics. United States: The John Hopkins University Press, 1997. Tradução: ENAP – Escola Nacional de Administração Pública. Brasília, 1998. 19 Miolo_15anos_FINAL.indd      19 8/12/2010      12:15:48
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    Halim Antonio Girade1 Indignação pela falta de acesso da população ao sistema de saúde. Assim nasceu o Programa Saúde da Família (PSF). O Programa Saúde da Família nasceu da indignação pelo fato de que, no Brasil, o acesso aos serviços de saúde continuava precário ainda em 1993 e cerca de 1.000 municípios brasileiros não tinham nenhum profissional médico nessa época. Essa também foi a mesma razão da existência do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) em 1991. Final de agosto de 1993. Eu já era Oficial de Programas do Unicef e trabalhava em Recife. Fui chamado pelo Dr. Henrique Santillo, que assumiria o Ministério da Saúde (MS) nas próximas semanas, para discutir o que fazer para o fortalecimento do SUS e ser seu assessor especial. Para o futuro Ministro, a minha presença poderia contribuir, já que era uma pessoa de sua confiança, por ter sido o seu Secretário de Saúde do Estado de Goiás e o primeiro coordenador do Programa de Agentes Comunitários de Saúde. Isto é, conhecia o funcionamento do Ministério da Saúde. As primeiras conversas sobre o que poderia vir a ser o Programa Saúde da Família aconteceram em agosto de 1993, algumas semanas antes de o Dr. Henrique Santillo assumir o Ministério da Saúde, em sua residência, em uma chácara no Bairro Jaiara, em Anápolis/GO. Sempre conversávamos sobre as políticas públicas existentes e as que possivelmente poderiam ser implantadas no Sistema de Saúde do Brasil. Entre elas, a Saúde da Família e o pioneiro repasse financeiro do fundo nacional aos fundos municipais de saúde. Articulação política e formulação dos princípios da Saúde da Família. Fiquei com a responsabilidade de formular a proposta técnica do que viria a ser o Programa Saúde da Família e a articulação política dentro e fora do Ministério da Saúde, para viabilizar a proposta de levar a atenção primária às famílias. Sabia que deveria aproveitar as experiências brasileiras que existiam e tentar elaborar uma estratégia totalmente nova e original que contemplasse os agentes comunitários de saúde e que levasse atenção à saúde de qualidade às comunidades. Eu mesmo sempre tinha sido médico de Família em comunidades carentes, tanto em Planaltina quanto em Mambaí, cidades de Goiás. Agora, era uma oportunidade única e um sonho antigo se realizando. A existência dos agentes comunitários de saúde foi fundamental para o PSF. Nenhum programa do mundo tinha o que considerávamos um enorme ganho já de saída, que era a existência do PACS, implantado em 1991 e que 1 Médico formado pela Faculdade Regional de Medicina de São José do Rio Preto e coordenador do Escritório do 21 Unicef em Manaus. Miolo_15anos_FINAL.indd      21 8/12/2010      12:15:50
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    se mostrou sero maior programa de Atenção Primária à Saúde no Brasil, o de maior capilaridade e o que, hoje, abrange mais de 220 mil ACS e cerca de 100 milhões de pessoas. A existência do PACS facilitaria a implantação da Saúde da Família como um modelo totalmente brasileiro. Porto Alegre, São Paulo, Niterói, Recife, Cotia/SP, Planaltina/GO e Mambaí/GO me inspiraram a construir os princípios do PSF. O médico de Família e comunidades Carlos Grossman tinha um serviço de atenção às famílias, na periferia de Porto Alegre, por meio do Grupo Hospitalar Conceição, que também me inspirou. Visitei o projeto. O impacto social era muito bom. Essa experiência, juntamente com o que me informei do Hospital Santa Marcelina, na Zona Leste de São Paulo, de Niterói, de Gilson Cantarino, que visitei, do Instituto Materno Infantil de Pernambuco (IMIP), que conhecia in loco, da experiência de Cotia em São Paulo, além de minha própria experiência em Planaltina e Mambaí, em Goiás, me inspirou e ajudou a acreditar que era sim possível avançar na proposta de levar saúde às casas dos brasileiros. Teria apenas que ter a decisão política e orçamento. O Brasil, com suas experiências, mostrava os caminhos. Não era mais uma proposta de cima para baixo, mas aproveitar o que existia no País. Decisão política pela Saúde da Família durante o voo Varig de Nova Iorque ao Rio de Janeiro. Um voo da Varig de Nova Iorque ao Rio de Janeiro foi o momento em que o Ministro Henrique Santillo decidiu politicamente pela existência da Saúde da Família. Em final de setembro de 1993, fomos a uma reunião da Assembleia da Organização Pan-Americana da Saúde em Washington/USA. Na viagem, durante o nosso retorno ao Brasil, expliquei ao Ministro Henrique Santillo aqueles que poderiam ser os possíveis princípios da Saúde da Família. Depois de mais de seis horas de trabalho a bordo do avião, o Dr. Henrique Santillo, em função das discussões técnicas, decidiu dar o apoio político decisivo para a implantação do PSF. Compilação da proposta no Lago Sul, Brasília, em discussão com Oscar Castillo. Tudo o que foi discutido no voo da Varig de Nova Iorque ao Rio de Janeiro foi compilado em uma casa no Lago Sul, em Brasília, onde morava Oscar Castillo, oficial de saúde do Unicef no Brasil. Oscar Castillo recebeu os papéis que trabalhei com o Ministro Santillo durante o voo e compilou em um documento a proposta de princípios da Saúde da Família para a reunião dos dias 27 e 28 de dezembro de 1993, no Ministério da Saúde. Dezembro de 1993, aprovação técnica do PSF. Os princípios do Programa Saúde da Família discutidos por mim e o Ministro Henrique Santillo, durante o voo de Nova Iorque ao Rio de Janeiro e compilados por Oscar Castillo em Brasília, precisavam ser aprovados tecnicamente e o foram completamente, na reunião de 27 e 28 de dezembro de 1993, no Ministério da Saúde. Essa reunião, composta por 18 profissionais, era importante 22 Miolo_15anos_FINAL.indd      22 8/12/2010      12:15:50
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    porque participariam grandesexpressões da saúde pública brasileira, preocupadas em levar Atenção Primária à Saúde para as famílias e comunidades. Luis Odorico Monteiro de Andrade deu o nome de Saúde da Família. A proposta no início tinha o nome de Medicina ou Médico de Família. Foi a partir de um documento apresentado ao MS para financiamento, de uma Residência Universitária em Saúde da Família, de Quixadá, no Ceará, de novembro de 1993, onde Dr. Odorico trabalhava como Secretário Municipal de Saúde, que se aproveitou o nome do programa. Portanto, posso considerar que o nome de Programa Saúde da Família foi de autoria do Dr. Luis Odorico Monteiro de Andrade. Saúde da Família inicialmente na Fundação Nacional de Saúde (Funasa). Em 1994, era necessário abrigar o PSF em alguma estrutura no organograma do Ministério da Saúde, que fosse um lugar onde tivesse apoio inquestionável. Em uma reunião no Gabinete do Ministro Henrique Santillo, Álvaro Machado, Presidente da Funasa, informou que o abrigaria nessa fundação, que foi a sua moradia inicial. Financiamento da proposta da Saúde da Família. Somente com orçamento e com recursos financeiros é possível fazer políticas públicas. Portanto era preciso financiar a nova proposta de Saúde da Família. Em 1994, Gilson Carvalho, Secretário Nacional de Assistência à Saúde do MS, em 1994, e Gilson Caleman, Secretário Adjunto da Secretaria de Assistência à Saúde (SAS/MS), 1993 a 1994, do MS, viabilizaram a forma de financiamento do Programa Saúde da Família, pela SAS/MS. Homenagem e emoção. Um momento que me emocionou em especial foi ter sido convidado, pela Diretoria do Departamento de Atenção Básica do Ministério da Saúde, a receber uma homenagem especial pelos 15 anos de Saúde da Família no Brasil, em agosto de 2008, durante a 3ª Mostra Nacional de Produção em Saúde da Família. O convite me informava que “a sua presença, na qualidade de fundador deste modelo de atenção que conquistou o Brasil, é de fundamental importância”. Recebi um belíssimo troféu com a logomarca da Saúde da Família e uma silhueta vazada do mapa do Brasil gravado em aço inox. Dividindo a homenagem. Ao escrever este texto, aproveito a oportunidade para dividir a homenagem recebida com aqueles que citei nestas páginas, pois tiveram papel especial na implantação e consolidação da Saúde da Família, e a todos os técnicos do Ministério da Saúde, que, na época, contribuíram efetivamente para fazer esse programa, especialmente Maria Fátima de Sousa, que foi quem acompanhou e contribuiu muito para o fortalecimento da Saúde da Família, Eliana Maria Dourado Mattos, que foi a sua primeira coordenadora, e Heloíza Machado de Souza, que acolheu o programa 23 Miolo_15anos_FINAL.indd      23 8/12/2010      12:15:50
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    em seu Departamento,além dos Coordenadores Estaduais do Programa de Agentes Comunitários de Saúde. O PACS foi precursor da hoje conhecida Estratégia Saúde da Família. A Estratégia Saúde da Família precisa se atualizar. Os princípios formulados em 1993 precisam ser atualizados, pois foi para serem modificados que inicialmente existiram. Já não é possível um médico para 800 a 1.000 famílias, mas tentar chegar a um médico para 1.000 pessoas. A hoje chamada Estratégia Saúde da Família precisa garantir qualidade e humanização de suas equipes. A atual gestão do MS tem todas as condições para fazer isso acontecer, porque tem compromisso e é de qualidade. A atual gestão está fazendo o que é preciso fazer. Manaus, 6 de janeiro de 2010 24 Miolo_15anos_FINAL.indd      24 8/12/2010      12:15:50
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    Maria de FátimaSousa 1 Eu poderia escrever outros livros somente sobre o Programa Saúde da Família (PSF) no Brasil. Escolhi, porém, no limite das páginas, alguns fatos que julgo ser importantes neste reencontro com a história.1 O primeiro diz respeito à entrada em cena dos agentes comunitários de saúde. O Estado da Paraíba foi a unidade federada no Brasil que abriu as “[...] Há uma tremenda portas para que, no Nordeste, em 1991, pudéssemos ser o “piloto” para a força de mudança no implantação do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Com o apoio incalculável de Inez Vasconcelos do Amaral e sua equipe do Estado ar. Há um movimento do Ceará, aprendemos a sonhar fazendo outro jeito de cuidar da saúde das poderoso, tecendo a famílias. Choque de povo! Essa foi a tradução associada em um dos meus livros à chegada dos ACS no portal de entrada para uma longa viagem nos novidade através de sistemas locais de saúde. milhares de gestos de Segundo, o encontro de sujeitos com fome de solidariedade e humanidade. Halim Antonio Girade2, à época Oficial de Programas do Unicef, escritório encontro. Há fome de Recife/PE, e o Ministro Henrique Santillo foram, literalmente, os “oficiais” de humanidade entre nós, uma tripulação em alto voo rumo à implantação do PSF no País. Não é apenas metáfora. O primeiro usou argumentos técnicos, políticos e humanitários por sorte ou por virtude durante o retorno de uma viagem de trabalho (reunião da Assembleia da de um povo que ainda Organização Pan-Americana da Saúde em Washington/USA) que fizeram com que o segundo convencesse um terceiro sujeito, o Presidente Itamar é capaz de sentir e de Franco, a compor uma trama saudável na decisão política de incorporação mudar.” do PSF em sua agenda de governo. De setembro a dezembro de 1993, muitos foram os sujeitos estratégicos Betinho que deram consistência ao tecido do PSF. Entre nós estava o peruano Oscar Castillo, naquele momento Oficial de Saúde do Unicef no Brasil, Luis Odorico Monteiro de Andrade, Eliana Maria Dourado Mattos3, Heloíza Machado de Souza, Gilson Carvalho4 e Gilson Caleman. Os dois últimos foram fundamentais para a definição de busca de recursos para a implantação do PSF e da sustentação do PACS, uma vez que a lógica vigente do financiamento nesse setor não contemplava proposta dessa natureza. Até então se pagava pelos doentes, melhor, pelo pragmatismo da dita vigilância 1 Enfermeira sanitarista, professora da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisadora do Núcleo de Estudos de Saúde Pública (NESP/UnB). Foi Gerente Nacional do PACS (1994) e Assessora Técnica do PSF no Ministé- rio da Saúde (1994-2001) e Município de São Paulo (2001-2003) 2 Atualmente Coordenador do Escritório do Unicef em Manaus. 3 Primeira Coordenadora Nacional do PSF. 4 Secretário Nacional de Assistência à Saúde do MS, em 1994. Miolo_15anos_FINAL.indd      27 8/12/2010      12:15:55
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    à doença. Inverteressa ordem nos colocava diante da necessidade de repensar e trazer à mesa outra agenda. Aquela que tomasse para si o diálogo com Estados, municípios e técnicos do Ministério da Saúde no entorno de estratégias capazes de contribuir para a reorganização e o fortalecimento da atenção básica como o primeiro nível de atenção à saúde no Sistema Único de Saúde (SUS), mediante a ampliação do acesso, a qualificação e a reorientação das práticas das ações e serviços nos territórios o mais perto possível de cada família brasileira. Terceiro, uma agenda a ser tecida em redes em plena transição de governo. Essa tarefa nos colocava no exercício diário e permanente, ao convívio de tempo de crises, rupturas e realinhamentos. A paciência histórica, motivada pela corresponsabilidade da execução dessa agenda, nos fez vigilantes dos valores e princípios que orientavam o PACS e o PSF. Na crise, o que parecia estável e eterno tremia-se de forma quase silenciosa. E, aproveitando contraditoriamente essas oportunidades, sobretudo no momento dos debates calorosos entre as políticas de Estado mínimo e a garantia dos direito sociais, ficamos reafirmando a ética da urgência de um Estado articulador e promotor da saúde de todos os seus cidadãos e cidadãs. Internamente ao Ministério da Saúde, tecíamos firmemente nossas relações com todas as áreas programáticas. Daí o nome Programa. Tínhamos que, naquele momento, não só falarmos a mesma língua, mas também concorrer aos recursos que eram “carimbados” para as áreas programáticas. Assim a estratégia deveria ser nomeada de Programa. Nasce o PSF com essa marca. O que nos custou longas explicações para os “sanitaristas” que assistiam a distância, ora discordando completamente, ora nos provocando a desistir. Sem nos contaminar com agendas negativas, associávamo-nos a mulheres fortes e homens audazes em cada unidade federada do País. A rede de coordenadores estaduais nos afiançava a continuar evitando que os sinos dobrassem nos municípios brasileiros, principalmente os do Nordeste, na “celebração” das mortes infantis. Os primeiros resultados da redução na mortalidade infantil, no aumento do percentual das mulheres que fazem o pré-natal nos três primeiros meses, na diminuição das internações hospitalares por diarreias e infecções respiratórias agudas, no cuidado com os hipertensos, diabéticos, e na ampliação de redes de atenção à saúde em territórios historicamente vazios, sem nenhum acesso, nos sinalizam que as linhas do nosso tecido se fortaleciam. Linhas essas expressas nas Normas Operativas Básicas e de Assistências, edições 96, 2001/2, na criação do Piso da Atenção Básica (PAB), nos pactos governamentais e institucionais a concepção da rede de Polos de Formação, capacitação e educação permanente, envolvendo as escolas formadoras de recursos humanos para o SUS, da criação e reformulação do Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB), das edições anuais dos indicadores do Pacto da Atenção Básica e a realização de pesquisas 28 Miolo_15anos_FINAL.indd      28 8/12/2010      12:15:55
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    oficiais de âmbitonacional e da elaboração e negociação, junto ao Banco Mundial (BIRD), do Projeto de Expansão e Consolidação do Programa Saúde da Família (PROESF). E, por fim, a hora de continuar fortalecendo os fios que entrelaçam o PSF. As estratégias adotadas ao longo desses 16 anos foram capazes de dinamizar as redes internas e externas ao Ministério da Saúde, na indução e mobilização dessas estratégias. Entretanto, é chegada a hora de continuarmos olhando em frente com as lentes focadas em seus dilemas e desafios contemporâneos. Ao mesmo tempo em que reconhecemos as condições criadas à época para a governança e governabilidade à expansão do PSF, não podemos ficar míopes, nem andarmos para trás na história. Uma história que vem escrevendo sua passagem de programa a política... Na consolidação dessa agenda, parafraseando Mário Lago, “o tempo não comprou passagem de volta”. Seguiremos, de cada lugar onde estivermos, voando mais alto na efetiva busca de saúde para todas as famílias brasileiras. 29 Miolo_15anos_FINAL.indd      29 8/12/2010      12:15:55
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    Saúde da Família:uma proposta que conquistou o Brasil Miolo_15anos_FINAL.indd      30 8/12/2010      12:15:57
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    Heloísa Machado deSouza 1 O pedido chegou assim: “Fale de algo marcante, pessoal, nessa trajetória da Saúde da Família...” Imagino que a escolha das vozes que configuram os depoimentos deste capítulo não tenha sido tarefa fácil para a equipe de coordenação, porque, afinal, são tantos atores que participaram ou que participam dessa história que, por mais que pareçam representativos, sempre haverá casos e vivências interessantes que muitos poderiam ou gostariam de contar. O Saúde da Família apresenta trajetória exemplar de um programa que nasceu focalizado e se tornou uma estratégia estruturante de uma Política Nacional de Atenção Básica que tem contribuído significativamente para a consolidação do nosso Sistema Único de Saúde. O Programa Saúde da Família (PSF) nasceu focalizado porque essa era a possibilidade que a conjuntura de 1994 permitia. Para sua implantação, os recursos financeiros eram escassos e transferidos aos Estados e municípios por meio de convênios. Não havia nenhuma estratégia para preparação dos profissionais requeridos. Na verdade, não havia muita crença de que essa proposta que nascia do berço do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) pudesse um dia vingar. No entanto, havia um grupo de pessoas, de origens diversas – secretários municipais de saúde, coordenadores estaduais do PACS, membros de programas de médicos de Família que já existiam em determinados municípios, alguns professores universitários que atuavam com projetos de extensão acadêmica – que, junto com o grupo do Ministério da Saúde, acreditava que urgia colocar em campo uma proposta objetiva para mudar o jeito de se organizar os serviços de saúde, começando por reestruturar a forma de funcionamento dos centros, postos ou Unidades Básicas de Saúde, no efervescente contexto de descentralização e municipalização dos serviços de saúde. Tinha que ser uma proposta em que princípios e “jeito de fazer” pudessem ser compreendidos por qualquer prefeito ou gestor municipal, em qualquer região do País. Em minha opinião, todos nós que estávamos à frente da coordenação do processo naquele período, seja no MS, nas SES ou SMS, não tínhamos muita clareza de como construir essa proposta, mas tínhamos absoluta certeza de onde queríamos chegar. Havia uma sede imensa de ver os serviços de saúde se organizando em uma lógica diferente, com responsabilidade territorial, com profissionais de saúde 1 Enfermeira, mestre em Saúde Coletiva – ex-diretora do Departamento de Atenção Básica do Ministério da Saúde. 31 Miolo_15anos_FINAL.indd      31 8/12/2010      12:15:58
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    rompendo barreiras coorporativase construindo equipes, com essas equipes focando a atenção nas pessoas, nas famílias e nas suas comunidades, e construindo vínculos de compromisso e de corresponsabilidade. Talvez esta tenha sido um dos aspectos mais importantes para o avanço do PSF: uma proposta que começa de forma bastante inacabada, permitindo que muitos fossem contribuindo na reorientação de sua trajetória. E acredito que a ESF continua assim, como um cristal precioso, em constante lapidação. Com pouco mais de 15 anos de existência, é possível afirmar que a ESF configura-se como uma política de Estado, e não mais de governo. A alternância na gestão federal, característica própria e desejável dos processos democráticos, não produziu rupturas na sua condução. É certo que em alguns momentos os passos possuíram velocidades diferentes, mas em todo o tempo houve agregação de valores para qualificar a implementação da ESF em âmbito nacional. Lamentavelmente não podemos fazer a mesma afirmação para o universo total de Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde. Mesmo comprovando êxito, algumas experiências sofrem rupturas ou são estagnadas pelo simples motivo de se constituírem como iniciativas de governos concorrentes. Essa é uma postura que logicamente não atinge somente a ESF, mas áreas e iniciativas de diferentes políticas públicas, demonstrando imaturidade e ausência de compromisso na gestão pública. Voltando ao passado, reporto-me à importância das características que configuravam os 13 primeiros municípios convidados à implantação do PSF. Havia, necessariamente, a representatividade de diferentes partidos políticos nos governos das cidades selecionadas. Era uma sinalização importante para que o Programa não fosse reconhecido como iniciativa de “tal” partido, mas poderia um dia tornar-se consenso do “partido da saúde”. Outras características referiam-se à representatividade de todas as regiões do País e apresentação de diferentes portes econômicos e populacionais. Era importante não caracterizar o PSF como “uma proposta de pobre para pobre”, restrita às áreas mais carentes e como uma proposta viável somente para pequenos municípios. Lamentavelmente a conjuntura do período condicionou os escassos recursos disponíveis à implantação prioritária do PSF nos municípios inseridos no então Mapa da Fome (IPEA, 2003). O financiamento do PSF, que inicialmente ocorria por meio de convênios celebrados entre a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) e Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde, passou também pela modalidade de produção, inserido na tabela SIA-SUS – situação que mantinha absoluta contradição com um processo de trabalho que deveria 32 Miolo_15anos_FINAL.indd      32 8/12/2010      12:15:58
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    estar centrado naprodução da saúde. Só mais tarde, quando a gestão do PSF já estava vinculada à Secretaria de Atenção à Saúde, iniciou-se a revisão da modalidade de financiamento. Travava-se junto com a equipe dirigente da SAS debate fervoroso sobre o futuro do PSF: como deixar de ser um programa focalizado e partir para o destino de ser estruturante na organização dos serviços de saúde? O momento de elaboração da Norma Operacional Básica de 1996 (NOB-SUS/96) foi compreendido como oportunidade ímpar para criar condições que impulsionassem o PSF para esse novo caminho. Em seu texto legal, essa Norma inseriu um capítulo que trazia as bases para um novo modelo de atenção e instituiu o Piso de Atenção Básica (PAB), introduzindo a modalidade de financiamento per capita e os incentivos financeiros aos Programas Saúde da Família e de Agentes Comunitários de Saúde. Mais tarde, percebendo a dificuldade de expansão da Saúde da Família nas grandes cidades, introduziram-se incentivos diferenciados por porte populacional. Como ainda não era suficiente para fazer frente às dificuldades das grandes cidades, buscou-se o aporte de recursos adicionais por meio de acordo de empréstimo. Assim foi formulado, negociado e aprovado o Projeto de Expansão e Consolidação da Saúde da Família (PROESF), acordo celebrado com o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) para apoiar a expansão da cobertura do Programa nos grandes municípios. O projeto deveria apoiar não somente a ampliação do número de equipes, mas também a qualificação, apoiando a estruturação dos serviços de referência, a adoção de tecnologias de informação, o suporte em educação permanente, bem como a adoção de mecanismos de monitoramento e avaliação. Na origem do PAB, foi gerada uma polêmica semântica que ainda ressurge em debates ou em documentos acadêmicos, e que diz respeito ao uso do termo “atenção básica” em lugar de “atenção primária”. Para alguns, a discussão não é semântica, mas de cunho ideológico, pois se explica a escolha do termo “atenção básica” como condição imposta pelas agências internacionais de fomento para cooperar na implantação do Programa no Brasil. Ora, naquele tempo, não havia nenhuma organização internacional que acreditasse no PSF a ponto de acatar acordos de cooperação! Há uma explicação quase inversa: quando a proposta do per capita foi elaborada, ela precisava de um nome. A equipe da SAS, com alguns colaboradores externos, ouviu muitas opiniões de gestores e formuladores do setor saúde. Havia uma advertência clara de que o termo “atenção primária” fazia relação com os pacotes assistenciais reducionistas impostos pelas agências internacionais às regiões em desenvolvimento e que, portanto, qualquer proposta de “piso de atenção primária” poderia ser imediatamente rejeitada pela nomenclatura. Havia, naquele momento, necessidade premente de mudança na modalidade de financiamento – situação que não poderia se subordinar a um provável 33 Miolo_15anos_FINAL.indd      33 8/12/2010      12:15:58
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    longo período dedebate para escolha de uma denominação adequada. Assim surgiu o termo “atenção básica”, como alternativa para evitar a resistência que era anunciada. Somente isso. Muitos podem testemunhar a inexistência de qualquer mão poderosa invisível norteando a escolha dos termos. Apenas a decisão de fazer acontecer no menor tempo possível. O uso da expressão “atenção primária” já está sendo resgatado no Brasil, o que é absolutamente pertinente, uma vez que encontra alinhamento com outros idiomas e facilita o diálogo com experiências de outros países. Hoje, a estratégia utilizada pelos gestores brasileiros para organizar a Atenção Primária à Saúde é não somente observada, mas reconhecida no cenário internacional. Isso representa um valor conquistado ao longo dos últimos 15 anos! Na verdade, mesmo com dificuldades e desafios que ainda ameaçam a sustentabilidade da ESF, é preciso reconhecer o quanto avançamos, principalmente porque no SUS nunca trabalhamos em conjunturas favoráveis. Falar de uma cobertura próxima de 50% da população é falar de mais de 90 milhões de pessoas inseridas em um modelo de atenção que tem potencial para mais e melhores resultados. São 70 milhões de pessoas que passaram a ter atenção odontológica. A ESF está presente em grandes cidades, com cobertura expressiva em Belo Horizonte e com ritmo intenso de expansão da cidade do Rio de Janeiro, apenas para exemplificar. A implantação dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) já se consolida como proposta inovadora na organização do processo de trabalho e fortalece as ações de promoção da saúde. Diferentes metodologias, com destaque para a Avaliação para a Melhoria da Qualidade (AMQ) ou para estudos e pesquisas desenvolvidos em parceria com instituições acadêmicas, configuram-se como indutores à institucionalização do monitoramento e avaliação nos serviços de saúde. Está em campo um conjunto de ações, formuladas e implementadas em parceria estreita com o Ministério da Educação, para incentivar mudanças na formação profissional. Mais recente, um rico processo de elaboração compartilhada e pactuada com gestores estaduais e municipais permitiu a produção de uma série de dispositivos indutores para a integração entre atenção primária e vigilância em saúde, processo indispensável para a construção da integralidade da atenção. Mais importantes que todos esses avanços são as constatações que impactam positivamente na saúde da população que está sob responsabilidade das equipes. Não se fala mais de hipóteses ou de desejos. As pesquisas e os estudos acadêmicos comprovam a potencialidade da ESF na melhoria de indicadores de saúde, especialmente nos grupos populacionais mais expostos às condições de pobreza. Devemos nos orgulhar dos avanços obtidos, mas devemos reconhecer que tudo o que já foi feito é insuficiente para alcançar a sustentabilidade dessa proposta. É insuficiente 34 Miolo_15anos_FINAL.indd      34 8/12/2010      12:15:58
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    para atingir maise melhores resultados e provocar mudanças verdadeiras no processo de trabalho. Como alguns dizem, “parece que estamos em uma encruzilhada”, onde um caminho nos leva a fazer mais dele e o outro aponta para a qualificação do processo. Isso requer a revisão de estratégias e de prioridades para alocação de recursos e a inserção da ESF em um processo radical de implantação das redes de atenção à saúde, onde a APS deve estar qualificada para exercer o papel de coordenação e regulação. Para finalizar, retorno ao passado e recupero a voz de Eliana Caminha, uma enfermeira que ajudou a construir a ESF no município de Olinda/PE. Ela dizia: “Nós não estamos mudando tudo, mas estamos fazendo tudo para mudar”. Talvez a fala de nossa colega possa se tornar um mantra para todos que possuem qualquer poder decisório nas mãos. 35 Miolo_15anos_FINAL.indd      35 8/12/2010      12:15:58
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    Saúde é mudança! Miolo_15anos_FINAL.indd     36 8/12/2010      12:16:00
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    Samuel Jorge Moysés1 Em maio de 1992, a Secretaria de Saúde de Curitiba publicou um número temático especial, dentro da linha editorial “Divulgação em Saúde para Debate”, do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES). Nessa edição, de nº 8, o título central era exatamente “Saúde é mudança”. No editorial, redigido pelo então presidente do CEBES Eleutério Rodrigues Neto (sanitarista de saudosa memória e que emprestou seu nome para o prêmio de Vivências Inovadoras de Gestão no SUS), pode- se ler: “...A municipalização é uma diretriz inexorável, mas principalmente pela busca que só o município pode realizar de fato, de uma real transformação do modelo assistencial.”5 Publicação da Revista Divulgação Eleutério tinha razão: uma busca que só o município em Saúde para Debate, nº 8, do CEBES – Saúde é mudança. pode realizar de fato. O resgate da memória dessa busca e da progressiva implantação da Saúde da Família, no município de Curitiba, não poderia ser feito sem o registro de um episódio associado à publicação acima: trata-se de um fato incidental e, hoje, quase anedótico em face das reminiscências que compõem o repertório curitibano de vivências dos trabalhadores da saúde. Sob outro olhar, revela a riqueza e a beleza do trabalho humano, compondo mosaicos de evidências narrativas, erigidas com os conhecimentos e práticas sociais acionados em experiências singulares. Isso, de fato, faz o SUS ser reinventado todos os dias, com as virtudes e dificuldades de cada município. O episódio: estávamos então ainda em meio à celebração Reunião de gestores com a equipe de nossa publicação junto ao CEBES, recém-ocorrida, e já pioneira de saúde da família, US Pompéia, 1992. nos aventurávamos na busca concreta de uma mudança fundamental no modo de construirmos as ações e serviços de saúde em aliança orgânica com as populações locais. Em reunião com a comunidade local, no Centro de Saúde Pompeia, situado em um dos bairros mais distantes do 1 Ph.D. em Epidemiologia e Saúde Pública, Universidade de Londres, UK; Professor Titular da PUCPR; Professor Adjunto da UFPR; Coordenador do Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal da Saúde de Curitiba. 37 Miolo_15anos_FINAL.indd      37 8/12/2010      12:16:01
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    sul de Curitiba,decidimos implantar a primeira equipe multiprofissional, designada como “equipe de Saúde da Família”. Ocorre que, no dia da implantação, chovia torrencialmente na cidade e ainda tínhamos os móveis e equipamentos que iriam aprestar a unidade de saúde na carroceria do caminhão de mudanças. Um dos trabalhadores da nova equipe de saúde, que então se constituía, comentou: - Tudo bem que “Saúde é mudança”, mas precisava ser em baixo de um dilúvio?! Saúde é mudança, sem dúvida! E aquele foi nosso “rito das águas”. O que veio a seguir já é história, muito bem documentada ao longo dos últimos anos... Assim é a história, por exemplo, da colaboração estreita que tivemos com o Grupo Hospitalar Conceição de Porto Alegre (GHC), então operando em áreas pobres da referida cidade. Os trabalhadores curitibanos eram então assessorados pelo inspirado e saudoso “professor” Dante Romanó; as equipes gaúchas, sob a gestão de Carlos Grossman, à época diretor do GHC, incansavelmente passaram a intercambiar generosamente suas experiências frente a um cotidiano Dante Romanó e Carlos Grossman celebrando a parceria das cidades “co-irmãs”, Curitiba e Porto Alegre, na implantação da Publicação comemorativa dos 10 anos de implantação da Saúde da sanitário de enormes desafios. Tanto foi assim que até mesmo um Saúde da Família, 1992. Família em Curitiba, 2002. médico de Família e Comunidade do GHC foi cedido por um ano para trabalhar na implantação da unidade de saúde São José, no noroeste de Curitiba. Ou, ainda, a história da colaboração com o Department of Family and Community Medicine, University of Toronto, do Canadá, iniciada com a visita do professor Walter Rosser, chefe do referido Departamento canadense, a Curitiba. Ele imediatamente nos apoiou na constituição e formação da primeira turma capacitada dentro do programa para a formação de profissionais em Saúde da Família, realizado na PUCPR. Juntamente com seu colega Yves Talbot, os dois professores canadenses formaram inicialmente 17 “profissionais multiplicadores”, sendo 11 médicos, duas enfermeiras e quatro dentistas. Paulatinamente, com fortalezas e fragilidades, mas com a redução das incertezas que só a experiência concreta pode trazer, essa história seguiu seu curso. Atualmente, com a maturidade que uma política já informada pela evidência (não somente anedótica ou narrativa, mas sustentada em informações robustas) pode alcançar, já somos Mario Tavares, médico de família e comunidade do GHC de Porto Alegre,que permaneceu em Curitiba por aproximadamente 1 ano, na implantação da Saúde da Família, 1992-1993. 38 Miolo_15anos_FINAL.indd      38 8/12/2010      12:16:02
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    dezenas de equipesem Curitiba e, concomitantemente, milhares de equipes implantadas por todo o Brasil. Essa implantação acelerada traz problemas, mas haveria carência de tempo para a sociedade brasileira, com seus milhões de alijados da condição de dignidade sanitária, continuar esperando por mudanças? A despeito de antagonistas poderosos e críticos inconsequentes que não gostariam de ver a ESF e o SUS darem certo no Brasil, essa é uma história de êxito internacionalmente reconhecido. Então, escrever sobre ela é tarefa simples, embora pareça complexa; talvez porque, para alcançar essa simplicidade, muitas complexidades já foram ou estão sendo vencidas. Contudo, desse modo, pode parecer uma interpretação naïve sobre o processo denso que cerca toda a implantação histórica (e anti-hegemônica) da ESF. Portanto, para finalizar, é preciso lembrar Michel Foucault (e Giorgio Agamben), ambos metodologicamente unidos pela ideia de que a “arqueologia” é a única via de acesso ao presente. Esse breve depoimento, que visa acessar com um olhar autoral o presente da ESF, deve ser visto como uma “interpretação arqueológica”. No pequeno sítio de escavação de poucas linhas, vasculhou pequenos fatos históricos, “migalhas” de cotidiano, “restos” de realidades vividas por milhares de trabalhadores e cidadãos brasileiros, que estão construindo revoluções moleculares em cada município, as quais, quando potencializadas, produzirão impacto sobre milhões de vidas, no presente e no futuro. Essa revolução se expressa, em menor ou maior grau, em mudanças no plano político- gerencial, no plano organizativo das práticas de saúde, no plano da formação e do mundo do trabalho, no plano ideológico e cultural da “civilização morena” dos brasileiros. Saúde é mudança! Referências CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE (CEBES). Saúde é Mudança. Revista Divulgação em Saúde para Debate, Curitiba, nº 8, maio 1992. CURITIBA. Secretaria Municipal de Saúde. 10 anos de PSF em Curitiba: a história contada por quem faz a história. Edição comemorativa. Curitiba: SMS, 2002. 39 Visita do Prof. Walter Rosser, chefe do Department of Family and Community Medicine, University of Grupo de profissionais da Secretaria de Saúde de Curitiba que participaram do curso de 5 finais de semana, com Toronto, Canadá, a Curitiba em 1994. professores da Universidade de Toronto, Canadá, realizado na PUCPR, 1995. Miolo_15anos_FINAL.indd      39 8/12/2010      12:16:03
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    A nova carada saúde no Brasil – a medicina de família e comunidade Miolo_15anos_FINAL.indd      40 8/12/2010      12:16:04
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    Carlos Grossman 1 A especialidade de Medicina de Família e Comunidade foi formalmente definida em meados do século XX. No Brasil, passou a existir com clara definição a partir da segunda metade do século passado, quando foram criadas 12 residências médicas nessa especialidade, sendo quatro no Rio Grande do Sul (duas em Porto Alegre – no Murialdo e no Grupo Hospitalar Conceição – uma em Pelotas e uma em Caxias) e oito em outros Estados. Um aspecto interessante para o entendimento do que é Medicina de Família e Comunidade (MFC) é lembrar as denominações anteriores dessa área da Medicina: General Practice, nos Estados Unidos, Grã-Bretanha e outros países; Clínico Geral, médico de família, médico de zona, médico do bairro, médico-geral, entre outras, em nosso meio. A palavra “comunidade” foi acrescentada mais recentemente pela compreensão de que há aspectos que transcendem a pessoa e a família, que exercem grande influência na saúde e na doença. O surgimento das numerosas especialidades médicas acarretou uma redução do interesse na Medicina Geral, levando inclusive ao seu desaparecimento nos Estados Unidos na década de 50. Mas já na década seguinte ficou evidente a sua necessidade e, em 1969, nos Estados Unidos, a General Practice foi recriada com o nome de Medicina de Família. Foi nessa mesma época em que começaram a surgir, de forma independente em diferentes regiões do Brasil, as primeiras residências médicas em Medicina de Família e Comunidade, ligadas ou não a instituições oficiais ou de ensino. Apesar da recente experiência americana, esse movimento na direção de formalizar a Medicina de Família e Comunidade como uma especialidade desencadeou reações contrárias e até mesmo “violentas” vindas de vários setores, mas especialmente dos médicos, do Ministério da Saúde e de muitas personalidades médicas de reconhecido saber e, incrivelmente, da quase totalidade das Faculdades de Medicina do País. Com raríssimas exceções, as Faculdades de Medicina nunca manifestaram – até muito recentemente – o menor interesse nessa área da formação médica. Naturalmente houve algumas exceções e, para ilustrar e destacar, cabe mencionar o Dr. Adib Jatene, que, desde logo, apoiou e trabalhou extensa e intensivamente em todo o País, especialmente em São Paulo, pelo desenvolvimento da Medicina de Família. 1 Médico e internista geral, fundador do serviço de Medicina de Família do Grupo Hospitalar Conceição - Participante do 41 Grupo de Trabalho que criou o Programa de Saúde da Família do Ministério da Saúde em 1993 - Membro da Academia Sul Riograndense de Medicina, atualmente preceptor da Residência de Medicina de Família do Grupo Hospitalar Conceição. Miolo_15anos_FINAL.indd      41 8/12/2010      12:16:05
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    Além dos numerososfocos esparsos que já existiam pelo Brasil, o que deu o maior impulso que desencadeou a maior e mais verdadeira mudança na atenção à saúde no Brasil foi a decisão do Ministro da Saúde Henrique Santillo, no governo do Presidente Itamar Franco, de criar, iniciar o desenvolvimento da Medicina de Família no Brasil inteiro, por meio do Ministério da Saúde, para isso convocando para uma reunião em Brasília, em dezembro de 1993, representantes dos principais núcleos que já trabalhavam com Medicina de Família no País. Esse primeiro e decisivo movimento foi ideia e obra do médico Halim Girade, assessor importante na equipe do Ministro. Com rara sabedoria e um mínimo de interferência pessoal ou do Ministro, ele reuniu as pessoas, propôs a tarefa e não mais interveio, exceto quando solicitado pelo grupo. Creio que se deve a ele o mérito maior da ideia e do modo de transformá-la em realidade em todo o Brasil – apesar das grandes resistências, inclusive dentro do próprio Ministério da Saúde. Apesar de alguns equívocos, como pretender que as Faculdades de Medicina ajudassem, a Medicina de Família avançou quantitativamente, e só não avançou mais qualitativamente por não buscar intensamente a experiência de outros países, como Grã-Bretanha e Cuba, além do Canadá, por exemplo, onde o sucesso da MFC tem sido destacado, muito conhecido e reconhecido mundialmente. Uma exceção notável tem sido a colaboração extremamente positiva com profissionais e instituições do Canadá, especialmente de Toronto. Vale notar que essa colaboração foi um caso notável de Serendipity, isto é, a descoberta inesperada e afortunada de coisas boas, como foi, por exemplo, a descoberta da penicilina. Serendipity foi a palavra cunhada por Horace Walpole para descrever o que aconteceu numa história de fadas do Ceilão chamada “Os três príncipes de Serendipi”. Aconteceu que a Faculdade de Medicina da PUC de Curitiba, desejando ampliar, melhorar o ensino de traumatologia, enviou um grupo de seus professores e dirigentes para visitar no exterior centros destacados nessa área. Em uma das faculdades visitadas em Toronto, o grupo ficou muito impressionado pelo desenvolvimento do Departamento de Medicina de Família – um dos maiores e mais qualificados do mundo. Voltando a Curitiba, propuseram a ampliação do setor de Medicina de Família da PUC, com auxílio de Toronto – o que foi feito de imediato, com benefícios grandes não só para o Paraná e outros Estados brasileiros –, em colaboração que ainda continua em vários pontos do Brasil vários anos após o seu início, impulsionada principalmente pela grande e muito querida figura médica e liderança decisiva no desenvolvimento da MFC no Paraná e no Brasil, que foi o Dr. Dante Romano Jr., prematuramente falecido. Pelo lado canadense, o grande motor dessa colaboração foi o Dr. Ives Talbot, que já fala português fluente. 42 Miolo_15anos_FINAL.indd      42 8/12/2010      12:16:06
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    Tive a venturade participar de vários desses momentos iniciais no Murialdo, no Grupo Hospitalar Conceição, e colaborando durante algum tempo com o Ministério da Saúde após 1993. Nos últimos vários anos, têm-se observado o ingresso mediante concurso de muitos médicos de Família e Comunidade como docentes nas faculdades de Medicina estatais e privadas, principalmente nos Departamentos de Medicina Preventiva e Social, o que pode representar outro fator de transformação progressiva da formação médica no nível de graduação. O médico de Família é a materialização de um desejo e necessidade da maior parte das pessoas e famílias: ter o SEU médico, aquele que conhece e é conhecido do paciente e da família de longa data, que é facilmente acessível e que geralmente acerta no seu atendimento. Numerosos estudos em várias regiões do mundo têm mostrado que essa combinação – médico-geral SEMPRE e especialistas em órgãos e técnicas QUANDO NECESSÁRIO – tem produzido os melhores resultados em termos de satisfação e custo/benefício. A realidade é que o MFC, muito mais que “a porta de entrada” no sistema de saúde, é onde o paciente permanece, “não sai”, e aí resolve mais de 90% dos seus problemas de saúde, incluindo a prevenção e a promoção da saúde. O MFC bem formado tem a virtude de simplificar o atendimento, inclusive pelos demais especialistas, que recebem encaminhamentos já mais bem selecionados, mais apropriados. A ênfase na prevenção e na promoção da saúde não só individual, mas no contexto da comunidade onde a pessoa vive, tem a possibilidade de diminuir progressivamente o volume de doenças. Os gastos com saúde são estratosféricos. A ação do MSF faz com que sejam significativamente reduzidos por meio não só da prevenção, mas também porque nessa modalidade de atendimento tem sido possível reduzir a quantidade de medicamentos usados, o número de exames complementares utilizados e o número e a duração das internações hospitalares. Para a criação e ampliação das Residências, como para a reciclagem dos médicos que não fizeram Residência, é necessário GRANDE INVESTIMENTO de recursos – mas um investimento assim poderia, num futuro não distante, elevar significativamente a extensão e a qualidade dos serviços prestados, como ocorreu em Cuba, a partir de 1984. É importante ressaltar que, apesar de estarmos começando, foram capacitados nesse curto período, desde 1993, numerosos profissionais – médicos, enfermeiros, 43 Miolo_15anos_FINAL.indd      43 8/12/2010      12:16:06
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    agentes de saúdee outros – que têm se revelado como pessoas de extraordinário valor e saber na especialidade. Os evidentes resultados de seu trabalho, com a consequente valorização de seus méritos por colegas de outras especialidades, enfraquecem os que ainda teimam em questionar sua qualificação. A MFC no Brasil cresceu e evoluiu, tornando-se exemplo gigantesco do que pode ser feito para aumentar significativamente a saúde de milhões de pessoas em um curto período de tempo. Parabéns ao Brasil e a todos que ajudaram e fizeram acontecer, e aos que atualmente batalham e se esforçam para dar qualidade e adequação cada vez maiores aos serviços de saúde que são prestados à população brasileira. 44 Miolo_15anos_FINAL.indd      44 8/12/2010      12:16:06
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    Mais uma históriade mineiro Miolo_15anos_FINAL.indd      46 8/12/2010      12:16:10
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    Luis Fernando RolimSampaio1 De tantas e tantos que são, contar uma história ou um fato marcante sobre a Saúde da Família é uma tarefa difícil. Muitas emoções como ver aprovada a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) na tripartite, receber quase que unanimemente o apoio do Conselho Nacional de Saúde à proposta dos NASF e ouvir de personalidades como o Dr. Malehr e a professora Barbara Starfield, em nossos seminários internacionais, que estamos fazendo um trabalho que é uma grande contribuição reconhecida em todo o mundo. Escolhi, entretanto, contar um pouco do que ouvi nesses anos, desde 93, quando assumi a gestão de um pequeno município de Minas Gerais, na região metropolitana de Belo Horizonte. Naquele tempo, a Saúde da Família era um programa que recebia recursos por meio de convênio com o Ministério da Saúde. Como Secretário Municipal de Brumadinho, à época, assumimos o compromisso de implantar cinco equipes cobrindo toda a área rural do município. Foi uma experiência de sucesso, com grande aprovação da população e dos profissionais que lá trabalhavam. Alguns deles, médicos e enfermeiros, continuam na Saúde da Família até hoje. Peregrinaram por vários municípios na região e a cada eleição municipal estavam sujeitos a terem que mudar. Mas persistiram. Naquela época o que ouvia de outros secretários municipais era que “o programa é uma boa ideia”... para áreas rurais e de difícil acesso. Em 97, com a mudança dos prefeitos, mudaram-se os médicos de Brumadinho e eu era um deles. Nova empreitada começava em Ibiá, Minas Gerais, dessa vez não só na zona rural. Implantamos uma cobertura de 100% do município já no primeiro ano do novo governo. Também foi um sucesso. E, novamente convidado a apresentar a experiência em fóruns estaduais e nacionais, passei a ouvir que podia mesmo ser uma boa ideia “para pequenos municípios, longe da capital”. As surpresas que a vida nos traz me levaram a Contagem, onde assumi a Secretaria de Saúde em janeiro de 1999. Em um ano de trabalho, implantamos 85 equipes com 50% de cobertura. A expansão foi monitorada 1 Médico formado na UFMG, especialista em gestão hospitalar pela ENSP e mestre em Saúde Coletiva pelo ISC/UFBA. Na década de 90 participou do processo de descentralização da saúde em Minas Gerais sendo Secretario Municipal de Saúde em Brumadinho, Ibia e Contagem. Participou da direção do COSEMS MG e foi assessor do CONASS , em Brasília. Trabalhou no Ministério da Saúde por vários anos sendo Diretor do DAB 47 de 2005 a 2008. Nos últimos anos tem trabalhado como consultor em atenção primaria e serviços de saúde para diversas instituições internacionais, estando vinculado a Universidade de Toronto, no Canadá. Miolo_15anos_FINAL.indd      47 8/12/2010      12:16:11
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    por pesquisas deopinião pública, e o sucesso também comprovado pela satisfação dos usuários. A saúde, um peso negativo para o governo até então, passou a ser um dos sucessos da administração. Nesse momento já não eram só equipes e pequenos hospitais. Estávamos na segunda maior cidade de Minas e uma das 30 maiores cidades do Brasil. Naquele momento do ano 2000, Contagem era a única cidade acima de 500 mil habitantes com mais de 50% de cobertura em todo o País. Deu certo e aí não era mais a zona rural, nem a cidade do interior distante. Mas ainda existia uma última barreira discursiva: “Não dá certo nas capitais”. Na capital tudo é diferente! Como disse David Capistrano, nos anos 90, a prova de fogo do PSF será chegar às metrópoles, como Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte. Chegou a hora. Na vanguarda, Belo Horizonte tomou a arrojada decisão de cobrir 70% de sua população com a Saúde da Família, com mais de 500 equipes. São Paulo já conta com mais de 1.200 equipes e o Rio de Janeiro, finalmente, se move nessa direção. Trouxe esse exemplo para ilustrar a tese que vou defender: a Saúde da Família, baseada em princípios de uma Atenção Primária à Saúde integral, não é uma política pobre para pobres. Ela pode e deve ser o ponto de contato principal entre a população e o sistema de saúde, deve ser coordenadora do cuidado, deve promover a longitudinalidade e a continuidade da atenção à saúde das pessoas e, essencialmente, deve ser capaz de responder às demandas de quem chega ao serviço, independentemente de estarmos falando das áreas rurais no interior do Nordeste ou de Copacabana, no Rio de Janeiro. Serve sim para todos, incluindo Londres, Barcelona, Estocolmo, Toronto e tantas outras que não são o que poderíamos chamar de cidades pobres. Infelizmente, a sociedade brasileira ainda não tomou essa decisão, ao contrário de sociedades de países como a Suécia, Inglaterra, Espanha, Canadá. Quem tem Atenção Primária à Saúde de verdade são os países ricos, com compromisso com suas políticas sociais e com a equidade. Continuamos nos espelhando, enquanto desejo de consumo, no modelo americano, o mais caro e ineficiente do mundo. Queremos ter acesso direto aos médicos especialistas focais, queremos fazer tomografia para nossa dor de cabeça, mesmo sabendo que a maioria absoluta dessas tomografias é normal e, provavelmente, sequer deveria ter sido indicada. Enfim, praticamos a lei do cuidado inverso: quem tem maiores necessidades tem menos acesso e pior qualidade. Por outro lado, quem menos precisa tem, teoricamente, mais acesso com maior qualidade. Mais acesso com certeza, mais qualidade, nem sempre. Devemos questionar a qualidade e excelência da indicação do uso de tecnologias médicas 48 Miolo_15anos_FINAL.indd      48 8/12/2010      12:16:11
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    desnecessárias, quase nuncainócuas. Veja, de novo, o exemplo dos Estados Unidos, onde a iatrogenia está entre as maiores causas de morte. Nenhum sistema de atenção à saúde é sustentável, em longo prazo, com a escalada de custos e a incorporação desordenada de tecnologia que vivemos no setor nos dias de hoje. Isso disse o Ministro Temporão, no Buenos Aires 30/15, há alguns anos. E o maior risco está exatamente nos chamados países de renda média, como o Brasil, pois nesses, na maioria das vezes, não se regula a incorporação de tecnologia. Outras contradições que vivemos no SUS reforçam as dificuldades de avanços no sentido de um sistema único de saúde liderado pela APS. Uma delas é que ter um médico de Família, e não uma série de especialistas focais como referência para o cuidado cotidiano, é interpretado como coisa para pobre. Pobres canadenses, ingleses, espanhóis, suecos, australianos. Será que a qualidade dos serviços de saúde nesses países é pior que no Brasil? Mesmo se considerarmos somente o sistema privado, nossos indicadores não demonstram isso. Os ricos no Brasil não têm indicadores melhores que a média dos ingleses ou suecos. Segue-se que a Saúde da Família, mesmo sendo prioridade da política pública de saúde no País, não tem conseguido mover as universidades para uma mudança real na formação de recursos humanos na velocidade necessária. O famoso Ecology of the Medical Care já demonstrava, há 40 anos, que quem vai para hospitais de ensino é somente uma ínfima parte da população que necessita de cuidados muito especializados. Entretanto, é aí que nossos médicos e enfermeiros são formados, em hospitais que têm como objeto do ensino as doenças raras. Também continuamos formando médicos para trabalhar com os 25% de usuários de planos de saúde, e enfermeiros para os hospitais. O exemplo começa quando vemos os professores disputando os andares especiais das enfermarias privadas, dentro dos hospitais universitários públicos. Se quisermos mesmo serviços públicos de qualidade para todos, com porta de entrada única, temos que rediscutir como manter profissionais competentes e comprometidos dentro do sistema, defendendo-os e valorizando-os, e não os tendo como mais um dos inúmeros vínculos de trabalho. Dedicação exclusiva ao SUS não deveria ser uma exceção. Ilhas de excelência existem, mas APS na perspectiva da integralidade de um sistema nacional de saúde com a proposta do SUS não se constrói em ilhas. Também temos que discutir que “postinho de saúde” sem janela, com mesas e cadeiras enferrujadas e com mofo nas paredes não vai conseguir atrair e virar referência para qualquer cidadão que tenha outra opção. Se for assim, fica claro que a opção é exclusiva 49 Miolo_15anos_FINAL.indd      49 8/12/2010      12:16:11
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    para os quenão têm nenhuma outra opção: uma opção pobre para os pobres. Finalizando, para fazermos as mudanças, precisamos de dinheiro. Não vamos cumprir a promessa do SUS com um gasto público em saúde abaixo de 4% do PIB. Para os que acham o sistema privado brasileiro eficiente, teremos que gastar pelo menos 16% do PIB só para a assistência médica, se seguirmos um modelo semelhante de planos de saúde em um mercado competitivo. Por outro lado, como esperamos não ter outro Big Bang legislativo tão cedo, o que significaria outro desenho para o sistema de saúde brasileiro, não podemos perder a oportunidade de incrementalmente, aumentar os percentuais destinados à APS. Retirar recursos de serviços de alto custo e hospitalares é inviável, mas destinar recursos novos preferencialmente aos serviços de atenção primária e à Saúde da Família não. A viabilidade se chama vontade política. 50 Miolo_15anos_FINAL.indd      50 8/12/2010      12:16:11
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    Da reflexão críticano movimento estudantil à participação na construção da estratégia saúde da família Miolo_15anos_FINAL.indd      52 8/12/2010      12:16:14
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    1 Luis Odorico Monteiro de Andrade 2 Ivana Cristina de Holanda Cunha Barreto Somos da geração de médicos que se formou ao final na década de 80. Assim como todos os nossos colegas, deparamo-nos com um currículo médico dividido em ciclo básico e ciclo clínico. O primeiro concentrava-se em aulas teóricas e de laboratório; o segundo, aulas teóricas e visitas de enfermaria ao hospital universitário. É preciso mencionar ainda a grande quantidade de disciplinas de especialidades médicas, uma ou duas de saúde pública e o internato de apenas um ano. Tivemos também uma ou duas disciplinas de saúde pública. O contato com o movimento estudantil e com professores que faziam crítica à formação médica com uma visão fragmentada e descontextualizada do paciente e de sua família nos estimulou a fazer uma reflexão sobre a nossa formação e sobre o sistema de saúde excludente que vigorava no Brasil. Como resultado desse processo, aderimos, junto com outros companheiros, ao trabalho de organização, participação e reflexão crítica dos estudantes sobre o curso de Medicina e o papel do médico na sociedade. Vivenciamos como estudantes a luta pelo restabelecimento da democracia no País e o fortalecimento do Movimento de Reforma Sanitária. Fomos membros do grupo de cinco delegados da União Nacional dos Estudantes na 8ª Conferência Nacional de Saúde. Participamos da equipe que liderou o XVI Encontro Científico dos Estudantes de Medicina (ECEM) e a criação da Direção Nacional dos Estudantes de Medicina (DENEM), em 1986. Essa geração do movimento estudantil optou por enfrentar um desafio: “Pensar politicamente a ciência e cientificamente a política”. Na 8ª Conferência Nacional de Saúde, a discussão da saúde como qualidade de vida e dos princípios para nosso futuro Sistema Único de Saúde tocou profundamente nossa sensibilidade e acendeu nossa esperança num futuro melhor para o Brasil. Universalidade, integralidade, equidade, descentralização e participação popular, nossos sonhos para construção de um país onde todos fossem sujeitos de direito. Discutíamos a necessidade de ser o estudante de Medicina preparado para atuar na Atenção Primária, Secundária e Terciária à Saúde, tendo 1 Médico, Doutor em Saúde Coletiva com Pós-Doutorado na Universidade de Montreal – Canadá. Professor da Universidade Federal do Ceará (UFC) e do Doutorado em Saúde Coletiva (UECE-UFC). Diretor Presidente do Instituto CENTEC. Recebeu 47 prêmios e homenagens, entre eles em 2009 o Prêmio Sérgio Arouca de Gestão Participativa no SUS e em 2010 recebeu pelo Ministro da Saúde, José Gomes Temporão, a Medalha da Ordem do Mérito do Médico na qualidade de Comendador. 2 Médica, Doutora em Medicina na Área de Pediatria pela USP com estágio Pós-Doctor no Departamento de Ciências da Educação na Universidade de Montreal no Canadá. Atualmente é professora adjunta da Universidade Federal do Ceará, 53 exercendo suas atividades na Faculdade de Medicina de Sobral, como docente no Mestrado Acadêmico em Saúde da Família da UFC e do módulo de Atenção Básica à Saúde. Miolo_15anos_FINAL.indd      53 8/12/2010      12:16:16
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    contato com arede de serviços, desde o início do curso. Defendíamos ainda que o estudante tivesse formação humanista e construísse o aprendizado a partir da reflexão e pesquisa sobre os problemas identificados nos serviços. Algumas lideranças do movimento sanitário brasileiro foram determinantes na formação do nosso pensamento e da nossa prática: Ibrahim Mourad Belaciano, Ana Rita Pederneiras, Carlile Lavor, o atual Ministro, José Temporão, David Capistrano, Eduardo Jorge, Sergio Arouca, Sonia Fleury, Gastão Wagner de Sousa Campos e Madel Terezinha Luz. Em 1986, iniciamos nosso primeiro trabalho no campo participando da construção do Sistema Local de Saúde de Icapuí, município de 13.000 habitantes do litoral do Ceará, onde ficamos até 1992. Foi a partir dessa experiência que aprofundamos nosso contato com os problemas de saúde do povo, aprendendo como a luta pela sobrevivência numa região litorânea do Nordeste determina a saúde. Foi em Icapuí onde trabalhamos na formação dos agentes comunitários de saúde (ACS) e nas primeiras versões do Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB). Lá investigamos as causas de óbitos infantis não registrados. Crianças que morriam por desidratação, quando os sais de reidratação oral já eram recomendados desde a década de 70 pela OMS (SACK, et al., 1970; RAMLAL, 1980). E aqui aproveitamos para render nossas homenagens a Dra. Zilda Arns, que, com a Pastoral da Criança, foi parceira importante nessa caminhada. Em Icapuí, tivemos a oportunidade de formar equipes interprofissionais, com enfermeiras, auxiliares de enfermagem, agentes de saúde e médicos. Equipes que dialogavam e planejavam um trabalho conjunto na comunidade. Cadastramos as famílias, implantamos os prontuários familiares. Nessa cidade aconteceram nossas primeiras experiências de trabalho intersetorial: a equipe de saúde articulando-se com a educação, urbanismo, cultura, esportes, desenvolvimento econômico. A partir de 1993, aceitamos o desafio de organizar o Sistema Municipal de Saúde de Quixadá, sertão central do Ceará, 70.000 habitantes. Tempo de amadurecer. O povo precisava de assistência à saúde. Mas como aumentar a cobertura de atenção primária sem reproduzir o modelo biomédico? Como ampliar as equipes de atenção básica do município com os escassos recursos existentes? Dessas contradições nasceu a ideia de elaborar o Projeto Saúde da Família, em que Quixadá solicitava o apoio do Ministério da Saúde para organizar equipes multiprofissionais, formadas por médico, enfermeiro, auxiliar de enfermagem e agente de saúde, para cada uma das 13 áreas descentralizadas de saúde do município. As equipes multiprofissionais de saúde deveriam realizar um diagnóstico de saúde 54 Miolo_15anos_FINAL.indd      54 8/12/2010      12:16:16
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    da população pelaqual era responsável (entre 500 e 1.000 famílias); realizar o reconhecimento do território, mapeando os recursos sociais existentes; cadastrar as famílias, priorizando as de maior risco no processo de atenção; garantir o acompanhamento longitudinal dos indivíduos e famílias; realizar ações de promoção da saúde e prevenção de doenças; prestar assistência aos agravos mais prevalentes; encaminhar casos para atenção especializada se necessário; construir vínculos com as lideranças comunitárias e organizar o conselho local de saúde. A primeira equipe de Saúde da Família de Quixadá foi implantada na comunidade Serra do Estevão nos primeiros meses de 1994. Esse projeto foi discutido com o Ministro Henrique Santillo e o seu assessor especial, na época, Halin Girade, tendo sido referência na tomada de decisão para implantação do Programa Saúde da Família (PSF) no Brasil. A primeira reunião com o assessor Halim foi em agosto de 1993; uma segunda com Halim, Oscar Castillo, do Unicef, e Eugenio Vilaça, da OPAS, em outubro de 1993, momento em que foi agendada a reunião que decidiu pela implantação do PSF em 27 de dezembro de 1993 (POZ; VIANA, 1998). Concretizar esse projeto de mudança no modelo assistencial exigia profissionais de mente aberta, dispostos a construir uma experiência nova e inusitada para os padrões da época. Para formar as equipes do PSF de Quixadá, outros companheiros do movimento estudantil entraram de “corpo e alma” no projeto: Alcides Miranda, Gabriela Godoy, Aldenildo Costeira, Janine, Ernani Vieira, Vera Dantas, Francineide Maciel, Francimeire Amorim, Lucineide, entre outros. Foram constituídas 13 equipes do PSF para o mesmo número de “áreas descentralizadas de saúde”. Fazíamos reuniões semanais, era preciso um processo de gestão participativa. Os resultados foram rápidos: redução dos atendimentos hospitalares, redução da mortalidade infantil, controle da epidemia de cólera. A partir de 1997, continuamos o trabalho agora em Sobral, 170.000 habitantes, um sistema de saúde muito centralizado no hospital e concentrado na sede do município. Eram necessárias mais de 40 equipes de Saúde da Família. Ficou mais evidente a premência da educação permanente para os profissionais, que necessitavam tanto de capacitação para o trabalho na Atenção Primária à Saúde como de acompanhar a rápida produção de conhecimentos na saúde. Em 1999, foi criada a primeira turma do programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Família de Sobral (ANDRADE, et al., 2004), que hoje está na oitava turma e já formou 165 especialistas. Em 2001, foi criada a Escola de Formação em Saúde da Família Visconde de Saboia (http://www.sobral.ce.gov.br/ saudedafamilia). Em 2005, mais uma vez mudamos de contexto: Fortaleza, capital de 2.300.000 habitantes, 55 Miolo_15anos_FINAL.indd      55 8/12/2010      12:16:16
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    cidade marcada porgrande desigualdade social. Nela, organizar o sistema de saúde, considerando a equidade, era e é fundamental. O estudo que mapeou as microáreas dos agentes comunitários de saúde revelou os quarteirões desprovidos de serviços públicos, com casas insalubres e comunidade à margem do sistema econômico. Foram realizados concursos públicos para 2.626 ACS e 750 profissionais de nível superior na saúde. Em Fortaleza aprofundamos o conceito de Sistema de Saúde Escola, que havia sido criado em Sobral (BARRETO et al., 2006). Os resultados, apesar do curto tempo de implantação da ESF na grande metrópole, já se evidenciam. A mortalidade materna em Fortaleza caiu de 70,83 por 100.000 nascidos vivos, em 2004, para 23,67 em 2007. Foi possível controlar a epidemia de dengue no município, nos anos de 2007 e 2008, com uma taxa de letalidade por dengue de 0,8 por 100.000 habitantes em 2007, abaixo da observada em outras capitais brasileiras (FORTALEZA, 2007). Para concluir, podemos afirmar que nossa história na PSF, hoje, Estratégia Saúde da Família, envolve razão e emoção. A razão demonstrando que essa estratégia é capaz de impactar indicadores de saúde; e a emoção de ser ator de um processo que vem melhorando a vida de milhões de brasileiros. Referências ANDRADE, L. et al. Escola de Formação em Saúde da Família Visconde de Saboia – Sobral (CE): uma resposta municipal para a Educação permanente no SUS. Divulg. Saúde Debate, Rio de Janeiro, v. 30, p. 15-25, 2004. BARRETO, I. et al. A educação permanente e a construção de Sistemas Municipais de Saúde Escola: o caso Fortaleza (CE). Divulg. Saúde Debate, Rio de Janeiro, v. 34, p. 15, 2006. FORTALEZA, S. S. Relatório de Gestão da Saúde 2007. Fortaleza: Secretaria de Saúde de Fortaleza, 2007. v. 1. POZ, M.; VIANA, A. A reforma no sistema de saúde no Brasil e o Programa Saúde da Família. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 8, n. 2, p. 11-48,1998. RAMLAL, A. M. Administration of oral rehydration therapy. Bulletin of the Pan American Health Organization (PAHO), United States, v. 14, n. 2, p. 204-206, 1980. SACK, R. et al. The use of oral replacement solutions in the treatment of cholera and other severe diarrhoeal disorders. Bulletin of World Health Organization, Switzerland, v. 43, p. 351-360, 1970. 56 Miolo_15anos_FINAL.indd      56 8/12/2010      12:16:16
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    Flávio A. deAndrade Goulart 1 1. Atenção Primária à Saúde: conteúdos e trajetórias Recuperar a história da Estratégia Saúde da Família requer, antes de tudo, regressão histórica longa e aprofundada, percorrendo pelo menos duas sendas significativas: a trajetória das ideias correspondentes no mundo e a chegada e o desenvolvimento, no Brasil, de programas de Atenção Primária à Saúde – bem como seus correlatos. Em termos mundiais, uma longa história pode ser percorrida com raízes seculares e até mesmo milenares. A fase mais significativa ocorre ao longo do século XIX e na primeira metade do século XX, primeiro com as políticas de saúde pública e Medicina Social e, depois, com o advento dos estados de bem-estar social na Europa. Contextos políticos e ideológicos diversos se fizeram presentes, desde a afirmação de razões de Estado para o controle da sociedade, passando por ideais filosóficos e religiosos de igualdade e fraternidade, até as lutas operárias e a conquista da cidadania social. No caso brasileiro, é preciso recuperar alguns movimentos iniciados ainda nos anos 20 do século XX, com a importação de propostas originárias dos Estados Unidos, traduzidas na atuação da fundação Rockfeller e que convergiram na criação da Fundação Serviços Especiais de Saúde Pública, além de outros programas públicos, depois evoluindo para processos mais abrangentes e complexos, nas décadas posteriores. Os contextos também variaram desde a necessidade de reprodução do capital no processo de industrialização nascente no País até as pressões derivadas de lutas políticas diversas no âmbito de diferentes movimentos sociais. O fato é que as práticas de saúde sempre tiveram, em sua origem e determinação, a influência dos modos de conceber e agir da sociedade face ao corpo humano e a respectiva valorização concedida à saúde e à doença. Os diversos modelos de práticas (ou mesmo de políticas de saúde) daí advindos, ao variarem intensamente ao longo da história, mantiveram, entretanto, correlação com a estrutura da sociedade, em cada período, em face da visão de mundo dominante (SIGERIST, 1974). Por outro lado, como lembra Rosen (1994), em toda a história das sociedades humanas, os problemas de saúde enfrentados tiveram, em sua origem, relação com a vida em comunidade e, embora com ênfases diferentes, com as variadas maneiras com que tais sociedades procuraram resolvê-los, por exemplo, controlando as doenças e melhorando as condições ambientais. Modelos e até mesmo sistemas completos de atenção à saúde existiram 1 Doutor em Saúde Pública pela ENSP/FIOCRUZ; Professor (titular) aposentado -Universidade de Brasília; Secretário 59 Municipal de Saúde - Uberlândia-MG (1983/88 e 2003/04) Miolo_15anos_FINAL.indd      59 8/12/2010      12:16:20
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    mesmo em sociedadesantigas, com características que até os dias atuais se encontram presentes, inclusive no que diz respeito a componentes que, por aproximação, estão presentes no que hoje se denomina Atenção Primária à Saúde (APS). O quadro abaixo, inspirado em Thorwald (1985), Sigerist (1974) e Rosen (1994), resume algumas informações sobre a evolução de alguns desses modelos. Quadro 1 - Evolução histórica dos modelos de atenção à saúde BABILÔNIA Século VI a.C: Código de Hamurabi: cuidado da saúde da coletividade; controle das condutas dos médicos. EGITO IV Dinastia (cerca de 2.500 a. C.): grande prestígio de médicos generalistas; Iry, médico da corte do faraó e uma espécie de autoridade sanitária da época; médicos contratados para prestar assistência integral aos trabalhadores das pirâmides. GRÉCIA Século IV a.C: Platão justificava a presença dos médicos na Polis, para que os cidadãos fossem sadios; termos associados com saúde: higiene, harmonia, bem, equilíbrio, organização, com os médicos praticantes imbuídos deles; serviços públicos rudimentares de drenagem e suprimento de água nas cidades; médicos com salário fixado por um imposto especial e com base territorial de ação, concentrando-se nas cidades maiores, onde estabeleciam o iatréion (consultório); médicos itinerantes nos vilarejos que batiam à porta das famílias, oferecendo seus trabalhos; cerca de 600 a.C., passou a ser comum a nomeação pública de médicos para atuarem nas cidades, garantindo-se-lhes proventos anuais, mesmo que não houvesse enfermos para tratar (capitação); influência de Hipócrates (450 a.C.), prática generalista dos médicos. ROMA Migração de médicos gregos para Roma, em torno do ano I, adquirindo cidadania romana – uma notável distinção para a época; forte influência da medicina grega; médicos atuando em bases territorializadas, com populações adscritas; decreto do numerus clausus limitando o número de médicos em cada cidade; as famílias são vinculadas a uma espécie de médico de Família, com atuação integral referente a todos os membros da mesma, com salário mediante cotização de seus assistidos; século II: aparece um serviço público de atenção à saúde, com a nomeação de funcionários médicos, os archiatri, com responsabilidades de atenção à pobreza. IDADE MÉDIA Inflexão da tendência de cuidados por médicos; enfoque do cuidado à pobreza, com forte influência religiosa, doença concebida como purificação e graça divina; prática médica recolhida aos mosteiros; em torno do ano, médicos leigos aumentaram de número e tiveram atuação tolerada e até mesmo estimulada pela Igreja, que considera agora o corpo como “morada da alma”; século XIII, Salerno (atual Itália) primórdios de intervenção estatal em saúde e sobre a prática e a formação médica; Regimen Sanitatis Salernitanum, obra do século XII que teve notoriedade e divulgação na Europa até o século XIX. Um trecho: “A mente mantenha livre de cuidados, e de ira o coração / Não beba muito vinho, ceie pouco, levante cedo, / Depois de comer ficar sentado causa danos / quando sentir as necessidades da natureza, / não as retenha, pois isto é muito perigoso. / e use ainda três médicos, primeiro o Doutor Descanso, / Depois o Doutor Alegria, e o doutor Dieta”; na Suíça: advento de uma espécie de médico de Família, com atendimento à nobreza e à aristocracia eclesiástica – o médico de Câmara; saúde pública nas cidades exercida por um conselho seleto, com mandato temporário e geralmente formado por não médicos. Apesar de todo o atraso científico e social da época, havia certa ênfase na educação e na promoção de hábitos higiênicos e de saúde, conforme se aprecia no Regimen de Salerno. Fonte: Autoria própria 60 Miolo_15anos_FINAL.indd      60 8/12/2010      12:16:20
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    Como se vê,quando se fala de Atenção Primária à Saúde ou mesmo de Atenção Básica ou Saúde da Família, não se está lidando com conceitos e práticas rigorosamente novos, pois já tinham sido pensados e experimentados em variadas sociedades, durante um longo período de tempo. Isso faz do objeto deste capítulo um tema ao mesmo tempo novo e antigo, o que significa que o passado, por mais remoto que seja, oferece contribuições para a completa apreensão desses conceitos, da maneira como são entendidos e praticados nos dias atuais. Mas qual seria o significado da proteção à saúde que se instaura no contexto da modernidade? Mais uma vez, na história, tudo começa antes do que parece. Rosen (1994) destaca a existência de uma verdadeira façanha sanitária medieval, em que pesem as limitações políticas e científicas inerentes a tal período histórico, e que se traduz, por exemplo, pelos esforços em lidar com os problemas sanitários urbanos, com a criação de medidas de saúde pública mais tarde consagradas, tais como a quarentena e ainda pela atuação da Igreja Católica e das organizações comunitárias, na criação dos hospitais e outras instituições voltadas para o cuidado médico e a assistência social, entre outros. Assim, mesmo que algumas das bases das práticas de saúde modernas calcadas na proteção social coletiva já estivessem lançadas desde a Antiguidade e a Idade Média, as transformações que ocorrem a partir do século XVI é que se tornam cada vez mais expressivas. Nesse período, as políticas sociais e de saúde que nascem na Inglaterra passam a ter especial relevância, dado o fato que, neste país, ocorre de forma precoce, em relação a outras nações, a ascensão da burguesia ao poder e suas decorrências políticas econômicas e sociais, entre as quais podem ser destacadas: (a) A revolução tecnológica (Primeira Revolução Industrial); (b) A urbanização acelerada; (c) A formação gradual de uma nova classe, o proletariado urbano; (d) O advento de legislação de proteção social, tendo como parâmetro a Lei dos Pobres de 1601; (e) O aparecimento de um pensamento social em saúde (POLANYI, 1980). Mudanças políticas posteriores, como aquelas ocorridas na Europa na primeira metade do século XIX – a Age of Revolution de Hobsbawn (1994) –, acabam por favorecer uma mudança qualitativa do caráter da ação pública em saúde, transformando as noções de concessão e repressão, anteriormente vigentes, em noções de direito e justiça social. Neste particular, os anos transcorridos entre 1840 e 1854 são bastante expressivos com relação a tais mudanças, configurando o que Krieger e Birn (1998) denominaram de “o surgimento de um movimento social e de uma profissão”, correspondendo a grandes mudanças políticas e culturais em todo o mundo ocidental, dentro do conjunto de fenômenos que se convencionou chamar de “Primavera dos Povos”. Foi assim que a saúde se transformou em assunto público e o estado de saúde, doença e bem-estar 61 Miolo_15anos_FINAL.indd      61 8/12/2010      12:16:20
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    da população aser considerado reflexo da ação política. É construída, assim, a Saúde Pública moderna sob a égide da justiça social, na qual a assistência à saúde voltada para todos os cidadãos passa a fazer parte do cardápio social dos Estados modernos, no qual se inclui o que se chamaria mais tarde de APS. Foi na Inglaterra que ocorreu, ainda, de forma coerente com seu processo de desenvolvimento político, o grande marco da proteção social, a Lei dos Pobres, promulgada pela Rainha Elizabeth I em 1601 e em vigência ao longo dos dois séculos seguintes. Teve como característica principal a atribuição de responsabilidades às freguesias (parishes) pelo cuidado de seus pobres, antecipando, curiosamente, uma tendência contemporânea das políticas sociais que é a descentralização. A proteção, no caso, era marcada por forte ênfase no trabalho, refletindo a máxima protestante de que “mentes vazias são oficinas do demônio”. Com isso, criou-se oferta de mão de obra para as manufaturas nascentes, por meio das instituições de formação e adaptação ao trabalho, as work houses. As primeiras décadas do século XIX marcaram, profundamente, não só os rumos do capitalismo inglês, como a formação das políticas de proteção social, pois se tornou necessário recuperar as precárias condições de vida e saúde da população, como aumento alarmante das tensões e agitações nas ruas. Afinal, a industrialização, que já datava de um século, buscava agora novos e mais amplos mercados e incorporava tecnologias e recursos cada vez mais diferenciados. Nesse aspecto, o ano de 1834 representa um marco, pois corresponde ao momento em que a Lei dos Pobres, que vigorara por mais de 200 anos, é revogada, correspondendo à formação definitiva de um verdadeiro mercado de trabalho competitivo na Inglaterra (POLANYI, 1980). A lógica de mercado via-se, assim, tolhida pelas péssimas condições de vida da população. Nesse aspecto, a literatura clássica inglesa, seja em Swift, Dickens, Austen e outros autores do período, fornece descrições de grande impacto, até os dias de hoje. Rosen (1994) expõe tal situação em tintas quase surrealistas, mesmo para a atualidade: as cidades eram extremamente insalubres; as epidemias e as doenças de massa grassavam sem qualquer controle e matavam milhares de pessoas em cada surto; havia um número inacreditavelmente alto de botequins e estabelecimentos congêneres, e o alcoolismo já era um flagelo social; as condições de saneamento básico eram sofríveis (em certos setores de Manchester não havia mais do que uma privada disponível para mais de 100 pessoas!), e assim por diante. Ainda dentro dos marcos das mudanças sanitárias ocorridas na Grã-Bretanha, merece destaque a criação de um tipo de instituição alternativo ao secular hospital, ou seja, o dispensário. Já no século XVII, há notícias desse tipo de serviço público, mas sua 62 Miolo_15anos_FINAL.indd      62 8/12/2010      12:16:20
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    oficialização começa ase dar no último quartel do século XVIII, quando o médico londrino Armstrong cria uma unidade para atendimento a crianças pobres em um bairro popular, seguidas de outras em diversas cidades do país. Os dispensários ofereciam também cuidados em domicílio, inclusive atendimento obstétrico e, de modo geral, destinavam suas atividades às parcelas mais pobres da população (ROSEN, 1994). Cabe aqui breve digressão sobre uma situação peculiar do Reino Unido, qual seja a prática médica generalista, realizada sob auspícios estatais, cujos profissionais, conhecidos como GP (General Practitioners) têm presença marcante no sistema de cuidados à saúde daquele país desde o século XIX. Segundo Brotherston (1971), a emergência desse tipo de prática se dá no início do século XIX, associada às mudanças rápidas de natureza comercial e industrial ocorridas na sociedade inglesa da época. Havia, anteriormente, cerca de três categorias de praticantes de saúde, os physicians (médicos clínicos), os surgeons (cirurgiões) e os apothecaries (espécie de farmacêuticos), frutos de um sistema que remontava há cerca de 300 anos, mas cujo estatuto foi modificado, por meio de unificação, ao longo das primeiras décadas do século XIX, mediante intervenção estatal, em processo extremamente conflituoso, tanto na sociedade como nas corporações. A unificação da profissão médica no Reino Unido ocorreu finalmente por meio de um Medical Ac entre 1830 e 1858, período em que também se registram grandes transformações na formação médica. Faz parte do cenário da época, também, a proposta de se criar uma lower order of practitioner, para atendimento às populações rurais pobres, prontamente rebatida pela British Medical Association, por razões que ainda hoje soariam corretas, por denunciarem uma medicina pobre para pobres. Nos últimos anos do século XIX, ocorreram restrições à prática dos GP, correspondendo ao que o mesmo Brotherston (1971) denomina de the rise and the fall of the GP, devido à tendência ao crescimento das especialidades médicas cirúrgicas e dependentes de tecnologia, efeito que persistiu mesmo pelo século XX afora e que só foi posto sob controle com o advento do NHS, a partir de 1948. Uma frase de Bernard Shaw, citada pelo mesmo autor, reflete bem algumas das contradições a que estavam submetidos os GP ao final do século XIX: To make matters worse doctors are hideously poor... Better be a railway porter than an ordinary English GP. É na Inglaterra, também, onde surgem mudanças importantes na forma de organização dos sistemas de saúde, com ênfase nos cuidados básicos, ainda nos primórdios do século XX. Isso provoca influências em todo o mundo ocidental, configuradas, por exemplo, na concepção de assistência à saúde dos welfare states. Assim, aproximadamente em 1920, um white paper, subscrito por Lord Dawson of Penn, uma autoridade médica 63 Miolo_15anos_FINAL.indd      63 8/12/2010      12:16:20
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    do sistema públicoda época, propunha a diferenciação dos serviços de saúde em três níveis de atenção, primário, secundário e de hospitais docentes, o que veio a fornecer as bases para todos os sistemas contemporâneos de Atenção Primária à Saúde, regionalizados e hierarquizados. Da mesma forma, foi por meio dessa diferenciação de níveis que ganharam substâncias as propostas de Atenção Primária à Saúde que se implantaram em muitos países do mundo, na segunda metade do século (STARFIELD, 2001). Um breve percurso relativo ao processo de formação das políticas de saúde convergentes para a Atenção Primária à Saúde em outros países europeus é mostrado no quadro seguinte: Quadro 2 - Formação histórica da atenção primária à saúde FRANÇA Berço do iluminismo, do racionalismo e do reconhecimento dos direitos do homem; liderança europeia das ações públicas na área social e na saúde já nas primeiras décadas do século XIX; 1790: Comité de Salubrité responsável por educação médica, saneamento das cidades, medicina forense, saúde animal e controle das epidemias, além de higiene do comércio de alimentos, banheiros públicos, presídios, atendimento a emergências, ambientes de trabalho, as estatísticas de morbimortalidade; médicos com funções de autoridade sanitária em cada departamento, com atribuições de cuidar dos indigentes, proteger a saúde das crianças, promover inoculações contra a varíola, notificar as epidemias, produzir relatórios sobre a situação de saúde local; ideia consensual de que ao Estado competia proteger a saúde dos cidadãos e de que a doença estava relacionada à indigência; além das influências ideológicas iluministas da Revolução Francesa, a proteção social era inspirada também na caridade cristã, desde o século XVII, com o trabalho social desenvolvido por São Vicente de Paula, fundador da SSVP, instituição ainda hoje responsável por dispensários, asilos, creches e outras formas de abrigos para inválidos e deserdados, erigidos sob o princípio da dignidade e do direito à vida; Revolução Francesa: substitui a noção cristã de caridade por uma noção laica de justiça; século XIX, a assistência à saúde, predominantemente hospitalar, incorpora o princípio da assistance à domicile, dentro do qual se inserem a livre escolha do médico por parte dos pacientes, o reembolso de despesas, a garantia de atendimento especializado e hospitalar. ALEMANHA País tardiamente integrado ao conjunto dos estados-nações europeus graças ao Chanceler Bismarck (cerca de 1870); pensamento social em saúde intervencionista e autoritário desde o século XVI, coerente com o absolutismo e o mercantilismo; conceito alemão de polícia médica (Medizinalpolizei); preocupação alemã com a saúde é anterior à inglesa e francesa, só não tendo se concretizado como política nacional efetiva por causa da tardia unificação alemã; 1665, Seckendorff define as finalidades da ação governamental em saúde: bem-estar e a proteção da saúde, crescimento da população, supervisão do trabalho das parteiras, amparo aos órfãos, designação de autoridades sanitárias, inspeção de alimentos, prevenção de hábitos nocivos, saneamento básico e assistência à pobreza; Leibnitz, cientista, filósofo e político do século XVII: responsabilização dos governos pela saúde da população, com ênfase à investigação quantitativa dos fenômenos de saúde e de doença; Frank, final do século XVII: monumental obra sobre a Medizinalpolizei – médico, educador e administrador e um erudito pensador, defendia a tese de que a saúde do povo é uma responsabilidade do Estado, com ideias humanistas e iluministas, uma minuciosa descrição de um sistema de proteção à saúde, tanto no campo público como no privado, além de temas tais como a prevenção de acidentes, as estatísticas vitais, a medicina militar, a administração hospitalar, as doenças venéreas, epidêmicas e transmissíveis; século XIX: Virchow, Neumann e Leubuscher: inclusão de novas questões, como a saúde do trabalhador industrial, o licenciamento médico, as medidas de proteção específica contra as doenças transmissíveis, recém-preconizadas pela Revolução Científica; influências da polícia médica alemã se estendem ao longo do século XX com a criação dos sistemas de previdência social modernos. continua 64 Miolo_15anos_FINAL.indd      64 8/12/2010      12:16:20
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    continuação ESTADOS UNIDOS Ideias sanitaristas de proteção coletiva e intervenção urbana, ao feitio inglês e francês, já haviam sido empregadas em Nova Iorque desde o ano de 1795, por ocasião de uma epidemia de febre amarela; século XIX, primórdios de uma organização sanitária, inicialmente incorporada ao aparato policial; Nova Iorque, cidade sujeita a frequentes epidemias, foi pioneira, criando, a partir da primeira década do século, uma administração permanente para a saúde; figura da autoridade sanitária (inspetor sanitário da cidade), com mandato estatal, com funções que incluíam a administração da saúde, o saneamento ambiental, o controle das epidemias e outras doenças e a estatística vital; condições de saúde tão ou mais precárias do que as da Europa (urbanização descontrolada, imigrações); práticas de saúde pública traduzidas por frequentes e extensivos inquéritos; problemática urbana, fator dominante; cerca de 1845: movimento por uma reforma sanitária nacional, com ênfase nas responsabilidades locais; participação social: inúmeras e influentes entidades civis voluntárias de luta pela saúde; administração nacional de saúde (National Health Department) criada por volta de 1879. Fontes: (THÉVENET, 1973; SINGER, 1979; ROSEN, 1994) Assim, ao longo do século XX, dá-se a construção dos sistemas clássicos de bem-estar social, em sua feição europeia contemporânea, como é o caso da Inglaterra, dos países nórdicos, bem como de outras nações se deu no pós-guerra e em toda a década de 50 e 60. Nesses sistemas, a Atenção Primária à Saúde ganha maior relevância, ao ponto de se transformar em verdadeiro marco de alguns deles. São países nos quais o welfare-­state, associado na origem aos nomes de Keynes e Beveridge, encontra-se mais bem desenvolvido, tendo como característica principal a proteção governamental compulsória, seja em termos de renda, de alimentação, de saúde, de educação e também de habitação, assegurada a cada cidadão, não mais como caridade ou concessão do Estado, mas como um direito. Em resumo, a origem histórica de tais sistemas de proteção coincide com a formação dos Estados nacionais e os processos de industrialização e urbanização, na medida em que as nações começam a se distanciar do liberalismo, em direção a um modo mais social de gestão dos negócios estatais, que promovem o que Viana (1997) denomina de um “tipo particular de arranjo entre o Estado, o mercado e a sociedade”, simbolizando dessa forma um “duplo compromisso”: entre o Estado e o mercado e entre a democracia e o capitalismo. 2. A APS e a crise no setor saúde Se o século XX teve sua trajetória marcada pelas mudanças e, ainda mais, pela sua rapidez e pela sua universalidade, as políticas sociais, sem dúvida, foram caudatárias diretas dessas características. Como aponta Hobsbawn (1994), sucedem-se anos do otimismo, nos quais teria havido uma verdadeira revolução social, entre o final da década de 40 e os anos 90. Em tal período a urbanização foi progressiva e também houve redução numérica acentuada do campesinato na maioria dos países, com necessidade cada vez maior do acesso à educação mais sofisticada e mais tecnológica em toda parte, acompanhada também do declínio numérico e de perda de prestígio e poder política da classe operária industrial – o proletariado histórico. Um novo ator social aparece então: as mulheres, cada vez mais escolarizadas e inseridas no mercado de trabalho, inclusive quanto aos seus segmentos anteriormente excluídos de mães e esposas. Esses fatos, certamente, compõem um pano de fundo abrangente para as transformações da 65 Miolo_15anos_FINAL.indd      65 8/12/2010      12:16:20
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    política social ocorridasao longo do século e, particularmente, em sua segunda metade, e influenciaram, sem dúvida, o advento de políticas de APS em todo o mundo. Como resultado dos já referidos arranjos entre Estado, mercado e sociedade, típicos do período histórico de diferenciação, crise e expansão do capitalismo, originam-se padrões distintos de intervenções do Estado sobre a vida social, organizadas em torno de dois eixos, o primeiro, universal/seguridade, típico da Escandinávia e do Reino Unido, e o segundo, ocupacional/seguro, vigente nos EUA, Japão e alguns países da Europa ocidental (VIANA, 1997). Na primeira modalidade, naturalmente, as propostas de APS ganharam mais força. Em relação aos sistemas da saúde, já no final do século XIX, detecta-se, na Europa principalmente, uma “primeira onda” de reformas, caracterizada por financiamento subsidiado estatal e programas específicos para os mais pobres e trabalhadores de baixa renda, tendo como paradigma o caso inglês (sanitarismo), com desdobramentos inclusive no século XX. Uma segunda onda seria aquela advinda da crise do pós- guerra, cujo exemplo típico é a formação do National Health System britânico, com extensão da atenção e inclusão do acesso aos cuidados de saúde entre os direitos de cidadania, com marcante influência na formação dos sistemas contemporâneos fundamentados na APS. Ocorreu, todavia, um terceiro momento de reformas na saúde, este mais complexo, iniciando ainda nos anos 60, com a expansão pura e simples da assistência, seguido, em anos mais recentes, de uma crise desse modelo e a necessidade de formulação de uma agenda pós-welfare (ALMEIDA, 1996), o que veio a colocar em risco e sob forte crítica os sistemas de proteção social. O caso da saúde tem, entretanto, particularidades importantes, quando analisado do ponto de vista das reformas e crises. A estruturação de sistemas nacionais de saúde pode fazê-los voltados para Atenção Primária à Saúde ou, com a distinta orientação para o mercado e as práticas especializadas e tecnológicas. Na verdade, a “primeira onda” de reformas corresponde ao período em que as opções se diversificaram, particularmente no contexto europeu, em que os avanços sociais obtiveram maior primazia quando comparados mesmo aos países avançados da América do Norte ou do Oriente. O problema é que, além das alternativas clássicas baseadas no financiamento por fundos públicos fiscais, com garantia de acesso, gratuidade e integralidade ou então naquelas baseadas em seguro e pagamento compartilhado, com acesso condicionado pela condição de emprego e mérito, um terceiro modelo, dito de mercado, se impõe, tendo como características principais a organização a partir das capacidades de compra e consumo de seus usuários (cidadãos-consumidores) ou das empresas às quais estes 66 Miolo_15anos_FINAL.indd      66 8/12/2010      12:16:20
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    estão vinculados, sendoeste é o padrão que vigora nos EUA e no Japão, por exemplo, que constituem justamente países em que a APS como política pública é menos expressiva. A crise dos sistemas de bem-estar social, traduzida pela intromissão da alternativa de mercado, afetaria assim diretamente a dinâmica da APS. Uma abordagem de fundo político – e não apenas de viés econômico ou tecnológico – certamente torna-se relevante para a compreensão de algumas contradições que afetam o modelo de APS, como aquele adotado no Brasil, por exemplo, construído com fortes embates entre as tendências economicistas, racionalizadoras e regulatórias, de um lado, versus as arenas onde se defrontam atores sociais diversos, em permanente disputa por assistência, recursos, poder e direitos. São várias as possibilidades de interpretação quanto às implicações da reforma dos sistemas de proteção social não só em relação à APS, como também com foco em outros avanços obtidos ao longo das décadas em que tais sistemas foram construídos. A seguir são apresentadas as posições de dois autores de nacionalidades, filiação institucional e (provável) inserção ideológica diferentes, que, sem dúvida, abrem caminhos para novos padrões de análise da questão em pauta: Berlinguer e Saltman. Berlinguer (1999), legítimo representante da esquerda europeia, acredita que o impulso humanitário ainda é uma força poderosa, o que não impede que se considere a presença no cenário de outras forças, igualmente poderosas, mas não necessariamente antagônicas à primeira, representando a convergência entre o self-­interest e o altruísmo. Da mesma forma, visões mais utilitaristas, ou mais contratualistas, podem mostrar-se capazes de inclinar-se diante de tal convergência. Na verdade, aponta o autor, a saúde não se constitui apenas num bem individual, mas sim em algo indivisível, o que é corroborado pelo fato de que as pessoas mais saudáveis são aquelas que vivem em ambientes mais equitativos e plenos de coesão social. A saúde não seria, apenas, o resultado de um jogo de soma zero, ou um bem que apenas necessitaria de ser mais bem distribuído – a equidade na saúde, lembra o autor, equivaleria a um importante fator multiplicador. Ainda segundo esse autor, a questão da saúde não se reduziria a seus termos científicos de mensuração, pois ela não pode ser alcançada plenamente a não ser por meio de progresso cultural e moral. Nesse aspecto, as décadas recentes mostraram forte progresso do pensamento bioético, em termos universais, com consequências palpáveis na vida das pessoas, seja em termos individuais ou coletivos, por exemplo, na promoção de discussões sobre a comercialização de órgãos humanos e também na “racionalização” do cuidado à saúde. 68 Miolo_15anos_FINAL.indd      68 8/12/2010      12:16:22
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    O outro autoraqui considerado, Saltman (1997), representaria um pensamento liberal (no sentido que se dá a esse termo nos EUA), de feição anglo-saxônica. Para ele, a questão das reformas em saúde é um tema a ser conduzido diante de determinados balizamentos, por exemplo, buscando um equilíbrio entre damage to existing levels of equity, de um lado, e as mudanças na organização do provimento de cuidados e do próprio papel do Estado, de outro. Almeja-se, assim, o que o autor chama de effectively redressed all or cost off the current inequities, defendendo ainda que são as questões intersetoriais, como o financiamento, e não exatamente as questões internas do setor saúde, que definem de fato a iniquidade que se verifica nos sistemas atuais de prestação de cuidados. Sendo assim, adverte esse autor, os esforços de solução da crise devem ser focalizados em outro lugar (the central effort must be placed elsewhere). Isso não autorizaria, por certo, uma troca de prioridades na ação, com o abandono da luta intrassetorial de melhoria do sistema de cuidados e nem mesmo a abstenção da responsabilidade pública na questão. Da mesma forma, a busca da equidade não pode estar separada da eficiência e da efetividade dos sistemas de saúde. Aliás, adverte o referido autor, os cidadãos em geral e, particularmente os pacientes, sabem que programas intersetoriais, isoladamente, não substituem os serviços de saúde em sua ação típica. Em termos práticos, reformas setoriais que têm seu processo de condução demasiadamente agressivo, ao requererem mudanças substantivas nos comportamentos lucrativos e ao afetar interesses poderosos, resultam frequentemente em fracassos retumbantes. Conclui o autor que uma política de saúde apropriada deve levar em conta tanto os aspectos externos ao setor saúde como os internos e, de forma simultânea e não menos vigorosa, transformando-se em instrumentos mutuamente complementares, mais do que meras estratégias de aprimorar a equidade, tout court. Assim se vê que ambos os autores convidam a pensar para além dos paradigmas de mercado, deixando de lado alguns preconceitos, inclusive ideológicos, ao levantar questões tais como o fundamento ético e moral das reformas, a multiplicidade das questões que acarretam a saúde e a doença na sociedade humana, a responsabilidade dos dirigentes, dos cientistas e dos técnicos, a questão da equidade, as escolhas sempre imperativas, e assim por diante. Berlinguer coloca ingredientes filosóficos, bem como fundamentos éticos e morais na discussão. Saltman lembra que as reformas são realmente necessárias, e até indispensáveis, para a sobrevivência do que se construiu ao século XX como bem-estar social. Ambos, porém, alertam que é preciso estar atentos não estritamente ao equilíbrio econômico dos sistemas, mas a questões igualmente tangíveis, e de repercussão não menos deletéria, como é o caso da ética e da equidade. 71 Miolo_15anos_FINAL.indd      71 8/12/2010      12:16:27
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    Enfim, permanecem questionamentosa respeito daquelas polaridades das políticas de saúde, bem expressas no caso dos programas voltados para a APS? Como, afinal, se resolveria o embate entre o caráter racionalizador e focal nos moldes preconizados pelos organismos internacionais financiadores de programas sociais no terceiro mundo e uma política social pautada pelos princípios de equidade, integralidade e universalidade? E ainda: tal política se veria sustentada por marcos ideológicos e conceituais gerados em contextos estranhos à realidade brasileira, ou representaria um processo legítimo de construção social de forma adequada ao momento político da sociedade brasileira? É fato notório, todavia, que a APS não soçobrou nas crises da saúde, embora se veja ameaçada aqui e ali. Na verdade, ela tem sido até incorporada, mediante alguns de seus componentes, em algumas propostas de sistemas de atenção que primam pela orientação ao mercado, como aquele vigente nos EUA. Com efeito, novas modalidades de managed care têm se apoiado em princípios e práticas sintonizadas com a hierarquização dos cuidados, integração entre prevenção, assistência e cura; introdução de conteúdos de promoção da saúde; atenção continuada e integral como base organizacional; atuação de médicos generalistas integrados a outros profissionais de saúde como uma equipe; colaboração intersetorial, autorresponsabilização, entre outras características que originalmente pertenciam à APS. Além disso, relatam-se evidências que os sistemas de saúde centrados na APS vêm se tornando mais numerosos no mundo (STARFIELD, 2001). 3. A APS no Brasil e os organismos internacionais Os organismos internacionais de fomento financeiro e cooperação técnica têm sido também atores influentes na formulação das políticas próprias dos países assistidos, entre elas as relativas à APS. Que essas influências obedecem, ou tendem a obedecer, a prescrições voltadas para os interesses hegemônicos e estratégicos dos países centrais pode ser apenas uma consequência da lógica maximizadora que organiza o mundo capitalista contemporâneo. Independentemente disso, porém, é preciso qualificar e determinar qual a natureza dessa influência e sua dinâmica no que diz respeito às políticas internas dos países assistidos. Considerar-se-á, aqui, a atuação do sistema OPAS/OMS, deixando claro, entretanto, que ele, pelo menos no contexto da última década, vem perdendo substancialmente sua importância e influência na formulação das políticas dos países membros, em favor do Banco Mundial e de outros organismos de fomento financeiro, mais recentemente autoassumidos como “bancos de ideias”, além de bancos de recursos. Caberiam também algumas palavras sobre o processo de difusão das propostas externas aos países dependentes. Segundo Testa (1992), ao analisar justamente o conceito de Atenção Primária à Saúde, nos moldes preconizados pelos organismos internacionais, 72 Miolo_15anos_FINAL.indd      72 8/12/2010      12:16:27
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    propostas como estascostumam ser geradas em contextos radicalmente diferentes daqueles aos quais se destina sua aplicação. Com efeito, nas realidades de origem dos programas, o que se tem é uma relativa abundância de recursos, com organização definida dos sistemas de saúde, além de certa “disciplina social”. No lado oposto, o dos receptores, o que prevalece é um tripé caracterizado pela escassez de recursos, “indisciplina social” e uma “incoerência entre as formas organizativas e os propósitos que se pretende alcançar”, além de um quadro de ineficiência e ineficácia, articulado com a multiplicidade institucional. Destarte, tal situação de desigualdade entre os países acaba por resultar na acentuação da dependência mediante o que poderia se transformar em “cópia ineficaz” daquilo que é funcional em outras realidades. Assim, segundo o mesmo autor, uma ressignificação das propostas geradas externamente deve ser promovida, quanto ao que o autor citado acima não é otimista, partindo-se de uma reconceituação totalizante das propostas importadas, de forma a apreender categorias autóctones, tais como contexto político, participação e ideologia dos grupos sociais, tecnologia disponível no setor, além das relações que tais elementos possuem com a sociedade global e seus conflitos. Nesse aspecto, o esforço despendido no Brasil com a formulação e a implantação do PSF parece ter sido especialmente bem sucedido, na medida em que o programa guarda coerência intensiva com a realidade nacional. A atuação dos organismos internacionais do sistema das Nações Unidas, particularmente da OPAS, que tem grande influência em países como o Brasil, longe, entretanto, de se constituir em fonte exclusiva de expertise e cooperação técnica, teria como elementos conceituais: (a) A “compreensão do contexto”, incluindo aspectos econômicos, força dos grupos de pressão, estilo de vida e fatores do “entorno”; (b) Uma nova maneira de pensar a saúde, não como medição de resultados, mas como processo e recurso, de forma dinâmica e envolvendo a sociedade e os indivíduos; (c) A recolocação de problemas e prioridades, mediante o reconhecimento da complexidade das circunstâncias que envolvem a saúde e a doença e o aprofundamento da visão social; (d) A integração de novos atores sociais, de forma a incluir a população no processo decisório; (e) Integração do pensamento político, os “laços com a ação política” (KICKBUSH, 1996). Algumas das tônicas das propostas dos organismos do sistema OPAS/OMS têm sido, nas últimas duas décadas, a Extensão de Cobertura, a Atenção Primária à Saúde, a Saúde para Todos, as quais têm contribuído para o aparecimento de propostas políticas de reformas dos sistemas de saúde, capitaneadas por esses organismos. Entre tais propostas, merecem ser consideradas: (a) Os Sistemas Locais de Saúde (SILOS); (b) A estratégia de Promoção da Saúde e; (c) O enfoque na pobreza, apresentadas de forma sintética no quadro seguinte. 73 Miolo_15anos_FINAL.indd      73 8/12/2010      12:16:27
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    Quadro 3 -Propostas internacionais convergentes com a APS SILOS – SISTEMAS LOCAIS DE SAÚDE - Proposta decorrente de demandas oriundas dos países membros, formuladas durante a década de 80, a partir de um consenso em torno de se promover mudanças nos sistemas e serviços de saúde da região, para torná-los mais capacitados ao atendimento das necessidades da população, especialmente dos grupos sociais considerados mais vulneráveis e desprotegidos. “Uma estratégia social adotada pelos países para prosseguir nos esforços de alcançar a equidade social necessária aos processos de democratização e desenvolvimento”. - Articulação com palavras de ordem gerais da organização: fomento da APS e o alcance da meta de “saúde para todos no ano 2000”. - Respostas às necessidades e às demandas dos diferentes grupos sociais, em função dos riscos a que estejam submetidos. - Bases: participação social e desenvolvimento das “comunidades saudáveis”. - Coerência de tais sistemas com as características políticas, administrativas, socioeconômicas e culturais da realidade onde se inserem, além da integração e articulação com os diversos níveis políticos e organizativos (OPAS, 1993). PROMOÇÃO DA SAÚDE - Deriva das formulações de Lalonde, Ministro da Saúde do Canadá no início dos anos 70 e condutor político da reforma do sistema de saúde desse país. - Fundamenta-se nos fatores responsáveis pela saúde das pessoas e das populações (campo da saúde): (a) A biologia humana; (b) O meio externo; (c) O estilo de vida e; (d) A organização da atenção à saúde. - A partir desse conceito, são estabelecidos os objetivos da promoção da saúde, igualmente distantes do preventivismo e do enfoque curativo também restrito; verdadeiro “mapa do território da saúde”, um potente instrumento de análise da saúde e das condições de vida capaz de abarcar a totalidade dos fatores determinantes, em uma visão unificadora do processo saúde-doença, por meio da facilitação da mediatização entre os problemas e as causas, além do esmiuçamento de cada componente. - Papel menos relevante exercido pelo fator organização da atenção em relação aos demais componentes. - Documento básico: Carta de Ottawa, resultado de uma reunião internacional sobre o tema realizada no ano de 1986. É uma “carta de princípios” que tem como enfoques centrais os aspectos conceituais e operacionais da promoção da saúde, bem como a ênfase na participação ativa no processo de promoção da saúde, propondo as estratégias das “políticas públicas saudáveis” e dos “ambientes favoráveis à saúde” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 199_). continua 74 Miolo_15anos_FINAL.indd      74 8/12/2010      12:16:27
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    continuação ENFOQUE NA POBREZA - Não é uma política explicitamente preconizada pelo sistema OPAS/OMS, mas uma preocupação que permeia seus documentos, acentuada em anos mais recentes. - Especial destaque no momento presente, em que outros organismos internacionais, como o Banco Mundial, parecem estar assumindo progressiva e alternativamente o papel de formulador de propostas de saúde para os países periféricos. - Pobreza caracterizada como: habitação em área geográficas mais ou menos definidas, existência peculiar de segmentos vulneráveis, geralmente nos grupos maternos e infantis, necessidade de ênfase preventiva na abordagem de seus problemas e, finalmente, atuação do sistema de saúde por meio de focalização de cuidados. - Combate à pobreza pressupõe não só a implementação de medidas de natureza econômica (geração de renda e emprego, por exemplo), como também provisão adequada de serviços assistenciais sociais básicos à população mais pobre, como os de saúde – matriz fundamental das recomendações sob o título genérico de “políticas contra a pobreza”, aí incluindo a Atenção Primária à Saúde, o saneamento básico, o planejamento familiar, os programas nutricionais, a educação para a saúde e a melhoria das condições de habitação (MESA LARGO, 1992). Fonte: Autoria própria 4. O caso brasileiro: ideologia e ação política Como se verá a seguir, a história das propostas de APS no Brasil remonta há 80 anos, porém é na década de 60 que se situam alguns dos eventos-chave para o entendimento da formação das ideias que acabaram desembocando no caudal que deu origem ao Programa de Saúde da Família no Brasil. Paim (1997) resgata um pouco da história de tais ideias, a partir dos movimentos do preventivismo e da saúde comunitária e também de uma produção teórica e crítica da saúde coletiva no Brasil, chamando a atenção para uma “luta contra-hegemônica” que envolveu a construção de novos modelos de atenção à saúde. Assim, mediante seus componentes de saber, ideologia e ação política, teria ocorrido o deslocamento de uma ênfase centrada meramente nos serviços para as condições de saúde e seus determinantes, com práticas de saúde imbuídas de caráter social e dimensões simultaneamente técnicas, políticas e ideológicas. Esse mesmo autor percorre a trajetória de alguns dos paradigmas de saúde-doença, entre eles o PSF, destacando que uns foram elaborados em contextos externos ao País, sendo apenas atualizados no Brasil. É assim que certo movimento ideológico passaria 75 Miolo_15anos_FINAL.indd      75 8/12/2010      12:16:27
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    a possuir umcaráter de ação política, conduzida por atores dos serviços de saúde, da academia e da sociedade como um todo. Um dos paradigmas que fazem parte de tal percurso é o da Medicina Comunitária, com raízes vinculadas tanto à crise do capitalismo como ao impacto dos resultados dos welfare states na Europa ou ainda à formação do National Health System no Reino Unido. Essa vertente estaria também associada à política externa norte-americana dos anos 60, voltada para os países pobres da América Latina, também conhecida como Aliança para o Progresso, que difundiu nos países-alvo sua proposta de saúde, com o apoio das agências internacionais. É dessa forma que surgem programas experimentais, geralmente abrigados em universidades, em diversos países, inclusive no Brasil, que propõem modelos de assistência com extensão de cuidados à saúde às populações pobres. A medicina comunitária viria a ter seu substrato teórico, político e ideológico consagrado e expandido na Conferência Internacional de Alma Ata, em 1978 (WHO, 1978), a partir da qual ela praticamente se confunde com a grande palavra de ordem gerada no evento: Atenção Primária à Saúde (APS). Suas propostas se organizam em torno de alguns elementos estruturais, os quais, segundo Silva Jr. (1998), são: (a) Coletivismo (embora criticado como “restrito”); (b) Integração da promoção, prevenção e cura; (c) Desconcentração de recursos; (d) Adequação das tecnologias; (e) Aceitação e inclusão de práticas não oficiais; (f) Novas práticas interdisciplinares e multiprofissionais e; finalmente, (g) Participação da comunidade. Tais diretrizes sempre estiveram no foco de intensas polêmicas não só no Brasil como em toda a América Latina, com denúncias dirigidas contra as possibilidades de controle sobre a sociedade, imposição de mecanismos de participação social, favorecimento da acumulação de capital aos produtores, manutenção e aprofundamento das desigualdades de acesso, entre outras. Curioso constatar, entretanto, que, em outro momento, particularmente na década de 90, essa crítica se atenua bastante e energias intelectuais vão se concentrar em encontrar soluções, não mais apenas em demolir as propostas colocadas em campo, vistas como eram sob uma ótica fortemente ideológica e até certo ponto “conspiratória” – a ação política de que fala Paim. Tal superação crítica é comentada por Paim (1997), que aponta certo “renascimento” da Medicina Social nas décadas de 70 e 80, como um paradigma alternativo ancorado nas concepções fundamentais relativas à determinação social do processo saúde-doença, bem como na dinâmica do processo de trabalho em saúde e, dessa forma, passaria a orientar as propostas democratizadoras e de reforma do sistema vigentes na década de 80, aliás, incorporadas na Constituição Brasileira de 1988. 76 Miolo_15anos_FINAL.indd      76 8/12/2010      12:16:27
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    Do ponto devista do histórico da APS, adquire especial importância uma publicação da Organização Mundial da Saúde, resultante de uma reunião de um “comitê de experts”, intitulada Training of the physician for family practice (WHO, 1963), na qual aparecem o escopo e os objetivos da Medicina de Família, referidos como acesso direto da clientela; continuidade da atenção; cuidado ao grupo familiar; ênfase na prevenção e promoção da saúde; responsabilização profissional; além de provimento de capacitação e atividades de pesquisa. Entre outros desdobramentos, a partir de 1966, tal movimento se dissemina nos Estados Unidos, favorecido pela poderosa American Medical Association (AMA), e até mesmo sua incorporação oficial, como uma política nacional para a formação profissional, também alcançando outros países, particularmente Canadá e México, já na década de 70. Paim (1986) aponta o fundamento ideológico de tal movimento, com um conjunto de práticas que busca substituir a formação especializada e técnica dos médicos pela atenção integrada e completa. Registram-se, a partir daí, vertentes de interpretação mais “saudosistas”, de resgate histórico de antigas práticas sepultadas pela tecnificação e pela mercantilização, em contraposição a concepções “racionalizadoras”, preocupadas com a redução de custos e a contenção de tecnologias. No caso brasileiro, os desdobramentos ideológicos conflituosos se acentuam a partir da década de 70, com os fortes embates existentes entre a Medicina Geral Comunitária (MGC), inspirada no modelo americano de Medicina de Família, com valorização dos conteúdos clínicos na formação versus a Medicina Social e suas congêneres, com pressupostos metodológicos inspirados na utilização das ciências sociais em saúde e voltados para uma ação racionalizadora na organização dos cuidados de saúde. A própria expressão médico de Família, característica da primeira vertente, experimentou percalços significativos em sua trajetória, sendo frequentemente rejeitada ou substituída por outras como “clínico-geral”, “médico-geral” ou simplesmente “médico”. Aqui cabe a pergunta: que fatores influenciaram as transformações ocorridas nesses conceitos e práticas, permitindo, entre outras coisas, a passagem de um movimento ideológico a uma ação política, conforme a expressão de Paim? Com efeito, a redemocratização do País abriu possibilidades para a ação política, à luz do dia, exercida mediante parcerias institucionais ampliadas, envolvendo novos e diferentes atores sociais. De maneira diferente das décadas anteriores, quem agora estava com a palavra e a vez não eram apenas as academias, nem os organismos internacionais, nem mesmo os órgãos centrais de governo. Havia simplesmente novos atores no jogo, os quais passaram também a formular e colocar em prática novas propostas no cenário – os municípios – como de resto o fizeram em relação a todo um conjunto de políticas públicas a partir dos anos 90 (MENDES, 1991; ESCOREL, 1987; GOULART, 1996). 77 Miolo_15anos_FINAL.indd      77 8/12/2010      12:16:27
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    As transformações citadastiveram o condão de retirar as propostas de mudança na saúde de um limbo de forte polarização ideológica e fraca operacionalização concreta, para um estatuto diferenciado, de programas oficiais, respaldados não só normativamente, mas também tecnicamente, pelos próprios serviços de saúde, pelas universidades e centros de pesquisa e, ainda, socialmente, por parte de segmentos organizados de usuários. A implantação das reformas do sistema de saúde no Brasil, na década de 80, preliminarmente com as AIS e os Suds e depois com o SUS, com a consequente municipalização das responsabilidades, por certo representou um estímulo fundamental para que os fenômenos de oficialização e ampliação de tais programas acontecessem. Nesse quadro, certamente se inserem outros determinantes, como: o incremento de intercâmbio de modelos com outros países; o desenvolvimento da capacidade formuladora dos organismos gestores; a qualificação da participação social; a ruptura com o caráter meramente demonstrativo e experimental das experiências realizadas nas décadas anteriores, além de outros. Independentemente das causas, o certo é que, na década de 90, políticas de governo como a de Saúde da Família reingressam com novo ímpeto e vigor no cenário da saúde, com evidente capacidade de permanência e enraizamento. 5. Uma pré-história que também é história Voltando às primeiras décadas do século XX, é aí que estabelece, pela primeira vez na história brasileira, uma política de saúde pública que fizesse jus a tal nome. O que havia, até então, era apenas a proteção a grupos populacionais restritos, por meio das chamadas Caixas de Pecúlio, da medicina para os militares e alguns outros funcionários governamentais, além daquela de origem religiosa ou filantrópica, destinada ao conjunto da população. A situação sanitária do País não podia ser pior: somente a epidemia da chamada gripe espanhola, em 1918, provocou milhares de mortes pelo País afora e havia também muitas outras ameaças permanentes, por exemplo, de varíola, febre amarela, malária, peste, tuberculose e de outras moléstias, mesmo em áreas urbanas, inclusive na capital do País. Nessa época é que surgem e se destacam figuras exponenciais da saúde pública brasileira nascente: Oswaldo Cruz, Emílio Ribas, Carlos Chagas. Do lado da população muita resistência e mesmo revolta com as medidas públicas saneadoras do governo federal, de cunho quase sempre autoritário e unilateral, com frequentes repercussões na imprensa da época, de maneira geral de oposição a elas, principalmente na capital da República (SINGER, CAMPOS, OLIVEIRA, 1979). Surge, nesse contexto, um novo ator internacional, a Fundação Rockfeller, ligada, como seu nome indica, aos interesses comerciais americanos, que já vislumbravam no Brasil um mercado promissor. A entidade teve atuação destacada no País desde 79 Miolo_15anos_FINAL.indd      79 8/12/2010      12:16:29
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    1909, com açõesvoltadas inicialmente para doenças específicas, como a febre amarela e a ancilostomíase, deixando outras, curiosamente, como uma espécie de “reserva de mercado” do Poder Público, por meio do antigo Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP) – antecessor remoto do atual Ministério da Saúde (COSTA,1985) A atuação da Fundação Rockfeller foi objeto, naturalmente, de forte controvérsia. Ligas voltadas para a saúde e o saneamento básico, reunindo parte da intelectualidade sanitária nacional, foram criadas e tiveram muito impacto na época, pelo seu ideário nacionalista e de oposição à ação dos americanos. A influência dessas associações civis, todavia, foi eclipsada à época pela ascensão da liderança de Carlos Chagas, um autêntico prócer da República Velha, que, ao assumir a direção do DNSP, não só favoreceu a ampliação da atuação da Fundação Rockfeller, como consagrou, de fato e de direito, uma divisão relativamente estanque de tarefas sanitárias, entre tal entidade e a DNSP (COSTA, 1985). Entretanto, nem tudo era reprodução do capital, interesses estratégicos e comerciais, imperialismo – conforme a grita dos críticos. Ou, mesmo que isso tenha existido de fato, a atuação da Fundação Rockfeller trouxe também influências modernizadoras que irão marcar positivamente a política nacional de saúde, de forma inédita até então. Destaque especial para a criação de uma rede de centros de saúde, em fins dos anos 20 e início dos anos 30, principalmente nos grandes centros urbanos do País, em que já mostravam, entre outras características de atuação, vinculação efetivamente estatal; base territorial regional de atuação; desenvolvimento de serviços permanentes (em oposição ao campanhismo emergencial até então vigente); vinculação municipal, e não mais apenas federal das unidades, agora descentralizadas, portanto; ênfase na educação sanitária; inclusão de práticas de saneamento, ou, pelo menos na consideração de tal fator nas condições de saúde-doença; atuação urbana e depois também rural; valorização da epidemiologia e das estatísticas vitais em geral no planejamento, mesmo que ainda precário, das ações de saúde. Bem ou mal, como pode ser visto, as bases para novos modos de atuação dos órgãos de saúde pública no Brasil estava lançada. A influência norte-americana também se fez notar na formação de sanitaristas brasileiros em universidades americanas, já na década de 20, em particular na conceituada Johns Hopkins University, na Filadélfia, considerando ser esta a primeira instituição, nesse gênero do Novo Mundo, profundamente influente, historicamente, nos Estados Unidos e nos demais países das Américas. Outra consequência da influência americana na saúde pública nacional foi a criação dos Serviços Especiais de Saúde Pública (SESP), como desdobramento de uma série de acordos estratégicos e comerciais entre os EUA e o Brasil, a partir de 1942. Isso fez parte 80 Miolo_15anos_FINAL.indd      80 8/12/2010      12:16:29
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    do esforço aliadode guerra, mediado pela organização governamental norte-americana conhecida pelo nome de Instituto de Assuntos Interamericanos (IAIA), em cujas origens estava presente o já conhecido empreendedor capitalista Nelson Rockfeller, patrono da fundação que lhe levava o sobrenome (BASTOS, 1991). O SESP (depois de 1960, FSESP, convertido que foi em fundação pública vinculada ao Ministério da Saúde) foi criado para atuar, inicialmente, nas áreas produtoras de borracha da Bacia Amazônica e de extração de minério de ferro, no Vale do Rio Doce, em Minas Gerais, aspectos associados diretamente ao esforço de guerra de então. Logo, entretanto, expandiu-se para outras regiões do País, marcadas pela pobreza e pelas más condições sanitárias e sociais, como era o caso do Vale do Rio São Francisco e da Região Nordeste, além de outras. Nos anos do regime militar teve sua ação estendida também para as áreas limítrofes às grandes rodovias de integração nacional, como a Transamazônica, Cuiabá-Santarém, Cuiabá-Porto Velho e Perimetral Norte, bem como aos projetos Carajás, Jarí e ao garimpo de Serra Pelada. Seu foco de ação compreendia a assistência individual, as ações preventivas e educativas em saúde, bem como o saneamento básico (BASTOS, 1991). Uma visão mais crítica por certo enxergaria as origens de tal organismo como mais um resultado dos interesses do capitalismo internacional, ou de sua pátria central, os Estados Unidos da América. O que estaria em jogo não seria apenas um pretenso esforço de guerra, fator imediato da iniciativa, a ser substituído no longo prazo pela cobiça pelas matérias-primas e pelo mercado brasileiro, então em expansão, além da afirmação estratégica da potência mundial em vias de consolidação. Isso não deixa de ser verdade, mas aqui também a presente análise buscará algo mais: a relevante contribuição que a fundação SESP trouxe às práticas de saúde no Brasil, da mesma forma que já havia acontecido com a criação da rede de centros de saúde nas décadas anteriores, capitaneada também por norte-americanos, no caso, baseados na Fundação Rockfeller. Mas o que trouxe a FSESP efetivamente de novo à política de saúde no Brasil? Aqui a análise precisa se destituir de preconceitos de natureza conspiratória ou estruturalista6. 6 A referência ao estruturalismo sociológico não será aqui objeto de aprofundamento, dado a natureza do presente texto. Refere-se a uma corrente de análise capitaneada geralmente por autores franceses (Althusser e Foucault, entre outros), aplicada amplamente à área da saúde, que teve grande expressão no Brasil nos anos 80, e que tendia a perceber de forma exacerbadamente crítica os serviços de saúde como mera instância de controle (sobre) a sociedade e instrumentos de reprodução ideológica e de capital, dentro de estruturas cuja mudança estava longe ou fora do alcance dos agentes atuantes nos organismos. Isso talvez faça parte do que Paim (1985), autor já citado aqui, intitulou do movimento ideológico dos anos 80, transformado no período pós-democratização em ação política, da qual resultou, em sentido amplo, a própria criação do SUS e, entre outros aspectos, a formulação da estratégia de Saúde da Família no Brasil. 81 Miolo_15anos_FINAL.indd      81 8/12/2010      12:16:29
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    Instituição profundamente hierarquizadae centralizada, a FSESP realizou, entretanto, notáveis feitos, na saúde pública brasileira, tendo sido o primeiro órgão público a prestar serviços de atenção integral à saúde, de forma contínua, associando prevenção, promoção da saúde e assistência curativa. Desenvolveu, além do mais, técnicas e procedimentos inovadores relativas ao processo de trabalho em suas unidades de saúde, que possibilitaram a expansão de cobertura de programas de controle de doenças endêmicas, crônicas e degenerativas, além de outras. De forma também inédita no Brasil, promoveu a incorporação e a capacitação de pessoal de nível médio no trabalho em saúde. No elenco de atividades de seus serviços, estavam presentes ações de reidratação oral, alojamento conjunto para recém-nascidos, visita domiciliar, capacitação de parceiras leigas, prevenção do câncer, captação e registro de nascimentos, óbitos e outras informações vitais; odontologia sanitária, além de outras que, somente décadas mais tarde, com o advento do PSF, foram incorporadas aos serviços de saúde no Brasil. Do ponto de vista gerencial, sistematizou os processos de programação e avaliação em todos os níveis do sistema de saúde, com quantificação de objetivos e metas, criou centros regionais de estatísticas vitais e de mortalidade, organizando também o primeiro centro nacional de processamento de dados em saúde, em 1976. Atuou também no campo do saneamento básico, por meio dos chamados serviços autônomos de água e esgoto (SAAE), que ainda hoje têm presença marcante, seja diretamente ou por meio de seus sucedâneos municipalizados, em muitas cidades brasileiras (RISI, 2008). A FSESP chegou a atuar em cerca de seis centenas de municípios, operando mais de 800 Unidades Básicas de Saúde e mais de 1.300 SAAE, dando cobertura a nada mais do que dez milhões de cidadãos brasileiros. A partir de 1991, sua estrutura foi incorporada pela recém-criada Fundação Nacional de Saúde (Funasa), juntamente com outros órgãos da estrutura federal de saúde, entre eles a SUCAM, a Secretaria Nacional de Ações Básicas de Saúde (SNABS) e o Datasus (desmembrado do Dataprev/MPAS). Como se vê, a história da atenção básica no Brasil não pode ser contada sem incluir a participação pioneira e qualificada de tal entidade. 6. Pioneirismo e resistência Mas há mais coisas a relatar... Entre elas os diversos movimentos de resistência democrática na área da saúde, que incluíram em seu bojo a rediscussão do modelo de atenção até então vigente no País e, dessa forma, a proposição de novos processos de trabalho e de reorganização das práticas sanitárias no Brasil. 82 Miolo_15anos_FINAL.indd      82 8/12/2010      12:16:29
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    Assim é que,já nos anos 70, particularmente no eixo Rio de Janeiro–São Paulo, começam a aparecer movimentos organizados envolvendo intelectuais, profissionais de saúde, docentes universitários e outros interessados, tendo como pano de fundo a denúncia da crise do sistema de saúde, das más condições sanitárias e nosológicas do País e da precariedade do exercício profissional (ESCOREL, 1987). Entre outros eventos produzidos no âmbito de tais movimentos, todos ocorridos na segunda metade da década de 70, podem ser citados: a formação de um grupo médico de oposição sindical, denominado Renovação Médica; a fundação do CEBES e da revista Saúde em Debate; a realização do I Congresso Paulista de Saúde Pública; a realização do I Simpósio de Política Nacional de Saúde na Câmara dos Deputados; a fundação da ABRASCO; a realização das Semanas de Saúde Comunitária e dos Encontros Nacionais de Estudantes de Medicina, entre outros. Além deles, deve ser lembrada a existência de grupos mais informais de resistência e convergência de pensamento progressista em saúde, como é o caso do Grupo Novo Mundo, esse último numa alusão ao tradicional hotel da Praia do Flamengo, no Rio de Janeiro, onde se reuniam os membros (GOULART, 1996). Com efeito, foi uma época movimentada na saúde brasileira. Em 1980, o governo federal, na tentativa de colocar luz e ordem sobre a situação caótica do sistema de saúde e também para refazer os equívocos de famigerada lei “do sistema nacional de saúde” de 1976, que não “pegou” por absoluta insuficiência de coerência com a realidade brasileira, lança um programa de integração entre os Ministérios da Saúde e da Previdência intitulado muito a propósito de Prev-Saúde. Em 1983, reformas dentro da máquina do INAMPS dão à luz o programa intitulado Ações Integradas de Saúde (AIS), com expectativas ambiciosas de integrar mais uma vez as máquinas públicas na área de saúde, mas com expressivo sucesso em incorporar na gestão dos Estados e municípios as ações de saúde antes exclusivas do INAMPS. Em 1986, ocorre a VIII Conferência Nacional de Saúde, a primeira em toda a história desse tipo de evento a contar com participação política e social ampla, muito além da representação exclusiva da burocracia federal de saúde, como acontecera nas sete conferências anteriores. 1987 é o ano em que governo federal, já como resposta às proposições da VIII CNS, emite o decreto que cria o SUDS, institucionalizando de forma mais intensiva e formalizada a participação dos Estados e municípios no sistema de saúde. Em 1988, é promulgada a nova Constituição Federal, fruto da redemocratização do País, e dentro dela é criado o Sistema Único de Saúde (SUS). Em todos esses momentos, estiveram presentes ideias relativas ao temário de Alma Ata, por um lado, mas, por outro lado, as propostas e as experiências que vinham sendo desenvolvidas em todo o País já havia alguns anos, seja no âmbito de universidades, de governos municipais e estaduais, de entidades civis diversas. Em suma, algumas 84 Miolo_15anos_FINAL.indd      84 8/12/2010      12:16:31
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    palavras de ordemestavam dadas, entre elas, sem dúvidas e de forma enfática Atenção Primária à Saúde (GOULART, 2007). Ao se falar dos movimentos em saúde no Brasil, é preciso lembrar algo que surge, nos anos 70 e, talvez, até um pouco antes, em alguns municípios brasileiros, traduzido por propostas inovadoras no campo da atenção à saúde. Sua importância deriva não só de seu pioneirismo, considerando que, à época, aos municípios era conferido pouco ou nenhum poder em matéria de saúde, mas também de sua capacidade de resistência e de proposição de novas alternativas em política de saúde, em oposição ao modelo médico- privativista dominante, apoiado pela instância máxima da política de saúde no País, qual seja o antigo INAMPS. Foram numerosos esses municípios e nem todos tiveram suas experiências e propostas de saúde documentadas, mas, certamente, alguns podem ser destacados: Lajes/SC; Boa Esperança/ES; Londrina/PR; Piracicaba/SP; Belo Horizonte/ MG; Campinas/SP; São José dos Campos/SP; Montes Claros/MG7; Niterói/RJ, Vitória da Conquista/BA, entre outros (GOULART, 1996). O que unia essas experiências municipais não era tanto o fato de terem administrações “progressistas” ou mesmo de oposição ao regime militar – algumas talvez não se enquadrassem em nenhuma dessas duas categorias – mas sim por suas propostas de políticas inovadoras na saúde, nas quais se incorporavam elementos que até então faziam parte de um ideário ainda remoto no Brasil, trazido pelos ecos da famosa Reunião de Alma Ata. Mas aqui e ali começam a despontar novos ingredientes que contemplavam, entre outros aspectos, o foco na Atenção Primária à Saúde; o ideal da saúde para todos, sem distinções; a participação comunitária; a organização de distritos sanitários; a utilização da epidemiologia no planejamento das ações de saúde; o foco nos territórios; a utilização das terapias não convencionais e, principalmente, a incorporação de novos agentes de práticas de saúde, com diversas denominações locais e regionais, mas que convergiram, com certeza, para o que hoje se conhece em toda parte como agentes comunitários de saúde. Assim é que, na década de 80, vão se tornando cada vez mais frequentes experiências que vieram a ter repercussão importante nos programas atualmente desenvolvidos não só no PACS como em outros, na Região Nordeste (CARVALHO; RIBEIRO, 1998), onde 7 A experiência ocorrida em Montes Claros não tinha, rigorosamente, origem municipal. Antes fazia parte de um acordo internacional do governo de Minas Gerais, no início dos anos 70, para desenvolvimento de um sistema de saúde regionalizado e hierarquizado, que servisse de modelo para o processo de descentralização de saúde que iniciava a ser implantado no Estado. Entre suas características, estava a prestação de serviços médicos simplificados e utilização de pessoal de nível médio nos moldes aproximados do Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento (PIASS) do Ministério da Saúde, a ser comentado adiante. Para mais detalhes, ver FLEURY (1995). 85 Miolo_15anos_FINAL.indd      85 8/12/2010      12:16:31
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    ele se originoue também em outras partes do País. São programas que podem ser considerados herdeiros das propostas ditadas pelo figurino da reunião de Alma Ata, realizada no final na década anterior. Eles desenvolveram, como característica principal, o enfoque nas clientelas de alto risco, tanto em regiões rurais como nas periferias das grandes cidades, primando, ainda, pela recusa à densidade tecnológica de suas ações. Uma parte apreciável dessa história está contada na verdadeira epopeia que foi a criação e o desenvolvimento, ainda nos anos 70, mediante iniciativa do Ministério da Saúde em associação com o INAMPS, do Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento (BRASIL, 2008) e, em torno de uma década depois, do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), inicialmente no Estado do Ceará. Ambos tinham como características principais o enfrentamento da enorme escassez de médicos e enfermeiros, além de infraestrutura física em saúde, se não rudimentar, prevalente em regiões pobres do País, com a retomada das propostas já vigentes desde os anos 40 na FSESP de utilização de pessoal de nível médio para assumir um papel central, muitas vezes único, nos cuidados de saúde, mediante treinamento ad-­hoc. Entre as inúmeras experiências pioneiras que convergem de forma mais aproximada da Estratégia Saúde da Família tal qual é conhecida hoje, vale a pena destacar aquelas realizadas em Porto Alegre (Vila de São José do Murialdo), ainda na década de 70; em São Paulo, nos anos 80; e em Niterói, já nos 90 (GOULART, 2007). Trata-se de uma lista não exaustiva, naturalmente. As experiências desenvolvidas nos anos 70 e 80 na cidade de Porto Alegre, dentro do enfoque da então denominada Medicina Geral Comunitária, possuem uma história comum em muitos aspectos essenciais, por exemplo: terem os mesmos atores fundadores e apoiadores; possuírem vínculos institucionais públicos; associarem- se a práticas de formação e capacitação de pessoal; exercerem certo efeito demonstrativo (pelo menos em seu início); apresentarem sucessão de movimentos de expansão e retração (sístoles e diástoles) em sua trajetória, entre outros. Além disso, apresentaram expressiva articulação externa, com a formação gradual de uma rede importante de contatos e apoios externos técnicos e políticos, além de busca crescente de institucionalização. Os dois casos de Porto Alegre, originados no Grupo Hospitalar Conceição (GHC) e na Unidade Básica de Saúde de Murialdo, tiveram, ainda, tendência de gradual inserção nos sistemas de saúde locais, mediante ajustamento e sintonia política com seus gestores, com a incorporação, por partes desses, de uma gramática típica dos programas, com palavras de ordem e diretrizes tais como responsabilização, territorialização, hierarquização, regionalização e participação. Nessa condição, primaram também por 86 Miolo_15anos_FINAL.indd      86 8/12/2010      12:16:31
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    buscar a superaçãoda condição de serem meros exercícios de efeito demonstrativo ou de visibilidade acadêmica, sendo notório que em sua evolução obtiveram amplo reconhecimento externo e de transformação em centros de referência regionais e nacionais na capacitação para o PSF e a atenção básica em geral. Além disso, da mesma forma que outros programas, penaram com as dificuldades derivadas da insuficiência histórica da política de financiamento da atenção básica no País, bem como dos fatores culturais que fazem da prática generalista em saúde uma atividade até certo ponto marginal, pelo menos no meio médico. De forma sintética, as duas experiências mostraram ao longo de sua existência marcante diferenciação da natureza das práticas desenvolvidas em cada instituição: hospitalar, clínica, de resolução individualizada no GHC, enquanto em Murialdo o caráter sempre foi comunitário, social, com ênfase na vigilância à saúde. As experiências pioneiras desenvolvidas em Porto Alegre se aproximam também se distanciam das experiências municipais de APS desenvolvidas no Brasil. Uma comparação aprofundada entre as duas categorias não seria cabível, dada a inserção e o processo de desenvolvimento radicalmente diferentes entre elas. Mas, mesmo diante de tais diferenças, alguns pontos comparativos podem se estabelecer. Em primeiro lugar, as experiências se aproximam, dada a participação de atores “fortes” em seus processos de formação e desenvolvimento, tanto do ponto de vista de suas características pessoais de carisma e liderança, como na sua inserção conspícua na política institucional e nas articulações externas que possuíam. Em ambos os grupos, houve também a concorrência de um ambiente político-institucional adverso, daí resultando o exercício permanente de processos de conflito sucedidos por negociação e superação. O isolamento e o posicionamento na “contracorrente” foram algo visível em algumas das experiências de municípios também. As articulações externas das instituições mantenedoras foram essenciais para a sobrevivência em todo o conjunto, havendo momentos em que a sustentabilidade das ações se apoiou essencialmente nesse fator. Da mesma forma, o processo antes denominado de sístoles e diástoles esteve presente em uns e outros casos. Como grandes linhas diferenciais, podem ser citadas: as diferentes inserções institucionais; a abrangência geográfica; o modo de vinculação ao sistema de saúde; as preocupações com qualificação e formação profissional versus a mudança do modelo assistencial em saúde; a natureza dos projetos, mais “médicos” e “técnicos” de um lado e “políticos” de outro. 87 Miolo_15anos_FINAL.indd      87 8/12/2010      12:16:31
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    Em suma, aimportância das experiências pioneiras do Sul do País, seja a do CS Murialdo, seja a do Grupo Conceição, é patente, devendo ser apreciada pela influência que exercem sobre as práticas profissionais e os próprios sistemas de saúde, não só da região como de outras partes do Brasil; o impacto que proporcionam ao sistema de saúde local e regional; sua vocação de se constituírem aparelhos formadores de peso em Saúde da Família; sua influência na própria formulação do PSF nacional; entre outras. O Programa Médico de Família da SES de São Paulo foi, na verdade, uma experiência de curta duração, que aparentemente deixou poucas marcas locais, mas que teve a importância, segundo Santos (2002), um ator participante dela, de ter aberto as portas para a ampliação da discussão sobre a Medicina de Família e a Atenção Primária à Saúde no Brasil. Seu início se deu na segunda metade dos anos 80, quando Orestes Quércia assume o governo de São Paulo e nomeia Secretário de Saúde do Estado José Aristodemo Pinotti, um médico ginecologista de Campinas e professor titular da Unicamp de grande renome na área de saúde da mulher e que, naquele momento, parecia inclinado em dar uma “virada” em uma carreira docente e científica bem-sucedida, em direção à política partidária e eleitoral. O movimento mais imediato foi o contato com consultores cubanos, dadas as ligações que intelectuais paulistas ligados ao PMDB, na ocasião, capitaneados pelo escritor Fernando de Moraes, tinham desenvolvido com o governo de Cuba. Assim, a experiência de médico de Família, naquele momento ainda incipiente na ilha, foi trazida ao Brasil. A condução do projeto Médico de Família foi entregue à médica Eliane Dourado, que tinha experiência em projetos inovadores de natureza semelhante em município da Região Metropolitana da capital paulista e que também contribuiria, alguns anos depois, para a implantação do PSF nacional. A concepção era eminentemente cubana, ou seja, centrada em médicos generalistas residindo na própria comunidade, em prédios especialmente projetados, englobando moradia e consultório. Pouco mais de uma dezena dessas unidades foi construída, por volta de 1988, todas na periferia do município de São Paulo. O projeto teve vida curta, dado que Pinotti se afastou do cargo para candidatar-se ao governo de São Paulo. Nesse interregno, o programa teve solução de continuidade, não se tendo notícia de como foram aproveitados seus quadros (se é que o foram) e do destino dado às unidades construídas. Foi um programa bastante criticado, seja à direita, seja à esquerda, segundo o mesmo interlocutor (SANTOS, 2002). De um lado, a poderosa Associação Paulista de Medicina, suspeitando da “esquerdização” que poderia ser propiciada por uma ideia gerada em Cuba; de outro, o Sindicato dos Médicos, denunciando o caráter paliativo ou de cesta básica dele. No próprio movimento sanitário da época, ou seja, nas entidades nacionais como o CEBES e a ABRASCO, ou entre os 88 Miolo_15anos_FINAL.indd      88 8/12/2010      12:16:31
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    secretários municipais desaúde, o projeto não obteve aprovação ou maior penetração, ficando como uma ação até certo ponto marginal. O Programa do Médico de Família de São Paulo teria passado em brancas nuvens não fossem alguns de seus desdobramentos, de natureza ideológica e intelectual, conforme ainda a visão de Santos (2002). Repercussão não negligenciável, segundo esse interlocutor, teria sido a de contribuir para a dissolução de algumas resistências que a esquerda ou os setores progressistas em geral tinham em relação ao tema da Medicina de Família ou mesmo da Atenção Primária à Saúde. Outro desdobramento desse programa pioneiro teria sido de gerar um mote captado por muitos secretários municipais de saúde, que passaram a incluir o tema da APS em suas agendas. Um possível e paradigmático exemplo é o de Niterói, descrito a seguir. Nos anos 70, surge o chamado Projeto Niterói, um espaço autônomo de organização e resistência em saúde, formado por técnicos de múltiplas instituições, com articulações externas importantes, que não contavam com endosso do poder municipal, com o qual haviam rompido e sido expulsos. O Projeto Niterói organiza- se como uma instância de reflexão política e técnica, tendo como pano de fundo o ideário da reforma sanitária, ainda incipiente na ocasião. Na década de 80, o Projeto Niterói se institucionaliza e se aproxima novamente da Secretaria Municipal de Saúde, com a presença de alguns atores externos, por meio da OPAS, destacando-se o médico cubano Carlos Petres, que abriria mais adiante caminho para um profícuo intercâmbio com Cuba. Na sequência, já com a SMS dirigida por um grupo de técnicos ligados ao Projeto Niterói, foram desencadeadas mudanças na política de saúde local, entre elas a municipalização geral dos serviços de saúde; a distritalização sanitária; a constituição de uma rede hierarquizada e regionalizada de serviços e a implantação do Programa Médico de Família (PMF), em 1991, o qual, como se verá, influenciará de forma marcante a criação do PSF nacional, três anos depois (TOMASINI, 1996; GOULART, 2007). A cooperação técnica com Cuba se amplia a partir de 1991, com a vinda de consultores e estágios de técnicos locais naquele país, além de cursos para a formação de equipes do PMF. Um fator favorável ao processo de implementação da política de saúde na década de 90 foi a continuidade política no município, com a permanência de um único secretário, Gilson Cantarino O’Dwyer, no cargo por praticamente 10 anos, acompanhado de uma mesma equipe. 89 Miolo_15anos_FINAL.indd      89 8/12/2010      12:16:31
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    O PMF começouse estruturando de forma consequente, contemplando áreas de atuação em função de seu grau de exclusão social, do baixo acesso a serviços, bem como da existência de um movimento de moradores organizado. Um aspecto diferencial do PMF foi a composição e o processo de trabalho de suas equipes técnicas, constituídas apenas por médico e auxiliares de saúde, semelhante ao modelo cubano. Estava previsto que o médico tivesse 50% de seu tempo destinado formalmente a visitas domiciliares e a outros trabalhos de campo. Outro aspecto distintivo era a realização de reuniões entre a equipe do PMF, supervisores da SMS e representantes das associações de moradores, que, em etapa seguinte do programa, passaram a contratar, com recursos públicos, o pessoal lotado nas unidades do PMF, constituindo assim mais um aspecto inédito no programa de Niterói. As chamadas equipes de supervisão, ou seja, a retaguarda técnica das equipes locais, com seu caráter multidisciplinar e capacitação inicial realizada diretamente pela cooperação técnica cubana, tinham, ademais, como aspecto destacado de seu trabalho, o exercício de consultance perante as equipes, à maneira inglesa, o que sem dúvida também veio a influenciar alguns desdobramentos do PSF, por exemplo, a criação recente dos Núcleos de Apoio de Saúde da Família (NASF). 7. A ação política: formulação da política de Saúde da Família nos anos 90 O quadro da saúde no momento imediatamente anterior à formulação do PSF não parecia ser muito favorável ao desenvolvimento de propostas novas ou inovadoras no setor. Com efeito, o governo de Fernando Collor havia retrocedido nos avanços obtidos durante a Nova República, particularmente na questão do financiamento. Em 1993, já no governo de Itamar Franco, o Ministério da Previdência Social determinou unilateralmente as transferências do MPAS para a saúde, resultando em perdas da ordem de US$ 2 bilhões (CARVALHO, 2002). É bem verdade que os indicadores de saúde vinham em melhora progressiva já no início da década, por exemplo, na mortalidade materna e infantil, porém, nesse período, observou-se certa mudança de ritmo de queda e, no caso da mortalidade materna, chegou a haver mesmo um ligeiro aumento da taxa entre 1993 e 1995, embora tal mudança não pudesse ser imputada diretamente a alguma piora, mesmo momentânea, das condições de vida e saúde da população. Os anos 90, particularmente seu início, albergariam, assim, uma autêntica crise da saúde ou, para ser mais preciso, a continuidade e o agravamento de uma crise precedente. Vários fatores encontravam-se presentes, entre eles, queda do financiamento, irracionalidade, exclusão social, problemas de imagem do sistema perante seus usuários etc. Na 90 Miolo_15anos_FINAL.indd      90 8/12/2010      12:16:31
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    ocasião, Faveret eOliveira (1989) cunharam a expressão “universalização excludente”8 para qualificar a associação entre uma “expansão por baixo”, pela inclusão de milhões de indigentes, e uma “exclusão por cima”, mediante a qual segmentos de trabalhadores mais qualificados e a classe média em geral renunciam à assistência pública pelo SUS, em busca de atendimento mais qualificado nos planos de saúde. Vianna (1997) deplora que, apesar da concepção “europeia” cogitada pelos legisladores constituintes de 1988, a proteção social e à saúde no Brasil vinha acumulando evidências de uma verdadeira “americanização”, especializando-se em parcos benefícios para os mais pobres, enquanto ao mercado ficava reservada a atenção aos mais aquinhoados e capazes de remunerar serviços diretamente ou mediante seguro. Esses são alguns elementos do contexto em que o PSF foi formulado no País. O programa, além disso, nasceu em um momento em que a questão da pobreza estava bastante em evidência no País, traduzida, por exemplo, pela utilização do “Mapa da Fome” na alocação dos recursos previstos (VIANA, 2000). Havia, de um lado, um movimento civil coordenado pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, e, de outro, a atuação do governo de Itamar Franco, buscando sintonia com as propostas oriundas da sociedade. O contexto social e econômico do início dos anos 90 era, em resumo, o seguinte: (a) O número de pobres era estimado em cerca de 59,4 milhões em 1993 e o de miseráveis, no mesmo período, em 27,8 milhões e a desigualdade na distribuição da renda nacional era – como continua sendo – marcante, com o chamado Índice de Gini de 0,605, em 1993 (LAHÓZ, 2002); (b) A taxa de desemprego aberto era de 5,32, em 1994, considerada emblemática da mais grave crise de emprego na história do Brasil e aprofundada nos anos seguintes (OLIVEIRA, 2002); (c) Embora aquém de metas desejáveis, a partir de 1995, as aplicações em saneamento e infraestrutura urbana, da ordem de US$ 5,29 bilhões, foram cerca de 35% superiores à média anual registrada entre 1980-1993; (d) O processo de urbanização do País prosseguia de forma acelerada e, no início da década, apenas cerca de 20% da população vivia nas chamadas cidades pequenas, com menos de 20 mil habitantes e o déficit habitacional brasileiro, em 1995, era quatro milhões de unidades nas zonas urbanas e 1,6 milhão nas rurais, além de 10,6 milhões de unidades sem infraestrutura adequada; (e) Além disso, entre 1991 e 2000, o número de favelas cresceu cerca de 22,5% (PAULA, 2002). 8 O fenômeno da universalização excludente poderia ser interpretado por alguns com uma «vantagem» para o sistema e como um reforço do princípio da equidade, considerando que se retiram dele pessoas contribuintes, deixando ao mesmo tempo de receber benefícios. Isso não leva em conta, todavia, o fato de que muitos desses «excluídos» de que falam Faveret e Oliveira na verdade voltam a se «incluir» no sistema quando demandam procedimentos de mais alta complexidade – também os mais dispendiosos. 92 Miolo_15anos_FINAL.indd      92 8/12/2010      12:16:33
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    A formulação einício da implementação do PSF praticamente coincidiu com o advento do Plano Real, um conjunto de políticas que, nos anos seguintes, produziu marcantes transformações sociais e econômicas na vida dos brasileiros, tendo sido até mesmo considerado como a principal ação social de governo em toda a década, pois, na vigência, mais de nove milhões de pessoas deixaram de ser tecnicamente pobres e cerca de 80% das famílias tiveram aumento efetivo de renda – a renda real dos 10% mais pobres simplesmente dobrou entre 1993 e 19959 (LAHÓZ, 2002). Outra característica da era que se sucede à formulação do PSF, e que corresponde ao período inicial de implementação dele, refere-se ao padrão de relacionamento político entre o Executivo e o Legislativo, caracterizado, segundo Chagas (2002), pela existência de um autêntico “rolo compressor”, formado por uma poderosa base parlamentar – politicamente de alto custo –, que, entre outras mudanças institucionais, viabilizou a manutenção, por períodos sucessivos, da CPMF, bem como alterou a Constituição em busca de novas fontes e vinculação do financiamento setorial, com a promulgação da Emenda Constitucional 29. Retomando o curso histórico da narrativa, o impeachment de Fernando Collor, em 1992, e sua sucessão por Itamar Franco levaram à nomeação para o Ministério da Saúde de um Ministro – Jamil Hadad – e de uma equipe de assessores não só vinculados a um ideário dito progressista em saúde, como muitos deles de incontestável militância na Reforma Sanitária e, inclusive, alguns ex-secretários municipais de saúde10. Formou-se, assim, um clima de mudança, pois a nova gestão havia encontrado uma marcante paralisia decisória no Ministério da Saúde, como de resto em outros setores da administração federal, agravada nos estertores do Governo Collor. Um pouco antes fora realizada a IX Conferência Nacional de Saúde, a qual, embora defendida e conduzida de forma destemida pelo Ministro anterior, Adib Jatene, foi mais um evento político a demonstrar a insatisfação no País. Não havia, na ocasião, grandes propostas de avanço e, mesmo que as houvesse, a conjuntura era francamente desfavorável a qualquer implementação de inovações. 9 Embora os efeitos das políticas sociais do período do Plano Real, entre elas o PSF, possam ter sido potencializados pelos benefícios gerados pelo melhor desempenho da economia, é preciso ter cautela quando a uma interpretação estreita de tal correlação, do tipo causa-efeito¸considerando que as políticas sociais também podem gerar, de per se, efeitos positivos nas condições de vida e saúde da população. Esse tema, naturalmente, é objeto de um debate acalorado entre os especialistas em economia e políticas públicas. 10 Alguns nomes que fizeram parte da equipe de Jamil Hadad no Ministério da Saúde, entre 1993 e 1994, portadores do perfil citado: Carlos Mosconi (Deputado Federal e Presidente da Comissão de Seguridade Social na Assembleia Constituinte); Gilson de Cássia Marques de Carvalho (ex-Secretário Municipal de Saúde de São José dos Campos/SP; Jorge Bermudez (Pesquisador da ENSP/FIOCRUZ); José Alberto Hermógenes (ex-Secretário de Saúde da Bahia); Adnei de Moraes (ex-Prefeito de Poços de Caldas/ MG), além do autor deste trabalho (ex-Secretário Municipal de Saúde de Uberlândia/MG e ex-Vice Presidente do CONASEMS). 93 Miolo_15anos_FINAL.indd      93 8/12/2010      12:16:33
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    Contavam os novosgestores do Ministério da Saúde com um respeitável arco de forças políticas favoráveis à mudança na saúde, tendo também como fator positivo o fato de estar o presidente Itamar Franco mais preocupado com a economia como um todo do que com os detalhes da gestão em saúde. Assim, mesmo em conjuntura econômica e institucional desfavorável, os ventos corriam a favor das propostas de transformação. O período de gestão da saúde iniciado nesse momento, que correspondeu à formulação e implementação da Norma Operacional Básica de 1993, foi marcado por fortes conflitos e antagonismos, autênticas disputas intraburocráticas, fora e dentro do Ministério da Saúde. Setores ligados à estrutura tradicional, tais como Procuradoria Jurídica, Auditoria, Finanças, Convênios e outros, geralmente ocupados por funcionários de carreira egressos das antigas Secretarias Nacionais, bem como do INAMPS e da Funasa, tinham sua atuação marcada pelo levantamento de reiterados obstáculos normativos, de forma a obstaculizar o processo de descentralização, principalmente dos repasses entre fundos de saúde e nos pagamentos dos fatores de incentivo (GOULART, 2007). Também em outros setores do governo (Planejamento, Previdência Social e Secretaria de Orçamento e Finanças), o jogo não era menos pesado11. Em reuniões interministeriais para discutir a questão orçamentária da saúde, frequentemente, a argumentação por parte dos técnicos desses setores, devidamente apoiados pelos titulares, era de que a solução para os problemas da saúde estaria na criação de barreiras financeiras para o usuário, distribuição de vauchers etc. (GOULART, 2007). Nesse período, ocorreria ainda a substituição intempestiva de Jamil Hadad por Henrique Santilo, portador de um perfil mais conservador, além de mais disposto a realizações de efeito político, ou de ações localistas para seu Estado (Goiás) ou de repercussão mais imediata. Não foram fora desse espírito que ocorreram algumas das grandes realizações de Santilo à frente do Ministério da Saúde, quais sejam a criação do Programa de Saúde da Família e a constituição do Programa de Interiorização do SUS (PISUS), deixando quase intocadas as questões mais estruturais, como descentralização e financiamento. Em outros aspectos, porém, Haddad e Santilo se equivaliam: eram ambos muito frágeis nos seus embates com a área econômica do governo (GOULART, 2007). Henrique Santilo havia sido governador de Goiás na década de 80, ocasião em que já havia lançado proposta semelhante à dos agentes comunitários de saúde. Um de seus 11 Para o devido registro histórico, alguns dos poderosos membros de uma espécie de «tropa de choque» antissaúde espalhados pela administração pública federal foram: Murilo Portugal, da Secretaria de Orçamento e Finanças do Ministério da Fazenda; Ministro Fernando Henrique Cardoso; Francisco Oliveira – o Chico Previdência – técnico de carreira do IPEA, lotado no MPAS na ocasião (já falecido) e Raul Jungmann, Secretário Executivo do Planejamento). 94 Miolo_15anos_FINAL.indd      94 8/12/2010      12:16:33
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    assessores era umtécnico brasileiro do Unicef, Halim Girade, que acumulara marcante experiência em trabalhos comunitários em Goiás e outros Estados do Brasil. Girade foi incumbido pelo Ministro Santilo de desenvolver ideias relativas a um novo modelo de atenção para comunidades pobres e sem médico, tendo como referência a experiência desenvolvida em Goiás na década anterior (GIRADE, 2000). Aquilo parecia ser, além do mais, a “única possibilidade de avanço possível”, na visão de um dos protagonistas dos acontecimentos daquele momento (SOUZA, 2000). Sousa (2001) relata a entrega a Santilo de um documento produzido em um encontro nacional de enfermeiros coordenadores de PACS, em Brasília, com destaque para uma agenda de prioridades a serem assumidas nacionalmente. Seus formuladores imaginavam que ele traria consequências importantes para o PACS, mas não tinham maiores expectativas em que tivesse também influências na criação de um novo programa, o PSF, como veio a acontecer. As ideias pensadas e formuladas no âmbito do Ministério da Saúde de Santilo nos idos de 1993 tinham, segundo Girade, forte influência de algumas experiências em andamento no País, como as de Niterói, do Grupo Hospitalar Conceição, ligado ao Ministério da Saúde, da SES de São Paulo e de Quixadá, no Ceará. Havia demandas intempestivas do Ministro para que tudo fosse pensado e formalizado no curto prazo. O fato é que, no dia 27 de dezembro de 1993, se reuniram no Ministério da Saúde representantes12 das experiências citadas, alguns consultores, e, então, foram definidas as bases do que viria a ser o Programa Saúde da Família, mediante uma proposta que “não era nenhuma das presentes, mas que procurava ser uma síntese de todas – o melhor para as condições do País”, segundo Girade. Nos termos colocados no pensamento de Maquiavel, se Santilo não era detentor de grande virtude (em termos técnicos e políticos), certamente teve a seu lado o enorme impulso da fortuna... Com efeito, esse político goiano estava no lugar certo e teve a sorte ou se fez rodear das pessoas certas, daí nascendo o Programa (hoje Estratégia) Saúde da Família. O Unicef, que já vinha apoiando também o PACS, teve grande destaque nessa etapa inicial, proporcionando apoio político, técnico e mesmo financeiro, com a presença de dois de seus oficiais de projeto, Halim Girade e Oscar Castillo, que atuaram diretamente na produção dos primeiros documentos referentes ao programa. 12 Os participantes dessa histórica reunião de 1993 foram, além de Henrique Santilo e Halim Girade, Gilson Cantarino, então Secretário Municipal de Saúde de Niterói; as enfermeiras Heloiza Machado de Souza, do Paraná, e Fátima Souza, da Paraíba; Carlos Grossman e Airton Stein, médicos do GHC de Porto Alegre; Luis Odorico Andrade, Secretário Municipal de Saúde de Quixadá/CE; Oscar Castillo, técnico do Unicef; Álvaro Machado, da Fundação Nacional de Saúde; Eugênio Villaça Mendes, da OPAS, além de representantes da SES-Ceará e SES-Goiás. 95 Miolo_15anos_FINAL.indd      95 8/12/2010      12:16:33
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    Naquele momento, começama tomar parte não só nas discussões para a formulação, como também nas primeiras gestões para a implementação do PSF, alguns técnicos que viriam a conferir a ele uma marca nos anos seguintes. Tal grupo técnico, formado mais por enfermeiras do que por médicos, tinha como componentes pessoas com passagem por serviços de saúde, geralmente no interior do País, e além do mais envolvidos com programas de atenção primária. Além disso, não eram pertencentes a uma burocracia pública de carreira federal; antes, vieram para o Ministério da Saúde como autênticos “executivos da saúde” de extração técnica, com atribuição específica de trabalhar no programa recém-criado13. Sobre o que resultou dessa série de eventos significativos, Paim considera que o PSF passa a pertencer, de fato, à categoria das políticas democratizadoras da saúde na década de 90, em contraposição ao caráter meramente racionalizador das políticas de momentos anteriores. Além do mais, credita ao programa em pauta o caráter de verdadeiro “modelo tecnoassistencial de base epidemiológica”, configurando-se como legitimamente ancorado em dois dos conceitos fundamentais da Medicina Social contemporânea, quais sejam a determinação social do processo saúde-doença e o enfoque nos processos de trabalho em saúde (PAIM, 1997). Havia outros ingredientes propícios a mudanças desse tipo no ambiente político, todavia. Carvalho (1994), por exemplo, discute a “introdução da família” nas políticas sociais brasileiras, situando-a dentro de três modalidades de ação, a saber: programas de geração de renda e emprego, programas de complementação da renda familiar e rede de serviços de apoio. Nessa última categoria é que se inserem os programas do tipo PSF, que podem variar quanto a seu foco de ação, desde abordagem aos problemas de cada indivíduo até o apoio intensivo a famílias em situações críticas. Vasconcelos (1999) descreve essa “valorização da família nas políticas sociais” como algo instituído, na verdade, ao longo de toda a história da construção do sistema de saúde brasileiro, relatando os diversos componentes dessa natureza encontrados na legislação previdenciária, desde seus primórdios na década de 20, embora a vigência das contradições dadas pelo medicocentrismo e pela dependência tecnológica e de capital de tal sistema. Entretanto, foi na sociedade civil que esse aspecto obteve maior visibilidade, citando os casos da Sociedade São Vicente de Paulo e Pastoral da Criança, entre outros. 13 Entre as pessoas do grupo técnico primordial estavam Heloiza Machado de Souza, Fátima de Sousa, Eliane Dourado, Marilena Gentile, Danuza Fernandes, Arindelita Arruda e também Halim Girade, além de outros que permaneceram na condução do PSF por vários anos (alguns ainda permanecem). 96 Miolo_15anos_FINAL.indd      96 8/12/2010      12:16:33
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    A escolha de1994, pela ONU, como o Ano Internacional da Família também teria tido impacto indutor sobre a política brasileira e de outros países do mundo, ao valorizar os conceitos de família e de comunidade, ainda segundo Vasconcelos (1999), criando-se assim um “clima cultural” propício para determinadas inovações das políticas sociais, com elas os próprios programas PACS e PSF. Houve, portanto, muitas mudanças na saúde, desde meados da década de 80, dadas pela intensa movimentação política e social pela reforma da saúde no País (ESCOREL, 1987; GOULART, 1996) e pela “construção local” do sistema de saúde, que resultou da ampliação da atuação municipal na saúde. Concorreu também para tal quadro de transformações a consolidação de um novo e efetivo arcabouço legal para o sistema, com as Normas Operacionais Básicas de 1993 e 1996, que, sem dúvida, forneceram inédito substrato para que experiências como a Saúde da Família pudessem florescer. E floresceram, sem dúvida, libertos das amarras de um debate profundamente ideológico e marcado pelo (legítimo) sentimento de resistência ao arbítrio, que se viu superado após a passagem dos “anos de chumbo”. A vinculação e a coerência do PSF com os princípios do SUS foram amplamente afirmadas desde os documentos originais do programa, que ressaltam sua contribuição para a reorientação do modelo assistencial a partir da atenção básica e buscando outra dinâmica de atuação nas unidades de saúde, com maiores responsabilidades e vínculos entre os serviços de saúde e a população. Diretrizes operacionais são então oferecidas, a saber: (a) Caráter substitutivo, complementaridade e hierarquização; (b) Adscrição de clientela; (c) Cadastramento; (d) Instalação das unidades do PSF; (e) Composição e atribuições das equipes; (f) Atribuições dos membros da equipe (médico, enfermeiro, auxiliar de enfermagem e agente comunitário). Sobre a reorganização das práticas de trabalho, enumeram-se, entre outros aspectos, o processo de diagnóstico da saúde da comunidade; a abordagem multiprofissional; o desenvolvimento de mecanismos de referência; a educação continuada; além do estímulo à ação intersetorial e ao controle social. O PSF, assim, apresenta-se como uma possível “mudança de paradigma” nas práticas assistenciais, tendo como aspectos centrais, entre outros, a superação do curativo para o preventivo; do eixo de ação monossetorial para o intersetorial; da exclusão para a universalização. Seu caráter inovador e potencialmente transformador de um modelo de práticas de saúde parece também evidenciado não só nas análises dos documentos oficiais, como na visão dos muitos autores que se debruçaram sobre ele nos anos 90. Fora da corrente principal das análises sobre o PSF, entretanto, Merhy e Franco (2000) consideram que a proposta originada do Ministério da Saúde careceria de instrumentos de atuação clínica, o que faria suas ações se desenvolverem como mera “linha auxiliar do 97 Miolo_15anos_FINAL.indd      97 8/12/2010      12:16:33
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    modelo médico hegemônico”,balizando de forma limitada e limitante as possibilidades de competição entre as suas práticas e aquelas desejadas pela corporação médica. Além do mais, afirmaram que o PSF falhava em fazer com que os processos de trabalho nele verificados operassem mediante “tecnologias leves” e que, devido a isso, sua implantação, por si só, não garantiria mudanças substantivas do modelo assistencial vigente, o que seria forte obstáculo a que o PSF viesse a se tornar de fato uma alavanca de transformações e que ele careceria de se reciclar, para incorporar “potência transformadora”. Tal linha mais crítica ao PSF que seus autores denominaram na ocasião como “defesa da vida” permitiu, todavia, o desenvolvimento de programas alternativos ao PSF em algumas cidades, geralmente governadas pelo Partido dos Trabalhadores em meados dos anos 90, como foi o caso de Betim/MG, Caxias do Sul/RS, Campinas/SP e outras. Embora tenha sido formulado no governo de Itamar Franco, sob a gestão de Henrique Santilo no Ministério da Saúde, o PSF, na verdade, encontrou condições de crescimento qualitativo e quantitativo nos anos seguintes, já no governo de Fernando Henrique Cardoso, mais precisamente a partir de 1998, quando o economista José Serra assumiu o Ministério da Saúde. Os dois ministros que sucederam a Santilo, Jatene e Albuquerque, embora não tivessem explicitado em nenhum momento oposição do PSF, não demonstraram vontade ou não obtiveram acumulações políticas para fazer acelerar sua implementação. Jatene, particularmente, fazia uma defesa competente do PSF e tinha uma história profissional compatível com isso, mas se ocupou em sua breve segunda passagem pelo MS, entre 1995 e 1996, mais com os aspectos estruturais e de financiamento, voltando-se para o ato de “arrumar a casa”, conforme expressão que frequentemente utilizava. Sobre a implementação da Estratégia Saúde da Família, Viana e Dal Poz (199_) situam-na como autêntica “reforma da reforma” ou “reforma incremental” em saúde. Esses termos aplicam-se a um conjunto de transformações, tanto no desenho como na operação das políticas, que ocorre de forma separada ou simultânea em relação aos sistemas e aos serviços de saúde, nas modalidades de alocação de recursos, nas formas de remuneração a prestadores e, fundamentalmente, na configuração da prestação de serviços, resultando em mudanças do modelo assistencial em saúde. A implantação do PSF se deu no âmbito da vigência da Norma Operacional Básica de 1993, mas sua expansão é especialmente caudatária da NOB de 1996. Essa norma apresentou, com relação às NOB anteriores, a perspectiva de mudança do modelo assistencial, mediante alguns incentivos à organização dos programas PACS e PSF. Para tanto, por meio de portarias e instruções normativas complementares, tais incentivos foram implantados, atribuindo determinado valor financeiro por equipe 98 Miolo_15anos_FINAL.indd      98 8/12/2010      12:16:33
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    de ACS ouPSF, diretamente proporcional à cobertura populacional alcançada. O resultado parece ter sido apreciável, pois, correspondendo ao período imediatamente seguinte à implantação efetiva da NOB 96, foi observada expansão marcante da implantação de equipes de PACS e de PSF em todo o País. Observa-se, por exemplo, na NOB 96, uma definição de atenção à saúde que compreende todo um conjunto de ações realizadas no SUS, em todos os níveis de governo, seja para o atendimento das demandas pessoais ou ambientais, abrangendo também ações assistenciais voltadas às pessoas, de forma individual ou coletiva, nos âmbitos ambulatorial e hospitalar, e ainda no espaço domiciliar. São enfatizados também alguns aspectos relacionados à mudança do modelo assistencial em saúde, bastante coerentes com as diretrizes dos PSF, por exemplo: (a) A busca da integralidade; (b) A incorporação ao modelo dominante do modelo epidemiológico; (c) A associação dos processos individualizados e de intervenção terapêutica vigentes com “um modelo de atenção centrado na qualidade de vida das pessoas e em seu meio ambiente, bem como na relação da equipe de saúde com a comunidade, especialmente com seus núcleos sociais primários – as famílias”; (d) A incorporação, como objeto das ações, das pessoas, do meio ambiente e dos hábitos de vida (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1996b). Em relação ao financiamento, foram várias as transformações que experimentou o PSF, podendo-se mesmo dizer que a análise desse programa fornece, por si só, uma ilustração bastante completa a respeito das diferentes formas de transferência de recursos que já vigoraram ou ainda estão em vigor na saúde14. Assim, entre 1994 e 1995, o financiamento se dava por meio de convênio firmado entre o MS, Estados e municípios, com critérios de escolha de municípios e cumprimento das exigências formais de praxe. Isso fazia que fosse garantido um aporte ao gestor nos três primeiros meses de funcionamento do programa. A partir de janeiro de 1996, ocorre mudança na sistemática, passando o PSF a ser remunerado pela tabela de procedimentos do SIA SUS, com valor agora diferenciado para a consulta médica, equivalente ao valor de duas consultas “normais” (VIANA, 2000). Após fevereiro de 1998, passaram a valer as novas regras de financiamento ditadas pela nova NOB, iniciando-se assim a era do Piso da Atenção Básica (PAB), medida responsável por forte indução de mudanças no modelo assistencial, conforme explicitado por LEVCOVITZ et al (2000). Na NOB 14 Entre as diversas modalidades de transferência de recursos entre esferas de governo, no Brasil, podem ser citadas, (a) A transferência por convênio, ou seja, ligada a um objetivo específico e submetida a uma prestação de contas especial; (b) A transferência mediante serviços prestados, efetivada mediante apresentação de uma fatura desses serviços (por exemplo, as Autorizações para Internação Hospitalar – AIH); (c) A transferência direta e automática, realizada entre fundos de saúde de forma independente de convênio ou de prestação de algum serviço específico – no caso presente, tal modalidade é realizada per capita, mediante valor previamente ajustado. 101 Miolo_15anos_FINAL.indd      101 8/12/2010      12:16:38
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    96, a transferência,de acordo com a nova sistemática, partia da exigência de que as equipes de PSF e PACS estivessem atuando integradas à rede municipal, ou que se desenvolvessem estratégias similares de garantia de integralidade da assistência. No que se refere aos mecanismos de transferência de recursos, foram de forte impacto as mudanças estabelecidas com a implantação do PAB, como era o caso da vigência do PAB fixo e variável e também de outros incentivos financeiros, o que acarretou ampliação marcante da transferência de recursos federais. O aspecto mais relevante da implantação do PSF no Brasil, cuja importância merece ser destacada, talvez seja o grau de “centralidade” assumida pela questão da atenção básica dentro da política de saúde, com perda definitiva de seu antigo caráter marginal. Contribuíram para tanto eventos diversos, ocorridos ainda nos anos 90, de natureza política ou simplesmente normativa, como o estabelecimento do Pacto da Atenção Básica entre os gestores dos três níveis de governo; o desenvolvimento de um sistema de informações específico, o SIAB; a edição do Manual da Atenção Básica. Mais recentemente, há de se ressaltar a importância conferida ao programa, agora estratégia, tanto dentro da NOAS de 2001/2002 como do Pacto pela Saúde (2006). Com efeito, a Estratégia Saúde da Família parece ter provocado verdadeiro amálgama das ações de saúde coletiva no País, horizontalizando, de vez, a execução dos programas de saúde, de caráter inédito historicamente. Trata-se de uma nova situação, de fato, dada pela ruptura de velhas barreiras técnicas, ideológicas e institucionais, cedendo lugar a práticas potencialmente unificadas de saúde. 8. Síntese e conclusões O Programa Saúde da Família no Brasil (PSF), como toda política social, situa-se em um movimentado cruzamento de princípios e estratégias operacionais, em que são frequentes as contradições, de natureza político-ideológica ou conceitual. Sua implementação no País revela relações complexas entre os aspectos normativos, explicitados no processo de formulação pelo Ministério da Saúde, de um lado e, de outro, as inovações locais decorrentes de sua (re)formulação e implementação descentralizada. Pode-se dizer que o PSF surge no âmbito de um conflito entre a normatização dura, realizada pelo governo federal, e as iniciativas dos governos municipais, nas quais prevalecem a flexibilidade e as inovações de caráter local. Alguns componentes essenciais que unem os conceitos de Atenção Primária à Saúde aos de Saúde da Família podem ser destacados quais sejam: (a) Práticas de saúde como objeto da intervenção do Estado; (b) Processos de trabalho caracterizados 102 Miolo_15anos_FINAL.indd      102 8/12/2010      12:16:38
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    pela intervenção deuma equipe de saúde dentro de um âmbito generalista; (c) Atenção voltada não apenas para indivíduos-singulares, mas para coletivos; (d) Desenvolvimento de vínculos administrativos, geográficos, culturais ou mesmo éticos entre a clientela e os prestadores de serviços. Os processos de formulação e de implementação da vertente brasileira de Atenção Primária à Saúde devem ser compreendidos à luz de certas mediações, ou seja, de “fios condutores” que perpassariam os variados modos de implantação verificados no País, tais como: as características geopolíticas; o modo de inserção no sistema de saúde; o contexto político; os conteúdos técnicos e ideológicos; os atores sociais influenciadores; a dinâmica dos processos de implantação; a cultura institucional, dentro de uma ótica de fatores facilitadores, obstáculos e lições. Algumas boas práticas de implementação de PSF podem, assim, ser inferidas, entre elas: (a) Capacidade de tomada de decisões, dada por liderança, carisma, espírito empreendedor, embasamento ideológico, qualificação técnica e continuidade; (b) Qualificação das equipes técnicas, traduzida por acesso a conhecimentos, tradição de discussões, base ideológica, empreendedorismo associado à militância; (c) Boas práticas sociais que se traduzem por práticas políticas e administrativas transparentes, efetivas e socialmente aceitáveis, que se estendem bem além do campo da saúde, tendo como substrato ideológico as noções de cidadania, direitos coletivos e responsabilidade pública; (d) Articulação externa, ou a prática de um cosmopolitismo político e sanitário; (e) Investimento em padrões efetivamente substitutivos dos modelos de atenção, buscando a neutralização da competição e do antagonismo com os elementos estruturais e ideológicos dos velhos regimes de práticas; (f) Desenvolvimento de inovações gerenciais ou assistenciais; (g) Sustentabilidade em termos financeiros, de estrutura e de processos, mas também nos planos culturais, simbólicos e políticos; (h) Efeito espelho: difusão entre pares e outros interlocutores externos, mediante uma pedagogia do exemplo (GOULART, 2002) Referências ALMEIDA, C. Novos modelos de atenção à saúde: bases conceituais e experiências de mudança. In: COSTA, N. R.; RIBEIRO, J. M. (Org). Política de saúde e inovação institucional: uma agenda para os anos 90. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, Fiocruz, 1996. p. 69-98. BASTOS, N; C. B. SESP/FSESP – 1942-1991: evolução histórica. Brasília. Ed. ASPLAN/ FUNASA. 1991. 103 Miolo_15anos_FINAL.indd      103 8/12/2010      12:16:38
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    LINHA DO TEMPODA SAÚDE DA FAMÍLIA II Mostra Nacional de Produção em Saúde da Família Criação dos Centros de Especialidades Odontológicas – CEO A Coordenação Nacional de Alimentação e Nutrição passa a acompanhar as condicionalidades da saúde das famílias Início do repasse de recursos às equipes de Saúde Bucal, cada uma delas vinculada a apenas uma equipe de Saúde da Família Início da primeira fase do Projeto de Expansão e Consolidação da Saúde da Família – Proesf 19.100 equipes de Saúde da Família, 176.800 agentes comunitários de saúde e 6.170 equipes de Saúde Bucal atendem mais de 59 milhões de pessoas 12ª Conferência Nacional de Saúde Inserção da Saúde Bucal na Saúde da Família: início do incentivo às equipes de Saúde Bucal, cada qual delas, obrigatoriamente, dever-se-á vincular a duas equipes de Saúde da Família Avaliação Normativa do Programa Saúde da Família no Brasil Lançamento do Plano de Reorganização da Atenção à Hipertensão Arterial e ao Diabetes Mellitus Regulamentação da Norma Operacional de Assistência à Saúde do Sistema Único de Saúde – NOAS-SUS 01/02 2001 69,1 Publicação da Política Nacional de Alimentação e Nutrição – PNAN I Mostra Nacional de Produção em Saúde da Família Publicação do “Manual de Organização da Atenção 59,7 Criação do Piso da Atenção Básica – PAB – pela Básica” publicação da Portaria GM/MS N 1.882 Criação do Pacto de Indicadores da Atenção Básica 54,9 Publicação da Portaria GM/MS N 886, que aprova as normas e diretrizes do Programa de Agentes Comunitários de Saúde – PACS – e do Programa 11ª Conferência Nacional Saúde da Família – PSF de Saúde 45,4 Criação do Sistema de Informação da Atenção Básica – Siab Regulamentação da Norma Operacional Básica do 3.100 equipes de Saúde da Família Sistema Único de Saúde – NOB-SUS 1996 e 79.700 agentes comunitários 10ª Conferência Nacional de Saúde de saúde atendem 10,6 milhões de pessoas 29,7 328 equipes de Saúde da Família e 29.098 agentes comunitários de saúde atendem 1,1 milhão de pessoas no Brasil 14,7 10,6 5,6 1,1 2,5 2,9 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 108 Miolo_15anos_FINAL.indd      108 8/12/2010      12:16:39
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    Criação dos Núcleosde Apoio à Saúde da Família - Portaria nº 154/SAS/MS, de 24 de janeiro de 2008. III Mostra Nacional de Produção em Saúde da Família/ IV Seminário Internacional da Atenção Básica - Saúde da Família: “30 anos de Alma saúde pela Lei No 11.350 Ata 20 anos de SUS e 15 anos de Saúde da Família”/III Concurso Nacional de Experiências em Saúde da Família. Publicação da Política Nacional de Atenção Básica – PNAB Criação do Programa Saúde na Escola (PSE) - Portaria nº 1.861 GM/MS, de 04 de setembro de 2008. Publicação da Política Nacional de Práticas Integrativas e Inclusão do microscopista na equipe de Saúde da Família - Portaria nº 2.143/GM/MS, de 09 de outubro de 2008. Incentivos diferenciados para as equipes que atuam no Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI) - II Seminário Internacional de Atenção Primária – Saúde da Portaria nº 2.920/GM/MS, de 02 de dezembro de 2008. Família: “Construindo a Integralidade do Cuidado” 29.300 equipes de Saúde da Família, 230.244 agentes comunitários de saúde e 17.807 equipes de Saúde Bucal atendem Lançamento do Pacto pela Saúde mais de 93 milhões de pessoas. III Seminário Internacional da Atenção Básica – Saúde da Família: 99,1 I Seminário Internacional de Atenção Primária em Grandes “Expansão com Qualidade & Valorização dos Resultados” 96,1 Centros Urbanos 13ª Conferência Nacional de Saúde Lançamento do projeto de Avaliação para Melhoria de Qualidade da Estratégia Saúde da Família – AMQ V Seminário Internacional da Atenção Básica - Saúde da Família: “Saúde da Família, 93,1 agora mais que nunca”. Indução de integração do Agente de Combate às Endemias à equipe de SF, convergindo os 87,7 processos de trabalho entre pro ssionais da APS e Vigilância em Saúde. 85,7 Saúde da Família para Populações Ribeirinhas - exibilização no processo de trabalho das equipes e nanciamento de custeio para unidades de saúde uviais. Construção de 8.964 novas unidades de Saúde da Família no PAC2. 78,6 Alcance da meta de ACS do “Mais Saúde” (240.000 ACS) de 2011 em agosto de 2010, com o expressivo número de 241.988 agentes comunitários de saúde, em 30.328 equipes de Saúde da Família e 18.982 equipes de Saúde Bucal, atendendo mais de 99 milhões de pessoas. Repasse fundo a fundo de recursos federais a Estados, Distrito Federal e Municípios para aquisição de equipamentos e material permanente - Portaria nº 2.198 GM/MS, de 17 de setembro de 2009. Instituição do Plano Nacional de Implantação de Unidades Básicas de saúde para as equipes de saúde da Família - Portaria nº 2.226 GM/MS, de 17 de setembro de 2009, com repasse aos municípios para a construção de 1289 novas Unidades de Saúde para as equipes da Saúde da Família. 30.328 equipes de Saúde da Família, 234.767 agentes comunitários de saúde e 18.982 equipes de Saúde Bucal atendem mais de 96 milhões de pessoas. População coberta pela Saúde da Família EM MILHÕES 2005 2006 2007 2008 2009 Agosto de 2010 109 Miolo_15anos_FINAL.indd      109 8/12/2010      12:16:39
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    O Brasil vistode fora! Miolo_15anos_FINAL.indd      111 8/12/2010      12:16:41
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    Programa Saúde daFamília (PSF) do Brasil – uma perspectiva pessoal sobre um programa nacional Miolo_15anos_FINAL.indd      112 8/12/2010      12:16:43
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    Andy Haines 1 O crescimento e desenvolvimento do programa PSF tem tido impactos profundos no Brasil, possivelmente sendo o exemplo mais importante da rápida expansão de um programa de cuidados primários em todo o mundo nos últimos 20 anos. Tive o privilégio de participar nas primeiras etapas de sua implantação no final da década de 1980, o que levou à formação do PSF e é um prazer especial para mim, ver como o programa se expandiu até hoje alcançando uma ampla cobertura populacional. No final da década de 1980 houve uma série de características marcantes da saúde pública e de condições em que se encontravam os cuidados de saúde no Brasil: muitas vezes sem atender às necessidades de saúde da população e levando a uma utilização ineficiente dos recursos. alunos para os desafios de saúde e sociais mais prevalentes, dos estados; de um lado, entre o tratamento curativo e o cuidado médico, e por outro lado, das atividades preventivas, especialmente dirigidas às doenças transmissíveis, municípios Neste contexto, a incorporação de um Sistema Único de Saúde brasileiro (SUS) na Constituição de 1988 foi uma evolução bem-vinda e muito necessária. No entanto, havia muitos problemas políticos, técnicos e organizacionais que precisavam ser superados para que a visão de um sistema de saúde moderno, mais equitativo e eficiente, baseado na atenção primária fosse se tornar uma realidade. Em primeira mão, pude experimentar algumas dessas importantes mudanças através de um programa de intercâmbio, apoiado pelo Conselho Britânico, entre o departamento de minha universidade na época (Departamento de Atenção Primária da Universidade College London School of Medicine, UCL) e um programa de formação de médicos de família do 113 1. Diretor da London School of Hygiene and Tropical Medicine e professor de Saúde Pública e de Atenção Primária em Saúde Miolo_15anos_FINAL.indd      113 8/12/2010      12:16:44
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    Serviço de SaúdeComunitária do Grupo Hospitalar Conceição, em Porto Alegre, em conjunto com a Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS. Este programa, juntamente com o programa do Centro de Saúde São José do Murialdo, eram dois dos poucos programas de formação de cuidados primários em todo o Brasil na época. Graças à liderança de Carlos Grossman e ao excelente trabalho de muitos desses profissionais formados por estes dois programas, um núcleo de excelência foi criado e mantido em um ambiente que nem sempre foi solidário com os objetivos da atenção primária em saúde. Muitos médicos de família brasileiros, incluindo Airton Stein, Magda Costa e Henrique Fontana passaram um tempo no Reino Unido na UCL ou na London School of Hygiene and Tropical Medicine, onde tiveram a oportunidade de conhecer em primeira mão, o papel do médico de família no Reino Unido e a realizar uma pós-graduação. Embora houvesse uma série de influências internacionais no desenvolvimento do PSF, incluindo experiências do Canadá e Cuba, a experiência do Reino Unido, sem dúvida, teve um impacto considerável. O Curso Internacional de Atenção Primária, que ocorreu durante muitos anos na UCL, constituiu uma oportunidade para os médicos de família em todo o mundo, incluindo muitos do Brasil, para aprender sobre metodologia de ensino e a organização da atenção primária no Reino Unido. A importância do médico de família no sistema de saúde inglês, a cobertura populacional, o desenvolvimento de equipes de cuidados primários, a formação de graduação e pós-graduação e o crescimento da gestão do cuidado de doenças crônicas na atenção primária foram relevantes para enfrentar os desafios encontrados no Brasil. Foi oportuno que estas atividades tenham ocorrido num momento em que o ambiente político no Brasil estava cada vez mais receptivo à necessidade de prestar cuidados de saúde acessíveis a toda à população, particularmente a grupos mais desfavorecidos. A alteração do cenário político e o fortalecimento dos processos democráticos, claramente, teve um papel importante em apoiar e facilitar o desenvolvimento da atenção primária no Brasil. Uma série de reuniões com políticos como o Governador do Estado do Rio Grande do Sul e de altos funcionários do Ministério da Previdência Social e do Ministério da Saúde, demonstrou que houve de apoio político para a ampliação da atenção primária. Também, participei de conferências que auxiliaram ampliar o caminho da atenção primária, como em Porto Alegre, em 1993, sobre a descentralização da saúde, e em Santarém, onde participaram muitos dos responsáveis no desenvolvimento da atenção primária na região Amazônica e de países vizinhos. Foi particularmente feliz que essas atividades ocorreram num momento em que o ambiente político no Brasil era cada vez mais receptivo à necessidade de prestar cuidados 114 Miolo_15anos_FINAL.indd      114 8/12/2010      12:16:44
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    de saúde acessíveisa toda a população, particularmente grupos desfavorecidos. A alteração do cenário político e o fortalecimento dos processos democráticos claramente tiveram papel importante no apoio e na facilitação do desenvolvimento da atenção primária no Brasil. Uma série de reuniões com políticos, como o governador do Estado do Rio Grande do Sul e de altos funcionários do Ministério da Segurança Social e do Ministério da Saúde, demonstrou a mim que houve recolhimento de apoio político para a ampliação da atenção primária. Eu também estava envolvido em conferências que ajudaram a articular o caminho para a APS, como uma em Porto Alegre, em 1993, sobre a descentralização dos cuidados de saúde, e outra, em Santarém, que reuniu muitos dos envolvidos no desenvolvimento dos cuidados primários na Região Amazônica e de um número de países vizinhos. Logo após o lançamento do programa, escrevemos um editorial cauteloso e otimista acolhendo o PSF, mas também reconhecendo os muitos obstáculos a serem superados para torná-lo bem sucedido e satisfazer as necessidades da população, como a formação inadequada dos médicos e a necessidade de qualificar o desenvolvimento profissional. Desde então, é gratificante ver o progresso realizado para enfrentar estes desafios. Um número crescente de faculdades de medicina já oferece formação em atenção primária em saúde e há um quadro crescente de residentes nessa área. Sem dúvida, uma série de desafios ainda permanecem, incluindo as diferenças na qualidade do atendimento, a necessidade de ampliar a cobertura à toda a população, a expansão dos programas de formação e a garantia do crescimento continuado e apoio financeiro à atenção primária em saúde. No entanto, as importantes conquistas alcançadas não podem ser subestimadas, não só para o povo do Brasil, mas também globalmente. A rápida expansão tem muitas lições importantes para os países em diferentes níveis de desenvolvimento. Agora é um bom momento não só de olhar para trás e compreender como o PSF foi capaz de prosperar e crescer, mas também de olhar para frente procurando desenvolver o seu pleno potencial. Referências 1. Haines A. Health care in Brazil. BMJ 1993; 306: 503-506 2. Haines A. Warchow E, Stein A, Mattos Dourado E, Pollock J, Stilwell B. Primary Care at last for Brazil? BMJ 1995; 310:1346-1347. 115 Miolo_15anos_FINAL.indd      115 8/12/2010      12:16:44
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    A Saúde daFamília vista do outro lado do Atlântico Miolo_15anos_FINAL.indd      116 8/12/2010      12:16:45
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    Luís Pisco 1 Em 1995, o então Presidente da República Portuguesa, Doutor Mário Soares, discorrendo sobre a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), apontou o relacionamento entre Portugal e o Brasil, como o de uma família com quase 200 milhões de seres humanos, unida pela língua, pela história e pelo afeto.15 Decorridos mais de 15 anos da alocução presidencial, feita no contexto da criação da CPLP – e com a família aumentada em alguns milhões de elementos –, não posso deixar de testemunhar que tem sido esses laços e esse afeto que tenho sentido ao trabalhar com colegas e instituições brasileiras. Em conjunto, afirmando a nossa efetiva solidariedade, capacidade de realização e respeito mútuo. Tem valido a pena, pese o caminho percorrido ser ainda curto e reconhecer- se que os próximos anos serão importantíssimos para a consolidação desse relacionamento. O Brasil, no qual Portugal se revê com tanto orgulho, é o maior país de língua portuguesa e uma nação com enorme peso e prestígio mundiais, que seguramente se irá afirmar cada vez mais no palco internacional, assumindo o protagonismo que lhe é devido. Tal como entre as duas pátrias, é também de solidariedade o vínculo que une os médicos de Família de todo o mundo: partilhamos as mesmas necessidades e expectativas, um mesmo perfil, educação, cultura e ética. A Medicina de Família e a Saúde da Família não conhecem fronteiras. Num mundo assim unido, é sempre estimulante partilhar conhecimentos e trocar experiências com colegas oriundos de diferentes sistemas de saúde, influenciados por fatores culturais, históricos, políticos e económicos, também distintos entre si. Estimulante, principalmente, porque, apesar de todas as diferenças e semelhanças que marcam o mundo onde exercemos, para todos nós médicos de Família e também para os outros profissionais da área da Saúde da Família, o futuro passará, estou certo, pela formação, pela investigação e pela qualidade do nosso desempenho. Na área da saúde e mais especificamente na da atenção primária, temos que passar da proclamação de bons sentimentos e intenções à efetiva cooperação 1 Médico de Família - Coordenador da Missão para os Cuidados Primários. Portugal 117 Miolo_15anos_FINAL.indd      117 8/12/2010      12:16:46
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    nas mais diversasáreas que integram o exercício da Medicina Familiar. Para tanto, impõe-se dar continuidade e aprofundar muitas das iniciativas realizadas em conjunto, na última década, pelos médicos de Família de Portugal e do Brasil. A primeira experiência relevante conjunta, internacional, de que me recordo foi a organização de um Workshop no 15º Congresso Mundial da Associação Mundial de Médicos de Família (WONCA, junho de 1998, Dublin/Irlanda). Foi um momento de afirmação: apesar de a língua oficial ser a inglesa, conseguiu-se autorização para realizar um workshop luso-brasileiro, em português, o que ocorreu pela primeira vez e onde profissionais de saúde de Portugal e do Brasil puderam falar de tudo um pouco (como habitualmente acontece quando nos encontramos), embora o tema oficial fosse a análise comparativa dos modelos de ensino, qualidade e investigação em atenção primária nos nossos dois países. A segunda iniciativa conjunta, com grande impacto para todos nós, foi a organização do I Encontro Luso-Brasileiro de Medicina Geral, Familiar e Comunitária, realizado no Rio de Janeiro, entre os dias 24 e 27 de outubro de 2000, com seminários envolventes em Fortaleza, Salvador e Porto Alegre. Do lado português, a organização esteve a cargo da Associação Portuguesa dos Médicos de Clínica Geral e da Associação Saúde em Português. No Brasil, coube ao governo do Estado do Rio de Janeiro e à Sociedade Gaúcha de Medicina Geral Comunitária a partilha dessa responsabilidade. Foi, a todos os títulos, um grande acontecimento. O objetivo era claro: incentivar a troca de experiências e informação técnico/científica entre profissionais da área da Medicina Geral, Familiar e Comunitária portugueses e brasileiros, estendendo as sinergias a alguns membros da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP). A adesão dos profissionais foi impressionante: cerca de mil participantes médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde portugueses, brasileiros e alguns, poucos, africanos. Foi, como é uso dizer-se, “sala cheia” do primeiro ao último minuto, no que constituiu uma manifestação do enorme interesse de todos não só pelo intercâmbio das experiências das duas nações, mas também pela qualidade das mesas que preencheram o extenso programa científico. O simples fato de colegas de regiões do globo, tão distantes entre si, terem pensado, juntos, a Medicina Familiar e a Saúde da Família, trabalhando e aprendendo uns com os outros, constituiu uma vitória para as instituições responsáveis pela iniciativa. No quadro da partilha de experiências relativas ao Programa Saúde da Família brasileiro 118 Miolo_15anos_FINAL.indd      118 8/12/2010      12:16:46
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    e à MedicinaFamiliar portuguesa, o encontro contribuiu para o reforço do associativismo e para a revitalização da Associação Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, um passo importante para a integração do Brasil na Confederação Ibero-Americana de Medicina Familiar, de que hoje é vice-presidente e da qual a APMCG e a ASP eram, respectivamente, membro titular e membro associado. O Encontro teve por objetivo facultar a troca de saberes relativos ao Programa Saúde da Família no Brasil e à Medicina Familiar em Portugal, destacar o contributo da saúde para o desenvolvimento dos povos e, por fim, centrar a Medicina Familiar como a Medicina do século XXI. Cumpriram-se todos os objetivos. A realidade brasileira é bem diferente da portuguesa, até pela imensidade do país irmão, pelas disparidades sociais, pelas diferenças entre cada Estado com a sua organização própria no campo da saúde, pela sociedade multiétnica, mas também pelas diferenças de conceitos e práticas no campo da saúde. Muito provavelmente, terão sido essas diferenças que suscitaram tão grande curiosidade, interesse e até entusiasmo em conhecer melhor as experiências, os problemas e os conceitos. Nunca mais deixei de ir regularmente ao Brasil… Aos Congressos da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, a cada ano mais participados, mais bem organizados e com um nível científico mais elevado… E também a muitos Seminários Internacionais de Atenção Primária/Saúde da Família, organizados pelo DAB do Ministério da Saúde, onde podemos encontrar personalidades relevantes da Atenção Primária Mundial, a debater temas cruciais ao desenvolvimento da Saúde da Família… Também, por força da minha colaboração no Projeto AMQ. Tenho sido, pois, um observador privilegiado da enorme evolução que na última década a Saúde da Família tem registrado no Brasil, com os indicadores de saúde a melhorar significativamente, o número de equipes e de profissionais de saúde da família a crescer, um esforço enorme pela melhoria da qualidade, pela formação dos profissionais… A demonstrar que valeu a pena a corajosa aposta política no Programa Saúde da Família. É sempre com emoção que vejo os gráficos com o mapa do Brasil cada ano mais preenchido com mais equipes de Saúde da Família e todos os Estados cada vez com maior densidade de recursos assistenciais, que se traduz, habitualmente, por um azul mais carregado. Tem sido uma constante nos últimos anos. Mas o inverso também é verdadeiro, e a curiosidade e o interesse pelo que se passa em Portugal crescem no Brasil e se traduzem, todos os anos, em visitas a Lisboa de profissionais de saúde, acadêmicos, gestores, políticos ou simplesmente amigos, que 119 Miolo_15anos_FINAL.indd      119 8/12/2010      12:16:46
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    nos contatam evisitam, procurando se manterem a par das “últimas” sobre a Reforma da Atenção Primária, fazer investigação ou participar de algum estágio profissional. Salientaria, pela sua relevância, a organização do 1º Encontro Luso-Brasileiro de Jovens Médicos de Família em simultâneo com o 3º Encontro Luso-Brasileiro de Medicina Geral, Familiar e Comunitária, que teve lugar no Estoril, de 27 a 30 de setembro de 2008. Com o apoio do DAB e do Ministério da Saúde, foi possível a participação de mais de 50 profissionais de saúde do Brasil, que muito enriqueceram o conteúdo científico do Congresso, oferecendo-nos excelente imagem do muito e bom trabalho que atualmente se faz na atenção primária. Portugal recebeu, de 2 a 9 de maio de 2009, uma missão brasileira de visita às nossas Unidades de Saúde Familiar, integrada pelos vencedores do III Concurso Nacional de experiência em Saúde da Família. Com o objetivo de conhecer o funcionamento dos Centros de Saúde e as Unidades de Saúde Familiar e estreitar parcerias no campo teórico-prático, entre os sistemas de saúde do Brasil e de Portugal, os participantes tiveram dias de intensa programação. Foi para nós uma honra que o DAB tenha escolhido Portugal e aguardamos com expectativa uma nova visita de estudo, prevista para este ano. Não posso deixar de referir as cordiais relações pessoais e profissionais que estabeleci, ao longo destes anos, com um enorme conjunto de colegas e amigos brasileiros. Mesmo correndo o risco de cometer a injustiça de omitir muitos, gostaria de destacar os Presidentes da SBMFC, João Falk, Inez Anderson e Gustavo Gusso; Ricardo Donato, Carlos Eduardo (Cadu) e Marcelo Demarzo, assim como alguns parceiros do DAB, como Luis Fernando, Claunara, Núlvio, Eronildo e Iracema. E também o meu mais recente amigo: Oscarino dos Santos Barreto Júnior, grande figura e grande médico de Família. Relembrando quão efêmeras, por vezes, podem ser as boas ideias, as grandes intenções e os projetos de circunstância, termino apontando estes mais de dez anos de trabalho conjunto como fonte generosa de orgulho para todos os que nele tivemos o privilégio de participar. Como disse o escritor José Antunes Ribeiro, “Já que o passado está morto. VIVA O FUTURO”. 120 Miolo_15anos_FINAL.indd      120 8/12/2010      12:16:46
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    O desafio dosprocessos e do mercado de trabalho na APS – o desafio da formação e da qualificação Miolo_15anos_FINAL.indd      124 8/12/2010      12:16:53
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    Francisco Eduardo deCampos1 Ana Estela Haddad2 Vinícius de Araújo Oliveira3 Raphael Augusto Teixeira de Aguiar4 1. Introdução Desde o início de sua implantação, em 1994, a Estratégia Saúde da Família (ESF) teve crescimento exponencial, tanto em termos de cobertura quanto em número de profissionais envolvidos. Tal fato trouxe, aliado à melhoria do acesso dos brasileiros à saúde, uma questão central: como capacitar os trabalhadores dessas equipes para a prática novoparadigmática da estratégia? Iniciativas na área de Educação Permanente têm sido implementadas em todo o território nacional, servindo como modelo e oportunizando profícua reflexão acerca desse processo, porém sem conseguir reverter numericamente o déficit de profissionais capacitados nas equipes da ESF. O primeiro grande esforço nacional para lidar com esse desafio foi a criação dos Polos de Formação, Capacitação e Educação Permanente em Saúde da Família, em 1997, que tinham, por objetivo, apoiar a expansão e consolidação dessa estratégia por meio da qualificação da então incipiente força de trabalho vinculada à atenção básica. Além disso, esses consistiram nas primeiras iniciativas a refletir sobre os cursos de graduação e as mudanças necessárias ao melhor preparo de seus egressos para o exercício adequado da Saúde da Família (VIANA; FARIA, 2002; GIL et al., 2002).16,17,18,19 A priorização da integração ensino-serviço em todas as suas áreas de atuação, bem como a oferta de diversas modalidades de capacitação profissional – como cursos introdutórios, de atualização ou aperfeiçoamento para agentes comunitários de saúde, supervisores do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) e instrutores de PSF e PACS, além de cursos de especializações, residências e programas de educação permanente a distância para profissionais de nível universitário – foram as estratégias executadas pelos polos para o 1 Médico, Doutor em Saúde Pública. Professor Titular do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Universidade Federal de Minas Gerais. Secretário de Gestão do Trabalho e da Educação em Saúde do Ministério da Saúde. 2 Cirurgiã-Dentista, Doutora em Ciências Odontológicas. Professora Doutora do Departamento de Ortodontia e Odontopediatria da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo. Diretora de Gestão da Educação na Saúde do Ministério da Saúde. 3 Médico, Mestre em Saúde Pública. Profissional Nacional da Organização Pan-Americana da Saúde, descen- tralizado para o Ministério da Saúde. Coordenador da Rede Universidade Aberta do SUS. 4 Médico, Mestre em Saúde Pública, Doutor em Educação. Pesquisador Associado do Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal de Minas Gerais. 125 Miolo_15anos_FINAL.indd      125 8/12/2010      12:16:54
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    cumprimento de seusobjetivos. Entre 1998 e 2001, essas instâncias realizaram 9.647 cursos e eventos para um total de 173.233 egressos (GIL et al., 2002). A maior parte desses cursos foi introdutória ou temática de curta duração, mas nesse período foram induzidos os primeiros cursos de especialização em formato de residências multiprofissionais em Saúde da Família e estimulou-se a revisão da especialidade Medicina Geral e Comunitária, que, em 2002, passou a se chamar Medicina de Família e Comunidade (OLIVEIRA; BELISÁRIO, 2005). Os Polos de Saúde da Família, como ficaram conhecidos, foram extintos no início de 2003. Uma nova política de educação permanente para os profissionais do SUS começou a ser concebida após a mudança de governo no âmbito federal, tendo sido oficializada posteriormente pela Portaria Ministerial nº 198, de 13 de fevereiro de 2004. Essa política se fundamentava, basicamente, em dois pilares: o conceito de Educação Permanente em Saúde (EPS), da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), que preconiza uma reflexão cotidiana e multiprofissional sobre o processo de trabalho por parte das próprias equipes de saúde; e a participação multissetorial na priorização das iniciativas de qualificação profissional, com a participação de estudantes de graduação, trabalhadores, gestores e representantes do controle social. Para a promoção do primeiro pilar, foi concebido, pela Escola Nacional de Saúde Pública, o Curso de Facilitadores da Educação Permanente em Saúde, na modalidade a distância. Já o segundo pilar se expressou, sobretudo, na criação dos Polos de Educação Permanente, instâncias regionais que diferiam dos polos anteriores por não priorizarem especificamente a Atenção Básica e por não mais serem diretamente coordenadas por instituições acadêmicas, atuando como “dispositivos do SUS para a discussão da Educação Permanente” (BRASIL, 2004). Essa política também não conseguiu reverter o déficit de qualificação no qual se encontravam os profissionais de Saúde da Família. A própria natureza desse mercado de trabalho é responsável por algumas dificuldades: a sua expansão contínua assim como a significativa rotatividade de profissionais observada nessa estratégia são fatores que contribuem para a manutenção desse déficit, uma vez que há sempre profissionais recém- formados ou sem qualificação específica para a Saúde da Família ingressando nela. Além disso, a inexistência de uma direcionalidade específica para a atenção básica agravou o déficit: entre janeiro de 2003 e junho de 2005, durante a vigência dos Polos de Educação Permanente, apenas 47,72% do recurso empenhado pelo tesouro nacional para esse fim até dezembro de 2005 havia sido executado, o que corresponde a menos da metade do total destinado à qualificação daquela força de trabalho específica (CAMPOS; AGUIAR, 2005). Por esse motivo, e também devido à eminência do início da segunda fase do Projeto de Expansão e Consolidação da Saúde da Família (PROESF) – programa financiado 126 Miolo_15anos_FINAL.indd      126 8/12/2010      12:16:54
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    pelo Banco Internacionalpara Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) e que visava principalmente à expansão daquela estratégia nos municípios com mais de 100 mil habitantes –, o Ministério da Saúde começou a estabelecer estratégias para a especialização em Saúde da Família em larga escala, buscando superar o gap existente entre o número de profissionais inseridos na Estratégia e a quantidade de vagas de especialização disponíveis para a sua qualificação. Inicialmente, o Ministério planejou, em parceria com a Organização Pan-Americana da Saúde, uma rede colaborativa com o propósito de apoiar a cooperação entre instituições acadêmicas que ministravam, ou pretendiam ministrar, cursos de especialização em Saúde da Família. A Rede Multicêntrica de Apoio à especialização em Saúde da Família nas Grandes Cidades (Rede MAES), embora não tenha se constituído a priori em uma política estruturada para proporcionar a colaboração desejada, possibilitou uma primeira aproximação daquelas instituições e o início de discussões sobre o assunto. Visando aprofundar os mecanismos de cooperação e a participação das instituições acadêmicas envolvidas, a Rede MAES foi posteriormente convertida em uma ação do Programa Mais Saúde, a Universidade Aberta do SUS (UNA-SUS), do qual se falará mais adiante. 2. Estratégias articuladas para formação e qualificação Apesar de terem exercido um importante papel na formação de uma massa crítica para a APS nacional, as estratégias tradicionais de descentralização de recursos para o nível local, financiamento de especializações presenciais e residências não foram suficientes para reverter um quadro de formação profissional com determinantes complexos e multifatoriais. Nos Documentos de Referência 1 da UNA-SUS, Oliveira, Aguiar e Campos (2008) previam déficit crescente de recursos humanos qualificados para a Estratégia Saúde da Família caso se mantivesse a corrente estratégia. A reversão desse quadro requereu uma política de formação de recursos humanos estruturada como uma rede de ações voltada para as diversas etapas da educação desses profissionais. Assim, foram pensadas ações para reorientar a formação da graduação, acertando o rumo para o futuro; formar lideranças na educação em saúde por meio de residências em atenção primária e cursos para docentes; e qualificar os trabalhadores em serviço nas equipes de Saúde da Família. Para colocar essas ações em marcha, foi necessário criar um conjunto de mecanismos administrativos e institucionais, de forma a garantir a boa execução física e financeira dos projetos, obedecendo aos princípios da administração pública, seguindo as recomendações dos órgãos de fiscalização e controle, em harmonia com o Ministério da 127 Miolo_15anos_FINAL.indd      127 8/12/2010      12:16:54
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    Educação e guiadospelos princípios do SUS. Assim, foi criada a Comissão Interministerial de Gestão da Educação em Saúde, regulamentando o inciso terceiro do artigo 200 da Constituição; retomou-se o mecanismo de repasse fundo a fundo para o financiamento da política de educação permanente em saúde, reinstaurando o papel de condução e execução das gestões estaduais e municipais do SUS; foram criados mecanismos de pagamento direto de bolsas de estudo pelo Fundo Nacional de Saúde e mobilizado o potencial de educação a distância das universidades públicas brasileiras. Algumas dessas ações são apresentadas a seguir, divididas em iniciativas para reorientar a formação de profissionais e ações para qualificar os profissionais em serviço. Os dados foram obtidos do relatório de gestão da SGTES/MS de 2009 (BRASIL, 2009). 3. Ações de reorientação da formação de profissionais para atuar em APS As ações que têm como foco apoiar diretamente as mudanças na graduação em saúde estão organizadas no Programa de Reorientação da Formação Profissional em Saúde (Pró-Saúde), lançado em 2005. As primeiras ações desse programa consistiram na seleção de projetos de reorientação de cursos de graduação, inicialmente apenas para Medicina, Enfermagem e Odontologia e, em 2007, para os demais cursos da saúde. Atualmente, 354 cursos são apoiados técnica e financeiramente, com impacto sobre mais de 100 mil estudantes. Outras ações foram desencadeadas em duas frentes: formação de lideranças e valorização das iniciativas de integração das instituições educacionais com as equipes de Saúde da Família. Para apoiar a formação de lideranças, novas oportunidades foram abertas, como o programa internacional de fellowship em educação na saúde, parceria com o Instituto FAIMER e, mais recentemente, o lançamento do Pró-Ensino na Saúde, programa da CAPES para expansão das pós-graduações stricto sensu nessa área. Para valorizar a integração ensino-serviço, na ESF foi implementado o Programa de Educação pelo Trabalho em Saúde, o PET-Saúde, um instrumento para viabilizar programas de aperfeiçoamento e especialização em serviço dos profissionais da saúde, bem como de iniciação ao trabalho, estágios e vivências, dirigidos aos estudantes da área, de acordo com as necessidades do Sistema Único de Saúde (SUS). O PET-Saúde consistiu em um marco, pois, ao regulamentar o pagamento direto de bolsas de estudos pelo Fundo Nacional de Saúde, vem permitindo a realização de ações educacionais de modo mais eficaz do que o mecanismo anterior, de celebração de convênios e termos de cooperação. Cada grupo PET-Saúde é formado por um tutor acadêmico, 30 estudantes – dos quais 12 são bolsistas – e seis preceptores. Foram formados 306 Grupos PET-Saúde, os quais 128 Miolo_15anos_FINAL.indd      128 8/12/2010      12:16:54
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    desenvolveram atividades noano letivo de 2009. A formação completa desses grupos selecionados, ou seja, 37 integrantes em cada grupo, gera o pagamento de 5.814 bolsas mensais, além da participação de 5.508 estudantes não bolsistas, totalizando 11.322 participantes. Para apoiar a expansão de residências médicas em áreas estratégicas para o SUS, foi lançado o Programa Pró-Residência Médica. Duzentos e trinta programas de residência médica estão sendo apoiados com concessão de 785 bolsas, sendo 23 destes em Medicina de Família e Comunidade (MFC), totalizando 272 bolsas. Isso significa que 46,5% das 584 vagas em MFC no País são hoje financiadas diretamente pelo Ministério da Saúde. 4. Ações para apoiar a qualificação dos profissionais em serviço O Programa Telessaúde Brasil utiliza modernas tecnologias de informação e comunicação para apoiar os profissionais das equipes de Saúde da Família. Centros de saúde são conectados via internet a equipes universitárias que dão apoio ao processo de tomada de decisão local por meio da Segunda Opinião Formativa. A distinção em relação à segunda opinião tradicional reside no seu potencial educacional, pois o profissional aprende em serviço e suas dúvidas embasam a elaboração de listas de perguntas e respostas frequentes baseadas em evidências. No final de 2009, 789 municípios já contavam com um total de 1.011 pontos de telessaúde conectados a dez núcleos, beneficiando 2.796 equipes de Saúde da Família. Certamente a iniciativa de maior impacto é a oferta de 26.500 vagas em cursos de especialização em SF por universidades integrantes da Rede Universidade Aberta do SUS (UNA-SUS). A UNA- SUS permite que os trabalhadores da saúde tenham acesso a ações educacionais de qualidade certificada, em todo o território nacional, que reconhecem e valorizam seus conhecimentos prévios, e de forma compatível com seus horários e estilos de aprendizagem. Essas vagas são frutos de convênios e termos de cooperação do Ministério da Saúde com universidades públicas de renome nacional, ou com Secretarias Estaduais de Saúde com projetos de formação em larga escala em andamento. 4.380 profissionais já iniciaram os cursos, e as demais vagas serão preenchidas por editais até 2011. Essas instituições assumiram o compromisso de formar profissionais que estarão capacitados a cumprir seus papéis na equipe, coordenando seu trabalho com os dos demais, proporcionando atenção primária resolutiva e de qualidade para as comunidades onde atuam. Essa ação em andamento formará, em quatro anos, mais especialistas em Saúde da Família do que o número de profissionais com essa titulação hoje disponíveis. Mesmo 129 Miolo_15anos_FINAL.indd      129 8/12/2010      12:16:54
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    considerando que só20% das vagas sejam ocupadas por médicos, formará mais do que todo o estoque de especialistas em MFC. UNA-SUS e Telessaúde são estratégias sinérgicas. Os pontos de telessaúde são potenciais locais de realização de atividades educacionais, e os núcleos de telessaúde têm apoiado os cursos, provendo conteúdo educacional digital e tecnologias de informação e comunicação. Ao mesmo tempo, as estratégias de gestão de recursos educacionais da UNA-SUS têm dado maior visibilidade e sustentabilidade à produção de conteúdos pelos Núcleos de Telessaúde, bem como servido de plataforma educacional para reconhecimento das atividades realizadas pelos núcleos. 5. Conclusão O Quadro 1, a seguir, sintetiza quantitativamente os avanços obtidos na formação e educação permanente de profissionais para a ESF. Os dados sobre equipes de Saúde da Família implantadas foram obtidos do site do DAB e os relativos a vagas em residências em MFC, do site da Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM). Quanto às vagas garantidas em cursos de especialização em SF e em residências multiprofissionais em saúde, elas foram estimadas até 2006 a partir do trabalho de Pierantoni (2008) e, de 2007 em diante, obtidas dos sistemas gerenciais do DEGES. Quadro 1 – Número de equipes de Saúde da Família implantadas e oferta de vagas em residências multiprofissionais, em MFC, e em cursos de especialização em Saúde da Família, Brasil 1998 a 2009 Nº de ESF Residência Ano Residências MFC Especialização implantadas multiprofissional 1.998 3.062 1.999 4.114 2.000 8.503 2.001 13.155 2.002 16.698 193 860 2.003 19.068 224 860 2.004 21.232 249 680 2.005 24.564 345 680 2.006 26.729 547 920 2.007 27.324 585 1.040 241 2.008 29.300 558 5.200 582 2.009 30.300 584 17.200 710 Fonte: DAB, 2010; CNRM, 2010; DEGES, 2010 130 Miolo_15anos_FINAL.indd      130 8/12/2010      12:16:54
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    A Figura 1sintetiza esses dados, tornando mais clara a inflexão realizada nos últimos anos. Até 2005, o número de vagas em cursos de especialização (incluindo residências) não passava de 7%, tendência que foi revertida pelo apoio às residências multiprofissionais em saúde, triplicação das vagas de residência em MFC e expansão maciça de vagas em cursos de especialização em Saúde da Família, por meio da Universidade Aberta do SUS. Tudo indica, portanto, que as estratégias atualmente em curso estão sendo eficazes no sentido de reverter o desalinhamento entre a Estratégia Saúde da Família e o sistema educacional. Em 2014, no lançamento do livro comemorativo dos 20 anos da ESF, certamente estaremos em posição muito mais confortável em relação à qualificação dos profissionais para atuar na atenção primária. Figura 1 - número de equipes de saúde da família implantadas e oferta de vagas em residências multiprofissionais, em MFC, e em cursos de especialização em Saúde da Família, Brasil 1998 a 2009 35.000 30.000 25.000 20.000 Nº de ESF implantadas 15.000 Residências MFC 10.000 Especialização 5.000 Residência multipro ssional 1.998 2.001 2.005 2.008 1.999 2.007 2.009 2.000 2.002 2.003 2.004 2.006 Referências BRASIL. Ministério da Educação. Comissão Nacional de Residência Médica. Consulta Dados dos Programas por Instituição. Disponível em: <http://mecsrv04.mec.gov.br/ sesu/SIST_CNRM/APPS/cons_res_inst.asp>. Acesso em: 14 jun. 2010. ______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Estratégia Saúde da Família: diretriz conceitual. Disponível em: < http://dtr2004. saude.gov.br/dab/atencaobasica.php>. Acesso em: 5 ago. 2009. ______. Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação em Saúde. Relatório de Gestão 2009. Mimeo. 131 Miolo_15anos_FINAL.indd      131 8/12/2010      12:16:54
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    Um olhar parao futuro – perspectivas e desafios Miolo_15anos_FINAL.indd      134 8/12/2010      12:16:57
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    Claunara Schilling Mendonça1 Desde a segunda metade do século passado, a Atenção Primária à Saúde (APS) vem se desenvolvendo como orientadora dos sistemas de saúde de caráter universal em países como Inglaterra, Espanha, Portugal, Suécia, Holanda, Canadá, Nova Zelândia, entre outros. 20 A APS brasileira está implementada como política de Estado e definida em um formato abrangente, compreendendo a promoção e proteção de saúde, prevenção de agravos, diagnóstico, tratamento, reabilitação e manutenção da saúde. Sendo o contato preferencial dos usuários com o sistema de saúde, se orienta pelos princípios da universalidade, acessibilidade e coordenação, vínculo e continuidade, integração, responsabilidade, humanização, eqüidade e participação social (Brasil, 2004). Esse conceito evidencia que estamos construindo, no sistema de saúde brasileiro, uma atenção primária à saúde integral, ampla e abrangente e não a APS seletiva dos pacotes básicos para “pobres”. Os sistemas municipais de saúde estruturados a partir da Estratégia Saúde da Família tem provocado um importante movimento de reordenamento do modelo de atenção no SUS, que parte do primeiro contato com a população e das suas necessidades, com cuidado integral e longitudinal e coordena os usuários na rede de serviços (STARFIELD, 2002). E dessa forma propicia maior racionalidade na utilização dos demais pontos da rede de cuidado. A Saúde da Família, em um esforço tripartite que superou as divergências político partidárias para avançar na implantação dos preceitos constitucionais, tem se mostrado capaz de responder às demandas crescentes e complexas dos problemas de saúde da população brasileira, como é de se esperar num sistema orientado pela APS. A decisão brasileira da Saúde da Família ser formada por uma equipe multiprofissional e orientada para um território de responsabilidade tem permitido aumento na oferta de ações de promoção da saúde e prevenção de adoecimento e morte, principalmente por motivos preveníveis por ações dos serviços de saúde. São 90 milhões de brasileiros que acessam o Sistema de Saúde por meio da Saúde da Família, 70 milhões com Saúde Bucal, e a presença dos 1 Médica de Família e Comunidade. Diretora do Departamento de Atenção Básica - Secretaria de Atenção à Saúde - 135 Ministério da Saúde Miolo_15anos_FINAL.indd      135 8/12/2010      12:16:58
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    Agentes Comunitários deSaúde aumenta a oferta da atenção à saúde centrada na família, a orientação comunitária e a competência cultural dessas equipes. Em 2008, com a inclusão dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família – NASF –, reforçamos o desafio da multiprofissionalidade, uma premissa da Saúde da Família no Brasil, que passa a incluir outros profissionais de saúde, de diferentes áreas de conhecimento, aumentando a possibilidade de qualificar o processo de trabalho dos profissionais pela busca permanente de comunicação e troca de experiências e conhecimentos, compartilhando as melhores práticas em saúde nos territórios sob responsabilidade dessas equipes. Os resultados positivos apontados em vários estudos abordando a Saúde da Família abrangem diferentes fatores, como a avaliação dos usuários, dos gestores e dos profissionais de saúde (ELIAS, et al, 2006), à oferta de ações de saúde e ao acesso e uso de serviços (FACCHINI, et al, 2006; PICCINI, et al, 2006), à redução da mortalidade infantil (MACINKO; GUANAIS; SOUZA, 2006), à redução de internações por condições sensíveis à Atenção Primária (MACINKO; GUANAIS, 2009) e à melhoria de indicadores sócio-econômicos da população (ROCHA; SOARES, 2009). Mais especificamente sobre a redução da mortalidade infantil, um indicador clássico, mas permeado por vários dos determinantes sociais da saúde, um estudo demonstrou que isoladamente o aumento na cobertura de Saúde da Família foi capaz de reduzir em 4,6% a mortalidade infantil (MACINKO; GUANAIS; SOUZA, 2006), controlado para vários aspectos relacionados, sendo seu impacto menor somente que a escolaridade materna. Já sobre alguns indicadores sócio-econômicos, outro estudo recente aponta que nas regiões mais pobres do país a implementação da ESF está robustamente associada com o crescimento do emprego em adultos, redução da fecundidade e aumento da escolaridade em, jovens (ROCHA; SOARES, 2009). O relatório anual da OMS de 2008 – “Primary Health Care, now more than ever”, traduzido para o português (HTTP://...)reforça a APS como uma idéia-força após 30 anos de Alma-Ata, e faz referência à experiência brasileira (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2008). Ou seja, o desafio da próxima década, para a experiência brasileira de Atenção Primária à Saúde é que a Saúde da Família exerça a função de centro de comunicação nas redes de atenção à saúde. Quais são os desafios para uma atenção primária coordenadora da rede de atenção? Utilizando as diferentes dimensões propostas no relatório anual da OMS de 2008 e os desafios apontados pelo Ministério da Saúde, apresentamos o que foi realizado e os desafios da próxima década: 136 Miolo_15anos_FINAL.indd      136 8/12/2010      12:16:58
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    1. O desafiodo Financiamento: “Crescimento dos recursos de saúde rumo à cobertura universal” “Atenção Primária à Saúde não é barata e requer investimentos consideráveis, mas gera maior valor para o recurso investido do que todas as outras alternativas” “Sistema pluralístico de atenção à saúde operado num contexto globalizado”. (OMS, 2008) O Piso de Atenção Básica aumentou 80%, era 10 reais em 2002 e aumentou para 18 reais em 2009 (R$ 3,4 bilhões, Resolução nº 8, de 27/08/2008 do IBGE, estimativa populacional de referência de 01/07/08). Se utilizássemos uma atualização monetária, como o INPC do IBGE, o valor do PAB corrigido em relação a 2002, seria cerca de R$29,00 reais, um impacto de mais 1,8 bilhão de reais em 2010. O orçamento previsto para 2011, que faz o PAB fixo chegar a R$ 19,00 reais, impacta o orçamento federal em R$ 3.57 bilhões. Os incentivos variáveis da Atenção Básica, que refletem os valores federais para a Estratégia de Saúde da Família, Saúde Bucal e dos Agentes Comunitários de saúde, passaram de 682 milhões em 2000 para 5.6 bilhões em 2009. Os valores orçamentários previstos para custear 247.000 Agentes Comunitários de Saúde, 32.500 Equipes de Saúde da Família, 21.500 Equipes de Saúde Bucal e 1.500 NASFs acumulativamente até dezembro de 2011, somam 6,57 bilhões de reais. O investimento para o Plano Nacional de Implantação de Unidades Básicas de Saúde para as equipes de Saúde da Família, previstos no Programa de Aceleração de Crescimento – PAC II, soma 1,7 bilhão de reais para a construção de 8.694 UBS nos próximos quatro anos. O desafio futuro em relação ao financiamento da APS diz respeito à eficiência alocativa do SUS, ou seja, a regulamentação da EC 29, com novos recursos para o sistema, devendo vincular recursos federais e estaduais na atenção primária, permitindo que a Saúde da Família seja o projeto estruturante do SUS. Nos municípios, recursos adicionais permitirão inovação na forma de contratação e de pagamento aos profissionais das equipes – o que é caro na atenção primária são recursos humanos – com modalidades que levem em conta o bom resultado na saúde das pessoas sob responsabilidade das equipes. 2. O desafio da Saúde da Família orientada às necessidades da população “Atenção à saúde para toda a comunidade” “Equipes de Saúde facilitando o acesso e o uso apropriado de tecnologias e medicamentos” 137 Miolo_15anos_FINAL.indd      137 8/12/2010      12:16:58
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    “Resposta às necessidadese expectativas das pessoas em relação a um conjunto amplo de riscos e doenças” “Promoção de comportamentos e estilos de vida saudáveis e mitigação dos danos sociais e ambientais sobre a saúde” (OMS, 2008) O Brasil tem três importantes características no seu modelo de APS, que nos diferenciam dos outros países: a decisão das equipes multidisciplinares serem responsáveis por territórios geográficos, a presença singular dos agentes comunitários de saúde – competência cultural e a inclusão da saúde bucal no sistema público de saúde. A situação de saúde no Brasil, provocada pela transição demográfica e pela urbanização faz com que o sistema de saúde brasileiro deva responder pela “TRIPLA CARGA de DOENÇAS.” (MENDES, 2009) 1. Ainda as doenças infecciosas e parasitárias: dengue, H1N1, malária, hanseníase, tuberculose (etc) 2. O aumento das condições crônicas (com o envelhecimento das pessoas) e seus fatores de risco (fumo, sedentarismo, má alimentação) e a 3. Violência e as causas externas de morbi-mortalidade Para dar respostas ao aumento das condições crônicas, pelo aumento da sobrevida da população, e consequentemente, ao acúmulo das co-morbidades, os processos de trabalho das equipes devem responder às novas necessidades da população, que não vai obter “cura” para as suas condições crônicas, mas sim o cuidado compartilhado, com autonomia dos sujeitos, que receberão mais informações sobre seus problemas de saúde, melhor seguimento de suas condições crônicas e maior qualidade nos cuidados preventivos, inclusive na prevenção de uso desnecessário de tecnologias. O trabalho em equipe se faz necessário para responder à complexidade dos problemas em atenção primária, exigindo-se conhecimento dos condicionantes da saúde, do risco e vulnerabilidade de famílias ou indivíduos a fim de desenvolver projetos de intervenção específicos. Deve-se reformular saberes e práticas oriundos da formação – realizada nos hospitais e ambulatórios de especialidades médicas – incorporando conceitos das ciências sociais e outros campos – em programas de educação permanente, cursos, discussão de casos e de famílias, consensos e aprendizagem entre pares. A esse processo temos chamado no Brasil de Apoio Matricial – e o temos experimentado na relação das equipes de Saúde da Família com os Núcleos de Apoio a Saúde da Família – NASF. (BRASIL, 2010) Vale destacar que o nó crítico mais citado pelos gestores é a falta de médicos de família e comunidade com perfil e capacidade técnica, e em quantidade suficiente para atender 138 Miolo_15anos_FINAL.indd      138 8/12/2010      12:16:58
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    ao processo dequalificação da Saúde da família em curso. Mesmo com o esforço do aumento de vagas de residência em MFC, com os editais I e II do Pró-Residência (PT Interministerial nº 1.001, de 22 de outubro de 2009), a maior parte delas nem mesmo são preenchidas. Por essa razão, experiências de ensino-serviço devem ser ampliadas no Brasil, especialmente nos municípios onde estão localizadas as residências médicas, , colocando os médicos residentes em MFC vinculados à gestão municipal, ampliando sua remuneração, mas com a garantia de tempo para sua formação em serviço, utilizando todos os recursos disponíveis para educação, como o das tecnologias não presenciais. Faz-se necessário valorizar essa especialidade médica, e que os estudantes de medicina tenham professores na sua graduação, como referências, por isso, experiências internacionais, como no Canadá e Espanha passaram pela criação de departamentos de medicina de família nas faculdades de medicina como um importante definidor da decisão política de se avançar na consolidação e reconhecimento desses especialistas. Avançamos com projetos que utilizam as Unidades Básicas de Saúde e as Equipes de Saúde da Família como espaço de formação dos graduandos nas áreas da saúde, como é o Pró-Saúde e o PET Saúde, porém, são : o reconhecimento social desses profissionais, com modelos em quem possam se espelhar, a possibilidade de educação permanente, a melhoria da infra-estrutura das unidades, a possibilidade de participação em congressos e eventos científicos e o estímulo à produção intelectual, cruciais na escolha da atenção primária pelos profissionais como um espaço de realização do trabalho em saúde. O papel da enfermagem nessa transição, de uma atenção primária orientadora do cuidado, que substitui a cura pelo cuidado, a tecnologia densa, pela cognição e subjetividade, o espaço hospitalar pelo ambulatorial, domiciliar e espaços coletivos, o da super-especialização médica, pelo generalista e os procedimentos médicos pelos cuidados da enfermagem , é uma peça chave na oferta da atenção primária à saúde. Faz- se necessário colocar em prática, na atenção primária, intervenções que contemplem “valores” e “crenças” das pessoas e isso faz parte da formação e das bases teóricas da formação da enfermagem, propiciando que nos processos educativos em saúde, possam facilitar a comunicação, o entendimento, a aprendizagem e dar suporte frente às situações difíceis, etc (BAUMANN; VALAITIS; KABA, 2009). Do ponto de vista global, e muito no Brasil, as (os) enfermeiras (os) constituem a maior força de trabalho e fazem a diferença em relação à oferta de serviços em atenção primária à saúde. A saúde bucal, ao fazer parte da saúde da família, visa superar a “Odontologia de Mercado” (NARVAI, 1994), e o trabalho das equipes de saúde bucal estará voltado para a reorganização de acesso às ações de saúde, garantindo-se a atenção integral aos indivíduos e às famílias, mediante o estabelecimento do vínculo territorial. 139 Miolo_15anos_FINAL.indd      139 8/12/2010      12:16:58
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    Em pesquisa recentesobre trabalhadores comunitários em saúde e impactos positivos desses sobre os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), a experiência brasileira de Agentes Comunitários de Saúde (PACS/ESF) alcançou o melhor resultado, obtendo 34 pontos de um total de 36, entre 8 países de três regiões (BHUTTA, 2010),. Os anos recentes foram marcados por avanços na regulamentação da profissão dos agentes comunitários de saúde, na sua formação de nível médio e na desprecarização das suas relações de trabalho. Em 2001, 72,4% dos ACS tinham vínculos precários e em 2008, 31,8%, sendo que, nesse período, houve um crescimento de 34,7% no nº de ACS, havendo uma distribuição muito heterogênea dessa situação nas diferentes Unidades Federadas, onde não mais que cinco estados puxam essa média para cima. O desafio da próxima década é de reforçar o papel deste trabalhador em “estreitar relações de solidariedade e confiança, construir redes de apoio e fortalecer a organização e participação das pessoas e das comunidades em ações coletivas para melhoria de suas condições de saúde e bem-estar, especialmente dos grupos sociais vulneráveis, uma das recomendações da Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde16., além de dar sustentabilidade ao piso salarial para esta categoria, em discussão neste momento, sem inviabilizar seu crescimento e a remuneração dos demais trabalhadores do SF. 3. O desafio da Gestão “APS como coordenadora de uma resposta ampla em todos os níveis de atenção” “ Regulação do Sistema de Atenção à Saúde buscando o acesso universal e a proteção social em saúde” “Participação institucionalizada da sociedade civil no diálogo político e nos mecanismos de “accountability” (Relatório OMS, 2008) O processo mais complexo na construção dos sistemas de saúde é a articulação dos pontos de atenção. A integração e a coordenação da rede a partir da APS requer mecanismos de gestão ainda incipientes se pretendemos que a Saúde da Família seja capaz de coordenar o cuidado na rede de atenção. Apesar de robustas evidências que maiores coberturas de Saúde da Família apresentam melhores resultados em indicadores de saúde, as unidades básicas de saúde, exclusivamente públicas no Brasil, ainda somam 40,5% no modelo tradicional de atenção primária, ou seja, há uma duplicação de modelos de atenção primária com unidades tradicionais e unidades de saúde da família que gera, no território, competição 140 Miolo_15anos_FINAL.indd      140 8/12/2010      12:16:58
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    pela clientela, dificuldadede vinculação da população, competição pela inserção da força de trabalho e gastos adicionais desnecessários. Há, portanto, uma necessidade de profissionalizar a gestão municipal para organizar sistemas de saúde orientados pela saúde da família, bem como introduzir gerentes de unidades básicas de saúde capazes de implementar os mecanismos necessários para que a população adscrita às equipes usufrua dos quatro atributos exclusivos da APS que são: acesso e utilização (primeiro contato), de forma integral, ao longo do tempo e com coordenação na rede de atenção. A gestão orientada pela atenção primária deve partir de um planejamento com base na população: 1. o registro da população por meio de sistemas informatizados; sobre essa população, 2. a infra-estrutura física e de equipamentos adequada, inclusive de recursos humanos; 3. a implantação de diretrizes clínicas que levem em conta classificação de risco e vulnerabilidade, e conseqüentemente 4. a definição da programação de exames diagnósticos e de consultas especializadas, inclusive para a necessidade de atenção compartilhada, adscrevendo também a população para cada especialista focal; 5. a regulação de acesso do que não é urgência e emergência nem alto custo (regulados por mecanismos específicos), ou seja, do que é eletivo, e conhecido pelo planejamento e programação a partir da população, fica à cargo da atenção primária; 6. mecanismo de comunicação da atenção primária como centro de comunicação da rede – sistemas eletrônicos de comunicação, prontuário eletrônico, listas de espera inteligentes (que incorporem a classificação de risco/vulnerabilidade). Na própria APS, quando os pacientes são vistos por vários membros da equipe e informações são geradas em diferentes lugares (diagnóstico) ou com outros especialistas, para aconselhamento ou intervenções curtas ou para pacientes específicos, por longos períodos. 7. a capacidade dos profissionais de APS “fazerem a coisa certa” – introdução de tecnologias de gestão da clínica, na perspectiva de segurança dos pacientes. Ainda em relação à gestão descentralizada do SUS, 80% dos municípios brasileiros tem uma população menor de 20 mil habitantes. Para esses municípios, faz-se necessário o apoio técnico das Secretarias Estaduais de Saúde e de suas estruturas regionais, bem como a valorização dos Colegiados de Gestão Regionais, responsáveis pela pactuação do fluxo dos usuários na rede de serviços intermunicipais. Nos municípios maiores, onde se concentram a duplicidade dos modelos de atenção básica, deve-se superar o enfoque da atenção primária seletiva, para pobres, expandindo-a para populações economicamente 141 Miolo_15anos_FINAL.indd      141 8/12/2010      12:16:58
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    integradas. A “novaclasse média” brasileira deve receber também a oferta de serviços excelentes de atenção primária, de forma a que não fique sujeita a gastos do próprio bolso em seguros privados de saúde, que não geram confiança, tampouco tem bons indicadores de saúde, e que seja possível, com recursos públicos na atenção primária, reverter os somente 41,6% dos gastos públicos com saúde no Brasil dos 8,45 do Produto Interno Bruto.( http://apps.who.int/ghodata/) A atenção primária resolutiva é capaz de conduzir à sociedade na definição das necessidades e direitos, incorporando o conceito de empoderamento e capital social. Os cidadãos satisfeitos com os serviços que recebem defenderão o modelo público e aprovarão o financiamento necessário para a manutenção da maior política de inclusão social, que é o Sistema Único de Saúde, agora mais do que nunca, orientado pela Saúde da Família. Referências BAUMANN, A.; VALAITIS, R.; KABA, A. Primary health care and nursing education in the 21st Century: a discussion paper. A report for the Ontario ministry of health and long - term care. Nurse health services research unit, march 2009. Series number 16. BHUTTA, Zulfiqar A. et al. Global experience of community health workers for delivery of health related millennium development goals: a systematic review, country case studies, and recommendations for scaling up. Switzerland: GHWA, 2010. 372 p. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção À Saúde. Departamento de Atenção Básica. Política Nacional de Atenção Básica. 4. ed. Brasília : Ministério da Saúde, 2007. 68 p. (Série E. Legislação de Saúde) (Série Pactos pela Saúde 2006; v. 4). BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Caderno de princípios e diretrizes do Núcleo de Apoio à Saúde da Família. Brasília: Ministério da Saúde, 2010.152 p.: il. (Série A. Normas e Manuais Técnicos) (Caderno de Atenção Básica, n. 27) COMISSÃO NACIONAL SOBRE DETERMINANTES SOCIAIS DA SAÚDE . As causas sociais das iniqüidades em saúde no Brasil. 220 p.: il. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2008. Disponível em: <http://determinantes.saude.bvs.br/docs/relatorio_cndss.pdf>. ELIAS, P. E. et al. Atenção básica em saúde: comparação entre PSF e UBS por estrato de exclusão social no município de São Paulo. Ciência & Saúde Coletiva, v. 11, n. 3, p. 633-641, 2006. FACCHINI, L. A. et al. Desempenho do PSF no Sul e no Nordeste do Brasil: avaliação institucional e epidemiológica da Atenção Básica à Saúde. Ciência e Saúde Coletiva, v. 11, n. 3, 2006 142 Miolo_15anos_FINAL.indd      142 8/12/2010      12:16:58
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    Informações da gráfica (colofão) Miolo_15anos_FINAL.indd      144 8/12/2010      12:16:58