Concilio de Niceia
Concilio de Niceia
Resumo: A Páscoa católica tem uma data móvel no calendário, sendo prescrita no primeiro
domingo de Lua Cheia após o equinócio da primavera no Hemisfério Norte. Muitos autores afirmam
que essa normatização da Páscoa foi instituída pelo Concílio de Niceia, realizado no ano de 325.
Neste trabalho, objetiva-se desconstruir a ideia dessa vinculação por meio da problematização de
diversos documentos do período que indicam a falta de normatização da data da Páscoa até o século
IV e a fragilidade de tal atribuição à Niceia. A partir da documentação analisada, temos como
resultado que a regulamentação dessa data é fruto de uma atribuição posterior, feita por clérigos
como Dionísio, o Exíguo. Assim, depreende-se que a definição de uma data para a Páscoa, distinta
do Pessach judaico, fez parte de um processo de definição identitária cristã.
Resumen/Abstract: Catholic Easter has a moving date on the calendar, being prescribed on the
first Sunday of the Full Moon after the spring equinox in the Northern Hemisphere. Many authors
claim that this Easter standardization was instituted by the Council of Nice in the year 325. In this
work, the objective is to deconstruct the idea of this connection through the problematization of
several documents from the period that indicate the lack of standardization of the date of the Easter
until the 4th century and the fragility of such an attribution to Niceia. From the analyzed
documentation, we have as a result that the regulation of that date is the result of a subsequent
attribution, made by clerics like Dionisio, the Exige. Thus, it appears that the definition of a date for
Easter, distinct from Jewish Pessach, was part of a process of defining the celebration's identity
among Christians.
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Palabras clave/Keywords: Easter date calculation. Standardization. Council of Nicaea.
Introdução
Ainda que seja um conceito aplicado sobretudo para a contemporâneidade, pode-se pensar
na relação do nascimento do cristianismo como um lugar de discurso dentro do judaísmo. Os crentes
em Cristo se autoproclamavam herdeiros da herança judaica (discursos, símbolos e ritos). Mas, ese
lugar também era um “não lugar”, não pertencia a eles. Assim, paulatinamente, essa “estrada
compartilhada” forneceu bases para a formação de uma crença independente, marcada por discursos
relacionais, os quais, gradativamente, delinearam um lugar cristão, aquilo que pertencia ou não à sua
própria esfera em relação ao lugar judaico.
Uma outra forma de se pensar essa questão identitária, é a ideia de identidade fluida, tal como
aponta Funari (2010: 12). Essa concepção se refere à percepção de múltiplas autorrepresentações e
pertencimentos a categorias que podem ser até excludentes entre si. No florescimento do
cristianismo nos primeiros séculos, essa fluidez poderia ser observada em determinados movimentos
que não tinham regras de comportamento que distinguissem claramente um grupo do outro, como
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os cristãos e os judeus. As fronteiras entre ambas as religiosidades eram de tal permeabilidade que, de
início, os crentes em Jesus eram vistos como uma vertente de dissidência judaica (SILVA, 2011: 266).
Para os primeiros conversos, tendo a crença lugar dentro do judaísmo, berço de onde ela
posteriormente se deslocara, seria natural a adoção de algumas práticas ligadas aos judeus, como as
do Pessach, a Páscoa judaica. Com representações1 simbólicas que se tornariam marcos distintivos de
uma ou de outra religiosidade, as autoridades cristãs, paulatinamente, construíram demarcações para
a sua festividade, relacionando-a com a morte e a ressurreição de Cristo, diferente da narrativa do
êxodo do Egito, que funda a Páscoa judaica. Assim, cartas, tratados e atas conciliares atestam a
fluidez de uma identidade que se construiu no contraponto daquilo que não a definia.
Conforme será tratado nas seções a seguir, primeiramente, o intento foi modificar a data da
Páscoa cristã, pois, sendo no mesmo dia do Pessach, alguns eclesiásticos perguntavam se entre a
cristandade se celebrava a ressurreição ou o êxodo. A falta de consenso culminou na disputa entre os
quartodecimanos, defensores da permanência da data no 14 de Nissan, contra os dominguistas,
aqueles que visavam que a celebração ocorresse apenas no domingo. Isso foi considerado
suficientemente grave para engendrar uma ampla discussão na Igreja até o século IV, com vários
debates e concílios. Desse modo, pode-se indagar: o Concílio de Niceia de 325 instituiu a
regulamentação de que a Páscoa deveria ocorrer no primeiro domingo, após a primeira lua cheia,
depois do equinócio da primavera no Hemisfério Norte?
Uma pesquisa rápida pela internet fornecerá uma resposta afirmativa para essa questão em
diferentes locais. Vários autores e estudos do meio acadêmico afirmam que o Concílio Niceia
instituiu a regulamentação mencionada acima, assim como diversas revistas conhecidas e textos em
vários sites importantes na internet. Em âmbito internacional, a partir do século XIX, autores como
Peter L’Huillier (1996: 25), na obra “The Church of the Ancient Councils”, ou Leo Donald Davies (1990:
13), em “The First Seven Ecumenical Councils (325-787)”, atribuem a normatização da Páscoa ao Concílio
1 De acordo com Chartier (1995: 179-192), as representações (sociais e culturais) são compreendidas como formas que
auxiliam na construção da identidade em determinada cultura, na medida em que se constituem em obras e gestos que
fundamentam uma apreensão estética, um princípio de classificação e demarcação intelectual do mundo, ou “práticas
comuns”, que expressam a forma que uma comunidade produz sentido, vive e pensa sua relação com o mundo. Segundo
Hunt, “[...] todas as práticas, sejam econômicas ou culturais, dependem das representações utilizadas pelos indivíduos
para darem sentido a seu mundo” (HUNT: 1992, p. 25). O cristianismo utilizava as representações do universo judaico,
mas, foi apenas a partir da demarcação de suas diferenças, que construiu a sua própria identidade.
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de Niceia. No verbete “Easter Holiday”, a enciclopédia Britannica (2020) também associa a
regulamentação da data da Páscoa ao Concílio de Niceia, assim como a New Advent (2020), uma
enciclopédia católica, que no prefácio promete fornecer informações confiáveis sobre doutrinas
católicas.
Em língua portuguesa, importantes historiadores, como Hilário Franco Junior (1992: 30), na
obra “As Utopias Medievais”, também relaciona Niceia com a instituição da data da Páscoa. Na área
de astronomia, no livro organizado por Amâncio César Santos Friaça [et al.] (2008: 47), professor do
departamento de astronomia da Universidade de São Paulo, intitulado “Astronomia: Uma Visão
Geral do Universo”, também se encontra que a regra da ocorrência da Páscoa após a primeira lua
cheia depois do equinócio da primavera foi instituída pelo Concílio de Niceia. A mesma informação
também consta no site do Observatório Astronômico de Lisboa (2019), na postagem “Domingo de
Páscoa”, e no artigo do professor de departamento de Física da Universidade Federal de Ouro Preto,
Rubens Machado (2014), intitulado “Data da páscoa e ano bissexto: A astronomia na história dos
calendários”.
Revistas que atingem um amplo público também relacionaram o Concílio de Niceia com a
regra utilizada atualmente para a Páscoa, como a Super Interessante (2016), na matéria “Por que o
Carnaval e a Semana Santa ocorrem em datas móveis?”, e a Isto é (2017), na matéria “Carnaval de
2018 será de 9 a 14 de fevereiro; saiba como a data é definida”. Os sites dos canais History (2020), na
postagem “Igreja realiza o Primeiro Concílio de Niceia”, e da emissora BBC News (WYATT, 2016),
na matéria “Por que a data da Páscoa varia tanto? Entenda como ela é determinada”, também fazem
a mesma correlação.
Além desses, muitos outros locais bastante acessados também fazem a mesma vinculação,
como o site da Opus Dei (2020), uma matéria no jornal Gazeta do Povo (2005) e no Correio Braziliense
(CARAMORI, 2017). É importante mencionar, também, endereços consultados por estudantes de
ensino fundamental e médio. O verbete “Concílio de Niceia”, no site Toda a Matéria (2020), e o
“História da Páscoa”, no site Mundo Educação (SILVA, 2020), também seguem a mesma referência dos
demais citados.
Pelas menções acima, atendo-se apenas a publicações dos últimos anos, pode-se perceber
que, desde o âmbito acadêmico até publicações que atingem um público mais amplo, está pulverizada
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a ideia de que o Concílio de Niceia instituiu a norma que prescreve a Páscoa após o primeiro
domingo de lua cheia depois do equinócio da primavera. Contudo, embora uma vastidão de estudos
e textos apontem que essa relação existe, intenta-se aqui demonstrar que não há registros ou
indicativos concretos de que Niceia tenha tido qualquer participação nessa decisão específica.
Para discutir isso, a primeira parte deste trabalho, intitulada “O 14 de Nissan, o domingo e
indícios dos primeiros computus paschali”, aborda as primeiras querelas entre os quartodecimanos e os
dominguistas, asserções de como os parâmetros, que posteriormente compuseram o cálculo cristão,
estiveram relacionados com a datação do Pessach e os primeiros eclesiásticos que poderiam ou não ter
proposto computus paschali na Antiguidade, assim como a diversidade de cálculos para a data da Páscoa
até o século IV.
O tratamento de uma questão que pressupõe a consideração de fontes diversas pode ser um
solo arenoso, sobretudo por tentar abarcar uma visão distinta daquela transmitida pela tradição. Este
texto não tem a pretensão de ser conclusivo, principalmente considerando a complexidade do tema e
os fatores que podem ser trazidos para o debate. Mas, pelo contrário, visa-se a abertura para uma
discussão cujo intuito é trazer novos elementos para reflexão, tendo em vista que essa argumentação
específica (que desconstrói a vinculação de Niceia com a regulamentação da Páscoa) é bem pouco
explorada e quase inexistente em língua portuguesa. Além disso, defende-se a importância do tema,
visto que muitos locais atribuem legitimidade a essa vinculação de maneira acrítica. Por vezes, é
2 Algumas especificidades sobre os cálculos fogem ao escopo proposto, por isso não serão consideradas. Dentre elas, o
funcionamento dos ciclos, o cálculo do ano zero ou o cálculo da data do equinócio, que se alterou ao longo dos séculos.
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tentador considerar que conceitos que foram estabelecidos posteriormente já o eram em tempos
anteriores.
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Em Peri Pascha (cf. HALL, 1979), o bispo Melito de Sardes, também conhecido como
Melitão, o Eunuco (m. ca. 180), bispo de Sardes (próxima de Esmirna, na Anatólia Ocidental),
afirmou não ter dúvidas de que, entre os cristãos, o sentido da “Páscoa do Senhor” havia substituído
o da Páscoa judaica. Por isso, defendia a permanência da solenidade no tradicional 14 de Nissan,
conforme o calendário judaico. Os defensores dessa data foram conhecidos como quartodecimanos.
A despeito das controvérsias envolvendo o dia ou o horário que Jesus faleceu ou ressuscitou,
no geral, assume-se que os evangelhos bíblicos de Mateus 28, Marcos 16, Lucas 24 e João 20 indicam
que a Ressurreição de Cristo ocorreu no domingo. Baseado nessa interpretação, diversos eclesiásticos
argumentavam que a celebração deveria ocorrer apenas no domingo, dia da semana que ocorreu a
Ressurreição (por isso, eles são aqui designados como dominguistas). Isso diferia da data hebraica,
que poderia ocorrer em qualquer dia da semana (LEVIEILS, 2007: 29; BELMAIA, 2017: 543)
Em vista disso, dentro da comunidade cristã do segundo século, houve disputas e a Páscoa
estava ocorrendo em datas diferentes. A correspondência do Bispo Dionísio de Corinto (m. ca. 171)
com as igrejas da Ásia e de Roma são evidências de um anseio por reuniões periódicas para tratar
desse impasse. Uma dessas cartas menciona que, quando Aniceto, que se tornou bispo de Roma em
155, viajou para a Ásia a fim de fazer uma visita ao quartodecimano Policarpo (69-155), não
conseguiu persuadi-lo a abandonar a observância do 14 de Nissan, pois Policarpo afirmava que João,
discípulo de Jesus, assim como outros apóstolos, realizaram a Páscoa no 14 de Nissan, como pode
ser visto neste trecho de uma das cartas:
Nós pois, celebramos intacto este dia, sem nada juntar nem tirar. […] Todos estes
celebraram como dia da Páscoa o da décima quarta lua, conforme o Evangelho, e
não transgrediram, mas seguiam a regra da fé. E eu mesmo, Polícrates, o menor de
todos vós, (faço) conforme a tradição de meus parentes, alguns dos quais segui de
perto. Sete parentes meus foram bispos, e eu sou o oitavo, e sempre meus parentes
celebraram o dia quando o povo tirava o fermento. (CESAREIA, HE, V, XXIV).
Essa divergência foi considerada suficientemente grave para envolver uma ampla discussão
da qual participaram as igrejas do Oriente e do Ocidente, incluindo importantes bispos do período,
como Melito de Sardes, Apolinário de Hierápolis e, em seguida, Clemente de Alexandria e Hipólito
de Roma (JOSSA, 1997: 142). Nos registros de Eusébio de Cesareia, em 195, um sínodo dirigido
pelos bispos Narciso de Jerusalém e Teófilo de Cesareia pedia que a igreja de Alexandria, que era
dominguista, enviasse cópia dessas deliberações por epístolas, para que a Páscoa fosse celebrada
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simultaneamente por todos os cristãos. No entanto, essas ações não tiveram grande alcance, e as
igrejas da Ásia continuaram guardando o 14 de Nissan:
[…] apoiando-se em uma tradição muito antiga, pensavam que era preciso guardar
o décimo quarto dia da lua para a festa da Páscoa do Salvador, dia em que os judeus
deviam sacrificar o cordeiro e no qual era necessário a todo custo, caindo no dia
que fosse na semana (CESAREIA, HE, V XXIV).
A normatização da Páscoa era importante na medida em que a Igreja visava criar um corpo
religioso equipado com uma doutrina unitária. Por isso, era fundamental a realização das mesmas
práticas5 em um mesmo dia entre todos os cristãos. A mudança da data da celebração para ocorrer
apenas no domingo delimitava uma identidade da Páscoa cristã, pautada na Ressurreição de Jesus,
desatrelando a festividade das representações judaicas subjacentes. No caso da construção identitária
da celebração da Páscoa, o “outro”, o “diverso”, era o Pessach judaico.
As resoluções defendidas por algumas igrejas para que a celebração ocorresse apenas no
domingo, por ser o dia da semana no qual os evangelhos afirmam que Cristo ressuscitou, visava
marcar um território próprio, sobretudo porque, no século IV, a animosidade contra os judeus
continuava grande. Vita Constantinii6III, XVIII – XX, por exemplo, registra uma carta na qual o
imperador Constantino não apenas enfatiza a importância da distinção da Páscoa cristã da Páscoa
judaica, como também acusa os judeus do crime que culminou no assassinato de Cristo, chama-os de
“doentes” e outros termos pejorativos. Isso significava que a criação da identidade da Páscoa estava
5 Embora existissem diferenças entre as igrejas, já era possível reconhecer uma liturgia pascal comum até o final do
século II. Entre os dominguistas, a celebração era iniciada com um jejum obrigatório, de dois ou mais dias, a ser
finalizado na noite de véspera entre sábado e domingo de Páscoa. Isso demarcou os traços daquilo que, mais tarde,
tornar-se-ia a “Semana Santa”. As leituras do Antigo e do Novo Testamento na sexta-feira tinham especial importância
para a memória da morte de Jesus. A noite entre sábado e domingo era dedicada à memória da Ressurreição.
Diferentemente da Páscoa judaica, realizada principalmente em âmbito familiar, a Páscoa cristã buscava reunir uma
comunidade mais alargada (JOSSA, 1997: 146-147).
6 Obra escrita por Eusébio de Cesareia após a conclusão de História Eclesiástica.
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imersa em outros confrontos com os judeus, processo esse que Guarinello (2013:8) e Hall (1992: 15)
mencionam.
Computus é um termo que se reporta a uma ideia de cálculo alargada, que integra a
aprendizagem dos numerais, a prática aritmética, o uso de quadros de datas, o
domínio de técnicas para cálculo dessas mesmas datas, o conhecimento sobre
alguns fenômenos astronômicos, a explicação e fundamentação teológica de toda a
informação e uma ideia de ordem do cosmos que é, simultaneamente, matemática e
teológica (COUTINHO, 2014: 3-4).
Wallis (1999: XIX) afirma que o computus paschali nada mais é que um problema matemático
versado na forma de calcular a data da Páscoa, conjugando a aplicação de outras ciências, como a
7 A data do 14 de Nissan faz parte de um calendário lunissolar, com os meses baseados nas fases da Lua, dentro de um
ano solar. Um ano solar tem a duração de 365 dias, 5 horas, 48 minutos e 46 segundos. Para manter a sincronia com as
estações, mantendo uma quantidade exata de dias, é preciso introduzir correções periódicas e regulares no ano civil
(RUTHERFORD, 1748: 977). O mês lunar judaico inicia sempre com uma Lua Nova. Tendo cada ciclo em média de 7 a
8 dias, após uma Lua Crescente o décimo quarto dia de cada mês será sempre uma Lua Cheia. O mês sinódico é um ciclo
completo de todas as fases da Lua em relação à Terra. Assim, o período médio do mês lunar, ou sinódico, é de
aproximadamente 29,5 dias, tempo da rotação da Lua em torno da Terra completando o seu ciclo de fases, o que soma
um total anual de 354 a 355 dias. O ano solar totaliza de 365 a 366 dias. Essa diferença de dez ou onze dias do calendário
lunar em relação a calendários solares poderia deslocar os meses lunares das estações, fazendo com que, por exemplo, o
14 Nissan da Páscoa não ocorresse mais na primavera, estação na qual a celebração deveria acontecer segundo a Bíblia
hebraica. Para que esse descompasso não existisse, aproximadamente a cada três anos, quando se acumulavam cerca de
trinta dias de diferença entre o calendário lunar e o solar, inseria-se um mês (designado mês embólico ou intercalar) de
trinta dias. Dessa forma, o calendário lunar voltava ao mesmo ritmo do calendário solar, ou seja, não ficava desconexo
das estações do ano.
8 Antes da adoção de cálculos precisos, a necessidade da inserção desses meses embólicos era determinada pelas
autoridades religiosas por meio da observação da maturação de frutos ou da cevada (STERN 2001: 70). Com o
desenvolvimento da matemática no século V a.C., foram distribuídos pontos fixos de embolia em um ciclo de 19 anos,
mais especificamente nos anos 3, 6, 8, 11, 14, 17 e 19 desse ciclo, método conhecido como Ciclo Metônico. Esse ciclo
tem esse nome em homenagem ao grego Meton de Atenas, que em 432 a.C. observou que o ciclo de 19 anos, com 6940
dias ou 235 meses lunares, seria viável para sincronizar os calendários lunar e solar. Acrescentando um décimo terceiro
mês em sete ocasiões durante o ciclo, tem-se 19 x 12 meses lunares + 7 meses embólicos = 235 meses lunares, ou seja,
19 anos solares (RUTHERFORD, 1748: 388). Dessa maneira, para determinar se um ano judaico era um ano embólico,
ou seja, se havia a adição do mês intercalar, é preciso encontrar sua posição no Ciclo Metônico de 19 anos.
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astronomia e a teologia. O resultado era organizado em tabelas que determinavam a data da Páscoa
por vários anos subsequentes, com ciclos que voltavam a se repetir. Em âmbito cristão, do século II
ao século IV, circulavam várias tabelas baseadas em diversos cálculos que datavam dias diferentes
uns dos outros.
Um dos parâmetros adotados nos computus era a datação do Pessach. Eusébio de Cesareia (HE,
VII, XXXII) preserva um fragmento de “Cânones de Anatólio sobre a Páscoa”, no qual o bispo
Anatólio da Laodiceia (bispo da Laodiceia ca. ano 268, m. ca. 283), além de trazer um ciclo de 19 anos
(o qual se acredita ter sido utilizado em Alexandria), também teria afirmado que a Páscoa judaica era
observada somente depois do equinócio da primavera. Em De vita Mosis II, 222, Fílon de Alexandria
afirma que na época de Moisés se marcava o equinócio da primavera no primeiro mês do ano,
Nissan, e que no décimo quarto dia desse mês a Páscoa seria realizada na lua cheia 9 Na Antiguidade,
também poderia se prever as estações com base na constatação da incidência do Sol em uma
constelação. Flávio Josefo, em sua obra “Antiquitates judaicae”, III, 248, afirma que a Páscoa judaica
era oferecida no décimo quarto dia de Nissan, quando o sol estava em Áries10, posição no céu que
indicaria a entrada da primavera no Hemisfério Norte.
Assim, dois dos parâmetros que passaram, no século VI, a fazer parte da composição do
cálculo da data da Páscoa cristã (o equinócio da primavera no Hemisfério Norte e a Lua Cheia), já
faziam parte do calendário hebraico. Atualmente, olhando a história de frente para trás, é tentador
pensar que eles localizavam o 14 de Nissan e ajustavam o domingo para equalizar uma Páscoa cristã.
Mas, devido tanto à heterogeneidade quanto à escassez documental, não é simples traçar uma
trajetória consistente da construção do computus paschali. Existiram várias proposições de cálculos com
parâmetros diversos.
9 Seguindo a lógica de funcionamento de um calendário lunar, a partir da constatação da entrada da estação, a primeira
Lua Nova marcaria o início do mês de Nissan, de modo que, o décimo quarto dia seria, necessariamente, uma Lua Cheia,
conforme o calendário lunar.
10 A astronomia e a astrologia do período relacionado a essa menção eram vistas sob a perspectiva de Ptolomeu (90-
168), um cientista grego que viveu em Alexandria. Imaginava-se que a terra era cercada por uma gigantesca esfera, na qual
eram percebidos alguns astros fixos, enquanto outros se moviam, como o Sol e a Lua. Naquele período, o movimento do
Sol em torno das estrelas fixas aparentava percorrer uma elíptica em um círculo de 360º na esfera celeste. No capítulo 9
de “Tetrabiblos”, Ptolomeu dividiu esse trajeto em 12 partes, e cada constelação foi batizada com nomes relacionados
com animais, advindo, assim, o nome zodíaco, do grego zōidiakòs Kyklos, ζῳδιακός κύκλος, que significa “ciclo ou
círculo de pequenos animais” (SALIBA, 1994: 67). Com a eclíptica dividida em doze seções, o grau 0 representava o
signo de Áries. Quando o Sol se encontrava nessa posição, designava o início da primavera no Hemisfério Norte.
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Um indício da aleatoriedade da data da Páscoa pode ser encontrado, por exemplo, em uma
fonte inusitada. Em uma tradução de fragmentos de Historia Acephala (MAFFEI, 1737), um texto
anônimo, datado do final do século quarto, que trata dos principais acontecimentos da vida do bispo
Atanásio de Alexandria (296-373), consta uma lista de datas de exílio desse clérigo, e uma delas, 16 de
abril de 339, é designada “segunda-feira de Páscoa”.
Além de Anatólio, mencionado acima, foram apontados estar entre os primeiros computistas
os bispos Hipólito de Roma (170-236), Dionísio de Alexandria (m. ca 264), Demétrio de Alexandria
(189 – m. ca. 224-232) e até mesmo Eusébio de Cesareia (265-339). Conforme será tratado a seguir,
os dois últimos carecem de atestação.
História Eclesiástica VI, XXII, registra que, na obra “Sobre a Páscoa”, Hipólito, relacionado
à igreja de Roma no século III (CROSS, 2005), propôs um ciclo de 16 anos para a Páscoa, fixando
como início do ciclo o primeiro ano do imperador Alexandre Severo. Uma confirmação dessa
informação pode estar relacionada à descoberta de 1550 na Igreja San Lorenzo Fuori le Mura, em
Roma. Atrás de uma estátua sem cabeça, existe uma insígnia em grego que diz “Demonstração das
datas da Páscoa em Forma Tabular”, com tábuas pascais desde o ano de 222, correspondendo ao
período do imperador Alexandre Severo (MOSSHAMMER, 2008: 118). Segundo Mosshammer
(2008: 122), essa inscrição levou os descobridores a acreditarem que essa tábua de 16 anos era a
mesma que Eusébio atribuiu a Hipólito, pois nela há ciclos de 16 anos da Lua Cheia pascal (com os
respectivos dias da semana e meses embolísticos11) e uma lista de 112 anos para o domingo de
Páscoa12, cálculo esse possivelmente utilizado durante algum período do bispado de Hipólito,
enquanto Alexandria poderia utilizar o de Anatólio.
Nos registros de Eusébio de Cesareia (HE, VII, XX, I) também constam que em uma das
cartas que Dionísio de Alexandria (bispo de 249 a 265) escreveu ele propôs um ciclo de oito anos,
diferente daquele proposto por Hipólito. Já Demétrio, bispo de Alexandria entre 180 e 190
11 Cf. nota 8.
12 De forma bastante geral, os ciclos indicam quando as datas da Páscoa ocorrerão, e o fechamento de um ciclo significa
que as datas começaram a se repetir. A razão para considerar os 112 anos como sete ciclos de 16 anos, é que, qualquer
data no calendário juliano retrocede um dia da semana a cada dezesseis anos. Um exemplo de como isso ocorre: se 13 de
abril de 222 era um sábado, dezesseis anos depois, em 238, 13 de abril caiu em uma sexta-feira, em 254, 16 anos após,
caiu em uma quinta-feira e assim sucessivamente.
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(CESAREIA, HE, VXXII; VI, XXVI), foi relacionado à questão do computus paschali apenas por
fontes posteriores ao período no qual ele viveu.
De acordo com Mosshammer (2008: 111), um clérigo do século X afirmou que Demétrio
enviou cartas sobre o jejum pascal e um método de datação da Páscoa para Gabius de Jerusalém e
outros bispos. História Eclesiástica V, XII, menciona apenas duas pessoas com um nome simular a
Gabius, que é Gaius ou Gaianus, ambos bispos em Jerusalém no período do imperador Adriano
(117-138), distantes, portanto, dos anos de 180-90 nos quais Demétrio foi bispo. Outra fonte é um
calendário copta dos Dias Sagrados (cf. SYNAXARIUM), composto em árabe no século XII ou
XIII, o qual afirma que Demétrio convocou uma reunião de astrônomos (incluindo Ptolomeu) para
estabelecer um cálculo para o dia da Páscoa judaica e outro para a Festa da Ressurreição. Contudo,
Ptolomeu faleceu antes de Demétrio se tornar bispo (ca. 165 -170). Por isso, infere-se que não existe
base histórica para a convocação dessa reunião. Mosshammer (2008: 111) acredita que o clérigo
possa ter tido algum envolvimento com as questões da Páscoa, porém, não existe nenhuma evidência
consistente que permita relacioná-lo com a criação de um computus paschali.
Jerônimo Estridão (De Viris Illustribus, 61, 87) afirmou que Eusébio, bispo de Cesareia no
século IV, compôs um ciclo de 19 anos da Páscoa, informação replicada no século VIII por Beda
(HE, V, XXI; JONES, 1943: 24). Em Vita Constantinii, IV, 34-5, Eusébio se refere a um ensaio que
ele escreveu, “Sobre o Festival da Páscoa”, no qual ele afirma ser um tratado teológico sobre os
“mistérios” e a origem da festa, mas não há referência a cálculos. Nas obras sobreviventes desse
autor, não existe nenhum computus ou qualquer referência de que ele tenha desenvolvido algum
(MOSSHAMMER, 2008: 145).
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cálculo não implicava necessariamente que ele tivesse ampla adesão. Para constatar se essas
discussões tiveram algum impacto na Igreja, é preciso avaliar algumas decisões conciliares e cartas.
Em meados dos séculos III e IV, enquanto os sínodos engendravam soluções para cismas e
heresias locais, os concílios promulgavam determinações válidas para toda a Igreja. Os concílios, do
latim concilium (que designa assembleia), eram reuniões convocadas por bispos ou autoridades
políticas (como imperadores ou governadores provinciais) para discutir assuntos de ordem teológica,
homogeneização de crenças, regulação de práticas cristãs e sanções disciplinares. Esses pleitos
resultavam em uma norma, sentença ou esclarecimento doutrinal na forma de cânone, um conjunto
de regras sobre determinado assunto (CAMERON, 1999: 67).
A ata do Concílio de Arles indica uma consonante de que a Páscoa deveria ocorrer apenas no
domingo, mas nenhum cálculo ou parâmetro específico é mencionado. A aclamação de que o dia da
Páscoa fosse observado “em um dia e de uma só vez em toda a terra” atesta que a celebração não
estava ocorrendo no mesmo dia entre todos os cristãos. Isso concorda com os registros de Eusébio,
pois, além da diversidade de cálculos que resultava em datas diferentes para a Páscoa no meio cristão
até o século IV, ainda existia a persistência da festividade junto com a data judaica, no 14 de Nissan
(CESAREIA, HE, V, XXIV).
Mesmo constando em ata, nas obras de Eusébio de Cesareia não é mencionado que o
Concílio de Arles de 314 tenha tratado da Páscoa. É importante salientar que Eusébio estava
escrevendo do ponto de vista das igrejas asiáticas, que estavam em disputa com Roma pela
proeminência em matérias teológicas (CAMERON, 1999: 67), o que poderia explicar uma possível
omissão de informações que atribuíssem algum destaque à igreja romana. Devido à rivalidade
teológica de Alexandria e Roma, dois importantes centros da Igreja nos primeiros séculos, Roma
tinha seus próprios cálculos para a data Páscoa, como o ciclo de dezesseis anos de Hipólito, e
Alexandria com o ciclo de dezenove anos.
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A partir das noções propostas por Le Goff (2013: 442), depreende-se que “[...] a intervenção
dos detentores do poder na medida do tempo é um elemento essencial de seu poder: o calendário é
um dos grandes emblemas e instrumentos de poder”. Logo, aquele que detinha o “saber”
relacionado ao cálculo da data da Páscoa também detinha o “poder” de ditar quando as celebrações
ocorreriam. Desse modo, o controle do calendário litúrgico legitimava a preeminência e a autoridade
de uma igreja sobre as demais.
Entretanto, nos cânones do Concílio de Niceia não existe nenhuma menção à Páscoa. Apesar
disso, dois extratos das obras do Eusébio de Cesareia podem lançar luz ao que estava sendo debatido
naquele período. No livro III de “Vita Constantinii”, que trata sobre assuntos relacionados ao
concílio, tais como da escolha dos participantes, da recepção por parte do Imperador Constantino e
da participação de ambos (Eusébio e Constantino) no encontro, na seção XIV Eusébio menciona
uma “Unânime Declaração do Conselho relativo à Fé, e à celebração da Páscoa. O resultado foi que
eles não só estavam unidos acerca da crença, mas que o tempo para a celebração da festa da Páscoa
foi acordado por todos”. Ou seja, o excerto afirma que a questão foi debatida no Concílio de Niceia,
mas não explicita quais eram os termos que todos concordaram, que poderia ser somente sobre a
necessidade de uma uniformização, visto que a celebração estava ocorrendo em dias diferentes em
toda a cristandade. Em outro extrato de “Vita Constantinii III”, XVIII, em uma carta para aqueles que
não participaram do concílio, o imperador pede que a data da festa da Páscoa seja uniformizada 13
13 Do excerto: “τί γὰρ ἡμῖν κάλλιον, τί δὲ σεμνότερον ὑπάρξαι δυνήσεται τοῦ τὴν ἑορτὴν ταύτην, παρ’ ἧς τὴν τῆς
ἀθανασίας εἰλήφαμεν ἐλπίδα, μιᾷ τάξει καὶ φανερῷ λόγῳ παρὰ πᾶσιν ἀδιαπτώτως φυλάττεσθαι;” (CESAREIA, Vita
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para ocorrer em um mesmo dia entre toda a cristandade, e enfatiza a importância da não observação
de qualquer preceito ligado aos judeus. Assim, a querela relatada na carta parece estar mais vinculada
com o desvencilhamento das representações do universo judaico e com a assunção de um caráter
identitário cristão para a celebração do que com a adoção de qualquer cálculo específico, sobretudo
porque nenhum dia específico é mencionado. Mesmo que nesse período se almejasse realizar a
celebração no domingo, não existia uma normativa para toda a Igreja acerca de “qual” domingo. Na
obra “História Eclesiástica”, de Sócrates de Constantinopla (SCHOLASTICI, I, VIII; I, IX, 380 – ca.
450), escrita para registrar a história cristã do ano de 305 até cerca de 380, também consta uma
menção da persistência das práticas segundo os costumes judaicos e uma carta mencionando que
Niceia determinou que a observação da Páscoa deveria estar em “conformidade com os romanos e
conosco [Alexandria]”. Pelo teor relacionado aos judeus, acredita-se que eles possivelmente poderiam
estar se referindo à realização da Páscoa no domingo, e não à adoção de um computus específico.
Mesmo em datas subsequentes ao Concílio de Niceia, as discussões estiveram mais relacionadas ao
desvencilhamento das representações judaicas. Um exemplo disso é o sínodo da Laodiceia, que
ocorreu na Frígia (entre ca. 343 e 381), cujo cânone XXXVIII estabelece que “Não é lícito receber o
pão ázimo dos judeus [cujo rito que faz parte do Pessach], nem participar da sua impiedade”
(SCHAFF, 2005: 217).
Hefele (2005: 102)14 relata que em 326, o ano seguinte ao do Concílio de Niceia, assim como
nos anos 330, 333, 340, 341, e 343, a celebração da Páscoa ocorreu em dias diferentes entre
alexandrinos e romanos. Essas divergências, segundo o autor, culminaram na realização do Concílio
de Sárdica, em 343, momento em que foram feitas tentativas de acordo sobre datas comuns para os
próximos cinquenta anos. Mas, muitos lugares não aceitaram as datas propostas até o advento do
cálculo de Dionísio, o Exíguo.
Constantinii, Logos g, XVIII). Tradução livre “Nessa reunião, a questão relativa ao dia santíssimo da Páscoa foi discutida,
e foi resolvido pelo julgamento conjunto de todos os presentes, que esta festa deveria ser celebrada por todos e em todos
os lugares no mesmo dia”.
14 O bispo alemão Karl Joseph von Hefele iniciou em 1855 a citada obra “Conciliengeschichte” (“História dos Concílios da
Igreja”). Essa foi lançada em inglês em 1871 e segue registrada nessa língua na coletânea organizada por Schaff (2005).
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Igreja Romana, que o ciclo de oitenta e quatro anos continuou a ser usado em
Roma como antes. Agora, este ciclo difere de muitas maneiras do Alexandrino, e
nem sempre concorda com ele sobre o período da Páscoa1 (HEFELE, 2005: 105)
De acordo com Mosshammer (2008: 51), o que teria induzido vários estudiosos ao erro de
atribuir a regra do equinócio a uma decisão do Concílio de Niceia foi a promulgação do ecumênico
Dionísio, o Exíguo (470 – 544), que reformulou o cálculo alexandrino de 19 anos e o atribuiu ao
Concílio de Niceia, que não tinha explicitamente enunciado a regra do equinócio da primavera ou
qualquer detalhe quanto ao método para calcular uma data cristã.
No Præfatio da obra “Liber Pascate” (EXIGUUS, 2019), Dionísio, o Exíguo, afirmou que o
Concílio de Niceia concordou com um ciclo de 19 anos já utilizado em Alexandria para o cálculo da
data da Páscoa e apresentou um ciclo de 95 anos, o qual ele diz ter adaptado dessa “ciência egípcia”
(isto é, de Alexandria). Dionísio foi um monge do século VI na Cítia Menor (atual Dobruja,
Romênia), que ficou conhecido por um método de cálculo pascal e a inclusão do conceito de Anno
Domini (o ano do Senhor, Era Comum ou Era Cristã), que é a contagem dos anos a partir do
nascimento de Cristo, ainda em uso atualmente).
Poucos autores rechaçam Dionísio por ter feito a correlação de Niceia com a adoção de
qualquer cálculo para a Páscoa. Entre eles, Schwartz (1905: 22) chamou Dionísio de “falsificador
deliberado” nesse e em outros assuntos. Dois autores, um do século XIX e outro início do XX,
estudiosos como Duchesne (1878: 289) e Daunoy (1925: 424), também refutaram que o Concílio de
Niceia tenha enunciado qualquer regra para a definição da data da Páscoa. É importante notar que,
entre a bibliografia encontrada, ao longo de vários anos, apenas os trabalhos citados aqui rejeitaram a
promulgação de Dionísio. Isso é um número inexpressivo face a quantidade de locais e autores
(como aqueles citados na introdução e tantos outros que não foram) que reproduzem atualmente a
informação de que o Concílio de Niceia regulamentou o cálculo da Páscoa, tal qual o temos hoje.
Jones (1943: 71), entretanto, defende Dionísio afirmando que havia precedentes, já que
Genádio de Marselha, por exemplo, que escreveu trinta anos antes de Dionísio, já havia declarado na
biografia de Teófilo que o Concílio de Niceia adotou um ciclo alexandrino (ESTRIDÃO, De Viris
Illustribus, 61, 87). Apesar de não ter sido o primeiro a correlacionar Niceia com a adoção de um
computus paschali, Dionísio, o Exíguo, pode ter sido o responsável pela maior difusão dessa
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informação devido à popularização dos seus estudos, atribuição que se propagou pelos séculos
seguintes.
Em suma, todos os cálculos deram lugar, posteriormente, ao computus de Anatólio, que foi
reformulado por Dionísio, o Exíguo, no século VI. Este produziu tábuas pascais utilizando um ciclo
de 95 anos (5 ciclos de 19 anos), considerando os anos bissextos e o Anno Domini, que é a base do
cálculo atual.
Considerações finais
Além disso, o estabelecimento de um computus paschali uniforme era fundamental para a Igreja,
na medida em que essa data embasava a elaboração de um calendário litúrgico. Por exemplo, o
Carnaval é marcado quarenta dias antes da Páscoa (período da quaresma), o Domingo de Ramos é na
semana que antecede a Páscoa, e, cinquenta dias após esta, é celebrado o Pentecostes.
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cálculos para designar a data da festividade. Mas, não há indícios de que algum era predominante ou
que a discussão do período fosse sobre os parâmetros do cálculo.
De acordo com o que foi exposto, apesar de “Vita Constantinii” apontar que o assunto da
Páscoa tenha sido tratado por Niceia, não há indícios de que esse concílio tenha definido qualquer
parâmetro concreto, sendo a relação, possivelmente, uma vinculação tardia popularizada, sobretudo,
por Dionísio, o Exíguo, ainda que ele não tenha sido o primeiro a fazer essa associação. Ou seja,
mesmo que o Concílio tenha discutido sobre a realização da celebração em um domingo, não
menciona qual domingo era esse. Diante do que foi discutido, depreende-se, então, que essa noção
anacrônica perdura até os dias atuais, por meio de vários estudos e sites das mais diversas áreas,
alguns deles citados na introdução.
Além do escopo aqui tratado, um indício de que a disputa acerca do computus paschali se
estendeu pode ser observado no Sínodo de Whitby, que ocorreu em 664, na Britannia, que tratou
essencialmente de uma diferença de cálculo. Conclui-se que a normatização da data da Páscoa e,
consequentemente, a construção de um calendário litúrgico anual fez parte de um processo de longa
duração, conforme apregoa Braudel (1992), no qual se notam mais elementos de continuidade de
uma formação identitária (seja no contraponto com o judaísmo seja para manter a autoridade dentro
de uma igreja em expansão) do que uma disputa sobre qual cálculo seria implementado.
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